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Territorialidades, saúde e ambiente

2018, Sustentabilidade em Debate

A abordagem ecossistêmica em saúde humana apresenta-se como possibilidade de construção teórico-prática das relações saúde e ambiente a partir, entre outros fatores, do estilo de vida de grupos populacionais específicos. Este estudo tem o objetivo de analisar como os saberes e práticas tradicionais de cuidado em saúde constroem territorialidades que contribuem para a conservação ambiental em comunidades quilombolas. Em uma pesquisa de campo realizada nas comunidades Mocambo e Sítio Alto no estado de Sergipe foram realizadas observação participante e entrevistas com agentes cuidadores. Identificaram-se a territorialidade da resistência, a territorialidade do cuidado e a territorialidade da esperança como traços comuns às duas comunidades na associação de saberes e práticas que articulam saúde e ambiente. Conclui-se que os princípios da abordagem ecossistêmica em saúde estão presentes nas comunidades quilombolas em uma dinâmica vital integradora e complexa das relações saúde e ambiente que tem contribuído para a conservação ambiental e cultural dessas comunidades.

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Eletrônico: [email protected] doi:10.18472/SustDeb.v9n1.2018.26960 Recebido em 31.08.2017 Aceito em 28.02.2018 ARTIGO – DOSSIÊ RESUMO A abordagem ecossistêmica em saúde humana apresenta-se como possibilidade de construção teórico-prática das relações saúde e ambiente a partir, entre outros fatores, do estilo de vida de grupos populacionais específicos. Este estudo tem o objetivo de analisar como os saberes e práticas tradicionais de cuidado em saúde constroem territorialidades que contribuem para a conservação ambiental em comunidades quilombolas. Em uma pesquisa de campo realizada nas comunidades Mocambo e Sítio Alto no estado de Sergipe foram realizadas observação participante e entrevistas com agentes cuidadores. Identificaram-se a territorialidade da resistência, a territorialidade do cuidado e a territorialidade da esperança como traços comuns às duas comunidades na associação de saberes e práticas que articulam saúde e ambiente. Conclui-se que os princípios da abordagem ecossistêmica em saúde estão presentes nas comunidades quilombolas em uma dinâmica vital integradora e complexa das relações saúde e ambiente que tem contribuído para a conservação ambiental e cultural dessas comunidades. Palavras-chave: Territorialidade; Quilombos; Saúde; Conservação Ambiental. ABSTRACT The ecosystem approach to human health offers a theoretical and practical construction on the relations between health and environment based, among other factors, on the lifestyle of specific population groups. This study aimed to analyze how traditional principles and health care practices build territorialities that contribute to environmental conservation in quilombolas communities. Participant observation and interview with traditional healers were carried out in the communities of Mocambo and Sítio Alto, in the state of Sergipe. We identified the territoriality of resistance, the territoriality ISSN-e 2179-9067 107 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil of care and the territoriality of hope as common features to both communities, in the articulation of knowledge and practices that connect health and environment. We concluded that the principles of the ecosystem approach to health were applied in the quilombolas communities and supported integrative and complex dynamics of relations between health and environment that contributed to the environmental and cultural conservation of these communities. Keywords: Territoriality; Quilombos; Health; Environmental Conservation. 1 INTRODUÇÃO O modelo de desenvolvimento hegemônico, fundamentado em uma concepção antropocêntrica e predatória dos recursos naturais, tem apresentado graves consequências para a humanidade. As iniquidades sociais se acentuam, recursos naturais e ambientais são degradados em uma lógica insustentável que impacta diretamente a saúde humana e ambiental (STEFFEN, 2015). A complexidade inerente à dinâmica das relações dos seres humanos em sociedade e com o meio ambiente requer a ampliação das possibilidades de análise dessas relações. Nesse cenário, a ciência se depara com o desafio de apresentar perspectivas epistemológicas e metodológicas para a compreensão dos fenômenos relativos à interação saúde e ambiente. Essa preocupação ganhou força a partir da década de 1970, tendo como marco de referência a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, que aconteceu em Estocolmo no ano de 1972. Ampliou-se a concepção de meio ambiente englobando as dimensões natural, social e biológica como determinantes para a qualidade de vida e saúde. Essa mudança de concepção é destacada logo no princípio I da Declaração de Estocolmo, que afirma entre os direitos fundamentais aos seres humanos, “que o direito de desfrutar de condições de vida digna com bem-estar está diretamente associado à solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras” (ONU, 1972). A Eco 92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, dedicou um capítulo à proteção e promoção das condições de saúde humana na Agenda 21 (principal documento produzido na Conferência). Propôs-se um novo paradigma econômico e civilizatório, tendo