Wilson Miranda Lima
Governador do Estado do Amazonas
Jório de Albuquerque Veiga Filho
Secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico,
Ciência, Tecnologia e Inovação - SEDECTI
Márcia Perales Mendes Silva
Diretora-Presidente da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Amazonas
Esta obra foi financiada pelo Governo do Estado do Amazonas com recursos da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM)
YOMARLEY LOPES HOLANDA
Organizador
Escritos sobre História:
Ensino e i�nerários de pesquisa
no interior da Amazônia
Copyright © Yomarley Lopes Holanda (Org.), 2022
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os
meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
EDITOR João Baptista Pinto
CAPA Jenyfer Bonfim
Fotografia: Adreane Nascimento
PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO Jenyfer Bonfim
REVISÃO Dos autores
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E73
Escritos sobre história: ensino e itinerários de pesquisa no interior da Amazônia [recurso
eletrônico] / organização Yomarley Lopes Holanda. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022.
recurso digital ; 6 MB
Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7785-768-5 (recurso eletrônico)
1. História - Ensino. 2. Educação - Aspectos sociais. 3. Professores - Formação. 4. Livros
eletrônicos. I. Holanda, Yomarley Lopes.
22-80905
CDD: 370.7
CDU: 37:9
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643
PARECERES E REVISÃO POR PARES:
Os textos que compõem esta obra foram submetidos à avaliação de pareceristas
externos, sendo indicados para a publicação após criteriosa revisão. O Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) agradece
aos pareceristas ad hoc pelos relevantes serviços prestados ao Programa.
LETRA CAPITAL EDITORA
Tels.: (21) 3553-2236 / 2215-3781
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Conselho Editorial
Série Letra Capital Acadêmica
Ana Elizabeth Lole dos Santos (PUC-Rio)
Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR)
Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM)
Claudio Cezar Henriques (UERJ)
Ezilda Maciel da Silva (UNIFESSPA)
João Luiz Pereira Domingues (UFF)
João Medeiros Filho (UCL)
Leonardo Agostini Fernandes (PUC-Rio)
Leonardo Santana da Silva (UFRJ)
Lina Boff (PUC-Rio)
Luciana Marino do Nascimento (UFRJ)
Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ)
Michela Rosa di Candia (UFRJ)
Olavo Luppi Silva (UFABC)
Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ)
Pierre Alves Costa (Unicentro-PR)
Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO)
Robert Segal (UFRJ)
Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ)
Sandro Ornellas (UFBA)
Sergio Azevedo (UENF)
Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR)
Waldecir Gonzaga (PUC-Rio)
Sumário
Apresentação ................................................................................9
Yomarley Lopes Holanda
Eixo 1: Ensino de História e novas perspectivas ............... 15
Ensino de história em tempos de pandemia:
novas linguagens e tecnologias – CEST/UEA .........................17
Luciano Everton Costa Teles
Novas abordagens metodológicas como caminhos
possíveis para a renovação do saber histórico
em sala de aula partir da temática Nova República .................30
Mirela Alves de Alencar
Cristiane da Silveira
O ensino de História e a canção popular: As toadas
do boi-bumbá Amazônico na sala de aula ................................40
Yomarley Lopes Holanda
Ensino de história: o jornal como suporte
documental e/ou recurso didático ............................................55
Luciano Everton Costa Teles
Eixo 2: Itinerários Investigativos............................................ 69
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã
contra a grilagem de terras em boca
do Acre (1972-1978) ...................................................................71
Francisco da Silva
Tiago Fonseca dos Santos ............................................................... 71
7
A poética da natureza: o pensamento ecológico
nos escritos de Thiago de Mello ................................................91
Manoel Roberto de Lima
Yomarley Lopes Holanda
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s)
na Amazônia dos Anos de Chumbo .......................................114
Tiago Fonseca dos Santos
Júlio Cláudio da Silva
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas
tradicionais, história oral e estudos mitológicos
para uma pesquisa na Amazônia rural ...................................127
Macário Lopes de Carvalho Júnior
Arilson Nogueira Cruz
História e outros arquivos: memória, patrimônio
histórico e cultural nos registros paroquiais
do acervo da prelazia de Tefé-AM
(Séculos XIX e XX) ...................................................................150
Tenner Inauhiny de Abreu
Luciano Everton Costa Teles
Jubrael Mesquita da Silva
A arte de benzer e seus processos de (re)construção
a partir do olhar dos curandeiros (Tefé – AM) ......................168
Adriana Nonato Braga
Cristiane da Silveira
8
Apresentação
Yomarley Lopes Holanda1
A
presente coletânea floresceu de uma iniciativa
conjunta dos docentes do colegiado de História do
CEST/UEA e do PPGICH/UEA que, por vários anos, vêm
trabalhando na formação de novos profissionais de educação
e na consolidação da pesquisa em História, seu ensino e suas
relações complementares com outros campos do conhecimento.
Portanto, o livro objetiva desvelar algumas dessas experiências
acadêmicas realizadas em uma universidade pública no interior
do Amazonas. Vale ressaltar que alguns dos textos que integram
a coletânea são resultantes da colaboração entre estudantes e
docentes da UEA/CEST.
Dada a diversidade de temáticas e abordagens teóricometodológicas, a coletânea possui uma perspectiva dialógica, isto
é, embora os textos mantenham conexão com a História, nossa
ciência de referência, eles não se circunscrevem a um modelo
epistêmico cristalizado, na verdade transbordam para romper
determinadas fronteiras disciplinares, isto explica nossa escolha
pelos dois grandes eixos temáticos que compõem o livro, a
saber: 1) Ensino de História e novas perspectivas; 2) Itinerários
investigativos.
O texto que abre o eixo Ensino de História e novas
perspectivas é de autoria do professor Luciano Everton Costa
Teles sobre a prática de ensino de História em contexto de crise
sanitária ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus (COVID19). Trata-se de importante discussão sobre um dos momentos
mais críticos que vivenciamos, com ressonâncias sombrias sobre
o contexto educacional. Nesse cenário, o autor nos apresenta o
processo de adequação das aulas de História à modalidade remota
e/ou na educação superior, destacando as diversas práticas
1
Coordenador Pedagógico do Curso de Licenciatura em História do CEST/
UEA. Subcoordenador do PPGICH/UEA em Tefé.
9
Yomarley Lopes Holanda
pedagógicas inovadoras, e até mesmo inéditas, que emergiram no
campo do ensino da História, no caso específico as experiências
vivenciadas no curso de graduação em História na Universidade
do Estado do Amazonas/CEST.
“Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis
para a renovação do saber histórico em sala de aula, a partir da
temática Nova República” é o texto em coautoria da estudante
egressa Mirela Alves de Alencar com a professora Cristiane da
Silveira, que faz uma reflexão sobre a prática do projeto de ensino
intitulado “A Nova República: novas abordagens”. Tal atividade prática
de ensino foi desenvolvida na disciplina de Prática de Ensino de
História e Estágio Supervisionado III, no curso de Licenciatura
em História, e problematizando o processo de configuração,
organização política e administrativa no Brasil durante o período
de redemocratização, além de traçar um paralelo do tema da
democracia nos dias atuais.
Em seguida o professor Yomarley Holanda debate “O
ensino de História e a canção popular: as toadas do boi-bumbá
amazônico na sala de aula” partindo da seguinte indagação:
“como podemos tornar as aulas de História mais interessantes,
provocando nos alunos o entendimento de que são sujeitos
históricos e, ao mesmo tempo, ajudando-os a desconstruir os
estereótipos teóricos e práticos que assombram a nossa ciência
de referência?” Este é o mote para o texto que objetiva tecer
uma reflexão sobre o uso de fontes literárias, no caso, a toada de
boi-bumbá enquanto portadora de um discurso representacional
que pode tornar-se objeto de interpretação histórico-cultural e,
ao mesmo tempo, articulando-a como fonte para o ensino de
História na contemporaneidade.
No texto “Ensino de História: o jornal como suporte
documental e/ou recurso didático”, o professor Luciano Everton
Costa Teles parte da compreensão de que se deve romper com a ideia
de um ensino de história assentado estritamente na transmissão
de conteúdo, destacando as possibilidades e potencialidades da
produção do conhecimento neste âmbito do ensino na escola
pública. O objetivo do texto é demonstrar como os jornais podem
ser utilizados no processo de ensino/aprendizagem como suporte
documental e/ou recurso didático para promoção de um ensino de
10
Apresentação
história inovador, pautado num entrelaçamento entre transmissão
e produção de conhecimento.
O segundo eixo temático, Itinerários investigativos, se
inicia com o texto “Em busca por direitos: a luta dos Apurinã
contra a grilagem de terras em Boca do Acre (1972-1978)”,
do estudante egresso Francisco da Silva em coautoria com o
professor Tiago Fonseca dos Santos (seu orientador de TCC), e
tem por objetivo analisar a documentação encontrada no Arquivo
Nacional sobre o povo Apurinã, recortes de jornais da época e a
ainda limitada bibliografia sobre o tema. Tal perspectiva abarca
também a justificativa da pesquisa, tendo em vista a necessidade do
aprofundamento das pesquisas sobre o regime militar na Amazônia
em geral. O texto traz importantes recortes dos resultados da
monografia do egresso Francisco Silva, em dezembro de 2021,
no CEST/UEA, navega ainda pelos desdobramentos do processo
de colonização da região norte do país e a resistência dos povos
originários.
“A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos
de Thiago de Mello” é a temática abordada no texto tecido junto
pelo estudante egresso Manoel Roberto de Lima e seu orientador
de TCC professor Yomarley Lopes Holanda. A metodologia
adotada é a dialógica e complexa para enveredar pelos escritos
de Mello e outros autores, com base numa ecologia de saberes
de Santos (2007), partindo da poética amazônica e entrelaçando
com o Pensamento Ecológico de Capra (1997). Os autores do texto
destacam a insubmissão como a marca da poesia de Thiago de
Mello, sua arte sempre se preocupou com a vida, a dignidade, a
liberdade e os direitos humanos.
O texto “Elementos para a discussão sobre indigenismo(s)
na Amazônia nos anos de chumbo”, de autoria dos professores
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva desvela
um quadro ainda em tecedura sobre o(s) indigenismo(s) na
Amazônia durante a Ditadura Militar na Amazônia. Para isto, o
autor lança mão da análise do relatório intitulado A Problemática
Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República. Segundo o autor a proposta justifica-se
por permitir compreender o processo de assujeitamento dos
indígenas e a tentativa por parte do governo integrá-los, ou seja,
11
Yomarley Lopes Holanda
torná-los cidadãos/trabalhadores brasileiros, assimilados à
cultura ocidental. Ao longo do artigo fica evidente a complexidade
da questão da sobrevivência dos povos indígenas na região
amazônica, justamente por se tratar de uma área considerada
estratégica pelo Estado brasileiro, a sua fruição autônoma nos
territórios é atravessada por interesses econômicos, conflitos
agrários e questões geopolíticas que os colocam no olho do
furacão da expansão do sistema capitalista na Amazônia.
“Seres fantásticos e onde habitam: narrativas tradicionais,
história oral e estudos mitológicos para uma pesquisa na
Amazônia rural” é o texto resultante da colaboração entre o
professor Macário Lopes de Carvalho Júnior e seu orientando de
TCC, Arílson Nogueira Cruz. É Fruto das inquietações dos autores
acerca da natureza das histórias orais tradicionais contadas pelas
pessoas mais velhas, sendo um dos autores filho de habitantes de
comunidades rurais do Médio Amazonas (Itacoatiara) e Médio
Purus (Lábrea) e o outro originário de uma comunidade rural
do entorno de Fonte Boa, ambos tinham certa proximidade ou
familiaridade com o tema, no sentido de que ouviam na infância
essas histórias e, mais tarde, iriam encontrar novamente com elas
na escola e na universidade sob outras perspectivas.
Os professores Tenner Inauhiny Abreu, Luciano Everton
Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva discutem a “História e
outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos
registros paroquiais do acervo da Prelazia de Tefé-AM (Séculos
XIX E XX)”, a partir das ações realizadas durante a vigência do
projeto “História, arquivo e memória de Tefé”, financiado pela
FAPEAM entre 2013 e 2016, que tinha como finalidade organizar
e democratizar o acervo da Prelazia de Tefé/AM, localizado
na Rádio Educação Rural do município. Trata-se de um dos
maiores acervos documentais da região e que tem recebido
atenção dos pesquisadores por sua pluralidade e singularidade
(registros paroquiais, periódicos, diários etnográficos, imagens,
documentos do Movimento de Educação de Base – MEB, etc.).
Assim, o texto versa sobre os resultados das pesquisas em
andamento, estendendo seus procedimentos a outros fundos
de documentação, com o intuito de confrontar documentos de
origens diversas, além de mapear e descobrir novas fontes.
12
Apresentação
O texto que fecha a coletânea é intitulado “A arte de benzer
e seus processos de (re) construção a partir do olhar dos
curandeiros (Tefé-AM)”, de autoria da estudante egressa Adriana
Nonato Braga juntamente com a professora Cristiane da Silveira,
sua orientadora de TCC. Segundo as autoras benzer é um ato que
consiste em curar pessoas dos mais diversos males, através de gestos
e preces que vem acompanhada do uso de plantas selecionadas.
Para compreender este complexo processo sociocultural em na
cidade de Tefé, o texto objetiva investigar e apresentar algumas
das diversas formas de benzer, suas origens, influências e como se
deram seus processos de (re) construção ao longo do tempo.
Gostaríamos de agradecer à FAPEAM e ao PPGICH/UEA
pela colaboração e financiamento da presente coletânea. Por fim,
nesta obra coletiva trazemos a palavra de professores e estudantes
egressos da Universidade do Estado do Amazonas em Tefé,
interior da Amazônia, reflexões pertinentes fundamentadas em
experiências práticas no exercício do magistério e/ou da pesquisa
científica ao longo da última década. Convidamos todos (as) a
embarcarem conosco nesta aventura de leitura e discussão crítica
sobre a História em conexão dialógica com outros saberes, não
como algo atado às correntes de um passado pronto e acabado,
mas sim enquanto processo vibrante de transformação.
Tefé, 30 de Maio de 2022.
13
Eixo 1
Ensino de História
e novas perspectivas
Ensino de história em tempos de pandemia:
novas linguagens e tecnologias – CEST/UEA
Luciano Everton Costa Teles1
Considerações iniciais
N
a manhã do dia 16 de março de 2020, no município
de Tefé, localizado a 522 Km de distância da capital
do Amazonas, por volta das 11hs, recebemos a notícia de que as
atividades acadêmicas presenciais na Universidade do Estado do
Amazonas a partir daquele momento em diante estavam suspensas
por conta do avanço do novo coronavírus na região.
A administração superior da Universidade do Estado do
Amazonas montou um Grupo de Gestão (Grupo de Gestão
de Contingência da UEA Diante da Pandemia da Doença pelo
SARS-Cov-2, o GG – UEA COVID-19)2 diante da iminente crise
sanitária para monitorar a situação epidemiológica no estado e
avaliar possíveis retornos presenciais ou não. A princípio, o Grupo
deliberou que alunos e professores deveriam ficar em casa e manter
todos os cuidados necessários para não se infectarem, sendo que
a direção e os administrativos trabalhariam em sistema de rodízio
mantendo o distanciamento social e as medidas de proteção (uso
de máscara e álcool em gel).
Com o agravamento da pandemia, confirmada pelo Grupo
Gestor da COVID-19 da UEA, o trabalho em casa, home office, foi
instituído na Universidade. Em seguida, tratou-se de reestruturar o
calendário acadêmico para dar alguma previsibilidade e assegurar
um planejamento de retorno das atividades presenciais ou remotas
do semestre 2020/1. Este que havia começado normalmente,
presencialmente, terminaria remotamente. Desse modo, um grande
1
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professor Adjunto B da Universidade do Estado do Amazonas/CEST. E-mail:
[email protected]
1
O GG – UEA CIVID-19 foi instituído pela Portaria GR/UEA n. 0205 de 16 de
março de 2020.
17
Luciano Everton Costa Teles
desafio foi posto para toda a comunidade acadêmica, sobretudo
para professores e alunos: garantir o término do semestre 2020/1
utilizando metodologias de ensino não presenciais.
O objetivo deste artigo consiste em expor como esse desafio
foi encarado no curso de História, especialmente nas disciplinas de
História da Amazônia 1 e 2. A ideia é que, a partir das experiências
relatadas, possamos refletir sobre as novas linguagens e tecnologias
no ensino de História em tempos de pandemia.
O Ensino de História: novas linguagens e
tecnologias
Não é de hoje que se discute como superar um ensino de
História monótono e desanimador. Aulas expositivas tradicionais,
muito comuns ainda nos dias atuais, são recorrentes, assim como
as avaliações baseadas estritamente nos assuntos dados e expostos.
Essa é uma característica do ensino de História bastante criticada e
questionada nos diversos níveis de ensino.
Com efeito, há estudos que apontam para uma diversificação da
prática pedagógica e seus resultados animadores (BITTENCOURT,
2008; BARROSO et al., 2010; MONTEIRO et al., 2007), em especial
no sentido de tornar a disciplina histórica agradável e atrativa. Um
desses caminhos expõe as denominadas novas linguagens:
O uso de diferentes fontes e linguagens no ensino de História tem contribuído não só para ampliar o campo de estudo
da disciplina, como também estabelecer um novo conceito de
ensino-aprendizagem, tornando o processo mais dinâmico, significativo e prazeroso. O uso de imagens e documentos escritos
tem contribuído para dar significado ao conteúdo histórico,
tornando-o real... (MEDEIROS, 2005, p. 60-61).
Em linhas gerais, as novas linguagens são incorporadas
ao ensino numa dinâmica em que se analisa, discute e debate o
processo de construção do conhecimento histórico científico. O
trabalho com as fontes históricas, matéria-prima do historiador, é
fundamental, assim como as reflexões de como contextualizá-las
e abordá-las técnica e metodologicamente. Mas a produção do
18
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
conhecimento em História não se faz apenas com os documentos
históricos3, mas sim a partir do diálogo entre estes e os instrumentais
teóricos (conceitos, categorias de análise, teorias...) que compõem
o cabedal formativo e cultural dos profissionais da área. O diálogo
entre o que Ciro Cardoso chamou de teórico e empírico é essencial
na área de História (1992, p. 25).
Portanto, as novas linguagens – cinema, música, jornais,
revistas, fotografias, processo criminais, desenhos, vestígios
arqueológicos, entre outros – permitem ao professor/historiador
trabalhar, na sala de aula e/ou nas visitas em arquivos, com
documentos históricos, abordando-os e interpretando-os junto com
os seus alunos. Trabalhando com eles também os instrumentos
teóricos elaborados e sua operacionalização na construção do
saber histórico.
Já as novas tecnologias – notebooks, tablets, celulares, smart
tv's e as plataformas digitais contidas neles, além da investigação
em sites de centros e instituições de pesquisa, etc. – possibilitam em
grande medida o acesso às novas linguagens e seus estudos. Ainda
mais considerando que o mundo de hoje disseminou um aparato
tecnológico expressivo cujo maior exemplo é o celular, o qual
muitos têm acesso (os que podem, uma vez que há desigualdades
de obtenção e exclusão digital) e conseguem na palma da mão ter
contato com as mais variadas informações, das simples notícias às
análises mais complexas.
Não há como num mundo globalizado e digital, no qual as
crianças já crescem com um dedinho no celular, manipulando-o,
ter um espaço de formação profissional sem incorporar essas
tecnologias criadas pela humanidade e as novas linguagens que
emergem como propostas para um ensino de História inovador4.
Na universidade, onde o compromisso com a formação acadêmica
3
Os documentos históricos se constituem como um dos elementos necessários
para a construção do conhecimento histórico. Sozinhos são limitados e apenas
reverberam as vozes “parciais” de quem os produziu, em outras palavras, a visão
de mundo e de sociedade dos indivíduos que elaboraram os registros. O elemento
teórico é o outro aspecto necessário nesse movimento de análise e interpretação
do passado. É a partir dessa relação que o saber histórico é elaborado.
4
O entendimento é que “as transformações educacionais devem ser encaradas
dentro do contexto mais amplo do impacto das NTICs sobre a sociedade e,
também, do ponto de vista da aprendizagem” (SILVA, 2012, p. 4).
19
Luciano Everton Costa Teles
e profissional é algo constante e presente, integrar ao ensino as
novas linguagens e tecnologias é tanto fundante quanto necessário.
O contexto da pandemia
No fim de 2019, de Wuhan, na China, o novo coronavírus se
espalhou pelo mundo, causando sobrecarga nos sistemas de saúde,
mortes e luto. No Brasil, foi principalmente a partir do mês de
março que o vírus ganhou de forma intensa o território nacional,
trazendo consigo os mesmos impactos e efeitos ocorridos em
outras regiões do globo. Era necessário evitar aglomerações e,
consequentemente, apesar dos negacionismos e mentiras do
governo central, parte significativa das escolas e universidades,
públicas ou particulares, tiveram que paralisar as suas atividades
educacionais. A Universidade do Estado do Amazonas parou as
suas atividades no dia 16 de março de 2020.
A Instituição constituiu um Grupo Gestor da COVID-19, como
já mencionamos, com o objetivo de analisar e avaliar o cenário
epidemiológico regional com a finalidade de deliberar sobre os
caminhos a serem seguidos no contexto da pandemia. A ordem
era proteger e preservar vidas. Para isso, a Universidade tanto
contribuiu com a elaboração de materiais de EPI (Equipamento
de Proteção Individual) quanto assegurou o semestre de 2020/1.
Seguindo as sugestões do Grupo Gestor, o Conselho Universitário
(CONSUNIV) reprogramou o calendário acadêmico e a
Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) emitiu uma nota técnica
sobre o retorno das atividades acadêmicas.
A Nota Técnica 01/2020 PROGRAD/UEA foi editada para:
fundamentar a reorganização das atividades acadêmicas por
ocasião do retorno das aulas após 138 dias de suspensão (...)
em decorrência da pandemia do COVID-19, constituindo-se
em orientações necessárias ao planejamento acadêmico dos
componentes curriculares dentro de seus cursos (p. 1).
A Nota instituiu a possibilidade de continuar o semestre
remotamente, porém considerando a realidade regional dos
municípios do interior. Estes sofrem há décadas com problemas
20
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
estruturais: desigualdades sociais e acesso a internet. No primeiro
caso, muitos acadêmicos não tinham equipamentos (computador
e/ou celular) para ter acesso às aulas remotas, outros até os tinham,
entretanto não conseguiam ter acesso à internet, seja por falta de
crédito/plano e/ou pelo problema da precariedade da internet no
interior.
Nesse quadro social, a Universidade agiu em três caminhos:
1) lançou um edital de vulnerabilidade social para disponibilizar
pacotes de dados para acesso à internet5; 2) disponibilizou o espaço
do CEST/UEA, com todos os protocolos de segurança necessários,
para que os graduandos pudessem ter um local também com
internet; e 3) proporcionou acesso aos planos de estudos, enviados
fisicamente de avião e/ou de barco, para aqueles que estavam em
outros municípios e comunidades.
Em síntese, a preocupação da administração superior da
Universidade do Estado do Amazonas era propiciar a todos os
acadêmicos a participação de modo não presencial ao semestre
2020/1.
O desafio no curso de História da UEA/CEST
Nesse contexto, o desafio estava posto. Tivemos nós,
professores do curso de História da Universidade do Estado
do Amazonas/CEST, reformular e redirecionar os planos das
disciplinas, incluindo o uso de metodologias não presenciais para
levar adiante o término do semestre 2020/1. Da mesma maneira,
professores de variadas instituições foram instigados a seguir nesse
percurso (SILVA FILHO, 2020; OLIVEIRA, 2020).
Neste texto vamos nos deter, como já dissemos, na prática
pedagógica desenvolvida e vivenciada nas disciplinas História da
Amazônia 1 e 2, ministradas por mim, professor Luciano Everton
Costa Teles.
O primeiro passo consistiu em gravar um pequeno vídeo
direcionado aos alunos para informá-los do retorno das aulas através
de metodologias remotas. O vídeo foi enviado para os grupos de
WhatsApp das turmas. Neles também enviamos um link criando
5
A ação e o edital foram lançados pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos
Comunitários (Proex/UEA).
21
Luciano Everton Costa Teles
grupos de WhatsApp por disciplina (portanto, dois grupos já que
são duas disciplinas!). Esta plataforma foi escolhida em função de
dois aspectos: 1) A grande maioria dos alunos tinha acesso a ela e
2) era a única plataforma possível para disponibilizar os materiais
necessários para o desenrolar das disciplinas, uma vez que o Google
Classroom e/ou o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), por
conta da precariedade da internet no interior, não eram passíveis
de serem acessados pelos alunos do curso.
Assim, nos grupos das respectivas disciplinas, os alunos
entraram e lá pudemos então dar seguimento as atividades de ensino
planejadas. A primeira dimensão a considerar dessa experiência diz
respeito à incorporação e até mesmo a potencialização das novas
linguagens na área de História, assim como das tecnologias que
agora se tornaram a base indispensável para a realização das aulas.
Para melhor explanação do “experimento”, vamos enumerá-los
abaixo:
1. Os textos em PDF e as videoaulas
Nos grupos de WhatsApp disponibilizamos, num primeiro
momento, o plano de disciplina reformulado e uma planilha
denominada “matriz de design instrucional”, na qual todas as
atividades das disciplinas – textos, documentários, atividades
avaliativas, entre outros – estavam informadas. Junto com a matriz
também foi encaminhado aos alunos um “plano de organização
dos estudos”, que continha o prazo para consumir os materiais
oferecidos e as datas das avaliações.
22
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
Imagem 1 – Matriz de Design Instrucional e Plano de Organização dos Estudos
Fonte: acervo do autor (2021).
Após esse primeiro passo, providenciamos no grupo os
textos em PDF e as videoaulas produzidas (gravadas e editadas
pessoalmente). No primeiro caso, há inúmeros periódicos
científicos da área de História (e de outras também) que
colocam à disposição, com acesso gratuito e livre, diversos
artigos que podem ser examinados. Há também os repositórios
de teses e dissertações que igualmente podem ser explorados
para estudos. Com essa oportunidade, foi dessa ceara que
escolhemos os textos em PDF e enviamos para o WhatsApp das
turmas.
Por outro lado, as videoaulas foram elaboradas com base
nos textos em PDF selecionados para serem discutidos, e foram
pensadas para serem utilizadas pelo alunado paralelamente
ao processo da leitura dos textos, com a vantagem de que elas
facultam aos discentes escolher o melhor horário da internet em
Tefé para baixá-las e, da mesma forma, optar por um horário
(dentro da sua realidade cotidiana) para assisti-las.
23
Luciano Everton Costa Teles
Imagem 2 – Videoaula – História da Amazônia 2
Fonte: acervo do autor (2021).
Cabe sublinhar que a duração das videoaulas não podia ser
longa. Ela tinha que girar em torno de no máximo 10 a 15 minutos
e ser compactada para facilitar o acesso por parte dos alunos do
curso de História em Tefé (compactadas para serem baixadas por
eles, por força da precariedade da internet no referido município).
2. Os documentários e as palestras
Como já mencionamos, a plataforma base para as aulas não
presenciais foi o WhatsApp, o que abriu variadas perspectivas
para além da exploração de textos em PDF e das videoaulas. Nessa
esteira, com essa abertura proporcionada por ela, colocamos nos
grupos das turmas pequenos documentários sobre os assuntos
a serem tratados na disciplina como, por exemplo, “Amazônia:
Mitos e Descobertas” (tema da disciplina História da Amazônia 1).
Nesse mesmo propósito, foi possível lançar mão de palestras
de professores da área de História. Em geral, buscamos, quando
assim praticável, disponibilizar palestras de professores autores
dos textos com os quais estávamos trabalhando. A título de
24
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
ilustração, temos a palestra do professor Dr. Mauro César Coelho
versando sobre o Diretório Pombalino (tema da disciplina História
da Amazônia 2).
Imagem 3 – Documentário e Palestra
Fonte: acervo do autor (2021).
Os documentários e as palestras, ao lado dos textos em PDF
e das videoaulas, contribuem significativamente no processo de
ensino-aprendizagem não presencial. E podem ser averiguados/
analisados inclusive nos termos de sua produção.
3. O ofício do historiador: fontes históricas, instrumental
teórico e produção do conhecimento histórico
Falando em produção, com o uso agora em sala de aula
virtual das novas linguagens na disciplina histórica, as perspectivas
de manusear diversas fontes históricas se apresentaram como
profícuas. Nesse quadro, não nos furtamos em enviar para os alunos
documentos de época como o Diretório dos Índios e também os
relacionados ao processo de pacificação dos índios Mundurucu e
Mura, isso em Amazônia 2. Já em Amazônia 1, propomos análises
sobre os relatos dos viajantes quinhentistas e seiscentistas (os de
Carvajal e Acuña, por exemplo) sobre os povos indígenas que
habitavam a região naquele momento.
Concomitantemente a alguns textos de conteúdo e de teoria
no âmbito das duas disciplinas, tais documentos históricos foram
lidos (com o auxílio das videoaulas) intentando promover o que foi
25
Luciano Everton Costa Teles
indicado no plano da disciplina (e na matriz de design instrucional)
como uma atividade avaliativa pautada nos elementos de produção
do conhecimento histórico. Ou seja, a produção de uma análise
tendo como base as fontes históricas, os textos propostos e
trabalhados e o cabedal teórico de conhecimento de cada aluno
adquirido ao longo do curso.
Isto porque pensamos que tal atividade contribui para que
os futuros profissionais da área de História possam especialmente
elaborar uma “situação-problema, elencar indagações, levantar
hipóteses, analisar o conteúdo da fonte, construir argumentos para
a compreensão da realidade estudada, produzir sínteses conferindo
significação ao conhecimento produzido” (URBAN e LUPORINI,
2015, p. 20).
Toda essa preocupação tem como finalidade o processo de
formação inicial do profissional da área, que precisa necessariamente
dominar os pressupostos da sua ciência, sobretudo para, como
sublinha Leda Potier, direcionar:
a produção do conhecimento histórico em todas as instâncias
da construção do saber. Essa perspectiva conclama como necessária a atuação de um profissional de História para efetivamente realizar a mediação e construção do conhecimento histórico
(2014, p. 47).
Esse aspecto é fundante e deve ser levado em conta nas aulas
do curso de História, como fizemos na Universidade do Estado do
Amazonas/CEST.
4. Blog e canal no YouTube
A produção de conteúdo realizada no decorrer das disciplinas
foi depositada, isso paulatinamente e no decorrer das aulas, num
canal específico no YouTube e num blog destinado para este fim.
O objetivo era tornar acessível para os acadêmicos, e também para
o público mais geral, as videoaulas construídas e outros conteúdos
estruturados nesse processo.
26
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
Imagem 4 – Conteúdos no YouTube e Bolg
Fonte: acervo do autor (2021).
Portanto, temos conteúdos criados e voltados para as
disciplinas de Amazônia 1 e 2 que podiam (podem) ser acessados
no WhatsApp, mas também no canal do YouTube e no blog. A
diversificação do acesso é interessante e contribui, ao nosso ver,
para tornar o conteúdo acessível a todos, especialmente os alunos
regularmente matriculados nas duas disciplinas citadas.
Considerações finais
A pandemia do novo coronavírus nos trouxe alguns desafios,
entre eles a necessidade de estabelecer e manter o isolamento
social, instituir as medidas de proteção ao vírus e de desenvolver
vacinas. E o processo de isolamento social tornou inescusável o uso
de metodologias não presenciais para que as aulas na educação
superior (mas também na educação básica) continuassem ao longo
do ano. Um desafio e tanto!
Porém, como vimos, o curso de História da Universidade do
Estado do Amazonas, unidade de Tefé (CEST), em concordância
com a nota técnica emitida pela administração superior, deu
continuidade ao semestre 2020/1 através do uso de tecnologias
27
Luciano Everton Costa Teles
e de metodologias não presenciais que buscasse atingir a
“totalidade”dos alunos, num esforço de inclusão digital (inclusive
com entregas de chips com dados móveis) e, não sendo absoluto
esse processo, de fazer chegar o material impresso até a casa/
comunidade dos acadêmicos.
Por outro lado, os professores procuraram por todos os meios
oportunizados elaborar as suas aulas e os seus conteúdos, o que
particularmente fizemos e expomos aqui. A criatividade para
superar as dificuldades e construir os conteúdos foi essencial.
Muitas novidades surgiram nesse processo todo – audioaulas,
videoaulas, podcasts, etc. – e que certamente serão integrados ao
ensino presencial assim que este retornar.
Referências
BARROSO, Vera Lúcia Maciel, et al. (org.). Ensino de História: desafios
contemporâneos. Porto Alegre: EST: EXCLAMAÇÃO: ANPUH/RS, 2010.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos. 2º ed. São Paulo: Cortez, 2008.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma Introdução à História. 5º ed. São Paulo:
Brasiliense, 1992.
MEDEIROS, Elisabeth Weber. Ensino de História: fontes e linguagens para
uma prática renovada. Vidya. Santa Maria/RS, v. 25, n. 2, p. 59-71, jul./dez.,
2005.
MONTEIRO, Ana Maria, GASPARELLO, Arlette Medeiros, MAGALHÃES,
Marcelo de Souza (orgs.) Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de
Janeiro: Mauad X, FAPERJ, 2007.
OLIVEIRA, Vitor Lins. O ofício do historiador nos tempos de pandemia
do coronavírus. XIX Encontro de História da ANPUH/RIO. História do Futuro:
ensino, pesquisa e divulgação científica, Rio de Janeiro, 21-25 de setembro de
2020.
POTIER, Leda. História para “ver” e entender o passado: cinema e livro didático
no espaço escolar (2000-2008). Dissertação (Mestrado em História), PPGH/
UFRN, Natal, 2014.
SILVA, Marco. Ensino de História e novas tecnologias. Universidade Federal de
Sergipe, 2012. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/
arquivos/File/fevereiro2012/historia_artigos/2silva_artigo.pdf. Acesso em:
10 de abril de 2021.
28
Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias...
SILVA FILHO, Eduardo Gomes da. Práticas inovadoras de ensino de história
na Escola Agrotécnica da Universidade Federal de Roraima: novos desafios
em tempos de COVID-19. Revista Manduarisawa, Manaus, v. 4, n. 2, p. 33-42,
2020.
URBAN, Ana Cláudia, LUPORINI, Tereza Jussara. Aprender e ensinar História
nos anos iniciais e finais. São Paulo: Cortez, 2015.
29
Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira
Novas abordagens metodológicas como
caminhos possíveis para a renovação do
saber histórico em sala de aula partir da
temática Nova República
Mirela Alves de Alencar6
Cristiane da Silveira7
O
presente capítulo visou refletir sobre a prática do projeto
de ensino intitulado “A Nova República: novas abordagens”,
desenvolvido na disciplina de Prática de Ensino de História e
Estágio Supervisionado III 8, e aplicado com a colaboração de duas
outras alunas estagiárias9. O projeto de ensino problematizou o
processo de configuração, organização política e administrativa
no Brasil no processo de redemocratização, bem como traçar um
paralelo do tema democracia nos dias atuais.
No contexto da ditadura militar no Brasil10 as ditas minorias
foram silenciadas e uma ideologia dominante perpetuou os valores
e as memórias dos ditos “heróis” do país e, por muito tempo, foi
ensinada na disciplina de História. Na atualidade nos deparamos
com a necessidade de trabalharmos com novas metodologias que
superem o ensino tradicional, que teima em continuar nos diversos
espaços do universo de ensino-aprendizagem. Dessa forma, temos
6
Graduada em História pela Universidade do Estado do Amazonas, UEA/CEST
no Centro de Estudos Superiores de Tefé-CEST.
7
Doutora pela Pontifícia Universidade de São Paulo PUC/SP e professora adjunta
na Universidade do Estado do Amazonas UEA/CEST.
8
A experiência ocorreu na Escola Municipal Dorotéia Bezerra dos Santos, com
alunos(as) do 9º ano do Ensino Fundamental, na cidade de Tefé/AM. O presente
trabalho foi fruto de uma atividade na Disciplina Prática de Ensino de História e
Estágio Supervisionado III, sob a orientação da professora Cristiane da Silveira.
As estagiárias foram Raianne Oliveira de Souza; Sidna Geane Bacelar; graduandas
do curso de história na Universidade do Estado do Amazonas- UEA, no Centro de
Estudos Superiores de Tefé-CEST
9
Raianne Oliveira de Souza; Sidna Geane Bacelar; graduandas do curso de
história na Universidade do Estado do Amazonas- UEA, no Centro de Estudos
Superiores de Tefé-CEST.
10
O golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil foi deflagrado em 1964 e
permaneceu até 1985.
30
Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber...
a necessidade de romper com esse ensino que valoriza os grandes
vultos históricos, que escamoteia os diferentes sujeitos da história
para legitimar os interesses de uma minoria.
Se faz necessário trilhar caminhos que direcionem a (re)
novação do saber histórico em uma perspectiva crítica que leve
em conta o processo, transformando a imagem que muitos/as
alunos/as têm de que a história é alheia à sua realidade. Buscamos,
assim, superar essa visão tradicional, mostrando que somos todos
sujeitos da história e, enquanto sujeitos, somos elementos capazes
de transformar a realidade que nos circunda.
Isso significa que estamos diante da necessidade da formação
da consciência histórica do educando, o que implica a construção
de abordagens traduzidas em uma visão crítica e transformadora.
Essa perspectiva concebe o ensino de história a partir da
valorização da experiência de vida do estudante e, assim, se torne
menos abstrato e com isso mais significativo. Nessa perspectiva, e
de acordo com Horn (et.al.2010) o conhecer histórico não deve
enfatizar a memória de um grupo dominante, mas trazer para o
centro os sujeitos de todos os segmentos sociais.
Trata-se, como nos coloca Spivak (2012) de construir espaços
de fala dos silenciados. Esse ato busca colocar em evidencia as
vozes das mulheres, dos negros, dos índios, entre outros sujeitos.
Na visão ocidental esses sujeitos foram soterrados por uma
leitura unilateral da história nos conteúdos ensinados. Uma vez
problematizando essas questões, os educandos se (re)conhecerão
como sujeitos da história, não mais negando a sua identidade.
Ora, foi sob esta perspectiva de (re)descobrir o sentido da
disciplina escolar História que realizamos as atividades do projeto
de ensino em questão. Tratava-se, portanto, de conferir relevância e
significado aos assuntos trabalhados. Para isso o uso de documento11
em sala de aula contribuiu significativamente para se construir novas
abordagens. Os documentos, uma vez problematizados, desvelam os
conflitos presentes na história, apresentando um ganho pedagógico
expressivo, pois os/as alunos/as perceberão que o conhecimento
histórico não é estático, pronto e acabado.
11
O documento utilizado foi um artigo em que aparece trechos do discurso do
então candidato à presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro em 2018. (artigo
em anexo)
31
Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira
Soma-se a esse ganho a reflexão de que o estudo de história
não se reduz a decorar datas e glorificar personagens, mas criar
uma consciência histórica em consonância com a realidade do
educando – campo fértil para o fortalecimento da identidade,
reforçando o caráter social e político que o aluno enquanto cidadão
desempenha na sociedade.
Bittencourt (2009) reforça essa perspectiva ao afirmar que a
utilização de documentos em sala de aula faz falar os amordaçados
pelo esquecimento histórico, inserindo novos atores, não mais
negando a participação popular na história. Fazendo esse
reconhecimento os estudantes compreenderam que sua história
tem valor, e esta não se construiu de forma uniforme, mas também
não foi pura iniciativa de um grupo hegemônico.
