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RESENHA
EPOPEIA QUE MERECE UM RELATO MELHORADO
José Augusto Leitão Drummond43
O objetivo deste texto é apreciar a qualidade desse livro dos irmãos Villas
Boas como fonte para pesquisas e como um depoimento sobre um fato marcante da
história contemporânea do Brasil – a Expedição Roncador-Xingu. Como apreciador
desse gênero de textos - relatos de viagens -, li nos anos 1990, com atenção e
emoção, a edição original deste texto (Villas Boas; Villas Boas, 1994). Os autores
deram o nome de “epopeia” à marcha, o que ajudou a obra a gerar impacto entre os
apreciadores
de relatos de viagem e os defensores dos direitos dos povos
indígenas. O impacto do texto foi multiplicado por vários fatores adicionais - a ainda
incipiente redemocratização do Brasil depois do fim da ditadura militar; os primeiros
grandes avanços da nossa política indigenista; a fama internacional que Orlando
Villas Boas (1914-2002) Claudio Villas Boas (1916-1998) tinham alcançado como
defensores dos direitos e da cultura dos povos originários; e a consolidação do
Parque Indígena do Xingu, um dos resultados da expedição. Isso tudo formou um
contexto que ajudou a primeira edição deste livro a alcançar notável sucesso
editorial, de crítica e de público.
A expedição foi de fato uma epopeia contemporânea brasileira, que merece
ser conhecida e admirada pela sociedade brasileira, junto com as expedições de
Cândido Mariano da Silva Rondon e a marcha da Coluna Prestes. Iniciada em 1943,
a expedição foi oficialmente encerrada em 1948. Ela foi subordinada à Fundação
Brasil Central, órgão federal dedicado ao desenvolvimento regional. Recebia
suprimentos – alimentos, remédios, armas e equipamentos diversos - por via aérea,
de aviões militares da nascente Aeronáutica brasileira. O seu objetivo oficial era
“desbravar” uma vasta área demarcada pelos rios formadores do rio Xingu (área
ainda pouco conhecida pela sociedade nacional), abrir pistas de pouso para aviões
da nascente Força Aérea Brasileira e contatar as populações indígenas.
Doutor em Land Resources (University of Wisconsin). Professor Titular da Universidade de Brasília
(aposentado) – E-mail:
[email protected].
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Nesta resenha não vou me deter na expedição em si, detalhadamente
descrita nas centenas de páginas do relato dos irmãos Villas Boas, que participaram
dela desde o início, primeiro como braçais e depois como integrantes da chefia da
marcha. Eles mantiveram diários em que registraram numerosos detalhes e que
foram usados na redação do livro, décadas mais tarde. Os detalhes o dia a dia da
marcha enchem de prazer os leitores desse gênero; as dificuldades do terreno e da
travessia de rios; a descrição das paisagens; os animais caçados (uma amostra
densa dos mamíferos, répteis, aves e peixes da fauna silvestre) para complementar
o cardápio dos expedicionários; contatos com grupos indígenas; o vai e vem de
aeronaves de apoio, que traziam suprimentos e notícias, além de autoridades,
jornalistas, pesquisadores e médicos; as difíceis comunicações por rádio com a
Fundação Brasil Central; doenças, incertezas e acidentes que afetaram os
expedicionários. Para os apreciadores de narrativas de viagens, os Villas Boas
ofereceram um texto denso, dramático e delicioso, digno de constar no gênero de
relatos de viagem e que permite conhecer a “intimidade” da marcha.
No entanto, nesta resenha – ensaio focalizo a qualidade da segunda edição
do texto dos Villas Boas como como relato de primeira mão e como fonte primária.
Ao ler essa nova edição do livro, de 1994, formei a opinião de que o texto, quase
duas décadas depois da sua publicação original, não está à altura da marcha. Entre
1994 e 2012, ano desta segunda edição, houve muito tempo, oportunidade e a
estrutura de uma editora sólida para fazer com que esse relato retratasse
plenamente a epopeia da marcha propriamente dita e o início da ascensão dos
irmãos Villa Boas ao status de heróis benfeitores dos povos originários. É preciso
levar em conta ainda que esta segunda edição chegou às livrarias ajudada por um
fator muito favorável - ela foi lançada junto a campanha publicitária que promoveu
uma rica produção cinematográfica sobre a marcha, em parte baseada nesta
narrativa dos irmãos Villas Boas. O filme tem o título Xingu, dirigido por Cao
Hamburger e lançado em 2011.
