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Livro COLEGIADO

2022

Obra coletiva do colegiado de História do CEST

Wilson Miranda Lima Governador do Estado do Amazonas Jório de Albuquerque Veiga Filho Secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação - SEDECTI Márcia Perales Mendes Silva Diretora-Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas Esta obra foi financiada pelo Governo do Estado do Amazonas com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) YOMARLEY LOPES HOLANDA Organizador Escritos sobre História: Ensino e i�nerários de pesquisa no interior da Amazônia Copyright © Yomarley Lopes Holanda (Org.), 2022 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor. EDITOR João Baptista Pinto CAPA Jenyfer Bonfim Fotografia: Adreane Nascimento PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO Jenyfer Bonfim REVISÃO Dos autores CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E73 Escritos sobre história: ensino e itinerários de pesquisa no interior da Amazônia [recurso eletrônico] / organização Yomarley Lopes Holanda. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022. recurso digital ; 6 MB Formato: epdf Requisitos do sistema: adobe acrobat reader Modo de acesso: world wide web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-768-5 (recurso eletrônico) 1. História - Ensino. 2. Educação - Aspectos sociais. 3. Professores - Formação. 4. Livros eletrônicos. I. Holanda, Yomarley Lopes. 22-80905 CDD: 370.7 CDU: 37:9 Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643 PARECERES E REVISÃO POR PARES: Os textos que compõem esta obra foram submetidos à avaliação de pareceristas externos, sendo indicados para a publicação após criteriosa revisão. O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) agradece aos pareceristas ad hoc pelos relevantes serviços prestados ao Programa. LETRA CAPITAL EDITORA Tels.: (21) 3553-2236 / 2215-3781 [email protected] www.letracapital.com.br Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Ana Elizabeth Lole dos Santos (PUC-Rio) Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) Claudio Cezar Henriques (UERJ) Ezilda Maciel da Silva (UNIFESSPA) João Luiz Pereira Domingues (UFF) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Agostini Fernandes (PUC-Rio) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Lina Boff (PUC-Rio) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Roberto Acízelo Quelhas de Souza (UERJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) Waldecir Gonzaga (PUC-Rio) Sumário Apresentação ................................................................................9 Yomarley Lopes Holanda Eixo 1: Ensino de História e novas perspectivas ............... 15 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias – CEST/UEA .........................17 Luciano Everton Costa Teles Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber histórico em sala de aula partir da temática Nova República .................30 Mirela Alves de Alencar Cristiane da Silveira O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico na sala de aula ................................40 Yomarley Lopes Holanda Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático ............................................55 Luciano Everton Costa Teles Eixo 2: Itinerários Investigativos............................................ 69 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre (1972-1978) ...................................................................71 Francisco da Silva Tiago Fonseca dos Santos ............................................................... 71 7 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello ................................................91 Manoel Roberto de Lima Yomarley Lopes Holanda Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo .......................................114 Tiago Fonseca dos Santos Júlio Cláudio da Silva Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos mitológicos para uma pesquisa na Amazônia rural ...................................127 Macário Lopes de Carvalho Júnior Arilson Nogueira Cruz História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros paroquiais do acervo da prelazia de Tefé-AM (Séculos XIX e XX) ...................................................................150 Tenner Inauhiny de Abreu Luciano Everton Costa Teles Jubrael Mesquita da Silva A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros (Tefé – AM) ......................168 Adriana Nonato Braga Cristiane da Silveira 8 Apresentação Yomarley Lopes Holanda1 A presente coletânea floresceu de uma iniciativa conjunta dos docentes do colegiado de História do CEST/UEA e do PPGICH/UEA que, por vários anos, vêm trabalhando na formação de novos profissionais de educação e na consolidação da pesquisa em História, seu ensino e suas relações complementares com outros campos do conhecimento. Portanto, o livro objetiva desvelar algumas dessas experiências acadêmicas realizadas em uma universidade pública no interior do Amazonas. Vale ressaltar que alguns dos textos que integram a coletânea são resultantes da colaboração entre estudantes e docentes da UEA/CEST. Dada a diversidade de temáticas e abordagens teóricometodológicas, a coletânea possui uma perspectiva dialógica, isto é, embora os textos mantenham conexão com a História, nossa ciência de referência, eles não se circunscrevem a um modelo epistêmico cristalizado, na verdade transbordam para romper determinadas fronteiras disciplinares, isto explica nossa escolha pelos dois grandes eixos temáticos que compõem o livro, a saber: 1) Ensino de História e novas perspectivas; 2) Itinerários investigativos. O texto que abre o eixo Ensino de História e novas perspectivas é de autoria do professor Luciano Everton Costa Teles sobre a prática de ensino de História em contexto de crise sanitária ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus (COVID19). Trata-se de importante discussão sobre um dos momentos mais críticos que vivenciamos, com ressonâncias sombrias sobre o contexto educacional. Nesse cenário, o autor nos apresenta o processo de adequação das aulas de História à modalidade remota e/ou na educação superior, destacando as diversas práticas 1 Coordenador Pedagógico do Curso de Licenciatura em História do CEST/ UEA. Subcoordenador do PPGICH/UEA em Tefé. 9 Yomarley Lopes Holanda pedagógicas inovadoras, e até mesmo inéditas, que emergiram no campo do ensino da História, no caso específico as experiências vivenciadas no curso de graduação em História na Universidade do Estado do Amazonas/CEST. “Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber histórico em sala de aula, a partir da temática Nova República” é o texto em coautoria da estudante egressa Mirela Alves de Alencar com a professora Cristiane da Silveira, que faz uma reflexão sobre a prática do projeto de ensino intitulado “A Nova República: novas abordagens”. Tal atividade prática de ensino foi desenvolvida na disciplina de Prática de Ensino de História e Estágio Supervisionado III, no curso de Licenciatura em História, e problematizando o processo de configuração, organização política e administrativa no Brasil durante o período de redemocratização, além de traçar um paralelo do tema da democracia nos dias atuais. Em seguida o professor Yomarley Holanda debate “O ensino de História e a canção popular: as toadas do boi-bumbá amazônico na sala de aula” partindo da seguinte indagação: “como podemos tornar as aulas de História mais interessantes, provocando nos alunos o entendimento de que são sujeitos históricos e, ao mesmo tempo, ajudando-os a desconstruir os estereótipos teóricos e práticos que assombram a nossa ciência de referência?” Este é o mote para o texto que objetiva tecer uma reflexão sobre o uso de fontes literárias, no caso, a toada de boi-bumbá enquanto portadora de um discurso representacional que pode tornar-se objeto de interpretação histórico-cultural e, ao mesmo tempo, articulando-a como fonte para o ensino de História na contemporaneidade. No texto “Ensino de História: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático”, o professor Luciano Everton Costa Teles parte da compreensão de que se deve romper com a ideia de um ensino de história assentado estritamente na transmissão de conteúdo, destacando as possibilidades e potencialidades da produção do conhecimento neste âmbito do ensino na escola pública. O objetivo do texto é demonstrar como os jornais podem ser utilizados no processo de ensino/aprendizagem como suporte documental e/ou recurso didático para promoção de um ensino de 10 Apresentação história inovador, pautado num entrelaçamento entre transmissão e produção de conhecimento. O segundo eixo temático, Itinerários investigativos, se inicia com o texto “Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em Boca do Acre (1972-1978)”, do estudante egresso Francisco da Silva em coautoria com o professor Tiago Fonseca dos Santos (seu orientador de TCC), e tem por objetivo analisar a documentação encontrada no Arquivo Nacional sobre o povo Apurinã, recortes de jornais da época e a ainda limitada bibliografia sobre o tema. Tal perspectiva abarca também a justificativa da pesquisa, tendo em vista a necessidade do aprofundamento das pesquisas sobre o regime militar na Amazônia em geral. O texto traz importantes recortes dos resultados da monografia do egresso Francisco Silva, em dezembro de 2021, no CEST/UEA, navega ainda pelos desdobramentos do processo de colonização da região norte do país e a resistência dos povos originários. “A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello” é a temática abordada no texto tecido junto pelo estudante egresso Manoel Roberto de Lima e seu orientador de TCC professor Yomarley Lopes Holanda. A metodologia adotada é a dialógica e complexa para enveredar pelos escritos de Mello e outros autores, com base numa ecologia de saberes de Santos (2007), partindo da poética amazônica e entrelaçando com o Pensamento Ecológico de Capra (1997). Os autores do texto destacam a insubmissão como a marca da poesia de Thiago de Mello, sua arte sempre se preocupou com a vida, a dignidade, a liberdade e os direitos humanos. O texto “Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia nos anos de chumbo”, de autoria dos professores Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva desvela um quadro ainda em tecedura sobre o(s) indigenismo(s) na Amazônia durante a Ditadura Militar na Amazônia. Para isto, o autor lança mão da análise do relatório intitulado A Problemática Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Segundo o autor a proposta justifica-se por permitir compreender o processo de assujeitamento dos indígenas e a tentativa por parte do governo integrá-los, ou seja, 11 Yomarley Lopes Holanda torná-los cidadãos/trabalhadores brasileiros, assimilados à cultura ocidental. Ao longo do artigo fica evidente a complexidade da questão da sobrevivência dos povos indígenas na região amazônica, justamente por se tratar de uma área considerada estratégica pelo Estado brasileiro, a sua fruição autônoma nos territórios é atravessada por interesses econômicos, conflitos agrários e questões geopolíticas que os colocam no olho do furacão da expansão do sistema capitalista na Amazônia. “Seres fantásticos e onde habitam: narrativas tradicionais, história oral e estudos mitológicos para uma pesquisa na Amazônia rural” é o texto resultante da colaboração entre o professor Macário Lopes de Carvalho Júnior e seu orientando de TCC, Arílson Nogueira Cruz. É Fruto das inquietações dos autores acerca da natureza das histórias orais tradicionais contadas pelas pessoas mais velhas, sendo um dos autores filho de habitantes de comunidades rurais do Médio Amazonas (Itacoatiara) e Médio Purus (Lábrea) e o outro originário de uma comunidade rural do entorno de Fonte Boa, ambos tinham certa proximidade ou familiaridade com o tema, no sentido de que ouviam na infância essas histórias e, mais tarde, iriam encontrar novamente com elas na escola e na universidade sob outras perspectivas. Os professores Tenner Inauhiny Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva discutem a “História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros paroquiais do acervo da Prelazia de Tefé-AM (Séculos XIX E XX)”, a partir das ações realizadas durante a vigência do projeto “História, arquivo e memória de Tefé”, financiado pela FAPEAM entre 2013 e 2016, que tinha como finalidade organizar e democratizar o acervo da Prelazia de Tefé/AM, localizado na Rádio Educação Rural do município. Trata-se de um dos maiores acervos documentais da região e que tem recebido atenção dos pesquisadores por sua pluralidade e singularidade (registros paroquiais, periódicos, diários etnográficos, imagens, documentos do Movimento de Educação de Base – MEB, etc.). Assim, o texto versa sobre os resultados das pesquisas em andamento, estendendo seus procedimentos a outros fundos de documentação, com o intuito de confrontar documentos de origens diversas, além de mapear e descobrir novas fontes. 12 Apresentação O texto que fecha a coletânea é intitulado “A arte de benzer e seus processos de (re) construção a partir do olhar dos curandeiros (Tefé-AM)”, de autoria da estudante egressa Adriana Nonato Braga juntamente com a professora Cristiane da Silveira, sua orientadora de TCC. Segundo as autoras benzer é um ato que consiste em curar pessoas dos mais diversos males, através de gestos e preces que vem acompanhada do uso de plantas selecionadas. Para compreender este complexo processo sociocultural em na cidade de Tefé, o texto objetiva investigar e apresentar algumas das diversas formas de benzer, suas origens, influências e como se deram seus processos de (re) construção ao longo do tempo. Gostaríamos de agradecer à FAPEAM e ao PPGICH/UEA pela colaboração e financiamento da presente coletânea. Por fim, nesta obra coletiva trazemos a palavra de professores e estudantes egressos da Universidade do Estado do Amazonas em Tefé, interior da Amazônia, reflexões pertinentes fundamentadas em experiências práticas no exercício do magistério e/ou da pesquisa científica ao longo da última década. Convidamos todos (as) a embarcarem conosco nesta aventura de leitura e discussão crítica sobre a História em conexão dialógica com outros saberes, não como algo atado às correntes de um passado pronto e acabado, mas sim enquanto processo vibrante de transformação. Tefé, 30 de Maio de 2022. 13 Eixo 1 Ensino de História e novas perspectivas Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias – CEST/UEA Luciano Everton Costa Teles1 Considerações iniciais N a manhã do dia 16 de março de 2020, no município de Tefé, localizado a 522 Km de distância da capital do Amazonas, por volta das 11hs, recebemos a notícia de que as atividades acadêmicas presenciais na Universidade do Estado do Amazonas a partir daquele momento em diante estavam suspensas por conta do avanço do novo coronavírus na região. A administração superior da Universidade do Estado do Amazonas montou um Grupo de Gestão (Grupo de Gestão de Contingência da UEA Diante da Pandemia da Doença pelo SARS-Cov-2, o GG – UEA COVID-19)2 diante da iminente crise sanitária para monitorar a situação epidemiológica no estado e avaliar possíveis retornos presenciais ou não. A princípio, o Grupo deliberou que alunos e professores deveriam ficar em casa e manter todos os cuidados necessários para não se infectarem, sendo que a direção e os administrativos trabalhariam em sistema de rodízio mantendo o distanciamento social e as medidas de proteção (uso de máscara e álcool em gel). Com o agravamento da pandemia, confirmada pelo Grupo Gestor da COVID-19 da UEA, o trabalho em casa, home office, foi instituído na Universidade. Em seguida, tratou-se de reestruturar o calendário acadêmico para dar alguma previsibilidade e assegurar um planejamento de retorno das atividades presenciais ou remotas do semestre 2020/1. Este que havia começado normalmente, presencialmente, terminaria remotamente. Desse modo, um grande 1 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto B da Universidade do Estado do Amazonas/CEST. E-mail: [email protected] 1 O GG – UEA CIVID-19 foi instituído pela Portaria GR/UEA n. 0205 de 16 de março de 2020. 17 Luciano Everton Costa Teles desafio foi posto para toda a comunidade acadêmica, sobretudo para professores e alunos: garantir o término do semestre 2020/1 utilizando metodologias de ensino não presenciais. O objetivo deste artigo consiste em expor como esse desafio foi encarado no curso de História, especialmente nas disciplinas de História da Amazônia 1 e 2. A ideia é que, a partir das experiências relatadas, possamos refletir sobre as novas linguagens e tecnologias no ensino de História em tempos de pandemia. O Ensino de História: novas linguagens e tecnologias Não é de hoje que se discute como superar um ensino de História monótono e desanimador. Aulas expositivas tradicionais, muito comuns ainda nos dias atuais, são recorrentes, assim como as avaliações baseadas estritamente nos assuntos dados e expostos. Essa é uma característica do ensino de História bastante criticada e questionada nos diversos níveis de ensino. Com efeito, há estudos que apontam para uma diversificação da prática pedagógica e seus resultados animadores (BITTENCOURT, 2008; BARROSO et al., 2010; MONTEIRO et al., 2007), em especial no sentido de tornar a disciplina histórica agradável e atrativa. Um desses caminhos expõe as denominadas novas linguagens: O uso de diferentes fontes e linguagens no ensino de História tem contribuído não só para ampliar o campo de estudo da disciplina, como também estabelecer um novo conceito de ensino-aprendizagem, tornando o processo mais dinâmico, significativo e prazeroso. O uso de imagens e documentos escritos tem contribuído para dar significado ao conteúdo histórico, tornando-o real... (MEDEIROS, 2005, p. 60-61). Em linhas gerais, as novas linguagens são incorporadas ao ensino numa dinâmica em que se analisa, discute e debate o processo de construção do conhecimento histórico científico. O trabalho com as fontes históricas, matéria-prima do historiador, é fundamental, assim como as reflexões de como contextualizá-las e abordá-las técnica e metodologicamente. Mas a produção do 18 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... conhecimento em História não se faz apenas com os documentos históricos3, mas sim a partir do diálogo entre estes e os instrumentais teóricos (conceitos, categorias de análise, teorias...) que compõem o cabedal formativo e cultural dos profissionais da área. O diálogo entre o que Ciro Cardoso chamou de teórico e empírico é essencial na área de História (1992, p. 25). Portanto, as novas linguagens – cinema, música, jornais, revistas, fotografias, processo criminais, desenhos, vestígios arqueológicos, entre outros – permitem ao professor/historiador trabalhar, na sala de aula e/ou nas visitas em arquivos, com documentos históricos, abordando-os e interpretando-os junto com os seus alunos. Trabalhando com eles também os instrumentos teóricos elaborados e sua operacionalização na construção do saber histórico. Já as novas tecnologias – notebooks, tablets, celulares, smart tv's e as plataformas digitais contidas neles, além da investigação em sites de centros e instituições de pesquisa, etc. – possibilitam em grande medida o acesso às novas linguagens e seus estudos. Ainda mais considerando que o mundo de hoje disseminou um aparato tecnológico expressivo cujo maior exemplo é o celular, o qual muitos têm acesso (os que podem, uma vez que há desigualdades de obtenção e exclusão digital) e conseguem na palma da mão ter contato com as mais variadas informações, das simples notícias às análises mais complexas. Não há como num mundo globalizado e digital, no qual as crianças já crescem com um dedinho no celular, manipulando-o, ter um espaço de formação profissional sem incorporar essas tecnologias criadas pela humanidade e as novas linguagens que emergem como propostas para um ensino de História inovador4. Na universidade, onde o compromisso com a formação acadêmica 3 Os documentos históricos se constituem como um dos elementos necessários para a construção do conhecimento histórico. Sozinhos são limitados e apenas reverberam as vozes “parciais” de quem os produziu, em outras palavras, a visão de mundo e de sociedade dos indivíduos que elaboraram os registros. O elemento teórico é o outro aspecto necessário nesse movimento de análise e interpretação do passado. É a partir dessa relação que o saber histórico é elaborado. 4 O entendimento é que “as transformações educacionais devem ser encaradas dentro do contexto mais amplo do impacto das NTICs sobre a sociedade e, também, do ponto de vista da aprendizagem” (SILVA, 2012, p. 4). 19 Luciano Everton Costa Teles e profissional é algo constante e presente, integrar ao ensino as novas linguagens e tecnologias é tanto fundante quanto necessário. O contexto da pandemia No fim de 2019, de Wuhan, na China, o novo coronavírus se espalhou pelo mundo, causando sobrecarga nos sistemas de saúde, mortes e luto. No Brasil, foi principalmente a partir do mês de março que o vírus ganhou de forma intensa o território nacional, trazendo consigo os mesmos impactos e efeitos ocorridos em outras regiões do globo. Era necessário evitar aglomerações e, consequentemente, apesar dos negacionismos e mentiras do governo central, parte significativa das escolas e universidades, públicas ou particulares, tiveram que paralisar as suas atividades educacionais. A Universidade do Estado do Amazonas parou as suas atividades no dia 16 de março de 2020. A Instituição constituiu um Grupo Gestor da COVID-19, como já mencionamos, com o objetivo de analisar e avaliar o cenário epidemiológico regional com a finalidade de deliberar sobre os caminhos a serem seguidos no contexto da pandemia. A ordem era proteger e preservar vidas. Para isso, a Universidade tanto contribuiu com a elaboração de materiais de EPI (Equipamento de Proteção Individual) quanto assegurou o semestre de 2020/1. Seguindo as sugestões do Grupo Gestor, o Conselho Universitário (CONSUNIV) reprogramou o calendário acadêmico e a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) emitiu uma nota técnica sobre o retorno das atividades acadêmicas. A Nota Técnica 01/2020 PROGRAD/UEA foi editada para: fundamentar a reorganização das atividades acadêmicas por ocasião do retorno das aulas após 138 dias de suspensão (...) em decorrência da pandemia do COVID-19, constituindo-se em orientações necessárias ao planejamento acadêmico dos componentes curriculares dentro de seus cursos (p. 1). A Nota instituiu a possibilidade de continuar o semestre remotamente, porém considerando a realidade regional dos municípios do interior. Estes sofrem há décadas com problemas 20 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... estruturais: desigualdades sociais e acesso a internet. No primeiro caso, muitos acadêmicos não tinham equipamentos (computador e/ou celular) para ter acesso às aulas remotas, outros até os tinham, entretanto não conseguiam ter acesso à internet, seja por falta de crédito/plano e/ou pelo problema da precariedade da internet no interior. Nesse quadro social, a Universidade agiu em três caminhos: 1) lançou um edital de vulnerabilidade social para disponibilizar pacotes de dados para acesso à internet5; 2) disponibilizou o espaço do CEST/UEA, com todos os protocolos de segurança necessários, para que os graduandos pudessem ter um local também com internet; e 3) proporcionou acesso aos planos de estudos, enviados fisicamente de avião e/ou de barco, para aqueles que estavam em outros municípios e comunidades. Em síntese, a preocupação da administração superior da Universidade do Estado do Amazonas era propiciar a todos os acadêmicos a participação de modo não presencial ao semestre 2020/1. O desafio no curso de História da UEA/CEST Nesse contexto, o desafio estava posto. Tivemos nós, professores do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas/CEST, reformular e redirecionar os planos das disciplinas, incluindo o uso de metodologias não presenciais para levar adiante o término do semestre 2020/1. Da mesma maneira, professores de variadas instituições foram instigados a seguir nesse percurso (SILVA FILHO, 2020; OLIVEIRA, 2020). Neste texto vamos nos deter, como já dissemos, na prática pedagógica desenvolvida e vivenciada nas disciplinas História da Amazônia 1 e 2, ministradas por mim, professor Luciano Everton Costa Teles. O primeiro passo consistiu em gravar um pequeno vídeo direcionado aos alunos para informá-los do retorno das aulas através de metodologias remotas. O vídeo foi enviado para os grupos de WhatsApp das turmas. Neles também enviamos um link criando 5 A ação e o edital foram lançados pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Proex/UEA). 21 Luciano Everton Costa Teles grupos de WhatsApp por disciplina (portanto, dois grupos já que são duas disciplinas!). Esta plataforma foi escolhida em função de dois aspectos: 1) A grande maioria dos alunos tinha acesso a ela e 2) era a única plataforma possível para disponibilizar os materiais necessários para o desenrolar das disciplinas, uma vez que o Google Classroom e/ou o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), por conta da precariedade da internet no interior, não eram passíveis de serem acessados pelos alunos do curso. Assim, nos grupos das respectivas disciplinas, os alunos entraram e lá pudemos então dar seguimento as atividades de ensino planejadas. A primeira dimensão a considerar dessa experiência diz respeito à incorporação e até mesmo a potencialização das novas linguagens na área de História, assim como das tecnologias que agora se tornaram a base indispensável para a realização das aulas. Para melhor explanação do “experimento”, vamos enumerá-los abaixo: 1. Os textos em PDF e as videoaulas Nos grupos de WhatsApp disponibilizamos, num primeiro momento, o plano de disciplina reformulado e uma planilha denominada “matriz de design instrucional”, na qual todas as atividades das disciplinas – textos, documentários, atividades avaliativas, entre outros – estavam informadas. Junto com a matriz também foi encaminhado aos alunos um “plano de organização dos estudos”, que continha o prazo para consumir os materiais oferecidos e as datas das avaliações. 22 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... Imagem 1 – Matriz de Design Instrucional e Plano de Organização dos Estudos Fonte: acervo do autor (2021). Após esse primeiro passo, providenciamos no grupo os textos em PDF e as videoaulas produzidas (gravadas e editadas pessoalmente). No primeiro caso, há inúmeros periódicos científicos da área de História (e de outras também) que colocam à disposição, com acesso gratuito e livre, diversos artigos que podem ser examinados. Há também os repositórios de teses e dissertações que igualmente podem ser explorados para estudos. Com essa oportunidade, foi dessa ceara que escolhemos os textos em PDF e enviamos para o WhatsApp das turmas. Por outro lado, as videoaulas foram elaboradas com base nos textos em PDF selecionados para serem discutidos, e foram pensadas para serem utilizadas pelo alunado paralelamente ao processo da leitura dos textos, com a vantagem de que elas facultam aos discentes escolher o melhor horário da internet em Tefé para baixá-las e, da mesma forma, optar por um horário (dentro da sua realidade cotidiana) para assisti-las. 23 Luciano Everton Costa Teles Imagem 2 – Videoaula – História da Amazônia 2 Fonte: acervo do autor (2021). Cabe sublinhar que a duração das videoaulas não podia ser longa. Ela tinha que girar em torno de no máximo 10 a 15 minutos e ser compactada para facilitar o acesso por parte dos alunos do curso de História em Tefé (compactadas para serem baixadas por eles, por força da precariedade da internet no referido município). 2. Os documentários e as palestras Como já mencionamos, a plataforma base para as aulas não presenciais foi o WhatsApp, o que abriu variadas perspectivas para além da exploração de textos em PDF e das videoaulas. Nessa esteira, com essa abertura proporcionada por ela, colocamos nos grupos das turmas pequenos documentários sobre os assuntos a serem tratados na disciplina como, por exemplo, “Amazônia: Mitos e Descobertas” (tema da disciplina História da Amazônia 1). Nesse mesmo propósito, foi possível lançar mão de palestras de professores da área de História. Em geral, buscamos, quando assim praticável, disponibilizar palestras de professores autores dos textos com os quais estávamos trabalhando. A título de 24 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... ilustração, temos a palestra do professor Dr. Mauro César Coelho versando sobre o Diretório Pombalino (tema da disciplina História da Amazônia 2). Imagem 3 – Documentário e Palestra Fonte: acervo do autor (2021). Os documentários e as palestras, ao lado dos textos em PDF e das videoaulas, contribuem significativamente no processo de ensino-aprendizagem não presencial. E podem ser averiguados/ analisados inclusive nos termos de sua produção. 3. O ofício do historiador: fontes históricas, instrumental teórico e produção do conhecimento histórico Falando em produção, com o uso agora em sala de aula virtual das novas linguagens na disciplina histórica, as perspectivas de manusear diversas fontes históricas se apresentaram como profícuas. Nesse quadro, não nos furtamos em enviar para os alunos documentos de época como o Diretório dos Índios e também os relacionados ao processo de pacificação dos índios Mundurucu e Mura, isso em Amazônia 2. Já em Amazônia 1, propomos análises sobre os relatos dos viajantes quinhentistas e seiscentistas (os de Carvajal e Acuña, por exemplo) sobre os povos indígenas que habitavam a região naquele momento. Concomitantemente a alguns textos de conteúdo e de teoria no âmbito das duas disciplinas, tais documentos históricos foram lidos (com o auxílio das videoaulas) intentando promover o que foi 25 Luciano Everton Costa Teles indicado no plano da disciplina (e na matriz de design instrucional) como uma atividade avaliativa pautada nos elementos de produção do conhecimento histórico. Ou seja, a produção de uma análise tendo como base as fontes históricas, os textos propostos e trabalhados e o cabedal teórico de conhecimento de cada aluno adquirido ao longo do curso. Isto porque pensamos que tal atividade contribui para que os futuros profissionais da área de História possam especialmente elaborar uma “situação-problema, elencar indagações, levantar hipóteses, analisar o conteúdo da fonte, construir argumentos para a compreensão da realidade estudada, produzir sínteses conferindo significação ao conhecimento produzido” (URBAN e LUPORINI, 2015, p. 20). Toda essa preocupação tem como finalidade o processo de formação inicial do profissional da área, que precisa necessariamente dominar os pressupostos da sua ciência, sobretudo para, como sublinha Leda Potier, direcionar: a produção do conhecimento histórico em todas as instâncias da construção do saber. Essa perspectiva conclama como necessária a atuação de um profissional de História para efetivamente realizar a mediação e construção do conhecimento histórico (2014, p. 47). Esse aspecto é fundante e deve ser levado em conta nas aulas do curso de História, como fizemos na Universidade do Estado do Amazonas/CEST. 4. Blog e canal no YouTube A produção de conteúdo realizada no decorrer das disciplinas foi depositada, isso paulatinamente e no decorrer das aulas, num canal específico no YouTube e num blog destinado para este fim. O objetivo era tornar acessível para os acadêmicos, e também para o público mais geral, as videoaulas construídas e outros conteúdos estruturados nesse processo. 