Isso contribui sobremaneira para a formação da consciência
histórica, pois o educando terá uma visão da história que contempla
as lutas, os conflitos, a perspectiva da classe trabalhadora,
problematizando as diferentes dimensões da experiência humana,
negando o caráter exclusivo da elite como detentora dos rumos da
história, fazendo com que reflita sobre a própria realidade local.
A formação da consciência histórica do aluno leva-o a questionar
o fato que as realidades não são dadas naturalmente, mas sim,
historicamente construídas. Neste processo, conflitos sociais exclui
e oprime determinados sujeito, sendo que nessa dinâmica as
camadas mais baixas são silenciadas pela história dita oficial.
Nesta perspectiva, a escolha do conteúdo “Nova República” se
justificou pois foi verificado no ambiente escolar e da comunidade
ao seu redor que possuía desigualdades sociais, e era alvo de
intolerância e discriminação. Tivemos como objetivo geral do
projeto de ensino sensibilizar os educandos através da crítica do
documento fundamentada no conteúdo “Nova república” sobre
as transformações políticas, sociais e culturais que assinalaram a
democratização desse período, trabalhando com estes a cidadania
em uma perspectiva histórica.
Nossa meta primeira foi instigar no educando a capacidade
crítica de interpretação do conteúdo em discussão para que este
possa, posteriormente, se posicionar enquanto sujeito diante dos
dilemas e problemas sociais, políticos e culturais atuais. Neste
sentido, e de acordo com Cerri (2011), se faz necessário uma
32
Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber...
reflexão sobre como o ensino de história se sustenta na formação
da consciência histórica. Isso significa que para rompermos com
uma história de eventos e de heróis é preciso trabalharmos com
a historicidade do mundo, os processos históricos, entre outras
questões.
Buscamos problematizar o tema “Nova República” para que
esse não fosse entendido de forma unilateral, mas sim em todas
as suas facetas, ou seja, com o envolvimento de diferentes sujeitos
históricos, viabilizando um processo de ensino-aprendizagem
em história mais significativo, instrumentalizando o aluno a
compreender e pensar os processos históricos. Para além dessa
questão, entre os nossos objetivos estava o despertar no aluno
para uma leitura crítica do conteúdo; desenvolver habilidades
por meio do conteúdo “Nova República” para que o educando se
posicione de forma crítica diante dos problemas sociais, políticos,
econômicos e culturais; potencializar a criatividade do aluno
a fim de despertar neste o interesse pela disciplina; promover o
alargamento do conhecimento do aluno para que aprendam a
questionar, a observar, representar os acontecimentos sociais em
uma perspectiva histórica de modo que considerem os diferentes
sujeitos no tempo e no espaço.
Documentos históricos: caminhos para formação
crítica dos/as alunos/as
A Escola Municipal Professora Dorotéia Bezerra dos Santos
está localizada num dos bairros mais pobres da cidade de Tefé
AM, chamado popularmente de “Vila pescoço”. O bairro possui
um alto índice de criminalidade, sendo que alguns moradores
praticam o tráfico e/ou uso de drogas. Uma parcela significativa
do bairro são pessoas desempregados ou subempregadas, com
um mínimo de estudo. Muitas vezes o estudante vem de uma
família desestruturada, seja pela ausência do pai ou da mãe ou são
criados pelos avós, podendo sofrer maus tratos. A escola possuía
em 2019 o percentual de 3,5 de Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica IDBE e enfrenta problemas como desistência,
a desmotivação do estudante, a própria precariedade da escola.
33
Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira
Trabalhar com essa realidade escolar não é fácil, mas ao mesmo
tempo em que nos desafia.
Foi neste contexto que trabalhamos o processo de
redemocratização do Brasil. Antes, porém, achamos relevantes
problematizar as contradições presentes na conjuntura histórica
dos/as alunos/as, mostrando que ainda hoje sofremos com a
exclusão social. Assim, problematizamos que a questão de conquista
dos direitos que simbolizam a Nova República, não são para todos.
Mostramos ainda que o Brasil não é um país tão democrático
como diz ser, pois alija os direitos mais básicos dos seus cidadãos.
Essa realidade pode ser verificada na própria experiência dos
educandos.
Assim, buscamos construir o conhecimento histórico em uma
perspectiva que tome o passado não dissociado da compreensão
do presente para que o aluno redescubra o sentido da disciplina
história, em uma dinâmica que (res)signifique o passado, lançando
sobre estes novos olhares para que estimule a formação da
consciência histórica, potencializado a criticidade do aluno.
Trabalhar o conteúdo “Nova República” no contexto diverso da
sala de aula foi importante por viabilizar as condições necessárias
para a reflexão política e sociocultural que marcaram essa nova
fase do Brasil. Entendemos que era significativo abordar o assunto
em paralelo com a realidade social na qual os educandos estão
inseridos, para que estes possam compreender por meio da leitura
crítica que nesse processo histórico marcado por transformações
das conjunturas sociais com a redemocratização e reelaboração de
leis, nem todos os sujeitos foram alcançados e que a desigualdade,
a exclusão física, social, étnica e cultural prevalecerem. A própria
realidade dos estudantes, pertencentes a um local marginalizado e
periférico da sociedade é prova das desigualdades no Brasil.
Neste sentido, buscamos criar situações que mobilizasse os/
as alunos ao exercício da alteridade, à crítica contra as injustiças
sociais, enfim, que se proporcione uma íntima relação do conteúdo
em tela com a realidade concreta destes para se reforçar o
interesse pela disciplina para que assim compreendam que por
meio da História foi possível problematizar as experiências sociais
que ideologicamente são naturalizadas. E foi nesta perspectiva
que transformamos o ensino mecânico para uma aprendizagem
34
Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber...
significativa, pois, os/as alunos/as foram colocados como sujeitos
nesse processo, ampliando seus conhecimentos e a disciplina deixa
de ser abstrata ganhando sentido para o educando.
Construindo novas abordagens: alguns resultados
O ensino de história lida com questões complexas, dentre
elas temos a problemática de como despertar o interesse do/a
educando/a acerca do passado e como estabelecer uma mediação
das experiências desse passado com o presente. Conhecer a história
e ser capaz de efetivar a problematização no processo de construção
do conhecimento histórico é uma necessidade se ansiarmos formar
o pensamento crítico, criativo e autônomo do educando. Dessa
forma, para superarmos esses desafios faz-se necessário traçarmos
estratégias que direcionem o alcance desses objetivos.
No primeiro momento apresentamos como funcionaria a
dinâmica do projeto de ensino aos/às alunos/as, em seguida
entregamos um texto impresso sobre a redemocratização no Brasil
e a artigo com trechos dos discursos de Jair Messias Bolsonaro
como fonte12 para contextualizar o conteúdo “Nova República”. O
procedimento adotado para a dinâmica do projeto foi a análise dos
discursos sobre o negro, a mulher, os gays mobilizando os saberes
prévios dos estudantes para, depois, associarem as informações
contidas no documento e a seu cotidiano, fazendo a interação na
análise documental.
Tal atividade envolveu o/a estudante no sentido de
questionar sobre suas primeiras impressões para que em seguida,
confrontassem, comparassem, fizessem observações, reconhecendo
elementos que já tinham visto antes, construindo coletivamente
o conhecimento, inserindo-os na construção do saber histórico,
para que percebessem que há um colorido de possibilidades de
interpretações em uma única conjuntura histórica. Essa ao ser
problematizada mostrou que não existe uma história homogênea.
Ao associar essas questões com a realidade e com as experiências
do educando criou-se uma atmosfera na qual o conhecimento
12
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-promete-fimdo-coitadismo-de-negro-gay-mulher-e-nordestino/ Acessado em 20/04/2019.
Documento em anexo.
35
Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira
histórico foi socializado e o processo de ensino-aprendizagem
tornou-se significativo.
Problematizamos a ideia de exclusão social, quando pedimos
para os/as alunos/as analisarem o discurso preconceituoso
do deputado Jair Bolsonaro que versava sobre os quilombolas,
nordestinos, mulheres e homossexuais. O discurso foi veiculado
pela mídia quando Bolsonaro ainda era candidato à presidente da
República.
Fizemos uma roda de conversa para que houvesse trocas de
experiências e a partir delas abordamos o conteúdo. Os estudantes
participaram ativamente e puderam compreender o discurso de
ódio de Bolsonaro e a desvalorização das mulheres, dos negros, dos
homossexuais. Para ele o negro “não servia nem para reprodução”,
havia o “Kit gay” que “incitava nas crianças a sexualidade”, “que
mulher feia não servia nem para ser estuprada”, enfim palavras
que coloca esses sujeitos como pertencente à uma “terceira classe
de cidadãos”.
Para Bolsonaro “no Brasil vivemos o “coitadismo”: “Coitado
do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do
nordestino, coitado do piauiense”. “Vamos acabar com isso”.
Aqui o candidato se refere explicitamente aos sujeitos que vivem à
margem da sociedade brasileira. Que quando trabalham ganham
uma remuneração menor do que um sujeito branco, que não são
respeitados em seus direitos básicos à saúde e à educação. Mas para
Bolsonaro parece que a exclusão desses sujeitos é tudo invenção.
Na sua plataforma de governo não havia nenhuma política para as
pessoas que vivem em vulnerabilidade. O discurso de ódio nega
todo um processo histórico de exclusão das ditas minorias sociais.
A realidade sofrida por mulheres, negros e homossexuais, de
uma forma singular, também era vivida pela maioria dos estudantes.
A própria realidade da comunidade onde a escola está inserida,
representa essa falta de direitos básicos como saneamento básico,
saúde, educação com qualidade, entre outros. São estudantes,
pobres num Brasil em que que os direitos básicos estabelecidos
na Constituição de 1988 não são garantidos para a maioria da
população.
Problematizamos que a “Nova República” deveria representar
a conquista de fato da cidadania, mas isso não ocorreu. Essa
36
Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber...
metodologia foi produtiva, pois problematizamos um discurso
que explicitamente era orientado politicamente por uma ideologia
liberal, na qual mulheres, negros, nordestinos e gays são vistos
como cidadão de terceira classe. Essa atividade contribuiu para
rompermos com a dimensão da memorização, tornando a aula
dinâmica, mostrando que não há neutralidade na história, por
isso é necessário consideramos a miríades de experiências para
fazermos novas reflexões para a prática da crítica histórica em
sala de aula, apontando as possibilidades de construção do
conhecimento histórico.
Uma vez interpretado o discurso de ódio contra esses sujeitos,
os/as alunos/as compreenderam que o país não é democrático.
Alguns chegaram afirmar que “se a gente ouve isso até de um
representante do povo que deveria defender os direitos de todos os
cidadãos, o que poderemos esperar do futuro do país?”. Essa frase
foi emblemática de estudante que conseguiu realizar uma leitura
da realidade social, econômica e política do país, mostrando que
as desigualdades não são naturais, mas que foram historicamente
construídas. Assim, explicitamos que é no rastro desses conflitos,
de trazer os sujeitos silenciados, soterrados por uma leitura
unilateral ideológica política do Estado que a História se propõe a
compreender.
Isso permitiu um novo olhar sobre a realidade dos/as
educandos/as, uma vez que por meio do conteúdo “A Nova
República” tratamos de mostrar que esse período representa os
ideais de democracia e de conquista de direitos - um contexto de
reformulação social e política, traduzida na igualdade, mas que
nem todos foram alcançados. O efeito dessa abordagem contribuiu
significativamente para a sensibilização dos/as alunos/as para se
reconhecerem enquanto sujeitos que devem buscar sua afirmação
política e social.
Dessa maneira os educandos entenderam que a
redemocratização que deveria assinalar esse período histórico, não
significou a conquista de direitos iguais, pois, ainda existe uma
maioria excluída como os quilombolas, os indígenas, as mulheres e
os negros, os deficientes. Quando os/as alunos/as compreenderam
essas contradições e quando perguntados se já sofreram algum tipo
de preconceito, as respostas foram emblemáticas no que concerne
37
Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira
essa exclusão. Alguns responderam que já sofreram pela cor, pelo
tamanho, pelo local onde moram que é considerado de periferia,
outras por ser mulher, entre outros relatos que mostram que com
a própria realidade dos educandos foi possível fazer uma nova
abordagem sobre o conteúdo a Nova República.
Depois dessa roda conversa que culminou com a socialização
do conhecimento histórico, fizemos uma atividade dinâmica,
dividindo a sala em dois grupos que deveriam responder algumas
perguntas relativas ao conteúdo trabalhado. Para tal atividade
confeccionamos um jogo da velha que continha em cada um
dos nove campos uma pergunta, uma vez respondendo certo o
educando poderia colocar sua pedra e assim continuar jogando até
ganhar. Os/as alunos/as se envolveram bastante com essa atividade,
trabalhando em equipe o que contribuiu para potencializarmos
a sensibilidade dos/as alunos/as de forma dinâmica e criativa,
despertando o interesse pela disciplina.
Assim, o projeto de ensino foi norteado pela problemática social
encontrada no contexto sociocultural e econômico da escola. Para
tanto, elegemos o conteúdo a “Nova República” para abordamos
de forma dinâmica essas questões. Os/as alunos/as participaram
de maneira satisfatória, pois, contaram suas experiências o que
contribuiu para a problematização do assunto.
As atividades realizadas foram fundamentais para um processo
de ensino-aprendizagem mais significativo, e como afirmou
Paulo Freire (2016) é preciso formar o pensamento crítico do
educando para que este seja autônomo, mas, para isto precisamos
respeitarmos os seus saberes prévios. “(...) Por que não discutir
com os/as alunos/as a realidade concreta a que se deve associar a
disciplina cujo conteúdo se ensina? Por que não estabelecer uma
'intimidade' entre os saberes curriculares fundamentais ao/às
alunos/as e a experiência social que eles têm como indivíduos?”
Ora, foi à luz dessa ótica que procedemos e os resultados foram
positivos, uma vez que aproveitamos a experiência dos educandos
o que tornou significativo o aproveitamento do conteúdo.
38
Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber...
Considerações Finais
Diante de tudo que foi visto, o que temos a considerar foi a
importância de propor novas abordagens no ensino de história em sala
de aula com a abordagem de documentos históricos. A experiência
vivenciada no Estágio Supervisionado III na escola Municipal
Dorotéia Bezerra dos Santos na turma do 9º ano A, aponta que a
apreensão do conhecimento histórico em uma perspectiva crítica é
possível. Trata-se de reconhecer que reelaborar as metodologias e
os conteúdos é uma necessidade se assim quisermos problematizar
a exclusão e o silêncio histórico dos sujeitos marginalizados. Foi
válido refletirmos acerca do ensino de história comprometido com a
experiência do educando fazendo com que compreendam em uma
perspectiva crítica o seu papel enquanto sujeitos ativos.
Neste sentido, no que pese o avanço de metodologias que
atendam a essa demanda, o conhecimento histórico em sala de aula
ainda carece de sentido para o aluno, isso significa que os conteúdos
selecionados, na sua maioria, ainda privilegiam uma história
fragmentada que glorifica determinado grupo hegemônico. Assim,
destacamos a importância de propostas pedagógicas que considere
o valor da coletividade – a visão da maioria – apresentando para
o aluno o seu caráter social e histórico, levando-o a se identificar
enquanto sujeito capaz de mudar a realidade na qual está inserido.
Referências
BITTENCOURT. C. O saber histórico na sala de aula. 11 ed. 3ª reimpressão.
São Paulo: Contexto, 2009.
CERRI. L.F. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro:
Editora FVG, 2011.
FREIRE. P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
54ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2016.
HORN.G.B. GERMINARI.G.D. O ensino de História e seu currículo: teoria
e método. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
PIMENTA. S. G. SOCORRO. M.L.L. Estágio e docência. Revisão técnica.
José Cerehi Fusari. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2012.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2012.
39
O ensino de História e a canção popular:
As toadas do boi-bumbá Amazônico
na sala de aula13
Yomarley Lopes Holanda14
Introdução
D
iante das complexas mudanças pelas quais passa o
mundo contemporâneo, marcado pelas transformações
tecnológicas vertiginosas e pela informação instantânea, muitos
chegam a alardear certo ceticismo ou mesmo um desencanto em
relação ao conhecimento histórico, considerando-o de “pouca
validade prática” diante das novas demandas mercadológicas.
Os debates têm problematizado, principalmente, a transmissão
desse conhecimento quase sempre fundamentada em esquemas
cronológicos metódicos cristalizados descolados da realidade
que elegem heróis, datas e fatos hegemônicos como importantes.
Questionam-se ainda os métodos escolhidos, os temas propostos,
as fontes de pesquisa. Pode-se dizer que a crítica e a criatividade em
aliar teoria e prática subsistem como saldo parcial das crises pelas
quais passou esta área do conhecimento nos instantes de validação
de seu estatuto acadêmico. Se a História sempre passou por graves
tensões ao longe se sua trajetória enquanto saber academicamente
instituído, como conhecimento escolar então os problemas se
ampliam sensivelmente.
Praticamente as mesmas críticas que foram formuladas pelo
movimento historiográfico francês dos Annales iniciado por Marc
Bloch e Lucien Febvre em 1929, em relação à concepção tradicional
de História, podem ser lidas sob o prisma pedagógico no que diz
respeito à forma de se ensinar História nas escolas brasileiras até hoje.
13
Texto revisado e ampliado, a partir de uma exposição oral realizada no Congresso da ABRAPLIP, em 2016.
14
Professor Adjunto do curso de História e do PPGICH da UEA/CEST. Mestre e
doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM).
E-mail:
[email protected]. Contato: (97) 991639505.
40
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
Todos esses argumentos nos auxiliam a refletir sobre o
ofício do Historiador e do professor de História na sociedade
atual: afinal, como podemos tornar as aulas de História mais
interessantes, provocando nos alunos o entendimento de que são
sujeitos históricos e, ao mesmo tempo, ajudando-os a desconstruir
os estereótipos teóricos e práticos que assombram a nossa ciência
de referência?
Certamente não há fórmulas prontas para solucionar esta
questão, por outro lado, não há como negar que o ensino de
História nas escolas brasileiras precisa ser renovado, repensado,
ressignificado. Partindo dessa premissa, é premente que a
Universidade Pública e, principalmente, os cursos de Licenciatura
em História insistam na importância da formação humanista da
disciplina histórica. A História foi, é, e sempre será referência,
conforme lembra Hobsbawm (apud PINSKY, 2012, p. 19): “Ser
membro da comunidade humana é situar-se com relação a seu
passado, que é uma dimensão permanente da consciência humana,
um componente inevitável das instituições, valores e padrões da
sociedade”. Portanto, é inequívoco que enquanto referência a
História precisa ser bem ensinada.
E para que isso ocorra efetivamente o historiador Leandro
Karnal (2012, p.08) sublinha que se “o fazer histórico (é) mutável
no tempo, seu exercício pedagógico também o é”. Ou seja, ensinar
História hoje requer que tenhamos o entendimento do processo
de transformação do objeto em si (o ‘’fazer histórico”) e da ação
pedagógica, uma vez que a diversidade da realidade brasileira (e
no nosso caso também amazônica) não pode ser mantida refém de
fórmulas idealizadas de ensino longínquas das experiências reais
do contexto escolar. Eis a problemática que nos serve de pano de
fundo no transcorrer do presente texto.
Tendo em vista a diversidade da realidade brasileira (e
no nosso caso também amazônica) que não pode ser mantida
refém de fórmulas idealizadas de ensino longínquas das
experiências reais do contexto escolar. Eis a problemática
que nos serve de pano de fundo no transcorrer do presente
trabalho que, em última instância, objetiva tecer uma reflexão
sobre o uso de fontes literárias, no caso, a toada de boi-bumbá
enquanto portadora de um discurso representacional que pode
41
Yomarley Lopes Holanda
tornar-se objeto de interpretação histórico-cultural e, ao mesmo
tempo, articulando-a como fonte para o ensino de História na
contemporaneidade.
1. A toada do boi-bumbá como canção popular na Amazônia
Não faz muito tempo que a música popular brasileira
(MPB) se tornou objeto (e fonte) de interesse de um número
cada vez significativo de importantes estudos acadêmicos no
campo da História (NAPOLITANO, 2005). Em linhas gerais
tem-se compreendido que a música dita “popular” (a despeito
de todas às discussões que essa categoria deflagra), é um espaço
privilegiado de encontros, confrontos, traduções, linguagens,
ressignificações, trata-se de um veículo poético das utopias da
sociedade nacional. Somos um país musical inegavelmente, um
“celeiro mundial” de ritmos, movimentos, acordes e canções
diversificadas.
Em se tratando da riqueza musical da região Amazônica,
sabe-se que é praticamente desconhecida, eclipsada ou mesmo
ignorada, como se observa no estudo de Goes (2009), que ao
abordar o uso da música popular brasileira na educação, faz
considerável resgate histórico da canção popular no país desde o
período imperial, todavia, a única citação à Região Norte é feita
de forma equivocada ao relacionar ritmos nortista e nordestino
como se fossem a mesma coisa. Percebe-se também que a difusão e
valorização da cultura musical local são poucas incentivadas pelos
órgãos governamentais.
Diante desse panorama nada auspicioso optou-se pela
toada amazônica, que não encerra em si a imensa variedade
musical da região, como gênero musical para refletir sobre as
relações hoje profícuas entre a História e a canção popular, com
o objetivo principal de mapear um novo caminho de abordagem
interdisciplinar desse produto cultural confeccionado pelos
compositores das festas de boi-bumbá espraiadas pela Amazônia
(que sofre a intensa influência de outros importantes agentes e
instituições em seu circuito de comunicações), tendo em vista sua
natureza polissêmica, sua historicidade, seu lugar social e suas
variadas (re) apropriações por diferentes grupos. Vale salientar
42
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
que reunimos sob o termo genérico “toadas amazônicas” as obras
lítero-poético-musicais modernas de caráter popular que mantêm
o compromisso com a estrutura rítmica compassada, compostas,
produzidas e veiculadas pelas festas de boi-bumbá a nível regional.
Comecemos pelos dois conceitos-chave com os quais
operamos nesse artigo: música e canção popular. O primeiro
tomado obviamente pelo viés das Ciências Humanas é definido por
Napolitano (2005, p.32) como um “documento artístico-cultural”,
e por isso mesmo também um documento histórico “na medida em
que é produto de uma mediação da experiência histórica subjetiva
com as estruturas objetivas da esfera socioeconômica”. Trata-se,
enfim, de um documento de natureza estética polissêmica.
Miriam Hermeto (2012, p.12), afirma que na “cultura brasileira,
a canção popular é arte, diversão, fruição, produto de mercado
e, por tudo isso, uma referência cultural bastante presente no dia
a dia”. Tal qual Lévi-Strauss (1980) em seu Pensamento Selvagem,
quando se refere às plantas e animais que não são apenas bons para
comer, mas para pensar, Napolitano (2005, p.11), entende que a
canção “ajuda a pensar a sociedade e a História”, e complementa,
que “a música não é boa apenas para ouvir, mas também é boa
para pensar”. Este mesmo autor (2005, p.18), admite que “mais
do que um produto alienado e alienante, servido para o deleite
fácil das massas musicalmente burras e politicamente perigosas, a
História da música popular no século XX revela um rico processo
de luta e conflito estético e ideológico”.
Mesmo diante das profundas diferenças de temáticas, de estilo,
de público, de temporalidade, e de estrutura rítmico-poética entre
a toada e o samba ou a chamada MPB, estas últimas analisadas por
Marcos Napolitano, a sua leitura crítica continua bem pertinente.
Não podemos considerar a toada moderna somente como produto
cultural massificado, homogêneo, sem conteúdo, sendo, portanto,
inexequível no sentido da constituição de um “legítimo” objeto de
investigação científica. Esta é uma postura simplista com a qual
não comungamos. Vemos, por outro lado, que a toada amazônica
pode sim nos auxiliar no estudo dos processos de construção
identitárias na Amazônia ao longo de diferentes tempos e espaços,
lançando luz sobre muitos aspectos essenciais da sociedade e
cultura amazônicas.
43
Yomarley Lopes Holanda
Em sua obra clássica Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara
Cascudo (2001) define toada como uma “cantiga ou canção
breve, em geral de estrofe ou refrão, em quadras, cujos temas
principais são líricos (sentimentais) ou brejeiros (jocosos)”. Esta
definição pode ser aplicada às antigas canções dos cancioneiros
dos bois de terreiro ou de rua, que tiravam toadas de improviso
com conteúdos românticos (morena, lua, boi, fogueira de São
João, etc), e irreverentes quando se tratava de desafiar algum boi
rival. Seus versos constituíam-se em quadras simples compostas
de quatro versos por estrofe (com rima no segundo e quarto
verso).
Atualmente as toadas de boi-bumbá “se constituem em canção
popular, reunindo no texto informações pertinentes ao espetáculo,
e recebendo a enunciação melódica do intérprete, no sentido de
dar conta da estrutura dos versos” (BRAGA, 2002, p.443), servindo
de base inspiradora para a confecção de fantasias e alegorias, bem
como para a preparação cênica das apresentações de boi-bumbá,
e no seu conteúdo percebemos um forte teor regional com a
valorização e preservação das belezas amazônicas, das culturas
indígenas e dos costumes caboclos. Júlio César Farias (2005, p.79)
afirma que as “letras têm caráter narrativo-descritivo, em que se
procura explorar a sonoridade das palavras nos versos, geralmente
curtos e rimados e extremamente poéticos”.
A pesquisadora Maria Eva Letízia (2000, p.39), estudando
os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos bois-bumbás
Garantido e Caprichoso de Parintins, tem entendimento
semelhante ao que temos demonstrado aqui: as letras das toadas
modernas há muito tempo ultrapassaram a simples alusão ao
auto do boi, hoje elas podem ser consideradas parte integrante
da moderna poesia amazonense, incluindo em sua estrutura
elementos regionalistas, projetando um imaginário acerca da
Amazônia e de seus habitantes.
É possível perceber desse debate que a toada consolidou-se
ao longo do tempo num signo cultural importante na festa dos
bois-bumbás da Amazônia, pois seu compromisso com a batida
compassada, com as melodias tecnicamente trabalhadas e,
principalmente com as letras cujas referências são a preservação da
natureza, os rios e animais, a vida cabocla e os povos ameríndios,
44
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
sugere-nos uma leitura muito interessante das diversas formas
de comportamento dos sujeitos ou atores sociais da região, além
do próprio processo histórico de constituição da toada enquanto
gênero musical regional, bem como, dos embates estéticos e
ideológicos que permeiam a produção desse tipo de canção.
E ainda, a toada pode ser pensada enquanto um “documentomonumento” importante de leitura e interpretação sociocultural,
indo muito além de uma simples “ilustração de um tempo”, ou
mesmo de análises simplistas que dissociam “letra” e “música”,
“texto” e “contexto”, priorizando a primeira em detrimento de
outros importantes elementos constitutivos da canção, Le Goff
(2003, p.537-538), afirma que:
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite não
existe um documento-verdade. Todo documento é mentira.
Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (...) É preciso
começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar essa construção e analisar as condições de produção dos
documentos-monumentos.
Segundo este entendimento, o documento seria
potencialmente toda e qualquer produção humana, já que informa
sobre o modo de vida e o lugar social de quem o produziu.
O trecho reflexivo de Jacques Le Goff parte do princípio que
é o olhar crítico do analista (historiador ou qualquer outro
pesquisador), que monumentaliza o produto cultural (em nosso
caso, o documento-canção), ao problematiza-lo, lançando sobre
ele uma série de questionamentos históricos, sociológicos,
literários, etc. Articulada à noção de “documento-monumento”,
é pertinente tomar a toada amazônica como narrativa cancional
que interpreta e (re) constrói representações sociais por meio do
encontro entre letra e melodia. Em outros termos, é ela mesma
uma representação, na acepção de Roger Chartier (2002), já que
dialoga simultaneamente, reconstruindo e atribuindo sentido à
realidade vivida.
Outra importante ferramenta teórico-metodológica que
lança luz sobre o trabalho interpretativo com a canção popular
45
Yomarley Lopes Holanda
amazônica é o modelo de análise desenvolvido por Robert
Darnton (2008): o circuito das comunicações, que tem como
cerne o alargamento do campo de visão do observador sobre
a produção cultural. Ou seja, no trabalho de análise da obra
cultural (Darnton trabalha com a História do livro e da leitura),
deve-se levar em conta os processos de criação, produção,
difusão e apropriação do produto cultural que, por sua vez, “só
completa seu sentido quando circula na sociedade e encontra seus
públicos” (HERMETO, 2012, p.41). Portanto, ao pesquisador
das canções amazônicas é imprescindível o estudo sistemático
dos sujeitos (compositores, arranjadores, produtores musicais,
músicos, mediadores culturais, intérpretes, etc), instituições
(agremiações, gravadoras, lojas de CDs e DVDs, etc.), veículos
de sociabilidade (mídias, espaços de apresentação, festas, shows,
etc), perfazendo o circuito pelo qual se movimenta nunca de
maneira simétrica a obra cancional. Como se vê a análise das
canções vai muito além da dimensão digamos sonora do produto
cultural.
2. A toada como instrumento didático-pedagógico no ensino de
História
Tomamos como referência os livros de Marcos Napolitano
(2005), História e Música, e Miriam Hermeto (2012), Canção
popular brasileira e ensino de História, dentre outros citados no
corpo textual ou mesmo implícitos, frutos de algumas leituras
anteriores, para analisar a toada amazônica “A conquista”,
bastante conhecida do público receptor/consumidor desse
gênero. Lembro que as dimensões reduzidas deste nosso artigo
não nos permite enveredar pela operacionalização de todos os
mecanismos analíticos discutidos no transcorrer do trabalho, não
obstante acredito que mesmo assim o exercício sintético é válido
como momento deflagrador de um “passeio sério por uma nova
fronteira didática”.
46
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
“A conquista”
(Tony Medeiros/ Inaldo Medeiros/ Edvaldo Machado)
Um dia chegou nessa terra um conquistador/Manchando de sangue o
solo que ele pisou/Não respeitou a cultura do lugar/Nem a história desse
povo milenar/Queria ouro riqueza e tesouro/Depois a terra e também
escravidão/Tibiriçá, Araribóia, Ajuricaba disseram não/Um dia o índio
lutou contra o branco invasor/E a guerra de bravos guerreiros então
começou/Arcos e flechas contra a força do canhão/Guerra dos ímpios
dizimou minha nação/Trouxeram cruz mais usavam arcabuz/E o
ameríndio resistia à invasão/Chamaram a morte e o massacre do meu
povo Civilização/Chegou o branco, pra conquistar/Chegou o negro, pra
trabalhar/Unindo raças e crenças de povos/Vindos de além mar.
Logo no princípio é importante interrogar cientificamente
a canção. Somente a partir dessa atitude crítico-questionadora
pode-se caminhar pelos outros meandros da interpretação
cancional: como é que a toada passou a existir? Como é que ela
chega aos ouvintes? O que os ouvintes fazem dela?
Na operação analítica com a toada moderna, assim como
com qualquer outro gênero musical, não se considera somente seu
aspecto poético (letra). Neste caso a música (melodia, harmonia,
ritmo, contrapontos instrumentais, arranjos, timbres, entoação
do intérprete, dentre outros elementos estruturais da canção),
é muito reveladora porque se trata, em última instância, de um
gênero associado aos antigos batuques afro-brasileiros, conforme
reconhece Braga (2002, p.435) "no que se refere à importância
percussiva dos tambores, ao canto de improviso e de resposta e à
dança circular". Na introdução harmônica da canção percebe-se o
uso de instrumentos percussivos como tambores e repiques, além
de berimbaus, denotando uma sonoridade afro-brasileira levando
o ouvinte a uma atmosfera notadamente especial de dança, de
movimento. “Num certo sentido, a estética da música popular
ainda está marcada pela musica practica (música para ser ouvida
com o corpo, com os músculos)” (NAPOLITANO, 2005, p.94).
A etnografia de Holanda (2010) demonstra os círculos de
admiradores do boi-bumbá, geralmente jovens, que se reúnem
nas festas, encontros nos “currais”, e ensaios dos bumbás, com o
objetivo de ir muito além do ouvir as toadas, eles buscam conjugar
47
Yomarley Lopes Holanda
a experiência sonora com os gestos, com a performance que
chega a imitar os movimentos de danças indígenas, tornando-se
uma só movimentação especial, muitas vezes coreografada.
Historicamente, se por um lado o ritmo e a estrutura percussiva
presentes na toada podem ser relacionados aos antigos batuques e
capoeiras dos escravos afro-brasileiros, a letra da toada, segundo
Salles (1994) pode se vincular a uma herança portuguesa cujas
formas tradicionais de diálogo poético existentes nos versos dessas
composições populares, caracterizam a poesia que se sobrepõe
à música com ritmo e rima, extensão do verso e agrupamento
estrófico
É importante ainda, situar o leitor no contexto maior do evento
que veicula a canção e para o qual ela foi pensada, produzida e
divulgada, afinal é neste universo que a obra musical vai ser
projetada, adquirindo seu primeiro significado, em nosso caso
específico trata-se do Festival Folclórico de Parintins.
Manifestação de arte pública antropofágica carnavalizada. Antropofágica na medida em que se alimentou e se alimenta das
influências do carnaval e da mídia. Carnavalizada , porque se
exibe portanto aspectos semiológicos, simbólicos e plásticos
que são próprios do carnaval (LOUREIRO, 2002, p.121).
Em outro texto (2010, p.184), já havíamos assinalado que
o Festival Folclórico de Parintins criado em 1965, e que teve a
primeira disputa entre os grupos Caprichoso e Garantido um
ano depois, serve hoje de modelo para todas as festas populares
da região amazônica. É a maior e mais grandiosa manifestação
do Norte do Brasil, recebendo anualmente, no último final de
semana de junho, milhares de turistas de todos os cantos do Brasil
e do mundo. É para este evento que são compostas, produzidas
e veiculadas as toadas mais reconhecidas pelo público ouvinte/
consumidor do gênero musical em foco.
Os bois-bumbás Caprichoso e Garantido da cidade de
Parintins, interior do Amazonas apresentam uma versão
modernizada e ressignificada do histórico boi-bumbá ou bumbameu-boi, considerado por muitos estudiosos o mais notável e
de maior apreciação estética de todos os folguedos brasileiros,
48
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
encontrado em diversas variantes de norte a sul do país. Em síntese,
historicamente o boi-bumbá é um folguedo noturno de composição
dramática simples que carrega em suas apresentações uma gama
de símbolos e significados que têm fascinado e desafiado gerações
de pesquisadores. Para Cavalcanti (2000, p.61) os “folguedos
do boi são formas rituais populares, comportamento simbólico
por excelência a exigir intensa atividade corporal com o uso de
fantasias, muita música e dança...”.
A toada “A Conquista” foi composta por três dos mais
importantes compositores do boi-bumbá Garantido da cidade de
Parintins. O poeta Tony Medeiros e seu irmão Inaldo, pertencem
a uma família tradicional da história do boi na cidade, inclusive, o
primeiro é considerado um dos pioneiros na inserção da temática
indígena no bumbá na década de 90, além de atuar muito tempo
na função cênica de amo do boi Garantido. A canção foi lançada
e divulgada em CD no ano de 1998, cujo tema proposto pela
Associação Folclórica foi “500 anos do passado para construir o
futuro”.
A letra se propõe a narrar a conquista da Amazônia pelos
europeus como um episódio marcado pela destruição e pelo
desrespeito às culturas nativas milenares. Duas questões podem ser
postas aqui: 1) a figura indígena emergindo do texto de maneira
simbólica aludindo às conotações cimentadas pela história oficial
que dão conta de um índio passivo ante a invasão de suas terras e
à desarticulação de seus modos de vida, o que iria de encontro à
visão estereotipada do elemento indígena no boi que é, desde sua
origem, “estilizado”, quase uma paródia, um herói trágico eleito
pelo romantismo literário brasileiro como símbolo da nação, como
se observa no fragmento: “Arcos e flechas contra a força do canhão,
guerra dos ímpios dizimou minha nação...chamaram a morte e o massacre
do meu povo civilização”; 2) O outro ponto refere-se à evidência
dada aos líderes indígenas “Tibiriçara, Aribóia e Ajuricaba”, eleitos
símbolos da resistência ameríndia ao etnocídio. Aparece aí não
mais um indígena simbólico (fraco, subserviente), mas sim sujeitos
de ações historicamente concretas. Caminha-se, portanto, para
outra possibilidade interpretativa histórico-cultural que raramente
lemos nos livros didáticos. Os compositores da toada operam direta
ou indiretamente sobre estas duas perspectivas em que a figura
49
Yomarley Lopes Holanda
indígena é a “matéria-prima” de sua obra, conforme aponta Letízia
(2002, p.37): “O deambular incessante dos nativos e os reencontros
entre diversas nações indígenas servem hoje em dia de referência aos
poetas e versejadores populares que compõem as toadas de boi...”
É no bojo de importantes transformações socioculturais da
festa dos bois-bumbás e da própria sociedade, engendradas pela
inserção de patrocinadores, pelo interesse governamental e dos
meios de comunicação de massa como as gravadoras que passam a
produzir e divulgar os CDs (que neste período alcançam números
expressivos de vendagem), e pela crescente demanda de um público
cada vez mais diversificado interessado em conhecer/consumir
a festa (principalmente em Manaus que terá uma influência
preponderante para o sucesso deste gênero musical), que os boisbumbás empreenderão mais intensamente uma série de mudanças
estéticas em suas apresentações, a saber: monumentalização das
alegorias e composição de toadas mais comerciais (e dançantes),
abandonando pouco a pouco seus antigos signos cancionais como
a morena, a lua, os desafios, agora para tematizar a vida cabocla, as
tradições indígenas e a preocupação com a preservação da natureza
amazônica, articulando o local com o global, já que na década de
90 do século passado, se intensificam as discussões em torno dos
problemas ecológicos.
Segundo os autores da canção em estudo, os indígenas não
formavam os únicos povos a sofrer com o processo de conquista
do espaço amazônico, emerge do texto a figura do negro que para
cá fora trazido à força para trabalhar como escravo. Conforme
dissemos em outro trabalho (2010, p. 222-223), há uma forte
presença negra na história do folguedo do boi-bumbá, o que nos
possibilitou uma leitura da história que a escravidão negou ao
negro no Brasil. Talvez menos visível que a presença indígena, ela
não deixa de ser significativa em razão da infiltração de negros
e seus descendentes quilombolas pelas matas amazônicas e a
diáspora nordestina para a região durante o período áureo da
exploração da borracha, que contribuíram decisivamente para a
formação daquilo que alguns denominam de “civilização cabocla”,
desconstruindo a ideia da irrelevância do negro na constituição
da cultura amazônica. Eis um fator muito interessante a ser
aprofundado pelas análises desse tipo de produto cultural.
50
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
Os (des) encontros no mundo amazônico, quase sempre
hostis, entre as três matrizes formadoras do povo brasileiro:
negra, branca e índia, é posto em cena ao longo da constituição
poética e melódica da toada. Do refrão da canção extrai-se o
seguinte trecho: “Unindo raças e crenças de povos vindos de alémmar”, o ponto de vista dos compositores consagra a miscigenação
como fenômeno positivo desse processo histórico, no encarte
do CD aparece a figura do boi-bumbá Garantido ao lado de três
crianças: uma negra, uma branca e outra índia, ressaltando ainda
mais essas ideias. Caberia ao analista (professor/pesquisador)
problematizar esta categoria, adensando a leitura crítica desde as
abordagens evolucionistas do século XIX, atravessando o processo
de construção e crítica da chamada “democracia racial brasileira”,
sistema ideológico elaborado por Freyre (1998) que, em nome de
pretensa harmonia social e racial, eliminava as contradições do
processo histórico brasileiro, até culminar com os movimentos
sociais (negros e indígenas) das décadas de 70 e 80 e suas lutas
em busca do reconhecimento de seus direitos políticos. Logo, a
crítica histórica e cultural na sala de aula poderia ser adensada
tomando como mote a transversalidade da Pluralidade Cultural,
observando seus embates e fricções históricas.
