Artigo - Filologia Stricto Sensu | Filologia e Linguística Histórica | Philology and Historical Linguistics
http://dx.doi.org/10.31513/linguistica.2023.v19n1a57283
Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
Catchword: between Codicology and Paleography
Marcelo Módolo1
Maria de Fátima Nunes Madeira2
RESUMO
O reclamo, definido como grupo de letras ou palavras colocadas na margem inferior do fólio, e repetidas no
início do fólio seguinte, com o objetivo de indicar a sequência dos cadernos ou dos fólios manuscritos, tem
sido estudado pela Codicologia, por se tratar de um elemento com valor informativo sobre a reconstituição
do códice ou do manuscrito para a datação de documentos. Entretanto, por configurar um registro escrito,
as pesquisas sobre o reclamo entrelaçam métodos da Paleografia. Neste estudo, objetiva-se analisar a sua
configuração e frequência em documentos setecentistas da capitania de Minas Gerais, classificando os reclamos
a partir de categorias estabelecidas de acordo com as formas como aparecem registrados no texto. O resultado
da análise identifica uma preferência do escrivão pelo uso do tipo “palavra” ao final do fólio, em comparação
com o emprego de sílabas e de abreviaturas, por exemplo, transferindo para o reclamo uma preocupação
com a agilidade da leitura. Sugere-se que os dados obtidos nesse resultado sejam inseridos em banco de
dados que reúna informações sobre práticas manuscritas em documentos de vários tipos e centúrias, em língua
portuguesa, produzidos no Brasil, a fim de que sejam examinados pelas metodologias da Codicologia e da
Paleografia para a identificação, quantificação e análise de tendências de usos e meios na produção de códices
ou de manuscritos avulsos, com o objetivo de compor um panorama desses fenômenos histórico-culturais.
PALAVRAS-CHAVE: Reclamos. Codicologia. Paleografia. Manuscritos setecentistas. Classificação por
categorias.
ABSTRACT
The catchword, defined as a group of letters or words written at the lower margin of the folio, and repeated at
the beginning of the next folio, in order to indicate the sequence of the quires or manuscript folios themselves,
has been studied by Codicology, as an element with informative value on the reconstitution of the codex or the
manuscript to dating documents. However, as configuring a written resource, studies about the catchword are
intertwined with the methods of Paleography. In this study, we aim the analysis of its shape and frequency in
17th century documents of the captaincy of Minas Gerais, to classify the catchwords from categories established
according to the shapes as they are shown up in the text. The analysis’ result identifies the choice by the scribe
for the use of the type “word” at the end of the folio, comparing to the use of syllables and abbreviations, for
instance, transferring to the catchword a concern with the agility on reading. We propose that the data obtained
from the results of this study be inserted in a database that gathers information about manuscript practices
in documents from several types and centuries, in Portuguese language, created in Brazil, to be analyzed by
the methodologies of Codicology and Paleography to the identification, quantification and analysis of trends
of uses and means in the production of codices or single manuscripts, in order to compose a view on these
historical-cultural phenomena.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo (USP),
[email protected], https://orcid.
org/0000-0001-5808-9368.
1
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo (USP),
[email protected], https://
orcid.org/0000-0001-6141-0714.
2
Recebido em 06/03/2023- Aceito em 15/11/2023.
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Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
KEYWORDS: Catchwords. Codicology. Paleography. 17th century manuscripts. Classification on categories.
Introdução
Quando Dain (1949) cunhou o termo3 “codicologia”, indicou também quais seriam as atribuições
da disciplina4 e quais estudos pertenceriam à Paleografia:
As missões e o domínio da codicologia [são]: história dos manuscritos, história das coleções
de manuscritos, investigações sobre sua localização atual, problemas de catalogação,
repertórios de catálogos, comércio dos manuscritos, sua utilização etc. Pelo contrário,
pertencem, do meu ponto de vista, à paleografia: o estudo da escrita e da matéria de escrita, a
confecção do livro e sua ilustração e o exame de sua “arquitetura”. (DAIN,1949, p. 77, apud
GARCIA, 2002, p. 21).
Porém, as atribuições dadas pelo autor à disciplina vêm se adaptando aos diversos contextos
das pesquisas codicológicas. Atualmente, as análises sobre o papel, a tinta, o instrumento de escrita,
a configuração de um manuscrito, as técnicas de um códice manuscrito, o sistema de ordenação e
numeração de cadernos ou páginas, os procedimentos de ornamentação ou ilustração, as técnicas de
encadernação, e até mesmo os sinais de deterioração presentes no suporte material, são consideradas
informações obtidas pela Codicologia, com as quais o filólogo estabelece um diálogo para tentar
compreender, conforme ensina Almada (2014, p. 138), “como suas formas e aparência foram
concebidas e que usos foram dados ao objeto ao longo de sua história”.
O próprio campo de atuação da Codicologia, como ciência autônoma, vem recebendo distinção
entre uma abrangência ora stricu sensu, em que se analise especificamente as propriedades materiais e
os procedimentos de fabricação do códice ou de realização dos documentos manuscritos, identificada
como “arqueologia do livro”, ora lato sensu, em que se observe, no objeto de estudo, a sua trajetória,
desde a sua criação, até a sua disponibilização para estudos científicos, sociais e culturais, reconstruindo
as fases de elaboração do códice e a história da sua utilização. (ACKEL; MADEIRA, 2021). Nos dois
domínios, interessa a análise do códice ou manuscrito como um fenômeno histórico-cultural.
O estudo dos reclamos, itens relacionados à forma de ordenação da sequência dos fólios5,
a princípio para orientar a encadernação de documentos manuscritos, tornou-se um elemento
reivindicado pelas pesquisas tanto da Codicologia quanto da Paleografia. O motivo é compreensível,
pois, por um lado, os reclamos indicam a sequência na qual os fólios e cadernos deveriam ser reunidos,
A opção “codicografia”, proposta por Samaran, em 1927, para designar a “ciência dos manuscritos”, não foi bem aceita
e caiu no esquecimento (GARCIA, 2002, p. 20).
3
Tradução, pelos autores, de: Las misiones y el dominio de la codicología [son]: historia de los manuscritos, historia
de las colecciones de manuscritos, investigaciones sobre la sede actual de los mismos, problemas de catalogación,
repertorios de catálogos, comercio de los manuscritos, su utilización, etcétera. Por el contrario, pertenecen, desde mi
punto de vista, a la paleografía: el estudio de la escritura y de la materia escriptoria, la confección del libro y de su
ilustración, y el examen de su «arquitectura» (DAIN, 1949, p. 77, apud GARCIA, 2002, p. 21).
4
No caso de um conjunto de manuscritos que chegue às mãos do pesquisador com os fólios desordenados, a identificação
dos reclamos contribui para a organização sequencial original do texto.
