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EPOPEIA QUE MERECE UM RELATO MELHORADO.

2024, (Re)Definições de Fronteiras, v. 2, n. 6, janeiro-2024, 270-277

https://doi.org/10.59731/rdf.v2i6.106

Resenha do livro de Orlando Villas Boas; Claudio Villas Boas. A Marcha para o oeste – a epopeia da Expedição Roncador-Xingu. Porto Alegre: Editora Globo, 1994. O objetivo deste texto é apreciar a qualidade desse livro dos irmãos Villas Boas como fonte para pesquisas e como um depoimento sobre um fato marcante da história contemporânea do Brasil: a Expedição Roncador-Xingu.

www.journal.idesf.org.br RESENHA EPOPEIA QUE MERECE UM RELATO MELHORADO José Augusto Leitão Drummond43 O objetivo deste texto é apreciar a qualidade desse livro dos irmãos Villas Boas como fonte para pesquisas e como um depoimento sobre um fato marcante da história contemporânea do Brasil – a Expedição Roncador-Xingu. Como apreciador desse gênero de textos - relatos de viagens -, li nos anos 1990, com atenção e emoção, a edição original deste texto (Villas Boas; Villas Boas, 1994). Os autores deram o nome de “epopeia” à marcha, o que ajudou a obra a gerar impacto entre os apreciadores de relatos de viagem e os defensores dos direitos dos povos indígenas. O impacto do texto foi multiplicado por vários fatores adicionais - a ainda incipiente redemocratização do Brasil depois do fim da ditadura militar; os primeiros grandes avanços da nossa política indigenista; a fama internacional que Orlando Villas Boas (1914-2002) Claudio Villas Boas (1916-1998) tinham alcançado como defensores dos direitos e da cultura dos povos originários; e a consolidação do Parque Indígena do Xingu, um dos resultados da expedição. Isso tudo formou um contexto que ajudou a primeira edição deste livro a alcançar notável sucesso editorial, de crítica e de público. A expedição foi de fato uma epopeia contemporânea brasileira, que merece ser conhecida e admirada pela sociedade brasileira, junto com as expedições de Cândido Mariano da Silva Rondon e a marcha da Coluna Prestes. Iniciada em 1943, a expedição foi oficialmente encerrada em 1948. Ela foi subordinada à Fundação Brasil Central, órgão federal dedicado ao desenvolvimento regional. Recebia suprimentos – alimentos, remédios, armas e equipamentos diversos - por via aérea, de aviões militares da nascente Aeronáutica brasileira. O seu objetivo oficial era “desbravar” uma vasta área demarcada pelos rios formadores do rio Xingu (área ainda pouco conhecida pela sociedade nacional), abrir pistas de pouso para aviões da nascente Força Aérea Brasileira e contatar as populações indígenas. Doutor em Land Resources (University of Wisconsin). Professor Titular da Universidade de Brasília (aposentado) – E-mail: [email protected]. 43 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 270 www.journal.idesf.org.br Nesta resenha não vou me deter na expedição em si, detalhadamente descrita nas centenas de páginas do relato dos irmãos Villas Boas, que participaram dela desde o início, primeiro como braçais e depois como integrantes da chefia da marcha. Eles mantiveram diários em que registraram numerosos detalhes e que foram usados na redação do livro, décadas mais tarde. Os detalhes o dia a dia da marcha enchem de prazer os leitores desse gênero; as dificuldades do terreno e da travessia de rios; a descrição das paisagens; os animais caçados (uma amostra densa dos mamíferos, répteis, aves e peixes da fauna silvestre) para complementar o cardápio dos expedicionários; contatos com grupos indígenas; o vai e vem de aeronaves de apoio, que traziam suprimentos e notícias, além de autoridades, jornalistas, pesquisadores e médicos; as difíceis comunicações por rádio com a Fundação Brasil Central; doenças, incertezas e acidentes que afetaram os expedicionários. Para os apreciadores de narrativas de viagens, os Villas Boas ofereceram um texto denso, dramático e delicioso, digno de constar no gênero de relatos de viagem e que permite conhecer a “intimidade” da marcha. No entanto, nesta resenha – ensaio focalizo a qualidade da segunda edição do texto dos Villas Boas como como relato de primeira mão e como fonte primária. Ao ler essa nova edição do livro, de 1994, formei a opinião de que o texto, quase duas décadas depois da sua publicação original, não está à altura da marcha. Entre 1994 e 2012, ano desta segunda edição, houve muito tempo, oportunidade e a estrutura de uma editora sólida para fazer com que esse relato retratasse plenamente a epopeia