Considerações Finais
Enquanto experiência estética individual ou coletiva, a música
ultrapassa os limites de quaisquer métodos, daí o nosso entendimento
de que para pensá-la como “fonte”, “documento” ou “objeto”, faz-se
mister lançar sobre a música vários focos de luz oriundos das diversas
Ciências Humanas e Sociais, tomando-a, sobretudo, como portadora
de discursos que comunicam saberes, práticas, representações,
valores e crenças. A musicalidade constitui, sem dúvida, suporte
rico de reciprocidade de conhecimento, alargando sobremaneira as
nossas possibilidades transdisciplinares de pesquisa.
Vale ressaltar que, como tudo na produção histórica (e no seu
ensino), o argumento aqui desenvolvido é fundamentado em múltiplas
escolhas: de temática, de recorte, de abordagem e, no caso das canções
amazônicas, de preferência pessoal pelo gênero musical. Não vejo
motivo para o pesquisador não poder estar inserido neste circuito de
51
Yomarley Lopes Holanda
comunicações culturais, seja como ouvinte, admirador, produtor ou até
mesmo cancionista, obviamente que guardando a devida vigilância
epistemológica em relação ao seu objeto. Dito de outra maneira,
agora embasado na teoria da História, reafirma-se a “historicidade
do próprio historiador, ele mesmo um produto histórico” (SILVA,
2001, p.67). Logo, fica claro a inexistência da suposta isenção total do
investigador em relação ao objeto investigado.
Como compositor de toadas, professor universitário e
pesquisador no campo da cultura amazônica tenho refletido
sobre as possibilidades de convergência desse gênero musical
com o ensino, um desafio de fazer (e propor) a mediação entre o
conhecimento acadêmico e a prática escolar cotidiana, esse artigo
vislumbra tal horizonte. Nossas experiências na sala de aula com os
alunos do ensino básico sinalizam para o uso de novos instrumentos
didático-pedagógicos como as canções, mais próximos de seus
interesses, gostos estéticos e perspectivas, enquanto “pontes”
de aprofundamento da leitura (de conteúdo e de mundo) e de
reflexão desses discentes durante as aulas. Criatividade e liberdade
de pesquisa e ensino integrando o mesmo processo dialógico, arte
e ciência interagindo na complexa interpretação da realidade.
Em suma, a reflexão e o ensino da História de maneira
menos metódico é de fato o nosso grande desafio atualmente. O
conhecimento sobre a diversidade sociocultural amazônica talvez
nos exija “sentir”, “olhar” e “ouvir” para além dos métodos rígidos,
abordagens ou modelos teóricos. Talvez requeira de nós uma atitude
de afloramento da sensibilidade como professor/investigador. Eis,
que nesse instante emerge uma indagação: afinal, de onde vêm
a magia e o encanto das toadas amazônicas? O cancionista me
responde poeticamente.
Vem do sangue do caboclo,
Vem do cheiro da cabocla,
Ou das águas do grande rio.
Vem do compasso das remadas,
Vem das tribos dizimadas,
Vem das cinzas das queimadas”
(Magia da Toada, Tony Medeiros, CD Boi Garantido, 1998)
52
O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico...
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54
Ensino de história: o jornal como suporte
documental e/ou recurso didático
Luciano Everton Costa Teles15
Considerações iniciais
D
urante décadas atrás se estabeleceram críticas ferrenhas
sobre um ensino de história pautado somente na transmissão
de conteúdos. Não que os conteúdos deixassem de ser importantes,
mas sim pela forma que o ensino assumia nesse processo, em especial
tornando o aluno um receptáculo, tendo este que reproduzir, via
instrumento avaliativo, o que lhe foi repassado na aula.
Paulo Freire, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, elaborou
uma série de estudos demonstrando o caráter limitado dessa
perspectiva de ensino sobre a formação dos discentes. Na esteira
deste autor, que se tornou referência para estudos posteriores acerca
da educação, surgiram reflexões que não somente o utilizaram
como referência teórica no campo da Ciência da Educação, como
tambémem em disciplinas específicas, como no caso da disciplina
histórica.
Cabe destacar que, recentemente, o ensino de história vem
se consolidando como um campo de reflexão promissor, no qual
questões como metodologias de ensino, currículos, programas,
recursos didáticos, livros didáticos, formas assumidas pela disciplina
histórica em contextos históricos diferentes, constituem-se como
balizas para a compreensão do ensino.
No interior desse movimento, o presente texto tem como
objetivo demonstrar como os jornais podem ser utilizados no
processo de ensino/aprendizagem como suporte documental e/
ou recurso didático, promovendo um ensino de história inovador
pautado num entrelaçamento entre transmissão e produção de
conhecimento, destacando este último aspecto.
15
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor
Adjunto B da Universidade do Estado do Amazonas/CEST.
E-mail:
[email protected]
55
Luciano Everton Costa Teles
O ensino de história: reprodução ou produção de
conhecimento?
O ensino de história, no decorrer de décadas anteriores,
foi concebido por meio de uma divisão hierárquica entre ensino
superior e educação básica. Esta divisão definia práticas e processos
a serem seguidos, em especial ligados à produção e transmissão
de conhecimentos. Nessa esteira, o professor universitário teria
um papel fundamental na produção do conhecimento histórico
enquanto que o professor da educação básica se inseria no âmbito
da transmissão desse conhecimento:
O ensino de história, como os das outras disciplinas, encontra-se estruturado de tal forma que a universidade, ou 3º grau,
compete a produção do conhecimento histórico (ou seja, é o
espaço do chamado “discurso competente", enquanto às escolas de 1º e 2º graus cabe a sua reprodução (CABRINI, 1994, p.
19-20).
Esta divisão acabou produzindo não somente uma hierarquia na
relação com o conhecimento, como também no status profissional,
salarial, etc. (CABRINI, 1994, p. 20), situação vivenciada ainda
hoje, no século XXI.
Em que pese à vigência dessa situação, recentemente surgiram
várias críticas sobre essa “divisão do trabalho”. As críticas
assentaram-se na ideia de que o conhecimento se constitui como
um processo e não um dado pronto, acabado e definitivo. Nesse
sentido, cabia ao professor (tanto da educação básica como do
ensino superior) identificar e discutir os elementos presentes no
processo de construção do conhecimento.
Com efeito, no ensino de história, a “oficina de Clio” passou
a ser incorporada, tendo como foco a interlocução, o diálogo,
conduzido pelo professor, dos alunos com o objeto/tema de
estudo. Como sublinha Ciampi:
Ressaltar os desdobramentos do ofício do historiador no trabalho do professor em sala de aula, bem como a preocupação
com montagem do tema, a problematização, o trabalho de seleção, tratamento e confronto das fontes para a compreensão e
56
Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático
explicação do objeto de estudo. Ter o aluno e professor como
sujeitos históricos e do seu próprio conhecimento (2003, p.
112).
Apontar procedimentos, regras e perspectivas presentes na
produção do conhecimento histórico, demonstrando de que forma
a interpretação sobre o passado foi construída pelo historiador,
tornou-se importante no processo do ensino de história:
É preciso garantir que o professor de história seja alguém que
domine o processo de produção do conhecimento histórico, que
seja alguém que saiba se relacionar com o saber histórico já produzido e que, finalmente, seja alguém capaz de encaminhar seus
alunos (sejam eles do 1º, 2º ou 3º graus) nesses mesmos caminhos da produção. Em outras palavras: o professor de história
precisa ser alguém que entenda de história, não no sentido de
que saiba tudo o que aconteceu com a humanidade, mas que
saiba como a história é produzida e que consiga ter uma visão
crítica do trabalho histórico existente (CABRINI, 1994, p. 23).
Portanto, dominar e encaminhar os passos da produção do
conhecimento histórico, buscando visualizar como a história,
enquanto conhecimento, foi produzida, configurou-se como
salutar.
Além disso, a articulação entre conhecimento e realidade social
pode promover ações e comportamentos no sentido da promoção
de mudanças sociais. Isto porque o processo de produção do
conhecimento no espaço escolar envolve um conjunto de relações
complexas onde alunos e professores articulam experiências,
vivências, interesses, valores e expectativas diferenciadas, o que
evidencia uma dinâmica potencializadora de intervenções sociais.
Com efeito, atualmente tornou-se essencial romper com
aquela “divisão do trabalho” mencionada acima, apontando que
os professores de história inseridos no âmbito da educação básica
podem trabalhar de forma articulada o ensino e a produção de
conhecimento. Sobre esta questão Idanir Ecco destaque que:
a contemplação de uma aprendizagem significativa requer uma
metodologia participativa. E trabalhar História na perspectiva da
57
Luciano Everton Costa Teles
produção do conhecimento requer atividades de pesquisa, de investigação, prática esta possível de implementação entre alunos
e professores dos Ensinos Fundamental e Médio (2007, p. 137).
Assim, o professor da educação básica, ao contrário do
que foi “imposto” no passado, tem possibilidades de caminhar
num processo de ensino/aprendizagem que tenha como foco a
articulação entre ensino e produção de conhecimentos.
Para demonstrar essa possibilidade, tem-se como exemplo
a utilização do jornal como suporte documental e/ou recurso
didático para a produção do conhecimento histórico.
Os jornais na pesquisa histórica
A utilização da imprensa periódica como fonte para a pesquisa
histórica brasileira ganhou terreno, ainda de forma tímida e lenta,
na década de 1970 após a superação de antigas posturas que
marcaram a prática historiográfica, notadamente as noções de
“fonte suspeita” e “repertório da verdade”.
Com relação à primeira postura, a imprensa periódica
despertava desconfiança nos historiadores. Os diversos temas
tratados e as inúmeras informações veiculadas, por não
serem oficialescas – na medida em que não eram documentos
comprovadamente produzidos por agentes do governo – eram
relegados a um plano secundário. Entretanto, para aqueles que
insistiam em utilizá-la era necessário redobrar a atenção, a fim de
não comprometer, com o uso desse registro, a pretensa objetividade,
tão ardorosamente desejada no interior da disciplina histórica.
No extremo oposto, foi lentamente se constituindo a ideia de
“fato verdade”, que elegia a imprensa como “templo dos fatos”,
enaltecendo a objetividade do fato jornalístico e esboçando uma
tendência a utilizá-la como relato fidedigno da realidade, fonte
imparcial e neutra dos acontecimentos (CAPELATO, 1988).
Assim sendo, as informações contidas na imprensa periódica
representavam um recorte in loco da realidade, extraído e
materializado em artigos presentes nas colunas jornalísticas,
supostamente a espera do historiador para serem compiladas,
observadas e exploradas.
58
Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático
No final da década de 1970 e início de 1980, a imprensa
periódica foi sendo vista de forma diferente. Num momento de
reavaliação do tratamento dispensado pelo historiador às fontes
históricas, a imprensa periódica passou a ser tomada como espaço
de representação de inúmeros aspectos da realidade.
A partir desse momento, a atenção voltou-se para os elementos
constitutivos da construção dos textos jornalísticos. Esta posição
foi sendo difundida e acabou influenciando os historiadores
que caminharam no sentido de romper com a postura que via a
imprensa como “fonte suspeita” ou, inversamente, como “repertório
da verdade”, permitindo estabelecer questões que procuravam
elucidar não o fato jornalístico em si, mas a construção deste fato.
Nessa esteira, atentou-se que no processo de construção do
fato jornalístico os elementos subjetivos e os interesses do jornal
interferiam decisivamente. Dessa forma, a tarefa preliminar de
identificar os elementos construtores do fato se tornou central na
construção historiográfica, uma vez que possibilitava identificar e
localizar a imprensa socialmente e, assim, melhor compreender a
lógica de seus discursos e a emergência de projetos de intervenção
social e política que, por vezes, ela buscava encobrir.
A adoção de uma postura cautelosa e crítica no trato com a
imprensa tornou-se referência obrigatória para os pesquisadores.
Zicman lembrava que, para os que resolviam tomá-la como fonte
de estudo historiográfico, era necessário atentar para o eixo
norteador de sua ação – o campo político e ideológico. Essa
questão trouxe consigo a necessidade de estabelecer os principais
traços característicos dos órgãos de imprensa a serem investigados
(ZICMAN, 1985, p. 91-92). Era preciso indagar ainda sobre o modo
como os jornais constituíram formas de olhar e narrar os eventos e
de fixar uma versão entre outras possíveis. Era preciso identificar o
“lugar social de onde o jornal falava” (VIEIRA, 1989).
Isso foi importante, uma vez que deu à imprensa um lugar de
destaque nos estudos históricos, tal como sustenta Capelato:
Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado,
a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso
dos homens através dos tempos. O periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido
59
Luciano Everton Costa Teles
como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época
(1988, p. 13).
Como fonte histórica, a imprensa configurou-se como um
“manancial dos mais férteis” para a reconstrução e elucidação
do passado. Por meio dela, tornou-se possível recuperar
dimensões sociais importantes, notadamente as lutas, os ideais, os
compromissos e os interesses de diversos setores que compõem
a sociedade. A imprensa possibilitou um melhor conhecimento
das sociedades no nível de suas condições de vida, manifestações
culturais e políticas, dentre outros aspectos.
Desse modo, vários trabalhos emergiram como, por exemplo,
a nível nacional e dentro da seara da História do Trabalho, as
obras de Maria Auxiliadora Guzzo Decca (1997), Sidney Chalhoub
(1991), Francisco Foot Hardman (1983), Ângela de Castro Gomes
(1988), dentre outros.
Por outro lado, a imprensa também foi tomada como objeto
de estudo. Nesse caso, os estudos nos remetem, num primeiro
momento, aos Institutos Históricos e Geográficos espalhados
pelas regiões do país e aos intelectuais ligados a estas instituições,
com destaque para Alfredo de Carvalho e Afonso de Freitas. Os
trabalhos desenvolvidos por estes profissionais consistiam na
realização de levantamentos de jornais e abordagens descritivas
sobre os mesmos. Assim, a imprensa era vista por uma perspectiva
descritiva, factual e cronológica.
Sobre essa perspectiva, Marialva Barbosa alega que “escrever
a história da imprensa não é, certamente, alinhar fatos e datas,
nomes e mais nomes, nem destacar os personagens que se tornaram
singulares na construção engendrada no passado para o futuro
(2004, p. 03).
A tentativa da construção de uma História da Imprensa
no Brasil não se restringiu a esse primeiro momento. Em 1966
surgiu a História da Imprensa no Brasil, obra de vulto que refletiu
sobre a dinâmica e evolução dos órgãos de Imprensa e analisou
suas características em diversas conjunturas. Ancorado em um
modelo marxista que atrelava a dimensão cultural ao nível da
infraestrutura – aquela era reflexo desta –, Sodré via imprensa
como um “aparelho ideológico do estado . Essa dimensão pode ser
60
Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático
percebida logo no início do livro quando afirmou que “a história
da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade
capitalista” (SODRÉ, 1999, p. 1).
Porém, essa não foi a única obra que procurava construir, por
outro viés, uma História da Imprensa no Brasil. Precedendo a obra
de Sodré, Juarez Bahia (1990) procurou discutir não só um sentido
geral na história da imprensa brasileira, mas também inquirir essa
historicidade em articulação com os processos de incorporação
de novas tecnologias e linguagens. Além de Bahia, Carlos Rizzini
(1988) e Hélio Viana (S/D) também desenvolveram estudos sobre
os órgãos de imprensa em perspectiva global.
Considerando as obras que buscavam analisar globalmente
a História da Imprensa do Brasil, Geraldo Pinheiro assim se
posicionou:
não obstante a grande contribuição que estes trabalhos trouxeram ao debate contemporâneo, eles carregam limitações de
suas época. Assim pois, Carlos Rizzini, Hélio Viana e Juarez
Bahia estão fortemente marcados por perspectivas positivistas,
enquanto Nelson Werneck Sodré, com a ortodoxia que lhe é
peculiar (1993/94, p. 198).
Cabe mencionar que os estudos menores e mais regionalizados
não ficaram de fora. Nessa linha, a obra de Ignotus (1883), que
abordou a imprensa no Maranhão entre 1820 e 1880, e Luiz do
Nascimento (1972), o qual focalizou a imprensa em Pernambuco,
são exemplares.
A partir da segunda metade do século XIX até meados da
década de 1970, os estudos que tomaram a imprensa enquanto
objeto de investigação, ora em plano global ora em plano regional,
caminharam em duas vertentes. Na primeira, a imprensa era
encarada de forma descritiva, factual, cronológica e preocupada
em fazer levantamentos de documentação sobre jornais (catálogos
e listagens). Tal perspectiva acabou apresentando um baixo
teor explicativo. Na segunda, o jornal era visto como “aparelho
ideológico do estado”, o que acabou gerando um empobrecimento
analítico resultante do determinismo econômico.
Nas décadas subsequentes, a noção de imprensa enquanto
“prática social que compunha o tecido social urbano” se difundiu
61
Luciano Everton Costa Teles
e contribuiu para a emergência de trabalhos relevantes, com
destaque para o trabalho de Heloísa de Farias Cruz (2000), que
buscou refletir sobre as relações entre cultura letrada, periodismo
e vida urbana no processo inicial de formação da metrópole
paulistana.
Atualmente a tendência direciona-se em tomar a imprensa
periódica como objeto e fonte de estudos concomitantemente.
Essa perspectiva apresentou-se profícua, pois acabou articulando
duas dimensões que potencializaram a produção do conhecimento
histórico por meio de um diálogo em que a imprensa periódica
tornou-se o foco dos estudos:
Compreender a imprensa como instrumento de intervenção na
vida social em que seu estudo pode se dar como objeto/fonte,
uma vez que desaparece a categoria imprensa na forma abstrata para dar lugar ao movimento vivo das idéias, protagonistas
e, principalmente, para que emerjam dessa produção de sentidos, como resultado da operação histórica, sujeitos dotados
de consciência determinada na prática social (GONÇALVES,
2001, p. 09).
Com efeito, a recuperação histórica da constituição da
imprensa, suas tecnologias, linguagens, dinâmicas e transformações
ao longo do tempo, bem como as informações contidas nos artigos
veiculados, que surgiram por meio de aspectos presentes na realidade
do cotidiano do local onde o periódico circula e que acabam
alimentando a produção de ideias e sentidos, apresentam-se como
fundamentais e ricos para a construção do saber historiográfico.
Empregando o jornal como instrumento
articulador do ensino e da produção de
conhecimento na disciplina histórica
No processo de ensino/aprendizagem o jornal pode ser
utilizado em dois sentidos: como suporte documental (objeto/
fonte de estudo) e como recurso didático.
No primeiro caso, o jornal pode ser explorado para
demonstrar como o historiador o utiliza no processo de construção
62
Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático
do conhecimento, ressaltando a relação deste com o documento
e revelando as formas de abordá-lo no sentido de extrair
informações sobre alguns aspectos do passado que irão compor
uma interpretação específica.
Nesse caminho, o professor da educação básica, ao buscar os
jornais nos acervos da cidade, nas publicações de fac-símiles ou em
sites específicos, poderá traçar uma atividade explorando-o como
“passaporte” para adentrar numa época específica, explicando-a
por meio das informações contidas no jornal, solicitando que
os alunos, por meio de problematizações, reflitam sobre ele,
produzindo, assim, conhecimento. Traduzindo:
a partir de elementos levantados para o exame de uma determinada realidade histórica, os alunos fizeram algum trabalho
de reflexão que os leve à produção do conhecimento (...) sobre
essa realidade e à compreensãoda forma como esse conhecimento foi construído (CABRINI, 1994, p. 30).
Assim, questões como definição do tema, problematização,
seleção de informações, compreensão e explicação acabam sendo
elementos fundantes nesse processo.
Ultimamente, no campo da história, os historiadores
canalizaram esforços no sentido de buscar, no interior dos
acervos, documentos significativos para publicação, num processo
de divulgação e democratização do acesso aos mesmos. Nesse
contexto, vários documentos foram recuperados e publicados,
como, por exemplo, processos judiciais, relatos de viajantes, jornais
os mais variados, etc.
Na mesma linha de divulgação e democratização do acesso
aos documentos históricos, várias instituições disponibilizaram em
sites na internet documentos que podem ser baixados. Pode-se citar
como exemplo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
que em seu site disponibiliza documentos do século XIX ao XXI.
Por outro lado, o jornal pode ser utilizado como recurso
didático. Neste caso, ele se configurará como um instrumento
mediador dos temas e das explanações estabelecidas pelo professor
e direcionadas aos alunos. Também poderá ser usado para compor
um material específico, construído pelo professor para explicar
um determinado conteúdo.
63
Luciano Everton Costa Teles
Em determinadas situações, “a produção de materiais
pelos professores é a melhor forma de atender a especificidade
de determinado conteúdo” (PORTAL DO PROFESSOR, p. 4).
Portanto, o jornal pode ser explorado também nesta perspectiva.
Cabe destacar que os jornais mais recentes, incluindo aí os
atuais, caracterizam-se como primordiais para a discussão e a
produção de reflexão sobre questões do presente, fomentando
uma compreensão da realidade mais atual e, de certa forma,
promovendo uma visão crítico-social.
Imagem 1 – Jornal O Solimões, Tefé/AM
Fonte: Biblioteca do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM)
64
Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático
O jornal utilizado tanto na perspectiva de suporte documental
como de recurso didático se constitui como instrumento capaz de
promover a articulação entre ensino e produção de conhecimento
na educação básica, inserindo o professor e o aluno nesse processo:
os alunos do ensino fundamental e médio podem, juntamente
com seus professores, tornar-se pesquisadores nas suas localidades, buscando informações, construindo o conhecimento
histórico a partir da investigação da memória de seus familiares, de patrimônios históricos, de obras de arte, de jornais de
época. Trata-se de possibilitar aos alunos, quando possível a
manipulação direta do objeto de estudo (DIEHL, 2002, p. 227).
O emprego de jornais como instrumento para a produção
do conhecimento histórico se insere num movimento maior de
fomentar “a manipulação direta do objeto de estudo” por parte dos
professores e dos alunos da educação básica e, como mencionando
na citação acima, não se restringe somente aos jornais.
Considerações finais
Observou-se que a utilização do jornal como suporte
documental e/ou recurso didático pode promover um processo
de ensino/aprendizagem inovador, cuja perspectiva se assenta
na articulação entre transmissão e produção de conhecimentos,
destacando que é extremamente possível que o professor da rede
básica de ensino paute sua atuação profissional nesses termos.
Com isso, buscou-se romper com a “divisão do trabalho”
docente, segundo a qual cabia aos professores de nível superior a
produção do conhecimento e aos professores da educação básica
apenas, a transmissão do mesmo.
Por meio do domínio acerca da produção do conhecimento
histórico e da capacidade em traduzir esse processo para os alunos,
a proposta de aliar transmissão e produção do conhecimento por
meio da exploração de jornais dificilmente se tornará traumática.
65
Luciano Everton Costa Teles
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67
Eixo 2
Itinerários Investigativos
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã
contra a grilagem de terras em boca do Acre
(1972-1978)
Francisco da Silva16
Tiago Fonseca dos Santos17
Considerações iniciais
A
ocupação da região norte e uso das terras para grandes
empreendimentos, como por exemplo, a criação de
rodovias, portos, aeroportos, usinas hidrelétricas, plantas de
exploração mineral e grandes projetos agropecuários durante a
Ditadura Militar (1964-1985) marcou o início de um novo ciclo
de exploração econômica e inseriu a Amazônia no contexto da
economia global capitalista de ponta, cujas consequências foram
desastrosas para os povos tradicionais. Queirós assevera: “Desde
muito cedo, a região sofreu os impactos da ditadura que se
instalava. Os impactos dos projetos desenvolvimentistas na região
foram particularmente nefastos para as populações indígenas”
(QUEIRÓS, 2019, p. 39). É neste contexto que a organização dos
povos originários começou a ser notada; as lutas por terras ganham
as pautas nos noticiários, especialmente em Boca do Acre, com os
Apurinã em busca de delimitação do território.
Para Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila Carvalho (2005):
Os massacres contra os povos indígenas voltariam a se repetir,
já recentemente, a partir das décadas de 1960 e 1970, com as
políticas de desenvolvimento e integração da Amazônia que começaram a rasgar a floresta com a abertura de estradas como
16
Francisco da Silva. Graduado em História pela Universidade do Estado do
Amazonas UEA/Centro de Estudos Superiores de Tefé – CEST/UEA. Contato
(97) 98412-2762 E-mail:
[email protected]
17
Tiago Fonseca dos Santos. Professor de História no Centro de Estudos Superiores de Tefé – CEST/UEA. Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/UFAM. Contato:
[email protected]
71
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR 364, a BR 174 e a
Perimetral Norte. Povos como os Waimiri-Atroari, Yanomami,
Arara, Parakanã, Cinta Larga e Nambikwara, entre muitos outros, foram duramente atingidos, inclusive por expedições de
extermínio com participação do poder público (HECK; LOEBENS; CARVALHO, 2005, p. 239).
Em relação à delimitação geográfica desta pesquisa, Boca
do Acre, primeira cidade da região do Médio Purus, pertence ao
estado do Amazonas e está localizada à margem direita do Rio
Purus, exatamente na foz do Rio Acre. Foi fundada pelo colonizador
João Gabriel de Carvalho e Melo em 1890, com o Ato de Criação:
Decreto Nº 67 de 22/10 do mesmo ano, a cidade tem limites com
os municípios de Lábrea, Pauini e com estado do Acre. De acordo
com Francisco Apurinã (2019) na chegada do colonizador, já
existiam etnias indígenas que habitavam esta região, inclusive os
Apurinã18:
Ao chegar ao Amazonas, especificamente à localidade que
compreende atualmente o município de Boca do Acre, João
Gabriel de Carvalho e Melo se deparou com pelo menos três
povos indígenas diferentes, entre eles os Apurinã e Jamamadi,
que continuam no local até os dias de hoje (APURINÃ, 2019,
p. 189)
A invasão do colonizador causou muitos prejuízos em função
das guerras, das doenças, da escravização e tentaram através das
legislações coloniais, além de explorar a mão de obra dos nativos.
As políticas indigenistas criadas no período colonial, imperial e
até mesmo na República foram pensadas para aculturar os nativos,
inclusive no uso do seu trabalho, para torna-los trabalhadores
nacionais, integrados à sociedade brasileira. Quando o uso dos
serviços indígenas deixaram de ser a força maior dos colonizadores,
18
O povo Apurinã faz parte da família linguística Aruak (também Arawak ou
Maipure), do ramo Purus, e autodenomina-se Pupỹkary. Eles podem ser
encontrados na literatura indigenista com vários nomes, segundo Sidney da Silva
Fagundes os termos, “Ipurina”, “Ipurinás”, “Ipurinã”, “Ipurinan”, “Ypurinás”,
“Ipurynans”, “Hipurinás”, “Hypurinás”, “Hypurina”, “Tiupurina”, “Tupurinã”,
“Jupurina”, “Kankite”, “Kankutu”, “Kankiti”, “Kankete”, “Cangiti”, “Canguite” ou
“Kaxarari” (FAGUNDES, 2000, p. 03).
72
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
começa as disputas por terras.
De acordo com o Relatório da Comissão Nacional da Verdade:
Tais violações perduraram até a promulgação da Constituição de
1988 e muitos dos seus efeitos permanecem até os dias atuais,
apontando para a necessidade de completar o processo de justiça
transicional aos povos indígenas, ainda em curso no Brasil. Ao
superar juridicamente o paradigma do integracionismo, que concebia os “modos de ser” indígenas como condição a ser superada, a Constituição de 1988 se apresenta como principal marco de
anistia aos povos indígenas. A ação direta e deliberada do Estado
visando impedir os povos indígenas de exercerem seus “modos de
ser” fere os direitos mais fundamentais da democracia, tais como
os de liberdade de pensamento e liberdade de culto, para citar
apenas dois. Constitui-se, em verdade, em negação de direitos humanos básicos, porquanto representa a tentativa de extinção de
povos enquanto coletividades autônomas (BRASIL, 2014, p. 252)
A pesquisa se dá em contexto desfavorável, às populações
nativas, sobretudo pelos planos de desenvolvimento da Amazônia19
elaborados para execução entre 1955 e 1985 (Batista, 2016).
Entende-se que esta região, sofrera com exploração e disputa de
poder, desde o tempo colonial, a primeira ação colonizadora foi
a extração das drogas do sertão – produtos naturais da floresta
como, cacau, salsaparrilha, pau-cravo, gergelim entre outros, como,
castanha do Pará (Becker, 2005). Depois, entre 1880 à 1920 foi o
período de exploração do látex, em escala mundial. A partir de
1950, começa a criação de políticas para “desenvolverem” o “vazio
demográfico”. Tais planos são destacados na tese de Iane Maria Da
Silva Batista (2016), onde destaca:
Durante o período analisado foram elaborados cinco planos,
a saber: o 1º Plano Quinquenal de Valorização Econômica da
Amazônia (1955-1959); 1º Plano Quinquenal de Desenvolvimento (1967-1971); I Plano de Desenvolvimento da Amazônia
(1972-1974); II Plano de Desenvolvimento da Amazônia (19751979) e III Plano de Desenvolvimento da Amazônia (198019
Conhecida ainda por, Amazônia Legal, que corresponde à área de atuação
da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM delimitada em
consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007
73
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
1985). A ideia motriz que os orientou foi a exploração racional
e planejada dos componentes da natureza amazônica, qualificados como recursos naturais (BATISTA, 2016, p. 16)
O desenvolvimento proposto para a Amazônia, não considerou
as comunidades existentes, movido por interesses assentados na
ideologia autoritária da ditadura. Em um primeiro momento
houve o aumento dos indicadores econômicos, mas à custa do
endividamento externo, e ainda os índices sociais não melhoraram.
Portanto, os projetos desenvolvimentistas não trouxeram bons
resultados e representaram o avanço do capital nas terras indígenas
(Silva Filho, 2015).
Diante do cenário desenvolvimentista, buscou-se compreender
a importância da resistência e dos conflitos Apurinã em Boca do
Acre entre os anos 1972 a 1978, especialmente daqueles moradores
do km 45 da Rodovia Federal BR-317. Sabe-se que neste período,
Boca do Acre foi palco de conflitos sociais entre os Apurinã,
fazendeiros e o grileiro João Sorbile20, tendo como protagonistas
os Apurinã que presenciaram situações de descaso pelas políticas
de governo e até mesmo da Fundação Nacional do Índio - FUNAI,
sobretudo, invasão e apropriação ilegal de suas terras.
Nesta perspectiva, recuperar os conflitos e atos de resistência
dos Apurinã é estritamente relevante para a comunidade acadêmica,
inclusive para as pesquisas em História Indígena e o Indigenismo
na Amazônia. A pesquisa ainda mostra que estes indígenas já
habitavam aquela área, desde a chegada do colonizador, e traz para
conhecimento a resistência desse povo, frente às leis assimétricas,
com as políticas indigenistas e de desenvolvimento da região do
governo militar.
Procedimentos metodológicos
A compreensão e análise de arquivos variados para uma
produção cientifica, lançando mão uma abordagem que dê conta
da exploração deste conteúdo é fundamental para alcançar
20
As informações que se tem sobre a biografia de Sorbile são poucas e vagas, sabese que ele é de Ribeirão Preto/SP e chegou aquela região em 1972 com registro
da terra forjados, buscando parecer amigável aos Apurinã.
74
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
os objetivos determinados pelo problema de pesquisa. Nesta
investigação, usa-se fontes do Sistema de Informação do Arquivo
Nacional - SIAN e do Instituto Socioambiental – ISA, analisados a
partir de uma abordagem qualitativa.
Para Ferraz e Silva (2015), a pesquisa qualitativa permite
assim o pesquisador buscar as razões dos sujeitos, os seus motivos
fortemente ancorados nas suas experiências de vida. As autoras
ainda afirmam que essa abordagem é uma espécie de conceito
“guarda-chuva” por abranger formas variadas de pesquisa. De
acordo com as mesmas:
Os métodos de coleta de dados da pesquisa qualitativa permitem ao pesquisador coletar informações tanto através de documentos escritos quanto através da fala de atores sociais. Os
documentos escritos oferecem ao pesquisador a possibilidade
de resgatar informações do passado registradas em relatórios,
entrevistas, memorandos, atas, contratos e documentos gerais
que podem auxiliar na compreensão do fenômeno estudado
(FERRAZ; SILVA, 2015, p. 45)
A escolha do método qualitativo traz uma maior possibilidade
de se obter informações e compreender de um fenômeno. Para
compor o quadro teórico metodológico, usa-se a Análise de
Conteúdo, como uma técnica que permite examinar diferente
informações. Na definição de Bardin:
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando
obter, por procedimentos objetivos e sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou
não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às
condições de produção/recepção destas mensagens (Bardin,
2011, p. 48)
Esta técnica permite a organização e sistematização dos dados,
que possibilita uma articulação das informações e perceber se os
variados documentos tinham alguma ligação entre si, por exemplo,
os que tratam do enfrentamento dos indígenas com os grileiros,
como, a troca de tiros com polícia e a morte de Apurinã. Isso forma
um eixo temático “enfretamento” que por sua vez se categoriza
75
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
como “conflitos”. Já os registros que compreendem os protestos
dos nativos, na AJACRE, no INCRA e na sede da FUNAI em Rio
Branco e em Brasília, formam o eixo “ações pacíficas”, podendo
formar uma categoria de “resistência”.
Nesta pesquisa se entende por conf lito, os atos que
contaram com o uso de arma, por índios e não-índios, e quando
algumas reações geram mortes ou tiroteio de ambos os lados.
Conforme a notícia do Jornal de Brasília intitulada “Polícia
ataca índios em Boca do Acre”, publicada em 05/07/1980, o
periódico relata que:
Os índios apurinã de Bora do Acre (AM) foram atacados por
um grupo de cinco policiais armados. Um dos policiais foi ferido e os índios refugiaram-se na mata. Os policiais atacaram
o posto indígena no dia 1° de julho, numa camioneta amarela
pertencente a um fazendeiro (JORNAL DE BRASÍLIA, 1980,
p. 05)
Ao verificar o trecho acima, percebe-se que o jornal noticia
ao fato ocorrido, mas não fala se houve morte nem ferimento
sofrido pelos nativos, nem como estes ficaram depois do ataque,
se preocupando apenas com o bem dos policiais. Outro fator
interessante percebido na citação é que a Polícia Militar estava
a serviço dos que tinham mais recursos para proteger uma
propriedade ilegal no território dos Apurinã, pois os próprios
agentes da PM não foram em um veículo da instituição de segurança,
mas na camioneta de um fazendeiro. Portanto, atos como estes são
sistematizados na categoria conflitos.
Entretanto, as ações que foram movidas e articuladas pelos
próprios Apurinã e alguns ativistas apoiadores da causa. Conforme
o que consta no documento da Secretaria Geral do Conselho de
Segurança Nacional, com título As Terras indígenas na Amazônia
Legal, datado do dia 4 outubro de 1984:
Os índios Apurinã, que habitam a área do PI BOCA DO ACRE,
localizado a altura do Km 45 da BR-317 (Boca do Acre-Rio
Branco), vêm reivindicando um acréscimo de 8.500 ha de terras, ocupadas por 25 famílias, que ali desenvolvem diversos
tipos de culturas. A FUNAI, considerando que a área do PI
76
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
com 17.517 ha., já demarcada, é suficiente a sobrevivência e a
preservação da integridade e da cultura da população indígena
local – 15 famílias, com cerca de 70 índios – decidiu não atender a comunidade (SGCSN, 1984, p.64)
Esta manifestação se deu pelas terras que foram griladas
por João Sorbile e vendidas por outros colonos que já tinham
desenvolvido práticas semelhantes. Os Apurinã pediram ajuda da
Funai, mas ficaram sem resposta. Neste contexto, os atos iguais ou
semelhantes a este que foram passivamente articulados se alojam
na categoria resistência. A reivindicação de seus direitos a terras
pelos próprios indígenas é anterior ao relatório da Secretaria Geral
do Conselho de Segurança Nacional (1984).
Conflitos e resistência Apurinã em Boca do Acre
Para compreender como se propagou a grilagem arquitetada
por Sorbile e seus aliados, é importante que se retorne ao meado
da década de 1950, quando se inicia o projeto de construção
da BR-317 que liga a cidade de Boca do Acre à cidade de Rio
Branco. Para Francisco Apurinã, o projeto da BR-317 foi um
caminho de tanto outros da chamada integração da floresta,
“[...] criados para facilitar a acumulação do capital via cessão/
legalização de lotes de antigos seringais para empresários do
Sul, a fim de permitir a implantação de empresas agropecuárias”
(Apurinã, 2019, p. 192).
A construção da BR-317, trouxe variados problemas para os
Apurinã. A bandidagem – roubo dos pertences indígenas – e junto
a isso a grilagem das terras à margem da rodovia, em especial, as
praticadas por Sorbile que chegou ao local em 1972. Conforme o
relatório de novembro de 1976 da Ajudância no Acre – AJACRE.
Onde se ler o seguinte trecho.
O fato em si, não só trata de uma medida isolada da Sr. João
Sorbile contra os APURINAS (sic), pois desde a sua chegada na
área en (sic) 1972, foi desencadeada uma perseguição sistemática aos índios, com o visível propósito de afastá-los á das terras
que habitam. inicialmente, para que os índios permitissem a
77
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
sua presença na área, João Sorbile prometendo-lhes que feria
daquela vila uma cidade e que construiria para cada família
índia uma nova casa nos moldes dos “civilizados” e o ajudaria
o nos derrubadas das roças com seus tratores além de prestar
ajuda e atendimento médico.
Depois de um certo tempo sem realizar nada do que tinha prometido aos Índios, o Sr. João Sorbile ofereceu aos APURINÃ,
para que saíssem das terras por eles ocupadas, a doação das
terras do seringal São Francisco, situado nas proximidades da
aldeia SIDERAL.
Devido a sua insistência para que os índios saíssem das terras
da aldeia, um grupo se sete índios vieram até a Rio Branco,
onde junto ao INCRA, fizeram a denúncia da ocorrência, quando receberam as instruções para que não abandonassem suas
terras (OFICIO Nº 022/76 – AJACRE, 1976, p. 01-02)
O explorador usou como estratégia promessas nunca
cumpridas para se promover; e, ainda, tentou a todo custo
expulsar os nativos de suas moradias. Observa-se ainda uma nova
roupagem para as ações do colonizador, se na época das primeiras
explorações usavam-se as trocas de objetos manufaturados, agora
se teve promessas de melhorias de vidas, e de bem-estar social,
para tirar proveito do trabalho e do conhecimento daquele povo.
Para a exploração da mão de obra indígena, bem como seus
conhecimentos da área a ser colonizada, a ideia dos brancos era
se aproximar dos nativos, evitando os confrontos. Com relação a
esses enfrentamentos, Patrícia Melo Sampaio argumenta que “[...]
a resistência armada dos índios da Amazônia ao avanço colonial
português, parafraseando Florestan Fernandes, foi dura e terrível”
(Sampaio, 2011, p. 44).
