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Roberto dos Santos Lacerda
e Gicélia Mendes
Territorialidades, saúde e ambiente:
conexões, saberes e práticas quilombolas em
Sergipe, Brasil
Territorialities, health and environment: connections,
knowledge and quilombolas practices in Sergipe, Brazil
Roberto dos Santos Lacerdaa
Gicélia Mendesb
a
Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal de Sergipe (UFS), Lagarto, SE, Brasil.
End. Eletrônico:
[email protected]
b
Doutora em Geografia, Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, SE, Brasil.
End. Eletrônico:
[email protected]
doi:10.18472/SustDeb.v9n1.2018.26960
Recebido em 31.08.2017
Aceito em 28.02.2018
ARTIGO – DOSSIÊ
RESUMO
A abordagem ecossistêmica em saúde humana apresenta-se como possibilidade de construção
teórico-prática das relações saúde e ambiente a partir, entre outros fatores, do estilo de vida de
grupos populacionais específicos. Este estudo tem o objetivo de analisar como os saberes e práticas
tradicionais de cuidado em saúde constroem territorialidades que contribuem para a conservação
ambiental em comunidades quilombolas. Em uma pesquisa de campo realizada nas comunidades
Mocambo e Sítio Alto no estado de Sergipe foram realizadas observação participante e entrevistas com
agentes cuidadores. Identificaram-se a territorialidade da resistência, a territorialidade do cuidado e
a territorialidade da esperança como traços comuns às duas comunidades na associação de saberes e
práticas que articulam saúde e ambiente. Conclui-se que os princípios da abordagem ecossistêmica em
saúde estão presentes nas comunidades quilombolas em uma dinâmica vital integradora e complexa
das relações saúde e ambiente que tem contribuído para a conservação ambiental e cultural dessas
comunidades.
Palavras-chave: Territorialidade; Quilombos; Saúde; Conservação Ambiental.
ABSTRACT
The ecosystem approach to human health offers a theoretical and practical construction on the relations
between health and environment based, among other factors, on the lifestyle of specific population
groups. This study aimed to analyze how traditional principles and health care practices build
territorialities that contribute to environmental conservation in quilombolas communities. Participant
observation and interview with traditional healers were carried out in the communities of Mocambo
and Sítio Alto, in the state of Sergipe. We identified the territoriality of resistance, the territoriality
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of care and the territoriality of hope as common features to both communities, in the articulation
of knowledge and practices that connect health and environment. We concluded that the principles
of the ecosystem approach to health were applied in the quilombolas communities and supported
integrative and complex dynamics of relations between health and environment that contributed to
the environmental and cultural conservation of these communities.
Keywords: Territoriality; Quilombos; Health; Environmental Conservation.
1 INTRODUÇÃO
O modelo de desenvolvimento hegemônico, fundamentado em uma concepção antropocêntrica
e predatória dos recursos naturais, tem apresentado graves consequências para a humanidade.
As iniquidades sociais se acentuam, recursos naturais e ambientais são degradados em uma lógica
insustentável que impacta diretamente a saúde humana e ambiental (STEFFEN, 2015).
A complexidade inerente à dinâmica das relações dos seres humanos em sociedade e com o meio
ambiente requer a ampliação das possibilidades de análise dessas relações. Nesse cenário, a ciência se
depara com o desafio de apresentar perspectivas epistemológicas e metodológicas para a compreensão
dos fenômenos relativos à interação saúde e ambiente.
Essa preocupação ganhou força a partir da década de 1970, tendo como marco de referência a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, que aconteceu em Estocolmo no
ano de 1972. Ampliou-se a concepção de meio ambiente englobando as dimensões natural, social
e biológica como determinantes para a qualidade de vida e saúde. Essa mudança de concepção é
destacada logo no princípio I da Declaração de Estocolmo, que afirma entre os direitos fundamentais
aos seres humanos, “que o direito de desfrutar de condições de vida digna com bem-estar está
diretamente associado à solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações
presentes e futuras” (ONU, 1972).
A Eco 92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, dedicou um
capítulo à proteção e promoção das condições de saúde humana na Agenda 21 (principal documento
produzido na Conferência). Propôs-se um novo paradigma econômico e civilizatório, tendo entre
muitos outros aspectos a compreensão da conexão entre saúde e desenvolvimento. “É impossível
haver desenvolvimento saudável sem uma população saudável” (ONU, 1992).
Esse movimento de integração entre saúde e ambiente como estratégia de promoção do bem-estar
global foi observado também na área da saúde. A Conferência Internacional de Alma-Ata (1978) teve
como principal destaque o enfoque nos cuidados primários de saúde como estratégia inicial para
promoção da saúde. Além disso, a Declaração de Alma-Ata defendeu a adoção de medidas sanitárias e
sociais, e preconizou a legitimação de práticas tradicionais, alternativas ou complementares.
