Flores e joias de Israel
Moacir Amâncio*
Pode-se dizer que identidade é algo que não existe. Seria apenas um cozido
ideológico. No entanto, é uma ficção que se renova. Entre os judeus, a
identidade tornou-se um problema muito sério, que pode ser considerado a
expressão de um momento transitivo na Europa e também nas comunidades
judaicas do Norte da África, inicialmente, com a emancipação judaica e a
revolução cultural implantada pela Hascalá na Alemanha do século 18,
estendendo-se até o final do século 19. Judeus europeus, que por séculos tinham
vivido de maneira isolada, passariam a ser, em teoria, cidadãos como as demais
pessoas habitantes deste ou daquele país, seguidoras de outras religiões. A
aldeia judaica, shtetl, foi desaparecendo, as massas judaicas começaram a se
movimentar ao mesmo tempo em que eram discriminadas e massacradas,
enquanto uma parte das comunidades rompia com o tradicionalismo e
procurava se ajustar aos chamados padrões europeus de educação e
comportamento. Cidadãos na rua, judeus em casa.
Como se sabe, a Hascalá, o Iluminismo judaico, não encontrou resposta positiva
para suas aspirações. A grande contribuição de intelectuais, artistas e
empresários judeus em diversos países do continente europeu era vista como
uma espécie de intrusão e o resultado também é conhecido. Discriminação
sistemática e massacres foram enterrando o sonho da emancipação judaica. O
Caso Dreyfuss, na França, ficou como emblema da época durante a qual
também se viu surgir o movimento sionista que levaria ao projeto Israel
durante a primeira metade do século 20, quando o nazismo pretendeu resolver
a chamada questão judaica à sua maneira, o extermínio total.
Para Israel, não foram somente judeus europeus ameaçados de extinção, mas
judeus de todas as partes. Sob a direção do Sionismo, ideólogos judeus
imaginaram um modelo do que seria o israelense, para eles alguém desligado
do passado – inclusive linguístico, que é o que mais nos interessa aqui. O antigo
idioma, seja o iídiche, de base alemã, o ladino, de base espanhola (línguas
faladas por judeus asquenazitas e sefarditas, respectivamente, ambas escritas
em caracteres hebraicos), o árabe, o farsi ou o italiano, seriam substituídos pelo
hebraico. Se pelo menos dois idiomas morriam, outro renascia na sua fala. Era o
hebraico – a rigor nunca foi uma língua morta, pois sempre serviu para a escrita
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Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 7, n. 12, out. 2013. ISSN: 1982-3053.
de poemas e estudos rabínicos, sendo praticada nas orações e na conversação
eventual – que se tornava um idioma contemporâneo como os demais.
Por trás da uniformização idiomática, estava a busca do homogêneo nacional,
com o que isso implica de arbitrário para o que mais tarde, já rumo ao final do
século 20 e início do 21, surgiria uma resposta. Ela veio sobretudo das
comunidades sefarditas – de origem hispano-portuguesa, falantes de um
idioma peninsular carregado de expressões hebraicas, turcas e árabes, por
exemplo, confundidos com os “orientais” (procedentes do Iraque, Síria, Iêmen,
Irã, Curdistão), pois a maioria deles vivia no Império Otomano. O sonhado
Israel homogêneo revelou-se o que era, um rico mosaico de culturas e idiomas.