O relatório que compõe o Ofício 023 de 1976 da AJACRE
traz um panorama de como o cartório de Boca do Acre estava
com altos nível de irregularidades e como se deu a negociações
do seringal Aripuanã, posterior Fazenda Paulista, de João Sorbile.
No trecho transcrito, expõe uma visão a respeito dos antigos
seringais depois que a borracha deixou de ser comercializada em
Boca do Acre: “A estrutura fundiária do município está sofrendo
uma transformação, que é muito positiva economicamente, uma
vez que extensos seringais improdutivos serão transformados em
78
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
fazendas agropecuárias, favorecendo o produto destas fazendas
do município” (AJACRE, 1976, p. 04). Essa assertiva vale para os
seringais – São Miguel, São José do Aquiri dentre outros como
Aripuanã – pertencentes ao município de Boca do Acre. O relatório
ainda pontua:
Nos livros 03 e 3-A constante que as transcrições imobiliárias em sua maioria, são meras posses levadas de a registros
imobiliário. Em alguns casos o desrespeito ao Dec. 4857/39,
chegou a ser chocante, principalmente quanto a delimitações dos imóveis sempre incorreto e duvidosos (AJACRE,
1976, p. 06)
O Decreto nº 4.857, de 09 de novembro 1939, citado acima,
dispunha na época acerca da execução dos serviços concernentes
aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil, mas ao
longo dos anos sofreu diversas alterações. Atualmente o que
está em vigor a lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975, que altera
a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, dispõe dos registros
públicos. Anterior as duas legislações têm-se o Decreto nº 19.924,
de 27 de abril de 1931 que dispõe das terras devolutas. Baseado
nas respectivas, que os cartórios de Boca do Acre e de Rio Branco
fizeram as transcrições imobiliárias, sem base alguma a respeito do
que se pode ou não comprovar.
A estratégia de compra, venda e doações, das terras da União
em Boca do Acre, inclusive, referente ao Seringal Aripuanã, se deu
por irregularidades complexas, em um complexo jogo interesses.
Os registros imobiliários lavrados pelos cartórios tanto de Boca
do Acre, quanto de Rio Branco, geraram algumas indagações que
carecem de futuras respostas; por exemplo, a forma que Sorbile
consegue seu primeiro registro de terra sem nunca ter morado
no referido seringal. Dessa forma, para tentar compreender esta
ação de usurpar as terras públicas, observa-se trecho do relatório
referente ao histórico da situação judicial da comunidade indígena,
que futuramente denominado Fazenda Paulista. Assim diz o
relatório:
A primeira referência do imóvel rural Seringal Aripuanã a
luz do direito, remonta há 17/03/1943, quando Dona Petro79
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
níla Hollande (sic) de Oliveira, registra certidão de doação de
parte do referido Seringal a seus filhos Delzuita, Dekmar, Dalva, Delgenir e Jossio Henrique de Oliveira, através de certidão
lavrada às notas do tabelião Eloy Vasconcelos Monteiro em
02/09/1939, levados a registro imobiliário sob o nº de ordem
129, às folhas 86 do livro 03, Cartório de Boca do Acre
A segunda referência(sic) relaciona-se a aquisição feita por seu
marido Antonio Henrique de Oliveira, de parte do seringal
Aripuanã, havido(sic) através de instrumento particular de
compra e venda em 05/01/1925 registrado no livro 02 do título e documentos às folhas 64 a 65 – certidões de Boca do Acre,
havido do Sr. Jovelino florentino de Araújo, lavrado a transcrição sob o nº 517, às folhas do livro 3-A em 14/03/1973.
As demais referências são em relação aos herdeiros filhos e viúva meeira (sic), transcrevendo a formal partilha do espólio referente a herança deixada pelo pai Antônio Henrique de Oliveira
sob o nº 517, 518, 519, 520, 521, 522, 523 e 524 do livro 3-A, às
folhas 36 a 40. Datados de 14 a 23/03/1973, respectivamente,
no Cartório de Boca do Acre.
João Sorbile vende inteiramente (sic) uma área de 10.000 ha.
Do mesmo seringal a Demir Nogueira Farias, através da escritura lavrada notas do Tabelião Luiz Marques da 2º Distrito do
Rio Branco, livros 02 folhas 131-134 levadas a transcrição em
Boca do Acre o registro imobiliário sob o número de ordem
562, às folhas do livro 3-A em 16/03/73.
A seguir adquiria dos herdeiros de Antonio Henrique de Oliveira, através da certidão do escritório de cessão de direitos hereditários e usufruto uma área seringal Aripuanã composta de
09 (nove) estrada de seringa o pequeno castanhal registrado no
livro 02às folhas 70 e 73 no 2º Distrito do Rio Branco, levadas
a transcrição no registro imobiliário de Boca do Acre sob o nº
568 de folha do livro 3-A em 22/08/73
A seguir João Sorbile fez loteamento de uma área de 341.633
hectares e 9.500 m2 e denominou o seringal Aripuanã de “Fazenda Paulista”, vendeu a colonos vindos do Sul, lotes que variam de 250 a 5.000 hectares.
Verificou-se que a Cadeia Comercial (sic) do imóvel ato 1926
quando Antônio Henrique de Oliveira adquiriu de Jovelino
Florentino de Araújo uma parte do Seringal Aripuanã, que mais
tarde veio a falecer deixando a sua filha e a viúva meeira que,
por sua vez, transfere a João Sorbile, que revende a colonos vin80
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
do do Paraná. Lição constante de toda a transação titulação originário Idônea ou que o Seringal houvesse sido indispensável
destaque de patrimônio público (AJACRE, 1976, p. 09,10 e 11).
No trecho transcrito do relatório, percebe-se como era fácil
se apropriar de terras da União, sobretudo onde haviam seringais,
como, o Aripuanã, que o Sr. Antônio Henrique de Oliveira, tendo
comprado parte do imóvel de Jovelino Florentino de Araújo em
1925. Depois, ao falecer deixa como herança para seus filhos, bem
como sua viúva dona Petronila. A princípio, não se encontrou
referências relativas aos registros do primeiro comprador, ou
seja, não se sabe como Jovelino conseguiu ser dono do seringal,
talvez ele fosse um seringalista, e como de prática se apropriou das
terras públicas. Ariovaldo Umbelino de Oliveira argumenta: “[...]
o acesso à terra na história da sociedade brasileira, onde se verifica
que o descumprimento das normas legais e, a elaboração de novas
normas para regularizar os atos ilegais, foi sempre o procedimento
histórico das elites nacionais” (OLIVEIRA, 2015, p. 05).
Outra situação observada é a forma como João Sorbile consegue
as terras do seringal, cedidas pelo cartório de Rio Branco, mesmo
sendo de outra comarca e Estado diferente. Pelo que se percebe, em
1973, o grileiro vende uma área de 10.000 hectares do mesmo seringal
a Demir Nogueira Farias, através da escritura lavrada às notas do
Tabelião Luiz Marques da 2º Distrito do Rio Branco. Depois, adquire
dos filhos de Antonio Henrique de Oliveira uma vasta área do mesmo
seringal, que também fora registrada em Rio Branco, em 1973. Em
seguida Sorbile já se considerando dono do seringal, faz loteamento
de uma área de 341.633 em menores partes medindo entre 250 e 5
mil hectares, que são vendidas a colonos vindos do sul do país.
O fato é que na década de 1930 ocupar terras devolutas não
era atividade das mais difíceis, uma ação praticada por brasileiros
desde o século XIX. Sobre tal ações Oliveira (2015) argumenta que:
As elites latifundiárias do Brasil, regularizaram as terras griladas da Coroa Portuguesa ou de Espanha durante o período
colonial, com a Lei de Terras de 1850. Este mesmo ato - a grilagem - passava, a partir de então, ser novamente proibido pela
própria lei que estava concedendo o benefício para os crimes
de apropriação ilegal praticada anteriormente. Este mesmo
81
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
procedimento jurídico-político foi repetido mais duas vezes.
A segunda feita por Getúlio Vargas em 1931, através do Decreto no 19.924 de 27/04/1931, que reconheceu a validade
dos títulos expedidos pelo Estado nas repartições públicas, e,
consagrou a transcrição como ato indispensável para validar os
títulos das terras (OLIVEIRA, 2015, p.05-06)
É possível que os cartórios de registro das comarcas de Rio
Branco e Boca do Acre tenham se amparado no Decreto no 19.924
de 27/04/1931, para fornecerem registros de terras.
Os Apurinã, somente perceberam que as terras tinham “dono”
quando Sorbile propôs expulsá-los de suas moradias em 1973. É
a partir deste momento que os nativos procuram seus direitos e
juntos aos indigenistas da AJACRE, inclusive José P. Fontenele de
Carvalho, foi responsável oficializar as denúncias trazidas pelos
índios, e comunicar ao presidente da Funai – Ismarth Araújo de
Oliveira (1974-1979) – o que acontecia em Boca do Acre na BR-317.
O interesse desenfreado do não-índio para explorar a terras
gerou conflito como os nativos, pois, antes de ser um seringal,
aquele lugar era o território Apurinã, antes mesmo da construção
da BR-317. As primeiras informações acerca dos indígenas daquela
região, foi com a chagada dos colonizadores. Com relação a
esse contato, Apurinã (2019) informa“As histórias contadas por
indígenas e não-indígenas afirmam que os primeiros habitantes da
região, são, sem sombra de dúvidas, os povos Apurinã e Jamamadi”
(Apurinã, 2019, p. 189).
Na tentativa de expulsar os indígenas das terras griladas,
Sorbile foi bastante ousado, propondo aos mesmos, a doação de
um seringal para mascarar suas verdadeiras intenções de tirar os
nativos daquelas terras. Conforme consta no relatório de 1977, da
AJACRE, o relator narra que:
Conhecemos estes APURINÃ quando em junho de 1976,
acompanhando o Exmo.Sr.Presidente da FUNAI, General Ismarth Araujo, visitamos aquela área, a convite do Sr. João Sorbile, que pretendia propor a FUNAI a doação de um seringal
Com 5,000(cinco mil) hectares aos Índios APURINÃ, para que
se retirassem das terras que ele afirmava ser o dono. Naquela
mesma ocasião, recebemos dos Índios a denúncia de que o Sr.
82
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
João Sorbile, era um invasor de suas terras e que aquela pretendida proposta de doação era mais uma tentativa de expulsar
os APURINÃ das terras que habitam desde tempos imemoriais
(AJACRE, 1977, p. 01)
No momento em que foram procurar os direitos à terra,
os Apurinã estavam cientes das intenções do Cabeça Branca, e
dispostos a resistir a suas investidas, procurando de imediato a
AJACRE, visto que era o órgão ligado a Funai mais próximo de
sua residência. Diante da problemática exposta pelos nativos, os
ativistas da AJACRE fizeram um levantamento dos registros do
imóvel rural e pontuaram algumas atitudes do grileiro contra os
nativos. Dizendo que Sorbile:
Destruiu todos os roçados dos índios. Queimou os seus canaviais, destruindo-os completamente; Proibiu os APURINÃ a
fazerem novas derrubadas ou mesmo de plantaram suas roças;
Aterrorizava os índios com tratores que investiam de encontro as frágeis construções de suas casas ameaçando derruba-la;
Com grupos de pessoas armadas e sob sua chefia, fez cerco a
casa do Tuxaua dos APURINÃ, ameaçando de morte caso não
se retirassem daquelas terras; Trouxe ao local o encarregado
do Cartório de Boca do Acre Sr. Antonio Remedio,(sic) para
intimidar os Índios e forçar a retirada das terras; Trouxe também a aldeia a Polícia de Boca do Acre, para intimidar os índios
(CARVALHO, 1977, p. 02)
Foi através destes pontos que a equipe da AJACRE procurou,
saber quem pertencia a terra em questão. O processo de comprovação
para saber se os Apurinã eram os verdadeiros donos do seringal foi
complexo, diferente da grilagem – os registros forjados por Sorbile
– agora já não basta a palavra dos Apurinã, seria preciso ter uma
sequência de estudos históricos antropológicos para comprovar a
existência dos nativos naquela região.
A equipe da AJACRE, informam aos indígenas que poderiam
plantar suas roças e que se Sorbile os impedissem, era para
comunicar à Superintendência. Não demorou e os nativos foram
impedidos pelo grileiro, e, logo avisaram à Ajudância. Porfírio
e sua equipe o encontram na capital do Acre e convidaram-no
83
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
a comparecer à sede da Superintendência, para conversar sobre
as terras invadidas; mas Sorbile alegou ter recebido ameaças de
morte e negou-se a comparecer para prestar esclarecimentos.
Diante dessa ação, coube aos ativistas oficializarem a denúncia à
Polícia Federal, que tomou conhecimentos dos fatos e oficializou
a intimação ao Cabeça Branca. O grileiro ainda foi informado que
os indigenistas iriam visitar o local acompanhados de dois agentes
da PF para garantir a segurança e a continuidade do trabalho nas
plantações de roças.
Sabendo da visita, Sorbile tentou impedir os indigenistas de
chegaram ao local, contratou homens para realizar os serviços,
como se observa no tacho do relatório:
Seguimos para o local em avião fretado acompanhados dos
índios e dos dois agentes de Policia Federal. Quando a aeronave que nos conduzia sobrevoou a pista de pouso do KM 45,
foi notado que se encontrava impedida para aterrisagem de
aviões. No meio da pista encontravam-se caminhões, tratores,
carretas colocadas de tal forma que obstruía completamente a
pista de pouso [...] A pronta interferência dos agentes de Policia
Federal, evitou que fosse concretizado o plano daquele grupo
de “jagunços” de João Sorbile, houve correrias e a Policia desarmou todo o pessoal, trazendo presos para Rio Branco, os
líderes do grupo para prestarem depoimentos. Confessaram
ter sido ordem do Sr. João Sorbile, a interdição ou obstrução
da pista e que visava impedir a nossa ida até a aldeia dos índios
Apurinã (CARVALHO, 1977, p. 04)
Provavelmente se a equipe indigenista estivesse sem a guarda
da Polícia Federal sofreriam ataque pelos homens de Sorbile. Um
cenário complicado, pois, se o grileiro já estava contra-atacando
a própria comissão da AJACRE que estava acompanhados de
Policiais, como eles estariam se comportando com relação aos
nativos? Portanto, é evidente, ao rejeitarem a proposta de irem
para outro lugar, os Apurinã mostram-se resistentes e buscaram
exercer seus direitos em defesa dos seus territórios, fato que deixou
o invasor revoltado.
Com a escolha feita, os nativos tiveram prejuízo nas suas
plantações e ainda foram ameaçados de expulsão. Mas, não
84
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
cederam espaços e continuaram ocupando as terras, agora apoio
da AJACRE. Isso é motivo de manchete do jornal O Estado de São
Paulo, publicado em 11/12/1976, noticiando que:
A direção da Funai apoiou inteiramente a atitude tomada pelo chefe da ajudância do órgão no Acre, Jose Porfirio de Carvalho que
na semana passada ordenou a ocupação, com o auxílio de agentes
federais, de uma fazenda localizada junta a BR 317, em área pertencente ao índio apurinã. Esta informação desmente a acusação
feita pelo fazendeiro paulista João Sorbile, que se diz proprietário
daquela terra, e de que a medida tomada por Porfirio tinha sido
motivada por uma “questão pessoal” (O.E.S.P, 1976, p.01)
O título da matéria era “Apoiado a ocupação da fazenda”, observa-se
que não se tem os indígenas como protagonistas de seus atos, apesar de,
nos relatórios de Porfírio e os ofícios da Ajudância, afirmarem ter sido
os índios que resistiram e procuraram os seus direitos à terra e estavam
dispostos a lutar se preciso fosse. Durante os estudos realizados nas
terras comprovou-se que houve fraude na compra, fora comprovado
que o Paulista havia cometido grilagem; o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA tomando conhecimento dos
fatos, anulou todos os registros de venda daquelas terras.
Diante das comprovações, Sorbile passou a agir de forma
violenta contra os Apurinã, conforme descreve o relatório:
Na ocasião também tomamos conhecimento de mais uma atitude violenta de Sorbile contra os índios, sendo que desta feita
utilizou o sistema de aterrorizar os silvícolas usando tratores que
à guiza (sic) de retirar piçarra, investia os tratores de encontro as
casas dos Índios. Agravando-se o fato por existir na ocasião, dentro das casas dos Índios, um bebê índio de 6(seis) meses de nascido gravemente enfermo e que segundo os índios veio a falecer
devido ao medo e ao susto causado pelo barulho insistente e estridente do trator de Sorbile quando este investia de encontro as
casas dos índios. Os índios chegaram a apelar para o bom senso
do tratorista e este não acolhia o apelo dos índios continuando
na sua tarefa criminosa (CARVALHO,1977, p.06)
O documento ainda relata que esse fato deixa os indígenas
revoltados, dispostos a revidarem aos ataques do invasor. Depois
85
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
da ida da Ajudância a Manaus para procurar uma solução à
disputa daquelas terras pertencentes ao estado do Amazonas, os
indigenistas se reuniram com o superintendente da Polícia Federal
em Rio Branco/AC, onde se planejou as medidas a serem tomadas
para a expulsão de Sorbile das terras dos nativos; onde ficou
acertado os seguintes pontos:
(a) A Funai oficiaria ao Sr. João Sorbile uma intimação para
retirar-se da área indígena no prazo de 24 horas; (b) A Polícia
Federal daria todo apoio no sentido de ser cumprida a nossa intimação; (c) A FUNAI enviaria um funcionário ao local
acompanhando os agentes que se deslocariam visando garantir
as nossas medidas (CARVALHO, 1977, p. 07)
Depois dos estudos antropológicos realizados na área
comprovou-se que eram os indígenas os antigos moradores. A Funai
decide definitivamente expulsar o grileiro do seringal. No decorrer
dos acontecimentos, o impostor já tinha comprado dois tratores,
construído uma pista de pouso para avião monomotor e montado
uma serraria21. Ao ver que teria de deixar área em 1977, o grileiro
propôs à Funai que comprasse aquelas benfeitorias, mas pelos que
se extraiu das análises dos arquivos, a proposta foi rejeitada. Os
nativos conseguiram, portanto, recuperar suas terras, e depois da
saída dos homens de Sorbile, voltaram às suas atividades.
É importante que se tenha compreensão de que João Sorbile
havia grilado uma área bem maior que a do seringal Aripuanã
também pertencente aos indígenas, e a teria vendido a outros colonos.
Entretanto, a área “recuperada” em 1977, não abarcou toda a terra
pertencente aos Apurinã, ficando de fora o castanhal e uns antigos
cemitérios, onde estavam os ancestrais e os espíritos pertencentes
a cosmologia da etnia (Apurinã, 2019). Isso é problemática para
outros estudos, no entanto, do que já foi visto até aqui, a respeito da
atuação dos Apurinã em defesa de seu território, permite-se tecer
algumas considerações a respeito dos conflitos e resistência desses
imemoriais habitantes do km 45 na Rodovia BR-317.
21
As especificações dessas benfeitorias feitas por João Sorbile, no seringal Aripuanã
se encontram no relatório produzido pela (AJACRE, 1977, p. 09), quando esta
superintendência era presidida por José Porfírio Fontenele de Carvalho.
86
Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre...
Considerações finais
A resistência e os conflitos estiveram presentes no cotidiano
dos nativos desde o início da colonização, seja contra as tentativas
de controle da mão de obra, seja na luta pela terra. A região do
Médio Purus foi maciçamente explorada na época da extração do
látex, e neste contexto, os povos da floresta foram brutalmente
afetados. No caso dos Apurinã, foram desarticulados socialmente e
forçado a abandonarem a língua materna. Conforme destaca Edna
Dias dos Santos:
O processo de ocupação da região do Purus, a partir da década de 1870, forçou os Apurinã a se “tornarem” seringueiros,
castanheiros, entre outras ocupações de interesse das frentes
extrativistas. Esse engajamento na exploração extrativista desarticulou a organização social própria desse povo. Os que sobreviveram foram forçados a abandonar a cultura Apurinã e
até mesmo a língua materna (SANTOS, 2002, p. 20)
É notável que a inserção dos Apurinã na exploração colonial
causou grandes perdas para etnia. No entanto, a resistência foi
constante, lutando pela vida, por terras e por liberdade, ou seja, a
exploração não se deu sem conflitos.
Na segunda metade do século XX, com os “projetos
racionais”pensados para desenvolver a Amazônia os povos indígenas
foram bruscamente atingidos, seja com as grandes obras, ou com
as invasões de terras para a criação de grandes fazendas. É nestes
cenários que João Sorbile tentou se apropriar das terras dos Apurinã,
moradores do km 45 da BR-317, além do Seringal Aripuanã, o invasor
ainda grilou cerca de 341 mil ha, que também era terra dos nativos.
Com esta pesquisa foi possível compreender o processo de
resistência e dos conflitos Apurinã, em Boca do Acre, no período de
1972 a 1978, na busca da manutenção dos territórios. Identificou-se
as estratégias do invasor João Sorbile, para se instalar nas terras
dos nativos. Compreendeu-se ainda, o processo burocrático de
retomada da terra, de forma legal, com estudo e analise técnicas
por agentes da Funai.
Apesar da pesquisa tratar de eventos ocorridos há 50 anos, não
significa dizer que acabaram as tensões naquela região; se em anos
87
Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos
anteriores os nativos lutaram pela definição dos territórios, ainda
hoje seguem lutando para proteger aquele espaço da expansão da
sociedade envolvente. Neste sentido, a investigação colabora para
a compreensão da questão ambiental e indígena contemporânea, a
partir de eventos ocorridos no período de chumbo no Brasil.
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04/05/1978.
mata
índio
e
tensão
agrava-se.
São
Paulo,
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09/08/1979
88
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90
A poética da natureza: o pensamento
ecológico nos escritos de Thiago de Mello22
Manoel Roberto de Lima23
Yomarley Lopes Holanda24
Princípio...
A
Amazônia é o espaço mais visado na agenda
contemporânea por sua centralidade nos debates sobre
conservação ambiental. Os recursos extraídos do seu solo, rios,
florestas e animais, atiçam a cobiça de multinacionais, grandes
madeiras, mineradoras, laboratórios ávidos em desvelar os seus
segredos. Os produtos retirados da região rendem milhões aos
bolsos de uma meia dúzia de homens poderosos, enquanto a
população assiste a destruição das reservas indígenas e extrativistas
por descaso de políticas ambientais frouxas e entreguistas.
O mesmo cenário, agora pela ótica dos povos originários, é
cravejado de mística telúrica, encantamento e beleza. A biodiversidade
é tratada como dádiva da natureza, sem o olhar predador do lucro a
qualquer custo das empresas capitalistas. É o berço de uma poética
viva, pulsante e militante. Destes barrancos, vem o grito de Thiago
22
Este texto é um recorte importante do TCC do egresso do curso de História do
CEST/UEA Manoel Roberto de Lima, defendido em dezembro de 2021, e orientado pelo professor doutor Yomarley Holanda. Além das considerações da banca
de arguição, o texto traz ainda uma sensível ampliação do seu horizonte teórico
para fins de publicação. Vale ressaltar que a sua seleção para compor esta coletânea do curso de História da UEA se deve a dois motivos que se coadunam: a) ele
demonstra a nossa diversidade temática, de objetos e problemas de pesquisa b)
seu arcabouço teórico-metodológico possui um desenho interdisciplinar, pautado
em uma dialogia com outros campos do conhecimento, a saber a literatura e os
estudos da complexidade.
23
Poeta e graduado em Licenciatura em História pela UEA/CEST.
E-mail:
[email protected]. Contato: (97) 984079430.
24
Professor Adjunto do curso de História e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UEA/CEST. Mestre e doutor em Sociedade
e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM).
E-mail:
[email protected]. Contato: (97) 991639505.
91
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
de Mello25, um ativista ambiental e dos direitos humanos. Este é o
cerne da presente pesquisa: se lançar pelos escritos líquidos do poeta
de Thiago de Mello, um homem-poeta amazônico, ativo e atento a
vida dos povos das águas, com o objetivo de desvelar as ressonância
de um pensamento ecológico em sua poética. Em suas letras líricas
a Amazônia é vislumbrada em sua dinâmica e profundidade,
demonstrando a necessidade de uma convivência equilibrada com a
natureza, descontruindo a dicotomia separatista de vida humana em
relação a dos demais seres vivos, desfazendo a falsa ideia dos recursos
naturais infindáveis e denunciando o seu uso predatório. Nele vemos
como a vida de modo geral está conectada com o meio ambiente.
A obra de Mello é um manifesto pela mudança do viver humano,
superando a ideia vinda do iluminismo, o antropocentrismo, com
a humanidade no centro usufruindo de todas as benesses do meio
natural. Na nova concepção paradigmática proposta pelos estudos
ecológicos, a espécie humana é uma malha da teia, é sistema
dentro dos muitos outros que existem, sendo parte do complexo
que compõe a Natureza, entra em cena o Ecocentrismo (CAPRA,
1997), isto é, o planeta no palco mais alto do cantar da existência.
Guattari (1990, p.9) sublinha que essa superação dos modos
exploratórios utilizados expressa a crise ecológica contemporânea,
um problema planetário ou sistêmico que afeta todas as nações. Na
perspectiva deste autor a crise encontrará sua atenuação com a
construção de uma relação de saberes, povos e governos, levando
em consideração cultura, políticas e as sociedades.
Do ponto de vista teórico-metodológico e, para além do
estudo ecológico da obra, analisamos a produção poética de Mello,
compreendendo a materialidade presente no seu imaginário. A
água, o elemento mutável, sensual, místico, invade a sua imaginação
criadora, como escreveu Gaston Bachelard (1997) em sua obra A
água e os sonhos.
A insubmissão é a marca da poesia de Mello, sua arte sempre
se preocupou com a vida, a dignidade, a liberdade e os direitos
humanos. Foi um dos principais intelectuais opositores ao Regime
25
Amadeu Thiago de Mello (Barreirinha, 30 de março de 1926 — Manaus, 14 de
janeiro de 2022) foi um poeta, jornalista e tradutor brasileiro. Considerado um
dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da
literatura da Amazônia.
92
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
Militar instalado no Brasil após 1964. No conceito de poesia
insubmissa trazido para este texto a partir da concepção de Cássia
Nascimento (2014), encontramos no poema Os Estatutos do Homem,
toda revolta e insurreição deste poeta.
Adotamos uma metodologia dialógica e complexa para
enveredar pelos escritos de Mello e outros autores, com base numa
ecologia de saberes de Santos (2007), partindo da poética de Mello
como linha central da análise, entrelaçando com o Pensamento
Ecológico em Capra (1997), nosso arcabouço para as discussões
sobre ecologia, natureza e mudança no paradigma da vida humana.
A voz de Ailton Krenak (2020) tratando sobre a ligação profunda
dos indígenas e da humanidade com o meio natural, o Bem Viver,
também fertilizará a nossa investigação.
Esta nossa tessitura, como diz Morin (2007, p.13) no sentido
de “tecer junto” diferentes campos do saber parte das seguintes
obras de Mello: Amazonas pátria da água, Os Estatutos do Homem e
Poemas preferidos pelo o autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75
anos do autor. A escolha se deu pela sua riqueza de detalhes, o autor
faz uma viagem pela geografia, cultura, saberes da Amazônia,
enaltecendo o indígena, o caboclo, a natureza.
O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade
é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituições
heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso
mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta
com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da
desordem, da ambiguidade, da incerteza.
A concepção moriniana da tessitura ilumina não somente o
nosso caminho metodológico, vai mais adiante, configurando o
próprio pensamento de Mello e dos autores que conversamos nesta
pesquisa. É tipo uma aventura em campo aberto, uma vez que a
complexidade se faz uma tentativa de operar com a realidade, com
a ciência e com os saberes diversos sem a pretenção de domínio
absoluto deles, o que interessa é a dialogia profunda que aproxima
ao invés de se afastar por causa das diferenças.
93
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
É uma pesquisa de cunho bibliográfico, mas não somente,
mergulhamos na poética amazônica o que desnorteia quaisquer
tentativas de adoção de uma metologia fechada, como já havia
nos ensinado Paes Loureiro (2001). Aqui a o chamado pensamento
ecológico emerge como paradigma contemporâneo, a natureza, a vida
dos povos das águas e o modo de como as sociedades capitalistas
usam os recursos naturais, serão colocados em evidência crítica.
Entre poemas, crônicas e prosas poéticas buscamos a proposição
de mudança do existir soberano humano para o coexistir em
conjunto, sendo parte da eco-organização maior do planeta , e o poeta
faz isso usando as culturas amazônicas como canto de esperança,
eis a nossa inspiração maior. A literatura, nesse cenário, floresce
como uma possibilidade metarreflexiva e, portanto, extremamente
necessária, conforme postula Ítalo Calvino (1995), ela deve ajudar a
tecer conjuntamente a diversidade dos saberes no fio da narrativa.
Queremos dizer, à luz de Morin (2007), Paes Loureiro
(2001) e Calvino (1995) que se pode encontrar outros caminhos
para o conhecimento que não somente pelo veio da ciência
demadiadamente positiva. Outros discursos nos levam a tecer
outros saberes heterogêneos e interativos, é assim que a literatura,
em especial a poesia, se caracteriza, suas possibilidades são
praticamente infindáveis, sua mobilidade de sentidos é, nas
palavras de Calvino (1995, p.84), “uma dessas mínimas porções nas
quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um sentido, que
não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade
mineral, mas tão vivo quanto um organismo”.
Capra e Thiago de Mello ou o desenho de um
pensamento ecológico
Em seu famoso livro O ponto de mutação, Capra (1995)
postula sobre as profundas mudanças científicas ocorridas nas
primeiras décadas do século XX, novos conceitos que mudaram
completamente a nossa visão de mundo, uma vez que passava-se
de uma concepção mecanicista baseada nas ideias de Descartes e
Newton, para uma visão holística, ou seja, mais abrangente que
refere-se a um entendimento da realidade em função de totalidades
94
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
integradoras. O autor chega a aproximar essa nova concepção
às visões místicas de outras culturas, principalmente no que diz
respeito aos seus princípios ecológicos.
O pensamento ecológico atravessa o espirito humano,
navegando pelas sensações individuais com o cosmo, com seres
ancestrais, com o mito, no sentido mitológico de explicar os
acontecimentos, trazendo o saber tradicional para o centro do
debate rompendo com a ideia do cartesianismo que afastava
qualquer possibilidade de abertura nos estudos para os saberes
fora do nicho das ciências. Neste sentido, é uma percepção,
observadora do sentimento da humanidade com a terra, colocando
a natureza em um lugar que só o conhecimento cientifico não
poderia entender, é o sentimento de fazer parte do meio. Nas
palavras de Capra (1997, p.17),
(...) a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual
ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem
uma sensação de pertinência, de conexidade, com o cosmos
como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda.
A compreensão do humano sobre a sua interdependência em
relação aos outros seres vivos é a pedra angular do pensamento
ecológico. É uma grande viragem epistêmica sem dúvida, já que
agora o pensamento humano toma consciência sobre sua existência
e a existência da natureza, como se ambas fizessem parte de uma
gigantesca teia da vida. Aqui conectamos sensivelmente Capra e a
poesia de Thiago de Mello no sentido de que na ecologia profunda
que percebemos nesses escritos a natureza é possuidora de um valor
intrínseco para além de seu valor de uso pelos seres humanos. Ora,
em sua poesia o nosso autor lança luzes sobre as vivências dos povos
amazônicos e sua íntima relação com o meio ambiente, homem,
águas, bichos e matas monstram-se tão próximos, revelando no
seu versar poético a importância dessa mutualidade entre os seres,
sobretudo quando a lírica de Mello mergulha na Amazônia, pátria
da água, ela é liquido primordial da existência, nossa artéria aorta
das sociedades amazônicas.
95
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
O elo entre a perspectiva de Capra e a poesia de Thiago de
Mello é evidente, ambas tecem uma concepção da natureza maior
que espécie humana, conduzindo a uma virada na interpretação do
lugar central da humanidade sobre o meio natural. E mais: ambas
apontam como possível caminho para esta crise planetária uma
mudança radical da percepção, das ações e dos valores humanos
em relação à natureza, uma verdadeira mudança de paradigma.
A ecologia de Capra olha para natureza como centro da vida no
planeta, revelando a complexidade da Teia da vida, as múltiplas
inter-relações dos saberes e dos seres, dos acontecimentos, traçando
uma “(...) visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda
a natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica
ou espiritual, de que a natureza e o eu são um só” (CAPRA, 1997,
p. 20). Em Mello desvela-se esta mesma inter-relação na vida do
homem amazônico, no viver dos povos e seres amazônicos, na
proximidade da floresta com os que a habitam, entre humanos,
animais, plantas e etc., como se todos fossem notas musicais da
mesma melodia, uma música da vida.
As questões destacadas por Capra e Mello compõem uma nova
forma de se refletir sobre as políticas ambientais, visto que versam
sobre determinadas propostas de resolução para os problemas
causados pela modelo de extração predatória dos países poderosos,
como lidam com os recursos naturais, a devastação incessante da
terra e das águas, expondo explicitamente uma compreensão que
os “(...) recursos da natureza não são infinitos e que a degradação
da natureza é ocasionada pela ação capitalista e globalizada do
homem, surge uma crítica radical com relação ao tratamento que o
homem tem dado à natureza” (CERDEIRA; TORRES, 2018, p. 3).
O poeta demonstra sua aflição sobre o descaso com a Amazônia
em verso poético, metaforizando a vida como barco encalhado
devido a vazante das águas em terras de várzea, representando
o abandono deste lugar, coloca os povos que a residem como os
únicos a empurrar-lhe para flutuar, direcionando-a para águas
límpidas, fora das sujas águas de exploração devastadora. Segue
o poema:
96
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
Como os caboclos empurram um batelão que dormiu
atracado na beira da várzea e amanheceu encalhado
porque de noite as águas desceram demais, assim nós
te empurramos para o futuro, encalhada Amazônia,
pelos pântanos da nossa indiferença, sobre os cedros
balofos da retóricaque mal nos ajudava a te aquecer
(MELLO, 2005, p. 17).
A propositura da superação dos modos exploratórios
utilizados mundialmente ao longo da história trazem a lume a crise
ecológica contemporânea, um problema planetário ou sistêmico
que afeta todas as nações e povos. Na perspectiva ecológica esta
crise encontrará sua atenuação com construção de uma relação
entre saberes, povos e governos, levando em consideração a
cultura, a políticas e as sociedades. Guattari (1990, p.9) explica
esta ampla união, podendo ocorrer apenas se for em uma escala
global, numa revoluação política, cultural e social, modificando os
motivos da produção de bens materiais e imateriais, abarcando as
sensiblidades, desejos e inteligência humana junto com o respeito
a todos demais seres vivos.
A costura dessa ecologia entrelaçada em Capra, Mello e
Guattari abraça uma plêiade de saberes, questionando os modelos
segregadores da ciência pautada no cartesianismo, afinal as
temáticas ecológicas e suas questões não podem ser entendidos
em nichos específicos, mas sim um diálogo entre saberes, por
sua complexidade. Além de ouvir a voz das pessoas, testemunhas
oculares deste processo, os ribeirinhos, que consistem em indígenas
e não indígenas que residem na região de floresta da Amazônia.
Suas experiências, conhecimentos, mitos, lendas fazem parte desse
conjunto de saberes que devem ser apreendidos para se entender a
profundez da coexistência Homem e Amazônia.
A tessitura amazônica de uma ecologia dos saberes
O conceito de “ecologia de saberes”, de Boaventura Santos
(2007), se articula com a ecologia profunda e a poética de Mello
por intermédio de uma postura transgressora de pensamento que
considera os mais diversos saberes, tal propositura diz respeito
97
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
ao fato de que cada um deles não responde completamente aos
fenômenos humanos e não-humanos. Porém, é justamente dessa
inscostância, dessa incompletude entrelaçada que advém certa
clareza das coisas do mundo, considerando a oralidade indígena
e a ciência não como modelos epistêmicos antagônicos, mas sim
como saberes complementares.
A ecologia de saberes expande o carácter testemunhal dos conhecimentos de forma a abarcar igualmente as relações entre
o conhecimento científico e não-científico, alargando deste
modo o alcance da inter-subjectividade como interconhecimento e vice-versa. (SANTOS, 2007, p. 29-30)
Assim, o reconhecimento dos saberes antes esquecidos, postos
às margens pela ciência dura, agora constitui uma olhar mais sensível
aos fenômenos, eis o motivo pelo qual tal percepção dialógica nos
permite olhar a natureza pelas lentes da poesia. Olhar se sobrepõe ao
simples ver, o olhar do poeta penetra a intersubjetividade amazônica.
Muito parecido com a percepção que os povos originários possuem
da terra, rios, lagos, igarapés, por onde navegar, em que época é
melhor plantar o roçado, eles sentem as perturbações do bioma,
notam as diferenças entre enchentes e vazantes.
Não é difícil conectar tais conhecimentos ancestrais com a
expressão poética de Thiago de Mello, ela se manifesta poeticamente
como o saber dos indígenas e povos tradicionais da Amazônia,
bebe em seus ensinamentos e anseios; o poeta ouve suas vozes,
seus cantos e seus murmúrios, transcrevendo em sua poesia o grito
de sofrimento dos bichos e das plantas. A leitura de sua poesia nos
arvora pelos poderes “milagrosos” da mata, entre estes o liquido
anti-inflamatório extraído da árvore da copaíba; o poder do guaraná,
regenerador das células do celebro e um ótimo energético, o chá
da casca da sacaca que ajuda a tratar problemas do fígado. O poeta
transcreve o efeito medicinal das plantas da floresta amazônica,
embasado nos tratamentos feitos pelos indígenas, observa toda
sabedoria de milênios de convivência com a mata e os espíritos.
Não seria possível de entender a natureza amazônica sem o
olhar dos que a conhecem profundamente. O fio da poesia vai se
envolvendo entre mitos, ciência e arte. Todas na mesma tecedura
poematizante, conspirando para reconhecer o mistério que reside
98
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
no espirito do homem e mulher amazônidas. A ecologia dos
saberes fecunda uma relação sistêmica, é tipo um “(...) pensamento
‘contextual’; e, uma vez que explicar coisas considerando o seu
contexto significa explicá-las considerando o seu meio ambiente,
também podemos dizer qutodo pensamento sistêmico é pensamento
ambientalista” (CAPRA, 1997, 30-37).
A tecedura do conceito de ecologia de saberes na conjuntura
amazônica abre uma fenda sobre o lugar de fala dos nativos
no cenário contemporâneo em se tratando dos temas sobre
conservação e sustentabilidade, na medida em que o vínculo
humano com o bioma “está muito além de uma relação intrínseca e
maravilhosa com a natureza, mas de questões sociais, econômicas e
ecológicas que interferem em sua vida” (CERDEIRA, 2017, p. 31).
Esta perspectiva dos povos originários luta por espaço há muito
tempo, vem pedindo passagem, deseja ser rima intensa no versar
sobre os caminhos por onde irão levar as políticas para região,
para o planeta. Os processos históricos demonstram que não foram
poucos os projetos fracassados que se fubndamentaram unicamente
no saber positivo e impositivo ocidental, o que não foi sucficiente
para desenvolver sustentavelmente a região, como exemplos basta
citarmos a Hidrelétrica de Balbina; o cultivo de dendê em Tefé pela
EMADE (Empresa Amazonense de Dendê); a ferrovia Madeira-Mamoré.
Todos estes e tantos outros mais, foram executados sem ouvir os
habitantes da região, desconhecendo as particularidades do solo,
o clima, os tipos de plantas e etc., causando prejuízos financeiros e
ambientais incalculáveis.