5
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e assim, cumprem a sua função como recurso de recuperação da leitura de um fólio a outro, já que
a última palavra6 de um fólio7 é repetida no início do fólio seguinte. Por essas características, são
estudados como elementos codicológicos. Ao mesmo tempo, como se trata de um recurso escrito, os
reclamos acabam por ser analisados também por seus aspectos paleográficos. Assim, logo na primeira
parte deste trabalho, demonstra-se justamente a aplicabilidade das metodologias das duas ciências
para uma melhor compreensão do funcionamento e da configuração dos reclamos no texto.
Em seguida, na segunda parte, são apresentados os tipos documentais e os temas tratados nos
documentos que compõem o corpus da pesquisa, cujos textos foram editados em estudo8 filológico
mais abrangente.
Ao descrever a materialidade dos códices e dos manuscritos, além de recuperar os aspectos
físicos que não puderam ser capturados apenas pela observação à imagem fac-similar9, a Codicologia
também explica o significado de marcas investigadas para se atribuir a existência, a trajetória, a
autenticidade e a datação dos documentos enquanto artefatos históricos escritos.
Entender a materialidade de um documento permite conjecturar suas origens, modos de
transmissão, circulação, lugares de pouso, razões de produção e, a partir disso, exceder o
limite de uma descrição física documental para oferecer possibilidades de conjecturações
oferecidas pela Filologia, desde a utilização de um tipo específico de instrumento para a
composição do texto até conseguir percorrer o caminho que o documento fez ao chegar nas
mãos do leitor. (ACKEL; MADEIRA, 2021, p. 7-8).
Desta maneira, na terceira parte, é apresentado, em ficha codicológica específica, o resumo
das propriedades materiais do códice que se tornou objeto deste estudo, com a finalidade de se
fazerem retratar suas principais características físicas, elementos imprescindíveis para a validação da
autenticidade dos documentos em relação ao tempo e lugar em que foram produzidos. De todas as
características apresentadas do códice e dos manuscritos, este estudo coloca os reclamos em evidência.
Na quarta parte, apresenta-se: a contextualização histórica dos reclamos como recursos
de ordenação de cadernos em códice e de paginação em documentos manuscritos; a explicação
etimológica para a preferência pela forma “reclamo”; e um breve esclarecimento sobre a constituição
do reclamo (reclamo e repetição).
Os reclamos identificados nos manuscritos da Vila Real de Sabará são apresentados na quinta
parte deste trabalho. Dias (2018) propõe uma classificação tipológica para os reclamos, baseada
justamente na variedade de artifícios paleográficos (palavra, segmento de palavra, sílaba, falta de
Neste trabalho, não será feita a distinção entre palavra e vocábulo. Como “palavra”, entenda-se: “unidade que transmite
um significado elementar”. (GONÇALVES, 2019, p. 17).
6
Fólio: cada uma das duas metades de um bifólio. Bifólio: unidade básica do caderno, constituída por uma peça retangular
de pergaminho ou de papel, dobrada ao meio para formar dois fólios (cf. CODICOLOGIA, apud TOLEDO NETO, 2020).
7
O texto completo desses documentos, inclusive a imagem fac-similar de cada fólio, poderá ser consultado em Madeira
(2023).
8
Normalmente, as edições filológicas trazem o texto editado e a imagem fac-similar dos documentos, considerando-se
que o leitor da pesquisa não tenha acesso direto aos manuscritos.
9
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fronteira entre palavras, abreviatura etc.) com que se afiguram. Os reclamos presentes nos manuscritos
setecentistas estão elencados a partir desse subsídio. Como resultado dessa descrição, pretende-se
deixar registradas as práticas utilizadas pelo escrivão da câmara da Vila Real de Sabará, em 1777,
e a frequência dos tipos de reclamos nesse conjunto de manuscritos. A apuração quantitativa desses
usos no corpus desta pesquisa e a comparação com os dados obtidos por Dias10 (2018) contribuem
para demonstrar a importância da compilação desse tipo de informação codicológica para se traçar a
trajetória e as formas dos reclamos ao longo dos séculos.
1. Codicologia e Paleografia: perspectivas tangíveis do manuscrito
A Codicologia e a Paleografia se entrelaçam, desde a sua origem, nos estudos sobre a
materialidade do códice manuscrito, visto como um produto artesanal escrito, para se interpretar as
condições da sua produção original, como o suporte material e o tipo de escrita.
A identificação dos reclamos nos textos manuscritos, reconhecendo-os como artifícios de
paginação em que a última palavra ou sílaba de um fólio se repete no início do fólio seguinte, tem sido
adotada como elemento de estudo tanto pela Codicologia quanto pela Paleografia, naturalmente, por
incorporar ao mesmo tempo uma técnica de organização de páginas, atribuída aos estudos do códice
e dos manuscritos, e uma representação gráfica e ortográfica, assumida regularmente pela Paleografia.
Tanto em um campo quanto no outro, o reclamo vem sendo estudado apenas como recurso gráfico de
ordenamento dos cadernos que formam o códice e como estratégia para a recuperação da leitura de um
fólio a outro. Dessa forma, unicamente como técnica de paginação, a presença dos reclamos tem sido
interpretada pela Codicologia e pela Paleografia como prática escrita de determinados séculos e locais
de produção, como vestígios físicos para verificar a autenticidade dos manuscritos. Neste estudo, as
propriedades paleográficas verificadas na composição dos reclamos também serão destacadas com a
finalidade de se circunscrever os manuscritos em seu tempo e lugar de produção.
Utilizando o enfoque dado por Dias (2018), a fim de se particularizar esses elementos visuais
do códice, os reclamos são analisados pela Codicologia, disciplina à qual se tem atribuído a
responsabilidade pelo estudo de aspectos da composição e organização dos cadernos, com a finalidade
de se reconstruir essa fase da elaboração de códices ou de fundos de manuscritos, ou seja, pela
sua aplicabilidade. Porém, ao se proceder à classificação do reclamo por categorias (letras, sílabas,
palavras, segmentos de palavra, falta de fronteira entre palavras, abreviaturas etc.), a análise se volta
para os métodos e objetivos da Paleografia, já que os indicadores dessas classes de reclamos são
justamente as suas formas gráficas de representação. Essa interdisciplinaridade acaba por contribuir
para uma abordagem dos reclamos não somente do ponto de vista de sua funcionalidade na escrita
e na leitura de manuscritos, mas também de sua configuração gráfica, com base na sua escrita e na
interpretação desses aspectos gráficos para a história da escrita.
Embora o corpus utilizado pela autora seja mais volumoso em número de páginas, o conjunto de documentos analisado
neste estudo pode contribuir para dar visibilidade aos dados e características dos reclamos como indicadores do tempo e
lugar de produção dos manuscritos.