A I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada em Ottawa, em 1986, contribuiu
para a consolidação do enfoque ecossistêmico em saúde ao reconhecer a importância de outros
fatores, além dos biológicos, sobre os fenômenos relativos à saúde, destacando que fatores culturais,
sociais, políticos e ambientais atuam determinando, positiva ou negativamente, o status de saúde
das pessoas e populações (FORGET; LEBEL, 2001). Essa Conferência representou um importante
marco ao promover uma concepção que compreende a saúde como resultado da complexa teia de
relações concretas.
A saúde se realiza como expressão vital no espaço do cotidiano e o binômio saúde-doença se constitui
como processo coletivo. É preciso recuperar o sentido de território como espaço organizado para
análise e intervenção, buscando identificar, em cada situação específica, as relações entre as condições
de saúde e seus determinantes culturais, sociais e ambientais dentro de ecossistemas modificados pelo
trabalho e pela intervenção humana (SABROZA; WALTNER-TOEWS, 2001).
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A abordagem ecossistêmica destaca-se como uma das possibilidades de construção teórico-prática das
relações entre saúde e ambiente nos níveis microssociais e une três reflexões simultâneas, a de saúde
e a de ambiente tendo, como processo mediador, as análises das condições, situações e estilos de vida
de grupos populacionais específicos (MACHADO et al., 2012; CHARRON, 2012).
O caráter relacional e transdisciplinar da abordagem ecossistêmica da saúde consolida-se na busca
pela construção de nexos que articulam as dimensões da gestão integral do meio ambiente natural
com um olhar ampliado sobre a saúde humana (BETANCOURT et al., 2016). Esse olhar parte de uma
abordagem holística e ecológica de promoção da saúde humana (MINAYO, 2002).
A análise das relações da humanidade com o meio, natural e social, requer a superação da concepção
reducionista e simplificadora tradicional na ciência, que comumente dilui a complexidade dos fenômenos
e das práticas humanas a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem. Segundo Morin (2005),
esse modo de traduzir a realidade, amparado pelo paradigma cartesiano, tem por princípios a disjunção,
redução, abstração e se considera reflexo do que há de real na realidade apresentando consequências
mutiladoras, redutoras, unidimensionais e ofuscantes.
O “Paradigma Dominante”, para Santos (2002, p. 10), é construído pela racionalidade da ciência
moderna e estabelece um “modelo totalitário” de observar e compreender o mundo ao negar a
racionalidade de todas as formas de conhecimento não pautadas pelos seus princípios epistemológicos
e suas regras metodológicas.
Esse paradigma pressupõe a separação entre ser humano e natureza. Nessa perspectiva, o ser humano
visa conhecer a natureza para dominá-la e controlá-la. Na tentativa de simplificar a realidade, há a redução
da complexidade e a separação do que está ligado, ou a unificação do que é diverso (MORIN, 2005).
A fim de superar esse o paradigma hegemônico, incapaz de promover relações e ambientes saudáveis, fazse necessária a abertura do cerco das ciências para um diálogo com o campo dos saberes “tradicionais”,
populares e locais (LEFF, 2001). A abordagem ecossistêmica em saúde alinha-se a essa nova ordem
dialógica ao buscar desenvolver novos conhecimentos e práticas na relação saúde & ambiente
em realidades concretas, de forma a permitir ações adequadas, apropriadas e saudáveis das
pessoas que ali vivem. De tal forma que ciência e mundo da vida se unam na construção
da qualidade de vida através de uma melhor gestão do ecossistema e da responsabilidade
individual e coletiva sobre a saúde. (MINAYO, 2002, p. 181).
Um caminho a ser trilhado para a consolidação do enfoque ecossistêmico é a busca por outras formas
de construção do conhecimento além da ciência (WEIHS; MERTENS, 2013). Outras cosmologias,
saberes e práticas de relações positivas entre saúde e ambiente foram construídos e continuam sendo
utilizados pelos povos e comunidades tradicionais.
Esses povos têm na vida em comunidade a essência vital, tanto nas relações sociais quanto na relação
cultura e natureza. Apesar da grande diversidade existente entre esses grupos, é comum a todos a
consciência de que a existência do ser se dá na dimensão individual e coletiva. Além disso, as formas
de organização social e econômica levam em consideração o uso racional e equilibrado dos recursos
naturais como princípio vital e ontológico.
A abordagem ecossistêmica é uma possibilidade de construção teórico-prática das relações saúde e
ambiente a partir, entre outros fatores, do estilo de vida de grupos populacionais específicos. Dessa
forma, faz-se necessário compreender as formas de relação entre saúde e ambiente existentes para
além da lógica do risco, que é o modelo hegemônico de análise dessas relações (BRISBOIS et al., 2017).
2 TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE: CONCEITOS E PERSPECTIVAS
Diante da complexidade em torno dos estudos que envolvem aspectos territoriais, Haesbaert (2009)
destaca que mais importante do que traduzir “o que é” ou “o ser” do território, “trata-se de discutir
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o seu devir, isto é, em que problemática nos envolvemos ou que questões práticas acionamos a partir
dos conceitos de territórios e territorialidade academicamente construídos”.
Para Santos (2002, p. 10),
o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas.
O território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território
usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida.