Quero deixar claro o meu argumento: não caberia de maneira alguma editar
ou refazer o texto de 1992 pois isso talvez eliminasse o valioso sabor de relato de
época, de primeira mão, marcado pelas dificuldades e desafios de uma longa
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marcha pelo interior de um Brasil desconhecido de quase todos os brasileiros,
inclusive os próprios Villas Boas. No entanto, o texto reeditado merecia muito mais
trabalho editorial. Ele deveria ter recebido pelo menos uma introdução esclarecedora
e várias notas explicativas, com diversos conteúdos – históricos, políticos,
geográficos, zoológicos, botânicos, ecológicos, antropológicos, e (até) aeronáuticos.
Numerosos fatos ficam soltos ou sem explicação ao longo das muitas centenas de
páginas, fato comum em narrativas desse tipo, mas que poderia ser atenuado nesta
reedição. Da mesma forma, a editora perdeu a oportunidade de incluir uma amostra
densa do vasto material fotográfico produzido sobre a expedição, o que teria deixado
o livro mais atraente.
Lamentavelmente, várias oportunidades para fazer o texto funcionar melhor
foram desperdiçadas. Por exemplo, a nova edição tem nada menos do que quatro
apresentações e um prefácio (todos novos). Estão todos impressos à frente do texto
reeditado. Todos elogiam a marcha e os autores, mas nenhum ajuda a tornar o livro
mais apreciável ou acessível para o chamado público comum e mesmo para
pesquisadores e leitores regulares de textos do gênero. As apresentações e o
prefácio valorizam os autores e a marcha, mas não lidam com várias lacunas e
descontinuidades da narrativa original (algumas das quais menciono mais à frente).
Nem todas as oportunidades foram perdidas, felizmente. O historiador
canadense John Hemming, talvez por causa da sua intimidade com narrativas de
viajantes, inclusive viajantes que percorreram trechos do território brasileiro,
contextualiza muito bem o relato dos Villas Boas. Oferece detalhes relevantes sobre
a vida deles, a sua participação na marcha e até sobre o texto propriamente dito.
Mas isso, infelizmente, só aparece no fim do livro, pois a contribuição de Hemming
ficou relegada à condição de posfácio. O texto dele chega “tarde demais” para
ajudar os desavisados leitores a apreciar mais o relato dos Villas Boas, a não ser
para daqueles que por algum motivo decidem ler o posfácio antes do livro. Não foi o
meu caso: ler o posfácio antes de ler o livro teria me ajudado a apreciar mais o livro.
Para o leitor escolado na literatura de viagens e expedições por lugares
ermos, o texto original sobrevive a várias carências e faz uma descrição rica de uma
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expedição que, apesar de favorecida pelo apoio logístico mais “moderno” disponível
na época (aviões e rádio), foi difícil, dramática, excepcional mesmo. Para o leitor não
escolado nessa literatura e pouco informado sobre os autores e a expedição, porém,
o texto original é pesado e a sua segunda edição pouco mudou.
Em primeiro lugar, nunca fica claro onde está a expedição, inclusive por
causa do uso de nomes de localidades, rios e serras que mudaram de nome; alguns
mapas simples teriam ajudado a sanar esse problema. Em segundo lugar, o leitor
pode perder a noção do dia a dia e da cronologia mais longa da expedição. Um
cronograma ou uma simples linha do tempo ajudaria a evitar isso. Em terceiro lugar,
algumas notas poderiam ajudar o entendimento de certas dificuldades da marcha,
especialmente os problemas do apoio aéreo e as falhas na comunicação via rádio.