10
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2. Os manuscritos
Os manuscritos escolhidos para constituir o corpus desta pesquisa compõem o códice abrigado
no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), registrado como AL 014
- 001/002/003/004 e são veiculados por quatro espécies documentais: i) uma representação, assinada
em 1777; ii) uma carta régia, de 1755; iii) um termo em junta da Capitania de Minas Gerais, de 1756;
e iv) um auto de vereação da Vila Real de Sabará, de 1768. O primeiro diploma foi assinado pelos
Oficiais da Vila Real de Sabará, endereçado à Rainha D. Maria I, e informava sobre a precária situação
vivida pelo povo dessa e de outras Vilas da Capitania de Minas Gerais, devido principalmente à crise
causada pela escassez do ouro nas minas, o que dificultava a continuidade de arrecadação do imposto
intitulado “subsídio voluntário”, que vinha sendo coletado há mais de vinte anos.
A Câmara acusava o Governador da Capitania à época, o Conde de Valladares, de ter persuadido
o Rei D. José I de que o povo conviera voluntariamente na reforma do subsídio. Os Oficiais
expuseram as razões pelas quais essa contribuição havia ultrapassado a capacidade do povo de o
manter. Justamente para comprovar a pronta boa vontade do povo, quando solicitado a contribuir com
o imposto para a reconstrução de Lisboa, logo após o terremoto, em 1755, os outros três documentos
foram recuperados dos arquivos da Câmara de Sabará, copiados pelo Escrivão, autenticados pelo
Tabelião, e anexados à Representação, documento principal do códice, para dar ciência à Rainha de
todas as providências tomadas pela Capitania e pela Vila, até então. Em ordem cronológica, foram
anexadas: a Carta Régia, que solicitava, pela empatia dos vassalos, as maneiras mais próprias de
ajuda para se reconstruir Lisboa; o Termo em Junta, que definiu os itens e os valores a serem taxados;
e o Auto de Vereação, que prorrogou o prazo do imposto por mais dez anos, a partir de 1768, ainda
que com valores inferiores aos contratados em 1756.
Estudos paleográficos prévios realizados sobre essa documentação indicam que o escrivão
da câmara da Vila Real de Sabará, identificado, nos documentos anexados à representação, como
Custódio dos Anjos Fremes, foi o responsável por produzir os quatro documentos. Os reclamos estão
presentes em todos os fólios dos manuscritos. Assim, podemos olhar para os dados obtidos sobre os
reclamos como uma prática individual do referido escriba, ou como uma convenção que identifica a
sede administativa da capitania de Minas Gerais nos anos setenta do século XVIII.
3. Descrição do códice manuscrito setecentista
Com o objetivo de reproduzir do códice e dos manuscritos diplomáticos, corpus desta pesquisa,
as suas características físicas globais, para conhecimento do leitor, estão enumeradas, na ficha a
seguir11 (quadro 1), considerada adequada para sintetizar esse tipo de informações, as principais
propriedades observadas pela análise codicológica no referido material.
11
Adaptada do “guia básico de descrição codicológica”, elaborado por Cambraia (2005, p. 28).
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Quadro 1: Propriedades codicológicas
Cota
São Paulo/ Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo/ Coleção
Alberto Lamego / AL014 – 001/002/003/004
Tipo: inautêntica12
Dimensão: 456 mm X 360 mm
Material: papelão resistente coberto por juta, na cor rosada; folhas costuradas à
encadernação.
Figura 1: Encadernação - códice AL 014
Encadernação
do códice
Folha de rosto
Fonte: Arquivo do IEB-USP (2022).
Datiloscrito do colecionador, na contracapa da encadernação: “Representação da
Câmara da Villa Real de Sabará, Capitania de Minas Geraes, dirigida à Rainha D. Maria
I, no anno de 1777, sobre interessante assumpto administrativo. (In-fol de 14 folhas. É o
próprio original com copias autenticadas de vários documentos)”.
Cartáceo, sem pauta, marca H C Wend & Zoonen (Holanda)
Vergaturas (1 em 1mm) e pontusais (26 mm – 8 por fólio)
Marca d’água: escudo (brasão) de formato regular ladeado por volutas de motivos
fitomórficos. Na parte interna, mostram-se o sautor e as letras “HCWEND & Zoonen”,
que indicam o fabricante.
Figura 2: Marca d’água
Suporte
material,
instrumento
e material de
escrita
Fonte: catálogo13 “Bernstein – memory of paper” (2022).
Tinta ferrogálica e pena de ave.
O códice não foi constituído, nem autenticado em Notário, Chancelaria ou Secretaria, nem possui Termo de Abertura e
de Encerramento. A encadernação foi encomendada pelo próprio colecionador.
12
Website sobre o papel e sobre a sua história, com amostras de marcas d’água. Acesso: https://www.memoryofpaper.eu/
BernsteinPortal/appl_start.disp#. Consultado em: 27 fev. 2023.
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9 infólios14 (dimensão: 355 mm X 440 mm); 11 fólios opistografados15 – total: 22 fólios
manuscritos (dimensão fólio: 355 mm X 220 mm) e 14 fólios em branco.
Uma coluna por fólio
Dimensão da mancha escrita: Representação: 110 mm X 180 mm.
Carta Régia: 210 mm X 94 mm.
Termo em Junta e Auto de vereação:
200 a 280 mm X 88 mm.
Organização da
Nr linhas (sem pauta):
página
Representação (3 fólios – recto e verso): média = 19 linhas por fólio
Carta régia (1 fólio – recto e verso), Termo em Junta (5 fólios – recto e verso) e Auto de
vereação (2 fólios – recto e verso): média = 25 linhas por fólio
Presença de reclamos16 como recurso de paginação dos manuscritos.
Presença de carimbos da Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras.
REPRESENTAÇÃO da Câmara da Vila Real de Sabará: Original.
CARTA RÉGIA: Cópia autenticada
TERMO EM JUNTA: Cópia autenticada
Tradição
AUTO DE VEREAÇÃO: Cópia autenticada
documental:
Assinaturas17 na Representação: Oficiais da Câmara de Sabará.
Nos documentos anexos, por se tratar de cópias, as assinaturas são representadas pela
aposição de barras inclinadas duplas (//) antes e após os nomes dos responsáveis pela
emissão dos documentos.
Composição
Fonte: elaboração dos autores (2022).
A partir dessa descrição, é possível construir uma imagem do conjunto de fólios manuscritos,
encadernados com capa rosada, o texto registrado em papel de boa qualidade, certificada pela marca
d’água, em tinta na cor castanho médio, aplicada com pena de ave. A imagem fac-similar permite
uma percepção um pouco mais palpável do códice, como se observa na figura 3, adiante. Mas, como
consenso, nada substitui o contato direto com o material, para uma análise codicológica conclusiva.