Os conhecimentos dos povos originários foram hierarquizados,
preteridos por supostos esquemas positivos que os consideram
fora do cânone. O pensamento cartesiano não os reconhecem
porque ele não se posta diante de edifícios epistêmicos coloniais já
em franca decadência, pois desvendar a Amazônia, suas culturas e
sua natureza exige precrustar outras filosofias que compartilham
dos saberes ancestrais, contemporâenos, poéticos e científicos em
uma verdadeira teia de saberes, talvez estejamos caminhando para
aquilo que Boaventura Santos (.....) chama de Epistemologia do
Sul. Então vejamos:
99
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
[ ] a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do
paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do
conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se
funda (SANTOS, 2010, p. 41).
A citação evidencia que vivemos num período de transição
marcado por uma profunda crise nos alicerces do edifício
científico cartesiano totalitário, trata-se de um tempo de rupturas
caracterizado pela ambigüidade e complexidade difíceis de
compreender, daí a necessidade de regressarmos às coisas simples,
à formulação de questões elementares, mas essências (tal qual
propunha Rousseau), atentarmos para os princípios morais,
virtuosos e éticos do trabalho científico. Este nosso tempo de crise
é caracterizado pela discrepância entre perguntas fortes e respostas
fracas em que a ciência tornou-se força produtiva do capitalismo
engendrando um processo de monopolização epistemológica.
Questões como a distribuição desigual da riqueza, a crise ecológica
e a eclosão dos conflitos bélicos são hoje desafios para os quais a
ciência moderna não oferece respostas satisfatórias, muitas delas
a própria ciência havia alardeado como conquistas quando na
verdade nunca se concretizaram, principalmente nos países do Sul.
As outrora vozes silenciadas, os sujeitos alijados da história,
de suas próprias histórias, os grupos sociais escamoteados pelas
forças de dominação política, conseqüências nefastas desse ciclo
que agora se encerra (é inegável que a ciência moderna teve
sucesso durante muito tempo em submergir as subjetividades dos
sujeitos, seus sentimentos, emoções, conquistas e sonhos), devem
receber a palavra autoral, ao cientista inserido nesta nova ordem
caberá realizar a “reescavação” das tradições lançando luz sobre
esses sujeitos e seus processos participativos efetivos na construção
do conhecimento.
O que se depreende dessa tomada de consciência é a aurora
de um tempo de possibilidades engendrado por uma nova
aventura científica mais plural, viva e polissêmica cujo paradigma
chamado emergente também é um paradigma social, uma vez que
seu princípio catalisador é uma concepção humanística que deve
orientar a fusão entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais.
100
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
Neste processo a pessoa é, ao mesmo tempo, autor e sujeito do
mundo, florejam conceitos e categorias quentes aptas a derreter as
fronteiras entre as disciplinas onde a antiga ordem cartesiana havia
encerrado a realidade.
Emerge daí uma ciência analógica e autobiográfica pautada
numa “situação comunicacional” e ainda eivada pelo hibridismo,
intertextualidade e intersecções que nos permitirá um conhecimento
total a partir de constelações teórico-metodológicas (o paradigma
emergente é transgressor e imaginativo), de matizes estéticos
próximos aos da criação literária e artística os quais não teremos
embaraço ou medo algum de assumir, e é justamente isso que
fazemos neste nosso texto quando chamamos um poeta amazônida
para nos ajudar a pensar o contemporâneo e suas complexidades.
O ecossistema amazônico como teia da vida
Cerdeira (2020), também estudando a poesia de Thiago de
Mello no contexto da abordagem dos processos socioculturais
na Amazônia, e entrelaçando um diálogo interdisciplinar entre
a Literatura, Filosofia e Antropologia, assinala as grandes
contribuições poéticas ao pensamento das questões ambientais na
Amazônia. O mesmo autor escreve que.
Na compreensão dos sistemas vivos em Capra (1996), tidos
como teias, o imaginário literário se compõe como tecido em
redes de vida. As redes vivas e as redes imaginárias se interconectam entre si no processo de formação da arte e da cultura,
interagindo nas relações sociais, ambientais e subjetivas (CERDEIRA, 2020, p.16).
Trata-se de uma abordagem sistêmica que interliga os estudos
culturais aos sistemas ambientais na Amazônia, espécie de tecido
vivo em que a literatura, ou melhor, o imagiário literário interage
em redes comunicativas com a sociedade, a cultura, o meio
ambiente. Assim os conceitos ecológicos dançam com e a partir das
representações literárias, no caso da poética de Thiago de Mello: o
ecossistema amazônico, portanto, não se circunscreve ao seu bioma
natural, mas também enovela-se com as questões socioculturais.
101
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
O poeta diz: “Rio fala com o homem. O rio diz o que homem
deve fazer” (MELLO, 2005, p. 32). Mello deslinda neste excerto
que a natureza conversa com a humanidade personificada no
próprio rio, declarando-lhe que há um elo familiar entre ambos.
É um diálogo arrebatador, pois nos leva para uma antiga aliança
entre homem/natureza que a modernidade tratou de quebrar com
sua sanha pelo domínio e exploração.
O lugar de produção poética de Mello garante-lhe a
contextualidade, uma experiência marcante para compõe o seu
Eu-lírico, substância para sua lírica crítica: a cidade riberinha,
o entorno de comunidades rurais emolduradas pela floresta e
pelos lagos e rios, especilamente o rio Andirá com a sua mística
ancestral. A face amazônica encontra no veio poético de Mello
um veículo privilegiado de expressão, ecoando para além de sua
Barreirinha (AM) natal. Deste modo é fácil compreendermos os
motivos poéticos de Mello que se movem para além da percepção,
mas sobretudo em sensações e afetações experienciadas no lugar,
uma poesia florescida nas relações primeiras com o mundo
circundante que a escrita vai cuidar de registrar, conforme pensa
Cerdeira (2020, p.59), fica “clara a nossa definição de lugar como
catalizador de símbolos, valores, crenças e significados que tomam
forma através da literatura. Trata-se da junção desses elementos
que constituem imagens por meio de signos e esses signos em
conjunto formam paisagens. O poeta nos fala de uma proximidade
quase umbilical partilha que nos convence que o viver de um está
vinculado à existência do Outro. É o compasso da canção da vida,
em que cada Ser participa entoando seus acordes, um coral entre
vozes que compartilham o mesmo espaço vital. A floresta alimenta,
cuida e é a morada dos seres, bichos que não são mais espécies
separadas, são irmãos, filhos da água, da terra, da floresta. Todos
sentem os enfermos do meio ambiente, estão interligados.
Nas sociedades indígenas tem-se essa compressão da natureza
viva e com sentimento, falando suas dores aos povos, inumeras
pesquisas antropológicas evidenciam que o pensamento indígena
não navega numa Epistemologia Cartesiana fechada, são outras
lógicas. Fritjof Capra (1995, p.39) nos diria que esses povos possuem
certa “sabedoria intuitiva (...) em que a vida é organizada em torno
de uma consciência altamente refinada do meio ambiente”. Nos
102
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
escritos de Krenak é possível notar o laço familiar entre a sua etnia
e o Watu, o nome dado ao Rio Doce na sua língua materna. Ele diz
que o Rio é,
(...) o nosso avô. O rio Doce, Watu, nós cantamos para ele, nós
conversamos com ele e desenvolvemos uma consciência, desde
pequeno, que aquele ser é vivo, que ele tem personalidade, ele
tem humor. O Takukrak, a montanha que está aqui a minha esquerda, eu observei hoje de manhã. Impressionante gente, porque o semblante dele hoje é de luto. A montanha está sentindo
o que nós estamos sentindo ou nós estamos nos espelhando no
que ela está sentindo. Minha natureza é de achar que ela influencia a gente. Quando ela está com o rosto triste, é ela que está
fazendo a gente ficar triste (KRENAK, 2020, p. 25).
Evidencia-se uma vez mais uma dialogia com o natural, a
montanha, o rio, demonstram desejos e vontades. Isso também
acontece com os povos não indígenas, não da mesma forma, mas
quando se ouve a voz dos meteorologistas, biólogos, ecologistas,
quando falam das mudanças extremas nos biomas, no clima e na
extinção de espécies, eles também são os porta-vozes da natureza.
Assim como nessas imagens amadas de Krenak (2020) e seu
Watu, Thiago de Mello também evoca as águas enquanto veredas
de esperança pelas quais palmilha sua aventura poemática na
Amazônia, em sua igara lírica ele carrega consigo os devaneios de
liberdade, vida, sonho e preservação da natureza. É um vínculo
afetivo que nas palavras de Gaston Bachelard (1988, p.10), “é neste
sentido que o poema pode congregar os devaneios, reunir sonhos
e recordações”.
Na letra harmoniosa e poética da toada Lamento de raça, do
compositor parintinense Emerson Maia, percebemos a malha da
vida dos irmãos filhos da Amazônia, se descortina a ligação do
sentir, quando as garras da destruição ferem a corpo da mãe,
atingem um a um. Canta-se as lagrimas dos filhos da floresta.
103
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
O índio chorou, o branco chorou/ Todo mundo está chorando/ A amazônia está queimando/ Ai, ai, que dor/ Ai, ai, que horror/ O meu pé
de sapopema/ Minha infância virou lenha/ Ai, ai, que dor/ Ai, ai,
que horror/ Lá se vai a saracura correndo dessa quentura/ E não vai
mais voltar/ Lá se vai onça pintada fugindo dessa queimada/ E não
vai mais voltar/ Lá se vai a macacada junto com a passarada/ Para
nunca mais, voltar/ Para nunca mais, nunca mais voltar/ Virou
deserto o meu torrão/ Meu rio secou, pra onde vou?26
A canção desenha como cada um dos seres é afetado pelas
queimadas, a melancolia de alguém vendo a árvore onde brincava
na sua meninice consumida pelo fogo, sua história, suas lembranças
como um lugar sendo reduzido a cinzas; o pássaro perdendo o seu
ninho, o seu lar, a onça pitada exilando-se em alhures por não ter
mais casa, todos perecendo atingidos diretamente pelas chamas da
dor e da cobiça.
A letra poderosa em sua mensagem traduz o entrançamento
das almas viventes neste lugar, o som destrutivo e desesperador
do fogo voraz devorando cada metro da mata, é uma vicissitude
abarcadora dos filhos e da mãe Amazônia, e termina com o
questionamento, se perguntando para onde ir, ilustrando o
fim da natureza, que ela é insubstituível. Esta canção popular,
assim como tantas outras que versam sobre a aniquilação dos
ecossistemas vivos, especialmente da Amazônia, ressoam na
poética de Mello, mensagens poéticas cantando a união das vidas
no mesmo chão, onde a mata fala e sente, o homem também, é
preciso ouvir, é o grito de socorro pelo futuro das espécies da
natureza amazônica.
A vivência com esta dinâmica da vida no seio amazônico levanos a mergulhar nos escritos de Edgar Morin (2015), suas reflexões
sobre existência no planeta, a composição da melodia que rege
toda a métrica dos seres evoca a impossibilidade de separar o viver
humano do viver dos outros seres. Com isso, é necessário incluir o
humano e não-humano, para permitindo “conceber a noção de vida
na sua plenitude. A vida para de ocupar um lugar intermediário
entre o físico e o antropológico: ela adquire um sentido amplo
que se enraíza na organização física e avança sobre tudo o que é
26
Toada “Lamento da Raça”, faixa do Cd “Lendas, Rituais e Sonhos” (1996), do
boi Garantido de Parintins.
104
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
antropossocial” (MORRIN, 2015, p. 29). O físico, as relações entre
espécies antecedem a vida social humana.
A vida existe dentro de um ecossistema junto de organismo
que o habitam. Mas o que seria um ecossistema? Para exemplificar
este conceito, seguimos as linhas de Morin (2015, p.36) que definiu,
“esse termo quer dizer que o conjunto das interações no centro de
uma unidade geofísica determinável contendo diversas populações
vivas constitui uma Unidade complexa de caráter organizador ou
sistema”. O ecossistema relaciona-se com as concepções de rede e
comunidade de Capra, estas foram tecidas para quebrar a visão de
fronteira, o olhar individual, a ideia da vida separada, partindo
então, para as relações internas dos seres no ambiente. Assim,
“uma comunidade ecológica como um conjunto (...) de organismos
aglutinados num todo funcional por meio de suas relações mútuas
(CAPRA, 1997, p. 34).
Os conceitos desaguam no mesmo estuário, organismos vivos
juntos em contato profundo, relacionando-se reciprocamente,
onde o conjunto, a união, as trocas, são maiores que o ser, cada
animal, planta, bactéria... são partes de um todo, nem mesmo
o homo sapiens sapiens foge dessa realidade. Edgar Morin (2015,
p.41-42) demonstra que desde o princípio as sociedades humanas
seguem as estruturas organizadas e impostas pela natureza,
como o mesmo chama de eco-organização. Este conceito se refere
“as interações, cooperações, associações, lutas, canibalismo
que destroem e constroem os sistemas naturais, agindo em
complementariedade, regulando a vida de todos os seres”. Muitas
civilizações obedeceram a uma lógica de plantar, colher, marcação
temporal pelo sol, outros pela lua. A vida em fluxo pelas vias do
meio natural. Completamente destoante do funcionamento do
viver nas cidades de concreto e aço, tão rápidas e mecanizadas.
Antes não desprendiam, tecendo
(...) sua ordem temporal baseadas nas ordens cósmicas e nos
grandes ciclos ecológicos. As sociedades arcaicas organizam-se
em “microcosmo” e dedicam-se a impor o seu ritmo organizacional ao da eco-organização. As sociedades históricas, desde a
origem, estabelecendo o calendário do céu para regular, por ele,
o calendário dos homens, organizam o tempo com base no modelo astral, juram obediência ás leis e decretos do Sol e da Lua
105
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
divinizados, cuja ordem, ao mesmo tempo real e mítica, torna-se
a estrutura da organização social (MORIN, 2015, p. 43-44).
Mesmo hoje, nos tempos da artificialidade, de pessoas
condicionadas pelas cidades com poucas árvores, comendo frutas
transgênicas, sem saber o sentimento de caminha por uma floresta,
a vida ainda obedece a natureza. A existência na Terra é uma teia
de fios intrínsecos, como nos ensina Capra, na sua obra A teia da
vida. Os fenômenos do planeta Terra como chuvas, secas estão
sempre conectados, há uma estreitacorrelação entre eles. Nesta
perspectiva a vida é muito maior que a espécie humana, é a relação
de todos os seres que vivem no mundo. Os biomas, ecossistemas,
redes e comunidades são membros da teia da vida. O conceito de
teia da vida:
(...) consiste em redes dentro de redes. Em cada escala, sob
estreito e minucioso exame, os nodos da rede se revelam
como redes menores. Tendemos a arranjar esses sistemas,
todos eles aninhados dentro de sistemas maiores, num sistema hierárquico colocando os maiores acima dos menores, à
maneira de uma pirâmide. Mas isso é uma projeção humana.
Na natureza, não há ‘acima’ ou ‘abaixo’, e não há hierarquias. Há somente redes aninhadas dentro de outras redes
(CAPRA, 1997, p.35).
As redes estão conectadas, sem distinção de importância ou
tamanho na natureza. Cerdeira (2020, p. 34) sublinha que a poética
de Thiago de Mello é forjada neste “olhar mais profundo e sensível
para com o seu lugar de inspiração, a floresta Amazônica no
passeio literário das águas”, o que de imediato nos leva a refletir
que a destruição de um determinado elemento afeta diretamente
os outros. Para exemplificar a dependência das redes entre si no
contexto da Amazônia, vamos trazer o caso dos rios voadores,
estes são cursos de águas atmosféricos responsáveis por carregar
o vapor saído da Bacia Amazônica, levando chuva para as regiões
Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil. Nestes últimos anos houve
mudança nos índices de chuva, causadas pela destruição da floresta
Amazônica. Krenak (2020, p.11) narra estas mudanças, observando
que os
106
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
(...) rios voadores saíram da floresta Amazônica e levaram um
susto para os paulistas quando levaram a fumaça das queimadas da floresta para transformar um dia, que costuma ser luminoso em São Paulo, em um dia extensão da noite, como se
fosse uma escuridão. Os paulistas ficaram muito apavorados
com aquele fenômeno, e parece que fez com que o pessoal do
sudeste despertasse para a tragédia que estava acontecendo na
Amazônia, com a queimada das florestas.
É possível perceber claramente o vínculo entre os
acontecimentos, vejam que o ciclo de chuvas nesta região é
completamente dependente do bioma amazônico, do Amazonas,
confirmando o postulado da teia da vida. Os povos originários, nas
suas vivências, sem saber nada dos debates ecológicos modernos,
sem leituras sobre os efeitos devastadores de explorar intensamente
os recursos disponíveis na natureza, há séculos praticam e convivem
em equilíbrio, vivem juntos dos demais seres sem desrespeitá-los,
caçando, derrubando árvores, pescando, mas sempre pegando o
necessário, pois são membros da comunidade, do ecossistema.
O poeta versa sobre este conviver dos povos da floresta e das
águas amazônicas, eles que interpretam e conhecem a vivência
comunitária integradora sob os princípios de uma solidariedade
de raízes ancestrais, “cujos rigores e virtudes condicionam sua
maneira de viver. Tão harmonioso é o seu convívio com a natureza,
que parece confundir-se com ela. São amigos do sol, entendem os
recados dos pássaros, conhecem os segredos do vento, conversam
com as estrelas da noite (MELLO, 2005, p. 79).
A Amazônia para eles é o lar de todos os bichos, plantas,
regidos pelos cursos dos rios, lagos, igarapés. Existe adstrito viver,
sem espécie dominadora, diferente doviver dos capitalistas, a visão
serviçal do meio ambiente. Olha-se, nas retinas nativas, todas as
expressões da natureza com encantamento, é a poética viva de
espíritos que se manifestam nas terras, plantas, animais e nas
águas, é o que o estudo de Cerdeira (2020, p. 65) nos revela “a
relação afetiva com a floresta expressa experiências poetizantes que
exploram reflexões profundas com o lugar. A paisagem se arranja
no silêncio úmido da mata fechada que despertam afeições”
A convivência solidaria de Thiago de Mello se relaciona com o
conceito de bem viver, este último encontra-se na obra Os caminhos
107
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
do bem viver de Ailton Krenak, um indígena, escritor e ambientalista
que tem nos ensinado a tentar adiar o fim do mundo. As reflexões de
Krenak são verdadeiros manifestos em defesa dos povos indígenas
e da natureza, e também fornecesem esquecer dedas lições para as
sociedades urbanas cuidarem do meio ambiente. Krenak mostra
como a humanidade está imersa na natureza, como os nutrientes
constituidores das plantas, animais, pedras... estão também nos
corpos humanos, a conexão da matéria da vida de todos os seres é
basicamente o mesmo. Convida cada alma a viver uma experiência
sensorial,
(...) mediados por esses materiais, podemos ficar nessa ligação
com o que é mineral, com o que é vegetal, com esses elementos
da natureza, porque eles estão no nosso corpo também. Então
a gente pode fazer uma conexão por meio deles. Podemos fazer
uma experiência de uma conexão que não é só virtual. Podemos fazer uma conexão sensorial, em outros termos, com o
propósito desse nosso encontro, porque assim ele fica mais potente e mais animador para todos nós (KRENAK, 2020, p. 4).
A conexão com os seres e materiais da natureza que cercam a
humanidade é uma parte do Bem viver. Mas o conceito é muito mais
amplo, expressa uma forma de vida, uma nova forma de existir
para as civilizações ditas “evoluídas” que insistem em machucar
o maltratar o meio ambiente. É um postulado muito direto, mas
intensamente profundo: A Mãe-Terra é um organismo vivo,
materialidade que está com febre porque a humanidade insiste em
atacá-la, e como a vida, todas as existências, estão conectadas a
este organismo, então todos também estão doentes, correndo o
risco de desaparecer. Krenak (2020, p.8-9) nos convida para outra
possibilidade de existência,
Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem
Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio
entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que
nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão
pessoal. Quando estamos habitando um Planeta disputado de
maneira desigual, e no contexto aqui da América do Sul, do
108
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
país em que vivemos que é o Brasil, que tem uma história profundamente marcada pela desigualdade, a gente simplesmente
fazer um exercício pessoal de dizer que vai alcançar o estado
de Buen Vivir, ele é muito parecido com o debate sobre sustentabilidade, sobre a ideia de desenvolvimento sustentável. Uma
vez, afirmei que sustentabilidade era vaidade pessoal, uma vida
sustentável era vaidade pessoal. O que eu queria dizer com isso
é que, se a gente vive em um cosmos, em um vasto ambiente,
onde a desigualdade é a marca principal, como que, dentro
dessa marca de desigualdade, nós vamos produzir uma situação sustentável? Sustentável para mim? A sustentabilidade não
é uma coisa pessoal. Ela diz respeito à ecologia do lugar em que
a gente vive, ao ecossistema que a gente vive.
Esta cosmovisão ecológica dos povos originários parte de um
princípio de equilíbrio, e adverte que a realidade atual da exploração
devastadora da natureza possui raízes nas desigualdades sociais e
econômicas causadas por políticas que privilegiam o lucro acima da
vida; aliás a História nos ensina que o mundo moderno foi erguido
sobre este alicerce do capitalismo exploratório. Krenak revela que
a vida em equilíbrio deve abranger todos, não apenas uma pessoa,
não só os indígenas e os ribeirinhos. Deve ser um compromisso da
humanidade comungando de uma nova aliança. Aliança ancestral,
mas que também pode vir a ser contemporânea se as sociedades se
preocuparem em ouvir a voz da natureza que clama. Por isso este
conhecimento não é, e não deve ser, restrito aos povos originários,
é na verdade uma de suas grandes contribuições ao nosso mundo,
seiva filosófica de uma epistemologia indígena a ser compartilhada
com todos nós.
As poesias de Mello que estudamos não fazem apologia ao
“mito moderno da natureza intocada”, na realidade elas evocam
a defesa do desenvolvimento sustentável da Amazônia, não
vislumbrando seus recursos como algo intocável, mas que tudo
deve ser feito olhando as especificidades do lugar. No seu olhar isso
só pode acontecer se houver uma superação dos modelos usados
pelo capitalismo. Tirando da mata seus recursos e deixando-a se
recuperar, afinal sociedades humanas vivem há milênios nessa
região, eles nunca devastaram na proporção dos tempos modernos
e contemporâneos. É necessário o entendimento da
109
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
(...) floresta, que só tem feito servir ao homem, vem sendo explorada e ocupada de maneira insensata, desordenada e assustadoramente predatória. A denúncia é feita por cientistas que
sabem o que dizem. É claro que a Amazônia precisa ser ocupada e desenvolvida. Mas sempre levando em conta os fatores
ecológicos e a sua necessária harmonia. A floresta tem que ser
utilizada, mas humanamente. Utilizada e não degradada. Um
velho tuchaua adverte: ‘quem mata a floresta mata a casa da
vida’ (MELLO, 2005, p. 78).
Depreendemos da citação poética a urgência da construção de
nova mentalidade para cuidar e saber que os recursos naturais são
finitos, isto deve tornar-se pauta quando se discutir políticas para o
desenvolvimento da região amazônica. Ora, toda essa mudança do
olhar sobre a natureza passa pelo pensar o lugar do humano, viver
como espécie unida à outras espécies, entendendo que estamos
abaixo da magnitude do Planeta. Segundo Cerdeira (2020, p.94)
são “dessas novas compreensões que surgem as novas consciências
ecológicas na compreensão da fragilidade do planeta Terra e a
importância de preservar esse ponto de vida na imensidão do
universo. Esta nova compreensão do planeta e seus recursos finitos
é imprescindível para o descortinar de uma outaa consciência
ecológica.
Para Krenak (2020) a concepção do Bem Viver, o de ser
membro do corpo maior, ser agregado a uma ecologia planetária,
é um pensamento e, mais, uma prática de todos nós, do nosso
corpo, assim como de todos os outros seres, já que estamos todos
dentro de uma imensa biosfera na Terra, não faz sentido alguém
se colocar fora dela ou promover o seu desequilíbrio e a sua
desregulação. Estamos dentro de um grande organismo que nos
ouve e nos sente, podemos aprender com ele, pensar junto com ele
numa verdadeira troca, ou melhor, numa grandiosa dança cósmica.
O fenômeno da existência na Amazônia é complexo, carrega
fatores do imaginário de povos cravejado de saberes, práticas e
ensinamentos. Um entendimento da mata da viva, entre plantas,
animais e rios, junto dos humanos. O indígena, o caboclo, não
controla o verde, não cobiça seus frutos, riquezas, recursos. Estes
agradecem a mata e confiam nela, na sua bondade, na sua justiça.
Como no neste trecho do livro Os estatutos do Homem:
110
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
Fica decretado que o homem não precisará nunca
mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira
confia no vento, como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu
(MELLO, 2011, p. 19).
O poeta em devaneio de utopia e esperança decreta o fim do
medo, como é a vida dos seres da floresta, a confiança do respeito
ao meio ambiente. A humanidade convivendo com todas as formas
da natureza em uma nova aliança contemporânea com inspiração
ancestral.
Em suma, inspirado pelas palavras de Krenak e a poesia de
Mello, pensamos que o bailar da vida acontece em sintonia. A flor
gera o pólen, esperando o beijo do beija-flor, para através de seu
bico as outras flores sejam polinizadas, sem ninguém dizer nada,
apenas a natureza em sua ordem de existir. Não há dúvida que a
humanidade mudou o curso de algumas partes do meio ambiente,
desfez biomas, cortou arvores, destruiu espécies, extinguiu animais
e plantas. O bem viver que o pensamento indígena nos apresenta
é o refazer os caminhos dessa linha voraz, o viver em reciprocas
contínuas e intensas trocas com os seres e ambiente ao redor.
A poética atravessa o pensamento
O nosso estudo buscou engendrar uma análise ecológica
da poesia de Thiago de Mello enquanto arte/saber necessários
ao mundo atual, navegando assim por diversas passagens que
acreditamos importantes no cenário contemporâneo, sobretudo
no que diz repeito ao uso sustentável dos recursos naturais e
à preservação da região Amazônica. Assumimos o seu tom
ensaístico, talvez um tanto matizado de poeticidade diríam os
mais metódicos num tom crítico, mas a verdade é que enveredar
pelas linhas poéticas de Mello e os estudos da complexidade exigiu
uma postura epistêmica transgressora, e como aprendemos com
Boaventura Santos (2007) não podemos estudar aspectos da história
e cultura amazônicas unicamente pelo viés do cartesianismo duro.
Caminhamos por outra perspectiva: o pensamento ecológico que
111
Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda
floreja no Sul pelas penas de um poeta caboclo que atravessou o
grande rio da vida há pouco tempo, não sem antes nos deixar um
legado crítico e humanístico grandioso, inspiração afetiva para as
futuras gerações de poetas e pesquisadores.
Esta viragem epistêmica enaltece o lugar que nos afeta,
não somente como território, mas também como espaço de
vivências dos povos originários e de construção de uma relação
com a natureza, diríamos um espaço compartilhado pelas teias do
pensamento ecológico. Acreditamos, assim como o nosso poeta
vestido de branco das margens do Andirá (AM), na comunhão
humana na Amazônia com a natureza viva. É um sentimento de
comunhão cósmica marcado pela poeticidade do viver, habitar,
estudar a Amazônia em suas diferentes faces.
As imagens amazônicas extraídas da poesia de Thiago de
Mello é matizada de uma humanidade transgressora, sensibilidades
críticas que interligam o homem com o seu meio ambiente. Teias
poiéticas poderímos postular, talvez. O fato é que essas redes
ecológicas conversam intimamente com as poéticas bachelardianas,
especialmente a poética da água e do devaneio.
Vale sublinhar que este nosso trabalho não se trata de uma
narrativa contra a tecnologia ou os avanços que a modernidade nos
propiciou, afinal tais conquistas são inestimáveis e promoveram o
aumento de nossa expectativa de vida e bem-estar; ao contrário, é a
busca incessante da dialogação entre o moderno e a ancestralidade,
entre a ciência e a poesia para a superação da crise profunda que
nos assola, conforme escreve Boaventura Santos (2007). É esta a
maior lição que aprendemos com Thiago de Mello e os pensadores
que nos ajudaram a iluminar esta pesquisa: a possibilidade de uma
coexistência harmoniosa entre os seres vivos, sobretudo, por meio
de um olhar de pertença ao espaço sociocultural em foco.
Por fim, gostaríamos de dizer que os estudos ecológicos e
a literatura são ricos caminhos para a pesquisa na Amazônia
complexa, pensando-a de maneira interdisciplinar, só assim
poderemos no futuro abrir espaço para as falas, vozes, rostos,
histórias e vivências das pessoas que fazem deste espaço.
112
A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello
Referências
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113
Elementos para a discussão sobre
indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de
Chumbo
Tiago Fonseca dos Santos27
Júlio Cláudio da Silva28
Considerações iniciais
A
o longo dos últimos anos houve um recrudescimento
dos conflitos da sociedade envolvente com os povos
indígenas29. Este processo foi intensificado com uma política
ambiental e indigenista predatória incentivada pelo governo Jair
Bolsonaro (PL). A expansão do desmatamento, dos incêndios, da
exploração madeireira desenfreada, da grilagem e do garimpo na
região amazônica não são casuais. O Brasil, após alguns anos de
pequenos avanços em matéria ambiental, voltou a figurar como
objeto das preocupações internacionais em função de assumir
novamente uma postura diversionista em relação ao compromisso
de reduzir os vetores causadores das mudanças climáticas.
Neste contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar
o relatório intitulado A Problemática Indígena na Amazônia, da
Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
27
Tiago Fonseca dos Santos. Professor de História no Centro de Estudos Superiores
de Tefé – CEST/UEA. Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação
em História – PPGH/UFAM. Contato:
[email protected]
Júlio Cláudio da Silva. Professor de História no Centro de Estudos Superiores de
Parintins – CESP/UEA e do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/
UFAM. Contato:
[email protected]
28
Professor Adjunto do curso de História do CESP/UEA e do PPGH/UFAM. E-mail:
[email protected]
29
No Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de
2020, Dom Roque Paloschi considera a violência uma prática de governo: “As
violências contra os povos indígenas no ano de 2020 adquiriram características de
perversidade e desumanidade nunca vistas. E foram protagonizadas por invasores
patrocinados pelo governo brasileiro. Não houve escrúpulos em estimular a
invasão das terras para exploração garimpeira, madeireira e para a grilagem”
(PALOSCHI, 2020, p. 11).
114
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
A partir deste documento, pode-se desvelar a preocupação
do Estado brasileiro em relação à Amazônia em diferentes
dimensões. Em um complexo movimento, o Estado brasileiro
buscou garantir a posse do território, administrar diretrizes de
desenvolvimento econômico e consolidar a ocupação da região
considerada ao mesmo tempo como um vazio demográfico, a
nova e última fronteira de expansão econômica e um objeto da
cobiça internacional.
Sob a ótica da Integração Nacional e da Segurança Nacional,
a região foi atravessada por projetos ufanistas de desenvolvimento
que não levaram em consideração aspectos socioambientais
específicos30. A colonização a ferro e fogo, desdobrou-se em
aculturação, esbulho das terras, violência e genocídio. Por este
motivo, ressalta a importância dos estudos sobre a Ditadura
Militar na região, principalmente para superar o mito que a
região não sofreu com o regime autoritário (QUEIRÓS, 2019a;
2019b; 2020).
Análise preliminar da documentação indica que mesmo com
a “redemocratização” em 1985, a orientação política do Estado
brasileiro persistiu autoritária e assimilacionista até 1988, com a
promulgação da nova Constituição. Ao menos no que se refere à
política indigenista, tal afirmação parece ter sustentação, uma vez
que a política indigenista só teve mudanças significativas com a
CF 88. A sociedade de então compartilhou diferentes expectativas,
muitas vezes conflitantes, inclusive. Mesmo em um momento de
aspirações de um futuro melhor e a superação das crises econômica,
política e social, as permanências da Ditadura Militar impuseram
muitas privações aos brasileiros em geral e aos povos indígenas,
em particular.
30
Para Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila Carvalho (2005): “Os massacres
contra os povos indígenas voltariam a se repetir, já recentemente, a partir das
décadas de 1960 e 1970, com as políticas de desenvolvimento e integração da
Amazônia que começaram a rasgar a floresta com a abertura de estradas como
a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR 364, a BR 174 e a Perimetral Norte.
Povos como os Waimiri-Atroari, Yanomami, Arara, Parakanã, Cinta Larga
e Nambikwara, entre muitos outros, foram duramente atingidos, inclusive
por expedições de extermínio com participação do poder público” (HECK;
LOEBENS; CARVALHO, 2005, p. 239).
115
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva
O choque das ideias
Com a publicização de documentos desclassificados a partir dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – CNV (2011-2014),
surgiram novas possibilidades de pesquisa. Ao longo dos últimos
anos, novas abordagens e problemáticas vêm sendo trabalhadas
e permitem lançar luz sobre o período da Ditadura Militar.
Especificamente em relação à Amazônia, veio à tona um universo
de documentos que permitirão aprofundar o conhecimento
sobre o regime autoritário na região. Diferentemente do senso
comum, marcado pelo presentismo e o esquecimento deliberado,
percebeu-se a forte presença do Estado e os povos indígenas foram
sobremaneira atingidos31.
Ao analisar a documentação, verifica-se a existência de
perspectivas antagônicas de indigenismo. Baines (2000) caracteriza
como indigenismo empresarial, aquele indigenismo comprometido
com a instalação dos grandes projetos na região32. Pode-se considerar
também, por outro lado, aquilo que poderia ser chamado de
indigenismo oficial, aquele operacionalizado pelo Estado e suas
instituições e, de outro, o indigenismo missionário, das missões
religiosas. Neste terreno movediço, buscou-se analisar os enunciados,
a fim de compreender os discursos em relação aos povos indígenas.
O relatório A Problemática Indígena na Amazônia, da Secretaria
de Assuntos Estratégicos da Presidência da República é da década
de 1990, cristaliza expressões largamente utilizadas nas décadas
de 1970 e 1980. Ou seja, corrobora a hipótese de que a política
indigenista no Brasil é, ontem e hoje, tradicional e autoritária,
por considerar os povos indígenas como inferiores, subalternos
31
Em termos regionais, ao contrário do senso comum, houve profunda intervenção
autoritária no estado. Segundo César Augusto Queirós são vários os casos de
cerceamento das liberdades individuais e de repressão, dentre eles: “[...] perseguição
política, mandatos cassados, governadores depostos, fechamento do Legislativo
estadual, confrontos e aposentadorias no Judiciário, fechamento dos jornais,
perseguição à imprensa, genocídio da população indígena” (QUEIRÓS, 2020, p. 190).
32
Segundo Baines, o poder econômico se sobrepõe ao indigenismo e os funcionários
da Frente de Atração passavam aos Waimiri-Atroari os “[...] preconceitos pejorativos
da sociedade nacional quanto ao “índio” e “caboclo” na sua forma mais acentuada,
num discurso que renegava suas origens indígenas e valorizava um estilo de vida
citadino, ou seja, um discurso desenvolvimentista em consonância com a ideologia
integracionista e empresarial da FAWA” (BAINES, 1993a).
116
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
ou de segunda classe, ao mesmo tempo que menospreza os seus
saberes-fazeres e sua cosmovisão. Para compreender as indicadas
permanências, o relatório foi relacionado com a farta documentação
do período da Ditadura Militar, demonstrando que nem mesmo a
noção de autodeterminação consolidada na CF 88 garantiu aos povos
indígenas certa segurança em relação ao esbulho, à inoperância em
relação à demarcação e à invasão de suas terras.
O relatório tem 13 páginas. Conta com os seguintes tópicos:
Introdução. 1. Amplitude da questão indígena; 2. Principais
polêmicas: 2.1 Demarcação de terras; 2.2 A tutela e, 2.3 Os grupos
de pressão e os interesses internacionais. 3. Política indigenista. 4.
Problemática indígena na Amazônia e, 5. Principais problemas:
Exploração ilegal e predatória de recursos naturais. Grandes
extensão de terras [Preservada a redação original]. Conflito pela
posse da terra. Narcotráfico (BRASIL, s/d.).
Em termos gerais, discute a condições de existência dos povos
indígenas, as interações com a sociedade envolvente e a relação
com o Estado, marcada pela política tutelar. A utilização das
expressões questão indígena e problemática indígena na Amazônia
são emblemáticas e deixam perceber a forma com qual o órgão
compreende a relação com os povos indígenas legalmente tutelados
pelo governo. Outro aspecto relevante é a indicação da diversidade
cultural dos povos indígenas, o que impediria a organização de
uma política pública homogênea. De alguma forma, a ideia da
estruturação de uma única política para todos os povos indígenas
poderia ser operacional, contudo, não contemplaria as diferentes
demandas de cada uma das nações. Tal generalização poderia
prejudicar uma ou outra etnia.
A extensão das terras ocupadas pelos povos indígenas, é uma
ideia presente neste relatório e recorrente nos documentos oficiais
e na imprensa da época. Em função de uma lógica diferente de
compreensão da natureza e de organização espacial, a sociedade
envolvente não considera o equilíbrio ecológico e julga que os
povos indígenas teriam terras demais. Em mais uma dimensão desta
lógica, também aparece no relatório a discussão sobre o conflito,
de fundo ideológico, sobre a demarcação de terras. Ao governo
caberia a gestão dos interesses conflitantes por ocasião das diversas
compreensões propostas de usos do território. A perspectiva
117
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva
ecológica dos povos indígenas entraria em conflito com a necessidade
da sociedade envolvente de garantir o desenvolvimento econômico
e a incorporação da imensidão amazônica ao progresso, à integração
nacional e à suposta bonança na participação da comunhão nacional;
enunciados estes, logicamente, encontrados nos documentos.
Outro ponto relevante encontrado no relatório é o destaque
ao conflito entre as propostas de indigenismo. A sistematização
em dois pólos antagônicos coaduna-se com um sem fim de
documentos e produções teóricas sobre os conflitos em relação aos
povos indígenas por parte das diferentes instituições que com eles
se relacionam. Dada a basilar síntese, segue a tabela constante no
documento:
Fonte: BRASIL, s/d., p. 03.
A partir da tabela é possível fazer inferências sobre um
conjunto de discursos. A análise das categorias utilizadas
(preservacionismo, autodeterminação, propriedade, minorias,
plurinacionalidade; integracionismo, tutela, posse e interesses
sociais) remete a enunciados e práticas muito importantes
materializadas nas políticas indigenistas e na imprensa e ajudam a
compreender a forma na qual os agentes do Estado (executores de
políticas públicas para os indígenas), jornalistas, lideranças e outros
atores sociais veem e se relacionam os/com os povos indígenas.
Associá-las a outros documentos é fundamental para aprofundar
o tema e entender aspectos da Amazônia profunda nos tempos
de chumbo e (as permanências) no contexto da redemocratização.
