A CONSCIÊNCIA FELIZ COMO UMA PATOLOGIA SOCIAL1
Giovane Rodrigues Jardim
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Rio Grande do Sul (IFRS) – campus Erechim
[email protected]
Introdução
“[...] as pessoas são levadas a ver no aparato produtivo o agente eficaz de
pensamento e ação ao qual se devem render seu pensamento e ação pessoais”.
(MARCUSE, 2015, p.103)
A necessidade de compreender a adesão a regimes totalitários por um lado, e a suspeita
de um mal-estar da civilização por outro, possibilitou a primeira geração da Teoria Crítica da
Sociedade um olhar interdisciplinar mais universalista para a questão de uma repressão não
necessária para a vida em sociedade do que fizeram, por sua vez, Hegel, Marx e Nietzsche.
Embora o diagnóstico de não autonomia permaneça por vezes ainda relacionados a questões
de ordem economia e ou de modos de produção, está presente a identificação de que a
totalidade estabelecida, também enquanto racionalidade, não possibilita a fluidez e o
desenvolvimento das condições e possibilidades humanas. É nesse sentido que podemos
entender a consciência feliz como a ideologia da sociedade industrial avançada onde não há
espaço para o pensar e o agir, pois não são possíveis a singularidade e a pluralidade humana.
Esta comunicação apresenta parte do projeto de tese intitulado Condições de
possibilidade do perdão em âmbito público: um estudo dos Museus de Memória como vertigem
da consciência feliz, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e
Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Importa-nos no presente
trabalho delinear o conceito de consciência feliz (happy consciousness) cunhado por Herbert
Marcuse (1898-1979) na obra O homem Unidimensional (1964/2015), e que designa uma
atrofia dos órgãos mentais que impede a percepção de contradições e alternativas, como uma
patologia social nos termos de Axel Honneth (1949-) na obra La sociedad del desprecio (2011).
A consciência feliz pode assim ser pensada como uma patologia social que impossibilita a
autonomia e a autorealização nas relações de reconhecimento, bem como, de enfraquecimento
das condições de resistência frente as novas experiências de desrespeito.
1
O presente trabalho está sendo realizado com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio Grande do Sul (IFRS).
1. Fundamentação teórica
Consciência (em latim: conscientia; em grego: ODveíôricHÇ) é um dos termos mais
referidos no pensamento contemporâneo nas mais diversas áreas do conhecimento científico,
por vezes empregada como se fosse o próprio sistema consciente, ou ainda como sinônima de
moralidade e de conhecimento. Etimologicamente deriva do termo latino consciens que
enquanto particípio presente pode ser entendido como estar ciente, ou ainda, da junção das
palavras latinas conscius (que sabe o que deve fazer) e sciens (conhecimento que deriva da
leitura, estudo, pesquisa). Como um conceito não linear e múltiplo, a consciência tem sido
objeto de estudo da psicologia, da sociologia, da medicina e talvez hoje ainda mais, da
neurociência, mas não menos do campo das reflexões filosóficas que procuram entender a ação
humana e o exercício de suas condições e possibilidades.
Nesse sentido, seja na filosofia clássica grega, seja na filosofia moderna e
contemporânea, muito se há cercado sobre sua compreensão, como podem exemplificar os
esforços da Teoria Crítica da Sociedade. Para nos acercamos mais especificamente ao conceito
de “consciência feliz” tal como nos propomos, importa situar alguns pensadores a partir dos
quais o mesmo pode ser pensado e cuja elaboração contribui para o seu entendimento no âmbito
de uma patologia social. São eles: Freud, Nietzsche, Marx e Hegel (propositalmente colocados
em ordem cronológica inversa).
Ao descrever a tríade do aparelho psíquico como ID, EGO e SUPEREGO, Freud admite
a possibilidade de associação da consciência com o SUPEREGO (Überich), ou seja, interliga
moralidade e sociabilidade. Desta forma, na metapsicologia presente em o Mal-Estar da
Civilização (2010), Freud associa a consciência e o sentimento de culpa como princípio de
realidade. Nietzsche, em Genealogia da Moral (2009), nomeia como “má consciência”
(schlechtes Gewissen) esta introjeção da culpa como consciência, autocensura, como uma
profunda doença que o homem contraiu. Marx já havia apontado para a consciência como um
produto social. Em Ideologia Alemã (2007), de Marx e Engels, encontramos a consciência no
campo da sociabilidade e da realidade concreta, mas também da possibilidade de sua alienação,
ou seja, como “falsa consciência”. Nesse sentido, para Marx quando não há objetividade
humana e há o alheamento do produto do trabalho, fetichização e alienação, a ideologia é uma
“falsa consciência” da realidade. A “má consciência” associada ao sentimento de culpa como
central da tradição cristã, como delineou Nietzsche, “má consciência” no âmbito de consciência
de culpa como medo social também para Freud, falsa consciência da realidade para Marx, foi
retomada por Herbert Marcuse em Eros e Civilização (1999) nos termos hegelianos de
“consciência infeliz”, agora novamente, “consciência feliz”.