entre muitos outros aspectos a compreensão da conexão entre saúde e desenvolvimento. “É impossível haver desenvolvimento saudável sem uma população saudável” (ONU, 1992). Esse movimento de integração entre saúde e ambiente como estratégia de promoção do bem-estar global foi observado também na área da saúde. A Conferência Internacional de Alma-Ata (1978) teve como principal destaque o enfoque nos cuidados primários de saúde como estratégia inicial para promoção da saúde. Além disso, a Declaração de Alma-Ata defendeu a adoção de medidas sanitárias e sociais, e preconizou a legitimação de práticas tradicionais, alternativas ou complementares. A I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada em Ottawa, em 1986, contribuiu para a consolidação do enfoque ecossistêmico em saúde ao reconhecer a importância de outros fatores, além dos biológicos, sobre os fenômenos relativos à saúde, destacando que fatores culturais, sociais, políticos e ambientais atuam determinando, positiva ou negativamente, o status de saúde das pessoas e populações (FORGET; LEBEL, 2001). Essa Conferência representou um importante marco ao promover uma concepção que compreende a saúde como resultado da complexa teia de relações concretas. A saúde se realiza como expressão vital no espaço do cotidiano e o binômio saúde-doença se constitui como processo coletivo. É preciso recuperar o sentido de território como espaço organizado para análise e intervenção, buscando identificar, em cada situação específica, as relações entre as condições de saúde e seus determinantes culturais, sociais e ambientais dentro de ecossistemas modificados pelo trabalho e pela intervenção humana (SABROZA; WALTNER-TOEWS, 2001). Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 108 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes A abordagem ecossistêmica destaca-se como uma das possibilidades de construção teórico-prática das relações entre saúde e ambiente nos níveis microssociais e une três reflexões simultâneas, a de saúde e a de ambiente tendo, como processo mediador, as análises das condições, situações e estilos de vida de grupos populacionais específicos (MACHADO et al., 2012; CHARRON, 2012). O caráter relacional e transdisciplinar da abordagem ecossistêmica da saúde consolida-se na busca pela construção de nexos que articulam as dimensões da gestão integral do meio ambiente natural com um olhar ampliado sobre a saúde humana (BETANCOURT et al., 2016). Esse olhar parte de uma abordagem holística e ecológica de promoção da saúde humana (MINAYO, 2002). A análise das relações da humanidade com o meio, natural e social, requer a superação da concepção reducionista e simplificadora tradicional na ciência, que comumente dilui a complexidade dos fenômenos e das práticas humanas a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem. Segundo Morin (2005), esse modo de traduzir a realidade, amparado pelo paradigma cartesiano, tem por princípios a disjunção, redução, abstração e se considera reflexo do que há de real na realidade apresentando consequências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e ofuscantes. O “Paradigma Dominante”, para Santos (2002, p. 10), é construído pela racionalidade da ciência moderna e estabelece um “modelo totalitário” de observar e compreender o mundo ao negar a racionalidade de todas as formas de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. Esse paradigma pressupõe a separação entre ser humano e natureza. Nessa perspectiva, o ser humano visa conhecer a natureza para dominá-la e controlá-la. Na tentativa de simplificar a realidade, há a redução da complexidade e a separação do que está ligado, ou a unificação do que é diverso (MORIN, 2005). A fim de superar esse o paradigma hegemônico, incapaz de promover relações e ambientes saudáveis, fazse necessária a abertura do cerco das ciências para um diálogo com o campo dos saberes “tradicionais”, populares e locais (LEFF, 2001). A abordagem ecossistêmica em saúde alinha-se a essa nova ordem dialógica ao buscar desenvolver novos conhecimentos e práticas na relação saúde & ambiente em realidades concretas, de forma a permitir ações adequadas, apropriadas e saudáveis das pessoas que ali vivem. De tal forma que ciência e mundo da vida se unam na construção da qualidade de vida através de uma melhor gestão do ecossistema e da responsabilidade individual e coletiva sobre a saúde. (MINAYO, 2002, p. 181). Um caminho a ser trilhado para a consolidação do enfoque ecossistêmico é a busca por outras formas de construção do conhecimento além da ciência (WEIHS; MERTENS, 2013). Outras cosmologias, saberes e práticas de relações positivas entre saúde e ambiente foram construídos e continuam sendo utilizados pelos povos e comunidades tradicionais. Esses povos têm na vida em comunidade a essência vital, tanto nas relações sociais quanto na relação cultura e natureza. Apesar da grande diversidade existente entre esses grupos, é comum a todos a consciência de que a existência do ser se dá na dimensão individual e coletiva. Além disso, as formas de organização social e econômica levam em consideração o uso racional e equilibrado dos recursos naturais como princípio vital e ontológico. A abordagem ecossistêmica é uma possibilidade de construção teórico-prática das relações saúde e ambiente a partir, entre outros fatores, do estilo de vida de grupos populacionais específicos. Dessa forma, faz-se necessário compreender as formas de relação entre saúde e ambiente existentes para além da lógica do risco, que é o modelo hegemônico de análise dessas relações (BRISBOIS et al., 2017). 