A observação direta ao códice manuscrito, nas instalações do IEB-USP, propiciou aos autores deste
trabalho a descrição rigorosa das suas características materiais e o registro fotográfico do artefato
escrito, tarefas imprescindíveis para se inferir a datação tópica e cronológica dos documentos. As
características apresentadas, sobre o suporte material do códice, somadas a estudos paleográficos e
diplomáticos, constituem-se vestígios que confirmam as datas tópica e cronológica registradas nos
manuscritos: Vila Real de Sabará, agosto de 1777, como método para certificar a autenticidade dos
documentos.
Formato cujos cadernos são obtidos dobrando-se ao meio a folha de impressão, que comporta, portanto, quatro páginas,
duas de cada lado (HOLANDA, 1986, p. 944).
14
15
Escrito na frente e no verso do fólio.
16
Sobre a história e a classificação dos reclamos, cf. Dias (2018).
As assinaturas inseridas no documento, no momento de sua criação, são caracteres que distinguem um original de uma
cópia ou minuta.
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Figura 3: imagem fac-similar do códice aberto nos fólios 2v e 3r
Fonte: IEB-USP
Dentre todos os aspectos codicológicos descritos, destaca-se, neste estudo, as letras/ palavra(s)
que se fazem notar ao final de cada fólio, conhecidas como “reclamos”, e que antecipam as primeiras
letras/palavra(s) do fólio que se inicia.
4. Os reclamos ao longo dos séculos
Os reclamos foram o sistema mais utilizado, até o século XVIII, para assegurar a correta
colocação dos cadernos num códice.
Segundo Jean Vezin (1978, p. 35) o testemunho mais antigo de reclamo é o manuscrito
50 da Biblioteca Municipal de Laon. E.K. Rand (1939) cita um testemunho do século IX
da Abadia de Marmoutiers (Londres, Biblioteca Britânica, ms. Egerton 604). Ao mesmo
período pertencem os reclamos traçados em um manuscrito preservado na catedral de Lion,
mas oriundo de Córdoba. A partir do século X, há muitos exemplares hispânicos portadores
de reclamo, como na França e na Itália. Como os primeiros reclamos franceses se encontram
em livros copiados nas regiões meridionais, considera-se provável a influência ibérica na
aplicação deste sistema de ordenação. No século XIII, o uso do reclamo se generaliza por
toda a Europa18. (Codicologia.atspace/organizacion).
Tradução, pelos autores, de: Según Jean Vezin (1978, p. 35) el testimonio más antiguo de reclamo es el manuscrito
50 de la Biblioteca Muncipal de Laón. E.K. Rand (1939) cita un testimonio del siglo IX procedente de la abadía de
Marmoutiers (Londres, British Library, ms. Egerton 604). A la misma época pertenecen los reclamos trazados en un
manuscrito conservado en la catedral de León, pero oriundo de Córdoba. A partir del siglo X abundan los ejemplares
hispanos portadores de reclamo, lo mismo que en Francia e Italia. Como los primeros reclamos franceses se encuentran
en libros copiados en las regiones meridionales, se considera probable la influencia ibérica en la aplicación de este
sistema de ordenación. En el siglo XIII el uso del reclamo se generaliza por toda Europa. (http://codicologia.atspace.cc/
contenidos/04Organizacion/04-00-Organizacion.html).
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Nessa trajetória de séculos de uso, ganharam versões curiosas, como o registro na vertical e na
diagonal e as decorações variadas, conforme imagens19 reproduzidas nas figuras 4, 5, 6 e 7, agrupadas
no quadro 2, a seguir:
Quadro 2: formatos visuais dos reclamos
Figura 4: reclamo na vertical
Figura 5: reclamo na diagonal
Fonte:ecdotica.hypotheses/reclamos/
BNE, ms 1187, fol. 56v (detalhe)
Fonte:ecdotica.hypotheses/reclamos/BnF, ms.
Esp. 218, fol. 10v (detalhe)
Figura 6: reclamo em figura geométrica
Figura 7: reclamo em decoração elaborada
Fonte: ecdotica.hypotheses/reclamos/BNE, ms.
9219, fol. 12v (detalhe)
Fonte:ecdotica.hypotheses/reclamos/
Biblioteca Bodleian, Canon. Misc.110, c.1400.
Fonte: elaboração dos autores (2023).
O emprego dos reclamos se tornou uma marca cultural, a ponto de ter sido transferido para os
livros impressos, como lembra Houaiss (1983, p. 106), ao explicar que “uma das fases da numeração
de páginas do livro impresso foi a sua completa ausência, de tal modo que o enlace das manchas da
página se fazia pelo reclamo”, procedimento que foi mantido mesmo quando os livros impressos já
tinham começado a receber os números para organizar as páginas. Exemplos dessa cultura escrita são
as gramáticas e ortografias setecentistas, como as de Bluteau (1712), Argote (1725), Feijó (1734) e
Carmelo (1767).
19
Disponíveis em: https://ecdotica.hypotheses.org/tag/reclamos. Acesso em: 18 fev. 2023.
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4.1. Reclamo ou reclame
A palavra “reclamo”, do francês “réclame20”, substantivo originariamente feminino, chegou ao
português, segundo o dicionário eletrônico Houaiss, em 1543, como nome masculino. Em Bluteau
(1720, pp. 152-3), o seu primeiro significado descreve um instrumento de caçador utilizado para
chamar aves, como perdizes, codornizes etc. Em seguida, o autor relaciona, como sentido figurado, “o
mesmo que coisa que chama, que convida, que atrai.” Somente a terceira acepção descreve o reclamo
como “palavra, ou meia palavra, que se deixa perto da margem, ou debaixo da última regra de uma
página, ou coluna, e com a qual se dá princípio à primeira regra da página, ou coluna seguinte.”
Desde a primeira acepção, pode-se estabelecer uma semântica de algo em paralelo, algo igual que se
reproduz.
Mesmo essa definição mais técnica recupera para a palavra “reclamo” o significado de “atrair”,
neste caso, com a finalidade de atrair a atenção para a última palavra do fólio, que será repetida no
fólio seguinte, daí a utilização, por autores como Acioli (2003, p. 9), do nome “chamadeira” para o
reclamo.
Ao longo dos anos, a esses três significados se juntaram outros, descritos nos dicionários
eletrônicos Houaiss e Caldas Aulete, que têm levado em conta a etimologia da palavra francesa
“réclame”, significando “chamada”, como algo que “chama” a atenção: i) anúncio, propaganda; ii)
palavra indicativa de que um ator acabou de falar e o outro deve começar; deixa; iii) peça fixada em
uma embarcação para mudar a direção dos cabos.
Com o significado de propaganda, a palavra “reclamo” é registrada pelos dicionários eletrônicos
Houaiss e Caldas Aulete como diacronismo obsoleto, que caiu em desuso já no século XX. E “reclame”,
forma muito utilizada no Brasil, é dada, pelos dicionários, inclusive pelo Aurélio (1986) impresso,
como galicismo, tanto que os significados da palavra vêm explicados somente no verbete “reclamo”.