A partir desse entendimento, podemos considerar a territorialidade como a forma através da qual
um determinado grupo social se apropria, vivencia e experimenta o território. Raffestin (1993, p. 158)
ressalta que a territorialidade possui um valor bem particular, já que tem caráter multidimensional do
“vivido” territorial pelos membros de uma coletividade, pela sociedade em geral.
Por meio da territorialidade, o próprio território ganha uma identidade, não em si mesma, mas na
coletividade que nele vive e o produz, sempre em processo dinâmico, flexível e contraditório, por
isso dialético.
Podemos compreender que a territorialidade traduz o conjunto daquilo que se vive no cotidiano,
como as relações de trabalho, família, a dimensão política, as relações econômicas e culturais, a forma
como os grupos utilizam a terra, como se organizam no espaço e dão significado ao lugar (MERTENS
et al., 2011). Dentro dessa perspectiva, os saberes e práticas de cuidado em relação à saúde e ao meio
ambiente também constroem a territorialidade de um povo.
Quando pretendemos discutir territórios quilombolas e a interface entre saúde e ambiente,
aparecem intimamente imbricados a percepção que a construção do território produz identidades e
as identidades produzem territórios, sendo esse processo produto de ações coletivas, recíprocas, de
sujeitos sociais. Na perspectiva das relações entre sujeitos e natureza, observa-se que essa relação
é registrada pela memória, individual e coletiva, fruto e condição de saberes e conhecimentos.
(MALCHER, 2006).
A relação das pessoas com o meio ambiente natural, que podemos associar ao território em sua
dimensão física, difere profundamente em intensidade, sutileza e modo de expressão entre os
diferentes grupos (TUAN, 2012). Nesse sentido, o território das comunidades tradicionais é muito mais
que um simples espaço de reprodução econômica. É “chão” das relações sociais, das representações
do imaginário mitológico e religioso que guiam o saber e o fazer dessas populações sobre o meio
físico em que habitam, incluindo as práticas de saúde, ou seja, o espaço físico pode ser considerado
como parte integrante dessas populações. No Brasil, a expressão “comunidades tradicionais” está
associada às comunidades que desenvolvem formas particulares de manejo dos recursos naturais
que não visam diretamente ao lucro, mas à reprodução cultural e social, bem como de percepções e
representações em relação ao mundo natural e cultural marcadas pela ideia harmônica de associação
com a natureza e seus ciclos.
Consideradas comunidades tradicionais afro-brasileiras, as comunidades quilombolas têm como
fundamento de constituição e definição a relação com o território. Para esses grupos, o território
é a base da reprodução física, social, econômica e cultural da coletividade, e a territorialidade está
relacionada a uma dimensão simbólica da identidade e a comunhão que o povo mantém com o seu
território (SANTOS, 2007).
Dentro dessa perspectiva, as práticas de cuidados à saúde e ao meio ambiente são aspectos
constituintes das territorialidades quilombolas, que são influenciadas por cosmologias e valores
civilizatórios que diferem da visão antropocêntrica. Entre os diversos valores, a relação harmônica e
equilibrada entre os membros das comunidades e o meio ambiente é um dos fatores que determinam
a sobrevivência física e cultural desses povos. Diante das relações entre saúde e ambiente presentes
nos territórios quilombolas, este estudo tem como objetivo analisar como as territorialidades
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presentes nos saberes e práticas tradicionais de cuidado em saúde contribuem para a conservação
ambiental em comunidades quilombolas.
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Tratou-se de uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa orientada pelo método do
Interacionismo Simbólico, que consiste em uma perspectiva teórica que considera que as pessoas
constroem as personalidades, a sociedade e a realidade pela interação. Segundo Schlenker (1980), o
Interacionismo Simbólico salienta os significados simbólicos e como os símbolos relacionam-se com a
interação social.
A coleta de dados se deu basicamente por observação participante com registro em diários de campo
e fotográfico, e entrevistas. Além disso, foram coletadas outras fontes de informações sobre as
comunidades – como os hinos e cantigas, jornais e panfletos sobre as comunidades.
O período de pesquisa de campo ocorreu de junho de 2016 a julho de 2017. Foram realizadas sucessivas
visitas às comunidades onde o pesquisador passava todo o dia realizando observações, conversando
com moradores, entrevistando os sujeitos da pesquisa e fazendo os registros fotográficos.
A inserção do pesquisador no campo se deu a partir da aproximação com as lideranças das comunidades.
Esse contato foi estabelecido nas reuniões do Movimento Quilombola de Sergipe e posteriormente
foram agendadas as visitas iniciais nos territórios. As atividades de campo aconteceram também a
partir de convite das comunidades para vivenciar momentos importantes, como festas religiosas,
eventos sociais, esportivos, culturais, etc.
Os participantes da pesquisa foram indicados pelas lideranças e agentes comunitários de saúde. Foram
entrevistados nove agentes cuidadores quilombolas (duas rezadeiras, um rezador, uma ex-parteira,
uma erveira, um erveiro, uma agente comunitária de saúde e dois líderes culturais¹), dos quais cinco
eram quilombolas da comunidade Mocambo e quatro da comunidade Sítio Alto.
