A LEI N.º 10.639/2003: educação antirracista e regime de informação
LAW N. º 10.639/2003: anti-racist education and information regime
Debora Santos de Oliveira
Universidade de Salamanca, Espanha
RESUMO
Aborda o contexto histórico por meio do qual se dá o projeto e o desenvolvimento da Lei n.º
10.639 de janeiro de 2003, que versa sobre a obrigatoriedade da disciplina sobre História e Cultura
Afro-brasileira. Busca entender porque o artigo foi vetado do texto original da LDB/1996 sendo
abordado tardiamente. Apoia-se no conceito de regime de informação para identificar as relações
de força presentes naquele contexto de modo a entender porque a pauta não foi incluída no texto
legal e de que forma a sociedade civil, especificamente o Movimento negro, se mobilizou para
reverter à questão. Utiliza de pesquisa exploratória como metodologia para observar os
problemas que redundaram na não inclusão desta pauta no corpo da lei geral da educação
nacional, questão que reproduz uma ausência de importância sobre a questão do negro enquanto
agente histórico e formador da cultura brasileira.
Palavras-Chave: Lei n.10.639/03. Regime de Informação. Movimento negro. Educação
antirracista. História e Cultura Afro-brasileira.
ABSTRACT
It addresses the historical context through which the project and development of Law n.º 10.639
of January 2003 takes place, which deals with the obligatory nature of the discipline on AfroBrazilian History and Culture. It seeks to perceive why the article was vetoed from the original
text of the LDB/1996 being approached late. It relies on the concept of information regime to
identify the power relations present in that context in order to understand why the agenda was
not included in the legal text and how civil society, specifically the Black Movement, mobilized
to revert to the issue. It uses exploratory research as a methodology to observe the problems that
resulted in the non-inclusion of this agenda in the body of the general law of national education,
an issue that reproduces a lack of importance on the question of black people as a historical agent
and trainer of Brazilian culture.
Keywords: Law n. 10.639/03. Information regime. Black movement. Anti-racist education. AfroBrazilian history and culture.
Revista Múltiplos Olhares em Ciência da Informação | Universidade Federal de Minas Gerais | Belo Horizonte
DOI
II Encontro Nacional de Bibliotecárias(os) Negras(os) e Antirracistas (II ENBNA) e o I Encontro Internacional de Bibliotecárias(os) Negras(os) e
Antirracistas (I EIBNA)
1 INTRODUÇÃO, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA
No Brasil, temos a segunda maior população de negros fora do continente africano.
Mesmo assim, o reconhecimento por parte do Estado de que estudar a História da
cultura afro-brasileira no ensino educacional, só veio no ano de 2003, com a promulgação
da Lei n.º 10.639. É por isso, que este trabalho busca apresentar os elementos que regem
os diferentes períodos históricos, que facilitaram ou dificultaram o avanço do projeto de
lei até a sua aprovação.
Portanto, a motivação deste trabalho deu-se a partir do interesse em discutir os
contextos, históricos e políticos que acompanharam o processo de origem do Projeto de
Lei n.º 10.639 de 1995, até a sua promulgação como Lei em janeiro de 2003. Utiliza-se do
conceito de regime de informação, entendendo- o como:
[...] o modo informacional dominante em uma formação social, o qual
define quem são os sujeitos, as organizações, as regras e as autoridades
informacionais e quais os meios e os recursos preferenciais de
informação, os padrões de excelência e os modelos de sua organização,
interação e distribuição, enquanto vigentes em certo tempo, lugar e
circunstância (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012, p. 43).
O objetivo do artigo é observar o viés normativo que marcou o processo de elaboração
da Lei n.º 10.639 de janeiro de 2003, que define a obrigatoriedade do ensino da História
e Cultura Afro-brasileira no currículo da educação básica, sob a lente do conceito de
Regime de Informação. Para atingi-lo buscou-se explicitar o contexto que levou a
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) cujas diretrizes previam a
inclusão da temática como componente curricular e que foi vetada quando da
promulgação da Lei, o que forçou a elaboração de uma Lei específica para tratar da
questão, atrasando sua inclusão no elenco de disciplinas do ensino básico. Entender o
fluxo da informação sobre o tema, o modo como à informação foi produzida e circulada
entre órgãos consultivos e deliberativos e os motivos que levaram ao veto, assim como
o trajeto legal para se tornar uma Lei específica é a questão a nortear esse estudo. Outra
questão importante é entender o papel do movimento negro nesse debate, tendo em vista
a importância da sociedade civil organizada para requerer junto ao Estado o
cumprimento de suas obrigações.
