II ENCONTROS DE DESIGN DE LISBOA . 2014
FACULDADE DE BELAS-ARTES . UNIVERSIDADE DE LISBOA
› COORDENAÇÃO DO LIVRO
RAUL CUNCA
VICTOR M ALMEIDA
› PROJECTO COMUNICAÇÃO
COLECTIVO 4.16
› ISBN
978-989-8771-27-8
› DEPÓSITO LEGAL
?
EDIÇÃO CIEBA
LISBOA, MARÇO 2015
COM O APOIO DE:
DOCUMENTAR
COMENTAR
O
DESIGN
Pág.
10
Fernando António Baptista Pereira
› Prefácio
12
Raul Cunca
› Encontros de Design de Lisboa
16
Victor M Almeida
› Docomentar o arquivo em design
×
Documentar o Design
22
PAINEL 1 ››
24
Viviana Narotzky
Keeping it open
28
Helena Barbosa, UA
Uma perspectiva sobre documentar
e comentar o design através do cartaz
46
Francisco Providência, UA
› O que significa Design português?
×
Comentar o Design
73
PAINEL 2 ››
74
José Bártolo,ESAD
› Documento, História e Arquivo.
Apontamentos sobre história do design português
82
Maria Teresa Cruz, UL
› O Design como pensamento
×
96
Notas Biográficas
8
9
10
Fernando António Baptista Pereira
Presidente do Centro de Investigação e de EStudos em Belas-Artes (CIEBA)
Presidente do Conselho Científico da FBAUL
A segunda edição dos Encontros de Design
de Lisboa / Lisbon Design Meetings (EDL/LDM),
que se realizou em 2014, subordinada ao tema
“Documentar | Comentar o Design”,
vê agora publicadas as suas Atas, recolhendo
os mais importantes contributos, pelas Secções
de Design e de Design de Comunicação e Novos
Media do CIEBA (Centro de Investigação e
Estudos em Belas-Artes), unidade de I&D
a que tenho a honra de presidir.
Desde a primeira edição que estes Encontros
pretendem criar um espaço regular de
comunicação e relexão, a nível académico,
mas com total abertura a toda a sociedade,
sobre a utilização do design enquanto recurso
estratégico na economia e enquanto intervenção
qualiicada e qualiicadora nos diferentes palcos
sociais, mas também sobre os modos como as
instituições de ensino universitário e os
centros de investigação o consolidam como
área de conhecimento.
A presente edição recolheu contributos decisivos
para, como pretendiam os seus promotores,
explorar os limites documentais do design na
tentativa de uma melhor adequação da praxis
associada ao ensino/educação e à investigação/
ciência, uma vez que documentar é conferir
relevância à crítica e ao estudo do design
enquanto fatores de perceção cultural dos
artefactos em contexto, sem esquecer, também,
que documentar é redimensionar o palco onde
o design atua.
Com efeito, vivemos uma época marcada não
só por uma ativa consciência social de cidadania,
que se manifesta através de uma enorme
diversidade de canais reais e virtuais, mas
também pela plasticidade dos olhares do
designer e das suas práticas, pelo que se torna
imperativo recolocar, como foi proposto ao longo
destes Encontros, a relexão sobre o design
mais no «expandido» terreno da capacidade
mediadora entre a produção de conhecimentos
e as metodologias de intervenção cada vez mais
alargadas nos diferentes tecidos e palcos coletivos
do que no mais tradicionalmente considerado
território da mera produção de objetos e de
materiais de comunicação.
Num momento em que a produção cientíica
desenvolvida no âmbito da FBAUL, nos graus
pós-graduados (mestrados e doutoramentos),
nas duas áreas do design, a de comunicação e a de
design de equipamento, apresenta signiicativos
resultados, com diferentes Mestrados nas Áreas
e várias teses de Doutoramento defendidas ou
a aguardar defesa, este importante esforço de
relexão, com relevante colaboração nacional
e estrangeira, proporcionou igualmente uma
intervenção qualiicada posta à disposição dessa
mesma formação pós-graduada de segundo
e terceiro ciclos.
Estão, pois, de parabéns todos os que puseram
de pé estes segundos Encontros de Design de
Lisboa / Lisbon Design Meetings (EDL/LDM)
e a edição das suas Atas, fazendo votos para que,
com esta publicação, se aprofunde a investigação
e se preparem as próximas edições.×
Prefácio
II Encontros de Design de Lisboa
A transversalidade de questionamentos e de
posições que foi timbre dos trabalhos destes
segundos Encontros está, de resto, como temos
defendido, no âmago do novo modo como a
investigação em Arte e em Design se tem inscrito
na FBAUL e no CIEBA, promovendo a formação
sustentada de criadores com uma sólida formação
universitária que aliam a dimensão criativa
à capacidade de relexão e investigação.
11
Os II Encontros de Design de Lisboa
12
Raul Cunca
I n v e s t i g a d o r P r i n c i p a l d a S e c ç ã o d e D e s i g n d o CI E B A
O texto apresentado na primeira edição dos
Encontros de Design de Lisboa, realizados em
2012, termina perspectivando a continuidade
deste evento. Esta minha vontade acabou por se
concretizar, consolidando estes II Encontros como
um espaço dedicado à investigação em design na
Faculdade de Belas-Artes e na cidade de Lisboa.
Esta segunda edição dos Encontros materializa
também uma data emblemática para a história
do design em Portugal e para o percurso da
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de
Lisboa no ensino artístico em Portugal, marcada
pela celebração dos 40 anos dos primeiros cursos
superiores públicos de design no nosso país,
iniciados em 1974 na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.
Para registar esta efeméride, o tema desta
segunda edição foi dedicado ao: documentar
| comentar o design, perspectivando o seu
conteúdo, quer na direcção de uma leitura
sustentada nos percursos de design em Portugal,
quer pela sua emergente necessidade de
documentar e, posteriormente, comentar o design
na sociedade contemporânea, onde esta relação
constitui um meio de produzir e disseminar
conhecimento.
É, precisamente, neste âmbito e na pluralidade
dos seus trilhos que se encontram inscritas
as intervenções dos oradores nacionais e
estrangeiros que deram voz a estes II Encontros
de Design, materializadas na presente edição
em vias de investigação que vão desde o Open
Design, passando pela importância do estudo
do cartaz para a história do design gráico e pela
procura da identidade para o design português,
terminando com uma perspectiva sobre
a importância do arquivo como base documental
para a história e critica do design, bem como
a relevância da matriz gráica do documento
como base para um projecto iccionado.
A todos aqueles que tornaram possível os
II Encontros de Design de Lisboa, agradeço
o seu empenho por constituírem cada vez mais,
um espaço de pluralidade, no qual se cruzam
discentes, docentes e funcionários numa dinâmica
comum que permite realizar este evento dedicado
ao design, com um reconhecido sucesso e uma
plateia crítica e interessada nos renovados
desaios colocados a esta disciplina. ×
II Encontros de Design de Lisboa
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Docomentar o arquivo em design
16
Victor M Almeida
Investigador da Secção de Design de Comunicação
Comentar e documentar determinam ações que
se complementam entre si e que se associam,
no caso do design, às práticas contemporâneas
de analisar, criticar e arquivar os artefactos
culturais porque, desde sempre, os indivíduos e as
sociedades sentem uma urgência pelo registo de
memória, cumprindo um movimento civilizacional
de (re)construção permanente do arquivo.
Neste contexto compulsivo, emerge a
arquivização que, na perspetiva de Jacques
Derrida, pode tornar-se mais produtiva do que
o assunto que arquiva, i.e. o modo como se
transmite a informação estabelece a natureza
do conhecimento no sentido do que se pretende
arquivar e estudar. Derrida no livro Archive
Fever (1995), argumenta que não existe poder
político sem controlo do arquivo, ou seja,
da memória, e que a consumação da democracia
se estabelece na participação e acesso ao
arquivo. Na cademia, esse acesso tem resultado
em disputas disciplinares interessantes que ao
longo do tempo têm contribuído para que
o arquivo se diversiique quer na variedade
de materiais que o compõem, quer na riqueza
das leituras processadas.
A transparência do arquivo, evocada como uma
posição contrária ao que alguns investigadores
consideram como a predisposição para a
impossibilidade do arquivo ser neutral,
torna-se um fator essencial no modo como
qualquer indivíduo pode exercer o seu direito
de reconstruir a memória e a história através
da sua percepção pessoal. No meio académico
contemporâneo, esse olhar mais disponível tem
contribuído para a expansão do conhecimento
em muitas áreas cientíicas, com destaque,
para o design que vem assistindo à importância
do contexto social, económico e político na
leitura dos artefactos que integram a designada
cultura material. Despontam novos campos
de estudo que se contaminam entre si e que
subsidiam o arquivo em design com novas
possibilidades analíticas.
A aglutinação dos verbos comentar e
documentar – docomentar – expõe a
versatilidade do papel do arquivo em design
na medida em que traduz uma polissemia
de relações interdisciplinares só veriicáveis
em áreas de estudo que lidam simultaneamente
com os peris culturais macro e micro da
sociedade. As ramiicações rizomáticas do
processamento de leituras sobre objetos e
acontecimentos (conhecimento) conferem
a docomentar uma amplitude de olhares
participativos quase sempre inesgotáveis.
Por sua vez, Helena Barbosa apontou na sua
palestra as questões que considerou essenciais
para a compreensão da natureza e dos limites
da documentação em design. Referiu-se
ao projeto CLIP como uma necessidade de
criação de uma taxonomia para identiicação
e catalogação de documentos e apresentou
alguns exemplos retirados da sua investigação
sobre a história do cartaz português desde
o século XVII até ao século XX. Explicou,
também, o processo de investigação assente na
revisão da literatura sobre o design português,
em especial, sobre o cartaz, seja no recurso
a fontes documentais iconográicas seja na
criação de uma base de dados com uma amostra
representativa distribuída por categorias
e subcategorias onde se identiiquem as
características principais dos respetivos objetos.
II Encontros de Design de Lisboa
Em relação aos II Encontros de Design
de Lisboa (FBAUL, 2014), Viviana Narotzky
iniciou o evento com a conferência Keeping
is open. Why design is not what it used to
be… onde relembrou o que fora o design no
modernismo, com as suas expectativas de
integração humana nos processos de produção
até à mudança operada a partir das décadas
de 1970 e 1980, onde esurge um contrato
social diferente em resposta ao contexto pósindustrial. Para a investigadora catalã, este
ímpeto é hoje pontualmente contrariado pelo
conceito de Open Design onde sobressaem os
processos abertos de colaboração entre
produtor e consumidor.
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Victor M Almeida
Investigador da Secção de Design de Comunicação
Para Maria Teresa Cruz as dúvidas permanecem
nos limites e implicações do sentido do design
na contemporaneidade. O design é visto como
“mediador da experiência”, na senda do design
thinking e do design social, em contraciclo com
uma vertente historicista repleta de conceitos
tidos como irrefutáveis.
Para Maria Teresa Cruz as dúvidas permanecem
nos limites e implicações do sentido do design
na contemporaneidade. O design como
“mediador da experiência”, na senda do design
thinking e do design social, em contraciclo com
uma vertente historicista repleta de conceitos
tidos como irrefutáveis. A investigadora e
docente da Universidade Nova de Lisboa atribui
uma vocação transdisciplinar ao design ao
considerá-lo como uma área de largo espectro
uma vez que poderá estar presente em todos
os níveis da organização social correspondendo,
assim, à acepção de design thinking de Tim
Brown. Nesta perspetiva, propõe que o designer
seja olhado como um ilósofo ao qual seja
atribuída a tarefa de materializar o pensamento
e, assim, estabelecer uma matriz especiica
para o real.
José Bártolo debateu a noção de arquivo como
dispositivo de base documental para a produção
de conhecimento. Propôs a valorização do
arquivo como base de investigação e, sobretudo,
como metaprojeto, i.e. como conceito aberto.
Apresentou um conjunto de exemplos desde
as experiências de Aby Warburg, passando
pelo projeto Mass Observation, e culminando
na exposição Almanaque (Galeria Quadra,
Matosinhos) onde procurou interpretar a
história do design editorial português que
medeia entre o início do século XX até aos
nossos dias. Bártolo reforçou a importância dos
arquivos documentais para a contextualização,
análise e interpretação histórica dos artefactos.
A comunicação de Lorenzo Imbesi centrou-se nos contributos para a compreensão
do design para a sociedade pós-industrial
enquadrados pela deinição de condição pósindustrial de Manuel Castells (2010), em que
o teórico evidencia a importância do sistema
inanceiro mundial e da sociedade em rede, e
pela radicalidade da modernidade líquida de
Zygmunt Bauman que destaca a fragilidade
da sociedade contemporânea orientada para
o imediatismo do consumo, da incerteza, da
volatilidade e da insegurança em todos os
domínios. O conferencista italiano aproveitou
o momento para referir que o papel do designer
também se encontra em diluição uma vez que se
esbatem os limites da autoria, da produção e da
reprodução. ×
II Encontros de Design de Lisboa
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PAINEL I
DOCUMENTAR O DESIGN
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Viviana Narotzky
Helena Barbosa
Francisco Providência
Viviana Narotzky
Keeping
it
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Over the last few years, Open Design has
been edging closer to the mainstream. Digital
technologies and social networks have reached
a point of maturity from which a new industrial
culture is emerging. This networked information
economy is having a huge impact on the creative
ields, revolutionising the processes of creation,
mediation, distribution and consumption.
There is an emerging landscape of open practices
and exchanges that has come out of approaches
such as open code, the digital commons,
co-creation, sharing, re-mixing and collaborative
working. Open processes, distributed creativity
and peer-to-peer networks underpin work being
developed in areas such as fashion, product and
graphic design, cultural institutions and craft.
The Industrial Revolution set out to achieve
standardization and rationalization through
mass-production, generating designed objects
that promised mechanized perfection in form
and function. The resulting modernist ideals of
lasting perfection, of a ‘closed’ or ‘inished’ object
ready for consumption, of universal solutions for
universal needs, or a standardized and controlled
range of options, have been an enduring backbone
of design practice throughout the 20C.
PAINEL 1
Although they always tend to interact with digital
technologies and make use of online social media,
the practices involved range from extremely
high-tech to fairly low-tech, and often combine
the two. These approaches challenge the more
traditional deinitions of the profession, the
business models based on proprietary designs
and mass-production, and they undermine the
separation between creator and consumer,
professional and amateur. By their very nature,
they also necessitate a clear transmission of
information, and documenting design practice and
process is one of the backbones of Open Design.
DOCUMENTAR O DESIGN
Furthermore, grassroots online collaboration
has become a powerful source of entrepreneurial
capital. The US website kickstarter.com is the
most famous crowdfunding site, but over the last
ive years more than $5billion have been pledged
through similar platforms.