da marcha propriamente dita e o início da ascensão dos irmãos Villa Boas ao status de heróis benfeitores dos povos originários. É preciso levar em conta ainda que esta segunda edição chegou às livrarias ajudada por um fator muito favorável - ela foi lançada junto a campanha publicitária que promoveu uma rica produção cinematográfica sobre a marcha, em parte baseada nesta narrativa dos irmãos Villas Boas. O filme tem o título Xingu, dirigido por Cao Hamburger e lançado em 2011. Quero deixar claro o meu argumento: não caberia de maneira alguma editar ou refazer o texto de 1992 pois isso talvez eliminasse o valioso sabor de relato de época, de primeira mão, marcado pelas dificuldades e desafios de uma longa Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 271 www.journal.idesf.org.br marcha pelo interior de um Brasil desconhecido de quase todos os brasileiros, inclusive os próprios Villas Boas. No entanto, o texto reeditado merecia muito mais trabalho editorial. Ele deveria ter recebido pelo menos uma introdução esclarecedora e várias notas explicativas, com diversos conteúdos – históricos, políticos, geográficos, zoológicos, botânicos, ecológicos, antropológicos, e (até) aeronáuticos. Numerosos fatos ficam soltos ou sem explicação ao longo das muitas centenas de páginas, fato comum em narrativas desse tipo, mas que poderia ser atenuado nesta reedição. Da mesma forma, a editora perdeu a oportunidade de incluir uma amostra densa do vasto material fotográfico produzido sobre a expedição, o que teria deixado o livro mais atraente. Lamentavelmente, várias oportunidades para fazer o texto funcionar melhor foram desperdiçadas. Por exemplo, a nova edição tem nada menos do que quatro apresentações e um prefácio (todos novos). Estão todos impressos à frente do texto reeditado. Todos elogiam a marcha e os autores, mas nenhum ajuda a tornar o livro mais apreciável ou acessível para o chamado público comum e mesmo para pesquisadores e leitores regulares de textos do gênero. As apresentações e o prefácio valorizam os autores e a marcha, mas não lidam com várias lacunas e descontinuidades da narrativa original (algumas das quais menciono mais à frente). Nem todas as oportunidades foram perdidas, felizmente. O historiador canadense John Hemming, talvez por causa da sua intimidade com narrativas de viajantes, inclusive viajantes que percorreram trechos do território brasileiro, contextualiza muito bem o relato dos Villas Boas. Oferece detalhes relevantes sobre a vida deles, a sua participação na marcha e até sobre o texto propriamente dito. Mas isso, infelizmente, só aparece no fim do livro, pois a contribuição de Hemming ficou relegada à condição de posfácio. O texto dele chega “tarde demais” para ajudar os desavisados leitores a apreciar mais o relato dos Villas Boas, a não ser para daqueles que por algum motivo decidem ler o posfácio antes do livro. Não foi o meu caso: ler o posfácio antes de ler o livro teria me ajudado a apreciar mais o livro. Para o leitor escolado na literatura de viagens e expedições por lugares ermos, o texto original sobrevive a várias carências e faz uma descrição rica de uma Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 272 www.journal.idesf.org.br expedição que, apesar de favorecida pelo apoio logístico mais “moderno” disponível na época (aviões e rádio), foi difícil, dramática, excepcional mesmo. Para o leitor não escolado nessa literatura e pouco informado sobre os autores e a expedição, porém, o texto original é pesado e a sua segunda edição pouco mudou. Em primeiro lugar, nunca fica claro onde está a expedição, inclusive por causa do uso de nomes de localidades, rios e serras que mudaram de nome; alguns mapas simples teriam ajudado a sanar esse problema. Em segundo lugar, o leitor pode perder a noção do dia a dia e da cronologia mais longa da expedição. Um cronograma ou uma simples linha do tempo ajudaria a evitar isso. Em terceiro lugar, algumas notas poderiam ajudar o entendimento de certas dificuldades da marcha, especialmente os problemas do apoio aéreo e as falhas na comunicação via rádio. Cito um exemplo de trechos problemáticos: há dezenas de páginas que os Villas Boas preenchem com relatos sobre boatos e especulações que grassavam entre os expedicionários. Eles divagavam sobre o que acontecia no longínquo Rio de Janeiro, capital nacional. A expedição foi de fato bancada pelo governo federal e isso obviamente influenciou a sua origem e o seu desdobramento. Mas, enquanto a expedição