Michal Held1 é uma peça desse mosaico. Ela descende, na linhagem paterna, de
judeus romenos, na materna, da família De La Roza, cujos membros se
dirigiram a Jerusalém quando foram expulsos da Espanha em 1492. No poema
seguinte, aqui traduzido, ela mescla o hebraico e o ladino de uma velha cantiga
transmitida de geração em geração – há uma óbvia referência ao nome da
família.2 Trata-se de um texto dedicado à memória das línguas. De um lado, o
hebraico bíblico, o divino rebaixado ao existencial contemporâneo – preferi a
tradução de Ferreira de Almeida para a fala divina de Êxodo 3:14, por
presentificar o verbo e o existente, mas usei também o futuro, como decorrência
do existir e por causa da aliteração com a última palavra da segunda linha. 3 De
outro lado, o ladino, ou espanholit. Convivência histórica e possível e aqui
indissolúvel. Held optou por transcrever a cantiga ladina em caracteres Rashi, o
cursivo sefardita adotado pelos rabinos, que na forma própria indica a
diferença no igual inseparável – em português uma saída seria mudar o tipo ou
usar o itálico:
Rosa dos ventos
Sou o que serei
rosa pois rosas foram
minhas mães
o que eu for
serei
a pomba da canção
En la mar ay una torre No mar há uma torre
en la torre ay una ventana na torre há uma janela
en la ventana ay una na janela há uma
palomba pomba
ke a los marineros yama que os marinheiros chama
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Essa canção cantaram por séculos minha mãe e minha
avó e a mãe dela e os marinheiros
não ouvem as
pétalas das corolas delas adejando sobre o mar que se
torna todo
agua rosada
águas de rosas
Apesar da sua expressão poética, marcada pela fusão de dois idiomas, e da sua
atuação como pesquisadora e de ensinar cultura e literatura sefardita na
Universidade Hebraica de Jerusalém (mais literatura hebraica), ela se nega a
aceitar um rótulo que a definiria como sefardita ou “oriental profissional” –
expressão israelense. Porque, como ela declara e como sua poesia confirma,
Held não se vê amarrada numa definição estranha, que a devolveria a um gueto
redivivo e muito fora de lugar. Ao contrário de autores israelenses da primeira
metade do século 20 que se queriam israelenses ponto, ela pertence a gerações
que procuram resgatar suas origens numa clave de universalidade, sem que
com isso renunciem ao que carregam do “israelismo”, com todas as
consequências que isso implica. O livro que publicou a partir da tese de
doutorado, Ven ti kontaré (Vem, te contarei), lançado pelo Machon Ben-Tsvi,
investiga o universo das narrativas orais das kontaderas de kuentos tradisionales
em ladino. Ela tem publicado ensaios sobre o idioma, a identidade, a cultura e a
literatura ladinos também escrita. E, finalmente, dá configuração a esse
universo multifacetado em sua poesia.
Tanto que, quando lhe pediram um poema para ser publicado num site
dedicado à temática sefardita e oriental, ela se sentiu bastante desconfortável. O
site pretendia ser “a casa virtual dos orientais conscientes e críticos, que
queriam elevar suas vozes reprimidas” pela cultura asquenazita dominante.
“Não poucos poetas aceitaram e se fazem ouvir nesse site”, diz, “com suas
palavras conferindo legitimação à luta oriental social e cultural em Israel, mais
de uma vez em suas relações políticas óbvias. Eu recusei o convite sob a
argumentação de que ‘eu não escrevo para o gueto’. Do meu ponto de vista,
publicar um poema num site como esse significa adotar uma identidade
categórica, quando minha identidade não se presta a uma redução como essa.
Respondi portanto ao editor da seção de poesia do site que tudo o que eu
poderia escrever era um manifesto contra isso.”
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Em depoimento enviado por e-mail, Michal (De La Roza) Held conta a origem
do próximo texto dentro do ambiente de Israel aparentemente polarizado:
No final da conversa com o editor foi escrito o poema
“Como joia”, num golpe de mão, e publicado pouco
depois no site.4 Minha sensação era de que eu havia escrito
uma declaração sobre a multidentidade. Uma vez que
num Israel tão matizado no aspecto dos relacionamentos
que toda pessoa que vive aqui está submetida a eles, não é
dado reduzir nenhuma identidade pessoal, e certamente, a
minha também não, a um só aspecto dela. Eu acredito que
se a visada oriental é capaz de alterar a posição de
inferioridade a que foi forçada por parte da sociedade, ela
poderá fazer isso convidando o lado ocidental a avançar
na direção da qual tem medo, do pensamento oriental
multifacetado, isto é, sua música, por exemplo, construída
sobre escala oriental matizada e não sobre notas ocidentais
restritivas, e há ainda muitos exemplos do encontro de
oriente e ocidente, do norte e do sul no modelo
mediterrâneo que sabe incluir tudo e sabe que chegou o
tempo de nos voltarmos para o local onde vivemos. Desse
ponto de partida, surgiu o meu manifesto, e na minha
inocência, supus que ele desapareceria lá longe sem
merecer nenhuma reação. Para minha surpresa, no
momento em que o publicaram, fez jus a considerações
que não cessaram desde então. Ainda mais, o texto me
surpreendeu também porque as pessoas se relacionaram a
ele como se fosse um poema, e parte delas expressou
identificação com a mensagem à multiplicidade identitária
e afirmaram que ele também as representa.
