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New social movements in a retrotopic nation-state

2023, Movimentos Sociais

This essay aims to reflect on the new social movements in Portugal in a neoliberal context and to integrate them into theoretical work on the future.

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NUM PAÍS RETROTÓPICO Ensaio para a Unidade Curricular de Movimentos Sociais Palavras-chave: feminismo, futuro, retrotopia Docente: Paula Godinho Aluno: Pedro das Neves Coelho Nº de Estudante: 2023106249 Mestrado Antropologia especialização em Cultura Visual Unidade Curricular: Movimentos Sociais email: [email protected] 08 de janeiro de 2024 1 ÍNDICE INTRODUÇÃO__________________________________________________________________3 ANTROPÓLOGAS ATIVISTAS___________________________________________________4 QUESTÃO______________________________________________________________________5 OBJETIVOS____________________________________________________________________6 METODOLOGIA________________________________________________________________6 CONCEITOS___________________________________________________________________ 7 (Novos) Movimentos Sociais_________________________________________________7 Neoliberalismo____________________________________________________________ 8 Hegemonia Neoliberal______________________________________________________ 9 EIXO TEÓRICO: A Antropologia de Futuro________________________________________ 10 Imaginação e produção de localidade_________________________________________ 10 Aspiração_______________________________________________________________ 11 DUAS VOZES e 3 INIMIGOS (IN)VISÍVEIS (ESTADO, MEDIA, MERCADOS) __________13 Duas Mulheres Ativistas___________________________________________________13 Os inimigos (in)visíveis_____________________________________________________15 Ideoscape (estados cismogénicos) ___________________________________________ 15 Mediascape (órgãos de comunicação social e a pan-mimetização) __________________16 Financescape (neoliberalismo e a precariedade) _______________________________ 17 PORTUGAL UM ESTADO RETROTÓPICO_______________________________________ 17 BILIOGRAFIA_________________________________________________________________20 ANEXOS FOTOGRÁFICOS______________________________________________________24 2 INTRODUÇÃO Enquanto escrevo o exército israelita cerca a faixa de Gaza, as incursões militares já deixaram milhares de mortos, muita das vítimas são crianças. Guterres, secretário-geral das Nações Unidas apela à paz referindo que estas retaliações do Hamas “… did not happen in a vacum”. Enquanto escrevo a COP28, (Conferência das Partes) tem lugar no petroestado Dubai. O compromisso de redução das emissões carbónicas por parte dos países envolvidos ofusca-se com o leilão brasileiro de 602 lotes de exploração petrolífera. O business a usual da guerra e dos interesses das indústrias fósseis prevalece e o mundo assiste ataráxico. Hoje a juventude como arena de construção de futuros utópicos e de construção de cultura foi substituída por forças estruturais que comprimem estes horizontes de expectativa (Koselleck, 2015: 311). Estas estruturas hegemónicas são servidas num palco global com uma semiótica de choque que se baseia no proselitismo de imagens viris, violentas e grotescas: a crise financeira, as guerras genocidas, as disrupções climáticas, as epidemias, as autocracias, o empobrecimento dos mais subalternos, a sensação de precariedade das classes ditas medias. Estes instrumentos narrativos de índole neoliberal, de certa forma, influenciam o presente traficando propostas de bem-viver ilusórias ou de difícil concretização. Este ensaio pretende refletir sobre os novos movimentos sociais em Portugal num contexto neoliberal e integrá-los segundo os trabalhos teóricos sobre o futuro, propostos por Arjun Appadurai em Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization (1996) e The Future as a Cultural Fact: Essays on the Global Condition (2013). Para o autor, “hipermobilidade” de ideias e pessoas gera a produção e reprodução de representações associadas a uma catástrofe inevitável, o capitalismo tardio está a implodir e o fetichismo da mercadoria (Marx, 1867) foi de certa forma substituído por um fetichismo escatológico. A construção de ideias neoliberais propaladas pelos media e assimiladas pelos mercados podem ser o canto do cisne que Sócrates, o filósofo, nos deixou. Uma espécie de último estertor da humanidade. Este estudo, constrói em cima dos conceitos dos novos movimentos sociais (Touraine 1985) e problematiza-os com a teoria de Appadurai relativa ao Futuro como facto cultural. Esta visão de futuro que está a ser condicionada pelo sistema neoliberal de uma forma transnacional, mas que em Portugal terá como resultado a eclosão de um estado retrotópico (Bauman, 2017). 