As entrevistas foram gravadas e eram iniciadas com questões abertas e norteadoras do estudo com o
intuito de identificar os saberes e práticas existentes nas comunidades, tais como: “Fale-me um pouco
sobre como o(a) senhor(a) começou a cuidar da saúde das pessoas da comunidade”, “Quais saberes
e práticas de saúde que o(a) senhor(a) utiliza na comunidade?”. Foram feitas, em seguida, questões
mais focalizadas para garantir o esclarecimento e aprofundamento das informações necessárias e
compreender o significado dos saberes e práticas tradicionais em sua intersecção com o ambiente,
como, por exemplo: “Como você se sente ao cuidar da saúde das pessoas? ”, “Qual a importância da
natureza para seus saberes e práticas de saúde?”.
As entrevistas transcritas foram exportadas para o software Nvivo 11 Pro, onde procede-se ao processo
de leitura minuciosa e à extração dos primeiros códigos. Foi realizada inicialmente uma codificação
aberta a fim de gerar categorias. O processo de codificação foi feito a partir da ferramenta criação
de “nós”, onde são estabelecidos os nomes das categorias conforme a pertinência com as questões
norteadoras e objetivos do estudo. As categorias geradas foram: territorialidade da resistência,
territorialidade do cuidado e territorialidade da esperança. Realizou-se a análise de conteúdo com
a técnica de análise temática transversal. Procedeu-se à decomposição das falas em fragmentos que
tinham relação com as questões iniciais do estudo e a partir daí foram propostas as inferências e as
interpretações a fim de produzir os elementos teóricos explicativos sobre as territorialidades existentes
nos processos e relações entre saúde e ambiente nas comunidades quilombolas.
A pesquisa foi realizada em duas comunidades quilombolas do estado de Sergipe. A comunidade
de Mocambo, localizada no município de Porto da Folha, sertão do estado, e a comunidade de Sítio
Alto, município de Simão Dias, região centro-sul. O Mocambo foi a primeira comunidade quilombola
reconhecida pela Fundação Cultural Palmares (FCP) no estado de Sergipe, em 27 de maio de 1997,
e a titulação das terras (2.100 hectares) ocorreu no ano 2000 por meio do Instituto Nacional de
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Colonização e Reforma Agrária (Incra). Situa-se às margens do Rio São Francisco e tem seu território
em área fronteiriça à área indígena dos Xocós, com os quais mantém relações de parentesco e de
solidariedade. A comunidade possui em torno de 120 famílias que vivem primordialmente da pesca,
da agricultura de subsistência, da criação de ovinos e dos programas governamentais de transferência
de renda. A principal religião é a católica e o principal evento do calendário religioso é a Festa de
Gloriosa Santa Cruz, no período da Semana Santa. O samba de coco é a principal manifestação cultural
da comunidade.
Figura 1 – Entrada da Comunidade Mocambo e Rio São Francisco.
Fonte: Autor.
A comunidade de Sítio Alto teve seu reconhecimento efetivado no ano de 2014, porém, ainda não possui
seu território titulado. Agrega cerca de 150 famílias que têm na agricultura familiar a principal fonte
de sustento. Apesar da pouca área de que dispõe, a comunidade produz uma grande diversidade de
alimentos, como mandioca, vários tipos de feijão, milho, couve, quiabo, alecrim, manjericão e diversas
frutas. Há criação de ovelhas, galinhas, porcos e algumas cabeças de gado na comunidade. A produção
é predominantemente utilizada para o sustento das famílias da comunidade em primeiro lugar e,
quando há sobras suficientes, alguns produtos são vendidos nas feiras livres da cidade. A dimensão
cultural tem nas danças de roda traços marcantes da identidade da comunidade. A principal religião
é a católica, mas na comunidade há uma igreja protestante, além de uma igreja católica. Assim como
na comunidade do Mocambo, durante a pesquisa não foram encontrados sinais (adeptos, templos,
rituais, etc.) das religiões de matriz africana.
Figura 2 – Entrada da Comunidade Sítio Alto.
Fonte: Autor.
Os aspectos éticos e legais inerentes à realização de pesquisa com seres humanos foram respeitados. O
projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe
CAAE: 23360814.1.0000.5546. Os participantes foram devidamente esclarecidos e deram sua anuência
mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que continha autorização
para uso de imagens. Os relatos apresentam nomes fictícios dos participantes da pesquisa.
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4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram identificadas diversas práticas tradicionais de cuidados nas comunidades quilombolas. Algumas
dessas práticas já são bem documentadas na literatura sobre povos e comunidades tradicionais, como as
práticas de cuidado prestadas por parteiras, a utilização de plantas medicinais pelos erveiros e as práticas de
cuidado que têm na religiosidade seu fundamento principal e são prestadas pelas benzedeiras e rezadeiras.
Outros saberes e práticas, comumente rotuladas como práticas artísticas, de agriculturas ou apenas
“culturais”, foram apresentadas pelas comunidades como práticas de cuidados em saúde e meio
ambiente. As danças circulares e samba de coco no Mocambo, e dança de roda em Sítio Alto, o banco
de sementes crioulas e algumas práticas inusitadas como a Festa de São Lázaro em Sítio Alto têm seus
significados e performances fundamentados nas relações entre saúde e ambiente.
