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A Consciência Feliz Como Uma Patologia Social

2023

A CONSCIÊNCIA FELIZ COMO UMA PATOLOGIA SOCIAL1 Giovane Rodrigues Jardim Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) – campus Erechim [email protected] Introdução “[...] as pessoas são levadas a ver no aparato produtivo o agente eficaz de pensamento e ação ao qual se devem render seu pensamento e ação pessoais”. (MARCUSE, 2015, p.103) A necessidade de compreender a adesão a regimes totalitários por um lado, e a suspeita de um mal-estar da civilização por outro, possibilitou a primeira geração da Teoria Crítica da Sociedade um olhar interdisciplinar mais universalista para a questão de uma repressão não necessária para a vida em sociedade do que fizeram, por sua vez, Hegel, Marx e Nietzsche. Embora o diagnóstico de não autonomia permaneça por vezes ainda relacionados a questões de ordem economia e ou de modos de produção, está presente a identificação de que a totalidade estabelecida, também enquanto racionalidade, não possibilita a fluidez e o desenvolvimento das condições e possibilidades humanas. É nesse sentido que podemos entender a consciência feliz como a ideologia da sociedade industrial avançada onde não há espaço para o pensar e o agir, pois não são possíveis a singularidade e a pluralidade humana. Esta comunicação apresenta parte do projeto de tese intitulado Condições de possibilidade do perdão em âmbito público: um estudo dos Museus de Memória como vertigem da consciência feliz, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Importa-nos no presente trabalho delinear o conceito de consciência feliz (happy consciousness) cunhado por Herbert Marcuse (1898-1979) na obra O homem Unidimensional (1964/2015), e que designa uma atrofia dos órgãos mentais que impede a percepção de contradições e alternativas, como uma patologia social nos termos de Axel Honneth (1949-) na obra La sociedad del desprecio (2011). A consciência feliz pode assim ser pensada como uma patologia social que impossibilita a autonomia e a autorealização nas relações de reconhecimento, bem como, de enfraquecimento das condições de resistência frente as novas experiências de desrespeito. 1 O presente trabalho está sendo realizado com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). 1. Fundamentação teórica Consciência (em latim: conscientia; em grego: ODveíôricHÇ) é um dos termos mais referidos no pensamento contemporâneo nas mais diversas áreas do conhecimento científico, por vezes empregada como se fosse o próprio sistema consciente, ou ainda como sinônima de moralidade e de conhecimento. Etimologicamente deriva do termo latino consciens que enquanto particípio presente pode ser entendido como estar ciente, ou ainda, da junção das palavras latinas conscius (que sabe o que deve fazer) e sciens (conhecimento que deriva da leitura, estudo, pesquisa). Como um conceito não linear e múltiplo, a consciência tem sido objeto de estudo da psicologia, da sociologia, da medicina e talvez hoje ainda mais, da neurociência, mas não menos do campo das reflexões filosóficas que procuram entender a ação humana e o exercício de suas condições e possibilidades. Nesse sentido, seja na filosofia clássica grega, seja na filosofia moderna e contemporânea, muito se há cercado sobre sua compreensão, como podem exemplificar os esforços da Teoria Crítica da Sociedade. Para nos acercamos mais especificamente ao conceito de “consciência feliz” tal como nos propomos, importa situar alguns pensadores a partir dos quais o mesmo pode ser pensado e cuja elaboração contribui para o seu entendimento no âmbito de uma patologia social. São eles: Freud, Nietzsche, Marx e Hegel (propositalmente colocados em ordem cronológica inversa). Ao descrever a tríade do aparelho psíquico como ID, EGO e SUPEREGO, Freud admite a possibilidade de associação da consciência com o SUPEREGO (Überich), ou seja, interliga moralidade e sociabilidade. Desta forma, na metapsicologia presente em o Mal-Estar da Civilização (2010), Freud associa a consciência e o sentimento de culpa como princípio de realidade. Nietzsche, em Genealogia da Moral (2009), nomeia como “má consciência” (schlechtes Gewissen) esta introjeção da culpa como consciência, autocensura, como uma profunda doença que o homem contraiu. Marx já havia apontado para a consciência como um produto social. Em Ideologia Alemã (2007), de Marx e Engels, encontramos a consciência no campo da sociabilidade e