26 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... Imagem 4 – Conteúdos no YouTube e Bolg Fonte: acervo do autor (2021). Portanto, temos conteúdos criados e voltados para as disciplinas de Amazônia 1 e 2 que podiam (podem) ser acessados no WhatsApp, mas também no canal do YouTube e no blog. A diversificação do acesso é interessante e contribui, ao nosso ver, para tornar o conteúdo acessível a todos, especialmente os alunos regularmente matriculados nas duas disciplinas citadas. Considerações finais A pandemia do novo coronavírus nos trouxe alguns desafios, entre eles a necessidade de estabelecer e manter o isolamento social, instituir as medidas de proteção ao vírus e de desenvolver vacinas. E o processo de isolamento social tornou inescusável o uso de metodologias não presenciais para que as aulas na educação superior (mas também na educação básica) continuassem ao longo do ano. Um desafio e tanto! Porém, como vimos, o curso de História da Universidade do Estado do Amazonas, unidade de Tefé (CEST), em concordância com a nota técnica emitida pela administração superior, deu continuidade ao semestre 2020/1 através do uso de tecnologias 27 Luciano Everton Costa Teles e de metodologias não presenciais que buscasse atingir a “totalidade”dos alunos, num esforço de inclusão digital (inclusive com entregas de chips com dados móveis) e, não sendo absoluto esse processo, de fazer chegar o material impresso até a casa/ comunidade dos acadêmicos. Por outro lado, os professores procuraram por todos os meios oportunizados elaborar as suas aulas e os seus conteúdos, o que particularmente fizemos e expomos aqui. A criatividade para superar as dificuldades e construir os conteúdos foi essencial. Muitas novidades surgiram nesse processo todo – audioaulas, videoaulas, podcasts, etc. – e que certamente serão integrados ao ensino presencial assim que este retornar. Referências BARROSO, Vera Lúcia Maciel, et al. (org.). Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST: EXCLAMAÇÃO: ANPUH/RS, 2010. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2º ed. São Paulo: Cortez, 2008. CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma Introdução à História. 5º ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. MEDEIROS, Elisabeth Weber. Ensino de História: fontes e linguagens para uma prática renovada. Vidya. Santa Maria/RS, v. 25, n. 2, p. 59-71, jul./dez., 2005. MONTEIRO, Ana Maria, GASPARELLO, Arlette Medeiros, MAGALHÃES, Marcelo de Souza (orgs.) Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, FAPERJ, 2007. OLIVEIRA, Vitor Lins. O ofício do historiador nos tempos de pandemia do coronavírus. XIX Encontro de História da ANPUH/RIO. História do Futuro: ensino, pesquisa e divulgação científica, Rio de Janeiro, 21-25 de setembro de 2020. POTIER, Leda. História para “ver” e entender o passado: cinema e livro didático no espaço escolar (2000-2008). Dissertação (Mestrado em História), PPGH/ UFRN, Natal, 2014. SILVA, Marco. Ensino de História e novas tecnologias. Universidade Federal de Sergipe, 2012. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/ arquivos/File/fevereiro2012/historia_artigos/2silva_artigo.pdf. Acesso em: 10 de abril de 2021. 28 Ensino de história em tempos de pandemia: novas linguagens e tecnologias... SILVA FILHO, Eduardo Gomes da. Práticas inovadoras de ensino de história na Escola Agrotécnica da Universidade Federal de Roraima: novos desafios em tempos de COVID-19. Revista Manduarisawa, Manaus, v. 4, n. 2, p. 33-42, 2020. URBAN, Ana Cláudia, LUPORINI, Tereza Jussara. Aprender e ensinar História nos anos iniciais e finais. São Paulo: Cortez, 2015. 29 Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber histórico em sala de aula partir da temática Nova República Mirela Alves de Alencar6 Cristiane da Silveira7 O presente capítulo visou refletir sobre a prática do projeto de ensino intitulado “A Nova República: novas abordagens”, desenvolvido na disciplina de Prática de Ensino de História e Estágio Supervisionado III 8, e aplicado com a colaboração de duas outras alunas estagiárias9. O projeto de ensino problematizou o processo de configuração, organização política e administrativa no Brasil no processo de redemocratização, bem como traçar um paralelo do tema democracia nos dias atuais. No contexto da ditadura militar no Brasil10 as ditas minorias foram silenciadas e uma ideologia dominante perpetuou os valores e as memórias dos ditos “heróis” do país e, por muito tempo, foi ensinada na disciplina de História. Na atualidade nos deparamos com a necessidade de trabalharmos com novas metodologias que superem o ensino tradicional, que teima em continuar nos diversos espaços do universo de ensino-aprendizagem. Dessa forma, temos 6 Graduada em História pela Universidade do Estado do Amazonas, UEA/CEST no Centro de Estudos Superiores de Tefé-CEST. 7 Doutora pela Pontifícia Universidade de São Paulo PUC/SP e professora adjunta na Universidade do Estado do Amazonas UEA/CEST. 8 A experiência ocorreu na Escola Municipal Dorotéia Bezerra dos Santos, com alunos(as) do 9º ano do Ensino Fundamental, na cidade de Tefé/AM. O presente trabalho foi fruto de uma atividade na Disciplina Prática de Ensino de História e Estágio Supervisionado III, sob a orientação da professora Cristiane da Silveira. As estagiárias foram Raianne Oliveira de Souza; Sidna Geane Bacelar; graduandas do curso de história na Universidade do Estado do Amazonas- UEA, no Centro de Estudos Superiores de Tefé-CEST 9 Raianne Oliveira de Souza; Sidna Geane Bacelar; graduandas do curso de história na Universidade do Estado do Amazonas- UEA, no Centro de Estudos Superiores de Tefé-CEST. 10 O golpe militar que instaurou a ditadura no Brasil foi deflagrado em 1964 e permaneceu até 1985. 30 Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber... a necessidade de romper com esse ensino que valoriza os grandes vultos históricos, que escamoteia os diferentes sujeitos da história para legitimar os interesses de uma minoria. Se faz necessário trilhar caminhos que direcionem a (re) novação do saber histórico em uma perspectiva crítica que leve em conta o processo, transformando a imagem que muitos/as alunos/as têm de que a história é alheia à sua realidade. Buscamos, assim, superar essa visão tradicional, mostrando que somos todos sujeitos da história e, enquanto sujeitos, somos elementos capazes de transformar a realidade que nos circunda. Isso significa que estamos diante da necessidade da formação da consciência histórica do educando, o que implica a construção de abordagens traduzidas em uma visão crítica e transformadora. Essa perspectiva concebe o ensino de história a partir da valorização da experiência de vida do estudante e, assim, se torne menos abstrato e com isso mais significativo. Nessa perspectiva, e de acordo com Horn (et.al.2010) o conhecer histórico não deve enfatizar a memória de um grupo dominante, mas trazer para o centro os sujeitos de todos os segmentos sociais. Trata-se, como nos coloca Spivak (2012) de construir espaços de fala dos silenciados. Esse ato busca colocar em evidencia as vozes das mulheres, dos negros, dos índios, entre outros sujeitos. Na visão ocidental esses sujeitos foram soterrados por uma leitura unilateral da história nos conteúdos ensinados. Uma vez problematizando essas questões, os educandos se (re)conhecerão como sujeitos da história, não mais negando a sua identidade. Ora, foi sob esta perspectiva de (re)descobrir o sentido da disciplina escolar História que realizamos as atividades do projeto de ensino em questão. Tratava-se, portanto, de conferir relevância e significado aos assuntos trabalhados. Para isso o uso de documento11 em sala de aula contribuiu significativamente para se construir novas abordagens. Os documentos, uma vez problematizados, desvelam os conflitos presentes na história, apresentando um ganho pedagógico expressivo, pois os/as alunos/as perceberão que o conhecimento histórico não é estático, pronto e acabado. 11 O documento utilizado foi um artigo em que aparece trechos do discurso do então candidato à presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro em 2018. (artigo em anexo) 31 Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira Soma-se a esse ganho a reflexão de que o estudo de história não se reduz a decorar datas e glorificar personagens, mas criar uma consciência histórica em consonância com a realidade do educando – campo fértil para o fortalecimento da identidade, reforçando o caráter social e político que o aluno enquanto cidadão desempenha na sociedade. Bittencourt (2009) reforça essa perspectiva ao afirmar que a utilização de documentos em sala de aula faz falar os amordaçados pelo esquecimento histórico, inserindo novos atores, não mais negando a participação popular na história. Fazendo esse reconhecimento os estudantes compreenderam que sua história tem valor, e esta não se construiu de forma uniforme, mas também não foi pura iniciativa de um grupo hegemônico. Isso contribui sobremaneira para a formação da consciência histórica, pois o educando terá uma visão da história que contempla as lutas, os conflitos, a perspectiva da classe trabalhadora, problematizando as diferentes dimensões da experiência humana, negando o caráter exclusivo da elite como detentora dos rumos da história, fazendo com que reflita sobre a própria realidade local. A formação da consciência histórica do aluno leva-o a questionar o fato que as realidades não são dadas naturalmente, mas sim, historicamente construídas. Neste processo, conflitos sociais exclui e oprime determinados sujeito, sendo que nessa dinâmica as camadas mais baixas são silenciadas pela história dita oficial. Nesta perspectiva, a escolha do conteúdo “Nova República” se justificou pois foi verificado no ambiente escolar e da comunidade ao seu redor que possuía desigualdades sociais, e era alvo de intolerância e discriminação. Tivemos como objetivo geral do projeto de ensino sensibilizar os educandos através da crítica do documento fundamentada no conteúdo “Nova república” sobre as transformações políticas, sociais e culturais que assinalaram a democratização desse período, trabalhando com estes a cidadania em uma perspectiva histórica. Nossa meta primeira foi instigar no educando a capacidade crítica de interpretação do conteúdo em discussão para que este possa, posteriormente, se posicionar enquanto sujeito diante dos dilemas e problemas sociais, políticos e culturais atuais. Neste sentido, e de acordo com Cerri (2011), se faz necessário uma 32 Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber... reflexão sobre como o ensino de história se sustenta na formação da consciência histórica. Isso significa que para rompermos com uma história de eventos e de heróis é preciso trabalharmos com a historicidade do mundo, os processos históricos, entre outras questões. Buscamos problematizar o tema “Nova República” para que esse não fosse entendido de forma unilateral, mas sim em todas as suas facetas, ou seja, com o envolvimento de diferentes sujeitos históricos, viabilizando um processo de ensino-aprendizagem em história mais significativo, instrumentalizando o aluno a compreender e pensar os processos históricos. Para além dessa questão, entre os nossos objetivos estava o despertar no aluno para uma leitura crítica do conteúdo; desenvolver habilidades por meio do conteúdo “Nova República” para que o educando se posicione de forma crítica diante dos problemas sociais, políticos, econômicos e culturais; potencializar a criatividade do aluno a fim de despertar neste o interesse pela disciplina; promover o alargamento do conhecimento do aluno para que aprendam a questionar, a observar, representar os acontecimentos sociais em uma perspectiva histórica de modo que considerem os diferentes sujeitos no tempo e no espaço. Documentos históricos: caminhos para formação crítica dos/as alunos/as A Escola Municipal Professora Dorotéia Bezerra dos Santos está localizada num dos bairros mais pobres da cidade de Tefé AM, chamado popularmente de “Vila pescoço”. O bairro possui um alto índice de criminalidade, sendo que alguns moradores praticam o tráfico e/ou uso de drogas. Uma parcela significativa do bairro são pessoas desempregados ou subempregadas, com um mínimo de estudo. Muitas vezes o estudante vem de uma família desestruturada, seja pela ausência do pai ou da mãe ou são criados pelos avós, podendo sofrer maus tratos. A escola possuía em 2019 o percentual de 3,5 de Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDBE e enfrenta problemas como desistência, a desmotivação do estudante, a própria precariedade da escola. 33 Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira Trabalhar com essa realidade escolar não é fácil, mas ao mesmo tempo em que nos desafia. Foi neste contexto que trabalhamos o processo de redemocratização do Brasil. Antes, porém, achamos relevantes problematizar as contradições presentes na conjuntura histórica dos/as alunos/as, mostrando que ainda hoje sofremos com a exclusão social. Assim, problematizamos que a questão de conquista dos direitos que simbolizam a Nova República, não são para todos. Mostramos ainda que o Brasil não é um país tão democrático como diz ser, pois alija os direitos mais básicos dos seus cidadãos. Essa realidade pode ser verificada na própria experiência dos educandos. Assim, buscamos construir o conhecimento histórico em uma perspectiva que tome o passado não dissociado da compreensão do presente para que o aluno redescubra o sentido da disciplina história, em uma dinâmica que (res)signifique o passado, lançando sobre estes novos olhares para que estimule a formação da consciência histórica, potencializado a criticidade do aluno. Trabalhar o conteúdo “Nova República” no contexto diverso da sala de aula foi importante por viabilizar as condições necessárias para a reflexão política e sociocultural que marcaram essa nova fase do Brasil. Entendemos que era significativo abordar o assunto em paralelo com a realidade social na qual os educandos estão inseridos, para que estes possam compreender por meio da leitura crítica que nesse processo histórico marcado por transformações das conjunturas sociais com a redemocratização e reelaboração de leis, nem todos os sujeitos foram alcançados e que a desigualdade, a exclusão física, social, étnica e cultural prevalecerem. A própria realidade dos estudantes, pertencentes a um local marginalizado e periférico da sociedade é prova das desigualdades no Brasil. Neste sentido, buscamos criar situações que mobilizasse os/ as alunos ao exercício da alteridade, à crítica contra as injustiças sociais, enfim, que se proporcione uma íntima relação do conteúdo em tela com a realidade concreta destes para se reforçar o interesse pela disciplina para que assim compreendam que por meio da História foi possível problematizar as experiências sociais que ideologicamente são naturalizadas. E foi nesta perspectiva que transformamos o ensino mecânico para uma aprendizagem 34 Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber... significativa, pois, os/as alunos/as foram colocados como sujeitos nesse processo, ampliando seus conhecimentos e a disciplina deixa de ser abstrata ganhando sentido para o educando. Construindo novas abordagens: alguns resultados O ensino de história lida com questões complexas, dentre elas temos a problemática de como despertar o interesse do/a educando/a acerca do passado e como estabelecer uma mediação das experiências desse passado com o presente. Conhecer a história e ser capaz de efetivar a problematização no processo de construção do conhecimento histórico é uma necessidade se ansiarmos formar o pensamento crítico, criativo e autônomo do educando. Dessa forma, para superarmos esses desafios faz-se necessário traçarmos estratégias que direcionem o alcance desses objetivos. No primeiro momento apresentamos como funcionaria a dinâmica do projeto de ensino aos/às alunos/as, em seguida entregamos um texto impresso sobre a redemocratização no Brasil e a artigo com trechos dos discursos de Jair Messias Bolsonaro como fonte12 para contextualizar o conteúdo “Nova República”. O procedimento adotado para a dinâmica do projeto foi a análise dos discursos sobre o negro, a mulher, os gays mobilizando os saberes prévios dos estudantes para, depois, associarem as informações contidas no documento e a seu cotidiano, fazendo a interação na análise documental. Tal atividade envolveu o/a estudante no sentido de questionar sobre suas primeiras impressões para que em seguida, confrontassem, comparassem, fizessem observações, reconhecendo elementos que já tinham visto antes, construindo coletivamente o conhecimento, inserindo-os na construção do saber histórico, para que percebessem que há um colorido de possibilidades de interpretações em uma única conjuntura histórica. Essa ao ser problematizada mostrou que não existe uma história homogênea. Ao associar essas questões com a realidade e com as experiências do educando criou-se uma atmosfera na qual o conhecimento 12 Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-promete-fimdo-coitadismo-de-negro-gay-mulher-e-nordestino/ Acessado em 20/04/2019. Documento em anexo. 35 Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira histórico foi socializado e o processo de ensino-aprendizagem tornou-se significativo. Problematizamos a ideia de exclusão social, quando pedimos para os/as alunos/as analisarem o discurso preconceituoso do deputado Jair Bolsonaro que versava sobre os quilombolas, nordestinos, mulheres e homossexuais. O discurso foi veiculado pela mídia quando Bolsonaro ainda era candidato à presidente da República. Fizemos uma roda de conversa para que houvesse trocas de experiências e a partir delas abordamos o conteúdo. Os estudantes participaram ativamente e puderam compreender o discurso de ódio de Bolsonaro e a desvalorização das mulheres, dos negros, dos homossexuais. Para ele o negro “não servia nem para reprodução”, havia o “Kit gay” que “incitava nas crianças a sexualidade”, “que mulher feia não servia nem para ser estuprada”, enfim palavras que coloca esses sujeitos como pertencente à uma “terceira classe de cidadãos”. Para Bolsonaro “no Brasil vivemos o “coitadismo”: “Coitado do negro, coitado da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino, coitado do piauiense”. “Vamos acabar com isso”. Aqui o candidato se refere explicitamente aos sujeitos que vivem à margem da sociedade brasileira. Que quando trabalham ganham uma remuneração menor do que um sujeito branco, que não são respeitados em seus direitos básicos à saúde e à educação. Mas para Bolsonaro parece que a exclusão desses sujeitos é tudo invenção. Na sua plataforma de governo não havia nenhuma política para as pessoas que vivem em vulnerabilidade. O discurso de ódio nega todo um processo histórico de exclusão das ditas minorias sociais. A realidade sofrida por mulheres, negros e homossexuais, de uma forma singular, também era vivida pela maioria dos estudantes. A própria realidade da comunidade onde a escola está inserida, representa essa falta de direitos básicos como saneamento básico, saúde, educação com qualidade, entre outros. São estudantes, pobres num Brasil em que que os direitos básicos estabelecidos na Constituição de 1988 não são garantidos para a maioria da população. Problematizamos que a “Nova República” deveria representar a conquista de fato da cidadania, mas isso não ocorreu. Essa 36 Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber... metodologia foi produtiva, pois problematizamos um discurso que explicitamente era orientado politicamente por uma ideologia liberal, na qual mulheres, negros, nordestinos e gays são vistos como cidadão de terceira classe. Essa atividade contribuiu para rompermos com a dimensão da memorização, tornando a aula dinâmica, mostrando que não há neutralidade na história, por isso é necessário consideramos a miríades de experiências para fazermos novas reflexões para a prática da crítica histórica em sala de aula, apontando as possibilidades de construção do conhecimento histórico. Uma vez interpretado o discurso de ódio contra esses sujeitos, os/as alunos/as compreenderam que o país não é democrático. Alguns chegaram afirmar que “se a gente ouve isso até de um representante do povo que deveria defender os direitos de todos os cidadãos, o que poderemos esperar do futuro do país?”. Essa frase foi emblemática de estudante que conseguiu realizar uma leitura da realidade social, econômica e política do país, mostrando que as desigualdades não são naturais, mas que foram historicamente construídas. Assim, explicitamos que é no rastro desses conflitos, de trazer os sujeitos silenciados, soterrados por uma leitura unilateral ideológica política do Estado que a História se propõe a compreender. Isso permitiu um novo olhar sobre a realidade dos/as educandos/as, uma vez que por meio do conteúdo “A Nova República” tratamos de mostrar que esse período representa os ideais de democracia e de conquista de direitos - um contexto de reformulação social e política, traduzida na igualdade, mas que nem todos foram alcançados. O efeito dessa abordagem contribuiu significativamente para a sensibilização dos/as alunos/as para se reconhecerem enquanto sujeitos que devem buscar sua afirmação política e social. Dessa maneira os educandos entenderam que a redemocratização que deveria assinalar esse período histórico, não significou a conquista de direitos iguais, pois, ainda existe uma maioria excluída como os quilombolas, os indígenas, as mulheres e os negros, os deficientes. Quando os/as alunos/as compreenderam essas contradições e quando perguntados se já sofreram algum tipo de preconceito, as respostas foram emblemáticas no que concerne 37 Mirela Alves de Alencar e Cristiane da Silveira essa exclusão. Alguns responderam que já sofreram pela cor, pelo tamanho, pelo local onde moram que é considerado de periferia, outras por ser mulher, entre outros relatos que mostram que com a própria realidade dos educandos foi possível fazer uma nova abordagem sobre o conteúdo a Nova República. Depois dessa roda conversa que culminou com a socialização do conhecimento histórico, fizemos uma atividade dinâmica, dividindo a sala em dois grupos que deveriam responder algumas perguntas relativas ao conteúdo trabalhado. Para tal atividade confeccionamos um jogo da velha que continha em cada um dos nove campos uma pergunta, uma vez respondendo certo o educando poderia colocar sua pedra e assim continuar jogando até ganhar. Os/as alunos/as se envolveram bastante com essa atividade, trabalhando em equipe o que contribuiu para potencializarmos a sensibilidade dos/as alunos/as de forma dinâmica e criativa, despertando o interesse pela disciplina. Assim, o projeto de ensino foi norteado pela problemática social encontrada no contexto sociocultural e econômico da escola. Para tanto, elegemos o conteúdo a “Nova República” para abordamos de forma dinâmica essas questões. Os/as alunos/as participaram de maneira satisfatória, pois, contaram suas experiências o que contribuiu para a problematização do assunto. As atividades realizadas foram fundamentais para um processo de ensino-aprendizagem mais significativo, e como afirmou Paulo Freire (2016) é preciso formar o pensamento crítico do educando para que este seja autônomo, mas, para isto precisamos respeitarmos os seus saberes prévios. “(...) Por que não discutir com os/as alunos/as a realidade concreta a que se deve associar a disciplina cujo conteúdo se ensina? Por que não estabelecer uma 'intimidade' entre os saberes curriculares fundamentais ao/às alunos/as e a experiência social que eles têm como indivíduos?” Ora, foi à luz dessa ótica que procedemos e os resultados foram positivos, uma vez que aproveitamos a experiência dos educandos o que tornou significativo o aproveitamento do conteúdo. 38 Novas abordagens metodológicas como caminhos possíveis para a renovação do saber... Considerações Finais Diante de tudo que foi visto, o que temos a considerar foi a importância de propor novas abordagens no ensino de história em sala de aula com a abordagem de documentos históricos. A experiência vivenciada no Estágio Supervisionado III na escola Municipal Dorotéia Bezerra dos Santos na turma do 9º ano A, aponta que a apreensão do conhecimento histórico em uma perspectiva crítica é possível. Trata-se de reconhecer que reelaborar as metodologias e os conteúdos é uma necessidade se assim quisermos problematizar a exclusão e o silêncio histórico dos sujeitos marginalizados. Foi válido refletirmos acerca do ensino de história comprometido com a experiência do educando fazendo com que compreendam em uma perspectiva crítica o seu papel enquanto sujeitos ativos. Neste sentido, no que pese o avanço de metodologias que atendam a essa demanda, o conhecimento histórico em sala de aula ainda carece de sentido para o aluno, isso significa que os conteúdos selecionados, na sua maioria, ainda privilegiam uma história fragmentada que glorifica determinado grupo hegemônico. Assim, destacamos a importância de propostas pedagógicas que considere o valor da coletividade – a visão da maioria – apresentando para o aluno o seu caráter social e histórico, levando-o a se identificar enquanto sujeito capaz de mudar a realidade na qual está inserido. Referências BITTENCOURT. C. O saber histórico na sala de aula. 11 ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. CERRI. L.F. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora FVG, 2011. FREIRE. P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 54ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2016. HORN.G.B. GERMINARI.G.D. O ensino de História e seu currículo: teoria e método. 3.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. PIMENTA. S. G. SOCORRO. M.L.L. Estágio e docência. Revisão técnica. José Cerehi Fusari. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. 39 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico na sala de aula13 Yomarley Lopes Holanda14 Introdução D iante das complexas mudanças pelas quais passa o mundo contemporâneo, marcado pelas transformações tecnológicas vertiginosas e pela informação instantânea, muitos chegam a alardear certo ceticismo ou mesmo um desencanto em relação ao conhecimento histórico, considerando-o de “pouca validade prática” diante das novas demandas mercadológicas. Os debates têm problematizado, principalmente, a transmissão desse conhecimento quase sempre fundamentada em esquemas cronológicos metódicos cristalizados descolados da realidade que elegem heróis, datas e fatos hegemônicos como importantes. Questionam-se ainda os métodos escolhidos, os temas propostos, as fontes de pesquisa. Pode-se dizer que a crítica e a criatividade em aliar teoria e prática subsistem como saldo parcial das crises pelas quais passou esta área do conhecimento nos instantes de validação de seu estatuto acadêmico. Se a História sempre passou por graves tensões ao longe se sua trajetória enquanto saber academicamente instituído, como conhecimento escolar então os problemas se ampliam sensivelmente. Praticamente as mesmas críticas que foram formuladas pelo movimento historiográfico francês dos Annales iniciado por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929, em relação à concepção tradicional de História, podem ser lidas sob o prisma pedagógico no que diz respeito à forma de se ensinar História nas escolas brasileiras até hoje. 13 Texto revisado e ampliado, a partir de uma exposição oral realizada no Congresso da ABRAPLIP, em 2016. 14 Professor Adjunto do curso de História e do PPGICH da UEA/CEST. Mestre e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM). E-mail: [email protected]. Contato: (97) 991639505. 40 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... Todos esses argumentos nos auxiliam a refletir sobre o ofício do Historiador e do professor de História na sociedade atual: afinal, como podemos tornar as aulas de História mais interessantes, provocando nos alunos o entendimento de que são sujeitos históricos e, ao mesmo tempo, ajudando-os a desconstruir os estereótipos teóricos e práticos que assombram a nossa ciência de referência? Certamente não há fórmulas prontas para solucionar esta questão, por outro lado, não há como negar que o ensino de História nas escolas brasileiras precisa ser renovado, repensado, ressignificado. Partindo dessa premissa, é premente que a Universidade Pública e, principalmente, os cursos de Licenciatura em História insistam na importância da formação humanista da disciplina histórica. A História foi, é, e sempre será referência, conforme lembra Hobsbawm (apud PINSKY, 2012, p. 19): “Ser membro da comunidade humana é situar-se com relação a seu passado, que é uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade”. Portanto, é inequívoco que enquanto referência a História precisa ser bem ensinada. E para que isso ocorra efetivamente o historiador Leandro Karnal (2012, p.08) sublinha que se “o fazer histórico (é) mutável no tempo, seu exercício pedagógico também o é”. Ou seja, ensinar História hoje requer que tenhamos o entendimento do processo de transformação do objeto em si (o ‘’fazer histórico”) e da ação pedagógica, uma vez que a diversidade da realidade brasileira (e no nosso caso também amazônica) não pode ser mantida refém de fórmulas idealizadas de ensino longínquas das experiências reais do contexto escolar. Eis a problemática que nos serve de pano de fundo no transcorrer do presente texto. Tendo em vista a diversidade da realidade brasileira (e no nosso caso também amazônica) que não pode ser mantida refém de fórmulas idealizadas de ensino longínquas das experiências reais do contexto escolar. Eis a problemática que nos serve de pano de fundo no transcorrer do presente trabalho que, em última instância, objetiva tecer uma reflexão sobre o uso de fontes literárias, no caso, a toada de boi-bumbá enquanto portadora de um discurso representacional que pode 41 Yomarley Lopes Holanda tornar-se objeto de interpretação histórico-cultural e, ao mesmo tempo, articulando-a como fonte para o ensino de História na contemporaneidade. 