Com o objetivo de seguir o critério registrado pelos dicionários referidos, e para evitar a
imprecisão da terminologia codicológica entre pesquisadores no Brasil e em Portugal21, inclusive
porque tem sido frequente o emprego da forma “reclamo” também por autores brasileiros, em
publicações de estudos filológicos, essa foi a forma escolhida neste trabalho para o termo, quando se
refere especificamente à técnica de paginação dos manuscritos para recuperação da leitura.
4.2. Reclamo: a(s) última(s) letra(s)/palavra(s) de um fólio, ou a(s) primeira(s) do fólio
seguinte?
As definições constantes nos manuais de codicologia e nos dicionários não costumam especificar
como se compõe, exatamente, o reclamo: se das letras/palavras registradas ao final do caderno ou do
reclame - nom féminin TYPOGRAPHIE, ANCIEN Mot imprimé au bas d›une page, reproduisant le premier mot de la
page suivante (destiné à faciliter la reliure). (Disponível em: https://dictionnaire.lerobert.com/definition/reclame. Acesso
em: 21 fev. 2023).
20
21
Na Espanha, também se adotou a terminologia “reclamo”.
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
fólio, se das letras/palavras copiadas no início do fólio seguinte, ou se da associação entre os dois
conjuntos de letras/palavras, já que a existência de umas está subordinada à das outras.
Para entender a função dos reclamos, é preciso ter em vista que o recurso associa escrita e leitura.
Pensando no étimo francês de “réclame”, do qual se originou a palavra em português, e que transmite
o significado de “chamadeira” à palavra “reclamo”, então, compreende-se que são as letras/palavras
registradas no fim do fólio que têm a incumbência de chamar a atenção: i) do próprio escrivão, que
deve definir a(s) palavra(s) que compõe(m) o reclamo, escrevê-la(s) uma vez, ditá-la(s) para si mesmo
e reescrevê-la(s) na página seguinte, mesmo que de forma diferente (desenvolvendo abreviaturas, por
exemplo); e ii) do leitor, que pronuncia essa(s) palavra(s) do final do fólio, e, demonstrando fluência,
não a(s) repetirá no fólio seguinte, mesmo em leitura silenciosa. Ao contrário, com tranquilidade,
recuperará o texto a partir da palavra que vem após a repetição do reclamo, já que essa é uma das suas
funções, ou seja, a recuperação, com naturalidade, da leitura.
Como exercício para se compreender o funcionamento dessa técnica, podemos utilizar o
exemplo a seguir, das figuras 8 e 9, e fazer a leitura do excerto, em voz alta, conforme proposto no
quadro 3, adiante:
Figura 8: fólio 1v - reclamo
Figura 9: fólio 2r - repetição
Fonte: IEB-USP
Fonte: IEB-USP
Quadro 3: leitura do reclamo
que já não correspondiam com a
grandeza
grandeza dos tempos passados.
Fonte: elaboração dos autores (2023)
A sinalização de invisibilidade para a palavra “grandeza”, na transcrição da primeira linha do
fólio 2r, tem por objetivo indicar que ela não seria lida novamente, posto que já tinha sido pronunciada
na última linha do fólio 1v. A repetição da palavra se manifesta nesse início do fólio como uma marca
gráfica para assegurar ao leitor que os fólios estavam corretamente sequenciados, que a leitura poderia
prosseguir com adequada desenvoltura, mas não para ser lida.
Essa experiência traz à luz a constatação de que, assim como na leitura das abreviaturas22, que
Para exemplificar a necessidade de uma convenção entre o escriba e o leitor no que se refere à prática da escrita
em determinado gênero textual, Marcotulio, Lopes, Bastos e Oliveira (2018) assinalam que, mesmo um indivíduo
contemporâneo a aparelhos celulares e a textos enviados por mensagens de aplicativos, precisa compartilhar da prática
escrita de determinados grupos para decodificar e compreender abreviaturas como “vc”, “tb”, “td”, “n” (respectivamente:
“você”, “também”, “tudo” e “não”).
22
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Artigo - Filologia Stricto Sensu | Filologia e Linguística Histórica | Philology and Historical Linguistics
Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
exigem do leitor o conhecimento das suas formas de composição, para serem decifradas, também no
uso dos reclamos verifica-se a necessidade de uma convenção compartilhada entre escribas e leitores
para o funcionamento satisfatório dessa técnica. Criar um reclamo não era tarefa tão simples, já que
o escrivão precisava administrar o espaço da mancha de escrita, delimitada por linhas e margens
imaginárias, reservar o local para escrever o reclamo, e usar suas habilidades para decidir como
o escreveria (se por extenso ou de forma abreviada; a palavra inteira ou dividida em sílabas, por
exemplo), levando em conta principalmente a organização do texto no espaço disponível no papel.
Em contrapartida, ao leitor caberia conhecer o funcionamento do reclamo, e decodificá-lo (diante de
estratagemas como a separação de sílabas e o uso de abreviaturas, por exemplo), para fazer a leitura
de forma adequada, fluente, mas sem repeti-lo oralmente na página seguinte.
Se a última letra/palavra pronunciada no final do fólio é a que funciona como um chamariz
para anunciar as primeiras palavras que virão escritas no próximo fólio, como se observa nas figuras
4, 5, 6 e 7, anteriormente apresentadas, então é a essa partícula que se denominará “reclamo”, nesta
pesquisa.
Ainda como argumento para esse pressuposto, constata-se que uma característica estável do
reclamo é a sua localização à direita, na última linha do texto, ou em destaque, isolado em linha
separada, ao final do fólio. Como sói ocorrer, na edição de textos, a partir das normas semidiplomáticas
de transcrição de manuscritos propostas por Toledo Neto (2020, p. 199), recomenda-se demarcar a(s)
letra(s) ou palavra(s) repetida(s) com linhas verticais, para sinalizar a referida |repetição|. Em caso de
presença de reclamos, no texto, as palavras sinalizadas como repetidas são as que aparecem no cimo
do fólio, na primeira linha. Tal solução fortalece o entendimento do “reclamo” como o fragmento
que aparece ao final do fólio, já que no fólio seguinte, logo na primeira linha, o que se mostra é a
|repetição| do reclamo.
A forma proposta por Dias (2018) para a análise dos reclamos também sublinha a(s) última(s)
letra(s) ou palavra(s) do fólio como as “chamadeiras”. Afinal, para nomear as categorias relacionadas
à apresentação dessas palavras no texto, a autora se vale da(s) letra(s) ou palavra(s) que desponta(m)
no final do fólio, e não as que vêm repetidas na primeira linha do próximo fólio.