da realidade concreta, mas também da possibilidade de sua alienação, ou seja, como “falsa consciência”. Nesse sentido, para Marx quando não há objetividade humana e há o alheamento do produto do trabalho, fetichização e alienação, a ideologia é uma “falsa consciência” da realidade. A “má consciência” associada ao sentimento de culpa como central da tradição cristã, como delineou Nietzsche, “má consciência” no âmbito de consciência de culpa como medo social também para Freud, falsa consciência da realidade para Marx, foi retomada por Herbert Marcuse em Eros e Civilização (1999) nos termos hegelianos de “consciência infeliz”, agora novamente, “consciência feliz”. Hegel na Fenomenologia do Espírito (2002), insere o conceito de consciência infeliz (UnglücklichesBewusstsein) a partir da abordagem da consciência em dois planos; o primeiro da consciência de si – cisão do eu nele mesmo; e segundo no plano histórico, na passagem do cidadão antigo ao despotismo romano, do paganismo ao cristianismo. Para Hegel, a consciência do cidadão grego era uma consciência feliz, mas ingênua, pois tratava-se da identificação imediata com o todo, negação da singularidade; a consciência infeliz, do súdito cristão, por sua vez, reúne o simples pensar e a singularidade. O conceito de consciência infeliz está no cerne da elaboração de Hegel, e assim aparece como “o destino trágico da certeza de si mesmo, que deve ser em si e para si. É a consciência da perda de toda a essencialidade nessa certeza de si; e justamente da perda desse saber de si - da substância como do Si” (HEGEL, §753, p. 504, 2002). Assim, se consciência infeliz tal como presente na Fenomenologia do Espírito de Hegel se refere a uma consciência contraditória, não unidimensional, que mantém a tensão entre o particular e a totalidade, o sofrimento infligido pela vida em sociedade nos termos da metapsicologia de Freud, a consciência feliz para Marcuse se trata de um apaziguamento desta infelicidade como reforço de adesão ao todo. 2. Resultados alcançados O conceito de consciência feliz está situado em um contexto histórico específico e que reúne as reflexões que procuram entender a adesão a regimes totalitários e que situa o empenho da Teoria Crítica da Sociedade na primeira metade do século XX, mas também, o momento de reconstrução alemã com o termino do regime nazista. Assim, temos nas décadas de 50 e 60 a retomada conceitual da primeira geração da Escola de Frankfurt sobre novos paradigmas sociais e políticos, e desta forma, o questionamento do projeto de elaboração do passado como forma de riscá-lo da memória por meio de um esquecimento organizado. Nesse contexto, algumas questões ocupam o âmbito das discussões, como por exemplo, a temática da culpa e da responsabilidade, sejam elas individuais ou coletivas. A obra Eros e Civilização em 1955 representa um otimismo de Marcuse quanto as realizações da sociedade industrial avançada, retificado pelo seu prefácio Político de 1966 a segunda edição em que afirmar ter “[negligenciado ou minimizado] o fato desse fundamento lógico obsoleto ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais eficientes de controle social” (MARCUSE, 1999, p.13). Por sua vez, Homem Unidimensional de 1964 não é só o desenvolvimento do pensamento de Marcuse, como também é seu momento mais pessimista, ou diríamos, negativo. Enquanto uma patologia social temos por um lado a introjeção da culpa como mecanismo de contenção do indivíduo, tal como está presente na perspectiva de má consciência e mesmo de consciência infeliz, e por outro, a consciência feliz como domínio de uma necessidade geral frente a qual não há culpa alguma. O período posterior destes escritos não foi de entusiasmos ou de realizações humanas para o mundo como muitos imaginavam após o fim do regime nazista e mesmo, após o conhecimento sobre as atrocidades cometidas e a barbárie infligida ao humano. Os países da américa latina, por exemplo, enfrentaram sucessivos golpes de Estado e a instauração de regimes de exceção, de ditaduras de segurança nacional, de terrorismo de Estado com prisões ilegais, torturas, assassinatos, sequestros e desaparecimentos de militantes e de seus familiares, inclusive de crianças que até hoje não se conhece o paradeiro. Enquanto regimes de exceção, tiveram seu fim em diferentes momentos, mas sobretudo nos anos de 1980-1990. Entretanto, o fim enquanto regime instaurado não significa que não continuem presentes ainda hoje em suas sociedades, sobretudo