25
26
Viviana Narotzky
Presidente da ADI-FAD, Associação de Design Industrial de Barcelona
We are now leaving behind the rigid premises
inherited from modernity’s utopian take on
industrial mechanized production, and embracing
both the exhilarating lexibility afforded by new
technologies and the postmodern understanding
of leeting, ever changing identities, contexts and
needs. Designers and consumers are repositioning
their relationship to the objects and images
around them, and to each other.×
Helena Barbosa
Uma
perspectiva
sobre
e comentar
o sign
através
do cartaz
28
Introdução
Esta II edição dos Encontros de Design é dedicada
ao tema – “Documentar o Design/ Comentar
o Design”. Quando confrontada com o convite
pensei qual seria a minha abordagem de modo
a ser útil, essencialmente, para os alunos dos
diferentes ciclos.
“Documento s. m. qualquer objecto elaborado
pelo homem com o im de reproduzir ou
representar uma pessoa, coisa ou facto; tudo o
que serve para provar; testemunho; conirmação
(Do lat. Documentu-, “id.”)” (Dicionário da Língua
Portuguesa, 1999, p. 565).
Se questionarmos alguém relacionado com
a área da catalogação, ou que esteja presente
em arquivos ou na área da conservação sobre
as tipologias dos milhares de documentos que
existem na atualidade em diferentes instituições
ou organismos, a resposta maioritária será a
existência de documentos em papel e documentos
digitais. Se por um lado a identiicação destas
tipologias está aparentemente correta, por
outro retira, a valorização de outras tipologias
de artefactos. Considerando, que alguns dos
documentos são artefactos de design enquanto
PAINEL 1
Parte I
Que documentos?: identiicação de tipologias,
sua localização e possíveis abordagens
DOCUMENTAR O DESIGN
Na realidade, fazer investigação
independentemente da sua natureza,
implica saber como realizá-la, mas, no entanto,
tenho veriicado através da minha experiência,
que os alunos de licenciatura, mestrado e
doutoramento em design apresentam algumas
e compreensíveis diiculdades na gestão entre, o
que são documentos e as diferentes possibilidades
de como se pode comentar o design. Perante este
cenário, resolvi dividir a minha apresentação
em duas partes: a primeira centrada na palavra
documento e a segunda na palavra comentar.
Ambas serão analisadas através da perspectiva
do design, dando, por im, um exemplo especiico
sobre o cartaz, como artefacto (documento),
e respectivas metodologias que se declinaram em
interpretações (comentar/comentários).
29
30
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
testemunhos que provam a realização de
objetos criados pelo ser humano, signiica que
existem mais documentos, que os documentos
considerados tradicionais. Esta ideia
aparentemente, ambígua e controversa serve
como elemento provocador para a relexão, que
inscrevo na minha apresentação.
Observando aquilo que será a noção mais
convencional de documento, nas diferentes
tipologias que recaem dentro da na norma
portuguesa de catalogação (NP-405), esta,
apresenta a seguinte estrutura:
.Documentos impressos
.Materiais não livro
.Documentos não publicados
.Documentos electrónicos
Que conteúdos estão implicados nestes quatro
tópicos? Ao analisá-los em detalhe eles
contemplam os seguintes documentos, que podem
ser encontrados em diversos locais:
. Documentos impressos (arquivos,
bibliotecas)*
.. Publicações (ISBN)
—monograias
—contribuições em monograias
—teses e dissertações
.. Publicações em série (ISSN)
—revistas
—artigos em publicações em série
—jornais
.Materiais não livro (arquivos, bibliotecas)*
—entrevista
—cartaz
—folheto
—desenho
—gravura
.Documentos não publicados
(arquivos, bibliotecas)*
—documento impresso
—manuscrito
.Documentos electrónicos (arquivos,
bibliotecas, world wide web)
—monograias
—base de dados
—partes de documentos
Em alguns dos organismos de arquivos e
bibliotecas existe um reportório documental
subsidiado na world wide web.
*
PAINEL 1
É possível veriicar que a gestão destes
documentos nos respectivos espaços físicos
pode sofrer pequenas alterações em função dos
sistemas de arquivo, como por exemplo, usando
sistemas: alfabéticos, numéricos, alfanuméricos,
cronológicos, temáticos ou cromáticos.
Não pretendendo ser exaustiva a este nível,
apenas quero reforçar que o entendimento da
classiicação de documentos em alguns casos,
continua a ser controversa, dada a multiplicidade
de hipóteses que os documentos acarretam.
Para adicionar entropia ao que foi exposto,
é possível veriicar na listagem apresentada
que a mesma se circunscreve à identiicação de
alguns artefactos, veriicando-se a inexistência
de muitos outros. Os documentos devem
ser vistos como artefactos polissémicos, e
considerando os vários sentidos que podem ir
DOCUMENTAR O DESIGN
Independentemente da sua natureza, a gestão
desses documentos torna-se complexa sobretudo
na maneira como os mesmos surgem citados
de forma direta ou indireta no decorrer e no
inal da tese ou da dissertação. Reiro-me
concretamente, às citações de texto diretas, às
referências ao texto indiretas, que foram objecto
de interpretação, à existência de notas de rodapé,
ou legendas, e ainda, à indicação correta das
respectivas fontes documentais na vulgarmente
designada bibliograia. O tratamento adequado
dessa informação, quando se aplicam as regras
de identiicação de documentos, tendo em atenção
esta estrutura, garante uma parte da qualidade
cientíica do trabalho de investigação. Estes são
os documentos que normalmente, fazem parte
do estado da arte e comprovam a pertinência da
investigação por, simultaneamente, explicarem
partes que serão desenvolvidas em fase
posterior. E na fase posterior dever-se-á remeter
para as partes apresentadas anteriormente.
Consequentemente, estas diferentes conexões
constituem uma rede equilibrada de conhecimentos
que devem ser transversais no documento a
redigir, contribuindo para a coesão do mesmo.
31
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
32
para além da palavra, ou da imagem, implica que
o entendimento de aquilo que é um documento,
extravasa a sua deinição mais comum. Ou seja,
toda a cultura material e imaterial, enquanto
matérias que promovem a comunicação e o
conhecimento, devem e estão a ser integrados
em alguns dos arquivos, mas, não nos arquivos
tradicionais. Os museus são exemplo disso,
e existe um manancial de artefactos (produtos
gráicos e industriais, ou seja, documentos)
que não são contemplados pelos arquivos
convencionais. Nesse sentido, os museus ou
instituições que integrem qualquer tipologia
de artefacto, recorrem a outras estratégias
de catalogação, e de indexação referindo
características especíicas dos objetos.
A este nível existem um conjunto de instituições,
como o MOMA, o Design Museum de Londres
e outros, que procuram adicionar novas
camadas de conhecimento aos seus objetos, mas
essencialmente, usam os objetos como lente de
aumento para traduzir ou revelar conhecimento
extra em relação aos próprios artefactos.
No entanto, a classiicação dos objetos é
complexa e pouco pacíica. Na tentativa de criar
uma regularização para a sua identiicação
existe um projeto português que procurou
criar uma taxonomia que fosse além, daquilo
que reconhecemos como os documentos mais
convencionais. O projeto CLIP - Compatibilização
de Linguagens de Indexação em Português,
cujo título refere a “Terminologia controlada
para indexação de documentos na área do
design”, editado em 1996, apresenta um conjunto
de termos preferenciais e não preferenciais.
Essencialmente, o CLIP procura identiicar as
diferentes possibilidades anexas à criação ou
produção de artefactos num determinado tipo
de contexto. Podemos considerar, que este
documento pode ser importante para a disciplina
de design assim como, o seu entendimento
do ponto de vista da sua operacionalidade,
mas, no entanto, existe ou continua por fazer,
uma adequação taxonómica em função das
especiicidades daquilo que se entende por
artefacto/documento de design.
Então, é impossível dissociar outras dimensões
aos documentos, e por isso, colocam-se outras
questões: De que forma podemos adensar
e contribuir para o conhecimento em design
no uso de documentos? Que metodologias?
Numa primeira instância, encontraram-se
publicações (livros, não artigos) referentes à
história do design, à história do design português,
aos estudos teóricos sobre o cartaz
e ainda aos trabalhos académicos sobre a história
do cartaz português, que foram determinantes
por apresentarem conceitos e relexões sobre as
possibilidades de investigação.
PAINEL 1
Embora, o doutoramento tenha sido realizado
em 2011, para quem opera na área do design,
existia previamente, a consciência de que se
deve valorizar a ligação entre história e prática,
independentemente, de se estar a realizar
um trabalho mais orientado numa ou noutra
vertente. Ou seja, a disciplina de design alcança
outros desígnios pela convergência destas duas
abordagens que nunca devem ser dissociadas,
e foi com esse sentido que o doutoramento
foi escrito. Mas antes de passar à parte dos
comentários, ou da parte escrita, apresento
toda a metodologia relacionada com o acesso
e organização documental encontrada:
DOCUMENTAR O DESIGN
Para esta conferência decidi selecionar apenas
um exemplo de como documentar e comentar
o design. Para isso, apresento o doutoramento
que realizei, como forma de dar resposta
às questões levantadas. Esse trabalho de
investigação relacionou-se com “Uma história
do design do cartaz português do séc. XVII ao séc.
XX”, cuja abordagem se identiica com uma frase
de Clive Dilnot apresentada no decorrer do 9th
International Conference of ICDHS - International
Committee for Design History & Design
Studies – “Tradition, transition, trajectories:
major or minor inluences?”, que teve lugar na
Universidade Aveiro, em Julho de 2014 “(...) doing
work in design, whether as history or practice
(and these two things should not be separated)
is essential” (Dilnot, 2014, p.57).
33
34
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
Em termos metodológicos recorreu-se a fontes
documentais bibliográicas e iconográicas.
Em relação à primeira, optou-se por recorrer ao
catálogo colectivo das bibliotecas portuguesas,
acessível pela world wide web, que inclui não
só o catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal
(BNP), como também, de mais 180 instituições
portuguesas públicas e privadas.
Para as fontes documentais iconográicas
recorreu-se aos dois maiores acervos de cartazes
existentes em Portugal, cuja representatividade
desse artefacto é signiicativa, mais
concretamente a BNP e o arquivo de cartazes
existente na Universidade de Aveiro (UA).
Posteriormente, selecionaram-se os cartazes
pela sua dimensão cultural e não pelo seu grau
de excelência, sublinhando-se, assim, a dimensão
histórica. Paralelamente, procuraram-se
exemplares que fossem anunciadores de algumas
particularidades relacionadas com a prática
projetual, onde se valorizou a representação
do texto, da imagem e a sua relação evolutiva.
Para além disso, a selecção contemplou, a autoria,
tentando identiicar o universo dos artistas
e designers. Em simultâneo, identiicaram-se
as tecnologias aplicadas, os impressores e outras
características que permitiram a descrição física
dos cartazes. Este processo englobou, ainda,
a análise dos conteúdos, tendo sido deinidora
a dimensão programática, que possibilitou não
só o seu alinhamento por categorias e subcategorias, como também a identiicação de
características particulares, anexas ao género,
que se modiicaram consoante as épocas.
Considerou-se também, o contexto histórico
e sócio-cultural em que foram produzidos, desde
temas relacionados com o design, acontecimentos
históricos relevantes, até à divulgação de marcas
portuguesas que se tornaram ícones nacionais.
Esses critérios deram origem a várias fases
da construção da amostra de cartazes, que foi
composta da seguinte forma:
-Dos 18.951 cartazes da BNP requisitaram-se 2.080, que após os critérios de selecção
atrás descritos reduziu-se a amostra para 991
cartazes, e dos 30.000 cartazes do arquivo da
UA selecionaram-se 1.626 cartazes que com
a aplicação dos mesmos critérios reduziu-se a
amostra para 971 cartazes.
› Para a visualização dessa amostra seguiu-se
a sua organização segundo três vertentes que
contemplam: o tempo – relacionado com
a tecnologia; as categorias que se inscrevem no
programa (cartaz político, cultural e comercial)
e por im a autoria. Só assim, seria possível
somar uma camada hermenêutica sustentada
por um modelo ontológico do processo de design,
cobrindo a história e a prática do design.
› O total de 1962 cartazes foram aixados em
dimensões reduzidas numa parede com 2,5
metros de altura por 3 metros de comprimento
tendo sido colocados cronologicamente e segundo
a categoria cartaz político, cultural e comercial.
Parte II
Os comentários: o dilema das possibilidades
Comentar v. tr. Fazer comentários; explicar por
meio de comentários; criticar; analisar
(Do lat. commentãre, por commentãri, “explicar”)
(Dicionário da Língua Portuguesa, 1999, p. 388).
Comentário s. m. Série de notas explicativas de
um texto; informação nova que, num enunciado
ou num texto, é transmitida acerca do chamado
PAINEL 1
› Após a organização desta informação,
foi possível criar os cenários para se realizarem
as narrativas. Mas, que comentários?
Como comentar? Estas questões levam-me para
a segunda parte da minha apresentação.
DOCUMENTAR O DESIGN
› Paralelamente, criou-se uma base de dados
composta por duas partes. Na parte superior
importou deinir um conjunto de campos
relacionados com o artefacto cartaz, do ponto
de vista da sua identiicação, classiicação e
descrição física e na parte inferior dessa base
de dados criaram-se campos centrados na autoria,
programa e tecnologia onde seriam integrados
os discursos de dez especialistas convidados para
selecionarem os cartazes da parede.
35
36
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
tópico ou tema; análise; observações
ou explicações a propósito de um facto;
crítica mordaz.
Comentários pl. Memórias ou narrações
históricas em que o autor tomou parte (Do lat.
commentãriu, “livro de notas” (Dicionário da
Língua Portuguesa, 1999, p. 388).
Se olharmos para as deinições apresentadas,
e se nos centrarmos na deinição da palavra
comentários, aquele que faz investigação pode
ser também referência no design a partir do
momento em que dá o seu contributo para essa
disciplina. Mas, que contributos? Atualmente,
existe um trabalho disperso sobre o design em
Portugal, produzido em contexto académico
que necessita de ser sistematizado.
Considerando que nesta nuvem de trabalhos
de investigação, se selecionou o doutoramento
sobre 400 anos de história de design de cartazes,
interessou nesta parte, ilustrar os comentários ou
as narrativas afectas a esse tema.
Na realidade, o cartaz enquanto interface cultural
abre um indeterminado número de possibilidades
de abordagens para o seu estudo. Portanto,
para a investigação em questão foi importante
balizar e explicar como seria comentada a
história do design dos cartazes portugueses.
Tendo em conta que já foram previamente
apresentadas a organização e as propostas de
diversas metodologias que justiicam, e propõem
um conjunto de intenções sobre a forma como
as narrativas desta investigação ocorreram,
importa, agora, nesta apresentação ilustrar a
estrutura de conteúdos.