5. Os reclamos nos manuscritos setecentistas da Vila Real de Sabará
Datados do final do século XVIII, os reclamos presentes nos documentos oficiais e burocráticos
do dia a dia da administração colonial da Vila Real de Sabará já não admitem decorações espaçosas
como as dos documentos do período medieval, mostradas anteriormente nas figuras 4, 5, 6 e 7.
Despojados do rebuscamento empregado no medievo, os reclamos dos manuscritos produzidos na
câmara da Vila Real de Sabará, como se observa nas figuras 10 e 11, a seguir, demonstram sobriedade
e praticidade, traços distintivos do discurso diplomático compatível com a espécie documental que
veicula cada um dos documentos administrativos setecentistas.
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
Figuras 10 e 11: fólios 1r e 1v - reclamo (sinalizado em vermelho)
Fonte: IEB-USP
A maneira como os reclamos são definidos acaba suscitando, no leitor, a falsa ideia de uma
forma fixa tanto para a estrutura quanto para a análise do reclamo: uma palavra ou pedaço de palavra
colocada no fim da página, que se repetia de forma idêntica, no início da página seguinte. Tanto que os
trabalhos filológicos que se voltam para os reclamos resumem-se a identificá-los no texto e listá-los,
sem a preocupação de observar e analisar a sua aparência.
Não é bem assim. O escrivão, ao fazer uso dessa forma de foliação, tem autonomia para aplicar
habilidades gráficas e até estéticas, a fim de ajustar os reclamos às condições de espaço no suporte,
sinalizando, como resultado dessa técnica, a multiplicidade de formatos que eles podem assumir.
Dessa versatilidade funcional parece valer-se a reivindicação dos estudos sobre os reclamos
tanto pela Codicologia como pela Paleografia. Afinal, se definido como uma técnica de paginação,
o reclamo se torna objeto de estudo codicológico; mas quando é analisado como sinal que pode
conferir autenticidade a um documento pela caracterização de elementos da escrita, como o modo
de separação de sílabas, as abreviaturas, e a falta de fronteira entre palavras, por exemplo, então, a
análise se volta para a metodologia paleográfica.
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Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
Não é possível dissociar dos reclamos a sua função original de manter e de possibilitar reconstituir
o ordenamento dos fólios, de grande valia, quanto mais distantes no tempo estiverem os manuscritos,
que podem, no seu processo de transmissão, chegar à atualidade misturados. Porém, quando Dias
(2018), com olhar filológico sobre os reclamos presentes em corpus constituído por manuscritos
representativos dos séculos XVI ao XIX, se propõe a classificar esses pormenores gráficos, a partir de
categorias estabelecidas de acordo com as formas como eles se mostram no texto, cria-se novo método
de estudo que observa os seus padrões de estrutura e de ocorrência no texto, aliando as metodologias
da Codicologia e da Paleografia para se compreender melhor a tradição dessa marca cultural.
Dessa maneira, aceitando a proposta da autora, são utilizados, nesta pesquisa, cujo corpus é
constituído por vinte e dois fólios manuscritos da segunda metade do século XVIII, os subsídios
oferecidos para descrever a estrutura dos reclamos. No quadro 4, a seguir, os reclamos e as repetições
estão relacionados e numerados. Na primeira coluna, indica-se a ordem em que aparecem nos
documentos23; na quarta coluna, estão classificados por tipos, de acordo com a forma como se
apresentam nos fólios (representada nas colunas 2 e 3), a fim de destacar tanto a técnica de foliação24
como as habilidades requeridas pelo escrivão e pelo leitor para a confecção e a compreensão,
respectivamente, desse procedimento.
Espera-se que os resultados desta descrição se juntem a outros tantos referentes a manuscritos
brasileiros de várias centúrias, para serem utilizados pela Codicologia e pela Paleografia, com o
objetivo de compor um quadro que vá delineando a cultura do emprego de reclamos, mais um dos
vestígios a que o filólogo recorre para circunscrever os documentos analisados em seu tempo e lugar.
Quadro 4: reclamos - identificação25 e classificação
nr referência/
Documento
reclamo
Última linha26
repetição
Primeira linha
01
Representação
Cedeo
excedeo
02
Representação
grandeza
grandeza
23
Os documentos estão relacionados na ordem em que aparecem no códice.
24
Numeração de folhas em um manuscrito (CODICOLOGIA, s.v. réclame/garde).
25
As letras em itálico revelam a parte das palavras que foram suprimidas nas abreviaturas.
26
Linha exclusiva para o reclamo.
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Tipos relacionados:
reclamo
>
repetição
segmento de palavra
>
palavra
palavra
>
palavra
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
03
Representação
terra
a terra?
palavra
>
mais de uma palavra
04
Representação
oque
oque
sem fronteira +
abreviatura
>
sem fronteira +
abreviatura
05
Representação
da
da
palavra
>
palavra
06
Carta régia
a Capital
a Capital
07
Termo em junta
de que
de que
08
Termo em junta
o
o
09
Termo em junta
ou
ou
10
Termo em junta
os
os
11
Termo em junta
de
de erro de
12
Termo em junta
res
Ouvidores
13
Termo em junta
zoireiros
Thezoireiros
14
Termo em junta
Real
Real
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mais de uma palavra
>
mais de uma palavra
mais de uma palavra
>
mais de uma palavra
palavra
>
palavra
palavra
>
palavra
palavra
>
palavra
palavra
>
mais de uma palavra
sílaba
>
palavra
abreviatura de segmento
de palavra
>
palavra
palavra
>
palavra
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Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
15
Termo em junta
Villa
Villa
16
Auto de vereação
luntario
luntario
17
Auto de vereação
em pó
em pó
18
Auto de vereação
Sabará
Sabará
abreviatura
>
palavra
segmento de palavra
>
segmento de palavra
mais de uma palavra
>
mais de uma palavra
palavra
>
palavra
Fonte: elaboração dos autores (2023)
A visualização dos reclamos e das repetições, recortados dos textos dos manuscritos e isolados
nas colunas 2 e 3, do quadro 4, permite identificar o seu modo de composição e diferenciar as formas
gráficas registradas no reclamo e na repetição. É possível ainda constatar que os reclamos enlaçam as
manchas escritas de cada documento para indicar a continuação do texto. Só não recebeu o registro
de reclamo, obviamente, o fólio final de cada documento.