1. A toada do boi-bumbá como canção popular na Amazônia Não faz muito tempo que a música popular brasileira (MPB) se tornou objeto (e fonte) de interesse de um número cada vez significativo de importantes estudos acadêmicos no campo da História (NAPOLITANO, 2005). Em linhas gerais tem-se compreendido que a música dita “popular” (a despeito de todas às discussões que essa categoria deflagra), é um espaço privilegiado de encontros, confrontos, traduções, linguagens, ressignificações, trata-se de um veículo poético das utopias da sociedade nacional. Somos um país musical inegavelmente, um “celeiro mundial” de ritmos, movimentos, acordes e canções diversificadas. Em se tratando da riqueza musical da região Amazônica, sabe-se que é praticamente desconhecida, eclipsada ou mesmo ignorada, como se observa no estudo de Goes (2009), que ao abordar o uso da música popular brasileira na educação, faz considerável resgate histórico da canção popular no país desde o período imperial, todavia, a única citação à Região Norte é feita de forma equivocada ao relacionar ritmos nortista e nordestino como se fossem a mesma coisa. Percebe-se também que a difusão e valorização da cultura musical local são poucas incentivadas pelos órgãos governamentais. Diante desse panorama nada auspicioso optou-se pela toada amazônica, que não encerra em si a imensa variedade musical da região, como gênero musical para refletir sobre as relações hoje profícuas entre a História e a canção popular, com o objetivo principal de mapear um novo caminho de abordagem interdisciplinar desse produto cultural confeccionado pelos compositores das festas de boi-bumbá espraiadas pela Amazônia (que sofre a intensa influência de outros importantes agentes e instituições em seu circuito de comunicações), tendo em vista sua natureza polissêmica, sua historicidade, seu lugar social e suas variadas (re) apropriações por diferentes grupos. Vale salientar 42 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... que reunimos sob o termo genérico “toadas amazônicas” as obras lítero-poético-musicais modernas de caráter popular que mantêm o compromisso com a estrutura rítmica compassada, compostas, produzidas e veiculadas pelas festas de boi-bumbá a nível regional. Comecemos pelos dois conceitos-chave com os quais operamos nesse artigo: música e canção popular. O primeiro tomado obviamente pelo viés das Ciências Humanas é definido por Napolitano (2005, p.32) como um “documento artístico-cultural”, e por isso mesmo também um documento histórico “na medida em que é produto de uma mediação da experiência histórica subjetiva com as estruturas objetivas da esfera socioeconômica”. Trata-se, enfim, de um documento de natureza estética polissêmica. Miriam Hermeto (2012, p.12), afirma que na “cultura brasileira, a canção popular é arte, diversão, fruição, produto de mercado e, por tudo isso, uma referência cultural bastante presente no dia a dia”. Tal qual Lévi-Strauss (1980) em seu Pensamento Selvagem, quando se refere às plantas e animais que não são apenas bons para comer, mas para pensar, Napolitano (2005, p.11), entende que a canção “ajuda a pensar a sociedade e a História”, e complementa, que “a música não é boa apenas para ouvir, mas também é boa para pensar”. Este mesmo autor (2005, p.18), admite que “mais do que um produto alienado e alienante, servido para o deleite fácil das massas musicalmente burras e politicamente perigosas, a História da música popular no século XX revela um rico processo de luta e conflito estético e ideológico”. Mesmo diante das profundas diferenças de temáticas, de estilo, de público, de temporalidade, e de estrutura rítmico-poética entre a toada e o samba ou a chamada MPB, estas últimas analisadas por Marcos Napolitano, a sua leitura crítica continua bem pertinente. Não podemos considerar a toada moderna somente como produto cultural massificado, homogêneo, sem conteúdo, sendo, portanto, inexequível no sentido da constituição de um “legítimo” objeto de investigação científica. Esta é uma postura simplista com a qual não comungamos. Vemos, por outro lado, que a toada amazônica pode sim nos auxiliar no estudo dos processos de construção identitárias na Amazônia ao longo de diferentes tempos e espaços, lançando luz sobre muitos aspectos essenciais da sociedade e cultura amazônicas. 43 Yomarley Lopes Holanda Em sua obra clássica Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo (2001) define toada como uma “cantiga ou canção breve, em geral de estrofe ou refrão, em quadras, cujos temas principais são líricos (sentimentais) ou brejeiros (jocosos)”. Esta definição pode ser aplicada às antigas canções dos cancioneiros dos bois de terreiro ou de rua, que tiravam toadas de improviso com conteúdos românticos (morena, lua, boi, fogueira de São João, etc), e irreverentes quando se tratava de desafiar algum boi rival. Seus versos constituíam-se em quadras simples compostas de quatro versos por estrofe (com rima no segundo e quarto verso). Atualmente as toadas de boi-bumbá “se constituem em canção popular, reunindo no texto informações pertinentes ao espetáculo, e recebendo a enunciação melódica do intérprete, no sentido de dar conta da estrutura dos versos” (BRAGA, 2002, p.443), servindo de base inspiradora para a confecção de fantasias e alegorias, bem como para a preparação cênica das apresentações de boi-bumbá, e no seu conteúdo percebemos um forte teor regional com a valorização e preservação das belezas amazônicas, das culturas indígenas e dos costumes caboclos. Júlio César Farias (2005, p.79) afirma que as “letras têm caráter narrativo-descritivo, em que se procura explorar a sonoridade das palavras nos versos, geralmente curtos e rimados e extremamente poéticos”. A pesquisadora Maria Eva Letízia (2000, p.39), estudando os enredos caboclos e nativistas nas toadas dos bois-bumbás Garantido e Caprichoso de Parintins, tem entendimento semelhante ao que temos demonstrado aqui: as letras das toadas modernas há muito tempo ultrapassaram a simples alusão ao auto do boi, hoje elas podem ser consideradas parte integrante da moderna poesia amazonense, incluindo em sua estrutura elementos regionalistas, projetando um imaginário acerca da Amazônia e de seus habitantes. É possível perceber desse debate que a toada consolidou-se ao longo do tempo num signo cultural importante na festa dos bois-bumbás da Amazônia, pois seu compromisso com a batida compassada, com as melodias tecnicamente trabalhadas e, principalmente com as letras cujas referências são a preservação da natureza, os rios e animais, a vida cabocla e os povos ameríndios, 44 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... sugere-nos uma leitura muito interessante das diversas formas de comportamento dos sujeitos ou atores sociais da região, além do próprio processo histórico de constituição da toada enquanto gênero musical regional, bem como, dos embates estéticos e ideológicos que permeiam a produção desse tipo de canção. E ainda, a toada pode ser pensada enquanto um “documentomonumento” importante de leitura e interpretação sociocultural, indo muito além de uma simples “ilustração de um tempo”, ou mesmo de análises simplistas que dissociam “letra” e “música”, “texto” e “contexto”, priorizando a primeira em detrimento de outros importantes elementos constitutivos da canção, Le Goff (2003, p.537-538), afirma que: O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite não existe um documento-verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (...) É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar essa construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. Segundo este entendimento, o documento seria potencialmente toda e qualquer produção humana, já que informa sobre o modo de vida e o lugar social de quem o produziu. O trecho reflexivo de Jacques Le Goff parte do princípio que é o olhar crítico do analista (historiador ou qualquer outro pesquisador), que monumentaliza o produto cultural (em nosso caso, o documento-canção), ao problematiza-lo, lançando sobre ele uma série de questionamentos históricos, sociológicos, literários, etc. Articulada à noção de “documento-monumento”, é pertinente tomar a toada amazônica como narrativa cancional que interpreta e (re) constrói representações sociais por meio do encontro entre letra e melodia. Em outros termos, é ela mesma uma representação, na acepção de Roger Chartier (2002), já que dialoga simultaneamente, reconstruindo e atribuindo sentido à realidade vivida. Outra importante ferramenta teórico-metodológica que lança luz sobre o trabalho interpretativo com a canção popular 45 Yomarley Lopes Holanda amazônica é o modelo de análise desenvolvido por Robert Darnton (2008): o circuito das comunicações, que tem como cerne o alargamento do campo de visão do observador sobre a produção cultural. Ou seja, no trabalho de análise da obra cultural (Darnton trabalha com a História do livro e da leitura), deve-se levar em conta os processos de criação, produção, difusão e apropriação do produto cultural que, por sua vez, “só completa seu sentido quando circula na sociedade e encontra seus públicos” (HERMETO, 2012, p.41). Portanto, ao pesquisador das canções amazônicas é imprescindível o estudo sistemático dos sujeitos (compositores, arranjadores, produtores musicais, músicos, mediadores culturais, intérpretes, etc), instituições (agremiações, gravadoras, lojas de CDs e DVDs, etc.), veículos de sociabilidade (mídias, espaços de apresentação, festas, shows, etc), perfazendo o circuito pelo qual se movimenta nunca de maneira simétrica a obra cancional. Como se vê a análise das canções vai muito além da dimensão digamos sonora do produto cultural. 2. A toada como instrumento didático-pedagógico no ensino de História Tomamos como referência os livros de Marcos Napolitano (2005), História e Música, e Miriam Hermeto (2012), Canção popular brasileira e ensino de História, dentre outros citados no corpo textual ou mesmo implícitos, frutos de algumas leituras anteriores, para analisar a toada amazônica “A conquista”, bastante conhecida do público receptor/consumidor desse gênero. Lembro que as dimensões reduzidas deste nosso artigo não nos permite enveredar pela operacionalização de todos os mecanismos analíticos discutidos no transcorrer do trabalho, não obstante acredito que mesmo assim o exercício sintético é válido como momento deflagrador de um “passeio sério por uma nova fronteira didática”. 46 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... “A conquista” (Tony Medeiros/ Inaldo Medeiros/ Edvaldo Machado) Um dia chegou nessa terra um conquistador/Manchando de sangue o solo que ele pisou/Não respeitou a cultura do lugar/Nem a história desse povo milenar/Queria ouro riqueza e tesouro/Depois a terra e também escravidão/Tibiriçá, Araribóia, Ajuricaba disseram não/Um dia o índio lutou contra o branco invasor/E a guerra de bravos guerreiros então começou/Arcos e flechas contra a força do canhão/Guerra dos ímpios dizimou minha nação/Trouxeram cruz mais usavam arcabuz/E o ameríndio resistia à invasão/Chamaram a morte e o massacre do meu povo Civilização/Chegou o branco, pra conquistar/Chegou o negro, pra trabalhar/Unindo raças e crenças de povos/Vindos de além mar. Logo no princípio é importante interrogar cientificamente a canção. Somente a partir dessa atitude crítico-questionadora pode-se caminhar pelos outros meandros da interpretação cancional: como é que a toada passou a existir? Como é que ela chega aos ouvintes? O que os ouvintes fazem dela? Na operação analítica com a toada moderna, assim como com qualquer outro gênero musical, não se considera somente seu aspecto poético (letra). Neste caso a música (melodia, harmonia, ritmo, contrapontos instrumentais, arranjos, timbres, entoação do intérprete, dentre outros elementos estruturais da canção), é muito reveladora porque se trata, em última instância, de um gênero associado aos antigos batuques afro-brasileiros, conforme reconhece Braga (2002, p.435) "no que se refere à importância percussiva dos tambores, ao canto de improviso e de resposta e à dança circular". Na introdução harmônica da canção percebe-se o uso de instrumentos percussivos como tambores e repiques, além de berimbaus, denotando uma sonoridade afro-brasileira levando o ouvinte a uma atmosfera notadamente especial de dança, de movimento. “Num certo sentido, a estética da música popular ainda está marcada pela musica practica (música para ser ouvida com o corpo, com os músculos)” (NAPOLITANO, 2005, p.94). A etnografia de Holanda (2010) demonstra os círculos de admiradores do boi-bumbá, geralmente jovens, que se reúnem nas festas, encontros nos “currais”, e ensaios dos bumbás, com o objetivo de ir muito além do ouvir as toadas, eles buscam conjugar 47 Yomarley Lopes Holanda a experiência sonora com os gestos, com a performance que chega a imitar os movimentos de danças indígenas, tornando-se uma só movimentação especial, muitas vezes coreografada. Historicamente, se por um lado o ritmo e a estrutura percussiva presentes na toada podem ser relacionados aos antigos batuques e capoeiras dos escravos afro-brasileiros, a letra da toada, segundo Salles (1994) pode se vincular a uma herança portuguesa cujas formas tradicionais de diálogo poético existentes nos versos dessas composições populares, caracterizam a poesia que se sobrepõe à música com ritmo e rima, extensão do verso e agrupamento estrófico É importante ainda, situar o leitor no contexto maior do evento que veicula a canção e para o qual ela foi pensada, produzida e divulgada, afinal é neste universo que a obra musical vai ser projetada, adquirindo seu primeiro significado, em nosso caso específico trata-se do Festival Folclórico de Parintins. Manifestação de arte pública antropofágica carnavalizada. Antropofágica na medida em que se alimentou e se alimenta das influências do carnaval e da mídia. Carnavalizada , porque se exibe portanto aspectos semiológicos, simbólicos e plásticos que são próprios do carnaval (LOUREIRO, 2002, p.121). Em outro texto (2010, p.184), já havíamos assinalado que o Festival Folclórico de Parintins criado em 1965, e que teve a primeira disputa entre os grupos Caprichoso e Garantido um ano depois, serve hoje de modelo para todas as festas populares da região amazônica. É a maior e mais grandiosa manifestação do Norte do Brasil, recebendo anualmente, no último final de semana de junho, milhares de turistas de todos os cantos do Brasil e do mundo. É para este evento que são compostas, produzidas e veiculadas as toadas mais reconhecidas pelo público ouvinte/ consumidor do gênero musical em foco. Os bois-bumbás Caprichoso e Garantido da cidade de Parintins, interior do Amazonas apresentam uma versão modernizada e ressignificada do histórico boi-bumbá ou bumbameu-boi, considerado por muitos estudiosos o mais notável e de maior apreciação estética de todos os folguedos brasileiros, 48 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... encontrado em diversas variantes de norte a sul do país. Em síntese, historicamente o boi-bumbá é um folguedo noturno de composição dramática simples que carrega em suas apresentações uma gama de símbolos e significados que têm fascinado e desafiado gerações de pesquisadores. Para Cavalcanti (2000, p.61) os “folguedos do boi são formas rituais populares, comportamento simbólico por excelência a exigir intensa atividade corporal com o uso de fantasias, muita música e dança...”. A toada “A Conquista” foi composta por três dos mais importantes compositores do boi-bumbá Garantido da cidade de Parintins. O poeta Tony Medeiros e seu irmão Inaldo, pertencem a uma família tradicional da história do boi na cidade, inclusive, o primeiro é considerado um dos pioneiros na inserção da temática indígena no bumbá na década de 90, além de atuar muito tempo na função cênica de amo do boi Garantido. A canção foi lançada e divulgada em CD no ano de 1998, cujo tema proposto pela Associação Folclórica foi “500 anos do passado para construir o futuro”. A letra se propõe a narrar a conquista da Amazônia pelos europeus como um episódio marcado pela destruição e pelo desrespeito às culturas nativas milenares. Duas questões podem ser postas aqui: 1) a figura indígena emergindo do texto de maneira simbólica aludindo às conotações cimentadas pela história oficial que dão conta de um índio passivo ante a invasão de suas terras e à desarticulação de seus modos de vida, o que iria de encontro à visão estereotipada do elemento indígena no boi que é, desde sua origem, “estilizado”, quase uma paródia, um herói trágico eleito pelo romantismo literário brasileiro como símbolo da nação, como se observa no fragmento: “Arcos e flechas contra a força do canhão, guerra dos ímpios dizimou minha nação...chamaram a morte e o massacre do meu povo civilização”; 2) O outro ponto refere-se à evidência dada aos líderes indígenas “Tibiriçara, Aribóia e Ajuricaba”, eleitos símbolos da resistência ameríndia ao etnocídio. Aparece aí não mais um indígena simbólico (fraco, subserviente), mas sim sujeitos de ações historicamente concretas. Caminha-se, portanto, para outra possibilidade interpretativa histórico-cultural que raramente lemos nos livros didáticos. Os compositores da toada operam direta ou indiretamente sobre estas duas perspectivas em que a figura 49 Yomarley Lopes Holanda indígena é a “matéria-prima” de sua obra, conforme aponta Letízia (2002, p.37): “O deambular incessante dos nativos e os reencontros entre diversas nações indígenas servem hoje em dia de referência aos poetas e versejadores populares que compõem as toadas de boi...” É no bojo de importantes transformações socioculturais da festa dos bois-bumbás e da própria sociedade, engendradas pela inserção de patrocinadores, pelo interesse governamental e dos meios de comunicação de massa como as gravadoras que passam a produzir e divulgar os CDs (que neste período alcançam números expressivos de vendagem), e pela crescente demanda de um público cada vez mais diversificado interessado em conhecer/consumir a festa (principalmente em Manaus que terá uma influência preponderante para o sucesso deste gênero musical), que os boisbumbás empreenderão mais intensamente uma série de mudanças estéticas em suas apresentações, a saber: monumentalização das alegorias e composição de toadas mais comerciais (e dançantes), abandonando pouco a pouco seus antigos signos cancionais como a morena, a lua, os desafios, agora para tematizar a vida cabocla, as tradições indígenas e a preocupação com a preservação da natureza amazônica, articulando o local com o global, já que na década de 90 do século passado, se intensificam as discussões em torno dos problemas ecológicos. Segundo os autores da canção em estudo, os indígenas não formavam os únicos povos a sofrer com o processo de conquista do espaço amazônico, emerge do texto a figura do negro que para cá fora trazido à força para trabalhar como escravo. Conforme dissemos em outro trabalho (2010, p. 222-223), há uma forte presença negra na história do folguedo do boi-bumbá, o que nos possibilitou uma leitura da história que a escravidão negou ao negro no Brasil. Talvez menos visível que a presença indígena, ela não deixa de ser significativa em razão da infiltração de negros e seus descendentes quilombolas pelas matas amazônicas e a diáspora nordestina para a região durante o período áureo da exploração da borracha, que contribuíram decisivamente para a formação daquilo que alguns denominam de “civilização cabocla”, desconstruindo a ideia da irrelevância do negro na constituição da cultura amazônica. Eis um fator muito interessante a ser aprofundado pelas análises desse tipo de produto cultural. 50 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... Os (des) encontros no mundo amazônico, quase sempre hostis, entre as três matrizes formadoras do povo brasileiro: negra, branca e índia, é posto em cena ao longo da constituição poética e melódica da toada. Do refrão da canção extrai-se o seguinte trecho: “Unindo raças e crenças de povos vindos de alémmar”, o ponto de vista dos compositores consagra a miscigenação como fenômeno positivo desse processo histórico, no encarte do CD aparece a figura do boi-bumbá Garantido ao lado de três crianças: uma negra, uma branca e outra índia, ressaltando ainda mais essas ideias. Caberia ao analista (professor/pesquisador) problematizar esta categoria, adensando a leitura crítica desde as abordagens evolucionistas do século XIX, atravessando o processo de construção e crítica da chamada “democracia racial brasileira”, sistema ideológico elaborado por Freyre (1998) que, em nome de pretensa harmonia social e racial, eliminava as contradições do processo histórico brasileiro, até culminar com os movimentos sociais (negros e indígenas) das décadas de 70 e 80 e suas lutas em busca do reconhecimento de seus direitos políticos. Logo, a crítica histórica e cultural na sala de aula poderia ser adensada tomando como mote a transversalidade da Pluralidade Cultural, observando seus embates e fricções históricas. Considerações Finais Enquanto experiência estética individual ou coletiva, a música ultrapassa os limites de quaisquer métodos, daí o nosso entendimento de que para pensá-la como “fonte”, “documento” ou “objeto”, faz-se mister lançar sobre a música vários focos de luz oriundos das diversas Ciências Humanas e Sociais, tomando-a, sobretudo, como portadora de discursos que comunicam saberes, práticas, representações, valores e crenças. A musicalidade constitui, sem dúvida, suporte rico de reciprocidade de conhecimento, alargando sobremaneira as nossas possibilidades transdisciplinares de pesquisa. Vale ressaltar que, como tudo na produção histórica (e no seu ensino), o argumento aqui desenvolvido é fundamentado em múltiplas escolhas: de temática, de recorte, de abordagem e, no caso das canções amazônicas, de preferência pessoal pelo gênero musical. Não vejo motivo para o pesquisador não poder estar inserido neste circuito de 51 Yomarley Lopes Holanda comunicações culturais, seja como ouvinte, admirador, produtor ou até mesmo cancionista, obviamente que guardando a devida vigilância epistemológica em relação ao seu objeto. Dito de outra maneira, agora embasado na teoria da História, reafirma-se a “historicidade do próprio historiador, ele mesmo um produto histórico” (SILVA, 2001, p.67). Logo, fica claro a inexistência da suposta isenção total do investigador em relação ao objeto investigado. Como compositor de toadas, professor universitário e pesquisador no campo da cultura amazônica tenho refletido sobre as possibilidades de convergência desse gênero musical com o ensino, um desafio de fazer (e propor) a mediação entre o conhecimento acadêmico e a prática escolar cotidiana, esse artigo vislumbra tal horizonte. Nossas experiências na sala de aula com os alunos do ensino básico sinalizam para o uso de novos instrumentos didático-pedagógicos como as canções, mais próximos de seus interesses, gostos estéticos e perspectivas, enquanto “pontes” de aprofundamento da leitura (de conteúdo e de mundo) e de reflexão desses discentes durante as aulas. Criatividade e liberdade de pesquisa e ensino integrando o mesmo processo dialógico, arte e ciência interagindo na complexa interpretação da realidade. Em suma, a reflexão e o ensino da História de maneira menos metódico é de fato o nosso grande desafio atualmente. O conhecimento sobre a diversidade sociocultural amazônica talvez nos exija “sentir”, “olhar” e “ouvir” para além dos métodos rígidos, abordagens ou modelos teóricos. Talvez requeira de nós uma atitude de afloramento da sensibilidade como professor/investigador. Eis, que nesse instante emerge uma indagação: afinal, de onde vêm a magia e o encanto das toadas amazônicas? O cancionista me responde poeticamente. Vem do sangue do caboclo, Vem do cheiro da cabocla, Ou das águas do grande rio. Vem do compasso das remadas, Vem das tribos dizimadas, Vem das cinzas das queimadas” (Magia da Toada, Tony Medeiros, CD Boi Garantido, 1998) 52 O ensino de História e a canção popular: As toadas do boi-bumbá Amazônico... Referências BOI-BUMBÁ GARANTIDO. Toadas Oficiais: 500 anos do passado para construir o futuro. (Manaus): PolyGram: Microservice, c 2008. 1CD. BRAGA, Sérgio Ivan Gil. Os bois-bumbás de Parintins. Manaus: Funarte, 2002. CÂMARA CASCUDO, Luis da. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Boi-bumbá de Parintins: breve história e etnografia da festa. História, Ciências e Saúde – Manguinhos. Vol. VI (suplemento), 1019-1046, setembro, 2000. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patricia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2002. 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São Paulo: EDUSC, 2001. 54 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático Luciano Everton Costa Teles15 Considerações iniciais D urante décadas atrás se estabeleceram críticas ferrenhas sobre um ensino de história pautado somente na transmissão de conteúdos. Não que os conteúdos deixassem de ser importantes, mas sim pela forma que o ensino assumia nesse processo, em especial tornando o aluno um receptáculo, tendo este que reproduzir, via instrumento avaliativo, o que lhe foi repassado na aula. Paulo Freire, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, elaborou uma série de estudos demonstrando o caráter limitado dessa perspectiva de ensino sobre a formação dos discentes. Na esteira deste autor, que se tornou referência para estudos posteriores acerca da educação, surgiram reflexões que não somente o utilizaram como referência teórica no campo da Ciência da Educação, como tambémem em disciplinas específicas, como no caso da disciplina histórica. Cabe destacar que, recentemente, o ensino de história vem se consolidando como um campo de reflexão promissor, no qual questões como metodologias de ensino, currículos, programas, recursos didáticos, livros didáticos, formas assumidas pela disciplina histórica em contextos históricos diferentes, constituem-se como balizas para a compreensão do ensino. No interior desse movimento, o presente texto tem como objetivo demonstrar como os jornais podem ser utilizados no processo de ensino/aprendizagem como suporte documental e/ ou recurso didático, promovendo um ensino de história inovador pautado num entrelaçamento entre transmissão e produção de conhecimento, destacando este último aspecto. 15 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto B da Universidade do Estado do Amazonas/CEST. E-mail: [email protected] 55 Luciano Everton Costa Teles O ensino de história: reprodução ou produção de conhecimento? O ensino de história, no decorrer de décadas anteriores, foi concebido por meio de uma divisão hierárquica entre ensino superior e educação básica. Esta divisão definia práticas e processos a serem seguidos, em especial ligados à produção e transmissão de conhecimentos. Nessa esteira, o professor universitário teria um papel fundamental na produção do conhecimento histórico enquanto que o professor da educação básica se inseria no âmbito da transmissão desse conhecimento: O ensino de história, como os das outras disciplinas, encontra-se estruturado de tal forma que a universidade, ou 3º grau, compete a produção do conhecimento histórico (ou seja, é o espaço do chamado “discurso competente", enquanto às escolas de 1º e 2º graus cabe a sua reprodução (CABRINI, 1994, p. 19-20). Esta divisão acabou produzindo não somente uma hierarquia na relação com o conhecimento, como também no status profissional, salarial, etc. (CABRINI, 1994, p. 20), situação vivenciada ainda hoje, no século XXI. Em que pese à vigência dessa situação, recentemente surgiram várias críticas sobre essa “divisão do trabalho”. As críticas assentaram-se na ideia de que o conhecimento se constitui como um processo e não um dado pronto, acabado e definitivo. Nesse sentido, cabia ao professor (tanto da educação básica como do ensino superior) identificar e discutir os elementos presentes no processo de construção do conhecimento. Com efeito, no ensino de história, a “oficina de Clio” passou a ser incorporada, tendo como foco a interlocução, o diálogo, conduzido pelo professor, dos alunos com o objeto/tema de estudo. Como sublinha Ciampi: Ressaltar os desdobramentos do ofício do historiador no trabalho do professor em sala de aula, bem como a preocupação com montagem do tema, a problematização, o trabalho de seleção, tratamento e confronto das fontes para a compreensão e 56 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático explicação do objeto de estudo. Ter o aluno e professor como sujeitos históricos e do seu próprio conhecimento (2003, p. 112). Apontar procedimentos, regras e perspectivas presentes na produção do conhecimento histórico, demonstrando de que forma a interpretação sobre o passado foi construída pelo historiador, tornou-se importante no processo do ensino de história: É preciso garantir que o professor de história seja alguém que domine o processo de produção do conhecimento histórico, que seja alguém que saiba se relacionar com o saber histórico já produzido e que, finalmente, seja alguém capaz de encaminhar seus alunos (sejam eles do 1º, 2º ou 3º graus) nesses mesmos caminhos da produção. Em outras palavras: o professor de história precisa ser alguém que entenda de história, não no sentido de que saiba tudo o que aconteceu com a humanidade, mas que saiba como a história é produzida e que consiga ter uma visão crítica do trabalho histórico existente (CABRINI, 1994, p. 23). Portanto, dominar e encaminhar os passos da produção do conhecimento histórico, buscando visualizar como a história, enquanto conhecimento, foi produzida, configurou-se como salutar. Além disso, a articulação entre conhecimento e realidade social pode promover ações e comportamentos no sentido da promoção de mudanças sociais. Isto porque o processo de produção do conhecimento no espaço escolar envolve um conjunto de relações complexas onde alunos e professores articulam experiências, vivências, interesses, valores e expectativas diferenciadas, o que evidencia uma dinâmica potencializadora de intervenções sociais. Com efeito, atualmente tornou-se essencial romper com aquela “divisão do trabalho” mencionada acima, apontando que os professores de história inseridos no âmbito da educação básica podem trabalhar de forma articulada o ensino e a produção de conhecimento. Sobre esta questão Idanir Ecco destaque que: a contemplação de uma aprendizagem significativa requer uma metodologia participativa. E trabalhar História na perspectiva da 57 Luciano Everton Costa Teles produção do conhecimento requer atividades de pesquisa, de investigação, prática esta possível de implementação entre alunos e professores dos Ensinos Fundamental e Médio (2007, p. 137). Assim, o professor da educação básica, ao contrário do que foi “imposto” no passado, tem possibilidades de caminhar num processo de ensino/aprendizagem que tenha como foco a articulação entre ensino e produção de conhecimentos. Para demonstrar essa possibilidade, tem-se como exemplo a utilização do jornal como suporte documental e/ou recurso didático para a produção do conhecimento histórico. Os jornais na pesquisa histórica A utilização da imprensa periódica como fonte para a pesquisa histórica brasileira ganhou terreno, ainda de forma tímida e lenta, na década de 1970 após a superação de antigas posturas que marcaram a prática historiográfica, notadamente as noções de “fonte suspeita” e “repertório da verdade”. Com relação à primeira postura, a imprensa periódica despertava desconfiança nos historiadores. Os diversos temas tratados e as inúmeras informações veiculadas, por não serem oficialescas – na medida em que não eram documentos comprovadamente produzidos por agentes do governo – eram relegados a um plano secundário. Entretanto, para aqueles que insistiam em utilizá-la era necessário redobrar a atenção, a fim de não comprometer, com o uso desse registro, a pretensa objetividade, tão ardorosamente desejada no interior da disciplina histórica. No extremo oposto, foi lentamente se constituindo a ideia de “fato verdade”, que elegia a imprensa como “templo dos fatos”, enaltecendo a objetividade do fato jornalístico e esboçando uma tendência a utilizá-la como relato fidedigno da realidade, fonte imparcial e neutra dos acontecimentos (CAPELATO, 1988). Assim sendo, as informações contidas na imprensa periódica representavam um recorte in loco da realidade, extraído e materializado em artigos presentes nas colunas jornalísticas, supostamente a espera do historiador para serem compiladas, observadas e exploradas. 