Então, o capítulo IV, corresponde às narrativas
e foi composto por quatro partes, cada uma
delas corresponde a um dos séculos, num
total de 375 páginas. Este capítulo apresenta
uma organização de índice que propõe uma
narrativa centrada na tecnologia, programa,
autoria e ainda uma referência aos comentários
e considerações dos especialistas, sobre os
cartazes aixados na parede:
“Capítulo IV
Uma história do design do cartaz português do
séc. XVII ao séc. XX
Parte I
O séc. XVII e o design do cartaz português:
a herança da iluminura
a) Materiais
b) Projecto
c) Sistemas reprográicos
I.2 Cartaz e programa
a) O cartaz e a legislação
a.1) Depósito legal
a.2) Aixação
b) Os suportes e os cartazeiros
c) Especiicações do género
I.3 Cartaz e autoria
a) Identiicação
b) Linguagem tipográica e de imagem
I.4 O cartaz sob o olhar dos especialistas
Parte III
O séc. XIX e o design do cartaz:
o cânone da paginação e dos frontispícios
I.1 Cartaz e tecnologia
a) Materiais
b) Projecto
c) Sistemas reprográicos
PAINEL 1
Parte II
O séc. XVIII e o design do cartaz:
da iluminura à paginação
DOCUMENTAR O DESIGN
I.1 Cartaz e tecnologia
a) Materiais
b) Projecto
c) Sistemas reprográicos
I.2 Cartaz e programa
a) O cartaz e a legislação: a censura
b) Os suportes e os cartazeiros
c) Especiicações do género
I.3 Cartaz e autoria
a) Identiicação
b) Linguagem tipográica e de imagem
I.4 O cartaz sob o olhar dos especialistas
37
38
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
I.2 Cartaz e programa
a) O cartaz e a legislação
a.1) Depósito legal
a.2) Censura
a.3) Imposto
a.4) Aixação
b) Os suportes e os cartazeiros
c) Especiicações do género
I.3 Cartaz e autoria
a) Identiicação
b) Linguagem tipográica e de imagem
I.4 O cartaz sob o olhar dos especialistas
I.1 Cartaz e tecnologia
a) Materiais
b) Projecto
c) Sistemas reprográicos
I.2 Cartaz e programa
a) O cartaz e a legislação
a.1) Depósito legal
a.2) Censura
a.3) Imposto
a.4) Aixação
a.5) Tiragem
b) Os suportes e os cartazeiros
c) Especiicações do género
I.3 Cartaz e autoria
a) Identiicação
b) Linguagem tipográica e de imagem
I.4 O cartaz sob o olhar dos especialistas”
(Barbosa, 2011).
Conforme se pode veriicar, a estrutura proposta
ao nível dos tópicos para a realização das
narrativas é muito próxima entre os séculos,
com a diferença de adensamento de conteúdos
em função das especiicidades de cada um deles,
permitindo dois tipos de leituras: a diacrónica
e a sincrónica. Mas, a redação desta narrativa
não se podia cingir apenas à documentação
encontrada. Era imperativo criar ferramentas
que pudessem contribuir para o conhecimento
da história do design do cartaz. Foi necessário
uma visão operativa de especialistas que se
caracterizava por serem designers, cartazistas,
professores e investigadores de diferentes
instituições de ensino (Aveiro, Coimbra e Porto).
A participação de dez especialistas na selecção
de cartazes possibilitaram a redução da amostra
de 1962 para 239. As convergências na selecção
dos cartazes reforçou a importância da presença
desses exemplares nesta nova amostra. Obteve-se
assim um mapa empírico, mas simultaneamente
conceptual, a partir do qual foi possível obter
um foco mais claro sobre a narrativa analítica e
histórica a desenvolver.
PAINEL 1
› O proto-cartaz – que se caracteriza pelos
materiais como a pedra, a madeira e a cerâmica.
› O cartaz tradicional – composto apenas por
papel, é a tipologia que a esfera pública não
apresenta dúvidas na classiicação de cartaz.
› O cartaz da atualidade – utiliza materiais
e tecnologias mais recentes, como o
movimento e a luz.
› O cartaz do futuro, que irá, potencialmente,
herdar os desenvolvimentos tecnológicos
postos ao serviço da comunicação e tentará
uma maior proximidade à esfera pública com
base na promessa tecnológica, explorando a sua
percepção e reação, reforçando características de
movimento e interatividade hoje emergentes.
Em relação aos materiais, sendo a selecção de
papel um factor importante na realização de um
cartaz veriicou-se a existência de papel artesanal
para os três primeiros séculos, e o industrial
para os dois últimos, sendo que, as dimensões
sobretudo do papel industrial aumentaram,
consideravelmente, no séc. XX. Ao nível do papel
artesanal foi possível encontrar marcas de água
DOCUMENTAR O DESIGN
Para além dos especialistas foi necessário
realizar entrevistas a oito designers portugueses,
cartazistas, que cobrissem diferentes gerações de
modo a perceber convergências ou divergências
na prática do design. Os seus depoimentos
resultaram, também, num instrumento indicado
para conhecer a visão dos autores sobre a sua
própria obra, contribuindo para um conhecimento
mais amplo sobre a prática projectual.
No entanto, falar de cartaz implica conhecer o
seu território, e a esse nível o terceiro capítulo foi
importante para entender a evolução do cartaz e
o seu signiicado no tempo, onde se identiicaram
quatro tipologias:
39
40
Helena Barbosa
Uma perspectiva sobre documentar e comentar o design através do cartaz
com conigurações variadas (texto; imagem; texto
& imagem) onde se veriicou que maior parte do
papel destinado para a impressão de cartazes
era proveniente do estrangeiro. Por sua vez, na
componente de projeto a paleta dos materiais
vai diversiicando cada vez mais à medida que
se avança em cada um dos séculos, assim como,
para a impressão onde predomina para o séc.
XVII e XVIII a xilotipia, xilogravura e tipograia,
enquanto para o séc. XIX surge pontualmente
a litograia, sendo que no séc. XX o offset é o
sistema de impressão mais representado.
Relativo às categorias de cartazes (político,
cultural, comercial), a sua representatividade
aumenta signiicativamente no decorrer do
tempo, assim como, as sub-categorias1, revelando
que as atividades políticas, culturais e comerciais
e culturais apresentam contornos cada vez mais
especíicos. O mesmo sucede com a censura dos
cartazes, inicialmente controlada pelo Santo
Ofício, depois pela Mesa de Desembargo do Paço,
e de 1926 a 1974 com o regime salazarista.
Se por um lado existiam constrangimentos
na forma de comunicar os conteúdos
através dos cartazes, por outro, na aixação
pública encontraram-se especiicidades que
determinavam a sua localização, assim como,
existiram um conjunto de equipamentos que
evoluíram no tempo como espaços dedicados
para serem aixados os cartazes.
No que concerne à identiicação da autoria,
foi possível constatar que, apesar de dois casos
isolados de cartazes do séc. XIX que foram
identiicados, o século XX é rico na identiicação
de muitos cartazes. Foi também interessante,
veriicar a forma como esta autoria se identiicava
e se apresentava à esfera pública, usando para
1
Cartaz político: aviso; campanha; comemorações; comícios; editais;
manifestações e manifestos. Cartaz cultural: beneicência; cinema; circo;
concursos; dança; desporto; encontros; exposições; espetáculos; feiras; festas;
jogo; música; teatro; tauromaquia; turismo. Cartaz comercial: adubos; banca;
bebidas; seguros; comunicações; ensino; produtos: alimentares- belezadiversos- higiene- limpeza; publicações; saúde; transportes;
2
Design; Arranjo gráico; Desenho; Design gráico; Graismo; Concepção
artística; Desenho gráico; Concepção gráica; Cartazvestuário.
Conclusão:
Evidenciou-se, essencialmente, que a natureza de
possibilidades afectas à identiicação e descrição
de artefactos de design, devem extravasar sempre
dentro do possível, os mimetismos convencionais,
como são apresentados pela norma, sendo difícil
PAINEL 1
Os depoimentos dos dez especialistas se por
um lado vieram reforçar alguns dos conceitos
apresentados, por outro, deram uma visão
equilibrada sobre os motivos das suas escolhas,
cujos discursos usam terminologia e justiicações
muito próximas. Considerando que cada um dos
especialistas teria que escolher no mínimo trinta
e cinco cartazes, percebe-se que a convergência
na selecção dos 239 cartazes, sublinha a
importância desses mesmos cartazes na amostra.
DOCUMENTAR O DESIGN
isso diversas designações2. Para além das
designações, apurou-se que a sua identiicação
sofreu alterações no tempo, desde o uso de
marcas, até a assinaturas mais caligráicas com
um certo pendor artístico e por im o uso da
convencional tipograia.
Referente à representação de texto e imagem,
apesar da quantidade signiicativa de variações
é possível identiicar traços morfogenéticos que
caracterizam cada um dos séculos. Sendo
o cartaz do séc. XVII caracterizado por um texto
em corandel justiicado, com inluências de Aldus
Manutius (1449-1515), designado por Garamond
(1495) (Fonseca, 2001, p. 12), e a presença de
uma vinheta ou capitular. Formalmente, o cartaz
do século XVIII é muito próximo do anterior,
apresentando uma carga de conteúdos de texto
muito pesada, sendo o desenho tipográico
próximo do tipo tipo Ibarra criado em Espanha
em 1780, com uma pequena variante tipográica
e ainda a utilização de um ilete na organização
formal, dividindo a mancha de texto em duas
colunas. Para o séc. XIX, o cartaz apresenta maior
diversidade de tipos, incutindo um dinamismo
visual à informação de texto, tornando-se mais
apelativo. No séc. XX, a imagem impera, ou seja,
a tipograia e imagem fundem-se diluindo o texto
na representação, propondo composições mais
dinâmicas e onde a cor passou a desempenhar um
papel preponderante na representação.
41
impor regularizações sobre o que é o design.
Se por um lado existe um conjunto de documentos
que se inscrevem na identiicação do que a norma
propõe, por outro, ao terem sido adicionadas
outras camadas de conhecimento aos documentos,
que passou pela hermenêutica, veriicando-se que
a informação sobre o design se tornou cada vez
mais completa e complexa.
Pela descrição apresentada, foi possível
perceber que a percepção do que é documentar
e comentar na área do design deve englobar
a sensibilidade dos sentidos, a nível físico e
emocional, que passam inevitavelmente pela
memória e a experiência que funcionam como
um adensamento e clariicação de ideias sobre
o design, contribuindo-se assim para a
valorização da disciplina, quer para os
especialistas, quer para a esfera pública.
42
Queria terminar com estas frases a minha
apresentação: Ganhei muitos amigos com
a investigação. E o meu estudo é incompleto...
Pois, existem mais documentos e mais
comentários por fazer... ×
› Bibliografia
BARBOSA, Maria Helena Ferreira Braga (2011) - Uma história
do design do cartaz português do séc. XVII ao séc. XX. Orientação
Vasco Branco, Co-orientação Anna Calvera. Aveiro: Universidade
de Aveiro, Portugal, 2014.
Dicionário da língua portuguesa (1999). 8ª ed. rev. act. Porto: Porto
Editora, 1999. 1794 p. ISBN 972-0-05001-2.
DILNOT, Clive (2014) – Is there an ethical role for the history of
design? Redeeming through history the possibility of a humane
world. In BARBOSA, Helena; CALVERA, Anna (2014) - 9th
International Conference of ICDHS - International Committee for
Design History & Design Studies – “Tradition, transition, trajectories:
major or minor inluences?” Proceedings. Aveiro: Universidade Aveiro,
2014. ISBN 978-972-789-421-5. p. 57-80.
FONSECA, Fernando Taveira da (2001) – A Imprensa da
Universidade no período de 1537 a 1772. In FONSECA, Fernando
Taveira [et. al.] – Imprensa da Universidade de Coimbra uma história
dentro da história. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2001. ISBN
972-8704-02-X. p. 7-52.
RESENDE, Jorge Manuel; VENTURA, José; DUARTE,
Eduardo (1996) – Terminologia controlada para indexação de
documentos na área do design. Lisboa: Instituto da Biblioteca
Nacional e do Livro, 1996. 13 p. ISBN 972-565-218-5.
43
44
45
Francisco Providência
O que
ifica
De
46
português?
“Durante o futuro inteiro, seremos sempre
alguém que esteve naquele passado. Não podemos
ingir que não vivemos” José Peixoto1
Resumo:
O que signiica Design português?
A questão simples e complexa que está subjacente
à diiculdade em encontrar meia dúzia de objetos
sobre os quais construir o Museu do design
português é, como desenhar o design português
sem cair na tentação de Raul Lino.
O projeto de Museograia do Design Português,
inanciado pela FCT e atualmente em curso na
unidade de investigação ID+, levanta três ordens
distintas de questões:
1. qual é o estado da arte da museologia
contemporânea?
As três questões são complexas e exigem uma
relexão interdisciplinar alargada. A museograia
do design português pode ser perscrutada sob a
pragmática da museograia contemporânea, na
pesquisa semântica do signiicado da museograia
do design e na sintaxe de um desenho português.
Não querendo (nem podendo) responder
deinitivamente sobre este assunto, proponho-me
ensaiar aproximações ao terceiro tema, a partir
da ideia de portugalidade expressa por Fernando
Pessoa a propósito da revista Orpheu que cumpre
este ano o seu centésimo aniversário.
1
José Luís Peixoto “Todo o vinho já bebido / All the wine already drunk” in
UP, TAP Portugal nº 73 (mensal), Lisboa, novembro 2013, p.64.
PAINEL 1
3. qual é a gramática do “Design português”?
DOCUMENTAR O DESIGN
2. qual é o signiicado epistemológico da
museograia do design?
47
Introdução: O Panteísmo na raiz
da identidade portuguesa
A par do simbolismo francês e do modernismo
italiano, o panteísmo português era, para Pessoa,
o contributo mais genuíno de Portugal ao mundo,
cuja missão estava plasmada no programa do
2º número da Orpheu, que então dirigiu com
Mário de Sá Carneiro.
48
Francisco Providência
O que significa Design português?
A nossa revista acolhe tudo quanto representa a
arte avançada (...) descendemos de três movimentos
mais antigos — o “simbolismo” francês, o panteísmo
transcendentalista português, e a baralhada de coisas
(...) de que o futurismo (...) e outros quejandos são
expressões ocasionais. (Pessoa, Fernando, [1914]
1966: p.134) 2
Mas o que é o panteísmo português?
Na doutrina Panteísta3, não se faz distinção
entre Deus e o mundo, Deus é a natureza e, por
isso, advoga o regresso do homem ao estado
natural, condição para a sua plena realização.
Este regresso à natureza manifesta-se na
oposição à artiicialidade de um discurso de
presunção sobre a realidade.
É o conhecimento que vem de Caeiro4, o poeta
mestre de todos os seus heterónimos, o sábio
que era sábio porque se obrigava ao exercício de
2
Pessoa, Fernando. Páginas íntimas de auto-interpretação. Lisboa: Ática,
1966: p.134 In Ferreira, Luís. Artes gráicas em Portugal em el período de las
vanguardias histór
3
Panteísmo, (Pan, do gr. pant, raiz de “todo” + teísmo do gr. théos “Deus” +
ismo).
