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Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi

2024, Opera Mundi

Pode ser que entre o genocídio israelense em Gaza e a invasão de território russo por tropas ucranianas e da OTAN exista uma profunda conexão estratégica? O golpe colorido em Bangladesh e o aumento das tensões no Indo-Pacífico guardam alguma relação com tudo isso? As notícias, como apresentadas pela mídia corporativa, parecem fenômenos independentes, provocados por regimes autoritários ou questões territoriais pontuais. Mas talvez sejam sintomas de uma fratura sistêmica mais profunda que perfila o confronto entre um sistema decadente e outro emergente. Qual a relação da guerra na Ucrânia com o genocídio de Israel sobre a Palestina? Defendemos que é a procura desesperada pela internacionalização dos conflitos

02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi Segunda-feira, 2 de setembro de 2024 APOIE Opinião Kursk, Gaza e o Armagedom Qual a relação da guerra na Ucrânia com o genocídio de Israel sobre a Palestina? A procura desesperada pela internacionalização dos conflitos Héctor Luis Saint-Pierre Especial para Opera Mundi São Paulo (SP) 2 de setembro de 2024, às 12:53 Pode ser que entre o genocídio israelense em Gaza e a invasão de território russo por tropas ucranianas e da OTAN exista uma profunda conexão estratégica? O golpe colorido em Bangladesh e o aumento das tensões no IndoPací co guardam alguma relação com tudo isso? As notícias, como apresentadas pela mídia corporativa, parecem fenômenos independentes, provocados por regimes autoritários ou questões territoriais pontuais. Mas talvez sejam sintomas de uma fratura sistêmica mais profunda que per la o confronto entre um sistema decadente e outro emergente. Vejamos. As operações militares ucranianas que irromperam na fronteira em Kursk, uma região no sudoeste da Rússia, começaram no dia 6 de agosto. Desde um primeiro momento um manto de silêncio e contrainformações cobriu o episódio, obscurecido ainda mais pela névoa de guerra. Choveram hipóteses de um lado e de outro tentando explicar o sentido dessa operação por parte da Ucrânia, assim como a surpresa e a demora em articular uma resposta à agressão por parte da Rússia. O que se pode deduzir até agora é que se tratou de uma bem-sucedida operação em profundidade, com uma ponta de lança motorizada e tropas especiais, incluindo batalhões e brigadas que se projetaram pelas vias rápidas da região e https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 1/7 02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi que, uma vez alcançada a profundidade (fala-se de 10 km), abriu-se numa manobra de oração ou mão aberta, em várias direções, para di cultar o trabalho da defesa russa. Não houve, num primeiro momento, muita resistência numa região resguardada por guardas fronteiriços, com poucas tropas e de pouca experiência em combate. Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp! I NS C RE VA -S E As primeiras e confusas informações alentaram, desde o Ocidente Ideológico, a percepção de uma debilidade operacional russa e a possibilidade de uma reviravolta na guerra que permitiria à Ucrânia passar à ofensiva e obrigar a Rússia a se sentar na mesa de negociações. Uma certa euforia tomou conta da velha Europa, que aumentou os decibéis bélicos e, num frenesi que ignora o perigo nuclear, continuou a jogar lenha na fogueira. Por enquanto tudo parece muito confuso e as informações são contraditórias. A névoa da guerra ainda é muito densa para fazer uma análise conclusiva. Mas é possível dizer algumas poucas coisas: https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 2/7 02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi Tropas ucranianas durante o exercício militar “Saber Junction 2018”. (Foto: Ministry of Defense of Ukraine / Flickr) 1 – Não está claro o objetivo estratégico. Alguns defendem se tratar de uma manobra diversionista para retirar a pressão do avanço russo na linha de frente do Donbass; outros, que se destina a desenvolver uma política de marketing para angariar mais recursos nanceiros a fundo perdido; outros ainda, que a Ucrânia procura um fortalecimento da posição para negociar; ou de melhorar sua moral frente aos nanciadores da guerra; ou até que o objetivo seria tomar um posto de drenagem do gás para Europa. 2 – A Rússia subestimou as informações sobre a reunião de tropas perto da sua fronteira ou, sabendo disso, permitiu a realização desta manobra para esgotar os recursos militares da Ucrânia numa frente sem forte signi cado estratégico e de difícil manutenção logística. 