2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: CONCEITOS E PERSPECTIVAS Diante da complexidade em torno dos estudos que envolvem aspectos territoriais, Haesbaert (2009) destaca que mais importante do que traduzir “o que é” ou “o ser” do território, “trata-se de discutir ISSN-e 2179-9067 109 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil o seu devir, isto é, em que problemática nos envolvemos ou que questões práticas acionamos a partir dos conceitos de territórios e territorialidade academicamente construídos”. Para Santos (2002, p. 10), o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. A partir desse entendimento, podemos considerar a territorialidade como a forma através da qual um determinado grupo social se apropria, vivencia e experimenta o território. Raffestin (1993, p. 158) ressalta que a territorialidade possui um valor bem particular, já que tem caráter multidimensional do “vivido” territorial pelos membros de uma coletividade, pela sociedade em geral. Por meio da territorialidade, o próprio território ganha uma identidade, não em si mesma, mas na coletividade que nele vive e o produz, sempre em processo dinâmico, flexível e contraditório, por isso dialético. Podemos compreender que a territorialidade traduz o conjunto daquilo que se vive no cotidiano, como as relações de trabalho, família, a dimensão política, as relações econômicas e culturais, a forma como os grupos utilizam a terra, como se organizam no espaço e dão significado ao lugar (MERTENS et al., 2011). Dentro dessa perspectiva, os saberes e práticas de cuidado em relação à saúde e ao meio ambiente também constroem a territorialidade de um povo. Quando pretendemos discutir territórios quilombolas e a interface entre saúde e ambiente, aparecem intimamente imbricados a percepção que a construção do território produz identidades e as identidades produzem territórios, sendo esse processo produto de ações coletivas, recíprocas, de sujeitos sociais. Na perspectiva das relações entre sujeitos e natureza, observa-se que essa relação é registrada pela memória, individual e coletiva, fruto e condição de saberes e conhecimentos. (MALCHER, 2006). A relação das pessoas com o meio ambiente natural, que podemos associar ao território em sua dimensão física, difere profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão entre os diferentes grupos (TUAN, 2012). Nesse sentido, o território das comunidades tradicionais é muito mais que um simples espaço de reprodução econômica. É “chão” das relações sociais, das representações do imaginário mitológico e religioso que guiam o saber e o fazer dessas populações sobre o meio físico em que habitam, incluindo as práticas de saúde, ou seja, o espaço físico pode ser considerado como parte integrante dessas populações. No Brasil, a expressão “comunidades tradicionais” está associada às comunidades que desenvolvem formas particulares de manejo dos recursos naturais que não visam diretamente ao lucro, mas à reprodução cultural e social, bem como de percepções e representações em relação ao mundo natural e cultural marcadas pela ideia harmônica de associação com a natureza e seus ciclos. Consideradas comunidades tradicionais afro-brasileiras, as comunidades quilombolas têm como fundamento de constituição e definição a relação com o território. Para esses grupos, o território é a base da reprodução física, social, econômica e cultural da coletividade, e a territorialidade está relacionada a uma dimensão simbólica da identidade e a comunhão que o povo mantém com o seu território (SANTOS, 2007). Dentro dessa perspectiva, as práticas de cuidados à saúde e ao meio ambiente são aspectos constituintes das territorialidades quilombolas, que são influenciadas por cosmologias e valores civilizatórios que diferem da visão antropocêntrica. Entre os diversos valores, a relação harmônica e equilibrada entre os membros das comunidades e o meio ambiente é um dos fatores que determinam a sobrevivência física e cultural desses povos. Diante das relações entre saúde e ambiente presentes nos territórios quilombolas, este estudo tem como objetivo analisar como as territorialidades Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 110 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes presentes nos saberes e práticas tradicionais de cuidado em saúde contribuem para a conservação ambiental em comunidades quilombolas. 