4
Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) é o autor iccionado por Fernando
Pessoa que o considerava mestre ingénuo dos restantes heterónimos, apesar
de ter cumprido apenas uma instrução de nível primário. Caeiro, um rural
ribatejano, despreza e repreende qualquer tipo de pensamento metafísico ou
ilosóico, propondo a relação direta com o mundo. Para isso impõe-se um
exercício de desaprender até chegar à relação mais inocente com o mundo,
isto é, a relação mais direta e não mediada pelo conhecimento. Só assim julga
poder encontrar a verdadeira felicidade, onde a complexidade e obscuridade
darão lugar à pura sensação que nos faz ver de forma objetiva e natural a
realidade. “Os meus rebanhos são as minhas ideias e as minhas ideias são
todas sensações”. Procurando a mais pura simplicidade natural, vive para a
sensação como única realidade. Pessoa limitou-lhe a vida apenas a 26 anos de
idade, atribuindo o ano da sua morte ao ano seguinte à publicação do segundo
número da revista Orpheu.
desaprender, para poder ver sempre tudo como se
fosse pela primeira vez.
“O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar
(...) E nem pensar quando se vê / Nem ver quando se
pensa. // Mas isso (...) exige (...) uma aprendizagem de
desaprender.”5
Esta descida à compreensão fenomenológica da
realidade, esta suspensão do conhecimento para
conhecer verdadeiramente com os sentidos,
será a diferença em que se disciplina Caeiro e que
Pessoa invoca enquanto panteísmo português;
é a condição ontológica de ser todo o Universo,
que o faz sentir a carência pelo Universo todo que
ainda não é.
“O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar
é estar doente dos olhos) (...) // Eu não tenho ilosoia:
tenho sentidos... / Se falo na Natureza (...) é porque
(...) a amo, e amo-a (...) porque quem ama nunca sabe
o que ama / Nem sabe por que ama, (...) Amar é a
eterna inocência, / E a única inocência é não pensar...”7
E por isso, Caeiro propõe o regresso à natureza
como regresso ao ser. Mas o que é a Natureza?
5
Caeiro, Alberto (1914). O Guardador de rebanhos (poema 24)
6
Idem (poema 46)
7
Idem (poema 2)
PAINEL 1
Caeiro advoga a ilosoia de não ter ilosoia
nenhuma, como um progresso de regressar
às sensações primitivas, de ver em vez de
pensar e de ser no estar presente em vez
de ser no estar re-presente, que só será
possível pela função amorosa da inocência,
como se só quem ama pudesse conhecer,
negação do positivismo cientíico.
DOCUMENTAR O DESIGN
“Procuro despir-me do que aprendi, (...) Desembrulharme e ser eu, (...) um animal humano que a Natureza
produziu (...) o Descobridor da Natureza (...)
o Argonauta das sensações verdadeiras. / Trago
ao Universo um novo Universo / Porque trago ao
Universo ele-próprio.”6
49
Coisas sem unidade nenhuma. Deus é a Natureza.
Mas Deus não é a representação de Deus. Só o
homem pensa Deus, por isso caberá ao homem ser
a consciência de Deus.
Mas Deus transcende a sua representação
humana, porque Deus é a Natureza e a natureza
não pensa. Deus será então apenas o superego do
homem, o seu destino simbólico, a sua realização
pensada; se o ser se realiza na natureza e se a
natureza não pensa, então o homem pensante
é sobrenatural (ou artiicial) e o pensamento uma
heresia contra a natureza.
50
Francisco Providência
O que significa Design português?
O panteísmo português, de que fala Pessoa,
será também isto: a forma de estar no mundo em
verdade, ou seja a poesia.
“Vi que não há Natureza, (...) Que um conjunto real
e verdadeiro / É uma doença das nossas ideias. // A
Natureza é partes sem um todo”8 e “O único sentido
íntimo das cousas / É elas não terem sentido íntimo
nenhum (...) se Deus é as árvores e as lores (...)
Para que lhe chamo eu Deus?”9 “As coisas não têm
signiicação: têm existência. / As coisas são o único
sentido oculto das coisas.”10 “Ah, os sentidos, os
doentes que veem e ouvem!” “Pensar em Deus é
desobedecer a Deus.”12 “Só a Natureza é divina, e ela
não é divina...”13
Caeiro professa assim um misticismo de viver
naturalmente, ainda que isso seja contrário à sua
natureza artiicial; ao desenvolver a linguagem,
o homem inventou a ciência enquanto dispositivo
de conhecer, superando a sua origem natural.
Mas a linguagem provoca o esquecimento do
8
Idem (poema 47)
9
Idem (poema 5)
10
Idem (poema 39)
11
Idem (poema 41)
12
Idem (poema 6)
13
Idem (poema 27)
ser, alienando o homem do tempo e do espaço,
desassossegando-o. Só a linguagem da poesia
permitirá resgatar o ser (Heidegger), fazendo
regressar o homem ao ser, à sua realização em
liberdade, ou seja, à felicidade.
“A minha alma é simples e não pensa. // O meu
misticismo é não querer saber. / É viver e não pensar
nisso. // Não sei o que é a Natureza: canto-a.”14
“(Louvado seja Deus que não sou bom, / E tenho o
egoísmo natural das lores (...) preocupadas (...)
só com o lorir (...) É essa a única missão no Mundo,
/ Essa - existir claramente.”15 “Se eu pensasse nessas
coisas, / Deixaria de ver as árvores e as plantas (...)
Para ver somente os meus pensamentos... / Entristecia
e icava às escuras”16. “A recordação é uma traição à
Natureza, / Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
/ O que foi não é nada, e lembrar é não ver.”17
Este será, porventura, o contributo português
para o mundo, ou o tal Quinto império pessoano.
A poesia como um movimento de olhar para fora,
sem querer ver outra coisa se não o fora que se
manifesta. E este olhar de fora e para fora que
14
Idem (poema 30)
15
Idem (poema 32)
16
Idem (poema 34)
17
Idem (poema 43)
18
Idem (poema 26)
PAINEL 1
“E há poetas que são artistas / E trabalham nos
seus versos / Como um carpinteiro nas tábuas!...
// Que triste não saber lorir! (...) Quando a única casa
artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem
e é sempre a mesma.”18
DOCUMENTAR O DESIGN
A dimensão poética que propõe Caeiro não
é a artística, não vem da tradição técnica dum
artesanato das palavras, mas do ser que vive
em realização no mundo, bio-gráica, vivendo
e morrendo como coisa natural e assim deixando
sobre a terra o depoimento da sua pegada.
51
resgata o Homem para o ser, este exercício zen
de não pensar para ver, é toda uma estética que
sacriica a ideia de beleza comum, à experiência
própria de sentir.
52
Francisco Providência
O que significa Design português?
“Penso e escrevo como as lores têm cor.” “Às vezes (...)
Pergunto a mim próprio (...) porque atribuo eu / Beleza
às coisas (...) A beleza é o nome de qualquer coisa que
(...) eu dou às coisas em troca do agrado que me dão. (...)
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!”20
Não deixa de ser paradoxal que talvez o maior
pensador português do séc. XX seja poeta
e não ilósofo, ou será exatamente nisso que
se distinguem as culturas germânica
e portuguesa. Uns pensando o pensamento,
outros exercitando-o na existência. A poética
convoca o corpo (de memórias), um corpo
autobiograicamente afetado que, por isso,
iltra o conhecimento com a sua própria
experiência, domesticando-o.
“Os poetas místicos são ilósofos doentes, / E os
ilósofos são homens doidos. (...) Por mim, escrevo
a prosa dos meus versos / E ico contente, / Porque
sei que compreendo a Natureza por fora; / E não a
compreendo por dentro / Porque a Natureza não tem
dentro; / Senão não era Natureza”.21
O mesmo panteísmo que recusa o conhecimento
de querer perceber a natureza por dentro,
também faz de todos os homens irmãos sob
o mesmo sol. O sol astro quente e luminoso
que atrai a terra e lhe dá vida e não outro,
mitiicado e transcendente.
“Bendito seja o mesmo sol de outras terras / Que faz
meus irmãos todos os homens / Porque todos os homens,
um momento no dia, (...) regressam (...) ao homem
verdadeiro e primitivo / Que via o Sol nascer e ainda o
19
Idem (poema 41)
20
Idem (poema 26)
21
Idem (poema 28)
22
Idem (poema 38)
não adorava. / Porque isso é natural - mais natural
/ Que adorar o ouro e Deus / E a arte e a moral...”22
Poderemos concluir que o tal panteísmo português
invocado por Pessoa e cantado por Caeiro no
anúncio da modernidade nacional, é ainal a
manifestação de carência ante a impossibilidade
do todo que terá originado a aventura da
globalização marítima, deixando um rasto de
híbridos seres e novas culturas, a que poderíamos
designar por disposição para o outro.
Reconhecem-se no panteísmo português
de Pessoa as mesmas qualidades que
defendemos perseguidas por Álvaro Siza
na sua obra arquitectónica.
1. Pertinência do tema da identidade
do desenho português
O tema que escolhi vir aqui tratar é, se não
impossível, pelo menos bastante difícil. O tema
Design português ou O que signiica Design
português, sendo difícil e necessário, suscita uma
rajada de perguntas:
— O que é? Como se diferencia? Quem o diz?
Para que serve?
PAINEL 1
Híbrido, lacónico e metafórica, o panteísmo
português, orgânico e lacónico, parece
signiicar um regresso à realidade da terra
pelos sentidos, exalando a fraternidade
universal, mas procurando na maior
simplicidade a forma da natureza na qual
se exprime como um poema biológico.
DOCUMENTAR O DESIGN
Esta dimensão nostálgica tem no verso a
alegria do pragmatismo sensorial que se opõe
a todo o intelectualismo. Ver por fora e por
fora compreender a vida humana enquanto
manifestação puramente biológica. Prescindir
dos símbolos falsos para encontrar as sensações
verdadeiras, sentindo-se natural e irmão de todos
os seres. Mas se recusa as metáforas como igura
de estilo, Caeiro exprime-se pela metáfora que é a
própria sintaxe poética. A sua escrita é a sua vida e
a sua vida é toda uma poesia verdadeira e natural.
53
54
Francisco Providência
O que significa Design português?
Se a questão da identidade portuguesa trouxe
tanto esforço estéril à comunidade intelectual
nacional, sobretudo a partir do séc. XIX, em
consequência da imposição do ultimato britânica
que a Inglaterra fez com o apoio dos EUA (1890),
subjugando o domínio colonial de Portugal em
África — incidente que deu origem à criação do
hino nacional (A Portuguesa) como o conhecemos
hoje, composto por Alfredo Keil—, ou ganhando
contornos de nacionalismo fascista numa Europa
em convulsões territoriais durante a primeira
metade do séc. XX, ela é, parece ser, uma
resposta natural à ameaça de soberania.
Fala-se da identidade portuguesa no design,
para esconder (ou esquecer) a submissão de
Portugal ao desenho dos outros.
Não temos dúvida que a airmação da identidade
portuguesa constituirá uma dupla icção:
a icção de se julgar português e de achar que a
isso corresponde um ato de soberania. Será pois
a ameaça da submissão económica à Europa,
à China ou a Angola que poderá justiicar a
atualidade do tema, ainda que esta seja uma
questão que Portugal traz consigo mesmo,
desde a origem da nacionalidade.
A identidade é, também, a evidência do ser
no domínio da linguagem. A língua enquanto
domínio de conhecimento e consequentemente
de liberdade, é domínio político de airmação
patriótica. Embora Fernando Pessoa não atribua
intenção política ao escrever que a sua língua é
a sua pátria, mas a defesa compulsiva de uma
sonoridade e sobretudo de uma sintaxe própria,
como explica; na verdade a linguagem é o sinal
mais íntimo na construção de uma comunidade.
Ainda antes de nascermos, crescemos no ventre
materno envolvidos pelo ressoar vocal da nossa
mãe que nos ensina a língua materna. Da língua
materna fazem parte os sabores do que comemos,
os mitos que repetimos, os alvos do nosso riso
e principalmente a icção do que desejamos ser.
Confrontados com o que são, os portugueses têm
manifestado o desejo de serem (hospitaleiros,
nostálgicos, inventivos, desenrascados, poetas).
Mas é quando se deslocam, quando emigram
ou viajam que percebem a alteridade da sua
diferença. A identidade será então a airmação
de uma diferença que corresponde a uma
semelhança iccionada e repetida.
Essa icção identitária ganha realidade pela
materialização das coisas. É disso que se trata
no design manuelino, com a ediicação no novo
estilo capaz de trazer a evidência da diferença
e a reputação da sua origem, expressão
internacional da marca Portugal no séc. XVI.
Portugal nunca mais voltou a reproduzir essa
marca com o mesmo poder que a moeda padrão
do comércio intercontinental lhe conferia.
A construção de um design português justiica-se também pela necessidade de defender
uma origem, produto desta região demarcada
(território cultural), sinal da sua diferença
(distinguível entre pares) e princípio de coesão
pela sua semelhança (comum entre os seus).
e o estudo levado a cabo pelo Icep sobre
reconhecimento do valor da marca Portugal no
mercado de calçado, conirmando uma notoriedade
negativa em cerca de 30 % (o mercado tinha mais
30% de intenção de compra se não soubesse que a
origem era portuguesa).
Estas duas proposições evidenciam, não só a
urgência da re-construção de uma identidade
portuguesa (ou dos produtos portugueses), como
do seu reposicionamento internacional. A questão
estará na origem de múltiplas campanhas levadas
PAINEL 1
o relatório sobre a economia portuguesa
realizado pela McCann Erickson para o 15º
governo, concluindo a necessidade de inverter
a política industrial de subcontratação para
outra de valorização de marca (das exportações
portuguesas, menos de 2% eram realizadas com
marca própria, ao contrário da Espanha com
cerca de 50% e da Itália com 80%);
DOCUMENTAR O DESIGN
É pela percepção da nossa diferença que
domesticaremos o mercado em vez de nos
submetermos ao reboque das suas tendências
e exigências. A liderança antecipa-se, desenha
o futuro porque desenha novas necessidades,
conduz o mercado. Mas não bastará fazer o
diferente. Duas famosas notícias trouxeram
novos motivos de relexão nacional:
55
Francisco Providência
O que significa Design português?
56
a cabo pelo Estado, recorrendo a jogadores e
treinadores de futebol, artistas internacionalmente
consagrados e à divulgação do património,
natural, histórico, monumental do país ou da
sua representação como reconhecido fornecedor
tecnológico. Mas nas mais recentes mensagens
televisivas, vende-se Portugal como aprazível
lar de terceira idade, convidando os reformados
europeus a aplicarem aqui as suas economias.