3 ANTROPÓLOGAS ATIVISTAS Saí para a rua para filmar manifestações e apercebi-me de um fato curioso, quem está na linha da frente segurando faixas, bandeiras de mudança, apregoando palavras de ordem pelos megafones amplificados e desafiando as equipas de intervenção rápida (EIR) são na sua maioria mulheres, jovens, urbanas. Comecei a refletir sobre a razão pela qual as mulheres lideram a linha da frente destas manifestações e de como a academia poderá ter uma lente sobre este tema? Inquestionavelmente, a condição biológica, bem como a ideologia de sexo do investigador nas ciências sociais tem trazido para a mesa um acalorado debate. Desta discussão surgem alternativas e pontes de vista múltiplos, uma vez que este tema é também ele propiciador de mudanças epistemológicas (Stanley e Wise 1990: 21). Vejamos, para Whittaker (1994) a/o investigadora/a deve ser uma colaborador/a na construção de conhecimento. Na mesma linha de pensamento, Meis (1983) acrescenta mesmo que as experiências das mulheres devem ser incluídas nas pesquisas, o próprio positivismo das ciências sociais é visto como uma ferramenta de opressão. Por exemplo, quando Weiner (1976) revisita o clássico da antropologia “Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922) para estudar os Trobriandeses e o seu ritual Kula, com uma lente feminista, colocando em causa a perspetiva predominantemente masculina de Bronislaw Malinowski. A crítica que Coser tece a agendas essencialistas das teorias feministas, afirmando que “Não existe uma ciência masculina e uma ciência feminina” (1989:201) não é o substrato desta reflexão que apresento neste trabalho. Este trabalho pretende focar-se em tecer perspetivas sobre o futuro como “facto cultural” para as transformações sociais (Appadurai, 2013). Numa nota pessoal, admito que me é de todo impossível sentir de perto a ansiedade de uma mulher que luta pelo seu direito a um futuro melhor e que não consegue encontrar respostas apropriadas às suas inquietações. Por exemplo, falei com Dima, uma ativista pela paz na Cisjordânia. A mesma carrega em si uma mensagem de esperança, mas também um pesar e uma raiva latente de quem tem histórias violentas e emocionantes do terror da guerra dentro de si, afinal “lá longe” membros da sua família encontram-se à mercê dos ataques israelitas. Entrevistei, também, Teresa uma investigadora doutoranda da Faculdade de Ciências de Lisboa, no departamento de Biologia, que na precariedade do modelo académico encontrou a analogia perfeita do que é um sistema extrativista que se apropriou também do conhecimento. 4 Este trabalho é um exercício de empatia para que estas lutas se tornem material etnográfico e bases de reflecção antropológica sobre o futuro. A antropologia como ciência social deve também assumir posições e ser uma base de ativismo, caso contrário corre o risco de ser um conjunto de realidades ficcionadas (Clifford Geertz, 1973), no meu ponto de vista estéreis e infrutíferas, mas excelentes literaturas de cabeceira. Muitas mulheres antes destas ativistas (Dima e Teresa) não tinham de ter sofrido tantas injustiças nas mãos dos homens, numa guerra civilizacional que tem sido levada a cabo contra o género feminino pelos sistemas opressores de um sistema económico, muitas vezes assumida, mas a maior parte das vezes, velada e silenciada por entre paredes. Esta condição biológica e ideologia preponderantemente binária que me foi incutida aleatoriamente outras vezes premeditada são também filtros à análise antropológica. Recordo Lila Abu-Lughod, (1991, 138) que apresenta o viés do investigador tendo em conta a classe, raça e sexo e nos convida a desenvolver uma etnografia do particular. Este trabalho é isso mesmo uma antropologia do particular pela voz destas mulheres que se disponibilizaram a serem colaboradoras. Tenciono desmantelar o meu discurso interno no decorrer desta inquirição académica, na esperança de que consiga detonar as “armadilhas” que me foram sendo propostas pelas estruturas “patriarcais” neoliberais. Nas próximas linhas início uma iteração por epistemologias subjetivas, com o objetivo de libertar vozes que foram abafadas, inclusive a minha. QUESTÃO Donatella della Porta e Diani levantam uma série de questões pertinentes para abordar o estudo dos movimentos sociais tendo em conta a sua “complexidade e natureza multidimensional” (della Porta e Diani, 2020: 16). Esta reflexão é uma tentativa possível, num curtíssimo espaço de tempo de problematizar a questão levantada pelos autores: “Será que a precariedade alimenta o surgimento de uma forte identificação com organizações maiores ou comunidades imaginadas menores?” (della Porta e Diani, 2020: 16). Esta questão será enquadrada com revisão de literatura numa análise com segmentos etnográficos, nomeadamente histórias de vida (Dollard 1935) de ativistas mulheres e triangulada com as teorias de Appadurai sobre o Futuro como facto cultural (2013) e a sua relação com o presente, segundo o conceito de Retrotopia (2017) de Zygmunt Bauman. 5 OBJETIVOS Estas questões de partida têm como objetivo problematizar o futuro e a matéria com que se tece o mesmo: antecipar, ambicionar e imaginar. O futuro é um espaço de endoutrinamento cultural neoliberal, por isso será necessária a construção de futuros com a poética necessária para transformar o mundo. Este trabalho pretende dar visibilidade a estes mecanismos linguísticos de grande peso estrutural sobre as sociedades do presente que vivem sem futuro. Na esperança antropológica de que se conseguirmos ver já não conseguimos “desver” (nome da performance de 2023 de Joana Craveiro, Teatro do Vestido: Desver) METODOLOGIA Howel, enfatiza o trabalho de campo como central para a Antropologia (Howell 1990:4), nesta linha refiro Susana Narotzky e Gavin Smith (2006) e a construção de uma tridimensionalidade etnográfica que articula três eixos: os contextos históricos que levaram à reprodução de estruturas políticas dominantes; a atenção do etnógrafo para a criação das práticas sociais o tal habitus, (conceito próximo de Bordieu, 1977) que abordarei mais à frente e por último; a forma de como os indivíduos interpretam a suas realidades sociais e as vivem. Para este ensaio usei uma metodologia variada, multi-methods (Barrett: 2009: 127) com a preocupação de nunca sufocar as histórias de vida das mulheres que se prestaram a ser colaboradoras deste