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A escolha do tema se justifica no sentido de conhecer os fluxos de informação que
culminaram, ainda que tardiamente, com a promulgação da Lei n.º 10.639 que determina
a obrigatoriedade do estudo da História Cultura Afro-brasileira na rede nacional de
ensino. A temática foi incluída nas pautas políticas do programa de governo do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois o mesmo apoiava o movimento negro.
(PEREIRA; SILVA, 2012). No entanto, a Lei n.º 9.394, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional fora desenvolvida muito antes, em 20 de dezembro de 1996. Por
que neste período não houve a inclusão da obrigatoriedade do ensino da História e
cultura Afro-brasileira? Porque o contexto político brasileiro não sinalizou a necessidade
dessa pauta nos currículos do ensino básico?
Em termos metodológicos trata-se de pesquisa exploratória de caráter bibliográfico e
documental com vista a discutir os problemas que redundaram na retirada do tema do
elenco de matéria tradas pela LDB/1996, vindo a ser retomado apenas em 2003 por meio
de legislação específica, passando a incluir o currículo oficial da rede de ensino nacional.
Esse atraso na elaboração reproduz uma ausência de importância, ou baixa estimação
que simplifica a questão do negro, sua história e cultura na formação da nação brasileira.
2 REVISÃO DE LITERATURA
2.1 Histórico da lei n.º 10.639/2003
A Lei de Diretrizes e Bases (Lei n.º 9394/96) em seu texto original, ratificando a posição
da Constituição Federal de 1988, determinava que:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras
(BRASIL, 1996, online).
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Mas, o Art. 26-A foi vetado não integrando o texto final da Lei, promulgado em
dezembro de 1996. Isso redundou em um atraso na incorporação do tema como elemento
curricular do ensino básico nacional. Fora do texto das diretrizes nacionais o tema foi
tratado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) com uma temática transversal de
História ficando a questão de sua inclusão como disciplina específica adiada. O veto e a
forma secundarizada como a questão abordada levou a sociedade civil, por meio do
movimento negro a se mobilizar.
A Lei n.º 10.639 que determina a obrigatoriedade do ensino da História e cultura afrobrasileira foi sancionada em janeiro de 2003, ano e mês em que tomou posse o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Pereira e Silva (2012) afirmam que:
[...] a inclusão desse tema nos conteúdos escolares reconstrói nos alunos
e nos professores uma imagem positiva daquele continente, além de,
por um lado, elevar a autoestima dos alunos afrodescendentes e, por
outro lado, tornar os demais alunos menos refratários à diversidade
étnico-racial (PEREIRA; SILVA, 2012, p. 1-2).
Oliveira e Silva (2017) também argumentam que a legislação seria uma crítica a
hegemonia e ao “[...] conhecimento eurocêntrico e socialmente valorizados pela secular
elite brasileira nos currículos escolares”. Ou seja, a inclusão da temática nos currículos
escolares da educação básica brasileira é uma das práticas de descolonização e
questionamentos de direitos e privilégios na formação da organização da sociedade no
Brasil (GOMES, 2012).
O Movimento Negro neste período, em sua luta pela educação, pela inclusão da temática
através dos currículos, abordava a questão no sentido de que as pessoas negras não
fossem mais vistas como objetos e sim como sujeitos de sua história. Por isso, sendo
sujeito era necessário incluí-las na constituição da História e Cultura brasileira, sendo a
escola um dos espaços de inserção da questão por meio de seu currículo (PEREIRA;
SILVA, 2012). Justifica-se, deste modo, a necessidade de compreender o movimento
político e histórico em que ganhou destaque os movimentos sociais, chamando a
atenção, durante todos esses sete anos, do governo e políticos para a inclusão da temática
na lei de Diretrizes e Bases da Educação.