Cito um exemplo de trechos problemáticos: há dezenas de páginas que os
Villas Boas preenchem com relatos sobre boatos e especulações que grassavam
entre os expedicionários. Eles divagavam sobre o que acontecia no longínquo Rio
de Janeiro, capital nacional. A expedição foi de fato bancada pelo governo federal e
isso obviamente influenciou a sua origem e o seu desdobramento. Mas, enquanto a
expedição percorria territórios remotos, os seus líderes matutavam sobre fragmentos
de informações de segunda e terceira mão veiculadas principalmente pelos pilotos e
passageiros dos aviões que chegavam às pistas de pouso recém-abertas, pelos
jornais e revistas censurados que eles traziam ou pelas precárias mensagens de
rádio. Os líderes aparentemente gastavam horas especulando sobre o que
acontecia nos corredores da Fundação Brasil Central e no ainda mais remoto
gabinete presidencial de Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Tentavam adivinhar
como os boatos que lhes chegavam com dias ou semanas de atraso poderiam
incentivar ou atrasar a sua marcha. Isso de fato fez parte do “estado mental” dos
expedicionários e se encaixa na narrativa, mas algumas notas poderiam explicar
para o leitor o significado dessas longas passagens e como a maioria desses boatos
em nada afetou a expedição.
Para sanar um problema mais amplo da narrativa seria preciso incluir na
introdução a informação de que durante a maior parte da expedição os Villas Boas
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eram cidadãos anônimos, oriundos de uma família razoavelmente bem situada do
centro-oeste de São Paulo. Eles cresceram numa pequena cidade (Santa Cruz do
Rio Pardo), onde o seu pai foi prefeito, mas não tinham vínculos com a política
nacional encenada na capital federal. Durante a expedição, eles estavam ainda mais
distanciados do que ocorria nas remotas instâncias políticas do Rio. Estavam longe
de se tornarem os “sertanistas” ou indigenistas de renome nacional e internacional,
status alcançado apenas décadas depois da marcha. Mesmo que nos tempos da
marcha eles tivessem sido politicamente muito bem conectados, o seu isolamento
físico do centro nacional de poder era radical e dificultaria qualquer tentativa de
influenciar decisões sobre a marcha. Por isso essas passagens acabam causando
um “barulho” que prejudica o relato. Os autores as incluíram no texto, sim, e
evidentemente elas não deveriam ser omitidas, até porque fazem parte do contexto
no qual os expedicionários enfrentavam as agruras do trajeto. No entanto, um bom
trabalho de edição poderia ter introduzido algumas notas que neutralizassem as
distrações que esses trechos causam no relato sobre a marcha propriamente dita.
Uma dimensão importante da marcha que fica difícil de compreender com
base no relato do Villas Boas é a missão propriamente indigenista dela, missão essa
mal explicada por eles. Décadas depois, a expedição acabou sendo considerada - e
com razão - uma “herdeira” das expedições de Cândido Mariano da Silva Rondon
(1865-1958) pelo Centro Oeste e Amazônia, na virada do século XIX para o século
XX. Só em um trecho muito adiantado do texto é que o leitor fica sabendo que
Rondon, aposentado e pouco influente nos anos 1940, “reconheceu” na expedição
que incluía os dois desconhecidos irmãos paulistas uma continuidade das suas
longas e difíceis marchas e de suas medidas de proteção aos indígenas.
O fato correlato de os Villas Boas, nas duas versões do texto, se
reconhecerem e serem considerados por seus admiradores como “herdeiros” de
Rondon também aparece tarde demais no texto. Fica claro, inclusive, que esse
autorreconhecimento não se baseou em anotações dos irmãos feitas durante a
marcha, anotações que formam a base de esmagadora parte do texto. Isso foi
obviamente inserido quando os Villas Boas, décadas depois da marcha, preparavam
o texto que virou o livro de 1994. Não consegui me certificar sequer se os Villas
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Boas conheciam o trabalho de Rondon quando se apresentaram como anônimos
voluntários para integrar a expedição antes de ela começar. As marchas rondonistas
tinham terminado muito antes, quando eles eram crianças ou adolescentes. Os
feitos de Rondon e de suas expedições tinham sido razoavelmente divulgados até
os anos 1920, principalmente no Distrito Federal, entre a oficialidade do Exército,
jornalistas, cidadãos letrados e integrantes dos altos círculos políticos nacionais.
Mas, não é provável que os Villas Boas, ainda crianças ou adolescentes morando no
interior de São Paulo, tenham sido atingidos por essa divulgação.