Harmonia, interdependência e integração constituem alguns fundamentos estruturantes da visão que
se opõe à dicotomia saúde-doença enquanto fenômeno biomédico. Fenômeno individual e coletivo,
objetivo e subjetivo, concreto e simbólico, a saúde é concebida na cosmovisão quilombola, vinculada
à vida numa concepção de mundo como um todo “onde todas as coisas se religam e interagem” (BÂ,
2010, p. 169).
Percebeu-se que os princípios civilizatórios afro-brasileiros (axé, ancestralidade, corporeidade,
oralidade, circularidade, cooperativismo/comunitarismo, a religiosidade, a musicalidade e a memória)
permeiam o cotidiano das comunidades quilombolas fundamentando as práticas de cuidado à saúde
e ao meio ambiente. Nesse contexto, observou-se que as comunidades quilombolas pesquisadas
desenvolveram e continuam desenvolvendo seus saberes e práticas de saúde dentro do enfoque
ecossistêmico, onde as relações entre saúde e ambiente se dão de forma complexa, holística e
multidirecional com influências negativas e positivas reguladas pelos valores e práticas que regem a
interação entre o grupo e seu território físico ou meio ambiente.
Na análise dos saberes e práticas encontramos três tipos de territorialidades que estão interligadas e
estabelecem o elo entre saúde e ambiente no cotidiano das comunidades pesquisadas, sendo elas:
4.1 TERRITORIALIDADE DA RESISTÊNCIA
O processo de formação dos quilombos, inicialmente como territórios de acolhimento dos escravizados
que se opuseram à submissão ao regime escravocrata no Brasil, e atualmente como territórios de
conservação da experiência afro-brasileira, tem na resistência um traço marcante presente nas
territorialidades quilombolas.
A territorialidade da resistência se apresentou como um pilar estruturante do cuidado nas comunidades
pesquisadas. A resistência está presente nos discursos, nas práticas e nas estratégias de promoção da
saúde e conservação ambiental nas comunidades.
O sentimento de pertencimento e identidade territorial tem origem na resistência como demonstrado
no hino de Mocambo, que diz no refrão “Mocambo é nosso, de quem lutou, teve a coragem, acreditou.
Mocambo é nosso, de quem lutou, teve a coragem, acreditou”. Para Arruti (2006, p. 285),
[...] no Mocambo, a remanescência não está vinculada, exclusivamente, a uma origem ou
uma identidade racial, mas, fundamentalmente, à adesão a uma estratégia social. Afinal, a
adesão à “luta” (tomada de consciência ou assunção) é sempre partilhada de forma desigual
pelos componentes do grupo, em função dos cortes sociais previamente existentes e de suas
estratégias de sobrevivência.
A resistência é observada no hino do Sítio Alto que traz no refrão a seguinte letra: “Sítio Alto segure sua
bandeira, não fique triste, nunca pare de lutar. Sítio Alto segure sua bandeira, não fique triste, nunca
pare de lutar”.
Na interface saúde e ambiente, a territorialidade da resistência é marca ontológica dos saberes e
práticas tradicionais de cuidados enquanto fator promotor do equilíbrio entre sociedade e natureza.
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Segundo os cuidadores, a utilização desses saberes e práticas representou e, continua a representar, a
contraposição ao histórico de desassistência à saúde bem como o elemento primordial de manutenção
dos recursos naturais presentes nos territórios. Dona Maria, líder comunitária do Sítio Alto, ao relatar
a importância do banco de sementes crioulas para a comunidade, questiona:
[...] Como eu tenho segurança alimentar se eu não estou sabendo de onde o alimento está
vindo? Para a gente ter a segurança alimentar, a gente tem que ter a soberania para saber de
onde vem, quem plantou, onde colocou, porque muitas vezes a gente está se matando pela
própria boca.
Percebe-se no discurso uma abordagem integradora, que destaca o caráter holístico das formas de
ser e estar no mundo vivenciadas nas comunidades tradicionais. Esse princípio integrador deve ser
evocado na busca da superação da lógica fragmentadora na saúde, fruto da racionalidade científica
ocidental estruturante do modelo biomédico, que secciona o corpo, o olhar e reduz a complexidade
das relações que produzem saúde ou doença a fenômenos biológicos.
O uso das sementes crioulas tem um significado que vai além da segurança alimentar da comunidade
e apresenta-se como uma estratégia de resistência ante o avanço das sementes transgênicas.
A preocupação com a perda de biodiversidade e devastação da natureza é apontada na cantiga
comemorativa ao aniversário do município de Simão Dias, que é um dos maiores produtores de milho
do estado de Sergipe.