58 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático No final da década de 1970 e início de 1980, a imprensa periódica foi sendo vista de forma diferente. Num momento de reavaliação do tratamento dispensado pelo historiador às fontes históricas, a imprensa periódica passou a ser tomada como espaço de representação de inúmeros aspectos da realidade. A partir desse momento, a atenção voltou-se para os elementos constitutivos da construção dos textos jornalísticos. Esta posição foi sendo difundida e acabou influenciando os historiadores que caminharam no sentido de romper com a postura que via a imprensa como “fonte suspeita” ou, inversamente, como “repertório da verdade”, permitindo estabelecer questões que procuravam elucidar não o fato jornalístico em si, mas a construção deste fato. Nessa esteira, atentou-se que no processo de construção do fato jornalístico os elementos subjetivos e os interesses do jornal interferiam decisivamente. Dessa forma, a tarefa preliminar de identificar os elementos construtores do fato se tornou central na construção historiográfica, uma vez que possibilitava identificar e localizar a imprensa socialmente e, assim, melhor compreender a lógica de seus discursos e a emergência de projetos de intervenção social e política que, por vezes, ela buscava encobrir. A adoção de uma postura cautelosa e crítica no trato com a imprensa tornou-se referência obrigatória para os pesquisadores. Zicman lembrava que, para os que resolviam tomá-la como fonte de estudo historiográfico, era necessário atentar para o eixo norteador de sua ação – o campo político e ideológico. Essa questão trouxe consigo a necessidade de estabelecer os principais traços característicos dos órgãos de imprensa a serem investigados (ZICMAN, 1985, p. 91-92). Era preciso indagar ainda sobre o modo como os jornais constituíram formas de olhar e narrar os eventos e de fixar uma versão entre outras possíveis. Era preciso identificar o “lugar social de onde o jornal falava” (VIEIRA, 1989). Isso foi importante, uma vez que deu à imprensa um lugar de destaque nos estudos históricos, tal como sustenta Capelato: Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido 59 Luciano Everton Costa Teles como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época (1988, p. 13). Como fonte histórica, a imprensa configurou-se como um “manancial dos mais férteis” para a reconstrução e elucidação do passado. Por meio dela, tornou-se possível recuperar dimensões sociais importantes, notadamente as lutas, os ideais, os compromissos e os interesses de diversos setores que compõem a sociedade. A imprensa possibilitou um melhor conhecimento das sociedades no nível de suas condições de vida, manifestações culturais e políticas, dentre outros aspectos. Desse modo, vários trabalhos emergiram como, por exemplo, a nível nacional e dentro da seara da História do Trabalho, as obras de Maria Auxiliadora Guzzo Decca (1997), Sidney Chalhoub (1991), Francisco Foot Hardman (1983), Ângela de Castro Gomes (1988), dentre outros. Por outro lado, a imprensa também foi tomada como objeto de estudo. Nesse caso, os estudos nos remetem, num primeiro momento, aos Institutos Históricos e Geográficos espalhados pelas regiões do país e aos intelectuais ligados a estas instituições, com destaque para Alfredo de Carvalho e Afonso de Freitas. Os trabalhos desenvolvidos por estes profissionais consistiam na realização de levantamentos de jornais e abordagens descritivas sobre os mesmos. Assim, a imprensa era vista por uma perspectiva descritiva, factual e cronológica. Sobre essa perspectiva, Marialva Barbosa alega que “escrever a história da imprensa não é, certamente, alinhar fatos e datas, nomes e mais nomes, nem destacar os personagens que se tornaram singulares na construção engendrada no passado para o futuro (2004, p. 03). A tentativa da construção de uma História da Imprensa no Brasil não se restringiu a esse primeiro momento. Em 1966 surgiu a História da Imprensa no Brasil, obra de vulto que refletiu sobre a dinâmica e evolução dos órgãos de Imprensa e analisou suas características em diversas conjunturas. Ancorado em um modelo marxista que atrelava a dimensão cultural ao nível da infraestrutura – aquela era reflexo desta –, Sodré via imprensa como um “aparelho ideológico do estado . Essa dimensão pode ser 60 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático percebida logo no início do livro quando afirmou que “a história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista” (SODRÉ, 1999, p. 1). Porém, essa não foi a única obra que procurava construir, por outro viés, uma História da Imprensa no Brasil. Precedendo a obra de Sodré, Juarez Bahia (1990) procurou discutir não só um sentido geral na história da imprensa brasileira, mas também inquirir essa historicidade em articulação com os processos de incorporação de novas tecnologias e linguagens. Além de Bahia, Carlos Rizzini (1988) e Hélio Viana (S/D) também desenvolveram estudos sobre os órgãos de imprensa em perspectiva global. Considerando as obras que buscavam analisar globalmente a História da Imprensa do Brasil, Geraldo Pinheiro assim se posicionou: não obstante a grande contribuição que estes trabalhos trouxeram ao debate contemporâneo, eles carregam limitações de suas época. Assim pois, Carlos Rizzini, Hélio Viana e Juarez Bahia estão fortemente marcados por perspectivas positivistas, enquanto Nelson Werneck Sodré, com a ortodoxia que lhe é peculiar (1993/94, p. 198). Cabe mencionar que os estudos menores e mais regionalizados não ficaram de fora. Nessa linha, a obra de Ignotus (1883), que abordou a imprensa no Maranhão entre 1820 e 1880, e Luiz do Nascimento (1972), o qual focalizou a imprensa em Pernambuco, são exemplares. A partir da segunda metade do século XIX até meados da década de 1970, os estudos que tomaram a imprensa enquanto objeto de investigação, ora em plano global ora em plano regional, caminharam em duas vertentes. Na primeira, a imprensa era encarada de forma descritiva, factual, cronológica e preocupada em fazer levantamentos de documentação sobre jornais (catálogos e listagens). Tal perspectiva acabou apresentando um baixo teor explicativo. Na segunda, o jornal era visto como “aparelho ideológico do estado”, o que acabou gerando um empobrecimento analítico resultante do determinismo econômico. Nas décadas subsequentes, a noção de imprensa enquanto “prática social que compunha o tecido social urbano” se difundiu 61 Luciano Everton Costa Teles e contribuiu para a emergência de trabalhos relevantes, com destaque para o trabalho de Heloísa de Farias Cruz (2000), que buscou refletir sobre as relações entre cultura letrada, periodismo e vida urbana no processo inicial de formação da metrópole paulistana. Atualmente a tendência direciona-se em tomar a imprensa periódica como objeto e fonte de estudos concomitantemente. Essa perspectiva apresentou-se profícua, pois acabou articulando duas dimensões que potencializaram a produção do conhecimento histórico por meio de um diálogo em que a imprensa periódica tornou-se o foco dos estudos: Compreender a imprensa como instrumento de intervenção na vida social em que seu estudo pode se dar como objeto/fonte, uma vez que desaparece a categoria imprensa na forma abstrata para dar lugar ao movimento vivo das idéias, protagonistas e, principalmente, para que emerjam dessa produção de sentidos, como resultado da operação histórica, sujeitos dotados de consciência determinada na prática social (GONÇALVES, 2001, p. 09). Com efeito, a recuperação histórica da constituição da imprensa, suas tecnologias, linguagens, dinâmicas e transformações ao longo do tempo, bem como as informações contidas nos artigos veiculados, que surgiram por meio de aspectos presentes na realidade do cotidiano do local onde o periódico circula e que acabam alimentando a produção de ideias e sentidos, apresentam-se como fundamentais e ricos para a construção do saber historiográfico. Empregando o jornal como instrumento articulador do ensino e da produção de conhecimento na disciplina histórica No processo de ensino/aprendizagem o jornal pode ser utilizado em dois sentidos: como suporte documental (objeto/ fonte de estudo) e como recurso didático. No primeiro caso, o jornal pode ser explorado para demonstrar como o historiador o utiliza no processo de construção 62 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático do conhecimento, ressaltando a relação deste com o documento e revelando as formas de abordá-lo no sentido de extrair informações sobre alguns aspectos do passado que irão compor uma interpretação específica. Nesse caminho, o professor da educação básica, ao buscar os jornais nos acervos da cidade, nas publicações de fac-símiles ou em sites específicos, poderá traçar uma atividade explorando-o como “passaporte” para adentrar numa época específica, explicando-a por meio das informações contidas no jornal, solicitando que os alunos, por meio de problematizações, reflitam sobre ele, produzindo, assim, conhecimento. Traduzindo: a partir de elementos levantados para o exame de uma determinada realidade histórica, os alunos fizeram algum trabalho de reflexão que os leve à produção do conhecimento (...) sobre essa realidade e à compreensãoda forma como esse conhecimento foi construído (CABRINI, 1994, p. 30). Assim, questões como definição do tema, problematização, seleção de informações, compreensão e explicação acabam sendo elementos fundantes nesse processo. Ultimamente, no campo da história, os historiadores canalizaram esforços no sentido de buscar, no interior dos acervos, documentos significativos para publicação, num processo de divulgação e democratização do acesso aos mesmos. Nesse contexto, vários documentos foram recuperados e publicados, como, por exemplo, processos judiciais, relatos de viajantes, jornais os mais variados, etc. Na mesma linha de divulgação e democratização do acesso aos documentos históricos, várias instituições disponibilizaram em sites na internet documentos que podem ser baixados. Pode-se citar como exemplo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que em seu site disponibiliza documentos do século XIX ao XXI. Por outro lado, o jornal pode ser utilizado como recurso didático. Neste caso, ele se configurará como um instrumento mediador dos temas e das explanações estabelecidas pelo professor e direcionadas aos alunos. Também poderá ser usado para compor um material específico, construído pelo professor para explicar um determinado conteúdo. 63 Luciano Everton Costa Teles Em determinadas situações, “a produção de materiais pelos professores é a melhor forma de atender a especificidade de determinado conteúdo” (PORTAL DO PROFESSOR, p. 4). Portanto, o jornal pode ser explorado também nesta perspectiva. Cabe destacar que os jornais mais recentes, incluindo aí os atuais, caracterizam-se como primordiais para a discussão e a produção de reflexão sobre questões do presente, fomentando uma compreensão da realidade mais atual e, de certa forma, promovendo uma visão crítico-social. Imagem 1 – Jornal O Solimões, Tefé/AM Fonte: Biblioteca do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) 64 Ensino de história: o jornal como suporte documental e/ou recurso didático O jornal utilizado tanto na perspectiva de suporte documental como de recurso didático se constitui como instrumento capaz de promover a articulação entre ensino e produção de conhecimento na educação básica, inserindo o professor e o aluno nesse processo: os alunos do ensino fundamental e médio podem, juntamente com seus professores, tornar-se pesquisadores nas suas localidades, buscando informações, construindo o conhecimento histórico a partir da investigação da memória de seus familiares, de patrimônios históricos, de obras de arte, de jornais de época. Trata-se de possibilitar aos alunos, quando possível a manipulação direta do objeto de estudo (DIEHL, 2002, p. 227). O emprego de jornais como instrumento para a produção do conhecimento histórico se insere num movimento maior de fomentar “a manipulação direta do objeto de estudo” por parte dos professores e dos alunos da educação básica e, como mencionando na citação acima, não se restringe somente aos jornais. Considerações finais Observou-se que a utilização do jornal como suporte documental e/ou recurso didático pode promover um processo de ensino/aprendizagem inovador, cuja perspectiva se assenta na articulação entre transmissão e produção de conhecimentos, destacando que é extremamente possível que o professor da rede básica de ensino paute sua atuação profissional nesses termos. Com isso, buscou-se romper com a “divisão do trabalho” docente, segundo a qual cabia aos professores de nível superior a produção do conhecimento e aos professores da educação básica apenas, a transmissão do mesmo. Por meio do domínio acerca da produção do conhecimento histórico e da capacidade em traduzir esse processo para os alunos, a proposta de aliar transmissão e produção do conhecimento por meio da exploração de jornais dificilmente se tornará traumática. 65 Luciano Everton Costa Teles Referências BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo: Ática, 1990. BARBOSA, Marialva. Os Donos do Rio: Imprensa, Poder e Público. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2000. BEZERRA, Holien Gonçalves. Ensino de História: conteúdos e conceitos básicos. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas.São Paulo: Contexto, 2004. CABRINI, Conceição et al. O ensino de história: revisão urgente. São Paulo: Brasiliense, 1994. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. 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Queirós assevera: “Desde muito cedo, a região sofreu os impactos da ditadura que se instalava. Os impactos dos projetos desenvolvimentistas na região foram particularmente nefastos para as populações indígenas” (QUEIRÓS, 2019, p. 39). É neste contexto que a organização dos povos originários começou a ser notada; as lutas por terras ganham as pautas nos noticiários, especialmente em Boca do Acre, com os Apurinã em busca de delimitação do território. Para Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila Carvalho (2005): Os massacres contra os povos indígenas voltariam a se repetir, já recentemente, a partir das décadas de 1960 e 1970, com as políticas de desenvolvimento e integração da Amazônia que começaram a rasgar a floresta com a abertura de estradas como 16 Francisco da Silva. Graduado em História pela Universidade do Estado do Amazonas UEA/Centro de Estudos Superiores de Tefé – CEST/UEA. Contato (97) 98412-2762 E-mail: [email protected] 17 Tiago Fonseca dos Santos. Professor de História no Centro de Estudos Superiores de Tefé – CEST/UEA. Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/UFAM. Contato: [email protected] 71 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR 364, a BR 174 e a Perimetral Norte. Povos como os Waimiri-Atroari, Yanomami, Arara, Parakanã, Cinta Larga e Nambikwara, entre muitos outros, foram duramente atingidos, inclusive por expedições de extermínio com participação do poder público (HECK; LOEBENS; CARVALHO, 2005, p. 239). Em relação à delimitação geográfica desta pesquisa, Boca do Acre, primeira cidade da região do Médio Purus, pertence ao estado do Amazonas e está localizada à margem direita do Rio Purus, exatamente na foz do Rio Acre. Foi fundada pelo colonizador João Gabriel de Carvalho e Melo em 1890, com o Ato de Criação: Decreto Nº 67 de 22/10 do mesmo ano, a cidade tem limites com os municípios de Lábrea, Pauini e com estado do Acre. De acordo com Francisco Apurinã (2019) na chegada do colonizador, já existiam etnias indígenas que habitavam esta região, inclusive os Apurinã18: Ao chegar ao Amazonas, especificamente à localidade que compreende atualmente o município de Boca do Acre, João Gabriel de Carvalho e Melo se deparou com pelo menos três povos indígenas diferentes, entre eles os Apurinã e Jamamadi, que continuam no local até os dias de hoje (APURINÃ, 2019, p. 189) A invasão do colonizador causou muitos prejuízos em função das guerras, das doenças, da escravização e tentaram através das legislações coloniais, além de explorar a mão de obra dos nativos. As políticas indigenistas criadas no período colonial, imperial e até mesmo na República foram pensadas para aculturar os nativos, inclusive no uso do seu trabalho, para torna-los trabalhadores nacionais, integrados à sociedade brasileira. Quando o uso dos serviços indígenas deixaram de ser a força maior dos colonizadores, 18 O povo Apurinã faz parte da família linguística Aruak (também Arawak ou Maipure), do ramo Purus, e autodenomina-se Pupỹkary. Eles podem ser encontrados na literatura indigenista com vários nomes, segundo Sidney da Silva Fagundes os termos, “Ipurina”, “Ipurinás”, “Ipurinã”, “Ipurinan”, “Ypurinás”, “Ipurynans”, “Hipurinás”, “Hypurinás”, “Hypurina”, “Tiupurina”, “Tupurinã”, “Jupurina”, “Kankite”, “Kankutu”, “Kankiti”, “Kankete”, “Cangiti”, “Canguite” ou “Kaxarari” (FAGUNDES, 2000, p. 03). 72 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... começa as disputas por terras. De acordo com o Relatório da Comissão Nacional da Verdade: Tais violações perduraram até a promulgação da Constituição de 1988 e muitos dos seus efeitos permanecem até os dias atuais, apontando para a necessidade de completar o processo de justiça transicional aos povos indígenas, ainda em curso no Brasil. Ao superar juridicamente o paradigma do integracionismo, que concebia os “modos de ser” indígenas como condição a ser superada, a Constituição de 1988 se apresenta como principal marco de anistia aos povos indígenas. A ação direta e deliberada do Estado visando impedir os povos indígenas de exercerem seus “modos de ser” fere os direitos mais fundamentais da democracia, tais como os de liberdade de pensamento e liberdade de culto, para citar apenas dois. Constitui-se, em verdade, em negação de direitos humanos básicos, porquanto representa a tentativa de extinção de povos enquanto coletividades autônomas (BRASIL, 2014, p. 252) A pesquisa se dá em contexto desfavorável, às populações nativas, sobretudo pelos planos de desenvolvimento da Amazônia19 elaborados para execução entre 1955 e 1985 (Batista, 2016). Entende-se que esta região, sofrera com exploração e disputa de poder, desde o tempo colonial, a primeira ação colonizadora foi a extração das drogas do sertão – produtos naturais da floresta como, cacau, salsaparrilha, pau-cravo, gergelim entre outros, como, castanha do Pará (Becker, 2005). Depois, entre 1880 à 1920 foi o período de exploração do látex, em escala mundial. A partir de 1950, começa a criação de políticas para “desenvolverem” o “vazio demográfico”. Tais planos são destacados na tese de Iane Maria Da Silva Batista (2016), onde destaca: Durante o período analisado foram elaborados cinco planos, a saber: o 1º Plano Quinquenal de Valorização Econômica da Amazônia (1955-1959); 1º Plano Quinquenal de Desenvolvimento (1967-1971); I Plano de Desenvolvimento da Amazônia (1972-1974); II Plano de Desenvolvimento da Amazônia (19751979) e III Plano de Desenvolvimento da Amazônia (198019 Conhecida ainda por, Amazônia Legal, que corresponde à área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM delimitada em consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de 03.01.2007 73 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos 1985). A ideia motriz que os orientou foi a exploração racional e planejada dos componentes da natureza amazônica, qualificados como recursos naturais (BATISTA, 2016, p. 16) O desenvolvimento proposto para a Amazônia, não considerou as comunidades existentes, movido por interesses assentados na ideologia autoritária da ditadura. Em um primeiro momento houve o aumento dos indicadores econômicos, mas à custa do endividamento externo, e ainda os índices sociais não melhoraram. Portanto, os projetos desenvolvimentistas não trouxeram bons resultados e representaram o avanço do capital nas terras indígenas (Silva Filho, 2015). Diante do cenário desenvolvimentista, buscou-se compreender a importância da resistência e dos conflitos Apurinã em Boca do Acre entre os anos 1972 a 1978, especialmente daqueles moradores do km 45 da Rodovia Federal BR-317. Sabe-se que neste período, Boca do Acre foi palco de conflitos sociais entre os Apurinã, fazendeiros e o grileiro João Sorbile20, tendo como protagonistas os Apurinã que presenciaram situações de descaso pelas políticas de governo e até mesmo da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, sobretudo, invasão e apropriação ilegal de suas terras. Nesta perspectiva, recuperar os conflitos e atos de resistência dos Apurinã é estritamente relevante para a comunidade acadêmica, inclusive para as pesquisas em História Indígena e o Indigenismo na Amazônia. A pesquisa ainda mostra que estes indígenas já habitavam aquela área, desde a chegada do colonizador, e traz para conhecimento a resistência desse povo, frente às leis assimétricas, com as políticas indigenistas e de desenvolvimento da região do governo militar. Procedimentos metodológicos A compreensão e análise de arquivos variados para uma produção cientifica, lançando mão uma abordagem que dê conta da exploração deste conteúdo é fundamental para alcançar 20 As informações que se tem sobre a biografia de Sorbile são poucas e vagas, sabese que ele é de Ribeirão Preto/SP e chegou aquela região em 1972 com registro da terra forjados, buscando parecer amigável aos Apurinã. 74 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... os objetivos determinados pelo problema de pesquisa. Nesta investigação, usa-se fontes do Sistema de Informação do Arquivo Nacional - SIAN e do Instituto Socioambiental – ISA, analisados a partir de uma abordagem qualitativa. Para Ferraz e Silva (2015), a pesquisa qualitativa permite assim o pesquisador buscar as razões dos sujeitos, os seus motivos fortemente ancorados nas suas experiências de vida. As autoras ainda afirmam que essa abordagem é uma espécie de conceito “guarda-chuva” por abranger formas variadas de pesquisa. De acordo com as mesmas: Os métodos de coleta de dados da pesquisa qualitativa permitem ao pesquisador coletar informações tanto através de documentos escritos quanto através da fala de atores sociais. Os documentos escritos oferecem ao pesquisador a possibilidade de resgatar informações do passado registradas em relatórios, entrevistas, memorandos, atas, contratos e documentos gerais que podem auxiliar na compreensão do fenômeno estudado (FERRAZ; SILVA, 2015, p. 45) A escolha do método qualitativo traz uma maior possibilidade de se obter informações e compreender de um fenômeno. Para compor o quadro teórico metodológico, usa-se a Análise de Conteúdo, como uma técnica que permite examinar diferente informações. Na definição de Bardin: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos objetivos e sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens (Bardin, 2011, p. 48) Esta técnica permite a organização e sistematização dos dados, que possibilita uma articulação das informações e perceber se os variados documentos tinham alguma ligação entre si, por exemplo, os que tratam do enfrentamento dos indígenas com os grileiros, como, a troca de tiros com polícia e a morte de Apurinã. Isso forma um eixo temático “enfretamento” que por sua vez se categoriza 75 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos como “conflitos”. Já os registros que compreendem os protestos dos nativos, na AJACRE, no INCRA e na sede da FUNAI em Rio Branco e em Brasília, formam o eixo “ações pacíficas”, podendo formar uma categoria de “resistência”. Nesta pesquisa se entende por conf lito, os atos que contaram com o uso de arma, por índios e não-índios, e quando algumas reações geram mortes ou tiroteio de ambos os lados. Conforme a notícia do Jornal de Brasília intitulada “Polícia ataca índios em Boca do Acre”, publicada em 05/07/1980, o periódico relata que: Os índios apurinã de Bora do Acre (AM) foram atacados por um grupo de cinco policiais armados. Um dos policiais foi ferido e os índios refugiaram-se na mata. Os policiais atacaram o posto indígena no dia 1° de julho, numa camioneta amarela pertencente a um fazendeiro (JORNAL DE BRASÍLIA, 1980, p. 05) Ao verificar o trecho acima, percebe-se que o jornal noticia ao fato ocorrido, mas não fala se houve morte nem ferimento sofrido pelos nativos, nem como estes ficaram depois do ataque, se preocupando apenas com o bem dos policiais. Outro fator interessante percebido na citação é que a Polícia Militar estava a serviço dos que tinham mais recursos para proteger uma propriedade ilegal no território dos Apurinã, pois os próprios agentes da PM não foram em um veículo da instituição de segurança, mas na camioneta de um fazendeiro. Portanto, atos como estes são sistematizados na categoria conflitos. Entretanto, as ações que foram movidas e articuladas pelos próprios Apurinã e alguns ativistas apoiadores da causa. Conforme o que consta no documento da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, com título As Terras indígenas na Amazônia Legal, datado do dia 4 outubro de 1984: Os índios Apurinã, que habitam a área do PI BOCA DO ACRE, localizado a altura do Km 45 da BR-317 (Boca do Acre-Rio Branco), vêm reivindicando um acréscimo de 8.500 ha de terras, ocupadas por 25 famílias, que ali desenvolvem diversos tipos de culturas. A FUNAI, considerando que a área do PI 76 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... com 17.517 ha., já demarcada, é suficiente a sobrevivência e a preservação da integridade e da cultura da população indígena local – 15 famílias, com cerca de 70 índios – decidiu não atender a comunidade (SGCSN, 1984, p.64) Esta manifestação se deu pelas terras que foram griladas por João Sorbile e vendidas por outros colonos que já tinham desenvolvido práticas semelhantes. Os Apurinã pediram ajuda da Funai, mas ficaram sem resposta. Neste contexto, os atos iguais ou semelhantes a este que foram passivamente articulados se alojam na categoria resistência. A reivindicação de seus direitos a terras pelos próprios indígenas é anterior ao relatório da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (1984). Conflitos e resistência Apurinã em Boca do Acre Para compreender como se propagou a grilagem arquitetada por Sorbile e seus aliados, é importante que se retorne ao meado da década de 1950, quando se inicia o projeto de construção da BR-317 que liga a cidade de Boca do Acre à cidade de Rio Branco. Para Francisco Apurinã, o projeto da BR-317 foi um caminho de tanto outros da chamada integração da floresta, “[...] criados para facilitar a acumulação do capital via cessão/ legalização de lotes de antigos seringais para empresários do Sul, a fim de permitir a implantação de empresas agropecuárias” (Apurinã, 2019, p. 192). A construção da BR-317, trouxe variados problemas para os Apurinã. A bandidagem – roubo dos pertences indígenas – e junto a isso a grilagem das terras à margem da rodovia, em especial, as praticadas por Sorbile que chegou ao local em 1972. Conforme o relatório de novembro de 1976 da Ajudância no Acre – AJACRE. Onde se ler o seguinte trecho. O fato em si, não só trata de uma medida isolada da Sr. João Sorbile contra os APURINAS (sic), pois desde a sua chegada na área en (sic) 1972, foi desencadeada uma perseguição sistemática aos índios, com o visível propósito de afastá-los á das terras que habitam. inicialmente, para que os índios permitissem a 77 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos sua presença na área, João Sorbile prometendo-lhes que feria daquela vila uma cidade e que construiria para cada família índia uma nova casa nos moldes dos “civilizados” e o ajudaria o nos derrubadas das roças com seus tratores além de prestar ajuda e atendimento médico. Depois de um certo tempo sem realizar nada do que tinha prometido aos Índios, o Sr. João Sorbile ofereceu aos APURINÃ, para que saíssem das terras por eles ocupadas, a doação das terras do seringal São Francisco, situado nas proximidades da aldeia SIDERAL. Devido a sua insistência para que os índios saíssem das terras da aldeia, um grupo se sete índios vieram até a Rio Branco, onde junto ao INCRA, fizeram a denúncia da ocorrência, quando receberam as instruções para que não abandonassem suas terras (OFICIO Nº 022/76 – AJACRE, 1976, p. 01-02) O explorador usou como estratégia promessas nunca cumpridas para se promover; e, ainda, tentou a todo custo expulsar os nativos de suas moradias. Observa-se ainda uma nova roupagem para as ações do colonizador, se na época das primeiras explorações usavam-se as trocas de objetos manufaturados, agora se teve promessas de melhorias de vidas, e de bem-estar social, para tirar proveito do trabalho e do conhecimento daquele povo. Para a exploração da mão de obra indígena, bem como seus conhecimentos da área a ser colonizada, a ideia dos brancos era se aproximar dos nativos, evitando os confrontos. Com relação a esses enfrentamentos, Patrícia Melo Sampaio argumenta que “[...] a resistência armada dos índios da Amazônia ao avanço colonial português, parafraseando Florestan Fernandes, foi dura e terrível” (Sampaio, 2011, p. 44). O relatório que compõe o Ofício 023 de 1976 da AJACRE traz um panorama de como o cartório de Boca do Acre estava com altos nível de irregularidades e como se deu a negociações do seringal Aripuanã, posterior Fazenda Paulista, de João Sorbile. No trecho transcrito, expõe uma visão a respeito dos antigos seringais depois que a borracha deixou de ser comercializada em Boca do Acre: “A estrutura fundiária do município está sofrendo uma transformação, que é muito positiva economicamente, uma vez que extensos seringais improdutivos serão transformados em 78 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... fazendas agropecuárias, favorecendo o produto destas fazendas do município” (AJACRE, 1976, p. 04). Essa assertiva vale para os seringais – São Miguel, São José do Aquiri dentre outros como Aripuanã – pertencentes ao município de Boca do Acre. O relatório ainda pontua: Nos livros 03 e 3-A constante que as transcrições imobiliárias em sua maioria, são meras posses levadas de a registros imobiliário. Em alguns casos o desrespeito ao Dec. 4857/39, chegou a ser chocante, principalmente quanto a delimitações dos imóveis sempre incorreto e duvidosos (AJACRE, 1976, p. 06) O Decreto nº 4.857, de 09 de novembro 1939, citado acima, dispunha na época acerca da execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil, mas ao longo dos anos sofreu diversas alterações. Atualmente o que está em vigor a lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975, que altera a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, dispõe dos registros públicos. Anterior as duas legislações têm-se o Decreto nº 19.924, de 27 de abril de 1931 que dispõe das terras devolutas. Baseado nas respectivas, que os cartórios de Boca do Acre e de Rio Branco fizeram as transcrições imobiliárias, sem base alguma a respeito do que se pode ou não comprovar. A estratégia de compra, venda e doações, das terras da União em Boca do Acre, inclusive, referente ao Seringal Aripuanã, se deu por irregularidades complexas, em um complexo jogo interesses. Os registros imobiliários lavrados pelos cartórios tanto de Boca do Acre, quanto de Rio Branco, geraram algumas indagações que carecem de futuras respostas; por exemplo, a forma que Sorbile consegue seu primeiro registro de terra sem nunca ter morado no referido seringal. Dessa forma, para tentar compreender esta ação de usurpar as terras públicas, observa-se trecho do relatório referente ao histórico da situação judicial da comunidade indígena, que futuramente denominado Fazenda Paulista. Assim diz o relatório: A primeira referência do imóvel rural Seringal Aripuanã a luz do direito, remonta há 17/03/1943, quando Dona Petro79 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos níla Hollande (sic) de Oliveira, registra certidão de doação de parte do referido Seringal a seus filhos Delzuita, Dekmar, Dalva, Delgenir e Jossio Henrique de Oliveira, através de certidão lavrada às notas do tabelião Eloy Vasconcelos Monteiro em 02/09/1939, levados a registro imobiliário sob o nº de ordem 129, às folhas 86 do livro 03, Cartório de Boca do Acre A segunda referência(sic) relaciona-se a aquisição feita por seu marido Antonio Henrique de Oliveira, de parte do seringal Aripuanã, havido(sic) através de instrumento particular de compra e venda em 05/01/1925 registrado no livro 02 do título e documentos às folhas 64 a 65 – certidões de Boca do Acre, havido do Sr. Jovelino florentino de Araújo, lavrado a transcrição sob o nº 517, às folhas do livro 3-A em 14/03/1973. As demais referências são em relação aos herdeiros filhos e viúva meeira (sic), transcrevendo a formal partilha do espólio referente a herança deixada pelo pai Antônio Henrique de Oliveira sob o nº 517, 518, 519, 520, 521, 522, 523 e 524 do livro 3-A, às folhas 36 a 40. Datados de 14 a 23/03/1973, respectivamente, no Cartório de Boca do Acre. João Sorbile vende inteiramente (sic) uma área de 10.000 ha. Do mesmo seringal a Demir Nogueira Farias, através da escritura lavrada notas do Tabelião Luiz Marques da 2º Distrito do Rio Branco, livros 02 folhas 131-134 levadas a transcrição em Boca do Acre o registro imobiliário sob o número de ordem 562, às folhas do livro 3-A em 16/03/73. A seguir adquiria dos herdeiros de Antonio Henrique de Oliveira, através da certidão do escritório de cessão de direitos hereditários e usufruto uma área seringal Aripuanã composta de 09 (nove) estrada de seringa o pequeno castanhal registrado no livro 02às folhas 70 e 73 no 2º Distrito do Rio Branco, levadas a transcrição no registro imobiliário de Boca do Acre sob o nº 568 de folha do livro 3-A em 22/08/73 A seguir João Sorbile fez loteamento de uma área de 341.633 hectares e 9.500 m2 e denominou o seringal Aripuanã de “Fazenda Paulista”, vendeu a colonos vindos do Sul, lotes que variam de 250 a 5.000 hectares. Verificou-se que a Cadeia Comercial (sic) do imóvel ato 1926 quando Antônio Henrique de Oliveira adquiriu de Jovelino Florentino de Araújo uma parte do Seringal Aripuanã, que mais tarde veio a falecer deixando a sua filha e a viúva meeira que, por sua vez, transfere a João Sorbile, que revende a colonos vin80 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... do do Paraná. Lição constante de toda a transação titulação originário Idônea ou que o Seringal houvesse sido indispensável destaque de patrimônio público (AJACRE, 1976, p. 09,10 e 11). No trecho transcrito do relatório, percebe-se como era fácil se apropriar de terras da União, sobretudo onde haviam seringais, como, o Aripuanã, que o Sr. Antônio Henrique de Oliveira, tendo comprado parte do imóvel de Jovelino Florentino de Araújo em 1925. Depois, ao falecer deixa como herança para seus filhos, bem como sua viúva dona Petronila. A princípio, não se encontrou referências relativas aos registros do primeiro comprador, ou seja, não se sabe como Jovelino conseguiu ser dono do seringal, talvez ele fosse um seringalista, e como de prática se apropriou das terras públicas. Ariovaldo Umbelino de Oliveira argumenta: “[...] o acesso à terra na história da sociedade brasileira, onde se verifica que o descumprimento das normas legais e, a elaboração de novas normas para regularizar os atos ilegais, foi sempre o procedimento histórico das elites nacionais” (OLIVEIRA, 2015, p. 05). Outra situação observada é a forma como João Sorbile consegue as terras do seringal, cedidas pelo cartório de Rio Branco, mesmo sendo de outra comarca e Estado diferente. Pelo que se percebe, em 1973, o grileiro vende uma área de 10.000 hectares do mesmo seringal a Demir Nogueira Farias, através da escritura lavrada às notas do Tabelião Luiz Marques da 2º Distrito do Rio Branco. Depois, adquire dos filhos de Antonio Henrique de Oliveira uma vasta área do mesmo seringal, que também fora registrada em Rio Branco, em 1973. Em seguida Sorbile já se considerando dono do seringal, faz loteamento de uma área de 341.633 em menores partes medindo entre 250 e 5 mil hectares, que são vendidas a colonos vindos do sul do país. O fato é que na década de 1930 ocupar terras devolutas não era atividade das mais difíceis, uma ação praticada por brasileiros desde o século XIX. Sobre tal ações Oliveira (2015) argumenta que: As elites latifundiárias do Brasil, regularizaram as terras griladas da Coroa Portuguesa ou de Espanha durante o período colonial, com a Lei de Terras de 1850. Este mesmo ato - a grilagem - passava, a partir de então, ser novamente proibido pela própria lei que estava concedendo o benefício para os crimes de apropriação ilegal praticada anteriormente. Este mesmo 81 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos procedimento jurídico-político foi repetido mais duas vezes. A segunda feita por Getúlio Vargas em 1931, através do Decreto no 19.924 de 27/04/1931, que reconheceu a validade dos títulos expedidos pelo Estado nas repartições públicas, e, consagrou a transcrição como ato indispensável para validar os títulos das terras (OLIVEIRA, 2015, p.05-06) É possível que os cartórios de registro das comarcas de Rio Branco e Boca do Acre tenham se amparado no Decreto no 19.924 de 27/04/1931, para fornecerem registros de terras. Os Apurinã, somente perceberam que as terras tinham “dono” quando Sorbile propôs expulsá-los de suas moradias em 1973. É a partir deste momento que os nativos procuram seus direitos e juntos aos indigenistas da AJACRE, inclusive José P. Fontenele de Carvalho, foi responsável oficializar as denúncias trazidas pelos índios, e comunicar ao presidente da Funai – Ismarth Araújo de Oliveira (1974-1979) – o que acontecia em Boca do Acre na BR-317. O interesse desenfreado do não-índio para explorar a terras gerou conflito como os nativos, pois, antes de ser um seringal, aquele lugar era o território Apurinã, antes mesmo da construção da BR-317. As primeiras informações acerca dos indígenas daquela região, foi com a chagada dos colonizadores. Com relação a esse contato, Apurinã (2019) informa“As histórias contadas por indígenas e não-indígenas afirmam que os primeiros habitantes da região, são, sem sombra de dúvidas, os povos Apurinã e Jamamadi” (Apurinã, 2019, p. 189). Na tentativa de expulsar os indígenas das terras griladas, Sorbile foi bastante ousado, propondo aos mesmos, a doação de um seringal para mascarar suas verdadeiras intenções de tirar os nativos daquelas terras. Conforme consta no relatório de 1977, da AJACRE, o relator narra que: Conhecemos estes APURINÃ quando em junho de 1976, acompanhando o Exmo.Sr.Presidente da FUNAI, General Ismarth Araujo, visitamos aquela área, a convite do Sr. João Sorbile, que pretendia propor a FUNAI a doação de um seringal Com 5,000(cinco mil) hectares aos Índios APURINÃ, para que se retirassem das terras que ele afirmava ser o dono. Naquela mesma ocasião, recebemos dos Índios a denúncia de que o Sr. 82 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... João Sorbile, era um invasor de suas terras e que aquela pretendida proposta de doação era mais uma tentativa de expulsar os APURINÃ das terras que habitam desde tempos imemoriais (AJACRE, 1977, p. 01) No momento em que foram procurar os direitos à terra, os Apurinã estavam cientes das intenções do Cabeça Branca, e dispostos a resistir a suas investidas, procurando de imediato a AJACRE, visto que era o órgão ligado a Funai mais próximo de sua residência. Diante da problemática exposta pelos nativos, os ativistas da AJACRE fizeram um levantamento dos registros do imóvel rural e pontuaram algumas atitudes do grileiro contra os nativos. Dizendo que Sorbile: Destruiu todos os roçados dos índios. Queimou os seus canaviais, destruindo-os completamente; Proibiu os APURINÃ a fazerem novas derrubadas ou mesmo de plantaram suas roças; Aterrorizava os índios com tratores que investiam de encontro as frágeis construções de suas casas ameaçando derruba-la; Com grupos de pessoas armadas e sob sua chefia, fez cerco a casa do Tuxaua dos APURINÃ, ameaçando de morte caso não se retirassem daquelas terras; Trouxe ao local o encarregado do Cartório de Boca do Acre Sr. Antonio Remedio,(sic) para intimidar os Índios e forçar a retirada das terras; Trouxe também a aldeia a Polícia de Boca do Acre, para intimidar os índios (CARVALHO, 1977, p. 02) Foi através destes pontos que a equipe da AJACRE procurou, saber quem pertencia a terra em questão. O processo de comprovação para saber se os Apurinã eram os verdadeiros donos do seringal foi complexo, diferente da grilagem – os registros forjados por Sorbile – agora já não basta a palavra dos Apurinã, seria preciso ter uma sequência de estudos históricos antropológicos para comprovar a existência dos nativos naquela região. A equipe da AJACRE, informam aos indígenas que poderiam plantar suas roças e que se Sorbile os impedissem, era para comunicar à Superintendência. Não demorou e os nativos foram impedidos pelo grileiro, e, logo avisaram à Ajudância. Porfírio e sua equipe o encontram na capital do Acre e convidaram-no 83 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos a comparecer à sede da Superintendência, para conversar sobre as terras invadidas; mas Sorbile alegou ter recebido ameaças de morte e negou-se a comparecer para prestar esclarecimentos. Diante dessa ação, coube aos ativistas oficializarem a denúncia à Polícia Federal, que tomou conhecimentos dos fatos e oficializou a intimação ao Cabeça Branca. O grileiro ainda foi informado que os indigenistas iriam visitar o local acompanhados de dois agentes da PF para garantir a segurança e a continuidade do trabalho nas plantações de roças. Sabendo da visita, Sorbile tentou impedir os indigenistas de chegaram ao local, contratou homens para realizar os serviços, como se observa no tacho do relatório: Seguimos para o local em avião fretado acompanhados dos índios e dos dois agentes de Policia Federal. Quando a aeronave que nos conduzia sobrevoou a pista de pouso do KM 45, foi notado que se encontrava impedida para aterrisagem de aviões. No meio da pista encontravam-se caminhões, tratores, carretas colocadas de tal forma que obstruía completamente a pista de pouso [...] A pronta interferência dos agentes de Policia Federal, evitou que fosse concretizado o plano daquele grupo de “jagunços” de João Sorbile, houve correrias e a Policia desarmou todo o pessoal, trazendo presos para Rio Branco, os líderes do grupo para prestarem depoimentos. Confessaram ter sido ordem do Sr. João Sorbile, a interdição ou obstrução da pista e que visava impedir a nossa ida até a aldeia dos índios Apurinã (CARVALHO, 1977, p. 04) Provavelmente se a equipe indigenista estivesse sem a guarda da Polícia Federal sofreriam ataque pelos homens de Sorbile. Um cenário complicado, pois, se o grileiro já estava contra-atacando a própria comissão da AJACRE que estava acompanhados de Policiais, como eles estariam se comportando com relação aos nativos? Portanto, é evidente, ao rejeitarem a proposta de irem para outro lugar, os Apurinã mostram-se resistentes e buscaram exercer seus direitos em defesa dos seus territórios, fato que deixou o invasor revoltado. Com a escolha feita, os nativos tiveram prejuízo nas suas plantações e ainda foram ameaçados de expulsão. Mas, não 84 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... cederam espaços e continuaram ocupando as terras, agora apoio da AJACRE. Isso é motivo de manchete do jornal O Estado de São Paulo, publicado em 11/12/1976, noticiando que: A direção da Funai apoiou inteiramente a atitude tomada pelo chefe da ajudância do órgão no Acre, Jose Porfirio de Carvalho que na semana passada ordenou a ocupação, com o auxílio de agentes federais, de uma fazenda localizada junta a BR 317, em área pertencente ao índio apurinã. Esta informação desmente a acusação feita pelo fazendeiro paulista João Sorbile, que se diz proprietário daquela terra, e de que a medida tomada por Porfirio tinha sido motivada por uma “questão pessoal” (O.E.S.P, 1976, p.01) O título da matéria era “Apoiado a ocupação da fazenda”, observa-se que não se tem os indígenas como protagonistas de seus atos, apesar de, nos relatórios de Porfírio e os ofícios da Ajudância, afirmarem ter sido os índios que resistiram e procuraram os seus direitos à terra e estavam dispostos a lutar se preciso fosse. Durante os estudos realizados nas terras comprovou-se que houve fraude na compra, fora comprovado que o Paulista havia cometido grilagem; o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA tomando conhecimento dos fatos, anulou todos os registros de venda daquelas terras. Diante das comprovações, Sorbile passou a agir de forma violenta contra os Apurinã, conforme descreve o relatório: Na ocasião também tomamos conhecimento de mais uma atitude violenta de Sorbile contra os índios, sendo que desta feita utilizou o sistema de aterrorizar os silvícolas usando tratores que à guiza (sic) de retirar piçarra, investia os tratores de encontro as casas dos Índios. Agravando-se o fato por existir na ocasião, dentro das casas dos Índios, um bebê índio de 6(seis) meses de nascido gravemente enfermo e que segundo os índios veio a falecer devido ao medo e ao susto causado pelo barulho insistente e estridente do trator de Sorbile quando este investia de encontro as casas dos índios. Os índios chegaram a apelar para o bom senso do tratorista e este não acolhia o apelo dos índios continuando na sua tarefa criminosa (CARVALHO,1977, p.06) O documento ainda relata que esse fato deixa os indígenas revoltados, dispostos a revidarem aos ataques do invasor. Depois 85 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos da ida da Ajudância a Manaus para procurar uma solução à disputa daquelas terras pertencentes ao estado do Amazonas, os indigenistas se reuniram com o superintendente da Polícia Federal em Rio Branco/AC, onde se planejou as medidas a serem tomadas para a expulsão de Sorbile das terras dos nativos; onde ficou acertado os seguintes pontos: (a) A Funai oficiaria ao Sr. João Sorbile uma intimação para retirar-se da área indígena no prazo de 24 horas; (b) A Polícia Federal daria todo apoio no sentido de ser cumprida a nossa intimação; (c) A FUNAI enviaria um funcionário ao local acompanhando os agentes que se deslocariam visando garantir as nossas medidas (CARVALHO, 1977, p. 07) Depois dos estudos antropológicos realizados na área comprovou-se que eram os indígenas os antigos moradores. A Funai decide definitivamente expulsar o grileiro do seringal. No decorrer dos acontecimentos, o impostor já tinha comprado dois tratores, construído uma pista de pouso para avião monomotor e montado uma serraria21. Ao ver que teria de deixar área em 1977, o grileiro propôs à Funai que comprasse aquelas benfeitorias, mas pelos que se extraiu das análises dos arquivos, a proposta foi rejeitada. Os nativos conseguiram, portanto, recuperar suas terras, e depois da saída dos homens de Sorbile, voltaram às suas atividades. É importante que se tenha compreensão de que João Sorbile havia grilado uma área bem maior que a do seringal Aripuanã também pertencente aos indígenas, e a teria vendido a outros colonos. Entretanto, a área “recuperada” em 1977, não abarcou toda a terra pertencente aos Apurinã, ficando de fora o castanhal e uns antigos cemitérios, onde estavam os ancestrais e os espíritos pertencentes a cosmologia da etnia (Apurinã, 2019). Isso é problemática para outros estudos, no entanto, do que já foi visto até aqui, a respeito da atuação dos Apurinã em defesa de seu território, permite-se tecer algumas considerações a respeito dos conflitos e resistência desses imemoriais habitantes do km 45 na Rodovia BR-317. 21 As especificações dessas benfeitorias feitas por João Sorbile, no seringal Aripuanã se encontram no relatório produzido pela (AJACRE, 1977, p. 09), quando esta superintendência era presidida por José Porfírio Fontenele de Carvalho. 86 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... Considerações finais A resistência e os conflitos estiveram presentes no cotidiano dos nativos desde o início da colonização, seja contra as tentativas de controle da mão de obra, seja na luta pela terra. A região do Médio Purus foi maciçamente explorada na época da extração do látex, e neste contexto, os povos da floresta foram brutalmente afetados. No caso dos Apurinã, foram desarticulados socialmente e forçado a abandonarem a língua materna. Conforme destaca Edna Dias dos Santos: O processo de ocupação da região do Purus, a partir da década de 1870, forçou os Apurinã a se “tornarem” seringueiros, castanheiros, entre outras ocupações de interesse das frentes extrativistas. Esse engajamento na exploração extrativista desarticulou a organização social própria desse povo. Os que sobreviveram foram forçados a abandonar a cultura Apurinã e até mesmo a língua materna (SANTOS, 2002, p. 20) É notável que a inserção dos Apurinã na exploração colonial causou grandes perdas para etnia. No entanto, a resistência foi constante, lutando pela vida, por terras e por liberdade, ou seja, a exploração não se deu sem conflitos. Na segunda metade do século XX, com os “projetos racionais”pensados para desenvolver a Amazônia os povos indígenas foram bruscamente atingidos, seja com as grandes obras, ou com as invasões de terras para a criação de grandes fazendas. É nestes cenários que João Sorbile tentou se apropriar das terras dos Apurinã, moradores do km 45 da BR-317, além do Seringal Aripuanã, o invasor ainda grilou cerca de 341 mil ha, que também era terra dos nativos. Com esta pesquisa foi possível compreender o processo de resistência e dos conflitos Apurinã, em Boca do Acre, no período de 1972 a 1978, na busca da manutenção dos territórios. Identificou-se as estratégias do invasor João Sorbile, para se instalar nas terras dos nativos. Compreendeu-se ainda, o processo burocrático de retomada da terra, de forma legal, com estudo e analise técnicas por agentes da Funai. Apesar da pesquisa tratar de eventos ocorridos há 50 anos, não significa dizer que acabaram as tensões naquela região; se em anos 87 Francisco da Silva e Tiago Fonseca dos Santos anteriores os nativos lutaram pela definição dos territórios, ainda hoje seguem lutando para proteger aquele espaço da expansão da sociedade envolvente. Neste sentido, a investigação colabora para a compreensão da questão ambiental e indígena contemporânea, a partir de eventos ocorridos no período de chumbo no Brasil. Referências BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 022/76. AJACRE. Rio Branco-Ac: Funai, 1976 BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 023/76. AJACRE. Rio Branco, AC: Funai, 1976. BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 024/76. AJACRE. Rio Branco, AC: Funai, 1976. BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 026/76. AJACRE. Rio Branco, AC: Funai, 1976. BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 028/76. AJACRE. Rio Branco, AC: Funai, 1976. BRASIL. Ministério do Interior. OFICIO Nº 029/76. 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São Paulo, 09/08/1979 88 Em busca por direitos: a luta dos Apurinã contra a grilagem de terras em boca do Acre... JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO. Comissão vai aos apurinãs. São Paulo, 21/12/1979. ______. Apurinãs ameaçam atacar castanhal. São Paulo, 21/12/1979. ______. Apurinãs preparam para guerra. São Paulo, 25/04/80. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas. Associação Nacional de História – ANPUH. Revista Brasileira APURINÃ, Francisco. Do licenciamento ambiental à licença dos espíritos os “limites” da rodovia federal BR 317 e os povos indígenas. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2019. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução Luís Antero Reto, Augusto Pinheiro. 3º reimpressão da l º edição. São Paulo: 70 Edições, 2011. BATISTA, Iane Maria da Silva. A natureza nos planos de desenvolvimento da Amazônia (1955-1985). 2016. 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Os produtos retirados da região rendem milhões aos bolsos de uma meia dúzia de homens poderosos, enquanto a população assiste a destruição das reservas indígenas e extrativistas por descaso de políticas ambientais frouxas e entreguistas. O mesmo cenário, agora pela ótica dos povos originários, é cravejado de mística telúrica, encantamento e beleza. A biodiversidade é tratada como dádiva da natureza, sem o olhar predador do lucro a qualquer custo das empresas capitalistas. É o berço de uma poética viva, pulsante e militante. Destes barrancos, vem o grito de Thiago 22 Este texto é um recorte importante do TCC do egresso do curso de História do CEST/UEA Manoel Roberto de Lima, defendido em dezembro de 2021, e orientado pelo professor doutor Yomarley Holanda. Além das considerações da banca de arguição, o texto traz ainda uma sensível ampliação do seu horizonte teórico para fins de publicação. Vale ressaltar que a sua seleção para compor esta coletânea do curso de História da UEA se deve a dois motivos que se coadunam: a) ele demonstra a nossa diversidade temática, de objetos e problemas de pesquisa b) seu arcabouço teórico-metodológico possui um desenho interdisciplinar, pautado em uma dialogia com outros campos do conhecimento, a saber a literatura e os estudos da complexidade. 23 Poeta e graduado em Licenciatura em História pela UEA/CEST. E-mail: [email protected]. Contato: (97) 984079430. 24 Professor Adjunto do curso de História e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UEA/CEST. Mestre e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM). E-mail: [email protected]. Contato: (97) 991639505. 91 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda de Mello25, um ativista ambiental e dos direitos humanos. Este é o cerne da presente pesquisa: se lançar pelos escritos líquidos do poeta de Thiago de Mello, um homem-poeta amazônico, ativo e atento a vida dos povos das águas, com o objetivo de desvelar as ressonância de um pensamento ecológico em sua poética. Em suas letras líricas a Amazônia é vislumbrada em sua dinâmica e profundidade, demonstrando a necessidade de uma convivência equilibrada com a natureza, descontruindo a dicotomia separatista de vida humana em relação a dos demais seres vivos, desfazendo a falsa ideia dos recursos naturais infindáveis e denunciando o seu uso predatório. Nele vemos como a vida de modo geral está conectada com o meio ambiente. A obra de Mello é um manifesto pela mudança do viver humano, superando a ideia vinda do iluminismo, o antropocentrismo, com a humanidade no centro usufruindo de todas as benesses do meio natural. Na nova concepção paradigmática proposta pelos estudos ecológicos, a espécie humana é uma malha da teia, é sistema dentro dos muitos outros que existem, sendo parte do complexo que compõe a Natureza, entra em cena o Ecocentrismo (CAPRA, 1997), isto é, o planeta no palco mais alto do cantar da existência. Guattari (1990, p.9) sublinha que essa superação dos modos exploratórios utilizados expressa a crise ecológica contemporânea, um problema planetário ou sistêmico que afeta todas as nações. Na perspectiva deste autor a crise encontrará sua atenuação com a construção de uma relação de saberes, povos e governos, levando em consideração cultura, políticas e as sociedades. Do ponto de vista teórico-metodológico e, para além do estudo ecológico da obra, analisamos a produção poética de Mello, compreendendo a materialidade presente no seu imaginário. A água, o elemento mutável, sensual, místico, invade a sua imaginação criadora, como escreveu Gaston Bachelard (1997) em sua obra A água e os sonhos. A insubmissão é a marca da poesia de Mello, sua arte sempre se preocupou com a vida, a dignidade, a liberdade e os direitos humanos. Foi um dos principais intelectuais opositores ao Regime 25 Amadeu Thiago de Mello (Barreirinha, 30 de março de 1926 — Manaus, 14 de janeiro de 2022) foi um poeta, jornalista e tradutor brasileiro. Considerado um dos poetas mais influentes e respeitados no país, reconhecido como um ícone da literatura da Amazônia. 92 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello Militar instalado no Brasil após 1964. No conceito de poesia insubmissa trazido para este texto a partir da concepção de Cássia Nascimento (2014), encontramos no poema Os Estatutos do Homem, toda revolta e insurreição deste poeta. Adotamos uma metodologia dialógica e complexa para enveredar pelos escritos de Mello e outros autores, com base numa ecologia de saberes de Santos (2007), partindo da poética de Mello como linha central da análise, entrelaçando com o Pensamento Ecológico em Capra (1997), nosso arcabouço para as discussões sobre ecologia, natureza e mudança no paradigma da vida humana. A voz de Ailton Krenak (2020) tratando sobre a ligação profunda dos indígenas e da humanidade com o meio natural, o Bem Viver, também fertilizará a nossa investigação. Esta nossa tessitura, como diz Morin (2007, p.13) no sentido de “tecer junto” diferentes campos do saber parte das seguintes obras de Mello: Amazonas pátria da água, Os Estatutos do Homem e Poemas preferidos pelo o autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor. A escolha se deu pela sua riqueza de detalhes, o autor faz uma viagem pela geografia, cultura, saberes da Amazônia, enaltecendo o indígena, o caboclo, a natureza. O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituições heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza. A concepção moriniana da tessitura ilumina não somente o nosso caminho metodológico, vai mais adiante, configurando o próprio pensamento de Mello e dos autores que conversamos nesta pesquisa. É tipo uma aventura em campo aberto, uma vez que a complexidade se faz uma tentativa de operar com a realidade, com a ciência e com os saberes diversos sem a pretenção de domínio absoluto deles, o que interessa é a dialogia profunda que aproxima ao invés de se afastar por causa das diferenças. 93 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda É uma pesquisa de cunho bibliográfico, mas não somente, mergulhamos na poética amazônica o que desnorteia quaisquer tentativas de adoção de uma metologia fechada, como já havia nos ensinado Paes Loureiro (2001). Aqui a o chamado pensamento ecológico emerge como paradigma contemporâneo, a natureza, a vida dos povos das águas e o modo de como as sociedades capitalistas usam os recursos naturais, serão colocados em evidência crítica. Entre poemas, crônicas e prosas poéticas buscamos a proposição de mudança do existir soberano humano para o coexistir em conjunto, sendo parte da eco-organização maior do planeta , e o poeta faz isso usando as culturas amazônicas como canto de esperança, eis a nossa inspiração maior. A literatura, nesse cenário, floresce como uma possibilidade metarreflexiva e, portanto, extremamente necessária, conforme postula Ítalo Calvino (1995), ela deve ajudar a tecer conjuntamente a diversidade dos saberes no fio da narrativa. Queremos dizer, à luz de Morin (2007), Paes Loureiro (2001) e Calvino (1995) que se pode encontrar outros caminhos para o conhecimento que não somente pelo veio da ciência demadiadamente positiva. Outros discursos nos levam a tecer outros saberes heterogêneos e interativos, é assim que a literatura, em especial a poesia, se caracteriza, suas possibilidades são praticamente infindáveis, sua mobilidade de sentidos é, nas palavras de Calvino (1995, p.84), “uma dessas mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire um sentido, que não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade mineral, mas tão vivo quanto um organismo”. Capra e Thiago de Mello ou o desenho de um pensamento ecológico Em seu famoso livro O ponto de mutação, Capra (1995) postula sobre as profundas mudanças científicas ocorridas nas primeiras décadas do século XX, novos conceitos que mudaram completamente a nossa visão de mundo, uma vez que passava-se de uma concepção mecanicista baseada nas ideias de Descartes e Newton, para uma visão holística, ou seja, mais abrangente que refere-se a um entendimento da realidade em função de totalidades 94 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello integradoras. O autor chega a aproximar essa nova concepção às visões místicas de outras culturas, principalmente no que diz respeito aos seus princípios ecológicos. O pensamento ecológico atravessa o espirito humano, navegando pelas sensações individuais com o cosmo, com seres ancestrais, com o mito, no sentido mitológico de explicar os acontecimentos, trazendo o saber tradicional para o centro do debate rompendo com a ideia do cartesianismo que afastava qualquer possibilidade de abertura nos estudos para os saberes fora do nicho das ciências. Neste sentido, é uma percepção, observadora do sentimento da humanidade com a terra, colocando a natureza em um lugar que só o conhecimento cientifico não poderia entender, é o sentimento de fazer parte do meio. Nas palavras de Capra (1997, p.17), (...) a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual ou religiosa. Quando a concepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade, com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. A compreensão do humano sobre a sua interdependência em relação aos outros seres vivos é a pedra angular do pensamento ecológico. É uma grande viragem epistêmica sem dúvida, já que agora o pensamento humano toma consciência sobre sua existência e a existência da natureza, como se ambas fizessem parte de uma gigantesca teia da vida. Aqui conectamos sensivelmente Capra e a poesia de Thiago de Mello no sentido de que na ecologia profunda que percebemos nesses escritos a natureza é possuidora de um valor intrínseco para além de seu valor de uso pelos seres humanos. Ora, em sua poesia o nosso autor lança luzes sobre as vivências dos povos amazônicos e sua íntima relação com o meio ambiente, homem, águas, bichos e matas monstram-se tão próximos, revelando no seu versar poético a importância dessa mutualidade entre os seres, sobretudo quando a lírica de Mello mergulha na Amazônia, pátria da água, ela é liquido primordial da existência, nossa artéria aorta das sociedades amazônicas. 