No limite, urge re-construir o mito do desenho
português, já não como o desejou o Estado Novo
pela cabeça de António Ferro, ou pela mão
patriótica de Raul Lino, mas observando
a ideologia de uma modernidade vernacular como
alternativa ao Modernismo Internacional (da
carta de Atenas) e ao Modernismo Nacionalista
(do Estado Novo). É a terceira via de uma
modernidade vernacular, ou do regionalismo
crítico, que a Escola do Porto re-inventou,
conciliando a modernidade com a assunção da
cultura local, materializada nos nossos mais
notados desenhadores como Álvaro Siza ou Souto
de Moura, internacionalmente reconhecidos pela
distinção do Prémio Pritzker23 respetivamente
em 1992 e 2011.
2. Um caso de estudo: a Escola do Porto
“Porto Poetic”24, exposição comissariada por
Roberto Cremascoli na Galeria Almeida Garrett
no Porto recebeu, no seu último dia de exibição
(13 Abril de 2014), a visita guiada e comentários
do Arqº Eduardo Souto de Moura, enquanto um
dos protagonistas da Escola do Porto.
A monograia da revista Lotus sobre Álvaro
23
Prémio Pritzker, criado pela fundação Hyatt, é considerado o Nobel da
Arquitetura.
24
A exposição trata genérica e documentalmente aquilo que se designa por
Escola do Porto, anteriormente exibida na Triennale di Milano (entre
13 de setembro a 27 outubro de 2013). Centrada na obra dos arquitetos
Álvaro Siza e Souto de Moura, a exposição apresenta obras dos arquitetos
Fernando Távora, Adalberto Dias, Camilo Rebelo / Tiago Pimentel, Carlos
Castanheira, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos, Isabel Furtado
e João Pedro Serôdio, João Mendes Ribeiro, José Carvalho Araújo e Nuno
Brandão Costa. O critério de seleção destes autores não é totalmente evidente,
atendendo às ausências de alguns históricos como José Manuel Soares, Pedro
Ramalho, Manuel Correia Fernandes, João Álvaro Rocha ou de outros mais
novos como António Portugal, José António Gonçalves e Paulo Providência.
Siza25, Professione Poética (1986), foi o primeiro
grande impulso para a internacionalização da sua
obra e através dela, de toda a Escola do Porto,
produzindo uma curiosidade mundial crescente
na agenda da imprensa especializada.
Mas do que se trata quando se refere a Escola
do Porto? Cremascoli justiica a exposição Porto
Poético essencialmente na obra dos arquitetos
Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura. Mas
o Eduardo Souto de Moura vem reforçar a
importância do professor e arquiteto Fernando
Távora e antes deste de Carlos Ramos. Um
vasto conjunto de proissionais, alguns deles
desempenhando atividade docente na Faculdade
de Arquitetura da Universidade do Porto, dão
continuidade ao modelo regenerativo da antiga
Escola do Porto.
“A Escola do Porto não é se não um ambiente,
uma cultura e um legado inter-geracional de
amizade, como diz Souto de Moura, uma cultura
25
Álvaro Siza, Professione poética, ed. Quaderni di Lotus – série editada
por Pierluigi Nicolin, 1986. A capa apresenta fotograia de Giovanni
Chiaramonte, com representação do edifício Bon jour tristesse, desenhado
por Álvaro Siza e construído em Berlim.
PAINEL 1
Um dos factores mais relevantes para a coesão e
relexão colectiva da Escola do Porto, estará, sem
dúvida, nos almoços, jantares e viagens desta
comunidade. Aprende-se tanto nas aulas como
nas viagens, confessa Souto Moura. A prática da
viagem ligando professores com alunos, juntava
o lado humano ao lado teórico e prático.
(Souto, 2014).
DOCUMENTAR O DESIGN
Os professores mantinham atividade proissional
em atelier próprio, onde recebiam a colaboração
de alunos e ex-alunos que, por sua vez, entravam
na relexão crítica colectiva de uma comunidade
que se encontrava na Arquitetura, que gostava de
Arquitetura. Como refere Souto Moura, embora
houvesse grandes diferenças e, talvez por isso,
as pessoas respeitavam-se. O Siza foi um rebelde
em relação ao Távora (o Távora quando se fez
a faculdade de Arquitetura tinha enfartes...
entrava e dizia: _Isto é “fachadismo!” ...
mas vai acabar bem porque ele é muito bom!
57
construída por três gerações de arquitetos
(...) que conseguiu deinir uma identidade
arquitectónica nacional, internacionalmente
reconhecida” (Roberto Cremascoli). Embora
Eduardo Souto Moura, na visita guiada de à
exposição Porto poetic26 confesse, em tom
jocoso, não saber o que é a Escola do Porto...,
identiicará a sua fundação histórica.
58
Francisco Providência
O que significa Design português?
“Carlos Ramos que renovou o corpo docente e
introduziu uma nova pedagogia e o Távora e o Viana
de Lima que não vão lá fora buscar, mas produzem as
próprias vanguardas. O Távora funda (em Portugal)
um grupo que como o Team ten (Team X) contesta o
movimento moderno. (...) O Távora acerta o passo com
a História da Arquitetura, é protagonista da vanguarda
e da contemporaneidade da arquitetura portuguesa”.27
Este é reconhecido como o primeiro passo para
a airmação de uma modernidade localmente
revista, como aconteceu na Finlândia com Alvar
Aalto, que Siza admira desde a sua formação.
Siza, um jovem tímido e atento que desejava ser
escultor, acaba por colaborar como arquiteto no
escritório do seu professor Fernando Távora,
desenhando uma arquitetura síntese das
referências que acompanhavam a sua formação,
construindo uma linguagem de citações; por isso
pós-moderno, como lhe chama Souto Mouro.
As suas inluências do Japão, do Távora, do
Aalto, da arquitetura vernacular portuguesa
ou dos próprios lugares onde intervém, são
transformadas pelo desenho, pelo seu corpo
físico e mental através do desenho, adquirindo
na mestiçagem, uma robusta unidade de
linguagem; apesar de impossível, se a queremos
traduzir sintaticamente como enunciado estilístico.
“A arquitetura do Siza não tem grandes
axiologias (...) é um work in progresso,
desenvolvido com gente nova, com os seus
colaboradores” (Souto Moura, 2014).
26
Vídeo “Porto Poetic - Visita Guiada“, in http://www.ctchannel.tv/video/146
(visualizado em 5 de novembro de 2014)
27
Idem
Ao referir-se à primeira e mais emblemática
obra de Siza, o restaurante da Boa Nova em
Matosinhos, Souto de Moura admite tratarse de um objecto que reconhece o genius loci
(à semelhança da capela que se encontrava
já erigida no mesmo local) — “portanto ele
percebeu perfeitamente o sítio”—, conclui
Souto; ao convocar o imperativo do lugar, está
Souto a veicular inconscientemente uma das
lições mais insistentes e profícuas de Távora,
sobre o espírito do lugar. É este respeito pelo
espírito do lugar que leva Siza a tomar tantas
e tão distintas formas arquitectónicas ao longo
da sua obra, procurando perceber e adoptar a
atmosfera, o ambiente, as técnicas e materiais,
a cultura e as pessoas de cada sitio.
Siza pós-moderno (apropriando-se dos pontos
de vista de Wright + Loos + Aalto) desenha uma
arquitetura da citação, complexidade e fractura
(1984-1999).
Souto neo-moderno (elegendo o pragmatismo de
Mies como referência), propõe-se mais modular
e racional, ainda que alegórico (1999-2014).
Na verdade não há uma unidade estilística, mas
uma relexão discutida inter-geracionalmente por
professores e alunos, que se tornou internacional
a partir da divulgação da obra de Siza. Siza que
traz consigo Souto Moura.
Mas do conjunto de preocupações deste
vastíssimo grupo de arquitetos proissionais que
passaram pela Escola do Porto (refundando-a
e disseminando-a para Coimbra e Guimarães),
PAINEL 1
Távora moderno (na linha de Le Corbusier) que
substitui Carlos Ramos na direção da escola
e conciliará o estilo internacional com o
modernismo regional e vernacular (1969-1984).
DOCUMENTAR O DESIGN
Como síntese da exposição de Cremascoli
comentada por Souto Moura, ica a ideia de que
a Escola do Porto é o produto de um encadeado de
relações construídas no tempo a partir da direção
de Carlos Ramos (entre 1952 e 1969). Estes 45
anos de história sobre a morte de Carlos Ramos
(1969-2014), foram marcados por três autores:
59
poderemos eleger a partir da sua obra, três
traços comuns:
1. O genius loci (espírito do lugar); a adopção
da inluência de pessoas e lugares, ou seja de
lugares físicos e mentais, de que resultará uma
arquitetura de miscigenagem.
2. O desenho poético (invocação do corpo
no fazer); o recurso ao desenho como
meio de relexão sobre a ex-sistência, do que
resultam obras construídas como metáforas
autobiográficas.
60
Francisco Providência
O que significa Design português?
3. A cultura material (por observação da
cultura vernacular); a eleição do primado da
maior conservação de energia, que se relete
na expressão de simplicidade morfológica e
no respeito pelas técnicas e materiais artesanais.
A Escola do Porto interessa-nos pela projeção
internacional que conquistou, mas há em
Portugal muitas outras Escolas do Porto, de
cada vez que um grupo de proissionais, unidos
pela amizade, pensa em conjunto e trabalha
individualmente. A Protodesign, por exemplo,
será uma espécie de Escola do Porto em Lisboa.
A Escola das Caldas é também uma Escola do
Porto, fundada pelos designers e docentes do
Politécnico de Leiria em serviço nas Caldas.
Curiosamente as suas obras e atitudes são
bastante convergentes com as da Escola do Porto.
Sobre elas também poderemos identiicar as
contaminações morfológicas de outros autores,
as metáforas autobiográicas que airmam e uma
certa devoção pelos materiais e técnicas que lhes
darão exequibilidade.
3. A Escola do Porto vista a partir de fora
Recorrendo a outros contributos auxiliares para
melhor compreender a identidade portuguesa
e privilegiando a observação distanciada do
exterior, encontrámos o contributo de Robin Fior.
O designer Robin Fior que partiu de Londres em
1972 para viver em Portugal nos quarenta anos
seguintes (1972-2012), trouxe à Lusitânia
a marca da dimensão crítica, na convicção de
que o Design não é neutro; está carregado de
ideologia e, por isso, carece de discussão e
esclarecimento social, político e estético.
Sob um racionalismo impiedoso que na avaliação
do mundo não abdica dos seus postulados,
considerava o design ao serviço de uma sociedade
em transformação e por isso construtivista ou
neo-construtivista. Para Robin, o signiicado
dos objetos gráicos estava desde logo plasmado
na sua sintaxe e por isso, mais na gramática da
organização formal da sua retórica visual do que no
conteúdo verbal das suas intenções comunicadas.
Mas o que parece mais estranho e clarividente
no seu texto, é o modo como o termina, exaltando
o regionalismo crítico da escola de arquitetura
28
Neologismo de Robin Fior, associando a marca Macintosh à sigla TM ou
trade marc e, consequentemente, conotando este dispositivo tecnológico mais
à submissão comercial global do que à investigação poética do desenho local.
PAINEL 1
Num texto marcadamente escrito a partir
de Lisboa (e ainda que Fior se tenha esquecido
de nomes importantes como o de João Machado),
revela-se com singular clareza na leitura da
recente cultura do Design português, criticando
os efeitos da “Mac(TM)anização”28, expressão
de um país temporária e artiicialmente
enriquecido pela integração na comunidade
europeia que, motivado pelo protagonismo
internacional, acabará refém da tecnologia
(sem tempo para pensar) e da globalização
(importando o desenho estrangeiro).
DOCUMENTAR O DESIGN
Na comemoração do 25º aniversário do 25 de
Abril de 1974, o nº5 da Revista Camões (órgão do
Instituto da cooperação e da língua portuguesa)
convidou vinte autores a reletirem em revista
sobre a cultura portuguesa nos últimos vinte e
cinco anos, sob as mais diversas expressões.
É neste contexto que é publicado em 1999 o seu
artigo “Graismo Global e Local” - Design gráico
em Portugal desde 1974. A relexão é construída
numa simbiose entre o relato histórico do
observador estrangeiro distanciado e a inscrição
subjetiva de um ator implicado, resultando numa
espécie de testemunho-testamento, de tomada de
consciência sobre o Design em Portugal.
61
62
Francisco Providência
O que significa Design português?
do Porto, como resolução do problema da
interação do io do argumento (semântica) com
a estrutura do objeto gráico (sintaxe), a leitura
do signiicado com e contra a forma onde está
inserido, a leitura do local no global, que deixa
como herança para o futuro do Design português.
Este vernacular recuperado pelo regionalismo
crítico do Porto, constitui ainal, na sua opinião,
o acesso a uma genuína modernidade local, capaz
de se impor à globalidade.
A clarividência do texto mostra um conhecimento
atento de Fior sobre a realidade do desenho
português. De facto se há uma proposta de
modernidade crítica local, que tenha contribuído
para o movimento global das ideias, ela reside na
produção da Escola do Porto, internacionalmente
reconhecida. A propósito, Lembra Souto Moura
que Teotónio Pereira em Lisboa, teria tido o
mesmo protagonismo de Távora no Porto,
não fosse a sua sistemática detenção policial,
em consequência do seu empenho social e
político contra a ditadura do Estado.
4. O Design português29.
A questão simples e complexa que está subjacente
à diiculdade em encontrar meia dúzia de objetos
sobre os quais construir o museu do design
português é, como desenhar o design português
sem cair na tentação de Raul Lino. Para não
o desenhar fechado em si mesmo, genuíno,
coerente e consistente, Álvaro Siza, recorrendo
à mesma mediação do desenho, desenhou-o
aberto à contaminação cultural do outro, lacónico
nos remates invocando o vazio da “pobreza”
como luxo e convocando a poética através da
metáfora, como primeira razão do fazer.
Nestas três condições estará a diferença de um
design português fundado na geograia do seu
território e na história da sua nação: fundado
na hibridização cultural (genotípica) de um lugar
sobre-ocupado que, sendo um cadinho
de culturas muito diferentes aqui concentradas
por força das circunstâncias geográicas de
29
Texto redigido para a deinição do Projeto CIDES.PT / ID+
(18 novembro 2013).
cul-de-sac territorial europeu (para quem
na Europa seguisse o sol), também serviu de
porto de partida e relação com outras culturas
ultramarinas e distantes, tanto para oriente
como para ocidente, origem de movimentos
migratórios que se registam desde a origem
da nacionalidade no séc. XII.
No entanto, a falta de recursos próprios e
consequente pobreza material, criou as condições
de isolamento (fenotípico), pragmatismo e
escassez ornamental que promovem na sua
expressão artística, se não a indiferença, pelo
menos a desconiança pelo estilo (com as raras
exceções do Manuelino e do Estado Novo).
Estes parecem ser os três pilares de um design
português: a miscigenagem cultural,
o laconismo formal e a metáfora como
argumento. Ao contrário do design alemão que
promete resistência e eiciência, ou do italiano
que promete elegância, o português é o da
poesia, quer dizer da criatividade na existência.