Naquele tempo a gente de tudo plantava; tinha milho, o feijão, o algodão e a fava. Tinha
aipim, batata e a batatinha; tudo que o agricultor queria na mesa, tinha. Mas hoje em dia as
coisas se evoluíram e hoje a cultura que temos é só a cultura do milho. Essa cultura que no
mundo se espalhou melhorando a vida de muito agricultor. Mas tudo isso só quem paga é a
natureza desmatando todas as matas e acabando com a beleza, mas tudo isso só quem paga é a
natureza desmatando todas as matas e acabando com a beleza. (ANIVERSÁRIO DE SIMÃO DIAS,
COMPOSIÇÃO DONA MARIA).
A abordagem ecossistêmica em saúde é visualizada a partir do princípio da integração, que nos mostra
que na cosmovisão africana o ser humano está integrado ao universo, visto que todos os elementos
do universo estão interligados em uma interação dinâmica. A interdependência e a inter-relação entre
tudo e todos são desejadas, pois a harmonia do todo depende da harmonia das partes. “Na cosmovisão
africana, o indivíduo é singular, mas sua singularidade é construída de acordo com o comunitarismo, no
âmbito do coletivo, socialmente.” (ROCHA, 2011, p. 34).
4.2 TERRITORIALIDADE DO CUIDADO
É a principal territorialidade presente nas relações entre saúde e ambiente nas comunidades quilombolas.
O cuidado é concebido a partir de valores afro-brasileiros como o Axé – valor traduzido como energia vital
–, que compreende que tudo que é vivo e que existe, são forças vivas, em processo. “Planta, água, pedra,
gente, bicho, ar, tempo, tudo é sagrado e está em interação” (TRINDADE, 2013, p. 6)
Nas cantigas de dança de roda, nas histórias dos mais velhos, nos discursos sobre as práticas dos erveiros,
rezadeiras, líderes comunitários e culturais, a apresentação de aspectos históricos e contemporâneos
é permeada pela dimensão do cuidado não apenas enquanto elemento vinculado à assistência de
pessoas doentes, mas como valor estruturante das relações sociais entre os membros da comunidade
e dos membros com os seres não humanos (animais, vegetais e minerais) presentes no território.
A dinâmica de articulação saúde e ambiente presente na territorialidade do cuidado é bem visualizada
na Festa de São Lázaro na comunidade de Sítio Alto. A comunidade, além de realizar uma procissão,
oferece um banquete para os cães da comunidade com o objetivo de prevenir zoonoses. O sentido
expresso nessa festa é o de “cuidar da saúde dos cães para cuidar da saúde das pessoas”. Essa prática
tem o objetivo de evitar que os cachorros “azedem”, ou seja, desenvolvam a raiva.
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Figura 3 – Banquete para cães. Festa de São Lázaro
Fonte: Acervo da comunidade
Na dança de roda, percebe-se a existência de um pensamento complexo que enxerga e vivencia de
forma articulada uma prática corporal como possibilidade de resolução de conflitos, promoção de
saúde, “antidepressivo”, etc. As cantigas, segundo a líder comunitária, D. Maria, “serviam para fazer
e desfazer casamento, afastar doença, resolver briga de vizinhos e de marido e mulher, aliviar o
sofrimento da exploração vivenciada e manifestar a alegria e gratidão da comunidade”.
Os princípios da circularidade, oralidade, ludicidade e musicalidade presentes nas danças de roda e
samba de coco fundamentam um conjunto de aspectos culturais, entre eles os saberes e práticas de
cuidado com a saúde e o ambiente, que são socializados e transmitidos de geração a geração mantendo
o elo e a continuidade dessas relações.
Na perspectiva da territorialidade do cuidado, uma pessoa só é uma pessoa por meio de outras
pessoas e também por meio de todos os seres do universo. Cuidar “do outro”, portanto, também
implica o cuidado para com o meio ambiente e os seres não humanos.
A contribuição positiva das práticas tradicionais do quilombo na conservação ambiental e cultural é
demonstrada de forma integradora em várias canções.
Plante a semente, guarde a semente, tenha nas mãos a semente do amor. A semente da paixão
é a semente da gente, esta semente crioula é a lembrança do vovô. [...] Quando se fala em
semente, já vem logo a tradição, as rezas das rezadeiras, uma panela e um fogão (SEMENTE
CRIOULA, COMPOSIÇÃO DONA MARIA).
Figura 4 – Aula no banco de sementes crioulas na comunidade Sítio Alto.
Fonte: Autor.
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Esse cuidado se traduz também na relação do uso racional de plantas medicinais, conforme relata
Dona Josefa ao explicar como esses saberes foram passados ao longo das gerações.
[...] tudo assim eles sabiam, qual eram os remédios do mato que serviam para ser medicinal,
tanto para o pessoal quanto para os animais, pois tinha aqueles remédios que serviam para os
animais, né? Eles sabiam também qual o remédio que não podia cair na água porque se não os
peixes não sobreviviam, tudo isso eles tinham conhecimento [...]. (DONA MARIA)
As comunidades e povos tradicionais possuem relações extrativistas de uso racional dos recursos
estruturadas em ancestralidades e vínculos interdependentes com a conservação ambiental (LEROY;
MEIRELES, 2013, p. 117).