118
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
Ainda sobre o tema, em outra passagem do relatório, a ideia é
desdobrada. De acordo com o documento:
O indigenismo evoluiu da catequese para o que se convenciona
chamar de assistencialismo, fase marcada pela separação entre
a igreja e o Estado que tece necessidade de criar uma assistência leiga para os índios. A igreja, em um contexto de socialismo
emergente, conduziu o seu indigenismo ao preservacionismo,
que vê no isolamento o único caminho que garante a sobrevivência física e cultural dos grupos indígenas. A visão do Estado
evoluiu para o integracionismo que, partindo da premissa de
ser inevitável e inexorável o contato entre as partes, tem o objetivo de integrar de forma harmônica o índio à sociedade nacional, aos menores custos possíveis em traços culturais dessas
minorias étnicas (BRASIL, s/d., p. 02-03)
Mesmo com a retórica sobre a redução dos impactos aos
povos indígenas o que ocorria no interior das áreas indígenas
eram situações de precariedade na saúde, violência e esbulho das
terras. Da mesma forma que nas décadas anteriores, a paranoica
ideia de uma ameaça comunista, em diferentes documentos, se faz
presente. Além disso, carece fundamentação a noção de evolução
da política indigenista, uma vez que o contato dos povos indígenas
com a sociedade emergente foi marcado por relações assimétricas,
em prejuízo dos primeiros. Além disso, uma leitura subjacente, é
a possibilidade de normalização da ideia de integração, algo que o
próprio relatório evidencia na expressão premissa de ser inevitável e
inexorável o contato entre as partes. Muitos documentos reproduzem
tal assertiva, o que pode deixar a descoberto o plano de integração
inequívoca dos povos indígenas por parte do Estado, tal como
consolidado no Estatuto do Índio (1973).
A análise do material permite considerar que estes enunciados
dirigidos aos povos indígenas não são gratuitos e fazem, na
verdade, parte de um discurso ordenado, que em função do poder
econômico e político, se autolegitima. Assim, estariam os povos
indígenas fadados à integração ou ao desaparecimento? Seria uma
estratégia por parte do Estado as omissões em relação às políticas
públicas? Em caso afirmativo, esta estratégia faria parte de um
plano para a aculturação em médio/longo prazo? Naquele tempo,
119
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva
bem como no tempo presente, povos isolados geram preocupação
pelo fato de o contato poder ter desdobramentos imprevistos e
indesejáveis.
A “problemática” indígena na Amazônia
Depois de uma análise preliminar do relatório A Problemática
Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República, alguns elementos merecem destaque.
Em um exercício analítico, faz-se necessário buscar os dispositivos
que subsidiaram os discursos governamentais, da imprensa e dos
missionários em relação aos povos indígenas. Ao buscar estratos
mais profundos dos enunciados sobre o ser nativo, sobre a posse ou a
propriedade dos territórios milenarmente ocupados, da Integração
Nacional, do desenvolvimento regional, da Segurança Nacional e,
até mesmo da questão geopolítica internacional, a historicização
das categorias elencadas na tabela anteriormente citada faz-se
imprescindível. Aparentemente claras e de fácil definição as ideias
de preservacionismo, autodeterminação, propriedade, minorias,
plurinacionalidade; integracionismo, tutela, posse e interesses
sociais requerem leitura atenta e estudo dedicado. Referem-se
ao tema de expressiva complexidade, face à forma de relação das
sociedades indígenas com o Estado brasileiro e a forma na qual a
sociedade nacional compreende e organiza a economia, em um
processo acelerado de interiorização de um modelo pautado pela
exponencial exploração dos recursos naturais.
Analisar estas categorias em perspectiva histórica com base
na documentação trabalhada demonstra uma relação assimétrica
na construção do outro. Ao chamá-los de silvícolas, enclaves ou
quistos étnicos, ao enfatizar seus aspectos culturais como exóticos,
ao silenciar à situação de abandono ou à violência ou ainda ao
naturalizar a ideia de gradual integração à sociedade nacional em
detrimento da diversidade cultural, os enunciados da sociedade
envolvente constroem e reproduzem discursos que desconsideram
a possibilidade dos povos indígenas existirem de forma autônoma.
Em outra passagem, o referido documento33 assevera:
33
Optou-se pela manutenção da redação original.
120
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
Nesse sentido, o indigenismo adotado pela igreja e entidades
ditas de apoio ao índio é incoerente pois apesar de propalar
a multinacionalidade, a autodeterminação e a propriedade de
terras para os grupos indígenas, se posiciona contra a emancipação. Assim ao índio são abertos todos os direitos sem os deveres correspondentes. Sobre o assunto, existe incoerência no
próprio arcabouço legal que normatiza a política indigenista.
O Código Civil estabelece o fim da tutela à medida em que o
índio se integra à comunhão nacional enquanto que o Estaturo
do Índio prevê o fim da tutela quando o índio que reúne as
condições estipuladas o requeira (BRASIL, s/d., p. 07)
A discussão sobre a autodeterminação, a tutela ou a
emancipação dos povos indígenas foi marcante na década de 1970.
Relaciona-se em parte com o Estatuto do Índio (1973) e à malfadada
proposta do Decreto da Emancipação (1978)34. Seja na legislação
vigente entre 1973 e 1988 ou mesmo na tentativa de verticalizar a
emancipação no sentido de integração à sociedade envolvente, as
ideias de tutela e aculturação, de fundo, trazem consigo a proposta
de homogeneização cultural, em função da compreensão de que
os indígenas deveriam ser incorporados à cultura hegemônica
nacional35. Verifica-se forte dissonância entre a legislação e ações
efetivadas nas áreas indígenas. A materialidade do discurso é
34
Com base no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, pode-se considerar o
seguinte: “O Estatuto do Índio de 1973 coloca a integração dos índios, entendida
como assimilação cultural, como o propósito da política indigenista. O Ministro
do Interior, Rangel Reis, declarara à CPI da Funai em 1977 que o “objetivo
permanente da política indigenista é a atração, o convívio, a integração e a
futura emancipação”. É esse mesmo ministro quem, em 1978, tentará decretar
a emancipação da tutela de boa parte dos índios, a pretexto de que eles já estão
“integrados” (BRASIL, 2014, p. 213).
35
Em contraponto à ideia de aculturação, os indigenistas progressistas adotaram
a expressão “enculturação” para caracterizar as diretrizes da ação missionária
pautada no respeito às culturas indígenas, em contraponto aos valores etnocêntricos
e assimilacionistas das campanhas missionárias do passado, bem como do
indigenismo oficial. De acordo com João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da
Rocha Freire, deriva “[...] reconhecimento da importância das inúmeras culturas
vivas, impulsionado pelas encíclicas e pelas exortações apostólicas do Papa Paulo
VI, definiu as linhas de ação do CIMI em sua gestão progressista. Depois da 2ª
Conferência Episcopal Latino-americana realizada em Puebla, México, em 1979,
o ideal de ‘encarnação’ transformou-se na ‘inculturação’ missionária, sintetizada
na expressão ‘missão calada’, na qual era valorizada a inserção no dia-a-dia da
comunidade indígena” (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 151).
121
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva
perversa. Na década seguinte, por ocasião da 23ª Assembleia Geral
da CNBB, “[...] o problema crucial dos povos indígenas continua
sendo o desrespeito, as invasões e a usurpação de suas terras”
(CNBB, 1985). Vale lembrar que o conteúdo do artigo 1º da lei
6001/73 materializou o discurso da assimilação: “Esta Lei regula
a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los,
progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, 1973)
[Grifado].
O trabalho com as fontes até o presente momento permitiu
constatar que a questão indígena é absolutamente complexa e é
composta por múltiplas variáveis. Em um primeiro plano, estão
os povos indígenas e ação Estatal em relação a estes grupamentos
humanos. Contudo, a partir de um olhar minucioso, em estratos
mais profundos, percebe-se que o elemento central é a gestão
do território e dos recursos nele existentes. Tal argumentação
pode ser fundamentada com base na história dos projetos de
desenvolvimento para a região amazônica, à medida da evolução
tecnológica, novos instrumentos foram utilizados na prospecção
dos recursos naturais. Desta maneira, a modernização da Amazônia
ganhou novos contornos a partir da década de 1950 e o Estado se
fez mais presente na região, com estratégias de ocupação a partir da
consolidação de grupamentos humanos na agricultura, na crescente
indústria, no extrativismo vegetal e mineral e na construção de
batalhões para sediar a estrutura das Forças Armadas na região
fronteiriça.
A partir destes dispositivos acionados por parte do Estado,
percebe-se a complexificação da questão indígena. Os povos
indígenas não estariam mais isolados no meio do mato. Rodovias,
portos, aeroportos, barragens de usinas hidrelétricas, linhas de
transmissão de energia, madeireiras, entre outras ações alheias aos
nativos, passam a fazer parte da paisagem natural e do cenário
político. Nesta matéria, a década de 1970, o Plano de Integração
Nacional (PIN), o I Plano Nacional de Desenvolvimento – PND
(1972-1974) e o II PND (1975-1979) podem ser considerados
divisores de águas para as grandes transformações no processo de
ocupação da Amazônia, face à implantação de grandes projetos na
região.
122
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
Em função deste contexto, a questão indígena passa a ser
atravessada pela questão ambiental, pela questão territorial, pela
questão econômica, pela questão política, pela questão militar e
pela questão geopolítica. Isto é, nos documentos que tratam da
problemática indígena, surgem elementos da dimensão ambiental,
econômica, social, política, militar e geopolítica, face à complexidade
das condições de existência destes povos. De certa forma, passam
os povos indígenas a jogar o jogo da sociedade ocidental, tendo em
vista as disputas políticas para o usufruto e a gestão do território.
Por se tratar de um governo militar à época, a questão de domínio
do território ganha ainda maior destaque, bem como a dimensão
das fronteiras, tendo em vista possíveis querelas com os países
vizinhos na consolidação dos territórios.
Vale a pena visualizar quais contornos as premissas supracitadas
tomaram. Em mais exemplo de complexidade da questão indígena,
no documento classificado como Confidencial e intitulado Terras
Indígenas em Áreas de Fronteira, tem-se o seguinte:
[...] interessa para a Segurança Nacional no processo de ocupação da Faixa de Fronteira (Lei 6.634/79), evitando o estabelecimento de enclaves, ainda que de autóctones brasileiros;
as razões da Segurança Nacional devem prevalecer sobre as
razões das comunidades indígenas, pois as áreas indígenas não
estarão garantidas se a Nação Brasileira não estiver (BRASIL,
1981, p. 08)
Enunciados sobre a Segurança Nacional, a soberania, a
consolidação do domínio dos recursos naturais e o império da lei
são recorrentes na documentação. Vários documentos lançaram
mão destas diretrizes, materializando o discurso do domínio do
território por parte do Estado. Ao mesmo tempo, emitiram o
enunciado de que os projetos governamentais são independentes
à existência das inúmeras etnias no interior da região amazônica.
Em uma consideração preliminar, ainda carente de documentação
comprobatória, os povos indígenas teriam sido considerados um
problema, face seus usos não alinhados e antagônicos aos projetos
propostos pelo governo consorciado com a iniciativa privada.
Os diferentes eventos tornaram insustentáveis os enunciados
governamentais em relação aos povos indígenas. Na década de
123
Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva
1970 deu-se a consolidação de diferentes movimentos da sociedade
civil. Se percebe o germe da organização dos povos indígenas, o
que, mais tarde, viria a se tornar o movimento indígena; além
disso, viu-se a modernização do indigenismo em suas diferentes
acepções; e, ainda, em distintas partes do país e, no Amazonas em
particular, emergiu o que se pode hoje considerar como movimento
ambientalista. Os estudantes retomaram a organização e a ação
política. Nem mesmo a imprensa reproduziu, inequivocamente,
mesmo sob censura, os discursos de poder em relação aos corpos
e os territórios dos povos indígenas. Ao contrário, de certa forma,
a própria imprensa, com as suas limitações, serviu de trincheira
para a batalha dos enunciados, de certa forma, orientada pela
diversidade cultural, o que se pode afirmar com base nas matérias
que demonstravam as desfavoráveis condições de existência de
diversos povos indígenas. Apesar do arbítrio dos anos de chumbo,
diferentes instituições da sociedade civil buscaram as brechas do
regime ditatorial para avançar nas agendas emergentes do novo
mundo pós-Maio de 1968.
Considerações finais
A partir da análise do documento em tela, percebe-se
a cristalização da ideia de antagonismo aos povos indígenas
construída pelo Estado brasileiro durante o século XX e
recrudescida ao longo do regime ditatorial. Do Serviço de
Proteção aos Índios à Fundação Nacional do Índio, prevaleceram
os valores e princípios da sociedade envolvente. Os povos indígenas
aparecem na documentação como “problemática”, algo que pode
ser compreendido como um entrave ao progresso e uma ameaça à
unidade nacional.
As definições de indigenismo empresarial, indigenismo
oficial e indigenismo missionário colaboram efetivamente para
a compreensão das diferentes perspectivas de indigenismo nos
anos de chumbo. A concepção de ação indigenista expressa nos
documentos oficiais desvela a noção de indigenismo das diferentes
instituições e demonstram a ação do Estado brasileiro atuou em
consórcio com grandes conglomerados econômicos na execução
dos grandes projetos na Amazônia.
124
Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo
Diante da vasta documentação, faz-se imprescindível o
aprofundamento das pesquisas e a investigação de outras
variáveis para a melhor compreensão dos fenômenos atinentes
ao indigenismo e ao movimento indígena a partir da década de
1970. Um universo de pesquisa a explorar, a fim de lançar luz sobre
aspectos ainda obscuros sobre os anos de chumbo na Amazônia.
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Seres fantásticos e onde habitam:
Narrativas tradicionais, história oral
e estudos mitológicos para uma pesquisa
na Amazônia rural
Macário Lopes de Carvalho Júnior36
Arilson Nogueira Cruz37
1. Introdução
Este trabalho é uma versão modificada de uma pesquisa para
um trabalho de conclusão de curso sobre narrativas orais tradicionais
em uma comunidade rural do interior do Amazonas. A ideia nasceu
das inquietações dos autores acerca da natureza das histórias orais
tradicionais contadas pelas pessoas mais velhas. Sendo um dos autores
filho de habitantes de comunidades rurais do Médio Amazonas
(Itacoatiara) e Médio Purus (Lábrea) e o outro originário de uma
comunidade rural do entorno de Fonte Boa, ambos tinham certa
proximidade ou familiaridade com o tema, no sentido de que ouviam
na infância essas histórias e, mais tarde, iriam encontrar novamente
com elas na escola e na universidade sob outras perspectivas.
O que os autores têm observado é que ao longo dos anos essas
histórias têm sido menos presentes no cotidiano das pessoas do seu
entorno, dos seus familiares e da cultura das cidades do interior
do Amazonas. Além disso, essas histórias seriam mitos, lendas
ou poderiam ser enquadradas em alguma outra classificação que
poderia contribuir para melhor compreendê-las?
Diante dessa situação, traçamos um plano de trabalho que
inclui uma breve discussão teórica a respeito dos referenciais de
história oral e dos conceitos de fronteira permeável que são mito
e lenda. O que se apresentará nesse momento é, com algumas
modificações, o estudo teórico em um estágio mais ou menos
intermediário de elaboração.
36
37
Mestre em História (UFAM). Docente do curso de História do CEST/UEA.
Graduado em História (CEST/UEA).
127
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
Começaremos abordando a história oral enquanto método
e perspectiva de investigação em ciências humanas e como ela
pode nos auxiliar como ferramenta conceitual de aproximação ao
nosso tema. Discutiremos também um pouco sobre as narrativas
tradicionais, diferenciando o que é mito e o que lenda de acordo
com alguns autores como Betelheim, Câmara Cascudo e Dalate.
Abordaremos brevemente como as narrativas se mantêm vivas
através da oralidade diante das transformações sociais causadas
pelo aumento na utilização de certos avanços tecnológicos nas
comunidades rurais. Por fim, apresentaremos algumas das
narrativas mais conhecidas presentes na literatura consultada
e cruzaremos esses dados bibliográficos com as histórias das
comunidades ribeirinhas. Para orientar nossa investigação,
utilizaremos autores como Pinsky e Meihy para falar de História
Oral e Bettelheim, Vernant, Dalate, Rocha, Cascudo, Lévi-Strauss
e Eliade para falar sobre mitos e lendas.
2. O que é história oral?
No texto Histórias dentro da História, Alberti (2008, p.
155) define história oral como “uma metodologia de pesquisa e
constituição de fontes...” que consiste “...na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de ou testemunharam
acontecimentos e conjunturas do passado no presente...”.
Essa definição sintetiza e enfatiza o caráter de procedimento
simultâneo de pesquisa e de constituição da documentação, ou
seja, é uma modalidade de pesquisa histórica que se diferencia de
outras por não encontrar seu documento pronto em um acervo
ou em um contexto de memória com outra finalidade, como no
caso do patrimônio, dos registros notariais e eclesiásticos ou de
processos judiciais, mas é construído pelo historiador como parte
do próprio procedimento científico de investigação. Holanda e
Meihy oferecem várias definições do que seria a história oral. Para
esses autores, ela é:
Um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com o estabelecimento de
um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto prevê:
128
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
planejamento da condução das gravações com definição de
locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto
escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que
possível, a publicação dos resultados que devem em primeiro
lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas (HOLANDA e
MEIHY 2015, p. 15).
Além dessa primeira definição pormenorizada, os autores
recolhem outras quatro que também podem ser úteis para nossa
compreensão da metodologia:
1- História oral é uma prática de apreensão de narrativas
feita através de meios eletrônicos e destinada a: recolher
testemunhos, promover análises de processos sociais do
presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato;
2- A formulação de documentos através de registros eletrônicos, os quais são analisados a fim de favorecer estudos de
identidade e memórias coletivas;
3- História oral é uma alternativa para estudar a sociedade por
meio de uma documentação feita com o uso de entrevistas
gravadas em aparelhos eletrônicos e transformadas em
textos escritos;
4- História oral é um processo sistêmico de uso de entrevistas
gravadas, vertidas do oral para o escrito, com o fim de
promover o registro e o uso de entrevistas.
Essas quatro definições suplementares nos colocam diante
de diferentes ênfases, mas juntas contribuem para compor um
quadro mais amplo do que seria a história oral. Na primeira,
destaca-se o caráter de prática investigativa, ou seja, a história
oral não é uma teoria centrada na maneira de enxergar a história,
mas um conjunto de procedimentos, conceitos, atitudes e ideias
que se consubstanciam na prática investigativa do historiador.
Na segunda, a questão da importância da memória e sua estreita
relação com a formação de identidades. Na terceira, o fato de que
a documentação formulada pela história oral é uma das possíveis
vias de acesso para se estudar a sociedade. E por último, na quarta,
129
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
o foco recai sobre o caráter sistêmico do uso e do registro das
entrevistas orais.
O trabalho que mais nos chama atenção, no entanto, em
relação ao uso da história oral para o nosso propósito de investigar
comunidades rurais da Amazônia é o de Portelli (2016). Esse autor
afirma que a história oral é uma expressão abreviada para o que
seria mais adequadamente descrito como “o uso de fontes orais na
História ou nas Ciências Sociais”. Em sua forma mais elementar,
narrativas e fontes orais seriam um instrumento a mais na caixa de
ferramentas do historiador. Daí a necessidade de distinguir fonte
oral de tradição oral. Esta última estaria composta por construtos
verbais que seriam formalizados, transmitidos e compartilhados,
enquanto as fontes orais do historiador seriam as narrativas
informais, dialógicas (pois fruto do diálogo entre diferentes
sujeitos) criadas no encontro entre historiador e narrador.
Portelli também destaca que, além de seu caráter instrumental,
a história oral também pode ser compreendida como eixo de um
tipo de trabalho histórico muito específico no qual questões de
memória, narrativa, diálogo e subjetividade moldam a própria
agenda do historiador. Quando este é o caso, abordagens
e procedimentos específicos devem ser utilizados pois mais
apropriados à sua natureza e formas particulares, pois as fontes
orais não são encontradas, mas cocriadas pelo historiador. Sem
a presença do pesquisador, do entrevistador, elas não existiriam
sob a forma que existem. A entrevista é isso, uma troca dialógica,
uma troca de olhares, de pontos de vista, um diálogo entre
diferentes sujeitos e suas agendas particulares, que mesmo que
não correspondam perfeitamente uma a outra podem e devem se
relacionar de forma respeitosa e construtiva.
Refletindo sobre essas definições e sobre as possíveis ênfases
que a pesquisa em história oral possibilita, destacamos que neste
trabalho a história oral será um instrumento de investigação, uma
porta de entrada e escuta para o imaginário dos sujeitos de quem nos
aproximamos e que, esperamos, nos revelará um pouco mais sobre
as narrativas orais tradicionais e, nesse processo, sobre nós mesmos.
Antes de começar os estudos sobre história oral, abordaremos um
pouco sobre o imaginário, questão bastante estudada por diversos
autores nos campos da psicologia, linguística, literatura, história e
130
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
comunicação. O Dicionário de Ciências Humanas destaca que na
construção do conceito moderno de imaginário, pode-se verificar
Uma fase de efervescência, entre os anos de 1920 e 1970,
durante a qual diversos autores, filiados a correntes de pensamentos
bastantes diferentes, buscaram dar corpo à noção [de imaginário],
ou mesmo promovê-la à categoria de conceito, a fim de construir
uma teoria geral, buscavam estabelecer um sistema que daria contas
das diversas categorias do imaginário - mitos, símbolos, fantasma,
sonhos e devaneios -, ou seja, de todas as formas de pensamentos
consideradas inconsistentes ou pré-consciente, e que derivam mais
do afeto, da emoção, das lembranças, das impressões, que da pura
racionalidade (se é que ela existe) (DORTIER 2010, p. 292).
Vários estudiosos do assunto propuseram teorias para explicar
o lugar do imaginário na cultura ou seu lugar na mente humana.
De qualquer modo, tentaram oferecer um conceito mais bem
acabado do termo, mesmo que nesse processo cada um apontasse
para diferentes sentidos de imaginário. Um relato dos pormenores
desse debate fugiria muito ao escopo desse capítulo, desse modo,
seguiremos o Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010) ao
longo dos próximos parágrafos para uma exposição concisa das
mais representativas dentre das contribuições de alguns autores
nesse tema.
Primeiramente, para o psicanalista Jacques Lacan, todo ser
humano vive na interseção das três ordens: a do símbolo, a do
real e a do imaginário. Segundo ele, o imaginário representa um
lugar inconsciente da ilusão, assim, seu imaginário é inconsciente
e individual. Para o filósofo Jean-Paul Sartre, a imaginação é a
faculdade consciente de formar imagens fugindo do real, seu
imaginário, dessa forma, é consciente e individual. Para o filósofo
Gaston Bachelard, existem duas vertentes opostas no espírito
humano, por um lado a conceitualização que culmina na ciência
e do outro o devaneio que encontra o seu ponto mais alto na
poesia, ou seja, seu imaginário é pré-consciente e individual. Já o
antropólogo Gilbert Durand buscou estabelecer a lógica estrutural
atuante no imaginário humano a partir das análises dos símbolos e
dos mitos das culturas clássicas ou exóticas, revelando a metafísica
destas ao conjurar o tempo e a morte. Para ele, o imaginário seria,
desse modo, inconsciente e social.
131
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
No campo da história, Jacques Le Goff destacou-se no uso do
imaginário como ferramenta de investigação na década de 1980.
São desse período os livros O Nascimento do Purgatório (1981) e
O Imaginário Medieval (1985), além da coletânea O Maravilhoso
e o quotidiano no Ocidente Medieval (1985, primeira edição em
italiano de 1983). Dessa última obra destacamos dois capítulos: o
primeiro, chamado “O maravilhoso no Ocidente medieval” e o
segundo, intitulado “O deserto-floresta no Ocidente medieval”.
A leitura desses textos nos remete a analogias possíveis de serem
feitas, guardadas as devidas proporções, entre os contextos rurais
da Europa medieval e as comunidades rurais da Amazônia,
conforme veremos a seguir.
Na Europa medieval, os séculos XII e XIII, período privilegiado
por Le Goff, viram renascer elementos pré-cristãos em meio às
narrativas de proezas típicas dos romances de cavalaria e mesmo
em outras expressões da literatura popular, incluindo-se ali vidas
de santos (São Marcelo e o Dragão de Paris) e contos chamados
por muito tempo de folclóricos (Freitas 2016.). Essas manifestações
culturais hoje são reconhecidas em sua importância e valor para
determinados estágios de afirmação da identidade dos povos
europeus e não o seriam se essas narrativas, e o imaginário ao qual
se referem, não fossem identificados e reapropiados como parte
dessas identidades.
Podemos fazer um paralelo, de certa forma, com o que acontece
na Amazônia do século XX e início do XXI, em que pode-se ver
a recuperação por parte de sujeitos indígenas e ribeirinhos de
elementos identitários a partir de mitos, lendas, línguas, modos
de fazer específicos de festas e rituais que atualizam narrativas
cosmogônicas e cerimoniais, além da valorização de personagens,
entidades que transitam entre o natural e o sobrenatural, como
as visagens, os encantados e os seres que guardam as matas e as
águas.
Os ribeirinhos, ou caboclos, são sujeitos indígenas que
passaram por intenso processo de deculturação, ou seja, pelo
processo de invisibilização e apagamento dos traços culturais
distintivos de sua ancestralidade. Tal processo colonial não se
encerra com a independência política em relação à metrópole
portuguesa, mas se prolonga pelas mãos das igrejas e do aparato
132
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
estatal (Neves 2008). Nesse sentido, a recuperação de narrativas
tradicionais, e do imaginário ao qual elas se referem, é não apenas
um ato de resistência, mas de reconstrução de identidades com
potencial de recuperar autoestima, literatura, enfim, cultura. Ou
seja, com o potencial de regenerar a capacidade criadora, artística
e identitária de algumas das populações mais depauperadas e
exploradas da Amazônia.
No momento em que decidimos pesquisar o imaginário das
pessoas que moram na comunidade de São José de Igarapé-açu,
no lago do Caiambé em Tefé-AM, sabíamos que essa não seria
uma tarefa fácil, pois o imaginário é uma dimensão complexa
de se analisar. Para alcançar esse objetivo, precisamos entrelaçar
a teoria sobre o imaginário com a metodologia história oral. A
seguir, discutiremos um pouco mais dessa metodologia a partir do
trabalho de Alberti (2008).
Segundo a autora, a história oral é uma das ferramentas
que busca registrar por meio de entrevistas, depoimentos ou
questionários, versões ou interpretações de algum acontecimento
vivenciado, essas narrativas emergem espontaneamente ou de
maneira estimulada pelas perguntas do entrevistador. Isso requer
conhecimento sobre o assunto e estratégia metodológica para
gerir as entrevistas, que podem ser gravadas com pessoas que
são selecionadas na etapa inicial de preparação, dependendo de
cada projeto de pesquisa. Muitas vezes, obtêm-se dados que não
estão disponíveis em outros documentos. As pessoas podem, dessa
maneira, oferecer uma perspectiva única sobre seus modos de
vida, sobre acontecimentos da História contemporânea, História
local, conhecimentos empíricos sobre os mais variados assuntos,
entre outros.
De acordo com Alberti (2008), a história oral começou a ser
mais utilizada ao redor dos anos de 1950 com a invenção do gravador.
Segundo a autora “Os Estados Unidos foi um dos primeiros países
a utilizar a história oral como ferramenta de pesquisa, a partir daí
ela foi difundida nos demais países e ganhou vários adeptos, como:
Historiadores, Cientistas políticos, Antropólogos, Sociólogos,
Psicólogos entre outros”(ALBERTI, 2008, p. 157).
No Brasil, a metodologia foi introduzida a partir de 1970 com
a criação do Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e
133
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da
fundação Getúlio Vargas. Nos anos de 1990, o movimento em torno
da história oral cresceu muito no Brasil, por esse motivo foi criada
a Associação Brasileira de História Oral em 1994, que congregava
membros de todas as regiões do país realizando encontros regionais
e nacionais e editando revistas e boletins sobre história oral. Em
1996, foi criada a Associação Internacional de História oral, que
realiza congressos bianuais e edita revistas e boletins.
A partir da renovação nos métodos e perspectivas
historiográficas dos anos de 1970 em diante, muitas expressões
artísticas e vestígios das atividades humanas no/do passado foram
promovidas à categoria de documento e, como tal, receberam
renovada atenção por parte da corporação dos historiadores (Le
Goff 1990). Nesse sentido, as entrevistas de história oral podem
ser tomadas como documentos. Um estudo sobre o passado por
meio da oralidade, ainda mais combinado com outras ferramentas
de pesquisa, torna mais rica a compreensão de como os indivíduos
experimentam e interpretam acontecimentos, situações e modos
de vida de um grupo ou de uma sociedade em geral, tornando
os estudos da história mais concretos ou abordados de um outro
ponto de vista dos acontecimentos.
O estudo da história oral não se limita apenas a uma entrevista
ou à gravação de depoimentos, há todo um trabalho envolvido
antes, durante e depois das gravações, seja de levantamento de
dados, preparação dos roteiros das entrevistas, de transcrições
dos questionários trabalhados e de concepção dos questionários.
Há que realizar, também, a preparação para uma atitude franca
e aberta à escuta, sem tentar adivinhar o que o entrevistado dirá
e sem procurar levá-lo a uma direção previamente estabelecida,
apenas deixando-o contar o que surgir espontaneamente na
conversa sobre determinado tema.
Promover uma reflexão acerca da utilização da entrevista
individual como parte da história oral é uma técnica que enriquece
a historiografia, já que a entrevista individual é uma forma de
coleta de depoimento, mas o documento de pesquisa baseado na
oralidade não se define apenas em entrevistas individuais, ele se
constitui de outras formas. Um exemplo é o produto de debate
realizado sob a forma de reuniões, isso pode trazer informações
134
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
importantes para a constituição de um objeto para um projeto de
pesquisa.
As ideias que emergem do estudo das entrevistas orais não
representam, necessariamente, uma visão de todo um grupo
social, mas podem ser indícios de como os indivíduos conduzem
suas vidas, suas atitudes e seus discursos dentro de seus grupos.
Através dessas evidências, múltiplos aspectos da vida social e
cultural podem ser estudados, incluindo-se aqui o imaginário, as
representações sociais, os discursos e outras formas de representar
o mundo e as relações sociais. Assim, o resultado das interações
da pessoa com a sociedade, ou seja, a articulação das formas de
existência individuais e coletivas podem revelar o conjunto das
relações, crenças e modos de ver o mundo que os indivíduos
acumularam ao longo de suas existências.
É importante notar o quanto a história oral enriquece e
propõe discussões mais amplas dos temas estudados. Se utilizada
de maneira correta, ela pode abrir discussões que muitas vezes nem
perceberíamos por meio de outras documentações. É interessante
notar também a quantidade de dados que podemos coletar em
uma entrevista. O pesquisador deve estar atento, pois muitos
conhecimentos, histórias, contos, tradições, costumes podem acabar
desaparecendo sem nunca serem registrados. Segundo Bussato:
Recuperar o conto de literatura oral é também perpetuar a
nossa cultura e a nossa história. Se cito com frequência o conto
de fada e o mito é por acreditar que eles são uma via de acesso
ao nosso ser, porem há nas lendas regionais e causos populares
um conhecimento que não deve ser desprezado, pois eles indicam a produção cultural de um povo, suas crenças, temores
e anseios íntimos. Seja qual for a categoria do conto que você
pesquise, sempre será bem-vindo, pois estaremos contribuindo
para a sua permanência (2008, p.87).
Portanto, a história oral pode ser muito importante para o
resgate da cultura dos povos, entre outros motivos, por não deixar
que se percam as histórias locais, os mitos, lendas, as histórias dos
antepassados, o modo de vida e as experiências adquiridas por
pessoas que não deixam registros escritos ou documentados de
outra forma ao longo de suas vidas.
135
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
3. Mitos e lendas – as narrativas orais tradicionais
Em nosso trabalho, ao falar sobre as histórias de Curupira,
Mapinguari e Cobra-grande etc. utilizaremos a terminologia
narrativas orais tradicionais, pelo fato de que esta expressão abarca
ao mesmo tempo tanto mitos e lendas quanto contos populares.
Ou seja, é uma terminologia mais neutra, no sentido de que não
porta determinados sentidos pejorativos de mentira ou engodo
que os termos lenda e mito costumam carregar. Nossa intenção
com a utilização desse termo é passar ao largo dessa caraterização
negativa que mitos e lendas muitas vezes apresentam.
Existe uma rica literatura especializada nos estudos de
mitologia que perpassa os campos da história das religiões, da
antropologia, da literatura e mesmo da comunicação. Um inventário
pormenorizado dessas discussões, no entanto, nos tomaria um
tempo e um espaço do qual não dispomos no momento e nos
levaria demasiado distante do nosso objeto de estudo. Por ora,
remeteremos o leitor a alguns trabalhos em língua portuguesa que
já fazem essa discussão.
Nos anos 1980, a obra de grande referência em língua
portuguesa é a Mitologia Grega de Junito de Souza Brandão (1986).
Essa é uma obra de fôlego, na qual o autor faz sete capítulos com
discussões teóricas em arte, literatura, antropologia e literatura,
em interface principalmente com os teóricos estruturalistas e
a psicanálise. A seguir, no restante do volume 1, ele reconta os
mitos de cosmogonia, a ascensão dos olimpianos sobre os titãs;
no volume 2, as proezas e desventuras dos deuses no reinado de
Zeus; e no volume 3 as narrativas das divindades menores, como
Eros e Psiché. Nos anos de 1990 Ordep Serra (1998/1999) publica
um artigo em que, para discutir a pertinência das noções de mito
e mitologia, esmiúça a construção do conceito de mito por LéviStrauss e outros antropólogos, em um permanente diálogo entre
esses estudiosos e os estudos clássicos de mitologia grega e romana.
Na década seguinte, Andrea Rossi (2007) move-se entre a abordagem
linguística de Roland Barthes e a história-problema de Paul Veyne,
para chamar a atenção para a necessidade de historicizar o conceito
de mito antes de proceder a uma análise semiótica do mito na obra
Discursos de João Crisóstomo, filósofo do Império Romano do séc.
136
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
I. No processo, a autora acaba perpassando diferentes concepções
de mito por exemplo em Mircea Eliade (1972), Roland Barthes
e François Hartog. Recentemetne, Ronaldo Colvero e Matheus
Furtado (2020) trouxeram uma reflexão sobre as possibilidades de
ensino de ciências humanas a partir das narrativas mitológicas. Sua
abordagem parte da mitologia como categoria da literatura, porta
de acesso e repositório de conteúdos imaginários que permite
a professores e alunos a aproximação com diversas temáticas e
diferentes abordagens teórico-metodológicas em trabalhos inter
ou multidisciplinares.
A seguir, recorreremos à excelente síntese que consta
do Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010) para mais
elementos desse debate. Utilizaremos seu verbete Mito como uma
espécie de estrutura narrativa para nos guiar pelo emaranhado das
posições dos teóricos das diferentes áreas das ciências humanas
que se ocuparam, em algum momento de suas carreiras, do mito
e de estudos mitológicos. Nesse sentido, sintetizaremos alguns
trechos, e os enxertaremos com as outras leituras realizadas,
principalmente nos campos da História Antiga e da História
Medieval, para fornecer um quadro breve, mas inteligível desse
processo. Assim sendo, eis um breve relato dessas discussões.
Dortier (2010) que em meados do séc. XIX ocorre um
impulsionamento dos estudos do que então se chamava mitologia
comparada. É dessa época a obra seminal de James Frazer O
Ramo de ouro (1982 [1890]), onde o autor pretende construir
um panorama dos mitos de toda a humanidade. Os primeiros
antropólogos também se debruçaram sobre os mitos, destacando-se
Lucien Lévy-Bruhl com A Mentalidade Primitiva ([1922]), em que
o autor pretendia, através do mito, acessar as formas elementares
do pensamento humano.
A partir dos anos 1920, antropólogos expoentes da corrente
funcionalista como Bronislaw Malinowski e Albert Radcliffe-Brown
afirmaram que os mitos não são apenas o resquício de um modo
primitivo de funcionamento da mente humana, mas juntamente
com os ritos, possuiriam funções sociais discerníveis: legitimação
da ordem social, consolidação do grupo, atuação como modelos de
comportamento. Portanto, se estudados nessa chave, poderiam ser
uma via de entendimento da organização de toda uma sociedade,
137
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
desde as regras dos casamentos até os ritos de passagem e tabus
alimentares.
Um outro campo que muito contribuiu para os estudos de
mitologia e continua a fazê-lo é a psicanálise. Sigmund Freud,
fundador desse campo de estudos, utiliza os mitos de Édipo, de
Prometeu, de Electra e muitos outros como chave de leitura para
fenômenos da psiquê e do comportamento humanos. Carl Jung,
um de seus discípulos, diverge do mestre e começa a abordar os
mitos como arquétipos, como modelos simbólicos que permitiram
o acesso a um inconsciente coletivo compartilhado por toda a
humanidade em diferentes formas. Roger Callois propõe uma
síntese entre a abordagem antropológica e a junguiana. Em sua obra
Le Mythe et l’Homme (1938), esse autor argumenta que a mitologia
seria uma complexa combinação de determinações sociais e
históricas movida pelas pulsões que animam os seres humanos.
A partir dos anos 1950-1970, os estudos de mitologia, como as
ciências humanas e sociais de um modo geral, são marcados pela
inovação e mesmo predominância em algumas áreas da corrente
estruturalista representada por expoentes como Ferdinand de
Saussure, Roland Barthes e Claude Lévi-Strauss, nos estudos dos
signos, da linguagem, do imaginário e da mitologia. Esse período, e
essa corrente teórica em particular, foi o mais prolífico na produção
de contribuições acerca da mitologia. Mircea Eliade publica nesse
período O Mito do Eterno Retorno (1972[1949]), O Sagrado e o
Profano (1992 [1957]), Mito e realidade (1972 [1963]). Esse autor
afirma que os mitos traduzem a configuração da mente do que
ele chama de homo religiosus, ou seja, ele defende que o sagrado,
categoria mais ampla e não necessariamente institucionalizada,
caracterizaria todas as sociedades humanas e encontraria nos
mitos não a única, mas uma de suas expressões mais irredutíveis.
Nessa abordagem, a função dos mitos seria explicar o mundo e dar
sentido à existência humana.
Lévi-Strauss publicou entre 1964 e 1971 os quatro volumes
de uma coleção monumental chamada Mitológicas. Seu volume
1, intitulado O Cru e o cozido (1994 [1964]) continua a ser um
marco na análise dos mitos em perspectiva estruturalista. Seu
objetivo era identificar as estruturas que presidiam a criação de
todos os mitos da humanidade. Esse autor recusava atribuir aos
138
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
mitos uma função na organização da sociedade, ao invés disso, sua
interpretação é de que os mitos são uma espécie de gramática que
expressa, revela funcionamento da mente humana e não prescreve
comportamentos. Aqui encerramos a parte em que seguimos o
Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010). Passaremos agora
a discutir um pouco das contribuições no capo da História.
No campo dos estudos medievais, o estruturalismo influenciou
através de Georges Dumézil a obra de Georges Duby que em
As três ordens ou o imaginário do feudalismo (1982) recupera
ideias desenvolvidas por Dumézil acerca da trifuncionalidade nas
sociedades indo-europeias. Basicamente esse autor afirma que
haveria uma estrutura fundamental nas sociedades indo-europeias
nas quais as figuras do guerreiro, do sacerdote e do trabalhador
se traduziriam e manifestariam em diferentes conteúdos culturais
podendo ser percebidos desde a mitologia e a estruturação dos
idiomas até a própria organização social. Duby aplicou essa ideia
aos estudos medievais e estudou a organização da sociedade, em
particular da França, a partir dessa estruturação que revelaria o
papel fundamental da nobreza, do clero e dos camponeses como
categorias que funcionariam como eixos estruturantes da maneira
de representar e, por isso mesmo, de organizar o todo social.