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Do mesmo modo, absorver essa nuance contextual é colocar as lentes do conceito de
regime de informação para melhor compreensão dos sistemas de poder e força. As
políticas de informação foram consideradas por Bernd Frohmann (1994-95) como parte
de um regime de informação. Segundo Oliveira (2019, p. 22, grifo nosso):
O autor notou que estas [politicas de informação] sofriam mudanças ao
sabor das estratégias de governança do Estado e de sua articulação no
cenário internacional. Assim, trouxe a noção de que a política de
informação está sempre interligada a uma política de governo. Em seu
artigo principal sobre regime de informação, ele discorre a respeito das
circunstâncias da política de informação (científica e técnica) nos
Estados Unidos da América.
Desta forma, admitimos que analisar a Lei n.º 10.639/2003, sob a perspectiva de regime
de informação é poder compreender o favorecimento, ou não, de um regime para certos
temas e interesses por parte do Estado, por meio das políticas de governo.
2.2 As leis no contexto dos regimes de informação
Para poder compreender o porquê a Lei n.º 10.639/03 não foi aprovada na década de
1990 é necessário alcançar entendimento sobre os elementos que favoreceram ou não sua
promulgação. Desta forma, a seguir se discutirá o conceito de regime de informação e
em seguida como o Movimento Negro se protagonizou na luta por uma educação
antirracista e no desenvolvimento da legislação até o ano de 2003.
Bernd Frohmann (1994-1995) foi o precursor do conceito de regime de informação, ele
observou os fluxos informacionais ao nosso redor, sejam eles culturais, acadêmicos,
financeiros, etc. No olhar para as politicas de informação analisa como os regimes se
originam e se estabilizam e como formas de poder são exercidas em e através deles.
(FROHMANN, 1995, p. 7, tradução da autora).
Apesar de ser descrito e apresentado primeiramente por Frohmann (1995), outros
autores discutiram o conceito. Sandra Braman (2004) discute as políticas de informação,
nos conceitos de governança e governamentalidade. Bruno Latour (2007) aborda o
conceito por meio da Teoria Ator-Rede, isto é, as relações de um objeto dentro de um
regime de informação. E, a professora Mª Nélida Gonzalez de Gómez (2008) ampliou o
conceito trazendo interesssantes abordagens para a Ciência da Informação.
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Para tanto, admite-se a compreensão de “regime de informação” na perspectiva de
González de Gomez (2008), cujo conceito pode servir como instrumento analítico. Nessa
direção, a autora traz-nos uma reflexão sobre o conceito com o qual nos aproximamos
neste trabalho, ao defini-lo como “o modo informacional dominante em uma formação
social”. Regime de informação então serve para reconstruir os “modos de produção de
ações e práticas de informação, ancoradas nas redes densas de relações culturais, sociais
e econômicas e condicionadas pelas estruturações preferenciais das relações de poder”
(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2008, p. 2).
No caso da Lei n.º 10.639/03 entendemos ser o Movimento Negro o agente propulsor
dessa discussão, no sentido que desde a década de 1930 vem acionando a sociedade civil
na luta contra o apagamento histórico da causa negra em nosso país; para desnaturalizar
o mito da democracia racial e mostrar as contradições que tal discurso engendra,
enfraquecendo a luta pela igualdade racial. Um dos caminhos para desconstruir as
ideologias raciais é a crítica à educação e a todo fluxo informacional que a cerca: a
legislação, as diretrizes, os currículos, o modelo de ingresso no sistema de ensino, a
forma de avaliação etc.
Nesse cenário o Movimento Negro assume-se como “autoridade informacional” sobre a
temática levando a discussão ao Parlamento e exigindo do Estado o que estava previsto
na Constituição Federal. O que foi feito em 2003 é fruto de um processo de lutas que se
iniciam em 1930, como veremos na seção seguinte.
2.3 O Protagonismo do Movimento Negro no Brasil
Na história do Brasil o protagonismo do Movimento Negro pode ser observado a partir
da criação da “Frente Negra Brasileira (FNB), fundada em 16 de setembro de 1931,
tornando-se o maior e mais amplo Movimento Negro do século XX, de caráter nacional”
(PAULA, 2009, p. 108). A sociedade brasileira, neste período histórico (década de 30)
vivia sob a bandeira da modernidade e da tentativa do país se constituir enquanto nação.