Hegel na Fenomenologia do Espírito (2002), insere o conceito de consciência infeliz
(UnglücklichesBewusstsein) a partir da abordagem da consciência em dois planos; o primeiro
da consciência de si – cisão do eu nele mesmo; e segundo no plano histórico, na passagem do
cidadão antigo ao despotismo romano, do paganismo ao cristianismo. Para Hegel, a consciência
do cidadão grego era uma consciência feliz, mas ingênua, pois tratava-se da identificação
imediata com o todo, negação da singularidade; a consciência infeliz, do súdito cristão, por sua
vez, reúne o simples pensar e a singularidade. O conceito de consciência infeliz está no cerne
da elaboração de Hegel, e assim aparece como “o destino trágico da certeza de si mesmo, que
deve ser em si e para si. É a consciência da perda de toda a essencialidade nessa certeza de si;
e justamente da perda desse saber de si - da substância como do Si” (HEGEL, §753, p. 504,
2002). Assim, se consciência infeliz tal como presente na Fenomenologia do Espírito de Hegel
se refere a uma consciência contraditória, não unidimensional, que mantém a tensão entre o
particular e a totalidade, o sofrimento infligido pela vida em sociedade nos termos da
metapsicologia de Freud, a consciência feliz para Marcuse se trata de um apaziguamento desta
infelicidade como reforço de adesão ao todo.
2. Resultados alcançados
O conceito de consciência feliz está situado em um contexto histórico específico e que
reúne as reflexões que procuram entender a adesão a regimes totalitários e que situa o empenho
da Teoria Crítica da Sociedade na primeira metade do século XX, mas também, o momento de
reconstrução alemã com o termino do regime nazista. Assim, temos nas décadas de 50 e 60 a
retomada conceitual da primeira geração da Escola de Frankfurt sobre novos paradigmas
sociais e políticos, e desta forma, o questionamento do projeto de elaboração do passado como
forma de riscá-lo da memória por meio de um esquecimento organizado. Nesse contexto,
algumas questões ocupam o âmbito das discussões, como por exemplo, a temática da culpa e
da responsabilidade, sejam elas individuais ou coletivas.
A obra Eros e Civilização em 1955 representa um otimismo de Marcuse quanto as
realizações da sociedade industrial avançada, retificado pelo seu prefácio Político de 1966 a
segunda edição em que afirmar ter “[negligenciado ou minimizado] o fato desse fundamento
lógico obsoleto ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais
eficientes de controle social” (MARCUSE, 1999, p.13). Por sua vez, Homem Unidimensional
de 1964 não é só o desenvolvimento do pensamento de Marcuse, como também é seu momento
mais pessimista, ou diríamos, negativo. Enquanto uma patologia social temos por um lado a
introjeção da culpa como mecanismo de contenção do indivíduo, tal como está presente na
perspectiva de má consciência e mesmo de consciência infeliz, e por outro, a consciência feliz
como domínio de uma necessidade geral frente a qual não há culpa alguma.
O período posterior destes escritos não foi de entusiasmos ou de realizações humanas
para o mundo como muitos imaginavam após o fim do regime nazista e mesmo, após o
conhecimento sobre as atrocidades cometidas e a barbárie infligida ao humano. Os países da
américa latina, por exemplo, enfrentaram sucessivos golpes de Estado e a instauração de
regimes de exceção, de ditaduras de segurança nacional, de terrorismo de Estado com prisões
ilegais, torturas, assassinatos, sequestros e desaparecimentos de militantes e de seus familiares,
inclusive de crianças que até hoje não se conhece o paradeiro. Enquanto regimes de exceção,
tiveram seu fim em diferentes momentos, mas sobretudo nos anos de 1980-1990. Entretanto, o
fim enquanto regime instaurado não significa que não continuem presentes ainda hoje em suas
sociedades, sobretudo pela sua eficiência e capacidade de despolitização. Poderíamos dizer que
chegaram ao fim, mas não sem antes, alcançarem alguns de seus objetivos, como o domínio do
âmbito público por questões privadas, a naturalização de novas formas de controle social, o
fechamento do universo público, a dessublimação repressiva, e o fechamento do universo do
discurso.