Jean-Pierre Vernant, muito influenciado por Marcel Detienne
e Louis Gernet, construiu em sua obra uma profunda reflexão
sobre o pensamento dos gregos antigos. Nesse sentido o mito é
uma categoria central a partir da qual o autor analisou diferentes
expressões culturais e categorias de pensamento. Seus trabalhos
iniciais recuperavam parte da discussão dos primeiros estudos
antropológicos sobre os mitos, pois a problemática privilegiada
por Vernant era a passagem do pensamento mítico ao chamado
pensamento racional. Com o tempo, no entanto, cada vez mais
o mito perdia em Vernant a característica do primitivismo
ou irracionalismo e ganhava o aspecto de particularidade
historicamente construída, simultaneamente estruturante e
estruturada pelas suas condições históricas. Ainda que a questão
das representações fosse uma tônica de seu trabalho, Vernant nunca
deixou de articulá-las com as condições materiais de existência e
os condicionamentos sociais mais amplos em que os textos cujas
representações estudava estavam inseridos.
139
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
Na maturidade, sem nunca ter deixado totalmente de lado a
questão do mito, o autor retorna ao tema de modo mais acessível ao
grande público em uma breve exposição da religião grega no livro
Mito e Religião na Grécia Antiga (2006). Nele, os mitos são sem
dúvida a categoria central, pois articulam os dois outros aspectos
que juntamente com o ele constituem a própria religiosidade grega:
o rito, que seria uma encenação, (re)apresentação e performance
de re-atualização do mito; e a imagem ou figuração, que também
seria uma forma de representá-lo em contextos específicos, como,
por exemplo, no culto público e na devoção pessoal.
Nesse ponto do trabalho importa-nos perguntar como essas
teorias, possíveis chaves de leitura, podem nos ajudar a entender
nosso objeto, as narrativas tradicionais amazônicas. Seriam elas
mitos, na acepção trabalhada pelos teóricos citados até aqui?
Seriam elas material restrito à cultura popular, ou poderiam ser
classificadas em outra categoria, propriamente literária, a das
lendas? Consideramos que mesmo que não possamos classificar as
narrativas tradicionais amazônicas em uma categoria ou noutra,
fazer essa discussão já alarga nosso entendimento.
Desse modo, pelos próximos parágrafos retomaremos
algumas questões que nos parecem relevantes dentre aquelas
levantadas por alguns teóricos que se preocupam com a distinção
ou com os pontos de contato entre mito, lenda e outras formas
de narrativas orais tradicionais. Abordaremos algumas ideias de
Bruno Bettelheim (1980), Everardo Rocha (1989), Sérgio Dalate
(1997) e retornaremos a Mircea Eliade (1972) para nos auxiliar a
entender diferentes aspectos desse tema que pode guardar camadas
de riqueza e profundidade insuspeitos à primeira vista.
Muitas pessoas confundem mitos e lendas, já que os mitos e
lendas têm núcleo comum enquanto relatos tradicionais originários
da oralidade, no entanto, são diferentes em certos aspectos.
Tanto o mito quanto a lenda surgem a partir de narrativas orais,
contudo, enquanto os mitos costumam abordar aspectos ligados
ao surgimento de personagens ou instituições, as lendas costumam
abordar feitos e proezas muito mais próximas dos humanos.
Se fizemos uma rápida pesquisa no dicionário encontraremos
alguns significados para a palavra lenda, um dos mais citados é que
ela vem do latim tardio, legenda que significa o que deve ser lido
140
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
(PRIBERAM 2022). A lenda também é uma narrativa que pode ser
passada de geração a geração através da oralidade ou colocada por
escrito. A lenda tem um caráter maravilhoso, pois trata de histórias
heroicas, em que o imaginário e o real se misturam.
Cascudo (1976) é um dos autores que vai procurar entender
as especificidades das lendas. Ele afirma que:
As lendas são episódio heroicos ou sentimentais, com elemento
maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na
tradição oral e popular, localizável no espaço e no tempo. De
origem letrada, lenda, legenda, “legere” possui características
de fixação geográfica e pequena deformação e conservam-se as
quatro características do conto popular: antiguidade, persistência, anonimato e oralidade. As lendas têm como função básica
historiar ou explicar fatos como a origem das coisas, fenômenos naturais, figuras sobrenaturais, as lendas fazem parte da
vida social das pessoas. Toda narrativa é um fato histórico e se
amplia e se transforma decorrente ao tempo e surgem novas
lendas, porque o homem é o fator determinante na produção
da cultura e do repasse podendo ser de maneira oral ou escrita
(CASCUDO 1976).
As lendas também absorvem características geográficas dos
locais em que são contadas. No caso das lendas amazônicas, é
muito comum que apresentem cenários de rios, florestas e aspectos
das comunidades ribeirinhas. Mais adiante abordaremos o quão
forte é essa ligação do mundo concreto com o imaginário.
Numa perspectiva de diálogo entre a literatura e a psicanálise,
Bettelheim (1980) defende que os mitos podem estar mais ligados
ao superego do indivíduo e que tentam preconizar um modo
correto de conduta, ao mesmo tempo em que explicam a origem
de algo, como a criação do mundo. Já as lendas, para esse autor,
poderiam se chamar também sagas locais e estão relacionadas ao
cotidiano de uma determinada cultura.
Por outro lado, segundo Everardo Rocha (1989 p. 06), “o
mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala, é uma forma
das sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus
paradoxos, dúvidas e inquietações”. Para Rocha, em cada história
contada há valores representados nas narrativas, por isso o mais
141
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
importante é perceber que em conjunto elas nos possibilitam várias
formas de explicar o mundo, de expressar sentimentos, temores,
anseios. São maneiras encontradas pelas pessoas de interpretar
as realidades criadas há muito tempo pelos nossos antepassados
e transmitidas oralmente como forma de ensinamento entre as
gerações.
Numa discussão advinda do campo da literatura, Sérgio Dalate,
procura diferenciar o mais explicitamente possível a história mítica
da lenda:
[...] a história mítica, [estaria] ligada a entes sobrenaturais, tem
como atitude mental a crença; o relato legendário tem como
heróis seres humanos cujo alto valor cívico ou espiritual estimula a imitação [...] a lenda se origina a partir de um fato
histórico, embora sua veracidade, com o passar de tempo, seja
transfigurada pela imaginação popular [...] (grifo nosso) como
se depreende do sentido do adjetivo ¨lendário¨. Existe quase
uma oposição entre história e lenda: chama-se lenda ao fato
historicamente não comprovado [...] outra peculiaridade da
lenda é sua localização no espaço e no tempo, diferentemente
do mito e do conto popular, cujas origens são geograficamente
e cronologicamente indeterminados (DALATE 1997, p. 109).
É interessante notar que os mitos estiveram ligados, pelo
menos em algum momento do passado, à ideia de crença, até pelo
seu caráter explicativo de a) fenômenos naturais ou b) das origens
de instituições ou seres vivos (Veyne 2014). As lendas, entretanto,
apesar de apresentarem elementos de cunho mitológico, têm
características que as relaciona diretamente a determinadas regiões,
ou seja, de certa forma são elementos do imaginário ligados ao
mundo real.
Observando a vida na comunidade rural, percebemos que
ainda hoje os mitos e lendas contribuem para constituição das
regras ou na organização da vida social, ou, pelo menos, influenciam
fortemente nas escolhas e nas decisões das pessoas de um modo
que seria impensável em contextos urbanos. Se examinarmos
atentamente as narrativas, percebemos que cada história traz
consigo uma mensagem, seja um relato de criação do mundo,
como nas narrativas indígenas, seja um alerta aos humanos dos
142
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
limites no uso da mata, como ocorre nas lendas amazônicas ou nas
narrativas de outros povos que, por meio das histórias da tradição
oral, compartilham saberes milenares com os seus descendentes.
Segundo Norberto Guarinello (2012), uma sociedade é
formada a partir de muitos elementos, alguns dos quais são herdados
ou aprendidos de outras sociedades. Os múltiplos contatos entre
sociedades permitem importantes trocas culturais. Nesse sentido,
as sociedades ocidentais estão marcadas, direta e indiretamente,
pelas tradições gregas e romanas, as quais influenciam modos de
pensar, de ver o mundo, de perceber a si mesmo e aos outros. No
entanto, não há por que pensar que outras sociedades não tenham
feito e não continuem a fazer parte ativamente desse jogo de trocas
culturais. Nesse sentido, os mitos e lendas não apenas foram,
mas continuam sendo veículos privilegiados para transmissão da
cultura, isto é, dos modos de fazer, de sentir, de pensar e de agir
(Geertz 2015). Portanto, estudar os mitos e as lendas amazônicas
pode ser importante no esforço de conhecer camadas muito
profundas da nossa própria cultura.
Segundo Guarinello (2012), a produção de saberes está
intrinsecamente ligada aos conceitos de memória e identidade.
Nesse sentido, os saberes das pessoas das comunidades rurais são
um acúmulo de conhecimento produzido por várias gerações,
conhecimentos construídos a partir de suas experiências de vida
e que derivam numa forma particular de compreender o mundo,
com suas próprias representações, seu imaginário e seus valores.
Consideramos que tais referências nas histórias de vida dessas
pessoas trazem uma percepção diferente, muito particular. Ela está
ancorada em sua própria realidade, nos saberes tradicionais, os
quais apresentam uma dimensão de experiência cotidiana, mas
também um acúmulo geracional importante, fruto das interações
com os ambientes amazônicos das águas, das terras-firmes e das
florestas. Essa dimensão existencial, além de muito rica, pode-se
dizer estética, é o que João de Jesus Paes Loureiro (2015) denominou
“uma poética do imaginário amazônico”: os modos de vida nas
comunidades ribeirinhas apresentam, reproduzem e reatualizam
os saberes ancestrais, os quais vêm à tona de modos inesperados
em meio à vida cotidiana: sonhos, crenças, religiosidades, anseios,
conflitos e limites frente a suas leituras de mundo.
143
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
Ao analisarmos as narrativas das lendas amazônicas,
perceberemos que muitas delas trazem uma mensagem consigo,
seja de respeito, seja de aviso com relação à mata, aos rios e a vida
animal e vegetal que os compõem.
Essa questão do respeito está muito ligada às regras, às
normas sociais implícitas nas comunidades. Nas grandes cidades
a palavra respeito tem um sentido diferente, por exemplo de
admiração por alguém, mas nas comunidades está relacionada
a regras que precisam ser seguidas. Frequentemente aparece
nas falas dos entrevistados junto com a palavra medo, é como se
fosse uma regra que se quebrada trará sérios problemas. Assim, o
respeito aqui é muito mais uma advertência de que se as normas
e tabus, principalmente aqueles relacionados com os limites de
ação e dos horários corretos para adentrar a mata e as águas,
não forem seguidos, a pessoa pode passar por experiências
desagradáveis, até mesmo punições provenientes dos seres que
habitam esses espaços.
Nesse contexto, o respeito que as pessoas têm por essas
histórias, como falamos anteriormente, é muito mais perceptível
nas comunidades ribeirinhas. A crença e o respeito se misturam com
o medo de fazer mal, de descumprir uma regra de respeito a um
lugar e receber um castigo.
Retomemos a questão do mito em sua relação com as crenças
e os comportamentos das pessoas em seu cotidiano. Falando da
religião na Grécia antiga, Jean-Pierre Vernant destaca o papel
fundamental dos mitos na configuração dos conjuntos de crenças
e do próprio imaginário que permitia aos gregos ler o mundo. Ele
afirma que:
um vasto repositório de narrativas conhecidas desde a infância, em versões suficientemente diversas e em variantes numerosas o bastante para deixar, a cada um, uma ampla margem de
interpretação. É dentro desse quadro e sob essa forma que ganham corpo as crenças em relação aos deuses e que se produz,
quanto à natureza, ao papel e às exigências deles, um consenso
de opiniões suficientemente seguras. Rejeitar esse fundo de
crenças comuns seria, da mesma maneira que deixar de falar
grego e deixar de viver ao modo grego, deixar de ser si mesmos
(VERNANT 2006, p. 14)
144
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
A leitura desse trecho nos leva a considerar por analogia que
as narrativas tradicionais amazônicas são também um conjunto
de relatos que, por mais variados e divergentes que possam ser,
contribuem para dar certa coerência, uma segurança básica dos
conhecimentos a respeito dos seres que habitam as matas, as águas
e a terra firme, sejam eles originários deste ou de outros mundos.
O mito é uma forma de explicação da realidade em si mesmo,
bem como uma explicação de como as pessoas enxergam o
mundo. Eles são uma expressão do pensamento humano, celebram
as realizações populares e se mantêm por meio da oralidade, ou
seja, são transmitidos de geração a geração por meio das rodas de
conversas, principalmente entre famílias.
Outra forma de preservação e transmissão dos mitos são as
festas ritos e produções artísticas de uma determinada sociedade.
Para Mircea Eliade,
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Entre outros termos, o mito narra como, graça às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir,
seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento:
uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano,
uma instituição. É sempre portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a
ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se
manifestou plenamente, os personagens dos mitos são os entes
sobrenaturais (ELIADE 1972, p.04)
Algo importante a destacar é que o mito está entrelaçado com
a religião, o sobrenatural, já que em suas narrativas podem ser
encontrados ritos, orações, danças, cerimônias e sacrifícios, isso
tudo gera um fascínio muito grande e contribui para perpetuar
crenças.
Como visto anteriormente, os mitos não fogem totalmente
da realidade, eles tratam de questões que são reais, que fazem
parte das inquietações de muitos de nós. Por exemplo a criação
da terra, do céu, do mar, e relata tudo isso de uma maneira
mágica, sobrenatural e misteriosa. Por mais que esses elementos
sejam fruto de uma criação artística das emoções e do imaginário
145
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
dos seres humanos, são também uma tentativa de explicar os
fenômenos da natureza e as instituições humanas. Mircea Eliade
(1963, p. 12-13) argumenta que: “o mito é uma “história sagrada”
e, por isso, revela uma “história verdadeira”, porque se refere
sempre a “realidades”. Considerar os mitos como falsificação dos
mundos ou ficções equivale a negar o próprio mundo que eles
relatam”.
4. Considerações finais: as narrativas tradicionais
diante das transformações do mundo moderno
Na atualidade, os saberes tradicionais orientados pelo
imaginário tecido a partir das narrativas orais têm cada vez tido
menos importância mesmo nas comunidades rurais. As novas
gerações têm aspirações de vida influenciadas pela onipresença
dos dispositivos de comunicação das novas tecnologias. O modo
de vida tradicional parece cada vez mais algo do passado de certa
forma superado e destinado a cair no esquecimento. A chegada
cada vez mais comum, com maior qualidade e por maior tempo
da eletricidade nas comunidades rurais e a utilização de aparelhos
como computadores e telefones celulares, mesmo em áreas
onde não há cobertura de Internet, parece colocar um desafio à
preservação e à transmissão dos saberes ancestrais para as novas
gerações.
Hoje em dia não é mais comum, principalmente nas cidades,
termos rodas de conversas onde são transmitidas por meio
da oralidade narrativas da cultura amazônica. Nesse sentido,
pensemos nas inúmeras histórias que foram perdidas ao longo
do tempo, várias e várias gerações que deixaram de conhecer um
pouco da sua própria cultura.
Nesse período de cursar a graduação em História, tivemos a
oportunidade de participar do cotidiano dos alunos nas escolas por
meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
(PIBID) no município de Tefé, e essa foi uma experiência de
intenso crescimento profissional, mas que nos permitiu observar
a dificuldade dos alunos em se lembrarem de alguma história que
seus pais ou avós contavam quando eram crianças.
146
Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos...
Em um dos vários dias de acompanhamento da nossa turma,
um dos alunos comentou em sala que ninguém mais se interessava
por lendas, que isso não passava de mentiras inventadas pelos mais
velhos para fazer medo nas crianças. Bem no canto da sala uma aluna
levantou a mão e pediu permissão para falar, ela iniciou a fala com
um pouco de vergonha, mas foi firme em suas palavras. Contou que
morava em uma comunidade perto de Tefé, que de onde ela vinha as
pessoas tinham um respeito muito grande por essas histórias e concluiu
dizendo que com os espíritos da floresta não se brinca. Depois desse
dia, as falas desses alunos nos levaram a propor esse questionamento:
afinal, os mitos e lendas estão destinados a desaparecer?
Para quem mora nas grandes cidades ou em municípios
maiores há um contato muito grande com os novos meios de
comunicação. Hoje em dia uma pessoa que mora no município de
Tefé pode se comunicar com alguém que mora em outro lugar do
Brasil ou até mesmo com pessoas de outros países sem sair de casa,
pode saber o que acontece no mundo através do seu smartphone ou
da sua TV. Com o avanço da tecnologia, o que antes era impossível,
ou demorava muitos dias ou semanas, hoje pode ser resolvido em
questão de segundos. As tecnologias facilitam a vida das pessoas, são
tantas ferramentas que o mundo atual pode nos oferecer, aplicativos
de mensagens, redes sociais de vários tipos, que as crianças perdem
interesse nos costumes que eram tradição outrora. As crianças não
têm tanto interesse nas rodas de conversa. Alguns acham aquilo
pura bobagem, como é o caso do aluno citado acima.
A maneira como as duas crianças foram criadas é muito
diferente: uma criada em uma comunidade ribeirinha com
costumes específicos, conhecendo as mais diversas histórias do
lugar ou das redondezas, outra criada na cidade, crescendo desde
cedo em contato com a tecnologia: videogames, celular, televisão
etc. Contudo, será esse motivo suficiente para que uma acredite
nas narrativas tradicionais e a outra não? Seja qual for a resposta,
por que essas duas visões de mundo não podem coexistir?
Apesar das diferenças impostas pelo desenvolvimento acelerado
das tecnologias, percebemos que as histórias não são deixadas de
lado, elas apenas se tornam pouco frequentes em alguns lugares e em
outros elas são relembradas sempre que possível, como é o caso das
comunidades ribeirinhas. Tivemos a oportunidade de acompanhar,
147
Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz
por meio de uma iniciativa nas escolas da rede municipal de Fonte
Boa, um projeto de recuperação das narrativas tradicionais, visando
justamente que os alunos conheçam um pouco da sua cultura local.
Projetos como esse são muito importantes nas escolas porque além
de recuperar boa parte da cultura local possibilitam também o
avivamento das histórias, ficando disponíveis a todos da comunidade
para conhecerem e transmitirem aos demais.
No município de Tefé também existem projetos que visam
recuperar histórias locais das comunidades, como é o caso do Projeto
Vagalume. Nesse caso, são os próprios moradores que participam e
contribuem com as histórias. No final do projeto tudo é transcrito
em forma de livro, que é distribuído para várias bibliotecas e
assim fica disponível para a sociedade em geral. Projetos como
esse contribuem para a sobrevivência das narrativas tradicionais,
permitindo que parte dos saberes dos mais velhos sejam preservados
e se adaptem diante das mudanças trazidas com a modernidade.
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149
História e outros arquivos:
memória, patrimônio histórico e cultural nos
registros paroquiais do acervo da prelazia
de Tefé-AM (Séculos XIX e XX)
Tenner Inauhiny de Abreu38
Luciano Everton Costa Teles39
Jubrael Mesquita da Silva40
Considerações iniciais
O
presente caítulo na esteira das ações realizadas a partir
do projeto “História, arquivo e memória de Tefé”,
financiado pela FAPEAM entre 2013 e 2016, que tinha como
finalidade organizar e democratizar o acervo da Prelazia de Tefé/
AM, localizado na Rádio Educação Rural do município, tem
como objetivo divulgar a documentação existente nos acervos da
cidade, caracterizados por sua pluralidade e singularidade (na
seção de documentação da Rádio Rural, por exemplo, em seu
fundo, encontram-se registros paroquiais, periódicos, diários
etnográficos, imagens, documentos do Movimento de Educação
de Base – MEB, etc.).
A partir da exposição dos resultados das pesquisas em
andamento, estendendo seus procedimentos a outros fundos de
documentação, poderemos confrontar documentos de origens
diversas além de mapear e descobrir novas fontes. A multiplicidade
de documentos localizados na cidade de Tefé, bem como outros
municípios do médio Solimões, destacam a singularidade e
potencialidade destas fontes para pesquisas científicas regionais e/
ou nacional.
38
Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas/CEST
[email protected]
39
Professor Titular da Universidade do Estado do Amazonas/CEST
[email protected]
40
Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas/CEST
[email protected]
150
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
Cabe destacar que Tefé desde tempos coloniais, quando se
configurou enquanto Missão e, depois, tornando-se vila de Ega,
caracterizou-se por ser um espaço estratégico, abarcando por força
disso interesses e questões políticas, econômicas, sociais e culturais
que faziam da região do Médio e Alto Solimões sua “extensão”.
Diversos municípios hoje existentes no Médio e Alto Solimões,
para se ter uma ideia, foram desmembramentos desta grande área
colonial lusitana. (REIS, 1999; QUEIROZ, 2015).
Vários documentos que remontam ao século XIX e XX
são objetos deste trabalho, realizado até o presente e que serve
de parâmetro para outros acervos, como das Instituições
governamentais. Ressalte-se que a potencialidade do acervo
documental da prelazia não se esgotou. Pesquisas de caráter
mais aprofundado são relevantes para o desenvolvimento do
conhecimento cientifico no interior do Estado do Amazonas.
A Lei nº 12.527/2011 denominada de Lei de Acesso à
Informação (LAI) regulamentou o direito fundamental de acesso à
informação pública. Tal decreto estabelece o dever de transparência
do Estado na divulgação de informações de interesse público.
Focada muito mais nos Poderes e no Estado a implementação da
LAI cria parâmetros não apenas para os agentes públicos, mas
para a sociedade civil. (SILVA, 2013)
Os documentos localizados em Tefé referem-se à história do
Médio e Alto Solimões, uma vez que versam sobre cidades e regiões
localizadas na calha deste rio, mas também de seus afluentes.
Cidades como Santo Antônio do Içá, Amaturá, Fonte boa, Alvarães,
vila de Nogueira, Tefé e outras, são mencionadas em documentos
que trazem consigo aspectos do cotidiano destas comunidades.
Documentos de batismo, casamento, periódicos, registros
etnográficos, dentre outros, constituem-se em exemplos
significativos que se bem explorados, a partir de pesquisas
científicas, possibilitam uma maior compreensão histórica da região.
Importante frisar a existência de uma gama documental na cidade
de Tefé que por sua variedade exige um olhar multidisciplinar, que
assenta este projeto.
Dada à dimensão e importância do acervo, que contém inclusive
documentos em francês e holandês sobre a região, uma intervenção
no sentido de organizá-lo e democratizá-lo fazia-se urgente.
151
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
Este projeto vem realizando esta primeira intervenção por
meio de uma equipe composta por dois professores da área de
História e Geografia, e bolsistas da Universidade do Estado do
Amazonas, fator que contribuiu para a formação de recursos
humanos: bolsas de pesquisa de extensão e iniciação cientificas,
trabalhos de conclusão de curso, projetos de tese, além de
produção acadêmica: artigos em periódicos, capítulos de livros,
anais de eventos científicos, etc. e o aparelhamento junto à
Universidade do Estado do Amazonas, no Centro de Estudos
Superiores de Tefé, do Laboratório de Pesquisa em História
Social (localizado no prédio anexo à Instituição, que conta com:
desktops, notebooks, câmaras fotográficas, impressora, obtidas
com financiamento junto à agência de fomento.).
Cabe destacar que alguns trabalhos via iniciação científica - PAIC,
financiado também pela FAPEAM, e de extensão, via PROGEX/
UEA, tem já mobilizado esforços de demonstrar a potencialidade
do acervo e realizado ações no caminho da democratização ao
acesso do mesmo, junto à comunidade. Neste sentido, o projeto
também focou e ainda foca na ampliação e intensificação desse
processo sumamente importante para a preservação da história
e da memória da região Amazônica. Identificou-se uma gama de
documentos que emergiram da presença histórica da igreja católica
e outras instituições na região amazônica.
A Universidade enquanto espaço de produção do conhecimento
e divulgação deste é detentora de saberes e conhecimentos técnicos
que podem em sua função tripartite de ensino, pesquisa e extensão
fomentar na sociedade civil a preservação de acervos, portanto de
memórias e a democratização das informações, bem como sua
divulgação públicas.
O século XIX, a partir da chamada instalação da Província
do Amazonas (1852), traz uma rica quantidade de fontes oficiais,
sejam os relatórios, exposições e falas dos Presidentes de Províncias;
jornais ou outros documentos produzidos pelos poder público,
amplamente explorado pelas ressentes pesquisas desenvolvidas
pela chamada história social do trabalho. Novas fontes e novas
abordagens em decorrência da ampliação dos estudos em história
do Amazonas apontam para uma massa documental significativa e
relativamente pouco exploradas: as fontes paroquiais.
152
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
As fontes paroquiais são documentos de grande valor por seu
caráter repetitivo e por sua quantidade. Paróquias e Cúrias possuem
um conjunto de assentos que tratam da vida dos paroquianos, quase
individualizada. Esses relatos, por conta da influência da sociedade
católica, transformavam-se em livros de batismos, de habilitações de
casamentos, livros de óbitos e nestes papéis, encontramos informações
preciosas tais como, nome, filiação, naturalidade, qualidade social
(cor, título), moradia, status social. (FRAGOSO, 2010)
As possibilidades analíticas que se abrem a partir da coleta,
catalogação e indexação de tais fontes, aumentam consideravelmente
a capacidades da história aprofundar seus conhecimentos das
relações sociais do Amazonas no período provincial.
O desejo de estudar o chamado “mundo do trabalho” em
contato com uma série de fontes primárias, algumas inéditas,
outras já mencionadas, com certa frequência nas obras de história
regional. As fontes do Arquivo Público do Estado do Amazonas
(Relatórios, Fallas e Exposições de Presidentes da Província do
Amazonas – 1852 – 1889; Livros de Ofícios da Secretaria de Polícia
da Província do Amazonas – 1853 – 1888; Relação dos Escravos
existentes na Comarca da Capital 1869; Lista Classificação dos
Escravos para serem libertados pelo Fundo de Emancipação - 1873)
são ao lado dos arquivos paroquiais, fontes nas quais relevantes
para compreender a dinâmica da sociedade amazonense durante
o século XIX em especial durante a montagem do aparelho estatal
da Província, entre os anos de 1850 e 1889. Sociedade esta que se
apresentava como multiétnica, além da presença de diversos atores
sociais de origens étnicas e condições jurídicas diferenciadas.
A leitura de obras que apontam para a utilização das chamadas
fontes dos arquivos paroquiais pela história social, entramos em
contato com fontes inéditas, coletadas na Cúria Metropolitana de
Manaus. Livros de batismos, assentamento de óbitos, indícios de
como a sociedade amazonense via seus habitantes, muitos com
fenótipo variado, o que ultrapassava a condição jurídica.
A mesma potencialidade encontrada nos arquivos da cúria de
Coari e também da Prelazia de Tefé, onde livros de batismos do
século XIX, apresentam dados significativos sobre o perfil social
dos habitantes do interior da Província do Amazonas durante o
período destacado.
153
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
A construção de um projeto, utilizando-se da potencialidade
das fontes da prelazia de Tefé, notadamente os arquivos paroquiais
presentes também na chamada Casa Paroquial, nos permite a partir
de tais fontes que tem uma quantidade considerável de informações
conhecer de forma mais ampliada o universo do mundo do trabalho
e as relações multiétnicas que se estabeleceram na Província, por
conta da presença de atores sociais das mais diferentes origens e
condições jurídicas (escravos, sejam negros e mestiços, trabalhadores
livres, indígenas) que transitam por todo o território da Província
É notória a importância dos arquivos para a sociedade
como um todo. Explorados de variadas formas, os documentos
preservados, organizados e disponibilizados ao público em geral,
e aos pesquisadores em particular, têm possibilitado recuperar
dimensões históricas e culturais de sociedades passadas.
Em que pese esse caráter salutar, muitos documentos do
passado eventualmente têm chegado à atualidade mediante um
processo de “entulhamento”. Não é raro identificar espaços cujos
acervos se encontram desorganizados, não higienizados e, numa
situação mais grave, em processo de desintegração.
Existem esforços acadêmicos em diversas áreas 41, em
especial na história, de mobilizar energia no sentido de modificar
essa realidade que se faz presente em várias regiões do país.
Recentemente, no Amazonas, vários projetos foram desenvolvidos
visando à organização e disponibilização de acervos documentais,
assentados em editais de agência de fomento e/ou instituições de
ensino superior. 42
O presente texto, na esteira das ações realizadas a partir do
projeto “História, arquivo e memória de Tefé”, financiado pela
FAPEAM e com o foco na organização e democratização do acervo
da Prelazia de Tefé/AM, localizado na Rádio Rural do município,
tem como objetivo apresentar parte da documentação existente
41
Como, por exemplo, Arquivologia, Biblioteconomia, entre outras.
Como o projeto “Documentos históricos do Judiciário amazonense: diagnóstico
de acervo e organização do arquivo permanente do Poder Judiciário do Estado
do Amazonas” (PGCT-FAPEAM), com a finalidade de organizar 15 mil processos
(SILVA et. al., 2012). Além desse, existe o projeto “Colégio Amazonense D. Pedro
II: memória, patrimônio e fontes históricas”, financiado pela FAPEAM através
do Edital 010/2013 – PRÓACERVO com o objetivo de organizar o acervo
documental do Colégio Amazonense D. Pedro II, entre outros.
42
154
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
no acervo, notadamente os registros paroquiais e os periódicos,
destacando suas singularidades e potencialidades para os estudos
históricos regionais e/ou nacionais.
O projeto: História, arquivo e memória de
Tefé/AM
No segundo semestre de 2013, os professores ligados à linha
de pesquisa de História Social (Alcemir Arlijean Teixeira Bezerra,
Luciano Everton Costa Teles e Tenner Inauhiny de Abreu)
submeteram coletivamente ao edital n. 010/2013 – PRÓ-ACERVO
(Programa de apoio à organização, restauração, preservação
e divulgação de acervos documentais do Estado do Amazonas),
lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Amazonas (FAPEAM), um projeto 43 cuja finalidade consistia na
organização, preservação e democratização do acervo localizado
na Rádio Rural de Tefé, sob a guarda da Prelazia da cidade.
A documentação presente no acervo retrata aspectos da
história das cidades do Alto e Médio Solimões 44, em especial
Tefé. A relevância desta cidade na região remonta ao seu
passado 45, sobretudo pela sua posição estratégica. Foi alvo de
ações missionárias (Carmelitas x Jesuítas) e disputas territoriais
profundas, especialmente entre Portugal e Espanha (UGARTE,
2000; BOXER, 1977; MAXWELL, 1996).
A atuação missionária da igreja católica na região foi
inconteste. No período colonial, as ordens religiosas disputavam
as áreas para suas Coroas, os carmelitas para Portugal e os jesuítas
para a Espanha, e os impactos causados sobre as etnias indígenas
provocavam, constantemente, deslocamentos das mesmas ao longo
do rio Solimões. Do mesmo modo, os agentes coloniais leigos
entravam em conflito com os povos indígenas, em especial para
escravizá-los e direcioná-los para a extração das chamadas “drogas
do sertão” 46 (SANTOS, 2002).
43
O projeto intitula-se “História, arquivo e memória de Tefé”. O financiamento
obtido foi da ordem de R$ 66.593,33.
44
Em especial Tefé, Alvarães, Uarini, Fonte Boa, Jutaí, Tonantins entre outras.
45
Passado ligado ao mundo colonial, entre os séculos XVII e XVIII.
46
São produtos extraídos da floresta – como, cacau, canela, baunilha, cravo, etc. –
155
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
Com efeito, os conflitos ligados ao avanço dos missionários
(catequização) e colonos leigos (busca de mão de obra) não se
encerraram no século XVIII. Avançaram nos séculos subsequentes,
particularmente no XIX e XX. Por exemplo, no século XIX, uma
nova ordem passou a ter influência na região, desta vez eram os
espiritanos. Atualmente ainda marcam presença no local.
Neste sentido, o acervo possui documentos desses períodos,
sobretudo dos séculos XIX e XX. Livros de batismo, casamento,
óbitos, periódicos e demais peças documentais que acabam retratando
de alguma forma a história da região do Alto e Médio Solimões. 47
Ciente da importância do material presente no acervo, esforços foram
canalizados para sua preservação e democratização (BEZERRA,
TELES, ABREU, 2013). Tais documentos podem ser utilizados para
a recuperação da história e da memória(s) da região, para além da
história/memória oficial da Igreja e/ou cidades da Amazônia.
As ações do projeto já desenvolvidas resultaram na constituição
de um inventário parcial dos documentos presentes no acervo. São
aproximadamente 2.774 documentos organizados em 30 caixas
de arquivos distribuídos em diversos temas: documentos, cartas,
jornais, livros, apostilas, mapas, relatórios, livros de ponto, atas
de reuniões, cursos, formulários, projetos, informativos, boletins,
encartes, programas de rádio, cadernos sobre os movimentos
sindicais, não contando com os que não foram catalogados e
inseridos no inventário. Alguns desses materiais são significativos
do ponto de vista de suas possibilidades de pesquisa histórica.
A Geo-história do Médio Solimões
A história da cidade de Tefé em suas origens mais longevas se
confunde com a atuação missionária da Igreja Católica na então
Amazônia Colonial. Conforme destaca Arthur Reis (1999, p. 129)
a região do rio Solimões foi ocupada pela coroa portuguesa em
virtude da presença dos jesuítas espanhóis na área.
e exportados para a Europa. Sobre a mão de obra indígena e sua exploração para
a extração das “drogas do sertão” ver também (SOUSA, 2002).
47
Antigamente a área de Tefé abrangia o Médio e parte do Alto Solimões. Portanto
os documentos do século XIX e início do século XX também registram aspectos
de cidades localizadas nessa região da calha do rio.
156
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
O nascedouro da cidade está ligada a missão de Santa Tereza
D’Avila, fundada pelo então padre jesuíta Samuel Fritz, na barra
do rio Tefé em 1688. Arthur Reis (1999) destaca a figura do jesuíta
Samuel Fritz e a atuação missionária dos espanhóis na área do rio
Solimões, de acordo com o autor a raia de ação do missionário se
estendia até o rio Negro.
Entre os rios Javari e Negro, havia de acordo com Reis (1999)
quatro grandes postos missionários. Por volta de 1691, carmelitas
portugueses iniciam uma reação para frear a influência espanhola
na região do vale amazônico, fato que de acordo com o autor tem
seu ápice em 1710 quando foi “de vez, sacrificado o trabalho dos
loyolistas de Fritz, incorporando-se a imensa faixa de terra onde
operavam à colônia de Portugal no vale” (Reis, 1999, p. 130).
Dentre os núcleos missionários fundados pelo jesuíta Samuel
Fritz, Tefé era nas palavras de Arthur Reis (1999) um dos mais prósperos. André da Costa, carmelita, conforme assinala o autor, iniciou
conquista e tarefa da catequese na região a partir da ilha dos veados,
entretanto ao ter contato com Tefé, leva para lá os índios sob sua
guarda. Tal núcleo naquela época denominava-se de Santa Thereza.
Arthur Reis (1999, p. 131) recorre ao viajante La Condamine
para descreve os primeiros aspectos referentes ao núcleo originário
da cidade de Tefé. De acordo com o autor:
Em 1743, La Condamine, descendo o Amazonas, visitou-o. encantou-se com o que se lhe deparou. Em Tefé, como em Coary
(sic), como nos outros sítios onde exerciam os seus misteres
os carmelitas, o aspecto era surpreendente: capelas, presbitérios, casas de pedra ladrilhadas, os nativos vestidos, cercados
de conforto em franca atividade agrícola.
Já posteriormente, ainda conforme Reis (1999) Tefé, passa
gradativamente a ter destaque, quando o Governador e capitãogeneral Francisco Xavier de Mendonça Furtado, chefe da comissão
portuguesa de limites com as colônias espanholas ao norte, mandou
ocupar o lugar construindo um destacamento militar. Tal fato de
acordo com Reis era uma providência estratégica contra a possível
invasão espanhola pelo rio Solimões.
Deste destacamento militar Arthur Reis (1999, p. 132) começou
a se organizar a sociedade de Tefé, na medida em que realizaram-se
157
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
casamentos entre os soldados e as mulheres indígenas e com esses
elementos se forma a família tefeense: soldados, comerciantes, e
indígenas.
Criada em 1757 a Capitania de São José do Rio Negro,
seu então primeiro governador, Joaquim de Mello Póvoas, em
conformidade com suas obrigações administrativas, desceu para,
nas palavras de Arthur Reis (1999, p. 132) visitar o território.
Passando pelo rio Solimões escolheu Tefé e São Paulo de Olivença,
para sede de outras vilas, isso nos últimos meses de 1759.
Mello e Póvoas muda o nome da vila de Tefé para Ega, de
acordo com Reis (1999) pois dava continuidade a política de
Mendonça Furtado de denominar as vilas a partir de nomes
portugueses, de acordo com nomes europeus. Arthur Reis afirma
que a origem do nome Ega estava ligada a: “Ega, era a vila do
Condado de Candeixas, em Portugal, no Douro.” (1999, p. 133)
A vila de Ega conforme assinala Reis (1999) vivia de atividades
econômicas vinculadas a pesca e a fabricação de manteiga de
tartaruga. Não tinham trato com as questões de lavoura.
Moravam na vila conforme Reis, em consonância as
informações do ouvidor Ribeiro Sampaio, em 1775, 36 brancos,
10 escravos e 449 índios. A vila tinha três ruas: uma pequena,
acompanhando o curso do rio, outras perpendiculares de larga
extensão. O terreno era desigual e pouco se elevava das águas do
rio Solimões (1999).
Acima da vila, assinala Reis (1999, p. 134) havia um povoado
subordinado a vila de Tefé, denominado de Nogueira, levantado
em uma planície, à margem oriental da baia de Tefé, com duas
ruas, avançando para o sul. Tal localidade fora também missão do
Jesuíta Samuel Fritz, com o nome de Parauary.
Em 1777, Reis (1999, p. 136) Ega é escolhida para sede das
comissões de limites entre Portugal e Espanha na Amazônia. Em
março de 1781 chegava a comitiva espanhola, porém em 1784, de
acordo com o autor, ambas as comissões retiraram-se do local.
Em 1790 o governador da Capitania de São José do Rio Negro,
Manoel Lobo d’Almada tentando minorar a presença espanhola na
região, fato assinalado por Arthur Reis (1999, p. 137-8) como novo
chefe da comissão portuguesa de limites enviou tropas de Iça e
Tabatinga para a vila de Ega.
158
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
De 1815 em diante, Ega, de acordo com Arthur Reis (1999,
p. 140) ficou sendo sede de uma comandância de praias. O fato
significativo para o autor dava-se com a captura de indígenas do
Japurá, que eram levados para o Lugar da Barra.
Durante o século XIX, Reis (1999) ressalta que a vila sofre um
aumento no seu contingente populacional: 2200 indivíduos em Ega,
1200 em Nogueira, totalizando 3400 nos distritos do município.
Quanto ao aspecto da vila o autor afirma sua característica pitoresca:
“o casario coberto de palha, inclusive a igreja, um quartel e um
armazém do rei, esses dois de telha” (p. 141)
Em 1833, pela Divisão do Código do Processo ficou sendo, de
acordo com Arthur Reis (1999, p. 141) a única vila do rio Solimões,
com fronteiras absorvendo a José do Javari e São Paulo de Olivença,
os lugares de Alveollos, Alvarães, Fonte Boa e Nogueira.
Em 1855, Tefé, pela resolução 44 de 15 de junho teve o titulo
de cidade com o nome atual. (Reis, 1999, p. 143).