No Mocambo essa relação também é fundamentada na ancestralidade e na compreensão do poder
terapêutico existente nos recursos naturais como aponta o Sr. Pedro, erveiro e contador de histórias
da comunidade.
[...] sim, e tudo isso ele passou para mim, os valores, as histórias, os paus, os remédios, não tem
um pau no mato que não sirva pra remédio, todos, o pinhão, mas o pinhão é um pau, tudo que
é da natureza tem seu valor, o pinhão serve pra mordida de cobra. Meu segredo é que todo
mato vira remédio, tanto das folhas como tanto da raiz [...] (SR. PEDRO).
Em síntese, a territorialidade do cuidado enquanto conjunto de saberes e práticas fundamentado em
princípios ancestrais, que estimulam o equilíbrio entre os diversos seres, demonstra a aproximação da
cosmovisão quilombola ao enfoque ecossistêmico em saúde.
A visão integradora e ecossistêmica da saúde é bem compreendida pelas comunidades, que estabelecem
um alinhamento entre teoria e prática como apontado no seguinte discurso:
[...] agora partiu para ler, para escrever assim a gente não tinha esse conhecimento, até mesmo para
ter esse conhecimento que eles tinham não precisava saber ler não, a gente tinha que ter é visão,
mas também eles eram todos cheios de ciência, se acordavam bem cedo viviam lá perto do rio,
descia que tinha que ir cedo tomar os mergulhos que fazia bem a saúde, as pessoas estava com umas
gripes, tem umas gripes hoje que chama sinusite que o nariz não destapa, ensinavam se levante bem
cedinho, vai tomar três mergulhos até o sol sair, e não tinha esse negócio de dizer que a gente só
vivia no médico, a gente não ia para médico, nossos médicos eram as parteiras e os rezadores que
faziam isso, e tudo que eles faziam nós aprendemos um pouco”. (DONA MARIA, SÍTIO ALTO).
4.3 TERRITORIALIDADE DA ESPERANÇA
A territorialidade da esperança é observada no cotidiano das comunidades e está intimamente ligada
aos saberes e práticas que demarcam a resistência e o cuidado enquanto elementos fundamentais na
intersecção entre saúde e ambiente. A esperança de melhorar as condições de vida conservando os
princípios, costumes e saberes é a mola propulsora de relações sociais dinâmicas e saudáveis.
Tanto no Mocambo quanto em Sítio Alto, o diálogo intergeracional foi um fator constitutivo dessa
territorialidade na perspectiva de garantia da conservação da cosmologia integradora presente nas
comunidades. Idosos, adultos, adolescentes e crianças vivenciam juntos, principalmente as práticas
de danças circulares, que têm um grande papel na socialização dos princípios das comunidades, como
pode ser observado nas Figuras 5 e 6.
Figura 5 – Diversidade geracional no grupo de dança de roda do Sítio Alto
Fonte: Acervo da comunidade.
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Figura 6 – Crianças no Samba de Coco do Mocambo
Fonte: Acervo da comunidade.
Não obstante, para a construção de uma comunidade, faz-se necessário inventariar os elementos
ambientais, culturais e históricos que servirão de constructo para a identidade dessa comunidade,
conferindo-lhes legitimidade. Diegues (2003) postula que a construção dessas comunidades está
intimamente relacionada à construção de sociedades sustentáveis o que, para o referido autor,
pressupõe pensar localmente, porém, com resultados que alcancem o nível macro das relações sociais.
A construção de comunidades e sociedades sustentáveis deve partir da reafirmação de seus
elementos culturais e históricos, do desenvolvimento de novas solidariedades, do respeito à
natureza não pela mercantilização da biodiversidade, mas pelo fato que a criação ou manutenção
de uma relação mais harmoniosa entre sociedade e natureza serem um dos fundamentos das
sociedades sustentáveis (DIEGUES, 2003, p. 01-02).
Essa percepção da necessidade de articulação em rede é outro aspecto presente na territorialidade
da esperança. Na comunidade do Sítio Alto, a experiência positiva com as sementes crioulas é
compartilhada com outras comunidades quilombolas e não quilombolas. Durante o período de coleta
de dados, a comunidade foi base de encontro estadual de guardiões de sementes e da caravana
agroecológica. Nesses encontros, a experiência, os saberes e as sementes do Sítio Alto são partilhados
a fim de fortalecer a rede de cuidados e cuidadores da saúde e meio ambiente.
Figura 7 – Encontro de guardiões de sementes/plantação de feijão no Sítio Alto.
Fonte: Acervo da comunidade.
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A questão ambiental ocupa lugar de destaque quando as comunidades pensam no futuro. A esperança
de recuperar os recursos perdidos e conservar os ainda existentes permeia os sonhos e projetos,
conforme relata Renata, educadora e líder cultural do Mocambo.