Nesse ensejo, o Movimento Negro buscava por meio da luta antirracista o direito do
cidadão negro se tornar participante dessa reconstituição nacional.
Diante disso, o Movimento se deu conta que necessitava de participação política para
conseguir dialogar com mais veemência, foi quando a FNB se transformou em partido
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político em meados de 1936, na crença que assim teria um alcance maior na eloquência
de suas pautas. A Frente Negra Brasileira torna-se, então, ator principal por protagonizar
algumas ações na época, tais como “[...] criação de uma escola e cursos noturnos de
alfabetização de jovens e adultos negros e a publicação de um jornal”. Assim como a
realização do I e II Congresso Afro-brasileiro, em Recife no ano de 1933 e na Bahia em
1937. (PAULA, 2009, p. 109). Outros passos relevantes ocorreram, como:
Em 1944, Abdias Nascimento, Aguinaldo Camargo e Sebastião
Rodrigues Alves fundaram o Teatro Experimental do Negro (TEN) em
protesto contra a falta de artistas negros nos palcos brasileiros. Além de
criar escolas de atores, o TEN também publicou o jornal Quilombo,
ofereceu aulas de alfabetização e de iniciação cultural, estratégias
organizativas e formativas da população afro-brasileira. Organizaram
ainda a Conferência Nacional do Negro, em São Paulo e no Rio de
Janeiro, e a Convenção Nacional do Negro, também no Rio de Janeiro
(PAULA, 2009, p. 109).
O Movimento Negro também atuou por meio das seguintes acontecimentos: Em 1950 a
Organização das Nações Unidas (ONU) apoiou os estudos sobre relações raciais
incluindo o Brasil nas discussões; em 26 de janeiro de 1950 houve a criação do Museu do
Negro, por meio do TEN na Associação Brasileira de Imprensa; em 1952 a criação da Lei
Afonso Arinos, que reconhecia a existência do preconceito racial no país; em 1955 com a
execução de um concurso de artes plásticas liderado por Abdias do Nascimento e em
1964 o mesmo fomentou outros cursos por meio do Movimento. O desempenho
demonstrado, associado à luta antirracista, antes do período da ditadura militar no
Brasil, contribuiu para um forte legado até a publicação da Lei n.º 10.639 em 2003.
No período entre 1965 até 1970 houve um apagamento das discussões sobre as relações
raciais no Brasil, justamente porque a pauta se tornou questão de “segurança”, como por
exemplo, o exílio de um dos grandes líderes do Movimento Negro, Abdias Nascimento,
já que o país passava por uma ditadura em seu sistema político. Ainda na década de 70,
houve a primeira comemoração na data da morte do líder Zumbi dos Palmares, mas as
demandas sociais recomeçam a surgir como pauta a partir da década 80, após o fim da
ditadura militar e início do processo de redemocratização.
Os movimentos sociais não tinham apoio do governo político em suas lutas e por isso
enfrentavam muitas dificuldades, sendo para os próprios negros outras problemáticas
como a questão da integração, a precariedade na formação social, a falta de união dos
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próprios negros entre outras questões, que muitas vezes enfraqueciam o movimento. Ao
retornar do exílio, Abdias Nascimento elegeu-se deputado federal (1983-1987) e
elaborou, em 1983, um projeto de Lei n.º 332, que versava sobre uma educação
antirracista. Em princípio vetado completamente, analogicamente podemos dizer que
era o que viria a ser mais tarde em 2003 a Lei n.º 10.639. Porém, o projeto de lei de Abdias
Nascimento era muito mais completo e alegava muitos pontos que sumiram quando a
lei foi aprovada como, por exemplo, agregar o ensino de línguas africanas em regime
opcional.
A crise do Estado novo (1945) assim como fim da ditadura (1985) foram marcos na
história que levaram ao fim da Frente Negra Brasileira, enquanto partido político. No
entanto, o Movimento social Negro prosseguiu, por meio de clubes e associações cívicas,
fundamentado no sentimento de democracia, o movimento reivindicava por meio de
campanhas educacionais, como por exemplo, a petição para a proibição de anúncios
discriminatórios contra trabalhadores negros. (PAULA, 2009).