95 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda O elo entre a perspectiva de Capra e a poesia de Thiago de Mello é evidente, ambas tecem uma concepção da natureza maior que espécie humana, conduzindo a uma virada na interpretação do lugar central da humanidade sobre o meio natural. E mais: ambas apontam como possível caminho para esta crise planetária uma mudança radical da percepção, das ações e dos valores humanos em relação à natureza, uma verdadeira mudança de paradigma. A ecologia de Capra olha para natureza como centro da vida no planeta, revelando a complexidade da Teia da vida, as múltiplas inter-relações dos saberes e dos seres, dos acontecimentos, traçando uma “(...) visão segundo a qual esses valores são inerentes a toda a natureza viva está alicerçada na experiência profunda, ecológica ou espiritual, de que a natureza e o eu são um só” (CAPRA, 1997, p. 20). Em Mello desvela-se esta mesma inter-relação na vida do homem amazônico, no viver dos povos e seres amazônicos, na proximidade da floresta com os que a habitam, entre humanos, animais, plantas e etc., como se todos fossem notas musicais da mesma melodia, uma música da vida. As questões destacadas por Capra e Mello compõem uma nova forma de se refletir sobre as políticas ambientais, visto que versam sobre determinadas propostas de resolução para os problemas causados pela modelo de extração predatória dos países poderosos, como lidam com os recursos naturais, a devastação incessante da terra e das águas, expondo explicitamente uma compreensão que os “(...) recursos da natureza não são infinitos e que a degradação da natureza é ocasionada pela ação capitalista e globalizada do homem, surge uma crítica radical com relação ao tratamento que o homem tem dado à natureza” (CERDEIRA; TORRES, 2018, p. 3). O poeta demonstra sua aflição sobre o descaso com a Amazônia em verso poético, metaforizando a vida como barco encalhado devido a vazante das águas em terras de várzea, representando o abandono deste lugar, coloca os povos que a residem como os únicos a empurrar-lhe para flutuar, direcionando-a para águas límpidas, fora das sujas águas de exploração devastadora. Segue o poema: 96 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello Como os caboclos empurram um batelão que dormiu atracado na beira da várzea e amanheceu encalhado porque de noite as águas desceram demais, assim nós te empurramos para o futuro, encalhada Amazônia, pelos pântanos da nossa indiferença, sobre os cedros balofos da retóricaque mal nos ajudava a te aquecer (MELLO, 2005, p. 17). A propositura da superação dos modos exploratórios utilizados mundialmente ao longo da história trazem a lume a crise ecológica contemporânea, um problema planetário ou sistêmico que afeta todas as nações e povos. Na perspectiva ecológica esta crise encontrará sua atenuação com construção de uma relação entre saberes, povos e governos, levando em consideração a cultura, a políticas e as sociedades. Guattari (1990, p.9) explica esta ampla união, podendo ocorrer apenas se for em uma escala global, numa revoluação política, cultural e social, modificando os motivos da produção de bens materiais e imateriais, abarcando as sensiblidades, desejos e inteligência humana junto com o respeito a todos demais seres vivos. A costura dessa ecologia entrelaçada em Capra, Mello e Guattari abraça uma plêiade de saberes, questionando os modelos segregadores da ciência pautada no cartesianismo, afinal as temáticas ecológicas e suas questões não podem ser entendidos em nichos específicos, mas sim um diálogo entre saberes, por sua complexidade. Além de ouvir a voz das pessoas, testemunhas oculares deste processo, os ribeirinhos, que consistem em indígenas e não indígenas que residem na região de floresta da Amazônia. Suas experiências, conhecimentos, mitos, lendas fazem parte desse conjunto de saberes que devem ser apreendidos para se entender a profundez da coexistência Homem e Amazônia. A tessitura amazônica de uma ecologia dos saberes O conceito de “ecologia de saberes”, de Boaventura Santos (2007), se articula com a ecologia profunda e a poética de Mello por intermédio de uma postura transgressora de pensamento que considera os mais diversos saberes, tal propositura diz respeito 97 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda ao fato de que cada um deles não responde completamente aos fenômenos humanos e não-humanos. Porém, é justamente dessa inscostância, dessa incompletude entrelaçada que advém certa clareza das coisas do mundo, considerando a oralidade indígena e a ciência não como modelos epistêmicos antagônicos, mas sim como saberes complementares. A ecologia de saberes expande o carácter testemunhal dos conhecimentos de forma a abarcar igualmente as relações entre o conhecimento científico e não-científico, alargando deste modo o alcance da inter-subjectividade como interconhecimento e vice-versa. (SANTOS, 2007, p. 29-30) Assim, o reconhecimento dos saberes antes esquecidos, postos às margens pela ciência dura, agora constitui uma olhar mais sensível aos fenômenos, eis o motivo pelo qual tal percepção dialógica nos permite olhar a natureza pelas lentes da poesia. Olhar se sobrepõe ao simples ver, o olhar do poeta penetra a intersubjetividade amazônica. Muito parecido com a percepção que os povos originários possuem da terra, rios, lagos, igarapés, por onde navegar, em que época é melhor plantar o roçado, eles sentem as perturbações do bioma, notam as diferenças entre enchentes e vazantes. Não é difícil conectar tais conhecimentos ancestrais com a expressão poética de Thiago de Mello, ela se manifesta poeticamente como o saber dos indígenas e povos tradicionais da Amazônia, bebe em seus ensinamentos e anseios; o poeta ouve suas vozes, seus cantos e seus murmúrios, transcrevendo em sua poesia o grito de sofrimento dos bichos e das plantas. A leitura de sua poesia nos arvora pelos poderes “milagrosos” da mata, entre estes o liquido anti-inflamatório extraído da árvore da copaíba; o poder do guaraná, regenerador das células do celebro e um ótimo energético, o chá da casca da sacaca que ajuda a tratar problemas do fígado. O poeta transcreve o efeito medicinal das plantas da floresta amazônica, embasado nos tratamentos feitos pelos indígenas, observa toda sabedoria de milênios de convivência com a mata e os espíritos. Não seria possível de entender a natureza amazônica sem o olhar dos que a conhecem profundamente. O fio da poesia vai se envolvendo entre mitos, ciência e arte. Todas na mesma tecedura poematizante, conspirando para reconhecer o mistério que reside 98 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello no espirito do homem e mulher amazônidas. A ecologia dos saberes fecunda uma relação sistêmica, é tipo um “(...) pensamento ‘contextual’; e, uma vez que explicar coisas considerando o seu contexto significa explicá-las considerando o seu meio ambiente, também podemos dizer qutodo pensamento sistêmico é pensamento ambientalista” (CAPRA, 1997, 30-37). A tecedura do conceito de ecologia de saberes na conjuntura amazônica abre uma fenda sobre o lugar de fala dos nativos no cenário contemporâneo em se tratando dos temas sobre conservação e sustentabilidade, na medida em que o vínculo humano com o bioma “está muito além de uma relação intrínseca e maravilhosa com a natureza, mas de questões sociais, econômicas e ecológicas que interferem em sua vida” (CERDEIRA, 2017, p. 31). Esta perspectiva dos povos originários luta por espaço há muito tempo, vem pedindo passagem, deseja ser rima intensa no versar sobre os caminhos por onde irão levar as políticas para região, para o planeta. Os processos históricos demonstram que não foram poucos os projetos fracassados que se fubndamentaram unicamente no saber positivo e impositivo ocidental, o que não foi sucficiente para desenvolver sustentavelmente a região, como exemplos basta citarmos a Hidrelétrica de Balbina; o cultivo de dendê em Tefé pela EMADE (Empresa Amazonense de Dendê); a ferrovia Madeira-Mamoré. Todos estes e tantos outros mais, foram executados sem ouvir os habitantes da região, desconhecendo as particularidades do solo, o clima, os tipos de plantas e etc., causando prejuízos financeiros e ambientais incalculáveis. Os conhecimentos dos povos originários foram hierarquizados, preteridos por supostos esquemas positivos que os consideram fora do cânone. O pensamento cartesiano não os reconhecem porque ele não se posta diante de edifícios epistêmicos coloniais já em franca decadência, pois desvendar a Amazônia, suas culturas e sua natureza exige precrustar outras filosofias que compartilham dos saberes ancestrais, contemporâenos, poéticos e científicos em uma verdadeira teia de saberes, talvez estejamos caminhando para aquilo que Boaventura Santos (.....) chama de Epistemologia do Sul. Então vejamos: 99 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda [ ] a identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS, 2010, p. 41). A citação evidencia que vivemos num período de transição marcado por uma profunda crise nos alicerces do edifício científico cartesiano totalitário, trata-se de um tempo de rupturas caracterizado pela ambigüidade e complexidade difíceis de compreender, daí a necessidade de regressarmos às coisas simples, à formulação de questões elementares, mas essências (tal qual propunha Rousseau), atentarmos para os princípios morais, virtuosos e éticos do trabalho científico. Este nosso tempo de crise é caracterizado pela discrepância entre perguntas fortes e respostas fracas em que a ciência tornou-se força produtiva do capitalismo engendrando um processo de monopolização epistemológica. Questões como a distribuição desigual da riqueza, a crise ecológica e a eclosão dos conflitos bélicos são hoje desafios para os quais a ciência moderna não oferece respostas satisfatórias, muitas delas a própria ciência havia alardeado como conquistas quando na verdade nunca se concretizaram, principalmente nos países do Sul. As outrora vozes silenciadas, os sujeitos alijados da história, de suas próprias histórias, os grupos sociais escamoteados pelas forças de dominação política, conseqüências nefastas desse ciclo que agora se encerra (é inegável que a ciência moderna teve sucesso durante muito tempo em submergir as subjetividades dos sujeitos, seus sentimentos, emoções, conquistas e sonhos), devem receber a palavra autoral, ao cientista inserido nesta nova ordem caberá realizar a “reescavação” das tradições lançando luz sobre esses sujeitos e seus processos participativos efetivos na construção do conhecimento. O que se depreende dessa tomada de consciência é a aurora de um tempo de possibilidades engendrado por uma nova aventura científica mais plural, viva e polissêmica cujo paradigma chamado emergente também é um paradigma social, uma vez que seu princípio catalisador é uma concepção humanística que deve orientar a fusão entre as Ciências Sociais e as Ciências Naturais. 100 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello Neste processo a pessoa é, ao mesmo tempo, autor e sujeito do mundo, florejam conceitos e categorias quentes aptas a derreter as fronteiras entre as disciplinas onde a antiga ordem cartesiana havia encerrado a realidade. Emerge daí uma ciência analógica e autobiográfica pautada numa “situação comunicacional” e ainda eivada pelo hibridismo, intertextualidade e intersecções que nos permitirá um conhecimento total a partir de constelações teórico-metodológicas (o paradigma emergente é transgressor e imaginativo), de matizes estéticos próximos aos da criação literária e artística os quais não teremos embaraço ou medo algum de assumir, e é justamente isso que fazemos neste nosso texto quando chamamos um poeta amazônida para nos ajudar a pensar o contemporâneo e suas complexidades. O ecossistema amazônico como teia da vida Cerdeira (2020), também estudando a poesia de Thiago de Mello no contexto da abordagem dos processos socioculturais na Amazônia, e entrelaçando um diálogo interdisciplinar entre a Literatura, Filosofia e Antropologia, assinala as grandes contribuições poéticas ao pensamento das questões ambientais na Amazônia. O mesmo autor escreve que. Na compreensão dos sistemas vivos em Capra (1996), tidos como teias, o imaginário literário se compõe como tecido em redes de vida. As redes vivas e as redes imaginárias se interconectam entre si no processo de formação da arte e da cultura, interagindo nas relações sociais, ambientais e subjetivas (CERDEIRA, 2020, p.16). Trata-se de uma abordagem sistêmica que interliga os estudos culturais aos sistemas ambientais na Amazônia, espécie de tecido vivo em que a literatura, ou melhor, o imagiário literário interage em redes comunicativas com a sociedade, a cultura, o meio ambiente. Assim os conceitos ecológicos dançam com e a partir das representações literárias, no caso da poética de Thiago de Mello: o ecossistema amazônico, portanto, não se circunscreve ao seu bioma natural, mas também enovela-se com as questões socioculturais. 101 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda O poeta diz: “Rio fala com o homem. O rio diz o que homem deve fazer” (MELLO, 2005, p. 32). Mello deslinda neste excerto que a natureza conversa com a humanidade personificada no próprio rio, declarando-lhe que há um elo familiar entre ambos. É um diálogo arrebatador, pois nos leva para uma antiga aliança entre homem/natureza que a modernidade tratou de quebrar com sua sanha pelo domínio e exploração. O lugar de produção poética de Mello garante-lhe a contextualidade, uma experiência marcante para compõe o seu Eu-lírico, substância para sua lírica crítica: a cidade riberinha, o entorno de comunidades rurais emolduradas pela floresta e pelos lagos e rios, especilamente o rio Andirá com a sua mística ancestral. A face amazônica encontra no veio poético de Mello um veículo privilegiado de expressão, ecoando para além de sua Barreirinha (AM) natal. Deste modo é fácil compreendermos os motivos poéticos de Mello que se movem para além da percepção, mas sobretudo em sensações e afetações experienciadas no lugar, uma poesia florescida nas relações primeiras com o mundo circundante que a escrita vai cuidar de registrar, conforme pensa Cerdeira (2020, p.59), fica “clara a nossa definição de lugar como catalizador de símbolos, valores, crenças e significados que tomam forma através da literatura. Trata-se da junção desses elementos que constituem imagens por meio de signos e esses signos em conjunto formam paisagens. O poeta nos fala de uma proximidade quase umbilical partilha que nos convence que o viver de um está vinculado à existência do Outro. É o compasso da canção da vida, em que cada Ser participa entoando seus acordes, um coral entre vozes que compartilham o mesmo espaço vital. A floresta alimenta, cuida e é a morada dos seres, bichos que não são mais espécies separadas, são irmãos, filhos da água, da terra, da floresta. Todos sentem os enfermos do meio ambiente, estão interligados. Nas sociedades indígenas tem-se essa compressão da natureza viva e com sentimento, falando suas dores aos povos, inumeras pesquisas antropológicas evidenciam que o pensamento indígena não navega numa Epistemologia Cartesiana fechada, são outras lógicas. Fritjof Capra (1995, p.39) nos diria que esses povos possuem certa “sabedoria intuitiva (...) em que a vida é organizada em torno de uma consciência altamente refinada do meio ambiente”. Nos 102 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello escritos de Krenak é possível notar o laço familiar entre a sua etnia e o Watu, o nome dado ao Rio Doce na sua língua materna. Ele diz que o Rio é, (...) o nosso avô. O rio Doce, Watu, nós cantamos para ele, nós conversamos com ele e desenvolvemos uma consciência, desde pequeno, que aquele ser é vivo, que ele tem personalidade, ele tem humor. O Takukrak, a montanha que está aqui a minha esquerda, eu observei hoje de manhã. Impressionante gente, porque o semblante dele hoje é de luto. A montanha está sentindo o que nós estamos sentindo ou nós estamos nos espelhando no que ela está sentindo. Minha natureza é de achar que ela influencia a gente. Quando ela está com o rosto triste, é ela que está fazendo a gente ficar triste (KRENAK, 2020, p. 25). Evidencia-se uma vez mais uma dialogia com o natural, a montanha, o rio, demonstram desejos e vontades. Isso também acontece com os povos não indígenas, não da mesma forma, mas quando se ouve a voz dos meteorologistas, biólogos, ecologistas, quando falam das mudanças extremas nos biomas, no clima e na extinção de espécies, eles também são os porta-vozes da natureza. Assim como nessas imagens amadas de Krenak (2020) e seu Watu, Thiago de Mello também evoca as águas enquanto veredas de esperança pelas quais palmilha sua aventura poemática na Amazônia, em sua igara lírica ele carrega consigo os devaneios de liberdade, vida, sonho e preservação da natureza. É um vínculo afetivo que nas palavras de Gaston Bachelard (1988, p.10), “é neste sentido que o poema pode congregar os devaneios, reunir sonhos e recordações”. Na letra harmoniosa e poética da toada Lamento de raça, do compositor parintinense Emerson Maia, percebemos a malha da vida dos irmãos filhos da Amazônia, se descortina a ligação do sentir, quando as garras da destruição ferem a corpo da mãe, atingem um a um. Canta-se as lagrimas dos filhos da floresta. 103 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda O índio chorou, o branco chorou/ Todo mundo está chorando/ A amazônia está queimando/ Ai, ai, que dor/ Ai, ai, que horror/ O meu pé de sapopema/ Minha infância virou lenha/ Ai, ai, que dor/ Ai, ai, que horror/ Lá se vai a saracura correndo dessa quentura/ E não vai mais voltar/ Lá se vai onça pintada fugindo dessa queimada/ E não vai mais voltar/ Lá se vai a macacada junto com a passarada/ Para nunca mais, voltar/ Para nunca mais, nunca mais voltar/ Virou deserto o meu torrão/ Meu rio secou, pra onde vou?26 A canção desenha como cada um dos seres é afetado pelas queimadas, a melancolia de alguém vendo a árvore onde brincava na sua meninice consumida pelo fogo, sua história, suas lembranças como um lugar sendo reduzido a cinzas; o pássaro perdendo o seu ninho, o seu lar, a onça pitada exilando-se em alhures por não ter mais casa, todos perecendo atingidos diretamente pelas chamas da dor e da cobiça. A letra poderosa em sua mensagem traduz o entrançamento das almas viventes neste lugar, o som destrutivo e desesperador do fogo voraz devorando cada metro da mata, é uma vicissitude abarcadora dos filhos e da mãe Amazônia, e termina com o questionamento, se perguntando para onde ir, ilustrando o fim da natureza, que ela é insubstituível. Esta canção popular, assim como tantas outras que versam sobre a aniquilação dos ecossistemas vivos, especialmente da Amazônia, ressoam na poética de Mello, mensagens poéticas cantando a união das vidas no mesmo chão, onde a mata fala e sente, o homem também, é preciso ouvir, é o grito de socorro pelo futuro das espécies da natureza amazônica. A vivência com esta dinâmica da vida no seio amazônico levanos a mergulhar nos escritos de Edgar Morin (2015), suas reflexões sobre existência no planeta, a composição da melodia que rege toda a métrica dos seres evoca a impossibilidade de separar o viver humano do viver dos outros seres. Com isso, é necessário incluir o humano e não-humano, para permitindo “conceber a noção de vida na sua plenitude. A vida para de ocupar um lugar intermediário entre o físico e o antropológico: ela adquire um sentido amplo que se enraíza na organização física e avança sobre tudo o que é 26 Toada “Lamento da Raça”, faixa do Cd “Lendas, Rituais e Sonhos” (1996), do boi Garantido de Parintins. 104 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello antropossocial” (MORRIN, 2015, p. 29). O físico, as relações entre espécies antecedem a vida social humana. A vida existe dentro de um ecossistema junto de organismo que o habitam. Mas o que seria um ecossistema? Para exemplificar este conceito, seguimos as linhas de Morin (2015, p.36) que definiu, “esse termo quer dizer que o conjunto das interações no centro de uma unidade geofísica determinável contendo diversas populações vivas constitui uma Unidade complexa de caráter organizador ou sistema”. O ecossistema relaciona-se com as concepções de rede e comunidade de Capra, estas foram tecidas para quebrar a visão de fronteira, o olhar individual, a ideia da vida separada, partindo então, para as relações internas dos seres no ambiente. Assim, “uma comunidade ecológica como um conjunto (...) de organismos aglutinados num todo funcional por meio de suas relações mútuas (CAPRA, 1997, p. 34). Os conceitos desaguam no mesmo estuário, organismos vivos juntos em contato profundo, relacionando-se reciprocamente, onde o conjunto, a união, as trocas, são maiores que o ser, cada animal, planta, bactéria... são partes de um todo, nem mesmo o homo sapiens sapiens foge dessa realidade. Edgar Morin (2015, p.41-42) demonstra que desde o princípio as sociedades humanas seguem as estruturas organizadas e impostas pela natureza, como o mesmo chama de eco-organização. Este conceito se refere “as interações, cooperações, associações, lutas, canibalismo que destroem e constroem os sistemas naturais, agindo em complementariedade, regulando a vida de todos os seres”. Muitas civilizações obedeceram a uma lógica de plantar, colher, marcação temporal pelo sol, outros pela lua. A vida em fluxo pelas vias do meio natural. Completamente destoante do funcionamento do viver nas cidades de concreto e aço, tão rápidas e mecanizadas. Antes não desprendiam, tecendo (...) sua ordem temporal baseadas nas ordens cósmicas e nos grandes ciclos ecológicos. As sociedades arcaicas organizam-se em “microcosmo” e dedicam-se a impor o seu ritmo organizacional ao da eco-organização. As sociedades históricas, desde a origem, estabelecendo o calendário do céu para regular, por ele, o calendário dos homens, organizam o tempo com base no modelo astral, juram obediência ás leis e decretos do Sol e da Lua 105 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda divinizados, cuja ordem, ao mesmo tempo real e mítica, torna-se a estrutura da organização social (MORIN, 2015, p. 43-44). Mesmo hoje, nos tempos da artificialidade, de pessoas condicionadas pelas cidades com poucas árvores, comendo frutas transgênicas, sem saber o sentimento de caminha por uma floresta, a vida ainda obedece a natureza. A existência na Terra é uma teia de fios intrínsecos, como nos ensina Capra, na sua obra A teia da vida. Os fenômenos do planeta Terra como chuvas, secas estão sempre conectados, há uma estreitacorrelação entre eles. Nesta perspectiva a vida é muito maior que a espécie humana, é a relação de todos os seres que vivem no mundo. Os biomas, ecossistemas, redes e comunidades são membros da teia da vida. O conceito de teia da vida: (...) consiste em redes dentro de redes. Em cada escala, sob estreito e minucioso exame, os nodos da rede se revelam como redes menores. Tendemos a arranjar esses sistemas, todos eles aninhados dentro de sistemas maiores, num sistema hierárquico colocando os maiores acima dos menores, à maneira de uma pirâmide. Mas isso é uma projeção humana. Na natureza, não há ‘acima’ ou ‘abaixo’, e não há hierarquias. Há somente redes aninhadas dentro de outras redes (CAPRA, 1997, p.35). As redes estão conectadas, sem distinção de importância ou tamanho na natureza. Cerdeira (2020, p. 34) sublinha que a poética de Thiago de Mello é forjada neste “olhar mais profundo e sensível para com o seu lugar de inspiração, a floresta Amazônica no passeio literário das águas”, o que de imediato nos leva a refletir que a destruição de um determinado elemento afeta diretamente os outros. Para exemplificar a dependência das redes entre si no contexto da Amazônia, vamos trazer o caso dos rios voadores, estes são cursos de águas atmosféricos responsáveis por carregar o vapor saído da Bacia Amazônica, levando chuva para as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil. Nestes últimos anos houve mudança nos índices de chuva, causadas pela destruição da floresta Amazônica. Krenak (2020, p.11) narra estas mudanças, observando que os 106 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello (...) rios voadores saíram da floresta Amazônica e levaram um susto para os paulistas quando levaram a fumaça das queimadas da floresta para transformar um dia, que costuma ser luminoso em São Paulo, em um dia extensão da noite, como se fosse uma escuridão. Os paulistas ficaram muito apavorados com aquele fenômeno, e parece que fez com que o pessoal do sudeste despertasse para a tragédia que estava acontecendo na Amazônia, com a queimada das florestas. É possível perceber claramente o vínculo entre os acontecimentos, vejam que o ciclo de chuvas nesta região é completamente dependente do bioma amazônico, do Amazonas, confirmando o postulado da teia da vida. Os povos originários, nas suas vivências, sem saber nada dos debates ecológicos modernos, sem leituras sobre os efeitos devastadores de explorar intensamente os recursos disponíveis na natureza, há séculos praticam e convivem em equilíbrio, vivem juntos dos demais seres sem desrespeitá-los, caçando, derrubando árvores, pescando, mas sempre pegando o necessário, pois são membros da comunidade, do ecossistema. O poeta versa sobre este conviver dos povos da floresta e das águas amazônicas, eles que interpretam e conhecem a vivência comunitária integradora sob os princípios de uma solidariedade de raízes ancestrais, “cujos rigores e virtudes condicionam sua maneira de viver. Tão harmonioso é o seu convívio com a natureza, que parece confundir-se com ela. São amigos do sol, entendem os recados dos pássaros, conhecem os segredos do vento, conversam com as estrelas da noite (MELLO, 2005, p. 79). A Amazônia para eles é o lar de todos os bichos, plantas, regidos pelos cursos dos rios, lagos, igarapés. Existe adstrito viver, sem espécie dominadora, diferente doviver dos capitalistas, a visão serviçal do meio ambiente. Olha-se, nas retinas nativas, todas as expressões da natureza com encantamento, é a poética viva de espíritos que se manifestam nas terras, plantas, animais e nas águas, é o que o estudo de Cerdeira (2020, p. 65) nos revela “a relação afetiva com a floresta expressa experiências poetizantes que exploram reflexões profundas com o lugar. A paisagem se arranja no silêncio úmido da mata fechada que despertam afeições” A convivência solidaria de Thiago de Mello se relaciona com o conceito de bem viver, este último encontra-se na obra Os caminhos 107 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda do bem viver de Ailton Krenak, um indígena, escritor e ambientalista que tem nos ensinado a tentar adiar o fim do mundo. As reflexões de Krenak são verdadeiros manifestos em defesa dos povos indígenas e da natureza, e também fornecesem esquecer dedas lições para as sociedades urbanas cuidarem do meio ambiente. Krenak mostra como a humanidade está imersa na natureza, como os nutrientes constituidores das plantas, animais, pedras... estão também nos corpos humanos, a conexão da matéria da vida de todos os seres é basicamente o mesmo. Convida cada alma a viver uma experiência sensorial, (...) mediados por esses materiais, podemos ficar nessa ligação com o que é mineral, com o que é vegetal, com esses elementos da natureza, porque eles estão no nosso corpo também. Então a gente pode fazer uma conexão por meio deles. Podemos fazer uma experiência de uma conexão que não é só virtual. Podemos fazer uma conexão sensorial, em outros termos, com o propósito desse nosso encontro, porque assim ele fica mais potente e mais animador para todos nós (KRENAK, 2020, p. 4). A conexão com os seres e materiais da natureza que cercam a humanidade é uma parte do Bem viver. Mas o conceito é muito mais amplo, expressa uma forma de vida, uma nova forma de existir para as civilizações ditas “evoluídas” que insistem em machucar o maltratar o meio ambiente. É um postulado muito direto, mas intensamente profundo: A Mãe-Terra é um organismo vivo, materialidade que está com febre porque a humanidade insiste em atacá-la, e como a vida, todas as existências, estão conectadas a este organismo, então todos também estão doentes, correndo o risco de desaparecer. Krenak (2020, p.8-9) nos convida para outra possibilidade de existência, Bem Viver não é definitivamente ter uma vida folgada. O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal. Quando estamos habitando um Planeta disputado de maneira desigual, e no contexto aqui da América do Sul, do 108 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello país em que vivemos que é o Brasil, que tem uma história profundamente marcada pela desigualdade, a gente simplesmente fazer um exercício pessoal de dizer que vai alcançar o estado de Buen Vivir, ele é muito parecido com o debate sobre sustentabilidade, sobre a ideia de desenvolvimento sustentável. Uma vez, afirmei que sustentabilidade era vaidade pessoal, uma vida sustentável era vaidade pessoal. O que eu queria dizer com isso é que, se a gente vive em um cosmos, em um vasto ambiente, onde a desigualdade é a marca principal, como que, dentro dessa marca de desigualdade, nós vamos produzir uma situação sustentável? Sustentável para mim? A sustentabilidade não é uma coisa pessoal. Ela diz respeito à ecologia do lugar em que a gente vive, ao ecossistema que a gente vive. Esta cosmovisão ecológica dos povos originários parte de um princípio de equilíbrio, e adverte que a realidade atual da exploração devastadora da natureza possui raízes nas desigualdades sociais e econômicas causadas por políticas que privilegiam o lucro acima da vida; aliás a História nos ensina que o mundo moderno foi erguido sobre este alicerce do capitalismo exploratório. Krenak revela que a vida em equilíbrio deve abranger todos, não apenas uma pessoa, não só os indígenas e os ribeirinhos. Deve ser um compromisso da humanidade comungando de uma nova aliança. Aliança ancestral, mas que também pode vir a ser contemporânea se as sociedades se preocuparem em ouvir a voz da natureza que clama. Por isso este conhecimento não é, e não deve ser, restrito aos povos originários, é na verdade uma de suas grandes contribuições ao nosso mundo, seiva filosófica de uma epistemologia indígena a ser compartilhada com todos nós. As poesias de Mello que estudamos não fazem apologia ao “mito moderno da natureza intocada”, na realidade elas evocam a defesa do desenvolvimento sustentável da Amazônia, não vislumbrando seus recursos como algo intocável, mas que tudo deve ser feito olhando as especificidades do lugar. No seu olhar isso só pode acontecer se houver uma superação dos modelos usados pelo capitalismo. Tirando da mata seus recursos e deixando-a se recuperar, afinal sociedades humanas vivem há milênios nessa região, eles nunca devastaram na proporção dos tempos modernos e contemporâneos. É necessário o entendimento da 109 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda (...) floresta, que só tem feito servir ao homem, vem sendo explorada e ocupada de maneira insensata, desordenada e assustadoramente predatória. A denúncia é feita por cientistas que sabem o que dizem. É claro que a Amazônia precisa ser ocupada e desenvolvida. Mas sempre levando em conta os fatores ecológicos e a sua necessária harmonia. A floresta tem que ser utilizada, mas humanamente. Utilizada e não degradada. Um velho tuchaua adverte: ‘quem mata a floresta mata a casa da vida’ (MELLO, 2005, p. 78). Depreendemos da citação poética a urgência da construção de nova mentalidade para cuidar e saber que os recursos naturais são finitos, isto deve tornar-se pauta quando se discutir políticas para o desenvolvimento da região amazônica. Ora, toda essa mudança do olhar sobre a natureza passa pelo pensar o lugar do humano, viver como espécie unida à outras espécies, entendendo que estamos abaixo da magnitude do Planeta. Segundo Cerdeira (2020, p.94) são “dessas novas compreensões que surgem as novas consciências ecológicas na compreensão da fragilidade do planeta Terra e a importância de preservar esse ponto de vida na imensidão do universo. Esta nova compreensão do planeta e seus recursos finitos é imprescindível para o descortinar de uma outaa consciência ecológica. Para Krenak (2020) a concepção do Bem Viver, o de ser membro do corpo maior, ser agregado a uma ecologia planetária, é um pensamento e, mais, uma prática de todos nós, do nosso corpo, assim como de todos os outros seres, já que estamos todos dentro de uma imensa biosfera na Terra, não faz sentido alguém se colocar fora dela ou promover o seu desequilíbrio e a sua desregulação. Estamos dentro de um grande organismo que nos ouve e nos sente, podemos aprender com ele, pensar junto com ele numa verdadeira troca, ou melhor, numa grandiosa dança cósmica. O fenômeno da existência na Amazônia é complexo, carrega fatores do imaginário de povos cravejado de saberes, práticas e ensinamentos. Um entendimento da mata da viva, entre plantas, animais e rios, junto dos humanos. O indígena, o caboclo, não controla o verde, não cobiça seus frutos, riquezas, recursos. Estes agradecem a mata e confiam nela, na sua bondade, na sua justiça. Como no neste trecho do livro Os estatutos do Homem: 110 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu (MELLO, 2011, p. 19). O poeta em devaneio de utopia e esperança decreta o fim do medo, como é a vida dos seres da floresta, a confiança do respeito ao meio ambiente. A humanidade convivendo com todas as formas da natureza em uma nova aliança contemporânea com inspiração ancestral. Em suma, inspirado pelas palavras de Krenak e a poesia de Mello, pensamos que o bailar da vida acontece em sintonia. A flor gera o pólen, esperando o beijo do beija-flor, para através de seu bico as outras flores sejam polinizadas, sem ninguém dizer nada, apenas a natureza em sua ordem de existir. Não há dúvida que a humanidade mudou o curso de algumas partes do meio ambiente, desfez biomas, cortou arvores, destruiu espécies, extinguiu animais e plantas. O bem viver que o pensamento indígena nos apresenta é o refazer os caminhos dessa linha voraz, o viver em reciprocas contínuas e intensas trocas com os seres e ambiente ao redor. A poética atravessa o pensamento O nosso estudo buscou engendrar uma análise ecológica da poesia de Thiago de Mello enquanto arte/saber necessários ao mundo atual, navegando assim por diversas passagens que acreditamos importantes no cenário contemporâneo, sobretudo no que diz repeito ao uso sustentável dos recursos naturais e à preservação da região Amazônica. Assumimos o seu tom ensaístico, talvez um tanto matizado de poeticidade diríam os mais metódicos num tom crítico, mas a verdade é que enveredar pelas linhas poéticas de Mello e os estudos da complexidade exigiu uma postura epistêmica transgressora, e como aprendemos com Boaventura Santos (2007) não podemos estudar aspectos da história e cultura amazônicas unicamente pelo viés do cartesianismo duro. Caminhamos por outra perspectiva: o pensamento ecológico que 111 Manoel Roberto de Lima e Yomarley Lopes Holanda floreja no Sul pelas penas de um poeta caboclo que atravessou o grande rio da vida há pouco tempo, não sem antes nos deixar um legado crítico e humanístico grandioso, inspiração afetiva para as futuras gerações de poetas e pesquisadores. Esta viragem epistêmica enaltece o lugar que nos afeta, não somente como território, mas também como espaço de vivências dos povos originários e de construção de uma relação com a natureza, diríamos um espaço compartilhado pelas teias do pensamento ecológico. Acreditamos, assim como o nosso poeta vestido de branco das margens do Andirá (AM), na comunhão humana na Amazônia com a natureza viva. É um sentimento de comunhão cósmica marcado pela poeticidade do viver, habitar, estudar a Amazônia em suas diferentes faces. As imagens amazônicas extraídas da poesia de Thiago de Mello é matizada de uma humanidade transgressora, sensibilidades críticas que interligam o homem com o seu meio ambiente. Teias poiéticas poderímos postular, talvez. O fato é que essas redes ecológicas conversam intimamente com as poéticas bachelardianas, especialmente a poética da água e do devaneio. Vale sublinhar que este nosso trabalho não se trata de uma narrativa contra a tecnologia ou os avanços que a modernidade nos propiciou, afinal tais conquistas são inestimáveis e promoveram o aumento de nossa expectativa de vida e bem-estar; ao contrário, é a busca incessante da dialogação entre o moderno e a ancestralidade, entre a ciência e a poesia para a superação da crise profunda que nos assola, conforme escreve Boaventura Santos (2007). É esta a maior lição que aprendemos com Thiago de Mello e os pensadores que nos ajudaram a iluminar esta pesquisa: a possibilidade de uma coexistência harmoniosa entre os seres vivos, sobretudo, por meio de um olhar de pertença ao espaço sociocultural em foco. Por fim, gostaríamos de dizer que os estudos ecológicos e a literatura são ricos caminhos para a pesquisa na Amazônia complexa, pensando-a de maneira interdisciplinar, só assim poderemos no futuro abrir espaço para as falas, vozes, rostos, histórias e vivências das pessoas que fazem deste espaço. 112 A poética da natureza: o pensamento ecológico nos escritos de Thiago de Mello Referências Gaston 1884-1962. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução Antônio de Pádua Danesi. - São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo, Editora Cultrix: 1997. ______. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1995. CERDEIRA, Weslley Dias. Perspectivas Ecocríticas Na Amazônia: Uma abordagem da poética das águas de Thiago De Mello. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras) – Centro de Estudos Superiores de Parintins, Universidade do Estado do Amazonas. Parintins, p. 44. 2017. ______;TORRES, Iraíldes Caldas. O imaginário global na perspectiva do pensamento ecocrítico: uma leitura na poesia de Thiago de Mello. v. 18 n. 01 (Revista Somanlu: 18 anos da História de Consolidação da Pesquisa Cientifica na Amazônia, 2018. ______. A poesia de Thiago de Mello na perspectiva do pensando Ecocrítico. (Dissertação de Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia), Universidade Federal do Amazonas, 2020. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. KRENAK, Ailton. Ideias de natureza. In: KRENAK & MAIA, Ailton, Bruno. Caminhos para a cultura do bem viver. Disponível em: <www. culturadobemviver.org> Acesso em: 10 de out. 2021. MELLO, Thiago de. Os estatutos do homem. Cotia, SP: Vergara & Riba Editoras, 2011. ______. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição de comemoração dos 75 anos do autor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. ______. Amazonas pátria da água; e Notícia da visitação que fiz no verão de 1953 ao Rio Amazonas e seus barrancos. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro. MORIN, Edgar. O método II: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2015. ______. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 2007 (p. 3-46). 113 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo Tiago Fonseca dos Santos27 Júlio Cláudio da Silva28 Considerações iniciais A o longo dos últimos anos houve um recrudescimento dos conflitos da sociedade envolvente com os povos indígenas29. Este processo foi intensificado com uma política ambiental e indigenista predatória incentivada pelo governo Jair Bolsonaro (PL). A expansão do desmatamento, dos incêndios, da exploração madeireira desenfreada, da grilagem e do garimpo na região amazônica não são casuais. O Brasil, após alguns anos de pequenos avanços em matéria ambiental, voltou a figurar como objeto das preocupações internacionais em função de assumir novamente uma postura diversionista em relação ao compromisso de reduzir os vetores causadores das mudanças climáticas. Neste contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar o relatório intitulado A Problemática Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. 27 Tiago Fonseca dos Santos. Professor de História no Centro de Estudos Superiores de Tefé – CEST/UEA. Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/UFAM. Contato: [email protected] Júlio Cláudio da Silva. Professor de História no Centro de Estudos Superiores de Parintins – CESP/UEA e do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/ UFAM. Contato: [email protected] 28 Professor Adjunto do curso de História do CESP/UEA e do PPGH/UFAM. E-mail: [email protected] 29 No Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2020, Dom Roque Paloschi considera a violência uma prática de governo: “As violências contra os povos indígenas no ano de 2020 adquiriram características de perversidade e desumanidade nunca vistas. E foram protagonizadas por invasores patrocinados pelo governo brasileiro. Não houve escrúpulos em estimular a invasão das terras para exploração garimpeira, madeireira e para a grilagem” (PALOSCHI, 2020, p. 11). 114 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo A partir deste documento, pode-se desvelar a preocupação do Estado brasileiro em relação à Amazônia em diferentes dimensões. Em um complexo movimento, o Estado brasileiro buscou garantir a posse do território, administrar diretrizes de desenvolvimento econômico e consolidar a ocupação da região considerada ao mesmo tempo como um vazio demográfico, a nova e última fronteira de expansão econômica e um objeto da cobiça internacional. Sob a ótica da Integração Nacional e da Segurança Nacional, a região foi atravessada por projetos ufanistas de desenvolvimento que não levaram em consideração aspectos socioambientais específicos30. A colonização a ferro e fogo, desdobrou-se em aculturação, esbulho das terras, violência e genocídio. Por este motivo, ressalta a importância dos estudos sobre a Ditadura Militar na região, principalmente para superar o mito que a região não sofreu com o regime autoritário (QUEIRÓS, 2019a; 2019b; 2020). Análise preliminar da documentação indica que mesmo com a “redemocratização” em 1985, a orientação política do Estado brasileiro persistiu autoritária e assimilacionista até 1988, com a promulgação da nova Constituição. Ao menos no que se refere à política indigenista, tal afirmação parece ter sustentação, uma vez que a política indigenista só teve mudanças significativas com a CF 88. A sociedade de então compartilhou diferentes expectativas, muitas vezes conflitantes, inclusive. Mesmo em um momento de aspirações de um futuro melhor e a superação das crises econômica, política e social, as permanências da Ditadura Militar impuseram muitas privações aos brasileiros em geral e aos povos indígenas, em particular. 30 Para Egon Heck, Francisco Loebens e Priscila Carvalho (2005): “Os massacres contra os povos indígenas voltariam a se repetir, já recentemente, a partir das décadas de 1960 e 1970, com as políticas de desenvolvimento e integração da Amazônia que começaram a rasgar a floresta com a abertura de estradas como a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR 364, a BR 174 e a Perimetral Norte. Povos como os Waimiri-Atroari, Yanomami, Arara, Parakanã, Cinta Larga e Nambikwara, entre muitos outros, foram duramente atingidos, inclusive por expedições de extermínio com participação do poder público” (HECK; LOEBENS; CARVALHO, 2005, p. 239). 115 Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva O choque das ideias Com a publicização de documentos desclassificados a partir dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – CNV (2011-2014), surgiram novas possibilidades de pesquisa. Ao longo dos últimos anos, novas abordagens e problemáticas vêm sendo trabalhadas e permitem lançar luz sobre o período da Ditadura Militar. Especificamente em relação à Amazônia, veio à tona um universo de documentos que permitirão aprofundar o conhecimento sobre o regime autoritário na região. Diferentemente do senso comum, marcado pelo presentismo e o esquecimento deliberado, percebeu-se a forte presença do Estado e os povos indígenas foram sobremaneira atingidos31. Ao analisar a documentação, verifica-se a existência de perspectivas antagônicas de indigenismo. Baines (2000) caracteriza como indigenismo empresarial, aquele indigenismo comprometido com a instalação dos grandes projetos na região32. Pode-se considerar também, por outro lado, aquilo que poderia ser chamado de indigenismo oficial, aquele operacionalizado pelo Estado e suas instituições e, de outro, o indigenismo missionário, das missões religiosas. Neste terreno movediço, buscou-se analisar os enunciados, a fim de compreender os discursos em relação aos povos indígenas. O relatório A Problemática Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República é da década de 1990, cristaliza expressões largamente utilizadas nas décadas de 1970 e 1980. Ou seja, corrobora a hipótese de que a política indigenista no Brasil é, ontem e hoje, tradicional e autoritária, por considerar os povos indígenas como inferiores, subalternos 31 Em termos regionais, ao contrário do senso comum, houve profunda intervenção autoritária no estado. Segundo César Augusto Queirós são vários os casos de cerceamento das liberdades individuais e de repressão, dentre eles: “[...] perseguição política, mandatos cassados, governadores depostos, fechamento do Legislativo estadual, confrontos e aposentadorias no Judiciário, fechamento dos jornais, perseguição à imprensa, genocídio da população indígena” (QUEIRÓS, 2020, p. 190). 32 Segundo Baines, o poder econômico se sobrepõe ao indigenismo e os funcionários da Frente de Atração passavam aos Waimiri-Atroari os “[...] preconceitos pejorativos da sociedade nacional quanto ao “índio” e “caboclo” na sua forma mais acentuada, num discurso que renegava suas origens indígenas e valorizava um estilo de vida citadino, ou seja, um discurso desenvolvimentista em consonância com a ideologia integracionista e empresarial da FAWA” (BAINES, 1993a). 116 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo ou de segunda classe, ao mesmo tempo que menospreza os seus saberes-fazeres e sua cosmovisão. Para compreender as indicadas permanências, o relatório foi relacionado com a farta documentação do período da Ditadura Militar, demonstrando que nem mesmo a noção de autodeterminação consolidada na CF 88 garantiu aos povos indígenas certa segurança em relação ao esbulho, à inoperância em relação à demarcação e à invasão de suas terras. O relatório tem 13 páginas. Conta com os seguintes tópicos: Introdução. 1. Amplitude da questão indígena; 2. Principais polêmicas: 2.1 Demarcação de terras; 2.2 A tutela e, 2.3 Os grupos de pressão e os interesses internacionais. 3. Política indigenista. 4. Problemática indígena na Amazônia e, 5. Principais problemas: Exploração ilegal e predatória de recursos naturais. Grandes extensão de terras [Preservada a redação original]. Conflito pela posse da terra. Narcotráfico (BRASIL, s/d.). Em termos gerais, discute a condições de existência dos povos indígenas, as interações com a sociedade envolvente e a relação com o Estado, marcada pela política tutelar. A utilização das expressões questão indígena e problemática indígena na Amazônia são emblemáticas e deixam perceber a forma com qual o órgão compreende a relação com os povos indígenas legalmente tutelados pelo governo. Outro aspecto relevante é a indicação da diversidade cultural dos povos indígenas, o que impediria a organização de uma política pública homogênea. De alguma forma, a ideia da estruturação de uma única política para todos os povos indígenas poderia ser operacional, contudo, não contemplaria as diferentes demandas de cada uma das nações. Tal generalização poderia prejudicar uma ou outra etnia. A extensão das terras ocupadas pelos povos indígenas, é uma ideia presente neste relatório e recorrente nos documentos oficiais e na imprensa da época. Em função de uma lógica diferente de compreensão da natureza e de organização espacial, a sociedade envolvente não considera o equilíbrio ecológico e julga que os povos indígenas teriam terras demais. Em mais uma dimensão desta lógica, também aparece no relatório a discussão sobre o conflito, de fundo ideológico, sobre a demarcação de terras. Ao governo caberia a gestão dos interesses conflitantes por ocasião das diversas compreensões propostas de usos do território. A perspectiva 117 Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva ecológica dos povos indígenas entraria em conflito com a necessidade da sociedade envolvente de garantir o desenvolvimento econômico e a incorporação da imensidão amazônica ao progresso, à integração nacional e à suposta bonança na participação da comunhão nacional; enunciados estes, logicamente, encontrados nos documentos. Outro ponto relevante encontrado no relatório é o destaque ao conflito entre as propostas de indigenismo. A sistematização em dois pólos antagônicos coaduna-se com um sem fim de documentos e produções teóricas sobre os conflitos em relação aos povos indígenas por parte das diferentes instituições que com eles se relacionam. Dada a basilar síntese, segue a tabela constante no documento: Fonte: BRASIL, s/d., p. 03. A partir da tabela é possível fazer inferências sobre um conjunto de discursos. A análise das categorias utilizadas (preservacionismo, autodeterminação, propriedade, minorias, plurinacionalidade; integracionismo, tutela, posse e interesses sociais) remete a enunciados e práticas muito importantes materializadas nas políticas indigenistas e na imprensa e ajudam a compreender a forma na qual os agentes do Estado (executores de políticas públicas para os indígenas), jornalistas, lideranças e outros atores sociais veem e se relacionam os/com os povos indígenas. Associá-las a outros documentos é fundamental para aprofundar o tema e entender aspectos da Amazônia profunda nos tempos de chumbo e (as permanências) no contexto da redemocratização. 118 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo Ainda sobre o tema, em outra passagem do relatório, a ideia é desdobrada. De acordo com o documento: O indigenismo evoluiu da catequese para o que se convenciona chamar de assistencialismo, fase marcada pela separação entre a igreja e o Estado que tece necessidade de criar uma assistência leiga para os índios. A igreja, em um contexto de socialismo emergente, conduziu o seu indigenismo ao preservacionismo, que vê no isolamento o único caminho que garante a sobrevivência física e cultural dos grupos indígenas. A visão do Estado evoluiu para o integracionismo que, partindo da premissa de ser inevitável e inexorável o contato entre as partes, tem o objetivo de integrar de forma harmônica o índio à sociedade nacional, aos menores custos possíveis em traços culturais dessas minorias étnicas (BRASIL, s/d., p. 02-03) Mesmo com a retórica sobre a redução dos impactos aos povos indígenas o que ocorria no interior das áreas indígenas eram situações de precariedade na saúde, violência e esbulho das terras. Da mesma forma que nas décadas anteriores, a paranoica ideia de uma ameaça comunista, em diferentes documentos, se faz presente. Além disso, carece fundamentação a noção de evolução da política indigenista, uma vez que o contato dos povos indígenas com a sociedade emergente foi marcado por relações assimétricas, em prejuízo dos primeiros. Além disso, uma leitura subjacente, é a possibilidade de normalização da ideia de integração, algo que o próprio relatório evidencia na expressão premissa de ser inevitável e inexorável o contato entre as partes. Muitos documentos reproduzem tal assertiva, o que pode deixar a descoberto o plano de integração inequívoca dos povos indígenas por parte do Estado, tal como consolidado no Estatuto do Índio (1973). A análise do material permite considerar que estes enunciados dirigidos aos povos indígenas não são gratuitos e fazem, na verdade, parte de um discurso ordenado, que em função do poder econômico e político, se autolegitima. Assim, estariam os povos indígenas fadados à integração ou ao desaparecimento? Seria uma estratégia por parte do Estado as omissões em relação às políticas públicas? Em caso afirmativo, esta estratégia faria parte de um plano para a aculturação em médio/longo prazo? Naquele tempo, 119 Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva bem como no tempo presente, povos isolados geram preocupação pelo fato de o contato poder ter desdobramentos imprevistos e indesejáveis. A “problemática” indígena na Amazônia Depois de uma análise preliminar do relatório A Problemática Indígena na Amazônia, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, alguns elementos merecem destaque. Em um exercício analítico, faz-se necessário buscar os dispositivos que subsidiaram os discursos governamentais, da imprensa e dos missionários em relação aos povos indígenas. Ao buscar estratos mais profundos dos enunciados sobre o ser nativo, sobre a posse ou a propriedade dos territórios milenarmente ocupados, da Integração Nacional, do desenvolvimento regional, da Segurança Nacional e, até mesmo da questão geopolítica internacional, a historicização das categorias elencadas na tabela anteriormente citada faz-se imprescindível. Aparentemente claras e de fácil definição as ideias de preservacionismo, autodeterminação, propriedade, minorias, plurinacionalidade; integracionismo, tutela, posse e interesses sociais requerem leitura atenta e estudo dedicado. Referem-se ao tema de expressiva complexidade, face à forma de relação das sociedades indígenas com o Estado brasileiro e a forma na qual a sociedade nacional compreende e organiza a economia, em um processo acelerado de interiorização de um modelo pautado pela exponencial exploração dos recursos naturais. Analisar estas categorias em perspectiva histórica com base na documentação trabalhada demonstra uma relação assimétrica na construção do outro. Ao chamá-los de silvícolas, enclaves ou quistos étnicos, ao enfatizar seus aspectos culturais como exóticos, ao silenciar à situação de abandono ou à violência ou ainda ao naturalizar a ideia de gradual integração à sociedade nacional em detrimento da diversidade cultural, os enunciados da sociedade envolvente constroem e reproduzem discursos que desconsideram a possibilidade dos povos indígenas existirem de forma autônoma. Em outra passagem, o referido documento33 assevera: 33 Optou-se pela manutenção da redação original. 120 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo Nesse sentido, o indigenismo adotado pela igreja e entidades ditas de apoio ao índio é incoerente pois apesar de propalar a multinacionalidade, a autodeterminação e a propriedade de terras para os grupos indígenas, se posiciona contra a emancipação. Assim ao índio são abertos todos os direitos sem os deveres correspondentes. Sobre o assunto, existe incoerência no próprio arcabouço legal que normatiza a política indigenista. O Código Civil estabelece o fim da tutela à medida em que o índio se integra à comunhão nacional enquanto que o Estaturo do Índio prevê o fim da tutela quando o índio que reúne as condições estipuladas o requeira (BRASIL, s/d., p. 07) A discussão sobre a autodeterminação, a tutela ou a emancipação dos povos indígenas foi marcante na década de 1970. Relaciona-se em parte com o Estatuto do Índio (1973) e à malfadada proposta do Decreto da Emancipação (1978)34. Seja na legislação vigente entre 1973 e 1988 ou mesmo na tentativa de verticalizar a emancipação no sentido de integração à sociedade envolvente, as ideias de tutela e aculturação, de fundo, trazem consigo a proposta de homogeneização cultural, em função da compreensão de que os indígenas deveriam ser incorporados à cultura hegemônica nacional35. Verifica-se forte dissonância entre a legislação e ações efetivadas nas áreas indígenas. A materialidade do discurso é 34 Com base no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, pode-se considerar o seguinte: “O Estatuto do Índio de 1973 coloca a integração dos índios, entendida como assimilação cultural, como o propósito da política indigenista. O Ministro do Interior, Rangel Reis, declarara à CPI da Funai em 1977 que o “objetivo permanente da política indigenista é a atração, o convívio, a integração e a futura emancipação”. É esse mesmo ministro quem, em 1978, tentará decretar a emancipação da tutela de boa parte dos índios, a pretexto de que eles já estão “integrados” (BRASIL, 2014, p. 213). 35 Em contraponto à ideia de aculturação, os indigenistas progressistas adotaram a expressão “enculturação” para caracterizar as diretrizes da ação missionária pautada no respeito às culturas indígenas, em contraponto aos valores etnocêntricos e assimilacionistas das campanhas missionárias do passado, bem como do indigenismo oficial. De acordo com João Pacheco de Oliveira e Carlos Augusto da Rocha Freire, deriva “[...] reconhecimento da importância das inúmeras culturas vivas, impulsionado pelas encíclicas e pelas exortações apostólicas do Papa Paulo VI, definiu as linhas de ação do CIMI em sua gestão progressista. Depois da 2ª Conferência Episcopal Latino-americana realizada em Puebla, México, em 1979, o ideal de ‘encarnação’ transformou-se na ‘inculturação’ missionária, sintetizada na expressão ‘missão calada’, na qual era valorizada a inserção no dia-a-dia da comunidade indígena” (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 151). 121 Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva perversa. Na década seguinte, por ocasião da 23ª Assembleia Geral da CNBB, “[...] o problema crucial dos povos indígenas continua sendo o desrespeito, as invasões e a usurpação de suas terras” (CNBB, 1985). Vale lembrar que o conteúdo do artigo 1º da lei 6001/73 materializou o discurso da assimilação: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (BRASIL, 1973) [Grifado]. O trabalho com as fontes até o presente momento permitiu constatar que a questão indígena é absolutamente complexa e é composta por múltiplas variáveis. Em um primeiro plano, estão os povos indígenas e ação Estatal em relação a estes grupamentos humanos. Contudo, a partir de um olhar minucioso, em estratos mais profundos, percebe-se que o elemento central é a gestão do território e dos recursos nele existentes. Tal argumentação pode ser fundamentada com base na história dos projetos de desenvolvimento para a região amazônica, à medida da evolução tecnológica, novos instrumentos foram utilizados na prospecção dos recursos naturais. Desta maneira, a modernização da Amazônia ganhou novos contornos a partir da década de 1950 e o Estado se fez mais presente na região, com estratégias de ocupação a partir da consolidação de grupamentos humanos na agricultura, na crescente indústria, no extrativismo vegetal e mineral e na construção de batalhões para sediar a estrutura das Forças Armadas na região fronteiriça. A partir destes dispositivos acionados por parte do Estado, percebe-se a complexificação da questão indígena. Os povos indígenas não estariam mais isolados no meio do mato. Rodovias, portos, aeroportos, barragens de usinas hidrelétricas, linhas de transmissão de energia, madeireiras, entre outras ações alheias aos nativos, passam a fazer parte da paisagem natural e do cenário político. Nesta matéria, a década de 1970, o Plano de Integração Nacional (PIN), o I Plano Nacional de Desenvolvimento – PND (1972-1974) e o II PND (1975-1979) podem ser considerados divisores de águas para as grandes transformações no processo de ocupação da Amazônia, face à implantação de grandes projetos na região. 122 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo Em função deste contexto, a questão indígena passa a ser atravessada pela questão ambiental, pela questão territorial, pela questão econômica, pela questão política, pela questão militar e pela questão geopolítica. Isto é, nos documentos que tratam da problemática indígena, surgem elementos da dimensão ambiental, econômica, social, política, militar e geopolítica, face à complexidade das condições de existência destes povos. De certa forma, passam os povos indígenas a jogar o jogo da sociedade ocidental, tendo em vista as disputas políticas para o usufruto e a gestão do território. Por se tratar de um governo militar à época, a questão de domínio do território ganha ainda maior destaque, bem como a dimensão das fronteiras, tendo em vista possíveis querelas com os países vizinhos na consolidação dos territórios. Vale a pena visualizar quais contornos as premissas supracitadas tomaram. Em mais exemplo de complexidade da questão indígena, no documento classificado como Confidencial e intitulado Terras Indígenas em Áreas de Fronteira, tem-se o seguinte: [...] interessa para a Segurança Nacional no processo de ocupação da Faixa de Fronteira (Lei 6.634/79), evitando o estabelecimento de enclaves, ainda que de autóctones brasileiros; as razões da Segurança Nacional devem prevalecer sobre as razões das comunidades indígenas, pois as áreas indígenas não estarão garantidas se a Nação Brasileira não estiver (BRASIL, 1981, p. 08) Enunciados sobre a Segurança Nacional, a soberania, a consolidação do domínio dos recursos naturais e o império da lei são recorrentes na documentação. Vários documentos lançaram mão destas diretrizes, materializando o discurso do domínio do território por parte do Estado. Ao mesmo tempo, emitiram o enunciado de que os projetos governamentais são independentes à existência das inúmeras etnias no interior da região amazônica. Em uma consideração preliminar, ainda carente de documentação comprobatória, os povos indígenas teriam sido considerados um problema, face seus usos não alinhados e antagônicos aos projetos propostos pelo governo consorciado com a iniciativa privada. Os diferentes eventos tornaram insustentáveis os enunciados governamentais em relação aos povos indígenas. Na década de 123 Tiago Fonseca dos Santos e Júlio Cláudio da Silva 1970 deu-se a consolidação de diferentes movimentos da sociedade civil. Se percebe o germe da organização dos povos indígenas, o que, mais tarde, viria a se tornar o movimento indígena; além disso, viu-se a modernização do indigenismo em suas diferentes acepções; e, ainda, em distintas partes do país e, no Amazonas em particular, emergiu o que se pode hoje considerar como movimento ambientalista. Os estudantes retomaram a organização e a ação política. Nem mesmo a imprensa reproduziu, inequivocamente, mesmo sob censura, os discursos de poder em relação aos corpos e os territórios dos povos indígenas. Ao contrário, de certa forma, a própria imprensa, com as suas limitações, serviu de trincheira para a batalha dos enunciados, de certa forma, orientada pela diversidade cultural, o que se pode afirmar com base nas matérias que demonstravam as desfavoráveis condições de existência de diversos povos indígenas. Apesar do arbítrio dos anos de chumbo, diferentes instituições da sociedade civil buscaram as brechas do regime ditatorial para avançar nas agendas emergentes do novo mundo pós-Maio de 1968. Considerações finais A partir da análise do documento em tela, percebe-se a cristalização da ideia de antagonismo aos povos indígenas construída pelo Estado brasileiro durante o século XX e recrudescida ao longo do regime ditatorial. Do Serviço de Proteção aos Índios à Fundação Nacional do Índio, prevaleceram os valores e princípios da sociedade envolvente. Os povos indígenas aparecem na documentação como “problemática”, algo que pode ser compreendido como um entrave ao progresso e uma ameaça à unidade nacional. As definições de indigenismo empresarial, indigenismo oficial e indigenismo missionário colaboram efetivamente para a compreensão das diferentes perspectivas de indigenismo nos anos de chumbo. A concepção de ação indigenista expressa nos documentos oficiais desvela a noção de indigenismo das diferentes instituições e demonstram a ação do Estado brasileiro atuou em consórcio com grandes conglomerados econômicos na execução dos grandes projetos na Amazônia. 