5.1. Comentários paleográficos sobre os reclamos nos manuscritos setecentistas da Vila
Real de Sabará
Na maioria das vezes, Custódio dos Anjos Fremes, escrivão da câmara da Vila Real de Sabará,
repete no fólio seguinte formas idênticas às utilizadas no reclamo, como se observa no quadro 5, a
seguir:
Quadro 5: reclamos idênticos à repetição
Documento
Representação
Representação
Representação
Carta Régia
Termo em Junta
Termo em Junta
Termo em Junta
Termo em Junta
Termo em Junta
Auto de Vereação
Auto de Vereação
Auto de Vereação
Reclamo/fólio
Fólio/repetição
grandeza – 1v 2r – grandeza
oque – 2v 3r - oque
da – 3r 3v – da
a Capital – 4r 4v – a Capital
de que – 5r 5v – de que
o – 5v 6r – o
ou – 6r 6v – ou
os – 6v 7r – os
Real – 8v 9r – Real
luntario – 10r 10v – luntario
em pó – 10v 11r – em pó
Sabará – 11r 11v – Sabará
Fonte: elaboração dos autores (2023)
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
A abreviatura “que”, acompanhada do artigo, sem fronteira entre as palavras, é a única que se
manteve reduzida quando repetida no fólio seguinte. Ainda que abreviada, a palavra salienta o sinal
de abreviatura (o til), que avança na margem superior, como se observa na figura 12, a seguir:
Figura 12: sinal abreviativo – fólio 3r.
Fonte: IEB-USP
As demais abreviaturas utilizadas nos reclamos aparecem desenvolvidas na repetição, no início
do fólio seguinte, como se observa no quadro 6:
Quadro 6: Reclamos abreviados
Documento
Reclamo/fólio
Termo em Junta
Fólio/repetição
zr.os – 8r 8v – Thezoireiros
Termo em Junta
Va. – 9r 9v – Villa
Fonte: elaboração os autores (2023)
No fólio 8r, destacado na figura 13, a seguir, nota-se que, para se ajustar à coluna da mancha
escrita, o escrivão manteve a sílaba “The”, da palavra “Thezoireiros”, na mesma linha do texto. E para
seguir o padrão de estrutura monossilábica dos reclamos, fixados na maioria dos fólios do termo em
junta, abreviou o segmento de palavra “zoireiros” como “zr.os”, partícula que vem desacompanhada e
acanhada, na última linha do fólio.
Figura 13: Separação de sílabas e abreviatura – fólio 8r
Fonte: IEB-USP
Enquanto o reclamo é adaptado para se ajustar ao espaço delineado pela mancha escrita, já ao
final do fólio, e aos padrões criados pelo próprio escrivão, a repetição, no fólio seguinte, pode ser
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Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
traçada com folga e com requinte paleográfico favorecidos pelo espaço disponível entre a margem
superior e a primeira linha do fólio, como se observa na figura 14:
Figura 14: repetição - fólio 8v
Fonte: IEB-USP
Em outro trecho, conforme figura 15, o escrivão também precisou utilizar do recurso da
separação de sílabas para manter o texto justificado dentro da linha imaginária que delimita a mancha
escrita – “Ouvido” – e registrar, como reclamo, a sílaba final da palavra – “res”.
Figura 15: separação de sílabas - fólio 7v
Fonte: IEB-USP
No fólio seguinte, novamente, a repetição surge com elegância, em módulo maior, na primeira
linha do fólio, como se nota na figura 16.
Figura 16: repetição – fólio 8r
Fonte: IEB-USP
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
No primeiro fólio da representação, o escrivão precisou separar a sílaba “ex-” e o reclamo foi
formado pelo segmento das duas sílabas finais da palavra – “cedeo”, mas no fólio seguinte, a palavra
foi repetida por inteiro, como demonstrado nas figuras 17 e 18, a seguir, neste início de fólio, sem
muitos contornos:
Figura 17: separação de sílabas – fólio 1r
Fonte: IEB-USP
Figura 18: palavra inteira – fólio 1v
Fonte: IEB-USP
Somente uma vez, como registrado nas figuras 19 e 20, a seguir, o escrivão repete, no início
do fólio, o segmento de palavra “luntario”, no lugar da palavra inteira “voluntário”, como o fez nas
demais ocorrências:
Figura 19: segmento de palavra (reclamo) – fólio 10r
Fonte: IEB-USP
Figura 20: segmento de palavra (repetição) – fólio 10v
Fonte: IEB-USP
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Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
Na representação, na carta régia e no auto de vereação, os reclamos apresentam mais de uma sílaba,
e até mais de uma palavra. Nos dez fólios do termo em junta, entretanto, a maior parte dos reclamos se
constitui de monossílabos. Somente duas ocorrências de mais de uma palavra e palavra de mais de uma
sílaba apareceram como reclamos nesse documento: “de que” (dois monossílabos) e “Real”.
Um detalhe do ponto de vista da leitura do reclamo chama a atenção no fólio 2r, como se
observa nas figuras 21 e 22, a seguir. Para manter uma boa fluência, já que o ponto de interrogação,
que exige entonação apropriada, não veio registrado na “chamadeira”, na última linha do fólio 2r, da
representação, mas somente após a repetição da palavra “terra”, no fólio seguinte, o leitor precisaria
ter olhado antes para o início do fólio 2v.
Figura 21: fólio 2r - reclamo
Figura 22: fólio 2v - repetição
Fonte: IEB-USP
Fonte: IEB-USP
Dentre as características paleográficas registradas nos reclamos, pode-se distinguir: i) a baixa
frequência de abreviaturas, em relação a manuscritos de séculos anteriores; e ii) as formas utilizadas
para se abreviar27 as palavras, conforme demonstra-se no quadro 7, a seguir. Ambas são indicativas
para se circunscrever no século XVIII os manuscritos analisados neste trabalho.
Quadro 7: classificação das abreviaturas
Abreviatura
Tipo
Suspensão28
Letra sobrescrita29
Sinal abreviativo
ʼ
e
⸫
.
As abreviaturas são formadas por uma parte alfabética, um significante linguístico portador de conteúdo semântico, e
por um significante que assinala a condição de palavra abreviada, um sinal abreviativo em forma de “ponto”, “til”, ou
“apóstrofo”, que ora funciona como indicador do início da abreviatura, ora como substituto da letra suprimida.
27
28
Escreve-se somente a primeira letra da palavra, suprimindo-se o seu final.
Algumas letras do meio da palavra são suprimidas e as últimas letras são registradas em tamanho um pouco menor do
que as demais, e ligeiramente acima da linha, após ou sobre a última letra representada na palavra.
29
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
.
Letra sobrescrita
Fonte: elaboração dos autores (2023)
A forma como o texto escrito está disposto no papel, ressaltando as manchas escritas, onde se
localizam os reclamos dos manuscritos setecentistas escolhidos para este estudo, mostra uma prática
comum nas sedes administrativas brasileiras no século XVIII. As colunas formadas pelos espaços
em branco eram reservadas para que a sede administrativa à qual se destinavam os documentos
registrassem o devido despacho, deferindo ou indeferindo o pedido ou solicitação. Esse hábito de
escrita também pode ser analisado como uma evidência de autenticidade da localização registrada no
manuscrito, ou seja, na câmara da Vila Real de Sabará, capitania de Minas Gerais.
Assim, esta nova forma de se investigar os reclamos contribui para esmiuçar a análise dos
elementos codicológicos e paleográficos com os quais se compreende de maneira mais clara a própria
escrita e a sua variação temporal, espacial e social.