3 PERCURSO METODOLÓGICO Tratou-se de uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa orientada pelo método do Interacionismo Simbólico, que consiste em uma perspectiva teórica que considera que as pessoas constroem as personalidades, a sociedade e a realidade pela interação. Segundo Schlenker (1980), o Interacionismo Simbólico salienta os significados simbólicos e como os símbolos relacionam-se com a interação social. A coleta de dados se deu basicamente por observação participante com registro em diários de campo e fotográfico, e entrevistas. Além disso, foram coletadas outras fontes de informações sobre as comunidades – como os hinos e cantigas, jornais e panfletos sobre as comunidades. O período de pesquisa de campo ocorreu de junho de 2016 a julho de 2017. Foram realizadas sucessivas visitas às comunidades onde o pesquisador passava todo o dia realizando observações, conversando com moradores, entrevistando os sujeitos da pesquisa e fazendo os registros fotográficos. A inserção do pesquisador no campo se deu a partir da aproximação com as lideranças das comunidades. Esse contato foi estabelecido nas reuniões do Movimento Quilombola de Sergipe e posteriormente foram agendadas as visitas iniciais nos territórios. As atividades de campo aconteceram também a partir de convite das comunidades para vivenciar momentos importantes, como festas religiosas, eventos sociais, esportivos, culturais, etc. Os participantes da pesquisa foram indicados pelas lideranças e agentes comunitários de saúde. Foram entrevistados nove agentes cuidadores quilombolas (duas rezadeiras, um rezador, uma ex-parteira, uma erveira, um erveiro, uma agente comunitária de saúde e dois líderes culturais¹), dos quais cinco eram quilombolas da comunidade Mocambo e quatro da comunidade Sítio Alto. As entrevistas foram gravadas e eram iniciadas com questões abertas e norteadoras do estudo com o intuito de identificar os saberes e práticas existentes nas comunidades, tais como: “Fale-me um pouco sobre como o(a) senhor(a) começou a cuidar da saúde das pessoas da comunidade”, “Quais saberes e práticas de saúde que o(a) senhor(a) utiliza na comunidade?”. Foram feitas, em seguida, questões mais focalizadas para garantir o esclarecimento e aprofundamento das informações necessárias e compreender o significado dos saberes e práticas tradicionais em sua intersecção com o ambiente, como, por exemplo: “Como você se sente ao cuidar da saúde das pessoas? ”, “Qual a importância da natureza para seus saberes e práticas de saúde?”. As entrevistas transcritas foram exportadas para o software Nvivo 11 Pro, onde procede-se ao processo de leitura minuciosa e à extração dos primeiros códigos. Foi realizada inicialmente uma codificação aberta a fim de gerar categorias. O processo de codificação foi feito a partir da ferramenta criação de “nós”, onde são estabelecidos os nomes das categorias conforme a pertinência com as questões norteadoras e objetivos do estudo. As categorias geradas foram: territorialidade da resistência, territorialidade do cuidado e territorialidade da esperança. Realizou-se a análise de conteúdo com a técnica de análise temática transversal. Procedeu-se à decomposição das falas em fragmentos que tinham relação com as questões iniciais do estudo e a partir daí foram propostas as inferências e as interpretações a fim de produzir os elementos teóricos explicativos sobre as territorialidades existentes nos processos e relações entre saúde e ambiente nas comunidades quilombolas. A pesquisa foi realizada em duas comunidades quilombolas do estado de Sergipe. A comunidade de Mocambo, localizada no município de Porto da Folha, sertão do estado, e a comunidade de Sítio Alto, município de Simão Dias, região centro-sul. O Mocambo foi a primeira comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Cultural Palmares (FCP) no estado de Sergipe, em 27 de maio de 1997, e a titulação das terras (2.100 hectares) ocorreu no ano 2000 por meio do Instituto Nacional de ISSN-e 2179-9067 111 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil Colonização e Reforma Agrária (Incra). Situa-se às margens do Rio São Francisco e tem seu território em área fronteiriça à área indígena dos Xocós, com os quais mantém relações de parentesco e de solidariedade. A comunidade possui em torno de 120 famílias que vivem primordialmente da pesca, da agricultura de subsistência, da criação de ovinos e dos programas governamentais de transferência de renda. A principal religião é a católica e o principal evento do calendário religioso é a Festa de Gloriosa Santa Cruz, no período da Semana Santa. O samba de coco é a principal manifestação cultural da comunidade. Figura 1 – Entrada da Comunidade Mocambo e Rio São Francisco. Fonte: Autor. A comunidade de Sítio Alto teve seu reconhecimento efetivado no ano de 2014, porém, ainda não possui seu território titulado. Agrega cerca de 150 famílias que têm na agricultura familiar a principal fonte de sustento. Apesar da pouca área de que dispõe, a comunidade produz uma grande diversidade de alimentos, como mandioca, vários tipos de feijão, milho, couve, quiabo, alecrim, manjericão e diversas frutas. Há criação de ovelhas, galinhas, porcos e algumas cabeças de gado na comunidade. A produção é predominantemente utilizada para o sustento das famílias da comunidade em primeiro lugar e, quando há sobras suficientes, alguns produtos são vendidos nas feiras livres da cidade. A dimensão cultural tem nas danças de roda traços marcantes da identidade da comunidade. A principal religião é a católica, mas na comunidade há uma igreja protestante, além de uma igreja católica. Assim como na comunidade do Mocambo, durante a pesquisa não foram encontrados sinais (adeptos, templos, rituais, etc.) das religiões de matriz africana. Figura 2 – Entrada da Comunidade Sítio Alto. Fonte: Autor. Os aspectos éticos e legais inerentes à realização de pesquisa com seres humanos foram respeitados. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe CAAE: 23360814.1.0000.5546. Os participantes foram devidamente esclarecidos e deram sua anuência mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que continha autorização para uso de imagens. Os relatos apresentam nomes fictícios dos participantes da pesquisa. Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 112 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO Foram identificadas diversas práticas tradicionais de cuidados nas comunidades quilombolas. Algumas dessas práticas já são bem documentadas na literatura sobre povos e comunidades tradicionais, como as práticas de cuidado prestadas por parteiras, a utilização de plantas medicinais pelos erveiros e as práticas de cuidado que têm na religiosidade seu fundamento principal e são prestadas pelas benzedeiras e rezadeiras. Outros saberes e práticas, comumente rotuladas como práticas artísticas, de agriculturas ou apenas “culturais”, foram apresentadas pelas comunidades como práticas de cuidados em saúde e meio ambiente. As danças circulares e samba de coco no Mocambo, e dança de roda em Sítio Alto, o banco de sementes crioulas e algumas práticas inusitadas como a Festa de São Lázaro em Sítio Alto têm seus significados e performances fundamentados nas relações entre saúde e ambiente. Harmonia, interdependência e integração constituem alguns fundamentos estruturantes da visão que se opõe à dicotomia saúde-doença enquanto fenômeno biomédico. Fenômeno individual e coletivo, objetivo e subjetivo, concreto e simbólico, a saúde é concebida na cosmovisão quilombola, vinculada à vida numa concepção de mundo como um todo “onde todas as coisas se religam e interagem” (BÂ, 2010, p. 169). Percebeu-se que os princípios civilizatórios afro-brasileiros (axé, ancestralidade, corporeidade, oralidade, circularidade, cooperativismo/comunitarismo, a religiosidade, a musicalidade e a memória) permeiam o cotidiano das comunidades quilombolas fundamentando as práticas de cuidado à saúde e ao meio ambiente. Nesse contexto, observou-se que as comunidades quilombolas pesquisadas desenvolveram e continuam desenvolvendo seus saberes e práticas de saúde dentro do enfoque ecossistêmico, onde as relações entre saúde e ambiente se dão de forma complexa, holística e multidirecional com influências negativas e positivas reguladas pelos valores e práticas que regem a interação entre o grupo e seu território físico ou meio ambiente. Na análise dos saberes e práticas encontramos três tipos de territorialidades que estão interligadas e estabelecem o elo entre saúde e ambiente no cotidiano das comunidades pesquisadas, sendo elas: 4.1 TERRITORIALIDADE DA RESISTÊNCIA O processo de formação dos quilombos, inicialmente como territórios de acolhimento dos escravizados que se opuseram à submissão ao regime escravocrata no Brasil, e atualmente como territórios de conservação da experiência afro-brasileira, tem na resistência um traço marcante presente nas territorialidades quilombolas. A territorialidade da resistência se apresentou como um pilar estruturante do cuidado nas comunidades pesquisadas. A resistência está presente nos discursos, nas práticas e nas estratégias de promoção da saúde e conservação ambiental nas comunidades. O sentimento de pertencimento e identidade territorial tem origem na resistência como demonstrado no hino de Mocambo, que diz no refrão “Mocambo é nosso, de quem lutou, teve a coragem, acreditou. Mocambo é nosso, de quem lutou, teve a coragem, acreditou”. Para Arruti (2006, p. 285), [...] no Mocambo, a remanescência não está vinculada, exclusivamente, a uma origem ou uma identidade racial, mas, fundamentalmente, à adesão a uma estratégia social. Afinal, a adesão à “luta” (tomada de consciência ou assunção) é sempre partilhada de forma desigual pelos componentes do grupo, em função dos cortes sociais previamente existentes e de suas estratégias de sobrevivência. A resistência é observada no hino do Sítio Alto que traz no refrão a seguinte letra: “Sítio Alto segure sua bandeira, não fique triste, nunca pare de lutar. Sítio Alto segure sua bandeira, não fique triste, nunca pare de lutar”. Na interface saúde e ambiente, a territorialidade da resistência é marca ontológica dos saberes e práticas tradicionais de cuidados enquanto fator promotor do equilíbrio entre sociedade e natureza. ISSN-e 2179-9067 113 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil Segundo os cuidadores, a utilização desses saberes e práticas representou e, continua a representar, a contraposição ao histórico de desassistência à saúde bem como o elemento primordial de manutenção dos recursos naturais presentes nos territórios. Dona Maria, líder comunitária do Sítio Alto, ao relatar a importância do banco de sementes crioulas para a comunidade, questiona: [...] Como eu tenho segurança alimentar se eu não estou sabendo de onde o alimento está vindo? Para a gente ter a segurança alimentar, a gente tem que ter a soberania para saber de onde vem, quem plantou, onde colocou, porque muitas vezes a gente está se matando pela própria boca. Percebe-se no discurso uma abordagem integradora, que destaca o caráter holístico das formas de ser e estar no mundo vivenciadas nas comunidades tradicionais. Esse princípio integrador deve ser evocado na busca da superação da lógica fragmentadora na saúde, fruto da racionalidade científica ocidental estruturante do modelo biomédico, que secciona o corpo, o olhar e reduz a complexidade das relações que produzem saúde ou doença a fenômenos biológicos. O