[...] eu perguntei quais as matas essenciais para a gente reflorestar as margens do rio e ele
nunca deu essas respostas de quais são as plantas que devemos plantar às margens do rio
porque o assoreamento está cada dia mais vindo, o rio está subindo, está subindo e se a gente
não tomar uma providência rápida a gente vai acabar ficando à deriva. Deus ajude para que a
gente consiga fazer essa plantação, para que não se avance tanto o rio. [...] vamos fazer uma
horta orgânica na escola ...; [...] vamos aguardar terminar a escola para a gente ver qual o
espaço propício para a gente fazer, ideia e disposição para trabalhar eu tenho (RENATA, LÍDER
CULTURAL).
No Sítio Alto, o desejo de resgatar as espécies que desapareceram apresenta-se não apenas como
uma possibilidade de reconfiguração do território, mas, principalmente, de reconfiguração das
territorialidades das gerações mais jovens a partir da aproximação dos recursos e condições que
constituíram a comunidade como demonstrado na seguinte fala:
Meu sonho é conseguir uma área para preservar todas as reservas florestais que a gente já
teve aqui, as árvores e as ervas, tanto frutífera como florestal. Então isso aí dava para fazer
o resgate de tudo que era para eu mostrar como foi e como é o início de nossa comunidade,
então eu queria fazer um resgate de tudo que eu já vi aqui, dizer assim, tem uma área reservada,
uma área de terra só pra essas coisas, e também para plantar semente crioula, para não ficar
próximo uma semente da outra, porque aqui a gente está plantando mas correndo o risco de
contaminar uma com a outra né, mas minhas sementes eu nem abro mão e nem preciso dizer
que os técnicos vêm modificar. Nessa área também ia colocar as espécies de animais que já
teve aqui, como os tipos de galinhas. Aqui tinha a que elas chamavam as galinhas terraças, e
também tinha a galinha “arrupiada” que tanto servia para comer quanto de remédio. Quando
elas tinham algum problema de quebra de resguardo, pegava a perna da galinha, fazia um
defumador junto com não sei o que, um chá de não sei o que, e ela ficava boa, batia um pouco
de água em jejum, e tomava de manhã cedo, aí elas iam ficando boa. [...] a gente tem que
fortalecer e enriquecer aquilo que é nosso e for de nossa raiz, pois quando a gente mata a raiz
na qual vive, alguém já viu a árvore viver sem a raiz?, não vive, aí então a gente não pode perder
de vista aquilo que é nosso. (DONA MARIA, LÍDER COMUNITÁRIA).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abertura das Ciências para o diálogo com as comunidades tradicionais afro-brasileiras pode
apresentar caminhos poderosos de compreensão das relações saúde e ambiente, além de estratégias
de promoção de saúde e vida. As comunidades quilombolas possuem um rico arcabouço de saberes e
práticas de integração e promoção da saúde e conservação ambiental experimentadas e legitimadas
pela harmonia e conservação ambiental/cultural dos quilombos.
A construção de uma nova concepção integradora entre saúde e ambiente no Brasil,
imprescindivelmente deve partir da valorização e reconhecimento da cosmovisão dos grupos que
constituíram e construíram a nação. Nesse sentido, é papel da academia conhecer e aprender essas
formas tradicionais e dinâmicas vivenciadas cotidianamente ao longo do tempo pelas comunidades
tradicionais. Dessa forma, ampliaremos as possibilidades de superar as limitações impostas pela
unicidade de pensamento diante da diversidade e complexidade dos problemas imersos na imensidão
das relações entre saúde e ambiente.
Pode-se perceber que a complexidade do cuidado em saúde e ambiente nas comunidades
quilombolas é fundamentada em valores e princípios civilizatórios e epistemológicos que posicionam
seres humanos e não humanos em uma grande “roda da vida”. As relações saúde e ambiente são
interativas, abertas, e tradicionais e dinâmicas. As comunidades constroem discursos e práticas que
acompanham as mudanças e reconfiguram os saberes e práticas de cuidados de forma a conservar
os princípios ancestrais e adaptar os membros da comunidade às novas demandas de conservação
cultural e ambiental.
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As territorialidades da resistência, do cuidado e da esperança abarcam um conjunto de saberes,
práticas, símbolos, sonhos e projetos tradicionais e de vanguarda que apontam caminhos alternativos
de análise das relações entre saúde e ambiente.
Nesse contexto, os princípios da abordagem ecossistêmica em saúde são vivenciados pelas comunidades
quilombolas já que essa perspectiva de relação saúde e ambiente está presente na cosmologia e nos
princípios civilizatórios afro-brasileiros. Essa perspectiva integradora e complexa das relações entre
sociedade e natureza, saúde e ambiente foi e continua sendo fator preponderante para a conservação
dos territórios, saberes e práticas das comunidades quilombolas no Brasil.
NOTES
Os líderes culturais foram incluídos em virtude de algumas práticas culturais serem evocadas pelas comunidades como
práticas tradicionais de saúde, a exemplo das danças circulares.
1
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos moradores das comunidades quilombolas de Mocambo e Sítio Alto a acolhida e
partilha de saberes, experiências e vivências do cotidiano. Agradecemos ao Ministério da Saúde (MS),
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à
Pesquisa de Sergipe (Fapitec) o apoio técnico-financeiro para o desenvolvimento do projeto pelo edital
n.º 02/2013 – PPSUS Sergipe.
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