A conjuntura internacional demonstrou que os movimentos sociais
acenderam o debate sobre as desigualdades raciais que vitimavam
afrodescendentes em todo o mundo, enquanto no Brasil, no período da
ditadura militar, o mito da democracia racial foi reavivado. (PAULA,
2009, p. 111).
Em 1987, quando o país passou por uma de uma nova Constituição, Carlos Hasenblag
compartilhou uma agenda com reivindicações do Movimento Negro, com destaque para
aquelas do campo educacional como, por exemplo, a reforma dos currículos escolares
para a valorização do negro, principalmente no ensino de disciplinas como História.
Portanto, havia uma pressão do Movimento Negro e também de alguns políticos de
esquerda para que essas pautas fossem recorrentes até que fossem finalmente
consideradas pelo Parlamento. Porém, sabe-se que o regime político dominante não
impulsionava essas questões, portanto, elas não ganharam a força que requeriam.
Os representantes das entidades do movimento negro do país, na Constituinte,
apresentaram as seguintes reivindicações vinculadas à educação: O processo
educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a
inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, o ensino da história da
África e da história do negro no Brasil. (PAULA, 2009, p. 114).
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Pode-se observar que a pauta foi contemplada na Constituinte, mas a discussão da
“inclusão da História afro-brasileira e africana na sala de aula”, como vimos, foi vetada
do texto da LBB/96. Mas a temática não foi esquecida. O Movimento se consolidou por
meio de suas críticas, atos de protestos, marchas, etc. Na década de 90 ganhou destaque
através da ida até Brasília, na realização da Marcha Zumbi dos Palmares (1995), com a
entrega de uma petição ao governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no
entanto, obteve o pedido requerido no documento negado.
Ainda nos anos 1990 origina-se o movimento voluntario denominado Pré-Vestibular
para negros e carentes (PVNC), sendo uma ferramenta para que estes cidadãos
pudessem ter a oportunidade de competir com vagas no ensino superior.
Ao final dessa década, ocorreram conferências preparatórias para a formação
da delegação brasileira à Conferência Mundial da ONU contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em
Durban, África do Sul, em 2001. (PAULA, 2009, p. 114).
Porém, algumas constituições estaduais avançaram com a pauta, como foi o caso de Belo
Horizonte e Bahia (década de 90), ainda que o governo federal não assumisse a ajusta
como obrigação geral – o Movimento recebia apoio das iniciativas locais.
Ao se chegar à aprovação da Lei em 2003, ainda que com seu artigo 26 vetado, somouse à legislação, o que levou à criação de secretarias que apoiasse e fiscalizasse a causa. A
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, além das Coordenadorias de
Promoção da Igualdade Racial que também atuam no campo político organizacional e
no apoio às causas raciais. Esse momento fecundou-se por ser resultado de uma longa
participação e influência do Movimento Negro na conjuntura política nacional, uma vez
que muitos de seus militantes conseguiram ocupar lugares no Parlamento e no governo.
Após mais de meio século de reivindicações, a promulgação da Lei n.º 10. 639 foi vitória,
por meio do protagonismo político do Movimento social.
Paula (2009, p. 107) afirma que a educação, “mais designadamente, o currículo, é um
campo de luta por reconhecimento e promoção da igualdade racial”. E que a questão
mais adiante foi ampliada, com a inclusão das culturas indígena, ocorrendo alteração no
texto de 2003. Em 2008, seu art. 26-A foi alterado pela Lei Federal nº. 11.645 incluindo a
cultura indígena, passando a ter a seguinte redação:
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Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino
médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como
o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o
negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e histórias brasileiras. (BRASIL, 2008, online).
A nova abordagem veio sinalizar a problemática do negro tocando no âmbito dos povos
indígenas brasileiros. A legislação atualizada em 10 de março de 2008 pela Lei n.º 11.645
buscava corroborar a Lei 10.639/03 com acréscimos da obrigatoriedade dos estudos
também para a História e Cultura dos indígenas. A legislação vem como base jurídica
para que qualquer instituição de ensino da educação infantil ao ensino superior se
destituísse do conhecimento eurocêntrico e do racismo institucional presente nos
currículos brasileiros. (SOUZA, 2005).