estudo (Whittaker 1994). Como investigador tive como objetivo de que o peso teórico-académico não silenciasse estas mulheres, daí ser tão importante uma triangulação de técnicas mistas para que de certa forma esta polivocalidade fosse celebrada. Numa primeira fase, usei a observação participante (Malinoswski, 1966: 3), tendo como ponto de partida a imersão em movimentos sociais que estavam a ocorrer na cidade de Lisboa. O meu trabalho de campo teve lugar em manifestações, assembleias e reuniões ocorridas entre setembro e dezembro de 2023, enumero as situações: Casa para Viver (30 de dezembro), Leitura do Acórdão Mamadou Ba (20 outubro), Vida Justa (21 de outubro), Manifestação Nacional Intersindical (11 de novembro) Marcha pelo Fim da Violência Contra as Mulheres (25 de novembro), Assembleia Vida Justa (1 de dezembro), Climáximo (9 de dezembro), Cordão Humano organizado pela Plataforma Unitária de Solidariedade com a Palestina (16 de dezembro), em todas filmei (centenas de ficheiros de vídeo captados e em arquivo), em todas participei, em todas manifestei a minha posição. 6 Assumo que a adrenalina de certos momentos nos impede de ficar mudos em relação ao que se está a passar. Uma espécie de participação direta ativista, uma “antropologia da resistência, da crítica e do ativismo” o “resistance redux” de que a Sherry Ortner terá defendido (Ortner, 2016: 61). Esta fase teve como principal objetivo a seleção de um tema para o desenvolvimento deste ensaio no âmbito da unidade curricular: movimentos Sociais. Numa segunda fase, realizei uma revisão bibliográfica no escopo proposto pelos conteúdos da unidade curricular (Movimentos Sociais) o que resultou num enfoque claro entre as temáticas antropológicas sobre o futuro, hegemonia, teorias e práticas dos movimentos sociais. Outras propostas teóricas foram convidadas a dialogar com o intuito de nos darem um complemento à Antropologia e por isso alargar os seus horizontes, de referir outros contributos como os da: Filosofia, da Economia e das Ciências Políticas. Este momento permitiu a consolidação de conceitos e teorias em específico nas áreas de que este estudo desenvolve, bem como, permitiu a moldura ideal para o desenvolvimento de uma análise cultural dos movimentos sociais (Johnston e Klandermans,1995) e para uma antropologia interpretativa (Clifford Geertz, 1973). Na terceira fase, entrevistei duas ativistas mulheres de dois movimentos. Estas entrevistas foram semi-estruturadas e ainda que com guião permitiram uma maior agilidade para navegar por temas e tópicos de uma forma fluída. Entrevistei Dima, mentora do movimento Besieged but not Silenced e Teresa Santos, ativista pelo Clima da Scientists Rebellion. CONCEITOS Para enquadrar o tema dos novos movimentos sociais na problemática neoliberal, considero importante estabilizar alguns conceitos e respetivas definições que passo a descrever: a) novos movimentos sociais; b) neoliberalismo; c) hegemonia: (Novos) Movimentos Sociais Mário Diani, define movimentos sociais como: “redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações, envolvidos em conflitos políticos ou culturais, como base em identidades coletivas compartilhadas” (1992, 40:1). A sociedade pós-industrial trouxe consigo novas ideias de globalização e novos conflitos sociais (Touraine: 1985: 781). Nesse sentido, este ensaio dialoga com as teorias dos novos movimentos sociais de Touraine (1985) em “An Introduction to the Study of Social 7 Movements” e que assentam numa visão destes “novos conflitos” como sendo estruturais e pertencentes a um sistema social com uma multiplicidade dinâmica e cultural. Para Touraine os novos movimentos sociais são os grandes dinamizadores da sociedade, especialmente após a década de 60 (Touraine: 1985: 774) e estão em contracorrente com as expectativas, criadas no pós-guerra, de crescimento e de distribuição de riqueza dos países do hemisfério norte. Promessas insufladas pela rápida industrialização a um nível sem precedentes e com a consequente financeirização global que se desvaneceram. Ou seja, a crise passa a ser a ideia dominante desde 1970 (Touraine: 1985: 780). Touraine acrescenta que os novos movimentos sociais vieram trazer uma identificação pessoal e um novo sentido de agência. Estes grupos já não são vistos apenas como sujeitos dominados pelas estruturas de poder, como os via a escola marxista estrutural (Touraine, 1985: 767). A modernidade tornou-se uma metalinguagem que oferece uma capacidade ilimitada na “autoprodução”, “autotransformação e autodestruição” (Touraine, 1985: 767). Neoliberalismo O teórico marxista, geógrafo e antropólogo, David Harvey tem produzido um trabalho sistemático no entendimento do neoliberalismo. O seu best-seller A Brief History of Neoliberalism (2005) explica esta doutrina de mercado e de certa forma dá-nos uma visão da evolução desta ideologia centrada na proteção das elites financeiras, conforme atesta a seguinte passagem: “As liberdades que incorpora refletem os interesses dos proprietários privados, das empresas, das corporações multinacionais e do capital financeiro” (Harvey, 2005: 7). Esta definição de Harvey de neoliberalismo parece-me útil para uma introdução ao tema central deste trabalho: O neoliberalismo é, em primeira instância, uma teoria das práticas políticas económicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido através da libertação das liberdades e competências empresariais individuais, dentro de um quadro institucional caracterizado por fortes direitos de propriedade privada, mercados livres e comércio livre." (Harvey, 2005: 2). A construção das expectativas