PAINEL 1
Um “país de poetas” que Prado Coelho
reconhece como sinal de diferenciação singular,
a par do sarcasmo como igura de estilo
nacional. O sarcasmo na assunção da culpa,
autofágico e paradoxal, toma a impossibilidade
como solução. Assim parece o Pavilhão de
Portugal, expressão de dever identitário
nacional, desenhado por Siza para a Expo 98,
ligando as duas expressões antagónicas de um
país culto e renascentista, neoclássico, com
outro, pragmático e selvagem, que inventa a
arquitetura sem meios, a partir do desejo.
DOCUMENTAR O DESIGN
Ao longo da história da cultura portuguesa há
frequente registo de uma tendência poética que
começa pela lírica medieval galaico-portuguesa,
tendo a sua maior evidência na Renascença
com Camões, consagrando-se na modernidade
de Pessoa. A poesia e o fado parecem perfazer
um quadro de idealismo mítico, de urgência na
abertura ao possível que também se carateriza
pela exclusão social, desprezando a realidade
(e, por vezes, a vida).
63
Francisco Providência
O que significa Design português?
64
Autores como João Machado ou Sebastião
Rodrigues poderão ilustrar esta ideia que faz
uso de poucos recursos, não abdicando do
elevado efeito da metáfora que em cada projeto
encontrará o estilo de novos argumentos.
Fernando Brízio é talvez dos designers
portugueses o mais radical quanto ao imperativo
da poesia. Mas também o espelho de mesa de
Álvaro Siza, o faqueiro Goa de Joaquim Ribeiro,
ou a iligrana de Liliana Guerreiro possam reletir
de modo exemplar a portugalidade do desenho.
Neste grupo de autores encontramos um registo
programático comum: A sintaxe paradoxal da
pobreza como luxo; a miscigenagem cultural
como identidade; e a poética como programa
funcional. Porventura terão as três características
fundação numa mesma e comum condição: a
escassez de meios materiais ou seja, a pobreza.
A miscigenagem nasce da necessidade de partir à
procura de condições para a sobrevivência, ou da
recepção de quem chega com o mesmo propósito;
a poética que inventa novas realidades sobre a
realidade, é condição de esperança e motivo de
mudança; e a transformação da pobreza como
narrativa de luxo, é a tomada de consciência sobre
a própria existência.
Clotilde Luce, jornalista do L’Express, observa
Portugal a partir de França onde nasceu e dos
EUA onde reside, reconhecendo que aqui, a falta
de recursos inanceiros está na origem de um
verdadeiro luxo cultural, como escreve no seu
artigo “Em Portugal, a falta de luxo é um luxo”.
Acreditando não se tratar de puro cinismo, Luce
percebe nos mais ocultos detalhes da cultura
material e imaterial portuguesa, uma inteligência
estética que inventa o luxo a partir da pobreza,
que faz da pobreza um estilo de luxo. O estilo,
diz-nos Hanna Schygulla (em entrevista ao JN e a
propósito de Fassbinder), faz-se, transformando
aquilo que nos falta, numa nova força. Ora parece
ser esta condição de pobreza o motor de uma
novidade que o mundo talvez desconheça. O
lacónico como máxima expressão de luxo.
5. Conclusão: O que caracteriza a identidade do
design português?
Identidade é o conjunto de caracteres próprios
e exclusivos com os quais se podem diferenciar
pessoas, objetos e culturas, quer pela diversidade
em relação ao exterior, quer pela semelhança
de coesão interna. A identidade é, por isso, uma
forma de fronteira que separa um interior do seu
exterior. Como nas mais primitivas formas de vida
celular, é a membrana plasmática que protege
a vida do organismo. A sua aplicação à história,
à sociologia, à antropologia, ou à gestão, tem
produzido diversas e contraditórias deinições.
30
Luce, Clotilde. Au Portugal, l’absence de luxe est un luxe, ed. L’Express,
editado em 20.07.2013. in www.lexpress.fr/actualite/monde/europe/auportugal-l-absence-de-luxe-est-un-luxe_1267007.html?xtmc=portugal&xtcr
=2#9Df7iYEfKa4Cs9HK.99 (consultado em 12 novembro de 2014).
31
LLANO, Pedro & CASTANHEIRA, Carlos (eds.). 1996. Álvaro Siza:
Obras e projectos. Lisboa: Electa / CCB / CGAC
PAINEL 1
Há na identidade uma dimensão
representacional, projetando uma imagem de si
(consciente), e outra genealógica, herdada, que
nos é imposta (inconsciente). Hoje prevalecem
as imagens “conscientemente” construídas e
colocadas em circulação, nas redes sociais. “Num
mundo em que todas as coisas são transformadas
em imagens, diz-nos Leonídio (O. Leonídio,
2010) que Siza demonstrou ainda ser possível
transformar imagens em coisas.
DOCUMENTAR O DESIGN
A identidade de um país é construída pelos seus
cidadãos, como a obstinada airmação histórica
de uma necessidade até que se imponha ao outro
pela sua diferença. O país sem identidade ica
à mercê da colonização alheia e com excesso de
identidade (como refere José Gil a propósito de
Portugal), esclerosa-se submisso ao seu passado.
A identidade ao serviço da vida pressupõe
uma atualização dinâmica, que se atualizará
interativa, na comunicação com o mundo.
A identidade de um país é construída pelos seus
cidadãos, como a obstinada airmação histórica
de uma necessidade até que se imponha ao outro
pela sua diferença. O país sem identidade ica
à mercê da colonização alheia e com excesso de
identidade (como refere José Gil a propósito de
Portugal), esclerosa-se submisso ao seu passado.
A identidade ao serviço da vida pressupõe
uma atualização dinâmica, que se atualizará
interativa, na comunicação com o mundo.
65
Álvaro Siza, talvez o mais relevante agente
da cultura portuguesa, responde assim à
questão do projeto: “Projectar signiica procurar
uma espécie de independência nos diferentes
condicionamentos até encontrar um campo
de liberdade que inclua as respostas a todos
esses condicionamentos”. A criação de um
campo de liberdade que é, simultaneamente, a
independência a todos os condicionamentos31
e a resposta a todos os condicionamentos, só é
possível pela construção gramatical da diferença.
66
Francisco Providência
O que significa Design português?
— Qual é a diferença estética em Siza? O que é a
beleza em Álvaro Siza?
É a contingência elevada ao absoluto (da forma).
Para isso se apropria do reportório vernacular da
arquitetura; copia-o descontextualiza-o como na
escada do pavilhão Carlos Ramos, recuperando
as escadas (que reduzem a largura em progressão
descendente para não interromperem a via) do
bairro dos Guindais no Porto. Mas também nos
diz Siza que a Arquitetura é a angustia de decidir
e que a sua obra é uma negociação permanente
entre o classismo e a contemporaneidade. Esta
espécie de classicismo que, parecendo moderno
não é corbusiano, prefere as obras pequenas
às grandes, os percursos às fachadas e a
descontinuidade à coerência. Encontra Octavio
Leonídio32 a propósito do edifício Iberê Camargo,
em Porto Alegre, que Siza se assemelha a Loos.
O Loos que Kenneth Frampton descobriu como
“(...) o único arquiteto dos anos 1920 cujo
trabalho manifestava um sentimento dadaísta
(... de) concepção desconexa do espaço”33. Loos
foi o projetista que recusou os ideais de clareza,
31
LLANO, Pedro & CASTANHEIRA, Carlos (eds.). 1996. Álvaro Siza:
Obras e projectos. Lisboa: Electa / CCB / CGAC
32
Leonídio, Otavio. Álvaro Siza Vieira: outro vazio, In http://www.vitruvius.
com.br/revistas/read/arquitextos/11.121/3439 (consultado em 10 novembro
2014) Este texto foi originalmente publicado na revista Log, Nova York, n.
16, Junho 2009. © Otavio Leonídio, 2009. Também publicado em Noz, n. 4,
Rio de Janeiro, março 2010.
33
FRAMPTON, Kenneth. GA Document – special issue n. 3. Modern
architecture 1920-1945. Tokyo: ADA Ed., 1987, p. 284.
positividade e exterioridade característicos do
movimento moderno.
Com o mesmo carácter enigmático, diz-nos
Leonídio que Siza “perscrutou o obscuro e o
descontínuo (...) aspectos de uma poética que,
jamais tomou a continuidade e a clareza como
diretrizes essenciais de projeto”. Por isso, a
emoção que os edifícios de Siza despertam, não é
de absoluta satisfação, “mas de distúrbio, própria
da irritante consciência do fracasso.
(O efeito procurado) é o da coexistência paradoxal
e enigmática”34.
33
Maurice Nadeau, apud KRAUSS, ibidem., p.113.
34
Providência, Francisco. O que é um design português? In Arquitectura e
Vida, nº 85, Setembro de 2007, p.109.
PAINEL 1
Não é de um dia para o outro que se inventa
um código genético de raiz, mas pela seleção
ponderada de cruzamentos e novos híbridos.
Não se trata apenas de identiicar sinais de
identidade, mas de os compreender em contexto.
Isto é, “não basta estagiar na Pininfarina ou
dominar os instrumentos de representação. É
preciso perguntar melhor, antes de responder:
saber perguntar é muito mais difícil do que saber
responder, por mais que a cultura portuguesa
nos empurre no sentido contrário, avisanos o cientista Manuel Sobrinho Simões”35.
(Providência. 2007:109) ×
DOCUMENTAR O DESIGN
Siza propõe assim uma sintaxe da fractura,
com que enuncia a sua portugalidade através
da arquitetura. Também para Mia Couto, o
espaço da língua lusófona não é entendido
como lugar de regra mas de transgressão para
a construção da própria liberdade. A poesia e o
design português deverão ser medidos mais pela
capacidade de se transmutarem no novo e no
futuro, do que em representações de uma suposta
identidade formal, outrora ambicionada. Por isso
o Português não se aplicará tanto à semântica
quanto à sintaxe. O fazer Português (ser / estar
portuguesmente), trata mais do modo como
realizar do que dos signiicados do realizado.
67
68
69
70
PAINEL II
COMENTAR O DESIGN
71
José Bártolo
Maria Teresa Cruz
José Bártolo
História
e
72
sobre
história
do
português.
1. Arquivo
A quinta edição da Meggs’ History of Graphic
Design inclui um curto capítulo dedicado ao
“Design in Spain, Portugal, and Latin America”
no qual a produção de design gráico em Portugal
é, de forma supericial, historiografada numa
resumida narrativa que se inicia com Sebastião
Rodrigues, passa por João Machado e Cayatte e
encerra nos Alva Design Studio.
Defendemos que a História é uma construção
interpretativa que decorre de uma determinada
historiograia. A historiograia sobre design em
Portugal é escassa e dispersa. Até ao inal do
século XX essa produção historiográica cingia-se
ao trabalho de um pequeno número historiadores
de arte, com destaque para José Augusto França,
que não relectia conhecimento metodológico
especíico da história do design.
Não obstante a existência de um Museu de Design
em Portugal (o MUDE – Museu do Design e da
Moda), o trabalho de arquivo está por fazer.
A Hemeroteca Municipal de Lisboa disponibiliza
um arquivo fundamental para o estudo das
publicações periódicas; mais recentemente
a Universidade de Aveiro criou um Arquivo
de Cartazes. Porém, terão sido as poucas
exposições de design português organizadas nos
últimos 15 anos, após a importante exposição
Sebastião Rodrigues designer (Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995), a criar esse arquivo:
exposições dedicadas a Daciano da Costa, António
Garcia, José Espinho, J. Machado, José Brandão
ou a mais recente exposição Almanaque – Um
Século Design Português em Revista (Curadoria
de José Bártolo, Quadra, Matosinhos, 2013) vêm
proporcionado ao público o acesso aos objectos
produzidos e um maior conhecimento do processo
de trabalho.
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
Também defendemos que a historiograia só
é possível se existir arquivo. O arquivo é base
documental a partir da qual se desenvolve
o trabalho de análise, contextualização e
interpretação históricas.
73
Na Introdução ao volume The Archive incluído na
colecção Documents of Contemporary Art, Charles
Merewether declara que “one of the deining
characteristics of the modern era has been the
increasing signiicance given to the archive
as the means which historical knowledge and
forms of remembrance are accumulated,
stored and recovered”.
74
José Bártolo
DOCUMENTO, HISTÓRIA E ARQUIVO
Apontamentos sobre história do design português
Para além da sua importância política, o
arquivo assume um fundamental importância
espistemológica: ele é a base documental a
partir da qual se deve produzir a narrativa
historiográica. A qualidade do arquivo deinirá,
em grande medida, a qualidade da historiograia
é esta, por sua vez, estabelecerá, mesmo que de
forma provisória, a História.
In The Archaeology of Knowledge (FOUCAULT,
1969), the study of the archive was compared
by Michel Foucault to the practice or learning
about the past through its material remains.
The “archaeologist of knowledge” aims to recover
and reconstruct the archive, condição sine qua
non da produção historiográica credível.
Estudar historicamente o design gráico
contemporâneo, i.e., colocando a produção
em contexto e perspectivando-a criticamente,
signiica estudar uma produção gráica recente
o que pode ser feito, sem impedimento do recurso
a outras metodologias, através de uma history
from below, nomeadamente através do recurso
à história oral. Defendemos que a produção
historiográica sobre o design português deve ser
feita na articulação entre a análise de documentos
que constituem arquivos materiais e o gerar de
conhecimento imaterial, nomeadamente, através
da partilha de informação pelos designers que são
protagonistas dessa história.
Um número considerável de investigações
académicas, maioritariamente teses de
Mestrado e Doutoramento, têm recorrido à
produção de entrevistas estruturadas para a
partir dessa informação produzir conhecimento
historiográico. Parte importante da produção
gráica portuguesa do século XX encontra-se
fora de um enquadramento institucional. A título
de exemplo, o valioso espólio da ETP – Estúdio
Técnico de Publicidade é parte da colecção
particular do designer Carlos Rocha. Preocupante
é também o facto de um algum espólio entregue
a instituições encontrar-se perdido ou de acesso
muito reservado, é o caso do arquivo de Sebastião
Rodrigues doado à Fundação Calouste Gulbenkian
na sequência da exposição retrospectiva que esta
instituição acolheu.
2. Historiograia
Como já referimos a 5th edition de Meggs’ History
of Graphic Design (Meggs and Purvis, 2011)
inclui um curto capítulo dedicado ao “Design
in Spain, Portugal, and Latin America” no qual
a produção de design gráico em Portugal é
historiografada numa resumida narrativa que
se inicia com Sebastião Rodrigues e encerra nos
Alva Design Studio. O texto escrito por Alston W.
Purvis sintetiza uma conjunto de referências que
desde 2003 têm sido, gradualmente, partilhadas
na internet em blogues como o Ressabiator (da
autoria de Mário Moura) e o Reactor (da autoria
de José Bártolo) e parcialmente republicadas em
artigos de blogues e sites internacionais.