Esse movimento de perceber e questionar os lugares de poder, relacionado com a
indagação da relação entre direitos e privilégios, demonstra como “infelizmente, o
sistema de ensino brasileiro continua sendo um dos principais instrumentos ideológicos
de interiorização do negro, [e do indígena] bem como de distorção e ocultamento de sua
verdadeira história” (JORNAL DO MNU, apud SOUZA, 2005).
Sendo assim, a legislação é uma tentativa de combate no que tange a um regime político
de formação dominante que evocou discussões trazidas e apoiadas fundamentalmente
pelos movimentos sociais, neste caso pelo Movimento Negro.
As nuances do racismo a brasileira têm sido um empecilho ao
crescimento do movimento negro num país no qual os negros são
maioria em todos os setores e lugares socialmente desprestigiados, e
são sempre vistos como suspeitos. Entretanto, se apontam o caráter
racista da discriminação nos processos de exploração e competição no
trabalho e nas oportunidades educacionais, são imediatamente
acusados de praticar o 'racismo às avessas' (SOUZA, 2005, p. 49).
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Para tanto, ao reconhecer e analisar a história da educação brasileira, pelas nuances das
lutas antirracistas pode-se admitir que as políticas de informação que predominaram em
cada período e que interferiram no avanço ou retrocesso das pautas que traziam o
Movimento, assim como a adequação do mesmo aos debates políticos em questão, como
na década de 30 quando o Brasil passava por uma transição e aceitação de si mesmo
enquanto nação, momento este em que os negros se sentiam obrigados a chamar atenção
para serem vistos como cidadãos dessa nação em desenvolvimento, como sujeito
participativo, atuante e não mais como ato passivo de uma formação escravista
dominante, advinda do período colonial.
Conhecer as agências, seus agentes, atores e política dominante e observar os nós que
formam as redes, com a legislação aqui estudada, permite-nos desvelar a raiz de um
regime de informação. A luta pela elaboração da Lei n.º 10.639/2003 envolveu atores
(estatais e não estatais) que foram percebidos por meio da governança e da
governabiblidade, cujas decisões e comportamentos – como o veto de uma legislação –
têm efeito sobre a sociedade (BRAMAN, 2004). Sendo a governaça do Estado, para a sua
propria manunteção, adiando então a inclusão da pauta antirracista na LDB/1996.
Contudo, apesar de afetar a política estrito senso, acredita-se que um regime de
informação não se restringe ao campo da política, mas o ultrapassa. É um processo onde
novas formas políticas emergem fora do campo da política.
3) RESULTADOS E DISCUSSÃO
Observemos que o caminho que a Lei n.º10.639 percorreu se coadunou com os regimes
de informação que a antecederam, incluindo momentos de repressão ao movimento
negro e suas lideranças. No entanto, a pauta chegou ao parlamento, por meio do
deputado Paulo Paim, que retomando os preceitos constitucionais, apresentou à Câmara
Federal a proposição de lei. O projeto foi encaminhado ao Senado, “[...] mas arquivado
em 1995, certamente por questões políticas e burocráticas, consideradas – na ocasião –
mais importantes que o contexto das relações étnico-raciais na educação.” (PEREIRA;
SILVA, 2012, p. 6, grifo nosso).
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Conhecer como foi desenvolvido o sistema de educação brasileiro, nos períodos
históricos anteriores a década de 90, ajuda-nos a perceber o porquê as questões raciais
ainda eram complicadas de serem tratadas, porque o Brasil foi um país com um longo
percurso de escravidão.
O Brasil (1500-1815), como Colônia de Portugal percorreu um estreito caminho onde a
formação educacional era controlada pelo governo, especialmente pela Igreja Católica,
sobretudo pelos jesuítas. Educar fazia parte do regime de informação dominante,
constituindo-se como um dispositivo de poder, de formação e de controle. Em todo este
período (mais de 300 anos) os negros não tinham acesso direto e exclusivo ao ensino, às
vezes não recebiam ensino nenhum, e quando recebiam alguma instrução, esta era
limitada (LEITE, 1949). “Para os negros bastava ensinar o idioma para que obedecessem
às ordens.” (OLIVEIRA, 2019, p. 42).