de distribuição de riqueza incutidas pelo neoliberalismo ao longo das décadas não se cumpriram, as taxas de crescimento agregado desde a década de 60 têm vindo a reduzir – “3,5 por cento na década de 1960, 2,4 por cento na década de 1970, 1,4 por cento na década de 1980, 1,1 por cento na década de 1990 e 1 por cento desde 2000” 8 (Harvey, 2005: 154). Em contraste, assistimos a um empobrecimento generalizado mundial. O neoliberalismo como modelo ideológico e financeiro tem favorecido as elites em países específicos, como, por exemplo, Estados Unidos da América e Inglaterra, enquanto dissemina as suas práticas para países como Rússia, China e Índia (Harvey, 2005: 156). Hegemonia Neoliberal O modelo neoliberal é hegemónico, para Kate Crehan a expansão das sociedades ocidentais esteve sempre entrelaçada com o controlo, seja do conhecimento, seja pela exportação teleológica a que todas as sociedades deveriam aspirar (Crehan, 2002: 18). Kate Crehan, destaca o contributo de António Gramsci para a Antropologia. O militante antifascista forneceu uma análise valiosa da cultura de grupos que não pertenciam às elites, com destaque para camponeses e outros grupos subalternos. (Kate Crehan, 2002: 20). Crehan apresenta-nos um Gramsci que terá contribuído para o aprofundamento de um ativismo com consciência em si próprio. Para Gramsci, se as populações subalternas quiserem ter alguma hipótese de sucesso, terão de imergir e estudar a cultura hegemónica que as oprime, compreender essa realidade e produzir outras realidades culturais que se sobreponham e desafiem as dominantes. Ou seja, produzir uma contra-hegemonia (Raymond Williams, 1977) eficaz que surja das experiências dos vários oprimidos (Kate Crehan, 2002: 20). Para Gramsci a hegemonia não se limita às exibições de monopólio de violência e de um sistema judiciário repressivo, isto será próprio dos estados fracos, segundo o autor (Gramsci 1971: 56, 57). A Hegemonia transvasa os domínios políticos ou económicos, muitas vezes coercivos e com várias manifestações de força. Esta supremacia também se manifesta numa “liderança moral e intelectual” através de uma construção ideológica cultural e do bom senso que normaliza os interesses de algumas elites fazendo com estes valores e princípios sociais se tornem universalmente aceites (Gramsci 1971: 56, 57). Se o ponto de partida da construção ideológica é um fator crítico na dominação, como vimos em Gramsci e em linha com a definição de ideologia para Eric Wolf, “esquemas de configuração desenvolvidos para subscrever ou manifestar poder” (Wolf 1999: 4), somos levados a refletir sobre o poder estrutural. Wolf estuda a forma de como o poder estrutural se manifesta e organiza nas relações e em determinados domínios e contextos (Wolf 1999: 4). Para Wolf a perspetiva de Foucault (Foucault, 1982: 780) de como as relações estruturais de poder tomam conta da consciência é uma pista importante, uma vez que nem sempre a opressão é exercida pelo uso desmesurado e intenso da força e pela luta de classes, como nos 9 fizeram crer as visões marxistas (Wolf 1999: 4). Existem outras estruturas dicotómicas e conflituantes com uma linguagem específica de controlo que podem incluir a família, os media a sociedade civil (ver Munck citando Foulcault em Los movimientos sociales en América Latina, 2020: 34). EIXO TEÓRICO: A Antropologia de Futuro A Antropologia é uma ciência social que trilha no passado os contextos para que o presente se compreenda, mas é no amanhã que se sublima. Nas palavras do poeta, historiador, pintor e professor de físico-química Rómulo de Carvalho: “O sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer” (pseudónimo usado António Gedeão, in Pedra Filosofal). Este é o momento ideal para introduzimos o trabalho de Appadurai para cogitarmos o futuro como facto cultural e sobre a forma concreta de como a imaginação, as aspirações e a antecipação contribuem para a construção de cultura. Em The Future as Cultural Fact, Essays on the Global Condition (2013), o antropólogo triangula entre: antecipação, ambição e imaginação para a compreensão do futuro como questões comuns ao ser humano e que são produzidas em contextos locais, com interações e influências globais. A imaginação assume para o autor um papel central nesta obra, referindo-se à mesma como uma força cultural que influencia as ideias sobre o futuro do coletivo com um papel importante na produção de localidade (Appadurai, 1996: 178). Appadurai define localidade (locality) como: “uma qualidade fenomenológica complexa, constituída por uma série de ligações entre o sentido de imediatismo social, as tecnologias de interatividade e a relatividade dos contextos. Esta qualidade fenomenológica, que se expressa em certos tipos de agência, sociabilidade e reprodutibilidade, é o principal predicado da localidade”. (Appadurai, 1996: 178). Imaginação e produção de localidade Considero essencial nesta fase construir a ponte entre imaginação e localidade, na perspetiva de Appadurai, porque, ambas estão relacionadas com a globalização num mundo neoliberal. Appadurai, faz uma destrinça entre a imaginação apenas visível em “sonhos, fantasias e sequestrada pela euforia e criatividade” e uma outra imaginação que é um 10 “recurso vital” de sobrevivência em todos os processos sociais e que deve ser vista como “energia quotidiana” (Appadurai 1993: 287). Para o autor a imaginação tem um papel fundamental na produção de localidade e por isso deve ser considerada no trabalho antropográfico (Appadurai 1993: 288), especialmente na construção do quotidiano através de processos linguísticos e discursivos