Segue-se o texto que, na visão da poetisa – mesmo quando nesse momento
talvez não pretendesse ser poetisa –, atesta, de maneira metonímica, a
complexidade do panorama e do indivíduo israelense, além das cortinas
ideológicas de sempre. Nessa tradução, foram introduzidos termos
esclarecedores para evidenciar a variedade original, mais notas que esclarecem
detalhes quem sabe ininteligíveis ao leitor não familiarizado com tais assuntos:
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como joia
eu sou faca-marrocos
vinde a mim e eu vos besuntarei em manteiga e mel- - e do lado de meu pai eu sou no geral uma guerreira que
deus
nos livre e guarde em alemão
e do lado da música eu sou toda grega talvez não
judia
e do lado de minha mãe eu venho da rosa de la roza
mas o iídiche oculto rola na minha língua
como manteiga e mel
não menos do que o spanyolit
e na po - lôn - ia plantei as cordas de minha alma e sonhei
para saltar caminho num milagre eu sou
etíope-asquenazi-espanhola-iemenita-romena
oriental-ocidental ocidental-oriental
de jerusalém-de tel aviv de tel aviv-de jerusalém
nortista-do-sul sulista-do-norte
religiosa-laica laica-religiosa
zenbudista-sufi-ramba’mística-baalshemtovista
direitista-esquerdista esquerdista-direitista
israelense diaspórica
eu sou uma e são sem fim os meus reflexos- - como joia
ser engastada nela
Glossário
Faca-marrocos: expressão pejorativa aplicada a judeus marroquinos nos anos
1950, aqui recuperada num sentido positivo.
Que deus nos livre: em aramaico, no original, Rahamana litslan (que o
Misericordioso nos salve).
Espanholit: spanyolit – espanholit, sinônimo de Ladino, língua sefardita.
Po – lôn – ia: no original Po-lán-ia, que em hebraico lê-se “aqui dormiu, ou
esteve, Deus”, referência ao Baal Shem Tov, lembrado no final do texto, ver em
seguida neste glossário.
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Saltar caminho: no original qefitsat haderech, expressão envolta em aura mística,
tomar atalho de maneira milagrosa.
Ramba’mística: de Rambam, acrônimo de Rabi Moshê ben Maimon –
Maimônides – filósofo judeu medieval conhecido pelo seu férreo racionalismo,
numa posição contrária à mística.
Baalshemtoviana: de Baal Shem Tov (acrônimo Besht), o Senhor do Nome,
como ficou conhecido o rabino Israel (Ysroel) ben Eliézer (século 18), Polônia,
rabino místico e carismático fundador do movimento místico-piedoso
conhecido como Hassidismo.
----* Moacir Amâncio é professor de literatura hebraica da Universidade de São
Paulo, autor de, entre outros livros: Ata (reunião de volumes de poemas
reunidos), Dois palhaços e uma alcachofra (sobre obra de Yoram Kaniuk) e Yona e o
Andrógino – notas sobre poesia e cabala. Traduziu Badenheim 1939, novela de
Aharon Appelfeld, e Gol de esquerda, poemas de Ronny Someck.
Notas
1
Michal Held, 2013:
HELD, Michal. Merahefet al pnei hamaim [Sopra sobre a face das águas].
Jerusalém: Reshimu, 2009. p. 9.
3 A questão é extremamente complexa. Ver: REHFELD, Walter I. Tempo e
religião. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 92.
4 HELD, 2009, p. 60.
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