3. História
Em processo encontra-se a investigação que
resultará numa exposição de Livros portugueses,
publicado desde 1900 até à actualidade, com
a intenção de introduzir a história da ilustração
e do design gráico em Portugal. Com curadoria
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
Um dos aspectos mais relevantes na investigação
historiográica recente, sejam trabalhos de
doutoramento, trabalho curatorial ou projectos
editoriais como a Coleção D (dirigida pelo designer
Jorge Silva para a Imprensa Nacional Casa
da Moeda), reside no facto dela revelar
a preocupação em estudar o design através
de uma metodologia distinta da História da
Arte. A valorização do contexto, o interesse
em conhecer o processo e a relevância dada
ao conhecimento imaterial e à história oral em
particular são aspectos a sublinhar nessa atitude
de impor uma especiicidade ao estudo do design.
75
José Bártolo
DOCUMENTO, HISTÓRIA E ARQUIVO
Apontamentos sobre história do design português
76
nossa e Jorge Silva a exposição está prevista
inaugurar no inal de Maio na Galeria Quadra
de Matosinhos. A exposição vai apresentar,
para além de uma vasta selecção de obras
organizadas cronologicamente e por autor,
elementos de processos e entrevistas em suporte
vídeo com diversos designers relevantes pela
sua produção editorial (como José Brandão ou
Armando Alves). A selecção de autores a destacar
na exposição, considerou-se relevante por se
acreditar que faltam referências na cultura
projectual portuguesa. Qualquer historiograia
tende a produzir os seus heróis e o lado heroico
da história é interessante gerador de relações
entre a produção presente e a produção do
passado. Importantes ilustradores e designers,
como Alberto Souza, Paulo-Guilherme, João
Carlos, Bernardo Marques, Sebastião Rodrigues,
Luís Fílipe Abreu ou Martins Barata são, por essa
razão, destacados.
Argumenta-se neste artigo que a História
corresponde a estabilização, por deinição
temporária, de uma determinada narrativa
historiográica. Considera-se que a produção
historiográica está dependente da existência de
arquivo. O olhar crítico sobre os arquivos, a base
documental que os constitui, a sua taxonomia e
condições de acesso está por fazer em Portugal.
Consideramos esse trabalho importante, tanto
mais que a importância do arquivo tem sido
reconhecida com importantes iniciativas como a
criação do Arquivo do Cartaz da Universidade de
Aveiro (http://arquivo.sinbad.ua.pt/cartazes/).
Argumenta-se neste artigo que a História
corresponde a estabilização, por deinição
temporária, de uma determinada narrativa
historiográica. Considera-se que a produção
historiográica está dependente da existência de
arquivo. O olhar crítico sobre os arquivos, a base
documental que os constitui, a sua taxonomia e
condições de acesso está por fazer em Portugal.
Consideramos esse trabalho importante, tanto
mais que a importância do arquivo tem sido
reconhecida com importantes iniciativas como
a criação do Arquivo do Cartaz da Universidade
de Aveiro (http://arquivo.sinbad.ua.pt/cartazes/).
Para além de estabelecermos a referida relação
entre história, historiograia e arquivo,
introduzimos uma futura exposição de design
de livros portugueses onde esta tríade assume
clara importância. A exposição apresenta
um arquivo material, que resulta de uma
selecção de cerca 300 livros, textos de análise
e enquadramento e vídeos com entrevistas
e depoimentos de diversos designers que
protagonizaram a história que se quer contar.
O nosso artigo valoriza, portanto, a history from
below, a oral history, a história dos processos e
argumenta sobre a especiicidade da história do
design em relação à história da arte.
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
Se em grande medida podemos ainda falar
da história do design em Portugal como uma
inexistência ou, pelo menos, falar de uma
“história mal vista” e “mal contada” também
devemos admitir que pela via da investigação
académica e da produção curatorial um conjunto
de contributos recentes e recorrentes têm feito um
esforço para historiografar o design português. ×
77
78
79
Maria Teresa Cruz
O Design
como
80
mento
1
Cf. Brown, 2009, Introdução, pp. 1-12. Uma das primeiras ocorrências
da expressão «design thinking» terá sido contudo no livro do arquiteto e
urbanista: Peter Rowe, Design hinking, MIT Press, 1991.
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
A expansão do design tornou-se uma temática
corrente dos debates contemporâneos e também
um fenómeno comprovável na prática, à medida
que o design se operacionaliza, não apenas nas
áreas tradicionais da produção industrial, mas
também nos serviços, na gestão, nos sistemas
de comunicação e de informação, insinuando-se
na produção de modelos em geral, no âmbito da
vida e das organizações sociais. Esta expansão
sugere uma identiicação do design com a forma
geral da racionalidade contemporânea, que vai
emergindo em designações de grande abrangência
tais como «design thinking» e «social design».
Uma tal identiicação vai bem para além da
conirmação da dimensão conceptual e da
dimensão social do design, que são reconhecidas
em todas as suas especialidades, apresentando-o
antes como uma espécie de saber fundamental
da nossa era, como uma espécie de rationale,
ou radical teórico-prático do entendimento do
mundo e da ação sobre ele. Nesta perspetiva,
conceber um design seria a base de toda a
conceptualização e de toda a inventividade
nomeadamente envolvidas na compreensão e
solução de problemas, na tomada de decisão ou
nos processos de gestão. Num livro recentemente
publicado, Tim Brown, que terá cunhado o
termo de “design thinking” (Brown 2008, 2009)
esclarece: «Isto não é um livro de designers
para designers; isto é um livro para leaders
criativos que procurem inserir o pensamento do
design em todos os níveis de uma organização,
produto ou serviço»1. Tim Brown é o atual CEO
da empresa global de design IDEO, fundada por
David Kelley em 1978, com uma longa história
de colaboração com a Apple e que, tal como
David kelley e Steeve Jobs, é frequentemente
apelidado de “um dos pensadores mais inluentes
do nosso tempo”. Não se trata pois, nesta
perspetiva, de uma mera extensão horizontal
do campo do design, mas sim de uma «infusão»
metodológica, de um aprofundamento vertical
do seu lugar na ordem dos saberes, colocando-o
ao nível dos fundamentos universais da ação
racional e criativa, como o próprio cimento
81
que une razão e imaginação e as orienta para
a ação. Na verdade, trata-se de reclamar que
pensar, produzir e planear ações são, no seu
fundamento, propriamente design, tendo chegado
o momento da plena consciencialização e do pleno
reconhecimento deste facto.
82
Maria Teresa Cruz
O Design como pensamento
Na verdade, es ta revindicação foi feita pela
ilosoia há mais de dois milénios atrás, com um
sucesso bastante duradouro, chamando a si um
saber fundamental sobre a existência humana,
e oferecendo às demais disciplinas os princípios
do próprio pensamento verdadeiro e da ação
racional. Em vez de se ocupar desta ou daquela
disciplina, a ilosoia ter-se-á antes ocupado,
nas palavras do ilósofo Peter Sloterdijk,
do próprio “disciplinamento do humano”.
A defesa de um valor matricial do design,
coloca-o assim num lugar que está para além das
disciplinas, ou na base das disciplinas, lembrando
as árvores dos saberes, imagem obsessiva do
iluminismo, e explicando inalmente por que
razão pode hoje o design dirigir-se a qualquer
âmbito da experiência, como uma nova forma
de razão positiva ou «O Plano de trabalhos
necessários para reorganizar a sociedade»2.
Eis o que nunca terá deixado de estar presente
desde a Bauhaus, passando pelo teoria do design
dos anos 70, onde o foi ganhando cada vez mais
vozes essa ideia do design como modelo de
racionalidade, reunido à teoria do planeamento
(social, urbano, etc.), e injetado hoje também no
âmbito da gestão, dos sistemas de informação,
da conceção das políticas públicas ou seja, pronto
para refundar o mundo. A célebre imagem
do «rizoma», de Deleuze e Guattari (1980)3,
2
«Le Plan de travaux nécessaires pour réorganizer la société» é um escrito
de Auguste Comte (1822), que ele mesmo considera o seu “opúsculo
fundamental”, e que antecede o Cours de Philosophie positive (1830-1842).
É sua preocupação, não apenas que o conhecimento se encaminhe para uma
ciência positiva, mas também que os saberes partilhem entre si um corpo de
princípios comuns, pois só isso permitirá um desenvolvimento coerente da
própria sociedade.
3
Mille Plateaux (Paris, Éditions de Minuit, 1980) é o segundo volume de
Capitalisme et schizophrénie, uma das obras resultantes da colaboração entre o
Gilles Deleuze e Félix Guattari.
da árvore desenraizada e da crise dos
fundamentos, parece reencontrar-se com novos
paradigmas de enraizamento ou, pelo menos,
com novos saberes transversais e compreensivos,
tais como a teoria dos sistemas, o pensamento da
complexidade, as ciências cognitivas ou a ciência
da informação. O design é hoje um desses saberes
que nos explicam como podemos pensar.
O mesmo desaio parece ser hoje repetido pelo
design: nova metafísica da vida quotidiana,
novo transcendental, nova condição de
possibilidade do pensamento como da prática.
O design como ilosoia do nosso tempo, como
ideação operativa, como única teoria capaz de
industriar uma prática universal que responda
à desorientação global do século. O design como
ilosoia da era híper-industrial - tal será uma visão
possível da ilosoia ou da ideologia do momento.
É signiicativo que esta radicalização ou
aprofundamento vertical do design não parta
desta vez em direção a uma emulação da arte
-, a qual tem sido, por sua vez, uma espécie de
outro, de resto, ou de rival da própria ilosoia.
A revindicação do “design como ilosoia” em
vez da mais clássica (ou moderna) batalha do
“design como arte” revela porventura um desvio
estratégico, o desenho de um laço alargado no
qual também ela, a arte, se deixará apanhar,
caindo por im na alçada do design. O momento
que Hegel descreveu como o do im da arte é,
signiicativamente, o da sua aliança com
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
Na verdade, esta revindicação foi feita pela
ilosoia há mais de dois milénios atrás, com um
sucesso bastante duradouro, chamando a si um
saber fundamental sobre a existência humana,
e oferecendo às demais disciplinas os princípios
do próprio pensamento verdadeiro e da ação
racional. Em vez de se ocupar desta ou daquela
disciplina, a ilosoia ter-se-á antes ocupado,
nas palavras do ilósofo Peter Sloterdijk, do
próprio “disciplinamento do humano“ ou do
que chama também a “antropotécnica” (2009),
voltada para o auto-conhecimento do ser humano,
para a descoberta dos seus mais altos desígnios
e para a elevação à altura das suas efetivas
potencialidades e virtudes.
83
o conceito (Hegel 1975, 1: 11), momento que
Arthur Danto traduziu, por sua vez, como o
inevitável devir ilosoia da arte (Danto 1998).
Se também a arte está a devir ilosoia, e se o
design é a ilosoia do nosso tempo, poderemos vir
então a assistir à revindicação inesperada da “arte
como design”. Na arte contemporânea despontam
com efeito sinais desse encaminhamento da arte
para a ilosoia, i.e., para a ilosoia do design.
84
Maria Teresa Cruz
O Design como pensamento
Wilém Flusser terá portanto acertado quando
escolheu intitular uma das suas mais importantes
relexões sobre o design como «Filosoia do
design» (Flusser 1999) a entender, também
aqui, não apenas na sua vertente objectiva
(como relexão ilosóica sobre o design) mas
na sua vertente genitiva (apresentando o modo
de pensamento que o design é em si mesmo).
Que “o design é a base de toda a cultura», como
diz Flusser e que o ser humano «é um design
contra a natureza” (Flusser 1993, 19) são os
pontos de partida da sua relexão, da qual se pode
facilmente deduzir a centralidade que o design
vem a ocupar à medida que a cultura e a história
do humano se substituem quer à natureza quer
à natureza humana. A realização da cultura
como reino do artiicial obriga a pressupor não
apenas um gesto criador, espontâneo e livre, mas
também, e sobretudo, ideação, antecipação e
projeto. À medida que o reino do artiicial emerge,
colocando à vista a uma história ininterrupta de
transformação do mundo, percebemos que tal não
é senão o próprio resultado do modo humano
de pensar: o de um pensamento que tende a
realizar o que pensa.
Com efeito, esta ideação ou antecipação de um
desenho diicilmente se pode entender de modo
criacionista, como uma visão originária de
um Deus ou de uma inteligência suprema que
tudo teria criado em potência e à partida, pois
a criação e a criatura em produção na história
parecem estar numa deriva demasiado arriscada,
que vai desaiando todas as probabilidades
e iguras que poderiam ter sido antecipadas.
O que nela se expressa, como há muito suspeitava
Nietzsche, não é apenas um desenho ou uma
igura que nos estaria reservada em potência
no início da história, e que encontraríamos um
dia, aperfeiçoada, no im. A história, que não está
na verdade dirigida por nenhuma teleologia ou
teodiceia, é antes a expressão da potencialidade
do pensamento humano e da sua “vontade de
poder” (Nietzsche 1968) que é também o que
alimenta a sua vontade de arte.
Também Gilles Deleuze, em Qu’est-ce-que la
Philosophie? (1991) se dirige a uma deinição
da ilosoia como experiência e pensamento,
airmando que a ilosoia é a “arte da criação
de conceitos” (Deleuze 1999, 8), acautelando
ainda a sua diferenciação relativamente a outras
formas de experiência, nomeadamente aquela
que é baseada nos “percepts”, por um lado, e
aquela que é baseada nos “affects”, por oposição
aos “concepts” enquanto criações ilosóicas.
Um dos aspetos mais interessante da releitura
que podemos fazer hoje desta obra, é o facto
de Deleuze se debater nela com um rival da
ilosoia, dir-se-ia menor e inusitado, mas ao
qual Deleuze acabará por dar muita atenção
na introdução desta obra, tornando-o aí objeto
de uma contestação sistemática. Esse outro,
que apresentando-se também como “criação de
conceitos”, e que Deleuze acaba por confrontar
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
A ainidade essencial entre pensamento, vontade
e arte parece encarnar hoje no design como
dispositivo absoluto. Este dispositivo ter-se-á
iniciado há muito, com a elevação ao pensamento
abstrato, vocacionado para descer depois à
terra e traçar nela um plano de mobilização e
recomposição geral do existente. Tal é a crítica
contemporânea do dispositivo, que se estende
da crítica da técnica moderna à crítica da
metafísica e que facilmente se poderá estender
portanto a toda a ilosoia. Retomando uma
imagem de Sloterdijk, desta vez do livro
A mobilização Ininita (2004), uma das «rampas
de lançamento» deste processo de mobilização
foi sem dúvida a do nascimento da ilosoia como
desejo de superação dos limites do humano,
ou o que descreve também como o «atletismo
da ilosoia». Nesse «atletismo» ou ginástica
ilosóica (Gymnastic) pontiica como sabemos
o movimento elevação ao pensamento abstracto
e à produção do conceito.