Fica claro no relato dos irmãos Villas Boas que lidar com nações indígenas
não esteve entre as prioridades da expedição, nem foi o motivo principal da adesão
deles, embora tenha se tornado um componente importante quando a marcha já
estava a meio caminho. A missão “objetiva” da expedição era abrir pistas de pouso
para ampliar as rotas dos aviões da nascente Força Aérea Brasileira brasileira,
criada em 1941, no contexto do famoso Correio Aéreo Nacional. Em termos mais
subjetivos e ideológicos, não deve ser esquecido que a expedição fez parte do
famoso programa varguista ou estadonovista da “marcha para o oeste”, que pouco
ou nada tinha de conteúdo indigenista.
Não existe no texto reeditado uma nota que clarifique essa nebulosa conexão
da marcha dos Villas Boas com o legado rondonista. A marcha não foi organizada
por Rondon nem por seus companheiros da Comissão Rondon (extinta muito antes
da expedição dos Villas Boas). Além disso, os irmãos aderiram à expedição para
trabalhar como braçais, condição na qual tiveram escassa influência sobre a origem
e o início da marcha. Só passaram a compor a liderança dela depois de muito
tempo, e não chegaram a comandá-la de fato. Não tinham status para fazer com que
a expedição adotasse os princípios indigenistas de Rondon, princípios dos quais
eles parecem ter tomado conhecimento apenas durante a marcha. A conexão de
Rondon com os Villas Boas ocorreu anos depois de encerrada a marcha, nos anos
1950, quando eles se empenhavam pela criação do que veio a ser o Parque
Indígena do Xingu. Para esse fim eles tiveram, sim, o apoio de Rondon, mas a essa
altura tinham deixado de ser expedicionários e tinham assumido a identidade de
indigenistas.
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Além de problemas de fundo como esses, há saltos e buracos na cronologia
da narrativa, também por responsabilidade dos autores. O relato da expedição se
interrompe abruptamente em torno de 1949, depois de centenas de páginas
focalizadas no cotidiano da marcha. Daí ele pula brevemente para a década de 1960
e logo depois retrocede a 1953. Depois desse zigue-zague, a narrativa salta de
novo, desta feita para a década de 1970 e passa a focalizar algumas marchas e
contramarchas do Parque Indígena do Xingu. – Tudo isso de forma inexplicada.
Essa narrativa truncada, mesmo sendo de responsabilidade dos autores, poderia ser
facilmente amaciada com breves notas escritas por um editor incumbido de valorizar
o texto.
No entanto, a minha frustração maior ao ler o texto reeditado veio
precisamente com a virtual ausência de apreciações sobre o segundo grande feito
dos Villas Boas, aquele que os alçou ao status de herdeiros de Rondon. O primeiro
feito foi participar da marcha e da consequente construção de talvez uma dúzia
pistas de pouso que viabilizaram as longas viagens do Correio Aéreo Nacional. Nas
décadas seguintes, no entanto, aviões mais modernos, com alcance muito maior,
fizeram com que muitas dessas pistas perdessem a sua utilidade original. Esse feito
foi de curta duração.
O segundo feito, no entanto, apesar de ser decorrência indireta e não
planejada da expedição, se revelou duradouro e desejavelmente permanente: a
criação do Parque Indígena do Xingu. O leitor do texto, escrito pelos próprios
protagonistas da criação do parque e publicado décadas depois de sua criação,
quase nada fica sabendo dos antecedentes da ideia do parque, da sua proposição
às autoridades federais, dos seus apoiadores, críticos e opositores, da sua criação e
de seu funcionamento. Houve tempo de sobra entre a criação do parque em 1961 e
o lançamento da reedição em 2012 para sanar esse problema. De novo, algumas
notas ou um anexo de poucas páginas seriam suficientes para sanar essa lacuna e
até para direcionar o leitor para obter mais informações.
Sei que vários problemas que aponto aqui são ou podem ser resolvidos por
consultas a livros, artigos e teses (o que eu não fiz), mesmo assim é minha opinião
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que o relato dos Villas Boas, se retrabalhado por um bom editor, poderia evitar ou
reduzir a necessidade de consultar fontes secundárias para fins de pesquisa e para
a maior satisfação do leitor comum.
Enfim, está aberta a oportunidade de produzir uma reedição crítica e mais
facilmente legível deste valioso livro dos irmãos Villas Boas.
REFERÊNCIA
Orlando Villas Boas; Claudio Villas Boas. A Marcha para o oeste – a epopeia da
Expedição Roncador-Xingu. (Porto Alegre: Editora Globo, 1994). ISBN
8535919295, 9788535919295
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