uso das sementes crioulas tem um significado que vai além da segurança alimentar da comunidade e apresenta-se como uma estratégia de resistência ante o avanço das sementes transgênicas. A preocupação com a perda de biodiversidade e devastação da natureza é apontada na cantiga comemorativa ao aniversário do município de Simão Dias, que é um dos maiores produtores de milho do estado de Sergipe. Naquele tempo a gente de tudo plantava; tinha milho, o feijão, o algodão e a fava. Tinha aipim, batata e a batatinha; tudo que o agricultor queria na mesa, tinha. Mas hoje em dia as coisas se evoluíram e hoje a cultura que temos é só a cultura do milho. Essa cultura que no mundo se espalhou melhorando a vida de muito agricultor. Mas tudo isso só quem paga é a natureza desmatando todas as matas e acabando com a beleza, mas tudo isso só quem paga é a natureza desmatando todas as matas e acabando com a beleza. (ANIVERSÁRIO DE SIMÃO DIAS, COMPOSIÇÃO DONA MARIA). A abordagem ecossistêmica em saúde é visualizada a partir do princípio da integração, que nos mostra que na cosmovisão africana o ser humano está integrado ao universo, visto que todos os elementos do universo estão interligados em uma interação dinâmica. A interdependência e a inter-relação entre tudo e todos são desejadas, pois a harmonia do todo depende da harmonia das partes. “Na cosmovisão africana, o indivíduo é singular, mas sua singularidade é construída de acordo com o comunitarismo, no âmbito do coletivo, socialmente.” (ROCHA, 2011, p. 34). 4.2 TERRITORIALIDADE DO CUIDADO É a principal territorialidade presente nas relações entre saúde e ambiente nas comunidades quilombolas. O cuidado é concebido a partir de valores afro-brasileiros como o Axé – valor traduzido como energia vital –, que compreende que tudo que é vivo e que existe, são forças vivas, em processo. “Planta, água, pedra, gente, bicho, ar, tempo, tudo é sagrado e está em interação” (TRINDADE, 2013, p. 6) Nas cantigas de dança de roda, nas histórias dos mais velhos, nos discursos sobre as práticas dos erveiros, rezadeiras, líderes comunitários e culturais, a apresentação de aspectos históricos e contemporâneos é permeada pela dimensão do cuidado não apenas enquanto elemento vinculado à assistência de pessoas doentes, mas como valor estruturante das relações sociais entre os membros da comunidade e dos membros com os seres não humanos (animais, vegetais e minerais) presentes no território. A dinâmica de articulação saúde e ambiente presente na territorialidade do cuidado é bem visualizada na Festa de São Lázaro na comunidade de Sítio Alto. A comunidade, além de realizar uma procissão, oferece um banquete para os cães da comunidade com o objetivo de prevenir zoonoses. O sentido expresso nessa festa é o de “cuidar da saúde dos cães para cuidar da saúde das pessoas”. Essa prática tem o objetivo de evitar que os cachorros “azedem”, ou seja, desenvolvam a raiva. Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 114 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes Figura 3 – Banquete para cães. Festa de São Lázaro Fonte: Acervo da comunidade Na dança de roda, percebe-se a existência de um pensamento complexo que enxerga e vivencia de forma articulada uma prática corporal como possibilidade de resolução de conflitos, promoção de saúde, “antidepressivo”, etc. As cantigas, segundo a líder comunitária, D. Maria, “serviam para fazer e desfazer casamento, afastar doença, resolver briga de vizinhos e de marido e mulher, aliviar o sofrimento da exploração vivenciada e manifestar a alegria e gratidão da comunidade”. Os princípios da circularidade, oralidade, ludicidade e musicalidade presentes nas danças de roda e samba de coco fundamentam um conjunto de aspectos culturais, entre eles os saberes e práticas de cuidado com a saúde e o ambiente, que são socializados e transmitidos de geração a geração mantendo o elo e a continuidade dessas relações. Na perspectiva da territorialidade do cuidado, uma pessoa só é uma pessoa por meio de outras pessoas e também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também implica o cuidado para com o meio ambiente e os seres não humanos. A contribuição positiva das práticas tradicionais do quilombo na conservação ambiental e cultural é demonstrada de forma integradora em várias canções. Plante a semente, guarde a semente, tenha nas mãos a semente do amor. A semente da paixão é a semente da gente, esta semente crioula é a lembrança do vovô. [...] Quando se fala em semente, já vem logo a tradição, as rezas das rezadeiras, uma panela e um fogão (SEMENTE CRIOULA, COMPOSIÇÃO DONA MARIA). Figura 4 – Aula no banco de sementes crioulas na comunidade Sítio Alto. Fonte: Autor. ISSN-e 2179-9067 115 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil Esse cuidado se traduz também na relação do uso racional de plantas medicinais, conforme relata Dona Josefa ao explicar como esses saberes foram passados ao longo das gerações. [...] tudo assim eles sabiam, qual eram os remédios do mato que serviam para ser medicinal, tanto para o pessoal quanto para os animais, pois tinha aqueles remédios que serviam para os animais, né? Eles sabiam também qual o remédio que não podia cair na água porque se não os peixes não sobreviviam, tudo isso eles tinham conhecimento [...]