Em analogia as preocupações e ao contexto histórico em que surge o conceito de
consciência feliz, podemos utilizá-lo para compreender o atual apaziguamento e ou apatia da
sociedade frente ao retorno de movimentos totalitários e da justificação da dor e do sofrimento
infligido pelo Estado, bem como, da retórica de culpa coletiva e de não responsabilidade com
o passado como seus sintomas, ou seja, do conformismo e omissão com a realidade em face da
dor e do sofrimento humano. A morte de mais de 600 mil pessoas em decorrência das
negligencias na saúde pública brasileira e do obscurantismo que norteou as ações do governo
no enfrentamento da Pandemia de Covid-19, ou ainda, as multidões que retornam a situação
de pobreza no país, ou mesmo as milhares de pessoas que sem ter outros recursos estão a ocupar
as ruas, praças e viadutos das cidades como sua moradia, parecem pouco modificar as escolhas
ou mesmo a participação política de uma sociedade que encontra no consumo de bens
supérfluos a sua realização, e que para manter seu poder de compra, pouco se questiona sobre
suas opções e concepções, sobre a política. Assim, frente a dor e ao sofrimento humano, a
consciência feliz pode ser entendida como uma camada estereotipada que se coloca entre os
sujeitos e sua experiência com os outros e destes com o mundo, diagnóstico de um estranho
bem-estar e pertencimento de homens a e mulheres em uma realidade desumana e
desumanizadora. A consciência feliz pode assim ser pensada como uma patologia social que
impossibilita a autonomia e a autorealização nas relações de reconhecimento, bem como, de
enfraquecimento das condições de resistência frente as novas experiências de desrespeito.
Conclusões
A consciência feliz como uma patologia social situa o diagnóstico filosófico social, e
antropológico, de Marcuse que no âmago do empenho da Teoria Crítica da Sociedade procura
não só compreender a ideologia da sociedade industrial, mas também, questioná-la. Nesse
sentido, é necessário um movimento dialético negativo, ou seja, ao apontar de forma
diagnóstica a consciência feliz como uma falha ou falta, como não consciência por exemplo,
se está definindo de certa forma o que seria uma certa normalidade e, nesse caso, a consciência
infeliz. Então, a designação da consciência feliz como “uma atrofia dos órgãos mentais que
impede a percepção de contradições e alternativas” pressupõe que, não atrofiados, os órgãos
mentais são capazes de perceber as contradições e as alternativas. E nessa perspectiva está
Honneth (2011, p.114) para o qual a “patologia representa um desenvolvimento orgânico
deficiente que deve ser desvelado ou determinado mediante o diagnóstico”. A consciência feliz
é assim a “cura”, pela sociedade estabelecida, da insatisfação que permite o “descontentamento
na civilização”, e é essa cura que a transforma em fonte de vigor e de coesão para a ordem
social que impossibilita a autorealização e as relações de reconhecimento. Mas no diagnóstico
de Marcuse há também o seu prognóstico, uma vez que identifica a consciência feliz como
“uma delgada superfície sobre o temor, a decepção, o desgosto”, ou seja, de que há nas relações
de desrespeito social uma infelicidade penetrante que torna esta identificação do indivíduo a
totalidade bastante abalável. Mas é importante notar que o prognóstico não é pela cura desta
infelicidade, pelo contrário, pois “esta infelicidade se presta facilmente à mobilização política;
sem lugar para o desenvolvimento consciente, ela se torna o reservatório instintivo para um
novo estilo fascista de vida e morte” (MARCUSE, 2015, p.101).
Referências
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização – livro oito. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1974.
HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes/USF, 2002.
HONNETH, Axel. La sociedad del desprecio. Madrid: Trotta, 2011.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação Filosófica do Pensamento de
Freud. 8 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial
avançada. São Paulo: Edipro, 2015.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Rubens Enderle, Nélio
Schneider e Luciano Cavini Martorano. Texto final Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. Tradução, notas e posfácio:
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.