que fazem com que momentos catastróficos (violência, desastres e emergências) sejam toleráveis para as pessoas (Appadurai, 1993: 288). Também as memórias “cognitivas e/ou materiais” são uma ferramenta poderosa de transformação de futuros, Appadurai, diz-nos que são “locais críticos para negociar caminhos para a dignidade, reconhecimento e política” (Appadurai 1993: 288). A imaginação visualiza possibilidades transformativas do futuro, moldando as formas como o mesmo se antecipa pelas pessoas. Appadurai apresenta-nos a produção de localidade dentro de “paisagens” que se influenciam globalmente de forma dinâmica, mas com incidência local (Appadurai, 1996:33): scapes (que passo a referir como contextos, mas que pela sua fluidez e instabilidade, talvez a tradução por paisagens possa ser mais adequada), relações complexas de influência diaspórica, transnacional nos vários domínios sociais: ethnoscapes" (os contextos das pessoas), "mediascapes" (os contextos dos media), "technoscapes" (os contextos tecnológicos), "financescapes" (os contextos dos mercados financeiros), e "ideoscapes" (o contexto das ideias políticas). Ou seja, de forma muito resumida, estas múltiplas paisagens (contextos) ajudam-nos a compreender a existência de uma fluidez cultural que influencia e se deixa influenciar em processos de hibridização entre as especifidades locais e os fluxos globais de informação e de ideias numa produção e reprodução dinâmica complexa e perpétua entre si. Aspiração A “capacidade de aspiração” é universal, mas a sua força é local e específica: “a linguagem, dos valores sociais, das histórias e das normas institucionais que tendem a ser altamente específicas.” (Appadurai, 1993: 290). Esta capacidade de aspiração é uma “rede com um repertório criativo de rituais e performances” (Appadurai, 1993: 191) numa dinâmica que se retroalimenta e que quanto mais trabalhada, mais apurada fica. Esta capacidade torna-se uma “meta-capacidade” (Appadurai, 1993: 184) mais acessível aos ricos e poderosos, daí o uso do truísmo: “the rich get richer”. Appadurai, salienta o reforço das relações entre nódulos desta rede transacional que tende a dominar os nódulos mais periféricos 11 e subalternos. Ou seja, as populações mais empobrecidas por não acederem com tanta regularidade a estas capacidades linguísticas e técnicas são mais vezes marginalizadas. A aspiração trata-se de uma capacidade social que sem as expressões: “voz, empoderamento e participação não pode ser significativa.” (Appadurai, 1993: 289), nem inclusiva. Para Appadurai, as aspirações a uma “boa vida” não são meramente individuais, mas sim interações tecidas na vida social e embora pertençam a todas as sociedades, exemplos: “a vida e morte, a natureza das posses mundanas, a importância dos bens materiais nas relações sociais, a relativa ilusão de estabilidade social para uma sociedade, o valor da paz ou da guerra.”, muito rapidamente se convertem num sistema de ideias predominantemente local, como exemplos: “casamento, trabalho, lazer, conveniência, respeitabilidade, amizade, saúde e virtude.” (Appadurai, 1993: 187). Esta voz, a que Appadurai chama de aspiração (Appadurai, 1993: 187) começa a ser reclamada por muitas comunidades empobrecidas que se fortalecem em movimentos sociais para exigir esta capacidade intrinsecamente humana. Cito o autor: “a capacidade de aspirar é uma capacidade cultural, embora seja uma capacidade que é em toda a parte a chave para alterar os termos do status quo no que diz respeito ao reconhecimento e à redistribuição.” (Appadurai, 1993: 292). DUAS VOZES e 3 INIMIGOS (IN)VISÍVEIS (ESTADO, MEDIA, MERCADOS) Até agora sobrevoámos sobre os conceitos dos novos movimentos sociais, longe da dialética marxista (trabalhador-capitalista) com novas preocupações na sua agenda. Vimos como o neoliberalismo é uma ideologia hegemónica e identificámos a teoria de Appadurai sobre o futuro como facto cultural e como moldura ideal para problematizarmos os domínios socias (scapes) que constrangem projetos de vida. Para este trabalho selecionei três “scapes”: estado (ideoscapes), media (mediascapes) e mercados (financescapes) a que chamei de inimigos (in)visíveis. Está na altura de deixarmos que duas vozes de mulheres ativistas nos mostrem repertórios de resistência e nos revelem pelos seus gestos a “força material das ideias” (Godinho, 2017: 25). As ruas quando impregnadas por manifestantes revestem-se de imprevisibilidade poética. Todos os cenários são passíveis de acontecer quando o povo protesta, existe uma energia expectante no ar difícil de descrever. Talvez laivos daqueles instantes kairológicos de que Paula Godinho nos recorda no seu Futuro é Para Sempre (2017), momentos que aceleram a história e que por vezes arrepiam, mas que ainda não encontraram a inevitabilidade de 12 mudanças mais drásticas. Talvez os ecos destes novos protestos e manifestações de hoje retumbem no futuro e acelerem o presente? As pessoas não falam nisto, mas o medo que se tem antes e depois, nós nem sabemos bem o que estamos a fazer. Sendo apanhadas, temos os problemas legais em último caso vamos para a prisão. “ “Se a pessoa diz que não vai, arrastam-te e utilizam uma coisa chamada pain grips. Há uma série de técnicas para causar dor e a Amnistia Internacional chegou a considerar como sendo técnicas de tortura, mas eles utilizam aquilo à vontade. Teresa Santos Scientists Rebellion Duas Mulheres Ativistas Dima tem 39 anos e apresenta-se como uma artista multidisciplinar palestinoamericana. As suas performances refletem as inquietações sociais do momento. Através dos eventos que cria pretende