. (DONA MARIA) As comunidades e povos tradicionais possuem relações extrativistas de uso racional dos recursos estruturadas em ancestralidades e vínculos interdependentes com a conservação ambiental (LEROY; MEIRELES, 2013, p. 117). No Mocambo essa relação também é fundamentada na ancestralidade e na compreensão do poder terapêutico existente nos recursos naturais como aponta o Sr. Pedro, erveiro e contador de histórias da comunidade. [...] sim, e tudo isso ele passou para mim, os valores, as histórias, os paus, os remédios, não tem um pau no mato que não sirva pra remédio, todos, o pinhão, mas o pinhão é um pau, tudo que é da natureza tem seu valor, o pinhão serve pra mordida de cobra. Meu segredo é que todo mato vira remédio, tanto das folhas como tanto da raiz [...] (SR. PEDRO). Em síntese, a territorialidade do cuidado enquanto conjunto de saberes e práticas fundamentado em princípios ancestrais, que estimulam o equilíbrio entre os diversos seres, demonstra a aproximação da cosmovisão quilombola ao enfoque ecossistêmico em saúde. A visão integradora e ecossistêmica da saúde é bem compreendida pelas comunidades, que estabelecem um alinhamento entre teoria e prática como apontado no seguinte discurso: [...] agora partiu para ler, para escrever assim a gente não tinha esse conhecimento, até mesmo para ter esse conhecimento que eles tinham não precisava saber ler não, a gente tinha que ter é visão, mas também eles eram todos cheios de ciência, se acordavam bem cedo viviam lá perto do rio, descia que tinha que ir cedo tomar os mergulhos que fazia bem a saúde, as pessoas estava com umas gripes, tem umas gripes hoje que chama sinusite que o nariz não destapa, ensinavam se levante bem cedinho, vai tomar três mergulhos até o sol sair, e não tinha esse negócio de dizer que a gente só vivia no médico, a gente não ia para médico, nossos médicos eram as parteiras e os rezadores que faziam isso, e tudo que eles faziam nós aprendemos um pouco”. (DONA MARIA, SÍTIO ALTO). 4.3 TERRITORIALIDADE DA ESPERANÇA A territorialidade da esperança é observada no cotidiano das comunidades e está intimamente ligada aos saberes e práticas que demarcam a resistência e o cuidado enquanto elementos fundamentais na intersecção entre saúde e ambiente. A esperança de melhorar as condições de vida conservando os princípios, costumes e saberes é a mola propulsora de relações sociais dinâmicas e saudáveis. Tanto no Mocambo quanto em Sítio Alto, o diálogo intergeracional foi um fator constitutivo dessa territorialidade na perspectiva de garantia da conservação da cosmologia integradora presente nas comunidades. Idosos, adultos, adolescentes e crianças vivenciam juntos, principalmente as práticas de danças circulares, que têm um grande papel na socialização dos princípios das comunidades, como pode ser observado nas Figuras 5 e 6. Figura 5 – Diversidade geracional no grupo de dança de roda do Sítio Alto Fonte: Acervo da comunidade. Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 116 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes Figura 6 – Crianças no Samba de Coco do Mocambo Fonte: Acervo da comunidade. Não obstante, para a construção de uma comunidade, faz-se necessário inventariar os elementos ambientais, culturais e históricos que servirão de constructo para a identidade dessa comunidade, conferindo-lhes legitimidade. Diegues (2003) postula que a construção dessas comunidades está intimamente relacionada à construção de sociedades sustentáveis o que, para o referido autor, pressupõe pensar localmente, porém, com resultados que alcancem o nível macro das relações sociais. A construção de comunidades e sociedades sustentáveis deve partir da reafirmação de seus elementos culturais e históricos, do desenvolvimento de novas solidariedades, do respeito à natureza não pela mercantilização da biodiversidade, mas pelo fato que a criação ou manutenção de uma relação mais harmoniosa entre sociedade e natureza serem um dos fundamentos das sociedades sustentáveis (DIEGUES, 2003, p. 01-02). Essa percepção da necessidade de articulação em rede é outro aspecto presente na territorialidade da esperança. Na comunidade do Sítio Alto, a experiência positiva com as sementes crioulas é compartilhada com outras comunidades quilombolas e não quilombolas. Durante o período de coleta de dados, a comunidade foi base de encontro estadual de guardiões de sementes e da caravana agroecológica. Nesses encontros, a experiência, os saberes e as sementes do Sítio Alto são partilhados a fim de fortalecer a rede de cuidados e cuidadores da saúde e meio ambiente. Figura 7 – Encontro de guardiões de sementes/plantação de feijão no Sítio Alto. Fonte: Acervo da comunidade. ISSN-e 2179-9067 117 Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 Territorialidades, saúde e ambiente: conexões, saberes e práticas quilombolas em Sergipe, Brasil A questão ambiental ocupa lugar de destaque quando as comunidades pensam no futuro. A esperança de recuperar os recursos perdidos e conservar os ainda existentes permeia os sonhos e projetos, conforme relata Renata, educadora e líder cultural do Mocambo. [...] eu perguntei quais as matas essenciais para a gente reflorestar as margens do rio e ele nunca deu essas respostas de quais são as plantas que devemos plantar às margens do rio porque o assoreamento está cada dia mais vindo, o rio está subindo, está subindo e se a gente não tomar uma providência rápida a gente vai acabar ficando