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"Ferenczi e a clínica dos "pacientes difíceis"

2024, Ferenczi e a clínica dos “pacientes difíceis” (Disciplina: Aspectos Éticos e Legais do Tratamento de Usuários de Drogas I)

Ferenczi e a clínica dos “pacientes difíceis” (Disciplina: Aspectos Éticos e Legais do Tratamento de Usuários de Drogas I), da Pós-graduação em Assistência à Usuários de Álcool e Drogas(Instituto de Psiquiatria da UFRJ). Para um médico, adentrar no campo da Psicanálise pode ser desafiador e renovador, já que os conceitos parecem ser tão distintos. Os profissionais que trabalham com saúde mental apresentam certa dificuldade de agregação interdisciplinar para um mesmo fim. O diálogo entre os saberes pode parecer confuso em um primeiro momento. Durante a formação médica, pouco ou nada se estuda sobre a psicanálise e seus expoentes clássicos. Dessa forma, o nome Sándor Ferenczi pode parecer completamente estranho para um médico do século XXI. O mais curioso é que Ferenczi era médico de formação, assim como Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein, expoentes da psicanálise. Para compreender sobre a importância dos estudos de Ferenczi, é preciso relembrar sobre o Complexo de édipo, norteador da teoria psicanalítica de Sigmund Freud .

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ASSISTÊNCIA A USUÁRIOS DE ÁLCOOL E DROGAS Ferenczi e a clínica dos “pacientes difíceis” (Disciplina: Aspectos Éticos e Legais do Tratamento de Usuários de Drogas I) Ananda dos Santos Conde Pós-graduanda em Assistência A Usuários De Álcool E Drogas Rio de Janeiro Julho 2024 Dissertação sobre a Aula: “Ferenczi e a clínica dos “pacientes difíceis” - Professora Karen Figueiredo Introdução Para um médico, adentrar no campo da Psicanálise pode ser desafiador e renovador, já que os conceitos parecem ser tão distintos. Os profissionais que trabalham com saúde mental apresentam certa dificuldade de agregação interdisciplinar para um mesmo fim. O diálogo entre os saberes pode parecer confuso em um primeiro momento. Durante a formação médica, pouco ou nada se estuda sobre a psicanálise e seus expoentes clássicos. Dessa forma, o nome Sándor Ferenczi pode parecer completamente estranho para um médico do século XXI. O mais curioso é que Ferenczi era médico de formação, assim como Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein, expoentes da psicanálise. Para compreender sobre a importância dos estudos de Ferenczi, é preciso relembrar sobre o Complexo de édipo, norteador da teoria psicanalítica de Sigmund Freud Freud, S. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 189-199). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924). Segundo a mitologia grega, Édipo, personagem que matou o pai e se casou com a mãe sem saber que eram seus pais biológicos, numa história que conta uma tentativa frusta de fugir do destino traçado pela profecia do oráculo de Delfos Kury, M. G. (1999). «Édipo». Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Zahar. Marini, M. (1996). Édipo, complexo de. In P. Kaufmann (Org.), Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan (M. Borges & V. Ribeiro, trads., pp. 135- 142). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.. Partindo dessa história, o complexo de Édipo, traçado por Freud, revela que no desenvolvimento infantil, a criança passa a ter uma atração pela figura materna e certa rivalidade com a figura paterna, como uma condição de estrutura do ser, construindo-se a identificação e a constituição do sujeito Mezan, R. (1998a). A árvore da psicanálise. In R. Mezan, Freud: a trama dos conceitos (4a ed). São Paulo: Perspectiva. . Essa teoria surgiu após Freud refutar sua própria teoria da sedução Almeida, R. M. (2000). Sedução, tradução e cura. Ágora: Estudos Em Teoria Psicanalítica, 3(2). . É curioso perceber que o personagem de Édipo não se enquadrava no que era desenhado pela teoria freudiana, pois sequer sabia quem eram seus pais quando matou a figura paterna e teve relações sexuais com a figura materna. O conceito da identificação a partir da constituição surgiu com Freud, mas com Lacan ganhou uma nova abordagem sobre a identificação, trazendo a dimensão do conceito de significante para sua construção. O conceito em si foi cunhado pela linguística estrutural de Ferdinand de Saussure. Para o linguista, a língua é um sistema de signos formados pela junção do significante e do significado, ou seja, da imagem acústica e do sentido Saussure, F. (2004). Escritos de linguística geral. Trad. Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lucia Franco. São Paulo: Cultrix.. Contudo, Lacan traçou uma interpretação distinta da linguística saussuriana, onde um significante remete sempre a um significado. Para Lacan, “os conceitos de estrutura, significante e sujeito são indissociáveis e precisam ser pensados de forma articulada” Lang, CE; Andrade, HV. (2019). Formalização e clínica psicanalítica: a estrutura, o significante e o sujeito. Cadernos de psicanálise. Rio de Janeiro, 2019. . Segundo as bases lacanianas, “o simbólico dá uma forma na qual se insere o sujeito no nível do seu ser. É a partir daí, do significante, que o sujeito se reconhece como isto ou aquilo" Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.. Reflexões sobre a Psicanálise e o Transtorno de Substância Discutir as ideias de Freud, Lacan e Ferenczi, fundadores da psicanálise, é uma explosão de reflexões sobre o adoecer psíquico muito além das bases biológicas, que é o campo de estudo da formação médica atual. Dentro da visão Freudiana, todo sujeito vai nascer dependendo incondicionalmente de alguém. O complexo de Édipo é chave para o seu pensamento. Na história humana, nascemos desamparados, dependemos de alguém para sobreviver e depois temos dificuldade para sobreviver sem esse alguém. A falta se apresenta. A Neurose, que Freud reconhece como a expressão de um conflito entre os desejos do nosso inconsciente, tem como característica marcante a falta. O individuo passa a vida buscando algo que o falta. Isso é doloroso, mas ao mesmo tempo é vital. A plenitude é a “morte”, porque para a vida é importante a busca. A Castração Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor., tão mencionada nos estudos psicanalíticos, é um artifício simbólico, onde nem tudo é possível. Constitui a perda e a falta. Afinal, para desejar algo tem que nos faltar. Vai muito além do instinto (que é a necessidade). A pulsão que é um elemento humano, é algo além do instinto, como uma busca por desejos que vão muito além do prazer. As pulsões são parte da busca pela falta. “Costuma-se referir ao conceito de pulsão (Trieb) como aquele que designa o limite entre o somático e o psíquico, um conceito-limite ou conceito fronteiriço que, por alguns aspectos, assemelhar-se-ia à noção de instinto (Instinkt), mas, que, por outros, distinguir-se-ia radicalmente deste” Honda, H. (2011). O conceito freudiano de pulsão (Trieb) e algumas de suas implicações epistemológicas. Fractal, Rev Psicol.. A falta nos movimenta, estamos sempre atrás de algo e essa busca por sentido é o movimento da pulsão. Mas o que é a pulsão? “Como a mãe consola o filho, eu também consolarei vocês. Quando virem isso acontecer, vocês ficarão contentes e terão novas forças, como uma planta que cresce viçosa.” (Isaias 66 13) Termo cunhado por Freud em sua obra "Pulsões e Destinos da Pulsão” Freud, S. (2017). “As pulsões e seus destinos”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915)., de 1915, para abordar pulsões sexuais (os impulsos sexuais) e as pulsões do ego (autoconservação e autopreservação do ser humano). As pulsões diferem instinto, pois apresentam motivações que vão muito além de uma necessidade, desempenhando a meta para a satisfação de anseios. A pulsão sexual, por exemplo, não se dá essencialmente para a reprodução, envolvendo desejos e subjetividades. As crianças têm como primeiro objeto sexual, a mãe, que é quem cuida e protege. Freud explica: “Voltando-nos agora para a consideração da vida psíquica do ângulo da biologia, o 'instinto' nos aparece como um conceito-limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo" Freud, S. (2010). Pulsões e seus destinos. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp. 51-88). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).. Na obra “Além do Princípio do Prazer” Freud, S. (2006). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Trad., Vol. 2, pp. 123-198). Imago. (Trabalho original publicado em 1920)., Freud discorre sobre a natureza conservadora das pulsões, pois percebe que determinadas pessoas que se fixam a comportamentos deletérios e repetem sempre o mesmo padrão de sofrimento. Ou seja, para além do desejo do prazer, que evidencia uma falta, e do alívio das tensões, o ser humano busca conservar um estado original. Assim, a noção de pulsão de morte está presente na busca de algo que vai muito além do prazer, como atos mais destrutivos. Nascemos tanto com a pulsão de morte e a pulsão de vida. A pulsão de morte é como um retorno ao inorgânico e está a todo momento conflitante dentro do ser. Sándor Ferenczi, traz conceitos que desafiam a teoria de Freud. Em sua obra “A Criança mal acolhida e a pulsão de morte” Ferenczi, S. (2011). "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte". Obras Completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes; 2ª Edição. (Trabalho original publicado em 1929)., Ferenczi leva em conta o ambiente mais além do psiquismo como concepção desse conceito. Neste ponto, Freud começou a criticar a teoria de Ferenczi, interpretando como uma regressão a teoria e a prática psicanalítica de suas origens repudiadas. A interação amorosa é fundante da subjetividade do ser. A partir disso, é como se pulsão de morte não fosse inata e ontológica como apresentada por Freud. A partir de suas observações clínicas, Ferenczi reparou que quando a criança não tem um ambiente suficientemente bom, quando não é cuidada ou bem-vinda, cresce então clivada, fragmentada. Ferenczi apresenta algumas doenças que apontaria para uma das características fundamentais da pulsão: repetição. As bases pulsionais de tudo que é orgânico é como se fosse um ataque da pulsão de morte desses indivíduos que não conseguem se defender. A criança inscreve no corpo os sinais de aversão dos adultos. É o que a psiquiatria reconhece como manifestações psicossomáticas. Além disso, essas pessoas podem colocar a sua vida em risco porque a pulsão de morte é latente por esse impacto das relações na infância. Há então os comportamentos que não têm o “zelo” pela vida. Esse conceito pode ser aplicado na clínica de Transtornos por Uso de Substâncias (TUS), onde pode se interpretar que o ser fragmentado põe a vida em risco, baseado na pulsão de morte, em decorrência da criança não acolhida. Ferenezi exemplifica sua teoria expondo a análise da paciente Elizabeth Severn, que constitui um dos grandes casos da psicanálise, crucial para a teoria dos traumas formados na infância. Em “O Diário Clínico de Ferenczi” Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1985)., há as memórias de Elizabeth ter sido abusada emocional, física e sexualmente por seu pai entre um ano e meio e dez anos de idade. O pai estaria envolvido com uso de cocaína, álcool e prostituição. Tanto Ferenczi quanto Severn acreditavam que o pai era um fator “traumatogênico” significativo no desenvolvimento de distúrbio emocional da paciente. Ao longo da existência do indivíduo, quando a criança sai do não ser para o ser e encontro o desamparo, há fragmentação do ser. Ferenczi trouxe a concepção de trauma patológico, que ultrapassava o campo dos conflitos intrapsíquicos defendidos por Freud. Ao contrário de Freud, Ferenczi (1933) considera os conflitos vividos nos primeiros anos de vida pela criança relacionados ao cuidado falho dos adultos. “O trauma se origina de um abuso, geralmente sexual, por parte de um adulto que se deixa levar por sua linguagem da paixão sobre uma criança que está na linguagem da ternura. A violência do adulto é imprevisível e incompreensível para a criança, que reage com um medo intenso diante da esmagadora autoridade do adulto” Ferenczi, S. (1992) Obras Completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933).  . Conclusão Embora compartilhassem suas origens clínicas iniciais de trabalhar de forma flexível e receptiva, Ferenczi sempre se apresentou como um “curador/parceiro”, já que seguia como analista e paciente num diálogo percebido em seu encontro terapêutico, enquanto Freud era a de um teórico e construtor de sistemas. Para Freud, o ser humano abusa das como uma resposta ao moralismo social que reprime a constituição psíquica do ser humano. A droga estaria para satisfazer a pulsão e a falta. Contudo, toda pulsão será parcialmente satisfeita, nunca plenamente. Isso não quer dizer que vivemos na insatisfação. A Histeria e Obsessão, termos pouco usados na psiquiatria atual, são maneiras diferentes de resposta à falta. É como projetar no futuro o que se falta no presente (ansiedade). “Eu vou estar muito satisfeita quando tiver isso”. É como ver no passado a plenitude. “Era tão mais fácil ser criança, não precisava trabalhar, pagar as contas” (depressão). O ser sempre projeta mais plenitude no futuro e passado, buscando uma falta que nunca tem fim. Essa insatisfação e a ilusão do passado pleno deixa a pessoa frustrada. Essa busca pelo que sempre falta pode ser a salvação ou a ruína. O mesmo movimento que é constitutivo, pode ser patológico. Vai depender da intensidade. O gozo concebido pelo uso da substância seria um prazer tão completo e a droga faz com que o sujeito busque sempre reviver esse gozo, projetando no passado e no futuro o que a droga pode conceder. A repetição, que é algo próprio da pulsão, apresenta-se incontrolável, o que Lacan denomina como Gozo Mortífero. Para Lacan, só há a pulsão de morte e dentro dessa pulsão contém as demais pulsões. Para Ferenczi, os traumas iniciais da vida tendem eclodir nos pacientes em fases tardias dessa mesma vida. Para Freud, intoxicar-se seria uma ferramenta para suportar o mal-estar inerente à civilização. Dessa forma, seria Transtorno por Uso de Substância uma pulsão de morte? Referências Bibliográficas Freud, S. (1996). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad. Vol. 19, pp. 189-199). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924). ______. (2017). “As pulsões e seus destinos”. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915) ______. (2010). Pulsões e seus destinos. In Sigmund Freud. Edição das obras completas de Freud (P. Souza, Trad.; Vol. 12, pp. 51-88). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915). ______. (2006). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Trad., Vol. 2, pp. 123-198). Imago. (Trabalho original publicado em 1920). Kury, M. G. (1999). «Édipo». Dicionário da Mitologia Grega e Romana. São Paulo: Zahar. Marini, M. (1996). Édipo, complexo de. In P. Kaufmann (Org.), Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan (M. Borges & V. Ribeiro, trads., pp. 135- 142). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Mezan, R. (1998a). A árvore da psicanálise. In R. Mezan, Freud: a trama dos conceitos (4a ed). São Paulo: Perspectiva. Almeida, R. M. (2000). Sedução, tradução e cura. Ágora: Estudos Em Teoria Psicanalítica, 3(2). Saussure, F. (2004). Escritos de linguística geral. Trad. Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lucia Franco. São Paulo: Cultrix. Lang, CE; Andrade, HV. (2019). Formalização e clínica psicanalítica: a estrutura, o significante e o sujeito. Cadernos de psicanálise. Rio de Janeiro, 2019. Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Honda, H. (2011). O conceito freudiano de pulsão (Trieb) e algumas de suas implicações epistemológicas. Fractal, Rev Psicol. Ferenczi, S. (2011). "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte". Obras Completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes; 2ª Edição. (Trabalho original publicado em 1929)   ______. (1990). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1985) ______.. (1992) Obras Completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933)