gerar visibilidade para as causas que apoia. A sua formação académica com uma licenciatura na área da Filosofia e um mestrado em jornalismo estão muito imbuídos no seu trabalho. A família de Dima fugiu da Palestina após verem os seus bens e lar confiscados pelo exército israelita. Omã foi o novo país que viu esta ativista crescer, mas foi nos Estados Unidos da América que o seu ativismo floresceu. Hoje com cidadania norte-americana orgulha-se de ser ativista. A voz de Dima esteve presente nos movimentos sociais com mais impacto das últimas décadas: Occupy Wall Street, Black Lives Matter, Me Too. Em Portugal país que está há cerca de 2 anos é a mentora do movimento social: Besieged, but not silenced. Justiça para todos, sempre foi a minha motivação, a minha bússola. Quando sais dessa luta como um palestino na diáspora, sentes a injustiça a muitos níveis e empatizas-te com outras pessoas de muitas formas, sejam elas afro-americanas, brasileiras, sudanesas, sejam elas iemenitas. Qualquer pessoa.” Dima - Besieged but not silenced Teresa Santos com 31 anos está com uma bolsa de investigação na área da Biologia evolutiva e desenvolvimento pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o programa Biodiv. Desde muito cedo que os movimentos sociais interessaram a investigadora. Teresa recorda uma grande bandeira branca numa manifestação por Timor-Leste em 1999. As conferências climáticas e a importância do tema, fizeram com que Teresa se juntasse ao movimento internacional Scientists Rebellion e em Portugal iniciasse uma trajetória mais ligada com o que acredita. 13 Sempre vivi a mentalidade ativista desde pequena, desde miúda que se mexia com o meu sentido de justiça eu estava a denunciar. Teresa Santos Os movimentos sociais que foram escolhidos para o presente estudo são transnacionais (Besieged, but not silenced pela paz na palestina e Scientists Rebellion pela justiça climática) e exemplos de controlo da narrativa mais próxima da visão de Foulcault em que o sistema é algo omnipresente, uma rede: “O poder é empregue e exercido através de uma organização semelhante a uma rede. . . Os indivíduos são os veículos do poder, não os seus pontos de aplicação” (Foulcault, 1980: 98). Esta ubiquidade na construção de poder estrutural e em rede mostra-nos que a ideologia de poder não é algo intrínseco aos indivíduos, mas sim às relações que se estabelecem na sociedade “são múltiplas; têm formas diferentes, podem atuar nas relações familiares, ou dentro de uma instituição, ou de uma administração” (Foulcault, 1980: 98) ... Esta ontologia do poder, permite também compreender as relações de contrapoder. James C. Scott, enfatiza que as “relações de dominação são, em simultâneo, relações de resistência” (Scott, 1990: 45) e aponta que estes repertórios de luta, podem ser públicos, mas a maior parte das vezes são ocultos (public versus hidden transcripts). No caso deste estudo falamos de public transcripts: As pessoas não falam, mas o medo que se tem antes e depois. Sendo apanhadas, temos os problemas legais em último caso vamos para a prisão. O propósito é que nós queremos dar a cara, nós queremos ser apanhadas. Teresa Santos Em cima Teresa, fala-nos de uma ação em concreto que decorreu no aeródromo de Tires, a 6 de dezembro de 2023, em que ativistas de outro movimento parceiro se “colaram” aos jatos privados após tinta vermelha ter sido atirada. Estes 6 ativistas foram presentes a tribunal, na semana seguinte. Esta ação coincidiu com o COP28 no Dubai e que terá associado vários movimentos climáticos. Bennet e Segerberg (2013) apresentam a “connective action” como a ação política organizada numa rede de comunicação como produtora de efeitos e resultados. De certa forma, esta ação conectada explica o apogeu destes novíssimos movimentos sociais com o boom das redes sociais (Castells 2012). Uma era que inclusive terá encontrado novos heróis nos “techno-political nerds” (Postill, 2018) em Julian Assange e Snowden, que levaram o ativismo digital a um reconhecimento universal com a associação aos media tradicional. Julian Assange, ativista, programador, fundador da Wikileaks associa esta plataforma, ao The Guardian para libertar os Panama Papers. 14 Os inimigos (in)visíveis Em cima referi que para a presente reflexão iria focar-me nestas forças estruturais que de certa forma impactam os Novos Movimentos Sociais: estado (ideoscapes), media (mediascapes) e mercados (financescapes) a que chamei de inimigos (in)visíveis. Ideoscape (estados cismogénicos) O ataque às Torres Gémeas, o malogrado 11 de setembro de 2001 levou a um orgulho ferido americano que conduziu a uma vaga beligerante que ainda hoje tem repercussões no médio oriente. O século XXI, apresentara-se assim, como a War on Terror. George W. Bush tornara-se o arauto de uma campanha que influenciou todos os outros estados ocidentais a escolher um lado da guerra. Os anos que se seguiram foram de divisão e levaram à invasão do Iraque, Afeganistão e instabilidades em vários países desta zona do globo (Síria, Iémen, Líbano) e Palestina. No clássico etnográfico de Bateson sobre o estudo do ritual “naven” de 1936, o antropólogo trabalha sobre o conceito de cismogénese, etimologicamente falando uma “criação de divisão”. “A própria América matou mais de 11 milhões de pessoas nos últimos 20 anos naquela região (região árabe), e isso não se chama terrorismo, são critérios duplos, cuja justiça é para quem tem direitos humanos e quem não tem, baseado na supremacia branca, baseado na mentalidade capitalista total, baseado na discriminação, basicamente é tudo lavagem cerebral, tudo ilusão