à deriva. Deus ajude para que a gente consiga fazer essa plantação, para que não se avance tanto o rio. [...] vamos fazer uma horta orgânica na escola ...; [...] vamos aguardar terminar a escola para a gente ver qual o espaço propício para a gente fazer, ideia e disposição para trabalhar eu tenho (RENATA, LÍDER CULTURAL). No Sítio Alto, o desejo de resgatar as espécies que desapareceram apresenta-se não apenas como uma possibilidade de reconfiguração do território, mas, principalmente, de reconfiguração das territorialidades das gerações mais jovens a partir da aproximação dos recursos e condições que constituíram a comunidade como demonstrado na seguinte fala: Meu sonho é conseguir uma área para preservar todas as reservas florestais que a gente já teve aqui, as árvores e as ervas, tanto frutífera como florestal. Então isso aí dava para fazer o resgate de tudo que era para eu mostrar como foi e como é o início de nossa comunidade, então eu queria fazer um resgate de tudo que eu já vi aqui, dizer assim, tem uma área reservada, uma área de terra só pra essas coisas, e também para plantar semente crioula, para não ficar próximo uma semente da outra, porque aqui a gente está plantando mas correndo o risco de contaminar uma com a outra né, mas minhas sementes eu nem abro mão e nem preciso dizer que os técnicos vêm modificar. Nessa área também ia colocar as espécies de animais que já teve aqui, como os tipos de galinhas. Aqui tinha a que elas chamavam as galinhas terraças, e também tinha a galinha “arrupiada” que tanto servia para comer quanto de remédio. Quando elas tinham algum problema de quebra de resguardo, pegava a perna da galinha, fazia um defumador junto com não sei o que, um chá de não sei o que, e ela ficava boa, batia um pouco de água em jejum, e tomava de manhã cedo, aí elas iam ficando boa. [...] a gente tem que fortalecer e enriquecer aquilo que é nosso e for de nossa raiz, pois quando a gente mata a raiz na qual vive, alguém já viu a árvore viver sem a raiz?, não vive, aí então a gente não pode perder de vista aquilo que é nosso. (DONA MARIA, LÍDER COMUNITÁRIA). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A abertura das Ciências para o diálogo com as comunidades tradicionais afro-brasileiras pode apresentar caminhos poderosos de compreensão das relações saúde e ambiente, além de estratégias de promoção de saúde e vida. As comunidades quilombolas possuem um rico arcabouço de saberes e práticas de integração e promoção da saúde e conservação ambiental experimentadas e legitimadas pela harmonia e conservação ambiental/cultural dos quilombos. A construção de uma nova concepção integradora entre saúde e ambiente no Brasil, imprescindivelmente deve partir da valorização e reconhecimento da cosmovisão dos grupos que constituíram e construíram a nação. Nesse sentido, é papel da academia conhecer e aprender essas formas tradicionais e dinâmicas vivenciadas cotidianamente ao longo do tempo pelas comunidades tradicionais. Dessa forma, ampliaremos as possibilidades de superar as limitações impostas pela unicidade de pensamento diante da diversidade e complexidade dos problemas imersos na imensidão das relações entre saúde e ambiente. Pode-se perceber que a complexidade do cuidado em saúde e ambiente nas comunidades quilombolas é fundamentada em valores e princípios civilizatórios e epistemológicos que posicionam seres humanos e não humanos em uma grande “roda da vida”. As relações saúde e ambiente são interativas, abertas, e tradicionais e dinâmicas. As comunidades constroem discursos e práticas que acompanham as mudanças e reconfiguram os saberes e práticas de cuidados de forma a conservar os princípios ancestrais e adaptar os membros da comunidade às novas demandas de conservação cultural e ambiental. Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 9, n.1, p. 107-120, abril/2018 118 ISSN-e 2179-9067 Roberto dos Santos Lacerda e Gicélia Mendes As territorialidades da resistência, do cuidado e da esperança abarcam um conjunto de saberes, práticas, símbolos, sonhos e projetos tradicionais e de vanguarda que apontam caminhos alternativos de análise das relações entre saúde e ambiente. Nesse contexto, os princípios da abordagem ecossistêmica em saúde são vivenciados pelas comunidades quilombolas já que essa perspectiva de relação saúde e ambiente está presente na cosmologia e nos princípios civilizatórios afro-brasileiros. Essa perspectiva integradora e complexa das relações entre sociedade e natureza, saúde e ambiente foi e continua sendo fator preponderante para a conservação dos territórios, saberes e práticas das comunidades quilombolas no Brasil. NOTES Os líderes culturais foram incluídos em virtude de algumas práticas culturais serem evocadas pelas comunidades como práticas tradicionais de saúde, a exemplo das danças circulares. 1 AGRADECIMENTOS Agradecemos aos moradores das comunidades quilombolas de Mocambo e Sítio Alto a acolhida e partilha de saberes, experiências e vivências do cotidiano. Agradecemos ao Ministério da Saúde (MS), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa de Sergipe (Fapitec) o apoio técnico-financeiro para o desenvolvimento do projeto pelo edital n.º 02/2013 – PPSUS Sergipe. REFERENCES AARRUTI, M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP. EDUSC. 2006. AZAKURA, T. et al. 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