5.2. Análise da frequência dos reclamos nos manuscritos setecentistas da Vila Real de Sabará
A interpretação da análise feita sobre os reclamos dos manuscritos de Sabará revela que o tipo
mais utilizado nos vinte e dois fólios que compõem o referido códice é o constituído por palavras
inteiras, ainda que monossilábicas, como demonstrado na tabela 1, a seguir.
Tabela 1: frequência de reclamos por tipo
Ordem
1º.
2º.
3º.
4º.
Tipo
Palavra
Mais de uma palavra
Segmento de palavra
Abreviatura
Abrev. de segmento de palavra
Sem fronteira entre palavras
Sílaba
TOTAL
Número ocorrências
9
3
2
1
1
1
1
18
Fonte: elaboração dos autores (2023)
Embora a amostra deste estudo seja insignificante perto dos corpora disponíveis para pesquisas,
e mesmo do corpus utilizado por Dias (2018), apenas a título de comparação com o estudo realizado
pela autora, observamos que o tipo de reclamo mais utilizado pelo escrivão de Sabará, no ano de
1777, foi a palavra inteira; em segundo lugar, o conjunto de duas ou mais palavras; em terceiro, o
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Artigo - Filologia Stricto Sensu | Filologia e Linguística Histórica | Philology and Historical Linguistics
Reclamo: entre a Codicologia e a Paleografia
segmento de palavra; e em quarto, as categorias “abreviatura” (de palavra e de segmento de palavra),
“sílaba” e “palavras sem fronteira entre si”. A necessidade de inclusão da categoria “abreviatura de
segmento de palavra”, na descrição dos manuscritos deste estudo, evidencia a variedade de arranjos
possíveis para a formação dos reclamos.
No cômputo geral, levando em conta os sete documentos analisados no livro De uma página
a outra, tanto os manuscritos como os impressos, Dias (2018) também se depara com a categoria
“palavra” como o tipo mais frequente de reclamo encontrado, conforme tabela 2, a seguir, cuja lista,
neste estudo, conservou até o 6º. critério de classificação:
Tabela 2: ordem de frequência dos tipos de reclames nos sete documentos analisados por Dias (2018)
Ordem
Tipo
1º.
PALAVRA
2º.
SÍLABA
3º.
SEGMENTO DE PALAVRA
4º.
ABREVIATURA
5º.
SEM FRONTEIRA
6º.
MAIS DE UMA PALAVRA
Fonte: Dias (2018, p. 119)
Portanto, podemos agregar, a esse total, o predomínio da categoria “palavra” nas ocorrências
de reclamos destacadas nos manuscritos setecentistas da Vila Real de Sabará, como uma contribuição
parcial para a referida estimativa. A regularidade, nessas duas amostras de análise, do emprego da
categoria “palavra” para a formação dos reclamos, pode ser utilizada como conjectura inicial, a ser
confirmada quando os dados forem juntados a resultados de pesquisas mais volumosas e consistentes,
para hipóteses como, por exemplo, a preferência dos escribas pela unidade linguística, que aparece
completa no reclamo, como forma de contribuir para uma maior fluidez da leitura.
Considerações finais
Para a análise dos reclamos identificados no códice setecentista da Vila Real de Sabará, escolhido
para este estudo, aplicam-se os preceitos da Codicologia, enquanto disciplina que se volta para os
aspectos da composição e organização dos cadernos, para a reconstituição da fase de produção de
códices manuscritos. Além disso, com o objetivo de se agrupar os reclamos por tipos, recorre-se aos
procedimentos da análise paleográfica, para se estabelecer padrões de estrutura identificáveis nesses
registros escritos e para se identificar esses padrões nas escritas do século XVIII.
No estudo de Dias (2018), a categoria “palavra” foi a mais utilizada em um corpus que
reuniu documentos impressos e manuscritos30 datados dos séculos XVI ao XIX. Nos documentos
30
Aproximadamente 762 páginas impressas e 156 fólios manuscritos.
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Marcelo Módolo e Maria de Fátima Nunes Madeira
diplomáticos setecentistas da Vila Real de Sabará, preservados no IEB-USP, o escrivão também
priorizou a categoria “palavra” para formar os reclamos nos vinte e dois fólios manuscritos.
O que essa frequência nos tipos de reclamos identificado nos manuscritos setecentistas da
capitania de Minas Gerais pode evidenciar sobre a cultura do emprego de reclamos, além de sua
função primordial de organizar os cadernos e fólios? Em primeiro lugar, nota-se o empenho do
escrivão para ajustar a última palavra do fólio ao final da coluna demarcada pela mancha escrita. Para
lidar com a ocupação gráfica no espaço delimitado para o reclamo, o escrivão utiliza habilidades que
demonstram grau de instrução compatível com o exigido para o cargo que ocupa na câmara da Vila
Real de Sabará, práticas verificadas em manuscritos coetâneos.
Entretanto, como a preferência pela categoria “palavra” foi igualmente constatada nos estudos
de Dias (2018), que selecionou um corpus mais volumoso e representativo de vários séculos, pode-se
conjecturar sobre a prioridade dada pelos escribas à fluidez da leitura, para o perfeito enlace do texto
entre um fólio e outro. Neste caso, a análise do reclamo recai sobre o desvelo do escrivão com o leitor.
Essa tendência para o emprego de unidades linguísticas nos reclamos, analisada como
manifestação cultural de escribas, scriptoria, ou sedes administrativas, além de contextualizar os
documentos no tempo e no espaço, abre janelas para a investigação sobre a sua função de descomplicar
a leitura dos manuscritos, ainda pouco ou quase nada explorada.
Contudo, para se fortalecer essa argumentação, é necessário juntar resultados de estudos de
corpora expressivos. Para tanto, valoriza-se a introdução de diferentes formas de se investigar a
materialidade dos manuscritos, encadernados ou avulsos, pelas metodologias da Codicologia e da
Paleografia.
Enfim, pode-se concluir que a necessidade de associação de dados abarcados por análises
codicológicas e paleográficas, para uma interpretação mais precisa dos resultados parciais obtidos,
justifica a demanda e as vantagens da formação de banco de dados específico31 que torne possível aos
pesquisadores inserir, quantificar e comparar as informações já tratadas em trabalhos filológicos, para
complementar o conhecimento sobre a tradição manuscrita brasileira.
Referências
ACIOLI, Vera Lúcia Costa. A escrita no Brasil colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos.
Recife: UFPe: Massangana, 1994.
ACKEL, Antonio; MADEIRA, Maria de Fátima Nunes. Os caminhos da codicologia. Todas as Letras –
Revista de Língua e Literatura, São Paulo, v. 23, n. 1, pp. 1-15, jan./abr. 2021. Disponível em: https://doi.
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