percorria territórios remotos, os seus líderes matutavam sobre fragmentos de informações de segunda e terceira mão veiculadas principalmente pelos pilotos e passageiros dos aviões que chegavam às pistas de pouso recém-abertas, pelos jornais e revistas censurados que eles traziam ou pelas precárias mensagens de rádio. Os líderes aparentemente gastavam horas especulando sobre o que acontecia nos corredores da Fundação Brasil Central e no ainda mais remoto gabinete presidencial de Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Tentavam adivinhar como os boatos que lhes chegavam com dias ou semanas de atraso poderiam incentivar ou atrasar a sua marcha. Isso de fato fez parte do “estado mental” dos expedicionários e se encaixa na narrativa, mas algumas notas poderiam explicar para o leitor o significado dessas longas passagens e como a maioria desses boatos em nada afetou a expedição. Para sanar um problema mais amplo da narrativa seria preciso incluir na introdução a informação de que durante a maior parte da expedição os Villas Boas Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 273 www.journal.idesf.org.br eram cidadãos anônimos, oriundos de uma família razoavelmente bem situada do centro-oeste de São Paulo. Eles cresceram numa pequena cidade (Santa Cruz do Rio Pardo), onde o seu pai foi prefeito, mas não tinham vínculos com a política nacional encenada na capital federal. Durante a expedição, eles estavam ainda mais distanciados do que ocorria nas remotas instâncias políticas do Rio. Estavam longe de se tornarem os “sertanistas” ou indigenistas de renome nacional e internacional, status alcançado apenas décadas depois da marcha. Mesmo que nos tempos da marcha eles tivessem sido politicamente muito bem conectados, o seu isolamento físico do centro nacional de poder era radical e dificultaria qualquer tentativa de influenciar decisões sobre a marcha. Por isso essas passagens acabam causando um “barulho” que prejudica o relato. Os autores as incluíram no texto, sim, e evidentemente elas não deveriam ser omitidas, até porque fazem parte do contexto no qual os expedicionários enfrentavam as agruras do trajeto. No entanto, um bom trabalho de edição poderia ter introduzido algumas notas que neutralizassem as distrações que esses trechos causam no relato sobre a marcha propriamente dita. Uma dimensão importante da marcha que fica difícil de compreender com base no relato do Villas Boas é a missão propriamente indigenista dela, missão essa mal explicada por eles. Décadas depois, a expedição acabou sendo considerada - e com razão - uma “herdeira” das expedições de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) pelo Centro Oeste e Amazônia, na virada do século XIX para o século XX. Só em um trecho muito adiantado do texto é que o leitor fica sabendo que Rondon, aposentado e pouco influente nos anos 1940, “reconheceu” na expedição que incluía os dois desconhecidos irmãos paulistas uma continuidade das suas longas e difíceis marchas e de suas medidas de proteção aos indígenas. O fato correlato de os Villas Boas, nas duas versões do texto, se reconhecerem e serem considerados por seus admiradores como “herdeiros” de Rondon também aparece tarde demais no texto. Fica claro, inclusive, que esse autorreconhecimento não se baseou em anotações dos irmãos feitas durante a marcha, anotações que formam a base de esmagadora parte do texto. Isso foi obviamente inserido quando os Villas Boas, décadas depois da marcha, preparavam o texto que virou o livro de 1994. Não consegui me certificar sequer se os Villas Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 274 www.journal.idesf.org.br Boas conheciam o trabalho de Rondon quando se apresentaram como anônimos voluntários para integrar a expedição antes de ela começar. As marchas rondonistas tinham terminado muito antes, quando eles eram crianças ou adolescentes. Os feitos de Rondon e de suas expedições tinham sido razoavelmente divulgados até os anos 1920, principalmente no Distrito Federal, entre a oficialidade do Exército, jornalistas, cidadãos letrados e integrantes dos altos círculos políticos nacionais. Mas, não é provável que os Villas Boas, ainda crianças ou adolescentes morando no interior de São Paulo, tenham sido atingidos por essa divulgação. Fica claro no relato dos irmãos Villas Boas que lidar com nações indígenas não esteve entre as prioridades da expedição, nem foi o motivo principal da adesão deles, embora tenha se tornado um componente importante