para que os governos tenham o seu poder. “Dima - Besieged but not silenced Esta narrativa cismogénica dos estados ocidentais com o médio oriente provoca efeitos nos nossos dias. As populações vivem conflitos transnacionais neste presente que ameaça o futuro. As incertezas, guerras e crise tornam-se habitus e práticas de ação e ideário quotidiano, que se reforçam nas relações entre indivíduos, independentemente das pressões estruturais a que são submetidas. “Os sionistas foram submetidos a uma lavagem cerebral, acreditam que para se proteger têm de matar crianças. (…) É a falsidade da democracia dos direitos humanos. Estão sempre a rotular a humanidade e cortar a sociedade em fatias, isolando as diferenças e o foco passa a ser na diferença por causa desses rótulos” Dima - Besieged but not silenced 15 O conceito de habitus trabalhado por Pierre Bordieu que consiste num: “sistema subjetivo, mas não individual, de estruturas internalizadas, esquemas de perceção, conceção e ação comuns a todos os membros do mesmo grupo ou classe” (Bordieu, 1977:86). O conceito de habitus ajuda-nos a refletir sobre estas forças estruturais que condicionam e são condicionadas pelo poder, onde a sociedade se circunscreve e que produzem novas formas de reprodução e de agencialidade. Quem cala consente, se a pessoa está calada está a consentir com o status quo vigente, acaba por ser uma escolha pessoal (…). Situo-me mais à esquerda, contudo tenho a noção de que o tempo da política não é o tempo da natureza. O tempo que demorara a ser concebida uma lei, ir à votação, ser posta em prática, ver se está a ser cumprida ou não, são anos e ano. Quantas espécies é que não se extinguem nesse tempo, quantas catástrofes naturais é que existem? Teresa Santos - Scientists Rebellion Mediascape (órgãos de comunicação social e a pan-mimetização) As ideias circulam transnacionalmente a uma velocidade sem precedentes, Appadurai fala-nos de uma hibridização, um flow com base em “cross-cultural media and advertising” que a internet possibilita, (Appadurai, 2103: 61). “O consumo em massa do qual dependemos, consumindo cada vez mais, onde os nossos governos mostram-nos imagens de pessoas de outros países que não têm o que o teu governo diz que é o sonho, mas na realidade é uma ilusão” Dima - Besieged but not silenced O “speed and spread” (Appadurai, 2103: 61) das ideias pelos media tem impactos vários nos movimentos sociais e em muitas vezes não são positivos, especialmente no que diz respeito à normalização de uma agenda neoliberal com graves consequências para o ambiente. “A forma de como os media tratam do assunto é uma das razões em parte de estarmos nesta situação (…). Eu costumo dizer que quem vai para o ativismo climático, acaba por encontrar a fonte da juventude eterna. Porque vamos para um protesto e independentemente da idade que nós temos, somos sempre um jovem… existe uma tentativa de mostrar que somos miúdos que não sabemos o que estamos a fazer. Já falei com outras pessoas noutros países e aparentemente é uma coisa muito comum, mesmo com cientistas começaram a utilizar este tipo de linguagem – os jovens cientistas, o que é sempre uma tentativa de descredibilizar.” Teresa Santos 16 Esta repetição de mensagens dúbias por parte dos media, torna-se uma espécie de mimetização dos discursos hegemónicos por conseguinte uma normalização de várias correntes pessimistas generalizadas pelas redes da sociedade. Financescape (neoliberalismo e a precariedade) O flow financeiro é uma das formas transnacionais do modelo neoliberal e que Appadurai descreve, em Modernity at Large. Quando assistimos ao modelo extrativista aplicado ao conhecimento académico não podemos deixar de refletir sobre todas as ramificações deste sistema, nomeadamente na produção de precariedade, mesmo nas sociedades com bons índices de desenvolvimento financeiro. “A ideia de “publish or parish”, a pessoa tem de ter uma alta produção científica, para ter alguma chance de ter curriculum e ser contratada. Há uma pressão muito grande para que a pessoa publique uma quantidade impossível de artigos – há pessoas que trabalham 60 horas por semana – é selvajaria completa.” Teresa Santos - Scientists Rebellion A partir do momento em que a pessoa fica presa a esta ideia de produção não só há queixas que a ciência está a ser danificada por esta ideia, não temos tempo para pensar bem no conceito e desenvolver bem as coisas. É uma neoliberalização da universidade, os professores têm imensas aulas, sem tempo para fazer investigação e sem apoio para dar aos alunos, existem casos de alunos de doutoramento que dão aulas grátis. Teresa Santos - Scientists Rebellion A financeirização do sistema académico e da sua produção de conhecimento é apenas mais uma consequência perniciosa e preocupante de todo este processo, o extrativismo desenfreado aplicado ao pensamento. PORTUGAL UM ESTADO RETROTÓPICO Para responder às questões de partida deste estudo: “Será que a precariedade alimenta o surgimento de uma forte identificação com organizações maiores ou comunidades imaginadas menores?” estabeleço uma ligação com o conceito de retrotopia de Zygmunt Bauman, autor proposto pela professora Paula Godinho, numa conversa que tivemos. A narrativa histórica portuguesa é uma epopeia falaciosa que hoje vive de uma colonialidade para sustentar a sua modernidade, aliás comum a vários projetos colonialistas de países imperialistas em linha com o que Walter Mignolo propõe em “The darker side of western modernity” (Mignolo 2011, 2). Existe aqui uma justaposição muito apropriada que se pode sobre o conceito explorado por Zygmunt Bauman