Documentos Paroquiais
Identificou-se uma gama de documentos que emergiram da
presença histórica da igreja católica na região amazônica. Trata-se
de livros de batismos, casamentos e assentamentos de óbitos.
Imagem 1 – Livro de batismo, Vila de Ega 48 – 1800
Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação.
48
Tefé, cidade amazônica, nasceu de uma missão carmelita no início do século
XVIII, especificamente 1718. A partir do Diretório dos Índios de 1757, a missão
foi transformada em Vila, com denominação de Ega. Para conhecer essa história
ver (FAULHABER, 1998; AZEVEDO, 1990; REIS, 1999).
159
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
Esse tipo de documentação é vista como significativa para os
estudos históricos, pois se colocam como importantes pistas para o
processo de reconstrução de complexas relações sociais articuladas
no século XIX. Por ela, é possível, por exemplo, reconstituir
redes de relações entre variados grupos (comerciantes, indígenas
escravizados e/ou libertos, etc.), assinalando suas características e
dinâmicas.
Cabe destacar que esse tipo de material pode ser
intensamente explorado regionalmente. Documentos paroquiais
são peculiares pelo seu caráter repetitivo e por tratar, de forma
bastante individualizada, da vida dos paroquianos. Nesses papéis
se encontram informações salutares, tais como nome, filiação,
naturalidade, qualidade social (cor, título), moradia, status social,
entre outros (LIBBY, 2010: 41). Tal documentação ainda pode
esclarecer questões ligadas à estratificação social, sistema de
parentescos, relações de vizinhança, sistema de casamentos, etc.
Consoante João Fragoso é possível mediante os registros
paroquiais realizar uma história demográfica ou das famílias
(2014: 80). Mas se articulados a outros documentos, como jornais,
revistas, boletins e demais, podem ainda fornecer uma série de
informações relevantes.
Imagem 2 – Livro de batismo Tefé – 1842/1851
Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação.
160
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
Dos vários exemplos que são possíveis identificar, optou-se por
salientar o estudo de Douglas Libby (2010). Este autor examinou a
documentação paroquial de Minas Gerais durante o século XVIII,
procurando analisar as representações identitárias e o processo de
racialização envolvendo escravos e ex-escravos na região. Constatou que
é possível observar uma mudança na descrição da origem e condição
dos indivíduos naquele período. Usando os documentos paroquiais
o autor chegou à conclusão de que tais representações estariam
mais vinculadas à posição social do que a própria identidade racial.
Significativo na obra de Libby foi o uso da documentação paroquial na
análise de racialização e posição social dos grupos estudados por ele.
Com efeito, os historiadores sociais têm explorado, embora
de maneira menos intensa do que em outros países, os registros
paroquiais. Internacionalmente, existe um largo uso dessa
documentação que pode servir como referência para estudos
internos e regionais (FRAGOSO, 2010: 74).
Periódicos
Além dos documentos paroquiais, encontram-se também
periódicos. Jornais, revistas e boletins compõem também o acervo
da Prelazia de Tefé.
Imagem 3 – Boletim o missionário – N. 7
Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação.
161
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
O uso de periódicos na disciplina histórica foi gradativamente
tomando corpo, em especial nas últimas quatro décadas.
Tornaram-se material empírico de grande potencialidade na
reflexão histórica. Isso se deu, grosso modo, quando a história
tradicional e o foco dado ao documento produzido pelos órgãos
oficiais do Estado foram criticados enquanto hegemônicos
(CARDOSO, 1981; BORGES, 1980; BARROS, 2004).
Como resultado disso, revistas, jornais diários, boletins,
entre outros, foram explorados no sentido de potencializar a
recuperação de aspectos significativos do passado das sociedades.
Nesse processo de uso dos periódicos, há quem tenha assinalado
sua relevância:
Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a
imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos
homens através dos tempos. O periódico, antes considerado
fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como
material de pesquisa valioso para o estudo de uma época (CAPELATO, 1988: p. 13).
Embora destacando a imprensa, não se pode negar a
importância dessa assertiva para os periódicos em geral, uma vez
que eles trazem em seu bojo férteis informações que podem lançar
luzes sobre dimensões sociais importantes como, por exemplo, a
trajetória de lutas, os interesses, os ideais de grupos sociais que
estão presentes na cena histórica em específicos contextos e lugares
do passado.
162
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
Imagem 4 – Jornal O Solimões – N. 30
Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação.
Tais documentos potencializam uma reflexão histórica
significativa das sociedades no nível de suas condições de vida,
manifestações culturais, políticas, dentre outros. Inserindo-os
em seus contextos históricos, identificando os grupos por traz
dos periódicos e seus “discursos”, dimensões sociais e culturais
importantes podem ser iluminadas (LUCA, 2005; ZICMAN, 1985).
Arquivo/História: preservação e memória
Certamente que nas sociedades contemporâneas os esforços
voltados para a constituição de arquivos, pautados na seleção de
documentos 49, porém salutar na preservação de informações e
49
Nem tudo é preservado. Não obstante, os documentos que escaparam da
destruição e do esquecimento se enquadraram em torno de critérios específicos
163
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
conteúdos, em especial institucionais, relacionam-se não somente
com a preocupação de cumprir uma legislação específica 50,
mas também de preservação de memórias (JARDIM, 1995).
Recentemente, a questão do patrimônio histórico e cultural ganhou
corpo, como destacou Fratini:
É cada vez maior a preocupação com a conservação e a preservação do patrimônio histórico e cultural de uma sociedade, de
um país. As dimensões e as características que definem o nosso
tempo e espaço geram discussões constantes sobre o que, como
e para quem preservar (2009: 1).
Como parte significativa desse processo, os arquivos foram
mencionados, por serem formados por documentos legados de
outras épocas e, neste sentido, inseridos como elementos que
formam o patrimônio histórico e cultural. Portanto, atualmente
o interesse em preservá-los vai muito além do Estado e de suas
instituições, envolvendo a sociedade civil como um todo.
Com efeito, não se pode negar que o processo de preservação
e constituição de arquivos abarca questões ligadas à memória
histórica, particularmente quando se opera a seleção dos
documentos. O que preservar? Que documentos merecem ser
legados a posteridade? E por quê?
Essas perguntas revelam um movimento no sentido de fazer
emergir uma memória que, dependendo do grupo, da instituição
ou da entidade, será diferente. Um exemplo bastante notório se
refere ao Estado Nacional que sempre buscou traçar memórias
oficiais em diferentes contextos (BREFE, 2005).
Por outro lado, documentos que foram produzidos, porém
jamais pensados para a posteridade ou para compor algum tipo
de memória oficial, quando descobertos podem apontar para
o surgimento de outras memórias, muitas vezes incômodas,
reforçando seu caráter plural, revelando conflitos e disputas
(POLLAK, 1989: 4-8).
que nortearam esse processo. Nesses critérios se materializaram interesses sociais,
políticos, econômicos e culturais hegemônicos em contextos diferentes (REIS,
2006).
50
Lei n. 8159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos
públicos e privados e dá outras providências.
164
História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros...
Um exemplo de uma “memória incômoda” corresponde aos
arquivos das ASI Universitárias. Motta recuperou a trajetória dos
arquivos das Assessorias de Segurança e Informações das universidades
e os embates e disputas que eclodiram nesse caminho. Para o autor,
controlar “a memória coletiva sempre foi um mecanismo de exercício
de poder, de garantir e conferir legitimidade aos governantes e aos
sistemas de organização política em vigor...” (MOTTA, 2008: 43-44).
A importância dada aos arquivos levou diversos pesquisadores
de diferentes áreas – arquivologia, antropologia, história e outras
- a realizarem estudos, sob diferentes perspectivas (COOK, 1998;
ROUSSO, 1996; CHUVA, 1995).
Neste sentido, o projeto desenvolvido e direcionado ao acervo
da Prelazia de Tefé, assim como o presente texto, surgiram no sentido
de reforçar esse movimento de preservação e democratização, mas
também de demonstrar que alguns (existem muitos outros que
ainda serão observados e mencionados) documentos desse acervo
podem revelar diferentes histórias e memórias sobre a região
amazônica.
Considerações finais
Através das ações realizadas no âmbito do projeto “História,
arquivo e memória de Tefé” (FAPEAM) foi possível identificar
uma gama diversificada de documentos que compõem o acervo
da Prelazia de Tefé/AM. Desse universo se buscou destacar, como
exemplos, os documentos paroquiais e os periódicos para, a partir
deles, explicitar suas peculiaridades e potencialidades para as
pesquisas históricas e culturais acerca da região.
Como mencionado anteriormente, mediante os arquivos
paroquiais questões ligadas à estratificação social, sistema de
parentescos, relações de vizinhança e sistema de casamentos podem
ser exploradas. Já com relação aos periódicos aspectos referentes
às condições de vida, materiais e culturais, dinâmicas políticas,
formas de circulação de ideias e tantos outros temas (que acabam
emergindo das questões registradas e levantadas pelos periódicos)
podem também serem alvos de pesquisas.
Desta forma, os documentos assinalados, assim como o
conjunto deles, colocam-se como fundamentais para a região (e até
165
Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva
mesmo numa escala maior, nacional e internacional), sobretudo
para recuperar e fazer emergir novas histórias e memórias.
Nesta esteira, fica então evidente que a preservação,
organização e democratização de acervos, como este desenvolvido
em Tefé, são extremamente importantes para a compreensão
histórica das sociedades do passado.
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167
A arte de benzer e seus processos de (re)
construção a partir do olhar dos curandeiros
(Tefé – AM)
Adriana Nonato Braga 51
Cristiane da Silveira52
B
enzer é um ato que consiste em curar pessoas dos mais
diversos males, através de gestos e preces que vem
acompanhada do uso de plantas selecionadas. A arte de benzer é
uma atividade que sofre influência de diversas culturas, no Brasil as
influências vêm, principalmente, dos povos indígenas e africanos.
Em tempos remotos, normalmente se encontrava os(as)
benzedores(as) em lugares mais distantes que não tinham acesso
à médicos, nesses locais o(a) benzedor(a) era quem cuidava da
saúde das pessoas não apenas com o benzimento, mas também
com remédios feitos com o uso de plantas, banhos, sumos e chás.
Na atualidade, mesmo com os avanços da medicina e a
facilidade no acesso aos hospitais o ato de benzer continua presente
na sociedade, isso porque há muitos que recorrem a esta prática
e acreditam nela. O dom do benzer pode ser repassado de um(a)
benzedor(a) mais velho(a) e experiente para um(a) mais jovem,
ou também há casos em que o indivíduo nasce com o dom e o
desenvolve durante a vida com a ajuda de outros(as) benzedores(as)
ou sozinho.
Para alcançarmos os objetivos propostos por esse trabalho
que são entender, investigar e apresentar algumas das diversas
formas de benzer, suas origens, influências e como se deram seus
processos de (re)construção ao longo do tempo, a população da
pesquisa foi de dois benzedores, sendo um do sexo masculino e
outra do sexo feminino.
51
Licenciada em História pela UEA. Pós GraduaDA em História e Cultura Afrobrasileira. Mestranda do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH.
52
Professora Adjunta do CEST/UEA e do PPGICH/UEA.
168
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
O benzedor do sexo masculino de nome fictício Raimundo
tem 66 anos, nasceu no município de Ouro Preto do Oeste, situado
no estado de Rondônia. Durante sua vida residiu em alguns
municípios até finalmente firmar residência no município de
Tefé-AM, onde se encontra atualmente. Raimundo é uma pessoa
simples, gentil e de muita fé. É devoto da religião católica, essa que
segue desde a sua infância.
A benzedora do sexo feminino de nome fictício Francisca tem
40 anos, nasceu no município de Itamaraty, interior do Amazonas,
teve residência na cidade de Manaus e de Presidente Figueiredo
até firmar moradia no município de Tefé- AM, no qual reside
atualmente. Francisca é professora, profissão pela qual diz se sentir
feliz em atuar. A benzedora anteriormente foi devota das religiões
católica e evangélica, mas atualmente segue a umbanda, religião
de matriz africana. Foi no umbandismo que começou exercer a
função de Mãe de Santo e também de benzedora.
Breves considerações sobre o contexto histórico da
arte de benzer
O ser humano preocupado com sua saúde descobriu maneiras
de cuidar desta, sendo o benzimento uma destas formas de cuidar
das enfermidades. Sob esta perspectiva identificamos como o
homem aprendeu com as doenças e pensando numa cura passou a
desenvolver formas de tratamentos, assim ele passou a compreender
que cuidar da saúde seria o mesmo que investir em seu corpo,
no seu espírito, em si mesmo. Considerando uma infinidade de
meios como: “sistema de alimentação, consumo de fármacos, e
outras substâncias, espiritualidades, estilos de vida, variavelmente
combinados em composições pessoais criativas” (Cunha e Durand,
2011, p. 13).
Consonante à crença da sabedoria popular e de diversas
religiões, corpo e espírito não se separa, assim quando um mal
atinge o corpo, o espírito também é atingido e para que esta
cura ocorra há sempre uma reza ou um benzimento que possa
ajudar. Por conta disso, Hoffmann-Horochovski (2015) afirma que
mesmo com os avanços da medicina esta tradição segue e persiste
169
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
na sociedade atual. É uma prática de cura bastante utilizada, em
especial nas regiões interioranas do Brasil. Remonta do período do
Brasil colonial, trata-se de uma prática que é passada de geração
em geração e que em sua maioria é realizada por mulheres.
O surgimento e avanço da chamada ciência médica não coibiu
a medicina popular que faz uso de bênçãos, chás e demais formas
de tratamentos naturais. O que ocorreu foi uma opção a mais de
tratamento e busca pela cura, que quando não provinha dos ritos
de cura, poderia surgir através dos conhecimentos do médico
formado. Desse modo, ir em busca de uma, não anulava a outra.
Para Figueiredo (2008), o século XIX é considerado um
importante marco na medicina de forma geral, pois foi onde
surgiram as primeiras práticas de assepsia, o início do uso de
anestesiantes nas intervenções cirúrgicas, bem com o avanço nas
pesquisas sobre bactérias. A partir daí a medicina científica começa
a conviver com a medicina popular e passam a coexistir. Ainda
que as descobertas tenham trazido inúmeras contribuições para a
melhoria da nossa saúde e bem-estar. No entanto:
O espaço da fé, da crença, da simpatia não se contrapõe, na
prática das pessoas do século XIX, ao espaço da razão e da
chamada ciência médica. Aquele que procura o curandeiro
pode, para o mesmo problema, consultar o médico formado.
Encontramos relatos de médicos indicando que os pacientes
passavam pelas mãos de outros curadores e procuravam os
médicos quando não obtinham sucesso na primeira tentativa
(Figueiredo, 2008, p. 31).
Mesmo com certa dificuldade as práticas da medicina
popular seguem resistindo e sobrevivem nos mais diversos espaços
geográficos, principalmente no interior das grandes cidades ou
ainda nas periferias dos grandes centros urbanos. Figueiredo
afirma:
A população das cidades interioranas espalhadas pelos espaços
rurais se desenvolvera, pela tradição, formas próprias de intervir no corpo doente, no corpo que sofre fisicamente. A intermediação entre o paciente e o seu problema poderia ocorrer
através da figura ampliada do curador, seja ele o benzedor ou
170
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
aquele que indica mezinhas, chás e receitas conhecidas, aquele
que observa, diagnostica e prescreve ou, ainda, por meio de
alguns elementos que podem representar proteção: patuás e
amuletos espalhados pelo corpo, ou outras formas de crença
(2008, p. 21).
Diante disto, fica perceptível que a medicina popular foi durante
muito tempo(e ainda segue sendo nas regiões mais remotas) a única
forma de tratamento e cura de enfermidades. E que culturalmente
falando, a arte de benzer é parte da identidade e cultura de muitos
povos. E apesar do seu enfraquecimento ainda podemos encontrar
pessoas que a dominam e exercem com a finalidade de cuidar
daqueles que necessitam, seja espiritualmente ou fisicamente.
Segundo Souza (1993), por pensar que a doença era algo
celestial, os europeus acreditavam que para ser curados, era
necessário que a cura também viesse dos domínios sobrenaturais e
geralmente quem tinha essas respostas eram os curandeiros. Ainda
conforme a autora supracitada: “na França do século XVI, ainda
se pensava dessa forma, pois acreditava-se que o dom de curar era
hereditário” (Souza, 1993, p. 167).
Desse modo criou-se a crença de que a interpretação das
doenças e seus procedimentos provinham das forças sobrenaturais,
de algo divino bem como das forças da natureza. Através desta
concepção é que surgem os curandeiros, benzedoras e ou rezadores
(os nomes dados a eles podem variar de acordo com as literaturas
existentes), que são vistos como pessoas com o dom de falar e agir
das forças sobrenaturais. Durante séculos eles dominaram a cura
em diferentes tempos, espaços e culturas, sendo a única forma de
tratar dos doentes e de curar suas enfermidades.
A arte de benzer através dos relatos dos benzedores
do município de Tefé/AM
A pesquisa ocorreu no município de Tefé, anteriormente
chamada de Vila da Ega, situa-se no interior do estado do
Amazonas, e ocupa uma área total de 23704,426 km². Tefé é um
termo de origem nheengatu. Antes das expedições de Colombo
em 1492 e Cabral em 1500, que marcam a chegada dos espanhóis
171
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
e dos portugueses ao território brasileiro, Tefé era habitada por
diversos povos indígenas (Cabrolié, 1996).
De acordo com as leituras realizadas e os dados coletados foi
possível compreender parte das origens da arte de benzer e para
diversos autores, trata de um ato que está intimamente ligado a um
dom que vem do sagrado e relaciona-se com as doenças e comos
rituais de cura. Nery compreende que:
A tradição que o ato de benzer, ou de curar, é a ritualização
das coisas da fé, onde muitas vezes se misturam o sagrado e o
profano. Herança dos portugueses que ao chegarem ao Brasil
sofreram influências dos índios e, posteriormente, dos africanos, sobretudo as mulheres. O conhecimento das plantas medicinais da colônia, dominado pela cabocla e pela mulata, unido
ao das plantas medicinais trazidas pelos portugueses, foi sendo
repassado de geração em geração, originando o costume de
curar doenças por meio de recursos naturais. Daí a procura
pelas rezadeiras para fazer chás, simpatias, rezas e benzeções
uma solução eficaz para solucionar os problemas de saúde para
as classes mais desfavorecidas (2018, p. 02).
Desse modo, as pessoas passaram a procurar o benzimento a
fim de alcançar a cura para doenças do corpo e da mente e também
para pedir uma proteção ou ainda para pedir uma orientação sobre
decisões que tem para resolver.
É importante enfatizar que, apesar do fato dos benzedores(as)
realizarem os mesmos processos, cada um(a) possui sua
particularidade na hora de realizá-los. Pois, cada benzendor(a) tem
seu próprio rito, ou seja, suas próprias orações. “Essa singularidade
a torna ainda mais fascinante, uma vez que presenciamos várias
maneiras de se alcançar o mesmo objetivo: a cura através da fé”
(Nogueira, et al. 2012, p. 169).
Cabe mencionarmos que não é qualquer pessoa que pode
ser um(a) benzedor(a), haja vista que se faz necessário possuir o
dom para benzeção. A escolha de novos benzedores ocorre por
meio dos benzedores mais velhos que reconhecem e repassam seus
ensinamentos e suas práticas aos mais novos. Mas antes de tudo,
é imprescindível que a pessoa reconheça e aceite a existência do
dom, que é um presente divino (Santos, 2007).
172
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
Uma regra que é consenso entre as pessoas que praticam a
benzeção é que não se pode cobrar por ela. Mas geralmente recebem
presentes ou doações das pessoas que ajuda. Esses presentes são uma
forma de agradecimento por partes das pessoas atendidas pelo(a)
benzendor(a), as doações são um meio de retribuir a ajuda. Assim
a benzeção faz parte da medicina popular e vem sendo executada
por diversos povos no decorrer dos séculos, ela é tradicionalmente
transmitida de geração a geração. O que notamos a partir da
investigação é que essa prática se não repassada, com o passar
dos anos pode desaparecer na ausência de novos aprendizes, em
especial nos centros urbanos maiores.
Benzer não é apenas realizar gestos aleatórios usando certas
orações, através das entrevistas é possível notar que para quem
pratica da benzição esta permeia toda a sua vida, pois ser um
benzedor é um dom, logo tem que estar pronto para atender as
pessoas necessitadas a qualquer momento, essa disponibilidade
requer do benzedor(a) uma devoção a seu dom.
O primeiro momento da entrevista utilizamos para conhecer
melhor nossos dois entrevistados(as), saber um pouco mais sobre
suas origens, idade, como e com quem aprenderam a arte de
benzer. Os benzedores(as) possuem entre 40 e 66 anos de idade,
sendo um natural do município de Eirunepé e outro nascido na
cidade Itamaraty, municípios do interior do Amazonas. Ambos
afirmaram que moram e atuam há muitos anos em Tefé.
Quando questionados sobre como e com quem aprenderam
a prática de benzer. Ambos afirmaram ser um dom recebido de
Deus. Conforme as palavras da benzedora Francisca: “Eu não
aprendi com ninguém na verdade, eu acho que já veio comigo um
dom e aí eu só comecei a praticar e tive algumas orientações, mas
a reza e a prática de benzer já veio comigo mesmo. É um dom”
(Francisca, 2021). O benzedor afirma que:
Bom, foi o dom que Deus me deu, a minha mãe ela sabia várias
coisas, ela rezava também. Então ela me ensinou pouca coisa,
mas a convivência a gente foi desenvolvendo [...] Então eu acredito como diz a população, eu acredito que foi um dom que
Deus me deu. E rezando até o presente eu nunca desenganei
ninguém, eu juro perante a lei de Deus, sempre que quando
rezo na pessoa ela fica bom, pego desmentidura, e da reza não
173
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
cobro nada de ninguém, mas da desmentidura eu cobro, se eu
pegar hoje na desmentidura da senhora eu cobro 10 reais e se
amanhã a senhora estiver sentido, pode voltar que eu devolvo
o dinheiro. (Raimundo, 2021).
Por meio do relato de ambos notamos que a arte de benzer não
é algo que se adquiri com o tempo ou que se pode ser aprendida,
para ser benzedor(a) é necessário que a pessoa receba um dom que
vem de Deus e que com o passar do tempo vai sendo aperfeiçoado.
Notamos que um dos benzedores recebe gratificações em dinheiro,
mas seu Raimundo reforça que só recebe dinheiro para uma
atividade específica, para pegar desmentidura53, tendo em vista
que não pode cobrar pelo benzimento.
Questionamos de como é feita a transmissão do conhecimento
sobre o benzimento. O benzedor Raimundo disse que: “Não
aprendi com ninguém. Tudo foi dom, o que eu sei sobre reza
tudo foi dom, porque o que eu aprendi com minha mãe foi o ‘pai
nosso’, ‘ave Maria’ só oração para se deitar mesmo” (Raimundo,
2021). Quanto ao mesmo questionamento a benzedora Francisca
responde:
Então, essa transmissão eu acredito que é passada de geração
para geração, só que no meu caso como eu já vim, a prática já
veio comigo né, eu fui praticando e com o tempo fui me aprimorando e eu tive algumas orientações de outras pessoas que
já praticavam a reza (Francisca, 2021).
No relato notamos que os conhecimentos geralmente são
repassados de geração em geração, por algum membro mais antigo
da família que também recebeu o dom de benzer ou por algum(a)
outro(a) benzedor(a) que ajuda os mais jovens a compreenderem
seu dom para assim usá-lo de forma a ajudar as pessoas.
É sabido que cada benzedor(a) possui uma forma única de
praticar seus ritos, entretanto quando se trata de rezas e orações
elas costumam ser as mesmas, o que difere é apenas a forma como
53
Definição regionalismo - Norte-Nordeste, deslocação de osso (ou articulação);
qualquer tipo de contusão; luxação. Dicionário Online de Português, Site DICIO.
Disponível em: https://www.dicio.com.br/desmentidura/. Acesso em 18 de
junho de 2021.
174
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
cada benzedor(a) a entoa ou ainda quais os instrumentos que são
utilizados para o rito. Quanto as músicas e orações utilizadas
durante o ritual a benzedora respondeu:
Geralmente eu não uso música, eu uso oração, o pai nosso,
creio em deus pai e eu gosto muito de nossa senhora de aparecida a desatadora de nós, quando a gente está rezando a gente
sempre faz essa oração. E a reza na verdade é um passe que é
de purificação pra tirar as coisa ruim pra vim as coisa boa pra
pessoa (Francisca, 2021).
Já o benzedor menciona:
Sempre que a oração e assim mesmo, a reza que eu rezo nas
pessoas e que eu não posso ensinar, porque se eu ensinar não
serve, mas para mim. Agora outra coisa, isso aí e uma grande
força que nós temos dado por Deus, quando a senhora está
deitada abri os olhos, mesmo que a senhora seja crente porque
não sei como e a base do crente não sei como ele leva a vida,
porque eu sou católico. Mas quando eu abro os olhos eu me
lembro logo a Deus, então se faz o “Pai nosso” e reza a reza
de se levantar, a noite reza a reza de se deitar que é uma reza
muito fácil, esse tipo de reza eu posso ensinar a reza pra se
levantar posso ensinar, só não posso ensinar as rezas que reza
nas pessoas, porque se eu ensinar não serve, mas para mim
(Raimundo, 2021).
A fala dos(as) entrevistados(as) confirma a ideia inicial de
que cada rezador(a) tem sua própria maneira de benzer, notamos
que enquanto a benzedora Francisca não costuma usar música o
benzedor Raimundo prefere saber a religião da pessoa para que
então ele saiba como prosseguir. Ele faz isso, pois algumas pessoas
não acreditam nos ritos por conta de sua religião. E acabam
procurando os(as) benzedores(as) como uma alternativa para
tratamento.
Quando perguntados sobre os objetos que usam para benzer
e quais suas respectivas funções, o benzedor Raimundo disse: “só
uso as folhas né. As folhas, folhinhas porque tem que benzer com
aquelas folhinhas que é pra poder tirar o mal que está em cima
daquela pessoa. Tem que rezar com as folhinhas” (Raimundo, 2021).
175
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
Quanto ao mesmo questionamento a benzedora discorre:
Eu uso a vassourinha que é uma planta que é pra tirar as coisa
ruim, eu uso o pião roxo, pião roxo tira qualquer espírito, qualquer coisa ruim que a pessoa tem, só que aí tem que saber fazer na
pessoa pra não pegar no outro que tá do lado quando tá tirando.
Só uso planta e algumas vezes eu preparo não é porção porque a
gente não e bruxa, um remédiozinho que é pra tirar quando a pessoa tá ruim, algo como se fosse uma água benta (Francisca, 2021).
A partir das respostas dos(as) benzedores(as) observamos a
importância das plantas como o pinhão-roxo e vassourinha no ato
de benzimento e a finalidade delas dentro deste processo, além de
outros objetos como velas, bebidas, chás e ou garrafadas que eles
mesmos produzem.
Pelas respostas de ambos os(as) entrevistados(as) vemos
que o mais comum é o uso das plantas e da água benta na hora
dos rituais de benzimento, isso porque acredita-se que os ramos
das plantas usadas têm o poder de absorver a enfermidade que
acomete a pessoa que está sendo benzida. E a água benta serve
para benzê-la para que o mal não a acometa mais, e pode ser usada
para beber,assim ela pode agir de dentro para fora.
No que diz respeito ao uso de símbolos que são utilizados
durante o benzer e seus significados, a benzedora Francisca
respondeu: “símbolo eu não uso muito é mais o sinal que é o sinal
do pai nosso que é pra tirar, em nome do pai, do filho e do espírito
santo que a gente coloca Deus acima de tudo” (Francisca, 2021). O
benzedor afirma:
O sinal da cruz, se faz o sinal da cruz, reza primeiramente o pai
nosso, pra começar a oração que vai se jogar naquela criatura.
E o pai nosso né, assim em nome do pai do filho do espírito
santo amém. Assim de proteção, se reza faz em nome do pai do
filho do espírito santo amém, se benzeu, aí seria o pai nosso,
depois do pai nosso vai rezar a oração que para aquele tipo de
doença (Raimundo, 2021).
Mediante as palavras dos(as) entrevistados(as) constatamos
que ambos não costumam fazer outro símbolo além do sinal da
176
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
cruz, pois, eles acreditam que é o sinal da cruz que atrai proteção
e repreende a enfermidade que acomete a pessoa doente, logo, é
essencial utilizá-lo durante o ato de benzer.
Como mencionado anteriormente os(as) benzedores(as)
fazem uso de plantas durante a benzeção, com o intuito de
compreender como se dá o processo de escolha das plantas e ervas
utilizadas perguntamos como eles escolhem as plantas. O benzedor
Raimundo disse que: “É sempre a vassourinha o pião-roxo senão
tiver na área a gente pode pegar qualquer matinho o importante é
que ele esteja seco, três galhinhos pra rezar em qualquer pessoa”
(Raimundo, 2021). A benzedora corroborou:
Dependendo de como a pessoa tá, se for no caso da vassourinha é quando ela tá muito doente, a gente usa vassourinha que
é pra tirar, que já veio de antigamente, a vassourinha ela é uma
planta usada só pra benzer. Então a gente usa a vassourinha
quando ela tá doente, quando vem com energia negativa é a
planta do pião roxo que é pra tirar espíritos ruim que a gente
chama. Vassourinha pra doença, pião-roxo pra tirar energia negativa (Francisca, 2021).
Pode-se notar que o estado que a pessoa a procurar o(a)
benzedor(a) se encontra é de suma importância, haja vista, que cada
situação exige um tratamento diferente, então o(a) benzedor(a) vai
adaptar a sua reza de acordo com a necessidade da pessoa a ser
benzida.
Perguntados há quantos anos praticam o benzimento e quantas
pessoas já foram benzidas por ele/a, Francisca disse: “difícil dizer
a quantidade de pessoas que benzi, são muitas, não dá pra saber,
estou há anos seguindo esse meu dom” (Francisca, 2021). Já o
benzedor relatou que:
Eu tinha 12 anos de idade quando eu comecei a rezar, agora
tenho 66 é um bom tempo, eu sou chamado para muitos e
muitos cantos [...] É difícil saber e é difícil mesmo de eu saber,
porque é milhares eu tenho 66 anos de idade, e eu tenho rezado em milhares de pessoas, é muita coisa tem dia que me vejo
sufocado ali no condomínio eu olho e está o multidão de gente
(Raimundo, 2021).
177
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
Desse modo, devido ao longo tempo que ambos praticam a
benzeção não conseguem quantificar com números exatos quantas
pessoas já foram atendidas. Um outro ponto que destacamos em
suas falas é a alta procura por atendimento que eles mencionam,
ambos relembram que há dias que atendem mais de uma pessoa,
o benzedor do sexo masculino aponta que tem dia que tem uma
grande fila de pessoas esperando o atendimento.
Buscamos saber se com o passar dos anos os(as) benzedores(as)
modificaram a sua forma de benzer, a respeito disto, o benzedor
discorreu:
Não senhora. Sempre e do mesmo. Toda vida eu comecei a rezar nas pessoas do jeito e ainda é daquele jeito. A modificação
vamos supor e o tipo da doença, porque tem tipo de doença
e qualquer vento caído se reza no corpo, a mãe do corpo da
mulher a reza no umbigo. Então é assim. As diferenças só e
essas mesmos. A desmentidura é nos braços, que dizer que tem
que ajeitar os braços as pernas a diferença só é essas mesmo
(Raimundo, 2021).
Quanto ao mesmo questionamento a benzedora respondeu:
Com certeza, no início é só oração do pai nosso e o interessante
que eu não falei que conforme a gente vai fazendo a oração vai
vindo outras orações na cabeça, não dá nem para te explicar
por que dependendo de como a pessoa tá, aí vem, como é que
tu tens que fazer com ela, como fazer e vai benzendo até tirar
(Francisca, 2021).
Por meio das respostas notamos discrepâncias, pois enquanto
o benzedor Raimundo relata que não modificou a sua prática com
o passar dos anos, a benzedora Francisca por sua vez, afirma que
as orações vão surgindo em sua mente e tudo prossegue de acordo
com a situação da pessoa enferma.
Ao pedirmos para que os benzedores descrevessem o que é
ser benzedor(a), a entrevistada disse que:
Para mim hoje em dia, agora, é tudo né, que a umbanda é
minha vida, benzer e ajudar alguém que está precisando para
mim é tudo, como diz um hino da umbanda, que a umbanda é
178
A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
amor, é caridade e quando a gente sabe que tá fazendo o bem
pro outro se sente bem, para mim umbanda e benzer para mim
é tudo (Francisca, 2021).
Em sua resposta o benzedor afirmou:
Para mim significa como a pessoa me tratar com respeito, chamar “Doutor” como eu sou conhecido só basta falar que é seu
Doutor. Ah! Doutor, porque a fé que as pessoas têm em mim e
na benzeção é muita, ela já me chamou de doutor e eu já rezo
e já fica bom (Raimundo, 2021).
Ambos reforçam a importância de seu papel na sociedade,
que é ajudar o próximo, fazer o bem sem olhar a quem, seja com
um aconselhamento, com a indicação de um remédio, uma benção,
uma reza.
Perguntados se já sofreram algum preconceito por serem
benzedores(as), seu Raimundo respondeu que:
Não senhora, até o presente não, eu gosto de dizer diretamente
ao público e a minha família, nunca sofri isso, não senhora ser
reprovado, nunca graças a Deus. Sempre sou gabado aonde eu
chego as pessoas me gabam e é como lhe digo sou chamado
de Doutor, em qualquer canto que eu chegar, rapaz Doutor
Mesquita, eles têm muita fé em mim. Nunca foi desaprovado,
pessoas me desconsiderar por eu viver rezando assim, sempre
passa gente assim lá comigo pra entrevista assim, estudante
sempre me passa sempre dizendo orientando, porque e muito
bom as pessoas terem orientação, as pessoas não têm vindo
que é importante a senhora me procurar (Raimundo, 2021).
A benzedora corroborou dizendo:
Eu em si não sofri, mas eu sei que na minha religião, a religião
que eu sigo é, ainda tem, ainda existe muito preconceito por achar
que é só macumba, então eles costumam dizer que nós somos
macumbeiros e ai eu costumo falar que eu sei o que quero e o que
acredito então não deixo nenhum tipo de gente me rebaixar né,
mas eles por achar que umbanda é macumba, por a gente ser macumbeiro a gente sofre esse tipo de preconceito (Francisca, 2021).
179
Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
O relato dos(as) entrevistados(as) traz conforto ao saber que
não sofreram preconceito pelo ofício que praticam, entretanto, as
palavras da benzedora Francisca demonstram que por fazer parte
de uma religião de matriz africana sofreu episódios de preconceito.
Quanto ao repasse da prática do benzimento para outra
pessoa, a benzedora disse:
Não, ainda não porque eu não sou especialista em benzer,
eu creio que tem pessoas que já vieram só com esse dom
são eles que tem que entregar e ensinar essa prática, no meu
caso como eu sou mãe de santo eu abro coroa para pessoas
médiuns que esse dom já veio com eles então eu só o aprimoro, eu não passo o meu, ele já tem o dele eu só ensino
(Francisca, 2021).
O benzedor Raimundo mencionou: “Ainda não, quem sabe
mais pra frente né, de verdade não tive essa chance ainda sabe, por
hora eu só benzo mesmo, do jeito que falei pra senhora por aqui
onde fico todos os dias, venho sem falta, faça chuva ou faça sol,
sempre estou aqui para ajudar– (Raimundo, 2021).
Mediante aos relatos dos benzedores notamos que eles ainda
não repassaram seus ensinamentos adiante, no entanto, no caso do
benzedor Raimundo, este diz estar disponível para ensinar aqueles
que possuírem o dom para esta prática. No caso da benzedora
Francisca, ela realiza um trabalho de apoio como Mãe de Santo e
auxilia as pessoas – médiuns – que buscam aprimorar seus dons
mediúnicos, através deste apoio ela ajuda as pessoas a aprenderem
a lidar com seus dons.
O relato dos/as entrevistados/as demonstra a satisfação e a
alegria que ambos têm em poder ajudar as pessoas através de seu
dom, que para praticar o bem e ajudar as pessoas que estão sendo
acometidas por alguma enfermidade eles não medem esforços,
estando sempre disponíveis para auxiliar, não importando o dia
ou a hora.
Desse modo, e diante dos relatos podemos afirmar que os
benzedores desenvolvem uma importante função e através dos
simples versos que eles proferem expressam sua fé e compartilham
o seu dom, contribuindo na proteção e no processo de cura das
pessoas enfermas que os procuram.
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A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros...
E acima de tudo os benzedores configuram-se como guardiões
da memória (SILVA, 2009), através de todo o conhecimento que
possuem. Entretanto, é importante mencionarmos que se trata de
uma prática que está se perdendo com o passar dos anos, pois,
muitos benzedores falecem sem que ninguém faça nenhum relato
de seus conhecimentos ou ainda sem repassá-los a outras pessoas.
Considerações Finais
Na sabedoria popular a arte do benzer ou de curar é
compreendida como uma forma de ritualização da fé. Esta prática
é mais uma das heranças dos povos indígenas que com o passar dos
anos sofreu influências dos africanos e da religião católica que foi
trazida ao Brasil pelos portugueses.
Diversas culturas têm a crença de que a oração fortalece a alma
e nósaproximasse de Deus. Na crença popular são os benzedores
que tratam das enfermidades, entretanto eles sempre reforçam
que são apenas instrumentos neste processo, pois, a cura é uma
obra de Deus e que o próprio Jesus é quem lhes ensina as orações
(Nery, 2018).
Hoffmannn-Horochovski (2012) menciona que cada benzedor
possui um jeito único de conceber sua prática, entretanto, eles têm
um comum alguns gestos e símbolos cultuados no cristianismo,
como o sinal da cruz, orações e rezas que são ditas em forma de
sussurro.
Por anos as práticas da medicina popular eram a única forma
de tratar e prevenir doenças. Ainda que atualmente a medicina
hospitalar tenha tido avanços significativos no que se refere à
prevenção e tratamento de doenças, o benzimento segue sendo
uma alternativa procurada. Nas periferias dos grandes centros
urbanos ou nas cidades interioranas é onde a medicina popular
segue resistindo com mais força.
Assim com o passar dos anos as práticas inerentes à medicina
popular foram sendo readaptadas ou ainda recriadas, isso deve
ser atribuído ao fato de que tudo é dinâmico e vivemos em um
mundo em constante mutação, e a benzedura não ficou de fora
deste processo. Certeau (1994, p. 05) corrobora: “o homem
inventa o cotidiano graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas
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Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira
de resistência pelas quais se altera os objetos e os códigos, se
reapropria do espaço e do uso a seu jeito”.
Cabe frisar que os(as) benzedores(as) se configuram como
guardiões da medicina popular e que seus conhecimentos carecem
de mais registros e estudos como este. Haja vista, que esta seria
uma forma de salvaguardar estes saberes para que as gerações
futuras tenham o conhecimento da importância desta prática.
No entanto, o que notamos a partir desta pesquisa que é
uma preocupação, é que estes saberes e fazeres se percam com o
passar do tempo, pois, muitos benzedores já faleceram e as novas
gerações não têm demonstrado muito interesse em aprender
sobre o benzimento. Com isto, caso não haja novos benzedores ou
pesquisas que registrem essas práticas a mesma corre o risco de ser
extinguida e se perder e com isso será perdida uma parte de nossa
cultura.
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