quando a marcha já estava a meio caminho. A missão “objetiva” da expedição era abrir pistas de pouso para ampliar as rotas dos aviões da nascente Força Aérea Brasileira brasileira, criada em 1941, no contexto do famoso Correio Aéreo Nacional. Em termos mais subjetivos e ideológicos, não deve ser esquecido que a expedição fez parte do famoso programa varguista ou estadonovista da “marcha para o oeste”, que pouco ou nada tinha de conteúdo indigenista. Não existe no texto reeditado uma nota que clarifique essa nebulosa conexão da marcha dos Villas Boas com o legado rondonista. A marcha não foi organizada por Rondon nem por seus companheiros da Comissão Rondon (extinta muito antes da expedição dos Villas Boas). Além disso, os irmãos aderiram à expedição para trabalhar como braçais, condição na qual tiveram escassa influência sobre a origem e o início da marcha. Só passaram a compor a liderança dela depois de muito tempo, e não chegaram a comandá-la de fato. Não tinham status para fazer com que a expedição adotasse os princípios indigenistas de Rondon, princípios dos quais eles parecem ter tomado conhecimento apenas durante a marcha. A conexão de Rondon com os Villas Boas ocorreu anos depois de encerrada a marcha, nos anos 1950, quando eles se empenhavam pela criação do que veio a ser o Parque Indígena do Xingu. Para esse fim eles tiveram, sim, o apoio de Rondon, mas a essa altura tinham deixado de ser expedicionários e tinham assumido a identidade de indigenistas. Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 275 www.journal.idesf.org.br Além de problemas de fundo como esses, há saltos e buracos na cronologia da narrativa, também por responsabilidade dos autores. O relato da expedição se interrompe abruptamente em torno de 1949, depois de centenas de páginas focalizadas no cotidiano da marcha. Daí ele pula brevemente para a década de 1960 e logo depois retrocede a 1953. Depois desse zigue-zague, a narrativa salta de novo, desta feita para a década de 1970 e passa a focalizar algumas marchas e contramarchas do Parque Indígena do Xingu. – Tudo isso de forma inexplicada. Essa narrativa truncada, mesmo sendo de responsabilidade dos autores, poderia ser facilmente amaciada com breves notas escritas por um editor incumbido de valorizar o texto. No entanto, a minha frustração maior ao ler o texto reeditado veio precisamente com a virtual ausência de apreciações sobre o segundo grande feito dos Villas Boas, aquele que os alçou ao status de herdeiros de Rondon. O primeiro feito foi participar da marcha e da consequente construção de talvez uma dúzia pistas de pouso que viabilizaram as longas viagens do Correio Aéreo Nacional. Nas décadas seguintes, no entanto, aviões mais modernos, com alcance muito maior, fizeram com que muitas dessas pistas perdessem a sua utilidade original. Esse feito foi de curta duração. O segundo feito, no entanto, apesar de ser decorrência indireta e não planejada da expedição, se revelou duradouro e desejavelmente permanente: a criação do Parque Indígena do Xingu. O leitor do texto, escrito pelos próprios protagonistas da criação do parque e publicado décadas depois de sua criação, quase nada fica sabendo dos antecedentes da ideia do parque, da sua proposição às autoridades federais, dos seus apoiadores, críticos e opositores, da sua criação e de seu funcionamento. Houve tempo de sobra entre a criação do parque em 1961 e o lançamento da reedição em 2012 para sanar esse problema. De novo, algumas notas ou um anexo de poucas páginas seriam suficientes para sanar essa lacuna e até para direcionar o leitor para obter mais informações. Sei que vários problemas que aponto aqui são ou podem ser resolvidos por consultas a livros, artigos e teses (o que eu não fiz), mesmo assim é minha opinião Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 276 www.journal.idesf.org.br que o relato dos Villas Boas, se retrabalhado por um bom editor, poderia evitar ou reduzir a necessidade de consultar fontes secundárias para fins de pesquisa e para a maior satisfação do leitor comum. Enfim, está aberta a oportunidade de produzir uma reedição crítica e mais facilmente legível deste valioso livro dos irmãos Villas Boas. REFERÊNCIA Orlando Villas Boas; Claudio Villas Boas. A Marcha para o oeste – a epopeia da Expedição Roncador-Xingu. (Porto Alegre: Editora Globo, 1994). ISBN 8535919295, 9788535919295 Revista (RE)DEFINIÇÕES DAS FRONTEIRAS, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 6, p. 1-43, janeiro-2024 277