85
86
Maria Teresa Cruz
O Design como pensamento
abertamente no seu texto, é o que ele próprio
resume como “disciplinas da comunicação”,
onde se destacam o marketing, o design e a arte
da troca intersubjectiva de opiniões. No seu
conjunto, estas são as “máquinas de constituição
de universais” ou de “consensos”, do nosso
tempo, diz Deleuze (1991, 11-12), das quais a
ilosoia se obviamente se distingue, pelo facto
de os conceitos que produz serem, ao contrário,
entidades “singulares“. A ilosoia, diz Deleuze
“não é uma simples arte de inventar, de formar
ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são
necessariamente formas, descobertas (trouvailles)
ou produtos. A ilosoia, mais rigorosamente
é a disciplina que consiste em criar conceitos.
(…) Criar conceitos sempre novos é o objeto da
ilosoia” (Deleuze 1991, 10).
Na sua inocência, Tim Brown coloca por sua
vez bem à vista o que Deleuze precisamente
visara na sua crítica. Em Design Thinking
(2009) fala do design como criação de uma
“matriz mental” e de “mapas mentais”, como
uma “habilidade” que é simultaneamente uma
“habilidade de ser intuitivo” mas também uma
habilidade para “reconhecer padrões”. Fala ainda,
privilegiadamente, da relação entre “intuição,
criação e construção” que faz precisamente do
design a arte por excelência do projecto e do
“poder da prototipagem”, a “metodologia” em
geral da economia criativa, e do que chama um
“pensamento em grande” (“Think Big”) uma
capacidade para pensar o grande desenho, quer
dizer, nas palavras de Tim Brown, “dos negócios,
dos mercados, da sociedade”.
Num discurso cheio de ironias defensivas e de
mordacidade, como quem combate apesar de tudo
um sério rival, Deleuze classiica semelhantes
pretensões ao pensamento e ao conceito como
«mauvaise plaisenterie» e tece um longo
comentário altivo que merece ser percorrido:
“de prova em prova, a ilosoia confrontar-seia com rivais cada vez mais insolentes, cada
vez mais calamitosos, que o próprio Platão
não teria imaginado nos seus momentos mais
cómicos. Enim, o fundo da vergonha terá sido
atingido quando a informática, o marketing,
o design, a publicidade, todas as disciplinas
da comunicação, se apropriaram da palavra
conceito e dissera: é a nossa tarefa, somos
nós os criativos, somos nós os conceptores!
Somos nós os amigos do conceito, metemolos nos nossos computadores. Informação e
criatividade, conceito e empreendedorismo:
sobre isto há já uma abundante bibliograia.
(…) Eis que o conceito se tornou o conjunto
de apresentações de um produto (…) Os únicos
acontecimentos são exposições, e os únicos
conceitos, produtos que se quer vender”
(Deleuze 1999, 15)
Não deixando de reconhecer que esta condição
afecta ainal a ilosoia, diz ainda:
Depois desta argumentação é justo que se dê
lugar a algum contraditório, que chega, não como
um riso, mas como um esgar de sobranceria do
próprio Tim Brown, relativamente aos campeões
do pensamento: “ These people have no process!”
é o que atira para título de um dos seus capítulos.
O diálogo improvável e puramente imaginário
entre ambos poderia continuar ainda, com
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
“O movimento geral que substituiu a Crítica
pela promoção comercial não deixa de se dar
ares de ilosoia. Os simulacros, a simulação
de um pacote de massa tornou-se o verdadeiro
conceito, e apresentador que expõe o produto,
mercadoria ou obra de arte, o apresentador,
tornou-se o ilósofo, a personagem conceptual
ou o artista. Como poderia a ilosoia, uma
velha senhora, alinhar com jovens quadros
numa corrida aos universais da comunicação
para determinar uma forma mercantil do
conceito? É evidentemente doloroso veriicar
que “Conceito” designa uma sociedade
de design, de serviços e de engenharia
informática. Mas quanto mais a ilosoia se
confronta com rivais despudorados, mais
ela se reencontra a si mesmo no seu próprio
seio, mais ânimo sente para cumprir a tarefa,
criar conceitos, que são aerólitos, e não
mercadorias. E ri-se até às lágrimas. Assim,
a questão da ilosoia é o ponto singular onde
conceito e a criação remetem um para
o outro”. (Deleuze 1999, 15)
87
88
Maria Teresa Cruz
O Design como pensamento
Deleuze a advertir as pretensas “personagens
conceptuais” ou “pretensos artistas” que para
criar conceitos é preciso “gosto ilosóico”.
Mas deixemos as galhardias em nome do
reconhecimento de um debate que não pode
senão ser seriamente colocado: o debate acerca
da relação entre design e ilosoia, que Deleuze
terá levado ele mesmo suicientemente a sério ou
não lhe teria dedicado estas páginas combativas
do seu Qu’est-ce que la philosophie? Talvez a sua
introdução contenha, também ela, uma advertência
paralela à de Tim Burton, que não vai porém no
sentido de uma mesma inclusão… Este não é um
livro apenas para ilósofos, mas também para
aqueles que julgam sê-lo, dentro ou fora da ilosoia.
Em causa estará, como bem explica Deleuze,
que a ilosoia se deve afastar de uma pretensa
ciência dos universais, o que contudo terá
comandado a ilosoia desde quase sempre.
A sua crítica está pois dirigida, antes de mais,
a uma certa forma da ilosoia, que ocupa uma
grande parte da sua história – a ilosoia como
pensamento dos universais, transformandose ela em máquina de produção de universais,
isto é, em dispositivo. É pois uma forma da
ilosoia que se trata antes de mais de combater
e, em consequência, os seus emuladores,
cuja emergência não lhe será portanto
totalmente estranha. A mensagem para os seus
correligionários é pois igualmente contundente:
“O primeiro princípio da ilosoia é o de que os
universais não explicam nada, devem antes ser
explicados” (Deleuze 1999: 12). E contrapõe,
como programa ilosóico antitético de uma
ciência dos universais, o seguinte:“Conhecer-se
a si mesmo – aprender a pensar - fazer como se
nada fosse em si mesmo evidente – espantar-se,
espantar-se que o ente seja, estas determinações
da ilosoia, e muitas outras, constituem atitudes
interessantes, embora cansativas a longo prazo”
(Deleuze 1999: 16).
Nestas palavras, ressoa o espanto valorizado pelo
amor socrático do conhecimento, mas também
o ethos moderno, a atitude crítica a que Michel
Foucault (Cf. Foucault 1984) entregou também
ela a crítica dos dispositivos, levada às últimas
consequências nas suas análises históricas (dos
modos de subjetivação, de disciplinamento,
de vigilância, de normalização, do discurso,
das instituições, dos saberes e dos regimes de
visibilidade), e que Deleuze se propõe ultrapassar
em direcção a uma aurora mais criativa da
ilosoia: a da ilosoia como criação de conceitos.
Em todo o caso, a crítica do dispositivo é
sempre, antes de mais, uma crítica da razão,
das leis históricas e contingentes postulações
das suas postulações universais. É esta ratio que
postula, formata, processa e calcula, que tem
estado presente ao exame transcendental e ao
tribunal da razão crítica, promovidos por Kant,
Adorno, Foucault, Husserl, Sloterdijk e vários
outros, profusamente integrados no chamado
“pensamento crítico”, o qual anseia talvez devir
“pensamento criativo”.
Num último argumento de resistência, puramente
imaginário, poderia ainda Tim Burton (que talvez
tenha lido Deleuze) defender a sua “terceira via”,
disparando ao mesmo tempo sobre a ilosoia uma
PAINEL I I
COMENTAR O DESIGN
A ilosoia nada há-de ter que ver, portanto, com
os “universais da comunicação” que não servem
senão para fornecer e obedecer às ”regras de um
domínio imaginário dos mercados e dos media”,
e que não serão mais do que uma espécie de
repetição das duas grandes ilusões da ilosoia,
as “do idealismo subjetivo e do idealismo
objetivo” (Deleuze 1999, 12). Tim Brown não
deixaria de poder contestar ainda algo neste
debate iccionado, já que também ele não faz
senão socorrer-se do mesmo pharmakon do que o
ilósofo Deleuze - o remédio para todos os males,
senão uma das substâncias de que os tempos
andarão ébrios, senão mesmo intoxicados: a
criatividade. Criatividade do design que ele,
Tim Brown, argumenta do seguinte modo:
o design apresenta uma “terceira via” diz ele,
relativamente ao puramente “inspiracional
e emocional”, mas também relativamente ao
“puramente analítico e racional”, pelo facto de
o design por em cena o que descreve como um
pensamento “intuitivo”, noção de que também
Deleuze se socorre para falar da criação
ilosóica de conceitos. Alguma proximidade
retórica das respetivas trilogias é como se vê,
intrigante e instigante.
89
90
Maria Teresa Cruz
O Design como pensamento
suspeita insidiosa: a possibilidade da “terceira
via” do design, decorre do facto de o design “se
expressar em media que não são simplesmente as
palavras ou os símbolos”. A suspeita, dir-se-ia,
é certeira, e compaginada com algumas críticas
de grande autoridade a uma das maiores cegueiras
da ilosoia – a cegueira relativamente ao seu
próprio médium (mesmo após os seus capítulos
analíticos). Pensamos em Jacques Derrida e
no seu pensamento da desconstrução (Derrida
1972) onde o logocentrismo aparece como um
efeito inevitável da linguagem e da escrita,
enquanto media naturalizados da ilosoia, que lhe
emprestam uma pretensa autoridade -, a de dizer
a verdade, e até a verdade sobre a verdade.
A pretensão e perigosidade do design não serão
porém menores. A ele não lhe está entregue
dizer a verdade em palavras, mas realizá-la,
efectivá-la ao mesmo tempo que a simboliza.
Sendo da ordem do gesto, tal como a escrita, o
design não se inscreve contudo no mero plano
da representação nem do imaginário, mas no do
real. O gesto do design simboliza, intenciona,
imagina, projecta e realiza no plano do mundoe
por isso tb não é uma pura arte, embora contribua
continuamente para a estilização ou a estetização
da experiência. Um dos tropos dramáticos do
pensamento contemporâneo, em que o design
acabou de entrar, é o do enredo dos dispositivos
e das formas de lhes responder, já que a crítica
feita está. O diálogo entre a ilosoia e o design
é porventura a forma contemporânea do diálogo
entre a ilosoia e o dispositivo, como um outro
de si mesma. É ao pensar e idealizar a experiência
que a razão, como advertiu Hegel, se lança na
dialética da sua realização, tornando real (i.e.,
realizado) o que idealizou, e às vezes em pesadelo
o que por via dessa ideação sonhou. Tal é, para o
bem e para o mal, a máquina do dispositivo; uma
máquina de realização, funcionando a ideação.
A sua investida contemporânea mais acabada
parece ser o design pois que este pensa,
conceptualiza, projecta e realiza.×
› Bibliografia
Derrida, Jacques (1972), Marges de la philosophie, Paris: Éditions de
Minuit.
Flusser , Wilém (1999) he Shape of hings: A Philosophy of Design,
London: Reaktion Books.
Foucault, Michel (1984),”Qu’est-ce que les Lumières?”, Magazine
littéraire, no 207, mai pp. 35-39 (Dits Ecrits Tome IV texte n°351)
Hegel , G.W.F. (1835), Aesthetics. Lectures on Fine Art, trad. T.M.
Knox, 2 vols. Oxford: Clarendon Press, 1975.
Nietzsche, Friedrich (1910), he Will to Power, New York: Vintage
Books, 1968
Rowe, Peter (1991), Design hinking, Cambridge, Mass.: MIT
Press.
Simon, Herbert Alexander (1996), he sciences of the artiicial,
Mass.: MIT Press.
Sloterdijk, Peter (2013) You Must Change Your Life. Cambridge,
UK: Polity Press.
Sloterdijk, Peter (2004) A Mobilização Ininita. Para uma Crítica da
Cinética Política, Relógio d’Água.
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PAINEL I
Viviana Narotzky
Directora da Open Design/Shared Creativity
International Conference que ocorre anualmente
no contexto do Festival de Design de Barcelona.
Escreve e é conferencista sobre temas do design
e da cultura material contemporânea, faz curadoria
em design contemporâneo e do século XX. Colabora
como consultora de design em diversos projectos
e trabalhou com diferentes instituições tais
como: Fórum Econômico Mundial; Museu de Arte
Contemporânea de Barcelona (MACBA); Victoria &
Albert Museum de Londres; Televisão de Hong Kong.
Entre outros cargos acadêmicos, Doutora Viviana
Narotzky é Investigadora Senior do estudo dedicado
ao Interior Doméstico desenvolvido pelo Centro
AHRC do Royal College of Art, foi Directora do
Mestrado em Design na Universidade de Kingston
e Professora de História do Design no Mestrado
desenvolvido em associação entre o Royal College
of Art e o Victoria & Albert Museum.
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Helena Barbosa
Ensina disciplinas em Design – Licenciatura,
Mestrado e Doutoramento na Univ. de Aveiro-UA.
As suas áreas de interesse incidem na história do
design português, cultura material portuguesa,
cartazes e museus online.
É responsável pelos conteúdos de um museu online
de cartazes (30.000) com um projeto que está
a ser desenvolvido na UA. É Vice-Presidente do
ID+Instituto de Investigação em Design, Media e
Cultura; membro do editorial board da revista The
Poster, e membro da comissão cientíica da revista
Eme: experimental illustration design.
Francisco Providência
Licenciado em Design de Comunicação pela Faculdade
de Belas Artes da UP. Em 1997 aceita o convite para
leccionar e integrar equipa que organizará a formação
em Design na Universidade de Aveiro, onde dirige o
Programa Doutoral em Design (UA+UP).
Desenvolve atividade cientíica na unidade de
investigação em design ID+ /FCT sob a temática da
ontologia e “poética” do design. Do seu curriculum
proissional destacam-se projetos como: Museu de
Penaiel (2008), Projeto de comunicação urbana da
doca de Matosinhos (2011), o Centro Interpretativo
da Batalha (2012), Museu do Dinheiro do Banco de
Portugal (2012), Centro de interpretação da Afurada
(2012) e o Museu de Arte Nova de Aveiro (2012).
PAINEL II
José Bártolo
Desenvolve actividade de docência, investigação
e curadoria em design desde 1996. Doutor em
Ciências da Comunicação (Universidade Nova de
Lisboa, 2006), é Professor Coordenador e Presidente
do Conselho Cientíico da ESAD – Escola Superior
de Artes e Design e professor do Programa Doutoral
em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto.
Membro da Direcção do CECL – Centro de Estudos
de Comunicação e Linguagens da Universidade
Nova de Lisboa e Editor da revista Pli Arte&Design.
Maria Teresa Cruz
Doutorada em Comunicação e Cultura, é directora
do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
e professora no Departamento de Ciências da
Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lecciona
nas áreas de Teoria da Imagem, da Estética e Teoria dos
Media e das Artes Contemporâneas. Os seus interesses
de investigação estão actualmente centrados nas artes
contemporâneas e no design, nas estéticas pós-media
e na mediação do património.
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