pela sua eficiência e capacidade de despolitização. Poderíamos dizer que chegaram ao fim, mas não sem antes, alcançarem alguns de seus objetivos, como o domínio do âmbito público por questões privadas, a naturalização de novas formas de controle social, o fechamento do universo público, a dessublimação repressiva, e o fechamento do universo do discurso. Em analogia as preocupações e ao contexto histórico em que surge o conceito de consciência feliz, podemos utilizá-lo para compreender o atual apaziguamento e ou apatia da sociedade frente ao retorno de movimentos totalitários e da justificação da dor e do sofrimento infligido pelo Estado, bem como, da retórica de culpa coletiva e de não responsabilidade com o passado como seus sintomas, ou seja, do conformismo e omissão com a realidade em face da dor e do sofrimento humano. A morte de mais de 600 mil pessoas em decorrência das negligencias na saúde pública brasileira e do obscurantismo que norteou as ações do governo no enfrentamento da Pandemia de Covid-19, ou ainda, as multidões que retornam a situação de pobreza no país, ou mesmo as milhares de pessoas que sem ter outros recursos estão a ocupar as ruas, praças e viadutos das cidades como sua moradia, parecem pouco modificar as escolhas ou mesmo a participação política de uma sociedade que encontra no consumo de bens supérfluos a sua realização, e que para manter seu poder de compra, pouco se questiona sobre suas opções e concepções, sobre a política. Assim, frente a dor e ao sofrimento humano, a consciência feliz pode ser entendida como uma camada estereotipada que se coloca entre os sujeitos e sua experiência com os outros e destes com o mundo, diagnóstico de um estranho bem-estar e pertencimento de homens a e mulheres em uma realidade desumana e desumanizadora. A consciência feliz pode assim ser pensada como uma patologia social que impossibilita a autonomia e a autorealização nas relações de reconhecimento, bem como, de enfraquecimento das condições de resistência frente as novas experiências de desrespeito. Conclusões A consciência feliz como uma patologia social situa o diagnóstico filosófico social, e antropológico, de Marcuse que no âmago do empenho da Teoria Crítica da Sociedade procura não só compreender a ideologia da sociedade industrial, mas também, questioná-la. Nesse sentido, é necessário um movimento dialético negativo, ou seja, ao apontar de forma diagnóstica a consciência feliz como uma falha ou falta, como não consciência por exemplo, se está definindo de certa forma o que seria uma certa normalidade e, nesse caso, a consciência infeliz. Então, a designação da consciência feliz como “uma atrofia dos órgãos mentais que impede a percepção de contradições e alternativas” pressupõe que, não atrofiados, os órgãos mentais são capazes de perceber as contradições e as alternativas. E nessa perspectiva está Honneth (2011, p.114) para o qual a “patologia representa um desenvolvimento orgânico deficiente que deve ser desvelado ou determinado mediante o diagnóstico”. A consciência feliz é assim a “cura”, pela sociedade estabelecida, da insatisfação que permite o “descontentamento na civilização”, e é essa cura que a transforma em fonte de vigor e de coesão para a ordem social que impossibilita a autorealização e as relações de reconhecimento. Mas no diagnóstico de Marcuse há também o seu prognóstico, uma vez que identifica a consciência feliz como “uma delgada superfície sobre o temor, a decepção, o desgosto”, ou seja, de que há nas relações de desrespeito social uma infelicidade penetrante que torna esta identificação do indivíduo a totalidade bastante abalável. Mas é importante notar que o prognóstico não é pela cura desta infelicidade, pelo contrário, pois “esta infelicidade se presta facilmente à mobilização política; sem lugar para o desenvolvimento consciente, ela se torna o reservatório instintivo para um novo estilo fascista de vida e morte” (MARCUSE, 2015, p.101). Referências FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização – livro oito. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974. HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes/USF, 2002. HONNETH, Axel. La sociedad del desprecio. Madrid: Trotta, 2011. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999. MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. Texto final Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: Uma polêmica. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.