A educação, no Brasil, foi institucionalizada como símbolo de status social e ascensão
política, cuja promoção não tinha acesso a maioria dos cidadãos, principalmente os
negros. Em síntese, pode-se dizer que o regime de informação predominante nesse
período envolveu uma educação de classe sendo os homens negros e pobres dela
excluídos. Na luta para reverter esse quadro, o Movimento Negro colocou-se na cena
política, desde os idos de 1930, como protagonista na tentativa de lutar contra o racismo
estrutural, cujas raízes escravocratas persistiam escamoteadas pela ideologia da
democracia racial, adiando o debate e a lutas pela igualdade racial em nosso país.
A história herdada pelo Movimento Negro, que resistiu os “nãos” quando o regime de
informação dominante não apoiava a sua causa, vem dando estofo para as suas
reivindicações, apoiando suas lideranças no parlamento a conduzir a aprovação das
pautas antirracistas.
Na educação, a aprovação da Lei nº 10.639 de 2003, cuja temática poderia ter sido
incluída na LDB/1996, mas que, devido às forças que regiam o poder naquele período
foi adiada, voltou ao parlamento em outro momento. Mas como vimos, percorreu uma
extensa temporada até que o Brasil, favorecido por um partido político reconhecido
como de esquerda, somasse forças a favor em prol das discussões do negro.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
II Encontro Nacional de Bibliotecárias(os) Negras(os) e Antirracistas (II ENBNA) e o I Encontro Internacional de Bibliotecárias(os) Negras(os) e
Antirracistas (I EIBNA)
Cada período histórico, expressa um regime de informação distinto, ou seja, relações de
força que se instauram quando alguns atores sociais ascendem ou declinam. A escola
acabou participando desse processo de reconfiguração do Brasil, mas, sobretudo
inicialmente com um projeto hegemônico, atendendo a propósitos políticos, econômicos
e ideológicos.
Não é possível observar esse processo de forma naturalizada, na década de 90 quando
houve a discussão e criação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(1996) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997)1 a pauta antirracista era para ser
incluída, no entanto, estas questões raciais não eram interesses do Estado.
Em cada contexto informacional há muitas relações transversais que tocam a
promulgação de uma legislação como, por exemplo, as forças de interesse das bancadas
políticas partidárias; acontecimentos e circunstâncias na sociedade que reforçam o
desenvolvimento e aprovação de uma lei; a bandeira que levanta um partido político,
que está no poder; as demandas socioeconômicas, como uma crise etc. Todos esses são
exemplos e elementos manuseados que circulam ao redor da aderência a uma legislação.
Sendo assim, quando o Estado está a favor de uma “causa”, sua ação é refletida através
de investimentos e recursos para garantir benefício ou direito em prol da sociedade,
como a aprovação de leis e o desenvolvimento de políticas públicas. Mas, quando essa
garantia não advém do Estado para a sociedade, os cidadãos se manifestam para
mobilizar o Estado. Desta forma, nota-se que muitas vezes são os movimentos sociais
que tentam quebrar esses “regimes de informação”, isto é essas relações de força que
estão em luta na sociedade que impõe sua direção.
A pauta antirracista na política de Diretrizes e Bases da Educação viria para reparar um
apagamento das questões raciais e para corrigir a hegemonia do currículo europeu,
notado como favorecedor de uma parcela da sociedade, parcela menor. Entretanto, a
aprovação da Lei não é garantia do ensino do conteúdo exigido já que outras ações, como
a garantia de formação educacional para os professores quiçá pela supervisão das
Secretarias de Educação e outros recursos efetivariam mais a legislação e a colocariam
em cumprimento. Oliveira (2019, p. 24) salienta que “o estatuto normativo é um dos nós
1
Sendo incluído nos Parâmetros apenas como tema transversal o que ainda era muito pouco.
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Antirracistas (I EIBNA)
que compõem o sistema escolar e por meio do qual também fluem outros meios que
engendram sua estrutura”.
Sendo assim, a legislação é apenas um dos “nós” do sistema de educação, para que haja
êxito no cumprimento da Lei e respeito às questões levantadas pela mesma é necessário
que outros nós, dessa rede de atores estejam interligados e seguindo o mesmo propósito.
Isto não é garantido, já que o regime dominante sofre alterações a cada mudança
protagonista política.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei n.º 10.639, de 2003: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
Brasília, DF, 2003.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 1996: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF, 1996.
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