3 – As tropas mobilizadas pela Ucrânia foram consideráveis e importantes. Não é tropa de recrutas, mas de soldados bem-preparados, das forças regulares e especiais. Há denúncias de que também participam soldados da OTAN e mercenários. Mas, tudo indica, boa parte foi retirada da frente leste, que é a região estrategicamente relevante para o avanço russo. 4 – Aparentemente a Rússia não precisou deslocar tropas de reserva da frente de Donbass. Mobilizou outras tropas de reserva que frearam a incursão ucraniana, e já estaria tentando fechar o cerco, sem retirar tropas da frente principal de projeção estratégica nem diminuir a velocidade dos seus avanços. 5 – O risco principal desta jogada para Ucrânia é destinar tropas importantes, numa manobra diversionista, das quais poderia necessitar para conseguir frear o ímpeto russo na frente de Donbass, pronto a tomar cidades estrategicamente relevantes para a logística e movimento de tropas. 6 – Os F16s recebidos e os que possa vir a receber no curto e médio prazo serão úteis para a Ucrânia, mas não afetarão a supremacia aérea da Rússia. Trata-se de aviões tecnologicamente superados e que não são páreo para o Sukhoi SU-57 de quinta geração. Aliás, o primeiro F16 ucraniano, com piloto ucraniano, Oleksiy Mes, foi abatido. Parece que a entrega de F16s para a Ucrânia tem o objetivo de abrir espaço para os “doadores” europeus poderem justi car a compra dos F-35s e manter saudáveis as nanças do Complexo PolíticoIndustrial-Militar-BigTec-Mediático estadunidense. https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 3/7 02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi 7 – Finalmente, esta manobra poderá fortalecer os grupos russos mais belicistas, que poderão pressionar Putin para bater pesado na Ucrânia e acabar mais rapidamente com essa guerra, coisa que Putin tem evitado com um avanço parcimonioso para poupar vidas e infraestrutura. Se a ideia era retirar contingente russo da frente leste para aliviar a defesa ucraniana, parece ter sido um gravíssimo erro estratégico. A Rússia conseguiu parar o avanço em Kursk provocando pesadas perdas ao exército ucraniano sem retirar a maior das tropas do operativo no leste ucraniano. Aliás, muito pelo contrário, o avanço da Ucrânia na região russa de Kursk parece ter enfraquecido a frente na República Popular de Donetsk, onde as forças russas avançaram no cruzamento-chave de Pokrovsk, que poderá cair a qualquer momento sob o controle das tropas russas. Kiev enviou várias milhares de tropas através da fronteira russa na semana passada, com a intenção de forçar Moscou a retirar reservas de outros lugares. Em vez disso, a Rússia continuou a martelar posições ucranianas no Donbass. “Eu diria que as coisas pioraram em nossa parte da frente”, disse Ivan Sekach, porta-voz da 110ª Brigada Mecanizada da Ucrânia. “Temos recebido ainda menos munição do que antes e os russos estão pressionando.” O 110º está atualmente posicionado na defesa de Pokrovsk, onde as forças russas zeram ganhos signi cativos nas últimas 48 horas. Pokrovsk é o principal centro rodoviário e ferroviário para o suprimento de forças ucranianas no Donbass. Com a incursão ucraniana, não lograram o objetivo de retirar as tropas russas que pressionam as suas posições na frente oriental, também não conseguiram atingir a central nuclear de Kursk, a incursão — digamo-lo de uma vez, da OTAN — a Rússia foi detida e cercada. Então, o que está procurando o ocidente ideológico com esta operação que atravessa todas as linhas vermelhas do Kremlin? Só pode ser provocar uma resposta russa à altura que eleve o con ito nuclearmente ou o de na como uma guerra aberta entre a OTAN e a Rússia. Mas, a prudência com que o governo russo está conduzindo esta guerra é notável. Para evitar declarar a guerra, de ne o ataque ao seu território como “terrorista”, com o qual também evita apontar a óbvia responsabilidade da OTAN na incursão. A lógica do desespero do ocidente está levando a provocar a internacionalização da guerra, a fuga para o precipício. Putin está tentando anular essa lógica, esfriando a escalada para continuar avançando parcimoniosamente na frente oriental. O ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov foi diplomaticamente claro ao a rmar que a Rússia estava aperfeiçoando sua doutrina nuclear, como é publicamente conhecido, e que as lideranças ocidentais pareciam crianças brincando com fogo. https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 4/7 02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi Por que insistir nesta escalada? O que explica a sequência de provocações ocidentais, cruzando reiteradamente todas as linhas vermelhas da segurança vital russa? O que pretendem internacionalizando o con ito armado, que certamente provocaria a III Guerra Mundial com consequências armagedônicas para o mundo? Por que as sociedades no mundo todo, que serão as principais vítimas