e tão útil para compreenderemos o 17 ethos luso: a Retrotopia (2017) e uma visão de futuro que nos traz Appadurai, como facto cultural. O futuro essa entidade por vezes tão diluída e difícil de aceder no nosso país, daí o presentismo ser algo tão estrutural à sociedade portuguesa. A “experiência” e a “expectativa” são apresentadas por Koselleck como duas categorias históricas (duas categorias para uso da Teoria da História, melhor dizendo) que “entrelaçam passado e futuro” (Koselleck, 2006: 308). Em Retrotopia, Bauman, constata que os futuros utópicos se esvaziaram das sociedades modernas e se arredaram do discurso dominante – o sonho morreu tornou-se impossível de concretizar (Bauman, 2017: 9). A humanidade sem estrada para andar tenta regressar ao passado através de processos idealizados, decalcando apenas as partes boas e romantizando os tempos idos. Tempos passados mesmo que sustentados por mentiras e imprecisões. Afinal como justificar e explicar aos olhos de hoje, os quinhentos anos de escravidão e de subjugação de comunidades inteiras por tudo o mundo? Portugal com o seu transtorno dissociativo de identidade tenta ainda construir por cima deste legado colonial e sangrento uma bandeira com que se orgulhe como nação. Eduardo Lourenço, o filósofo português refere mesmo no Labirinto da Saudade (2001) uma espécie de doença psíquica endémica portuguesa em que a construção do estado-nação terá como base uma mitologia ainda à espera dessa saudade sebastiânica (jovem monarca D. Sebastião morre em 1578, com 24 anos) por cumprir sempre em perpétua autognose, em movimentos pendulares maniqueístas que vão da euforia à depressão, da bestialidade à besta, do mais ao menos. Eduardo Lourenço, refere uma fuga à inevitável condição: “somos pequenos”. Portugal, no meu ponto de vista é a materialização de um estado em delírio retrotópico, onde a memória histórica assiste um imaginário sustentado na sobrevivência momentânea, num eterno-presente precário. Isto traduz-se numa inscrição fleumática de todo um povo num estado de ataraxia coletiva, especialmente de uma classe dita media, ou burguesa, Bauman cita Marx: “Por muito pouco heroica que a sociedade burguesa seja para trazê-la ao mundo foi necessário heroísmo, abnegação, terror, guerra civil e batalhas populares” (Marx: 1,2) 18 Portugal está em estado náufrago que tem vindo a encontrar nas últimas décadas, fruto da criação de uma ideia romantizada e difícil de se consubstanciar na contemporaneidade, uma espécie de deriva existencial, sem âncoras (mantendo as metáforas marítimas) e de amarras muito frágeis, uma construção de expectativas mitómanas difíceis de cumprir por serem irrealistas e desajustadas. Serão estas mulheres exceções? Será que a contemporaneidade desistiu da construção das utopias que lhe parecem inalcançáveis e foca-se agora em mecanismos individualistas de proteção vivendo numa espécie de eterno presente, numa precariedade constante que não lhe permite pensar em futuros, mas sim viver numa urgência sem fim? Uma massa de espectadores privilegiados de um mundo que lhes acontece sem qualquer motivação intrínseca para o alterar? Dima e Teresa escolheram como mecanismo de sobrevivência (projeto de vida) não se deixarem manietar num presente em que os signos são construídos em cima de enunciados sangrentos e violentos e com futuros comprometidos e precários. O otimismo resistente destas ativistas junta as suas vozes às correntes globais, numa missão de construir novas alternativas: (…) há uma grande pluralidade não necessariamente porque estejamos divididos, mas porque temos diferentes formas de chegar lá e diferentes grupos com que a pessoa se pode dar melhor. Teresa Santos - Scientists Rebellion “mulheres por todo o mundo, de diferentes origens, diferentes países, sejam elas brancas ou não, o que quer que sejam, apenas partilhando as diferentes opressões a que foram sujeitas, trazendo para a mesa diferentes aspetos políticos a que aspiram, trazendo para a mesa unidade e a ideia de que o feminismo deve ser inclusivo para todos, independentemente da sua classe, gênero, classe e cor” Dima - Besieged but not silenced A esta linguística específica baseada nas paisagens propostas por Appadurai (finance, idea, media, ethno, techno), talvez seja importante envolver, na linha de todos os que acreditam em que a história ainda se está por escrever, uma sexta paisagem a somar às cinco de Appadurai: a resistance scape. Proponho uma resistance scape como movimento de resistência, como perspetiva ontológica, teleológica construtora de imaginação com força transformadora para a humanidade. Afinal já Sherry Ortner defendia na sua “Resistance Redux” (Ortner 2016: 62): “Os antropólogos estão a repensar “o capitalismo” e, de modo mais geral, a repensar as “economias” no mundo contemporâneo”. Uma etnografia prática que esmague pela sua robustez académica que conquiste as imaginações pela fertilidade das suas reflexões teóricas. 19 BIBLIOGRAFIA Abu-Lughod, L. (1990), ‘Can there be a feminist ethnography?’, Women & Performance, 5: 7–27. Abu-Lughod, Lila (1991) `Writing Against Culture', in Richard Fox (ed.) Recapturing Anthropology: Working in the Present, pp. 137-162. Santa Fe, NM: School of American Research Press. Appadurai, A. (1996). Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press. Appadurai, Arjun. (2013). The Future as Cultural Fact: Essays on the Global Condition. London, New York: Verso. Barrett, S., (2009), Anthropology. A Student’s Guide to Theory and Method, Toronto, University of Toronto Press Bateson, G. 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