de uma guerra dessa magnitude, permanecem em silêncio ante as decisões desastrosas dos seus governos, que podem acabar com a espécie humana? Acredito que parte da explicação se encontra no fato de que, seguindo o curso atual, a guerra na Ucrânia já está de nida como uma vitória incondicional da Rússia. Mas qual seria o perigo dessa vitória para o atlantismo que nunca se preocupou com lutar “até o último ucraniano”? Parece claro que não é o destino da Ucrânia que importa para o ocidente ideológico. O que aparentemente está em jogo com a vitória russa é a integridade da OTAN e, consequentemente, da Europa. É óbvio que a Rússia não ameaça militarmente a Europa e que sua aproximação, como foi tentado no começo do século, teria sido mutuamente proveitosa para os países europeus e para a Rússia. As posições prudentes com relação à guerra, por parte da Hungria e outros, destoantes do resto da OTAN, mostram que outro caminho é possível e, portanto, deve ser fechado para evitar evasões. A internacionalização dessa guerra, com a o cialização da OTAN como parte beligerante, é a estratégia para fechar essa possibilidade. Talvez por isso Putin tenha evitado entrar nessa provocação. Mas, qual a relação dessa guerra na Ucrânia com o genocídio de Israel sobre a Palestina? A procura desesperada do criminoso de guerra, Benjamin Netanyahu, por transformar o genocídio palestino numa guerra regional internacionalizada. As tímidas condenações europeias ao massacre de palestinos auguram um apoio da OTAN a uma aventura bélica israelense no Oriente Médio. Que outro sentido estratégico teria o estacionamento de parte da frota estadunidense nas costas palestinas? O que tem em comum ambas as guerras, além do intento de internacionalizar o con ito, é o patrocinador por detrás de ambos, estimulando a escalada: os Estados Unidos da América do Norte. O que está por detrás de ambas as guerras e da escalada armamentista no IndoPací co, assim como do “golpe colorido” (chamar de “revoluções coloridas” é perverter o conceito) propiciado em Bangladesh, é o delineamento da frente do confronto entre o modelo decadente e monocrático do império americano e dos seus acéfalos satélites, que resiste à emergência de um modelo multilateral e https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 5/7 02/09/2024, 16:10 Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi multipolar; de um mundo regido por regras monocráticas resistindo aos embates de um mundo regulado por leis entre países juridicamente iguais. Não se pode culpar o destino pela iminência do Armagedom, os responsáveis são visíveis. As sociedades, que serão as principais vítimas, permanecem passivas como se a violência que se está acumulando não fosse sair dos seus celulares e atingi-las diretamente. Conseguem assistir ao massacre palestino comendo pipoca; observam o brilho do armamento nuclear colocado em alerta estratégico como se estivessem vendo um lme de cção cientí ca. Não por ignorância, mas porque estão narcotizadas por uma mídia complacente com o império, que ameniza os gravíssimos fatos, descontextualizando-os. Assim narram o con ito israelo-palestino como se tivesse começado em 07 de outubro, ocultando as décadas de selvagem colonização israelense, e a guerra na Ucrânia em 24/02/2022, ignorando as reiteradas aproximações do ameaçador cerco da OTAN sobre Moscou. Nem na crise dos mísseis de Cuba, em 1962, a III Guerra Mundial esteve tão próxima. Trata-se de uma guerra mundial que não poupará continentes, cujas consequências cobrirão o mundo com um manto radiativo por décadas. Estamos a um breve passo do emprego de armamento nuclear e alguns governos europeus, assim como o seu comando americano, parecem estar desejando essa oportunidade, ultrapassando uma e outra vez as linhas vermelhas da paciência russa. Parece não haver consciência do que signi caria uma guerra mundial nas condições atuais dos polpudos arsenais nucleares globais. Estamos na iminência da extinção da vida no planeta e parece que ninguém se importa com isso. A única possibilidade de parar esta demencial marcha ao precipício da vida é pela mobilização internacional das sociedades pela paz, que chamem aos seus governos ao bom senso. Em alguns países esta já começou, mas se não se unirem todos num movimento internacional pela paz, vencerá a loucura e a radiação será democraticamente distribuída pelo mundo todo. (*) Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de “Max Weber: entre a paixão e a razão” (Editora Unicamp) e “A política armada: fundamentos da guerra revolucionária” (Editora Unesp). https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ 6/7 02/09/2024, 16:10 https://operamundi.uol.com.br/opiniao/kursk-gaza-e-o-armagedom/ Kursk, Gaza e o Armagedom - Opera Mundi 7/7