124 Elementos para a discussão sobre indigenismo(s) na Amazônia dos Anos de Chumbo Diante da vasta documentação, faz-se imprescindível o aprofundamento das pesquisas e a investigação de outras variáveis para a melhor compreensão dos fenômenos atinentes ao indigenismo e ao movimento indígena a partir da década de 1970. Um universo de pesquisa a explorar, a fim de lançar luz sobre aspectos ainda obscuros sobre os anos de chumbo na Amazônia. Referências BAINES, Stephen G. Museu Emilio Goeldi. In: Comitê Estadual da Verdade do Amazonas. 2014. ______. Censuras e memórias da pacificação Waimiri-Atroari, Série Antropologia, Brasília, 1993 b, vol. 148, UnB. ______. 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Sendo um dos autores filho de habitantes de comunidades rurais do Médio Amazonas (Itacoatiara) e Médio Purus (Lábrea) e o outro originário de uma comunidade rural do entorno de Fonte Boa, ambos tinham certa proximidade ou familiaridade com o tema, no sentido de que ouviam na infância essas histórias e, mais tarde, iriam encontrar novamente com elas na escola e na universidade sob outras perspectivas. O que os autores têm observado é que ao longo dos anos essas histórias têm sido menos presentes no cotidiano das pessoas do seu entorno, dos seus familiares e da cultura das cidades do interior do Amazonas. Além disso, essas histórias seriam mitos, lendas ou poderiam ser enquadradas em alguma outra classificação que poderia contribuir para melhor compreendê-las? Diante dessa situação, traçamos um plano de trabalho que inclui uma breve discussão teórica a respeito dos referenciais de história oral e dos conceitos de fronteira permeável que são mito e lenda. O que se apresentará nesse momento é, com algumas modificações, o estudo teórico em um estágio mais ou menos intermediário de elaboração. 36 37 Mestre em História (UFAM). Docente do curso de História do CEST/UEA. Graduado em História (CEST/UEA). 127 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz Começaremos abordando a história oral enquanto método e perspectiva de investigação em ciências humanas e como ela pode nos auxiliar como ferramenta conceitual de aproximação ao nosso tema. Discutiremos também um pouco sobre as narrativas tradicionais, diferenciando o que é mito e o que lenda de acordo com alguns autores como Betelheim, Câmara Cascudo e Dalate. Abordaremos brevemente como as narrativas se mantêm vivas através da oralidade diante das transformações sociais causadas pelo aumento na utilização de certos avanços tecnológicos nas comunidades rurais. Por fim, apresentaremos algumas das narrativas mais conhecidas presentes na literatura consultada e cruzaremos esses dados bibliográficos com as histórias das comunidades ribeirinhas. Para orientar nossa investigação, utilizaremos autores como Pinsky e Meihy para falar de História Oral e Bettelheim, Vernant, Dalate, Rocha, Cascudo, Lévi-Strauss e Eliade para falar sobre mitos e lendas. 2. O que é história oral? No texto Histórias dentro da História, Alberti (2008, p. 155) define história oral como “uma metodologia de pesquisa e constituição de fontes...” que consiste “...na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de ou testemunharam acontecimentos e conjunturas do passado no presente...”. Essa definição sintetiza e enfatiza o caráter de procedimento simultâneo de pesquisa e de constituição da documentação, ou seja, é uma modalidade de pesquisa histórica que se diferencia de outras por não encontrar seu documento pronto em um acervo ou em um contexto de memória com outra finalidade, como no caso do patrimônio, dos registros notariais e eclesiásticos ou de processos judiciais, mas é construído pelo historiador como parte do próprio procedimento científico de investigação. Holanda e Meihy oferecem várias definições do que seria a história oral. Para esses autores, ela é: Um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de um projeto e que continua com o estabelecimento de um grupo de pessoas a serem entrevistadas. O projeto prevê: 128 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... planejamento da condução das gravações com definição de locais, tempo de duração e demais fatores ambientais; transcrição e estabelecimento de textos; conferência do produto escrito; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, a publicação dos resultados que devem em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas (HOLANDA e MEIHY 2015, p. 15). Além dessa primeira definição pormenorizada, os autores recolhem outras quatro que também podem ser úteis para nossa compreensão da metodologia: 1- História oral é uma prática de apreensão de narrativas feita através de meios eletrônicos e destinada a: recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato; 2- A formulação de documentos através de registros eletrônicos, os quais são analisados a fim de favorecer estudos de identidade e memórias coletivas; 3- História oral é uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de entrevistas gravadas em aparelhos eletrônicos e transformadas em textos escritos; 4- História oral é um processo sistêmico de uso de entrevistas gravadas, vertidas do oral para o escrito, com o fim de promover o registro e o uso de entrevistas. Essas quatro definições suplementares nos colocam diante de diferentes ênfases, mas juntas contribuem para compor um quadro mais amplo do que seria a história oral. Na primeira, destaca-se o caráter de prática investigativa, ou seja, a história oral não é uma teoria centrada na maneira de enxergar a história, mas um conjunto de procedimentos, conceitos, atitudes e ideias que se consubstanciam na prática investigativa do historiador. Na segunda, a questão da importância da memória e sua estreita relação com a formação de identidades. Na terceira, o fato de que a documentação formulada pela história oral é uma das possíveis vias de acesso para se estudar a sociedade. E por último, na quarta, 129 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz o foco recai sobre o caráter sistêmico do uso e do registro das entrevistas orais. O trabalho que mais nos chama atenção, no entanto, em relação ao uso da história oral para o nosso propósito de investigar comunidades rurais da Amazônia é o de Portelli (2016). Esse autor afirma que a história oral é uma expressão abreviada para o que seria mais adequadamente descrito como “o uso de fontes orais na História ou nas Ciências Sociais”. Em sua forma mais elementar, narrativas e fontes orais seriam um instrumento a mais na caixa de ferramentas do historiador. Daí a necessidade de distinguir fonte oral de tradição oral. Esta última estaria composta por construtos verbais que seriam formalizados, transmitidos e compartilhados, enquanto as fontes orais do historiador seriam as narrativas informais, dialógicas (pois fruto do diálogo entre diferentes sujeitos) criadas no encontro entre historiador e narrador. Portelli também destaca que, além de seu caráter instrumental, a história oral também pode ser compreendida como eixo de um tipo de trabalho histórico muito específico no qual questões de memória, narrativa, diálogo e subjetividade moldam a própria agenda do historiador. Quando este é o caso, abordagens e procedimentos específicos devem ser utilizados pois mais apropriados à sua natureza e formas particulares, pois as fontes orais não são encontradas, mas cocriadas pelo historiador. Sem a presença do pesquisador, do entrevistador, elas não existiriam sob a forma que existem. A entrevista é isso, uma troca dialógica, uma troca de olhares, de pontos de vista, um diálogo entre diferentes sujeitos e suas agendas particulares, que mesmo que não correspondam perfeitamente uma a outra podem e devem se relacionar de forma respeitosa e construtiva. Refletindo sobre essas definições e sobre as possíveis ênfases que a pesquisa em história oral possibilita, destacamos que neste trabalho a história oral será um instrumento de investigação, uma porta de entrada e escuta para o imaginário dos sujeitos de quem nos aproximamos e que, esperamos, nos revelará um pouco mais sobre as narrativas orais tradicionais e, nesse processo, sobre nós mesmos. Antes de começar os estudos sobre história oral, abordaremos um pouco sobre o imaginário, questão bastante estudada por diversos autores nos campos da psicologia, linguística, literatura, história e 130 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... comunicação. O Dicionário de Ciências Humanas destaca que na construção do conceito moderno de imaginário, pode-se verificar Uma fase de efervescência, entre os anos de 1920 e 1970, durante a qual diversos autores, filiados a correntes de pensamentos bastantes diferentes, buscaram dar corpo à noção [de imaginário], ou mesmo promovê-la à categoria de conceito, a fim de construir uma teoria geral, buscavam estabelecer um sistema que daria contas das diversas categorias do imaginário - mitos, símbolos, fantasma, sonhos e devaneios -, ou seja, de todas as formas de pensamentos consideradas inconsistentes ou pré-consciente, e que derivam mais do afeto, da emoção, das lembranças, das impressões, que da pura racionalidade (se é que ela existe) (DORTIER 2010, p. 292). Vários estudiosos do assunto propuseram teorias para explicar o lugar do imaginário na cultura ou seu lugar na mente humana. De qualquer modo, tentaram oferecer um conceito mais bem acabado do termo, mesmo que nesse processo cada um apontasse para diferentes sentidos de imaginário. Um relato dos pormenores desse debate fugiria muito ao escopo desse capítulo, desse modo, seguiremos o Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010) ao longo dos próximos parágrafos para uma exposição concisa das mais representativas dentre das contribuições de alguns autores nesse tema. Primeiramente, para o psicanalista Jacques Lacan, todo ser humano vive na interseção das três ordens: a do símbolo, a do real e a do imaginário. Segundo ele, o imaginário representa um lugar inconsciente da ilusão, assim, seu imaginário é inconsciente e individual. Para o filósofo Jean-Paul Sartre, a imaginação é a faculdade consciente de formar imagens fugindo do real, seu imaginário, dessa forma, é consciente e individual. Para o filósofo Gaston Bachelard, existem duas vertentes opostas no espírito humano, por um lado a conceitualização que culmina na ciência e do outro o devaneio que encontra o seu ponto mais alto na poesia, ou seja, seu imaginário é pré-consciente e individual. Já o antropólogo Gilbert Durand buscou estabelecer a lógica estrutural atuante no imaginário humano a partir das análises dos símbolos e dos mitos das culturas clássicas ou exóticas, revelando a metafísica destas ao conjurar o tempo e a morte. Para ele, o imaginário seria, desse modo, inconsciente e social. 131 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz No campo da história, Jacques Le Goff destacou-se no uso do imaginário como ferramenta de investigação na década de 1980. São desse período os livros O Nascimento do Purgatório (1981) e O Imaginário Medieval (1985), além da coletânea O Maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval (1985, primeira edição em italiano de 1983). Dessa última obra destacamos dois capítulos: o primeiro, chamado “O maravilhoso no Ocidente medieval” e o segundo, intitulado “O deserto-floresta no Ocidente medieval”. A leitura desses textos nos remete a analogias possíveis de serem feitas, guardadas as devidas proporções, entre os contextos rurais da Europa medieval e as comunidades rurais da Amazônia, conforme veremos a seguir. Na Europa medieval, os séculos XII e XIII, período privilegiado por Le Goff, viram renascer elementos pré-cristãos em meio às narrativas de proezas típicas dos romances de cavalaria e mesmo em outras expressões da literatura popular, incluindo-se ali vidas de santos (São Marcelo e o Dragão de Paris) e contos chamados por muito tempo de folclóricos (Freitas 2016.). Essas manifestações culturais hoje são reconhecidas em sua importância e valor para determinados estágios de afirmação da identidade dos povos europeus e não o seriam se essas narrativas, e o imaginário ao qual se referem, não fossem identificados e reapropiados como parte dessas identidades. Podemos fazer um paralelo, de certa forma, com o que acontece na Amazônia do século XX e início do XXI, em que pode-se ver a recuperação por parte de sujeitos indígenas e ribeirinhos de elementos identitários a partir de mitos, lendas, línguas, modos de fazer específicos de festas e rituais que atualizam narrativas cosmogônicas e cerimoniais, além da valorização de personagens, entidades que transitam entre o natural e o sobrenatural, como as visagens, os encantados e os seres que guardam as matas e as águas. Os ribeirinhos, ou caboclos, são sujeitos indígenas que passaram por intenso processo de deculturação, ou seja, pelo processo de invisibilização e apagamento dos traços culturais distintivos de sua ancestralidade. Tal processo colonial não se encerra com a independência política em relação à metrópole portuguesa, mas se prolonga pelas mãos das igrejas e do aparato 132 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... estatal (Neves 2008). Nesse sentido, a recuperação de narrativas tradicionais, e do imaginário ao qual elas se referem, é não apenas um ato de resistência, mas de reconstrução de identidades com potencial de recuperar autoestima, literatura, enfim, cultura. Ou seja, com o potencial de regenerar a capacidade criadora, artística e identitária de algumas das populações mais depauperadas e exploradas da Amazônia. No momento em que decidimos pesquisar o imaginário das pessoas que moram na comunidade de São José de Igarapé-açu, no lago do Caiambé em Tefé-AM, sabíamos que essa não seria uma tarefa fácil, pois o imaginário é uma dimensão complexa de se analisar. Para alcançar esse objetivo, precisamos entrelaçar a teoria sobre o imaginário com a metodologia história oral. A seguir, discutiremos um pouco mais dessa metodologia a partir do trabalho de Alberti (2008). Segundo a autora, a história oral é uma das ferramentas que busca registrar por meio de entrevistas, depoimentos ou questionários, versões ou interpretações de algum acontecimento vivenciado, essas narrativas emergem espontaneamente ou de maneira estimulada pelas perguntas do entrevistador. Isso requer conhecimento sobre o assunto e estratégia metodológica para gerir as entrevistas, que podem ser gravadas com pessoas que são selecionadas na etapa inicial de preparação, dependendo de cada projeto de pesquisa. Muitas vezes, obtêm-se dados que não estão disponíveis em outros documentos. As pessoas podem, dessa maneira, oferecer uma perspectiva única sobre seus modos de vida, sobre acontecimentos da História contemporânea, História local, conhecimentos empíricos sobre os mais variados assuntos, entre outros. De acordo com Alberti (2008), a história oral começou a ser mais utilizada ao redor dos anos de 1950 com a invenção do gravador. Segundo a autora “Os Estados Unidos foi um dos primeiros países a utilizar a história oral como ferramenta de pesquisa, a partir daí ela foi difundida nos demais países e ganhou vários adeptos, como: Historiadores, Cientistas políticos, Antropólogos, Sociólogos, Psicólogos entre outros”(ALBERTI, 2008, p. 157). No Brasil, a metodologia foi introduzida a partir de 1970 com a criação do Programa de História Oral do Centro de Pesquisa e 133 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da fundação Getúlio Vargas. Nos anos de 1990, o movimento em torno da história oral cresceu muito no Brasil, por esse motivo foi criada a Associação Brasileira de História Oral em 1994, que congregava membros de todas as regiões do país realizando encontros regionais e nacionais e editando revistas e boletins sobre história oral. Em 1996, foi criada a Associação Internacional de História oral, que realiza congressos bianuais e edita revistas e boletins. A partir da renovação nos métodos e perspectivas historiográficas dos anos de 1970 em diante, muitas expressões artísticas e vestígios das atividades humanas no/do passado foram promovidas à categoria de documento e, como tal, receberam renovada atenção por parte da corporação dos historiadores (Le Goff 1990). Nesse sentido, as entrevistas de história oral podem ser tomadas como documentos. Um estudo sobre o passado por meio da oralidade, ainda mais combinado com outras ferramentas de pesquisa, torna mais rica a compreensão de como os indivíduos experimentam e interpretam acontecimentos, situações e modos de vida de um grupo ou de uma sociedade em geral, tornando os estudos da história mais concretos ou abordados de um outro ponto de vista dos acontecimentos. O estudo da história oral não se limita apenas a uma entrevista ou à gravação de depoimentos, há todo um trabalho envolvido antes, durante e depois das gravações, seja de levantamento de dados, preparação dos roteiros das entrevistas, de transcrições dos questionários trabalhados e de concepção dos questionários. Há que realizar, também, a preparação para uma atitude franca e aberta à escuta, sem tentar adivinhar o que o entrevistado dirá e sem procurar levá-lo a uma direção previamente estabelecida, apenas deixando-o contar o que surgir espontaneamente na conversa sobre determinado tema. Promover uma reflexão acerca da utilização da entrevista individual como parte da história oral é uma técnica que enriquece a historiografia, já que a entrevista individual é uma forma de coleta de depoimento, mas o documento de pesquisa baseado na oralidade não se define apenas em entrevistas individuais, ele se constitui de outras formas. Um exemplo é o produto de debate realizado sob a forma de reuniões, isso pode trazer informações 134 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... importantes para a constituição de um objeto para um projeto de pesquisa. As ideias que emergem do estudo das entrevistas orais não representam, necessariamente, uma visão de todo um grupo social, mas podem ser indícios de como os indivíduos conduzem suas vidas, suas atitudes e seus discursos dentro de seus grupos. Através dessas evidências, múltiplos aspectos da vida social e cultural podem ser estudados, incluindo-se aqui o imaginário, as representações sociais, os discursos e outras formas de representar o mundo e as relações sociais. Assim, o resultado das interações da pessoa com a sociedade, ou seja, a articulação das formas de existência individuais e coletivas podem revelar o conjunto das relações, crenças e modos de ver o mundo que os indivíduos acumularam ao longo de suas existências. É importante notar o quanto a história oral enriquece e propõe discussões mais amplas dos temas estudados. Se utilizada de maneira correta, ela pode abrir discussões que muitas vezes nem perceberíamos por meio de outras documentações. É interessante notar também a quantidade de dados que podemos coletar em uma entrevista. O pesquisador deve estar atento, pois muitos conhecimentos, histórias, contos, tradições, costumes podem acabar desaparecendo sem nunca serem registrados. Segundo Bussato: Recuperar o conto de literatura oral é também perpetuar a nossa cultura e a nossa história. Se cito com frequência o conto de fada e o mito é por acreditar que eles são uma via de acesso ao nosso ser, porem há nas lendas regionais e causos populares um conhecimento que não deve ser desprezado, pois eles indicam a produção cultural de um povo, suas crenças, temores e anseios íntimos. Seja qual for a categoria do conto que você pesquise, sempre será bem-vindo, pois estaremos contribuindo para a sua permanência (2008, p.87). Portanto, a história oral pode ser muito importante para o resgate da cultura dos povos, entre outros motivos, por não deixar que se percam as histórias locais, os mitos, lendas, as histórias dos antepassados, o modo de vida e as experiências adquiridas por pessoas que não deixam registros escritos ou documentados de outra forma ao longo de suas vidas. 135 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz 3. Mitos e lendas – as narrativas orais tradicionais Em nosso trabalho, ao falar sobre as histórias de Curupira, Mapinguari e Cobra-grande etc. utilizaremos a terminologia narrativas orais tradicionais, pelo fato de que esta expressão abarca ao mesmo tempo tanto mitos e lendas quanto contos populares. Ou seja, é uma terminologia mais neutra, no sentido de que não porta determinados sentidos pejorativos de mentira ou engodo que os termos lenda e mito costumam carregar. Nossa intenção com a utilização desse termo é passar ao largo dessa caraterização negativa que mitos e lendas muitas vezes apresentam. Existe uma rica literatura especializada nos estudos de mitologia que perpassa os campos da história das religiões, da antropologia, da literatura e mesmo da comunicação. Um inventário pormenorizado dessas discussões, no entanto, nos tomaria um tempo e um espaço do qual não dispomos no momento e nos levaria demasiado distante do nosso objeto de estudo. Por ora, remeteremos o leitor a alguns trabalhos em língua portuguesa que já fazem essa discussão. Nos anos 1980, a obra de grande referência em língua portuguesa é a Mitologia Grega de Junito de Souza Brandão (1986). Essa é uma obra de fôlego, na qual o autor faz sete capítulos com discussões teóricas em arte, literatura, antropologia e literatura, em interface principalmente com os teóricos estruturalistas e a psicanálise. A seguir, no restante do volume 1, ele reconta os mitos de cosmogonia, a ascensão dos olimpianos sobre os titãs; no volume 2, as proezas e desventuras dos deuses no reinado de Zeus; e no volume 3 as narrativas das divindades menores, como Eros e Psiché. Nos anos de 1990 Ordep Serra (1998/1999) publica um artigo em que, para discutir a pertinência das noções de mito e mitologia, esmiúça a construção do conceito de mito por LéviStrauss e outros antropólogos, em um permanente diálogo entre esses estudiosos e os estudos clássicos de mitologia grega e romana. Na década seguinte, Andrea Rossi (2007) move-se entre a abordagem linguística de Roland Barthes e a história-problema de Paul Veyne, para chamar a atenção para a necessidade de historicizar o conceito de mito antes de proceder a uma análise semiótica do mito na obra Discursos de João Crisóstomo, filósofo do Império Romano do séc. 136 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... I. No processo, a autora acaba perpassando diferentes concepções de mito por exemplo em Mircea Eliade (1972), Roland Barthes e François Hartog. Recentemetne, Ronaldo Colvero e Matheus Furtado (2020) trouxeram uma reflexão sobre as possibilidades de ensino de ciências humanas a partir das narrativas mitológicas. Sua abordagem parte da mitologia como categoria da literatura, porta de acesso e repositório de conteúdos imaginários que permite a professores e alunos a aproximação com diversas temáticas e diferentes abordagens teórico-metodológicas em trabalhos inter ou multidisciplinares. A seguir, recorreremos à excelente síntese que consta do Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010) para mais elementos desse debate. Utilizaremos seu verbete Mito como uma espécie de estrutura narrativa para nos guiar pelo emaranhado das posições dos teóricos das diferentes áreas das ciências humanas que se ocuparam, em algum momento de suas carreiras, do mito e de estudos mitológicos. Nesse sentido, sintetizaremos alguns trechos, e os enxertaremos com as outras leituras realizadas, principalmente nos campos da História Antiga e da História Medieval, para fornecer um quadro breve, mas inteligível desse processo. Assim sendo, eis um breve relato dessas discussões. Dortier (2010) que em meados do séc. XIX ocorre um impulsionamento dos estudos do que então se chamava mitologia comparada. É dessa época a obra seminal de James Frazer O Ramo de ouro (1982 [1890]), onde o autor pretende construir um panorama dos mitos de toda a humanidade. Os primeiros antropólogos também se debruçaram sobre os mitos, destacando-se Lucien Lévy-Bruhl com A Mentalidade Primitiva ([1922]), em que o autor pretendia, através do mito, acessar as formas elementares do pensamento humano. A partir dos anos 1920, antropólogos expoentes da corrente funcionalista como Bronislaw Malinowski e Albert Radcliffe-Brown afirmaram que os mitos não são apenas o resquício de um modo primitivo de funcionamento da mente humana, mas juntamente com os ritos, possuiriam funções sociais discerníveis: legitimação da ordem social, consolidação do grupo, atuação como modelos de comportamento. Portanto, se estudados nessa chave, poderiam ser uma via de entendimento da organização de toda uma sociedade, 137 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz desde as regras dos casamentos até os ritos de passagem e tabus alimentares. Um outro campo que muito contribuiu para os estudos de mitologia e continua a fazê-lo é a psicanálise. Sigmund Freud, fundador desse campo de estudos, utiliza os mitos de Édipo, de Prometeu, de Electra e muitos outros como chave de leitura para fenômenos da psiquê e do comportamento humanos. Carl Jung, um de seus discípulos, diverge do mestre e começa a abordar os mitos como arquétipos, como modelos simbólicos que permitiram o acesso a um inconsciente coletivo compartilhado por toda a humanidade em diferentes formas. Roger Callois propõe uma síntese entre a abordagem antropológica e a junguiana. Em sua obra Le Mythe et l’Homme (1938), esse autor argumenta que a mitologia seria uma complexa combinação de determinações sociais e históricas movida pelas pulsões que animam os seres humanos. A partir dos anos 1950-1970, os estudos de mitologia, como as ciências humanas e sociais de um modo geral, são marcados pela inovação e mesmo predominância em algumas áreas da corrente estruturalista representada por expoentes como Ferdinand de Saussure, Roland Barthes e Claude Lévi-Strauss, nos estudos dos signos, da linguagem, do imaginário e da mitologia. Esse período, e essa corrente teórica em particular, foi o mais prolífico na produção de contribuições acerca da mitologia. Mircea Eliade publica nesse período O Mito do Eterno Retorno (1972[1949]), O Sagrado e o Profano (1992 [1957]), Mito e realidade (1972 [1963]). Esse autor afirma que os mitos traduzem a configuração da mente do que ele chama de homo religiosus, ou seja, ele defende que o sagrado, categoria mais ampla e não necessariamente institucionalizada, caracterizaria todas as sociedades humanas e encontraria nos mitos não a única, mas uma de suas expressões mais irredutíveis. Nessa abordagem, a função dos mitos seria explicar o mundo e dar sentido à existência humana. Lévi-Strauss publicou entre 1964 e 1971 os quatro volumes de uma coleção monumental chamada Mitológicas. Seu volume 1, intitulado O Cru e o cozido (1994 [1964]) continua a ser um marco na análise dos mitos em perspectiva estruturalista. Seu objetivo era identificar as estruturas que presidiam a criação de todos os mitos da humanidade. Esse autor recusava atribuir aos 138 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... mitos uma função na organização da sociedade, ao invés disso, sua interpretação é de que os mitos são uma espécie de gramática que expressa, revela funcionamento da mente humana e não prescreve comportamentos. Aqui encerramos a parte em que seguimos o Dicionário de Ciências Humanas (Dortier 2010). Passaremos agora a discutir um pouco das contribuições no capo da História. No campo dos estudos medievais, o estruturalismo influenciou através de Georges Dumézil a obra de Georges Duby que em As três ordens ou o imaginário do feudalismo (1982) recupera ideias desenvolvidas por Dumézil acerca da trifuncionalidade nas sociedades indo-europeias. Basicamente esse autor afirma que haveria uma estrutura fundamental nas sociedades indo-europeias nas quais as figuras do guerreiro, do sacerdote e do trabalhador se traduziriam e manifestariam em diferentes conteúdos culturais podendo ser percebidos desde a mitologia e a estruturação dos idiomas até a própria organização social. Duby aplicou essa ideia aos estudos medievais e estudou a organização da sociedade, em particular da França, a partir dessa estruturação que revelaria o papel fundamental da nobreza, do clero e dos camponeses como categorias que funcionariam como eixos estruturantes da maneira de representar e, por isso mesmo, de organizar o todo social. Jean-Pierre Vernant, muito influenciado por Marcel Detienne e Louis Gernet, construiu em sua obra uma profunda reflexão sobre o pensamento dos gregos antigos. Nesse sentido o mito é uma categoria central a partir da qual o autor analisou diferentes expressões culturais e categorias de pensamento. Seus trabalhos iniciais recuperavam parte da discussão dos primeiros estudos antropológicos sobre os mitos, pois a problemática privilegiada por Vernant era a passagem do pensamento mítico ao chamado pensamento racional. Com o tempo, no entanto, cada vez mais o mito perdia em Vernant a característica do primitivismo ou irracionalismo e ganhava o aspecto de particularidade historicamente construída, simultaneamente estruturante e estruturada pelas suas condições históricas. Ainda que a questão das representações fosse uma tônica de seu trabalho, Vernant nunca deixou de articulá-las com as condições materiais de existência e os condicionamentos sociais mais amplos em que os textos cujas representações estudava estavam inseridos. 139 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz Na maturidade, sem nunca ter deixado totalmente de lado a questão do mito, o autor retorna ao tema de modo mais acessível ao grande público em uma breve exposição da religião grega no livro Mito e Religião na Grécia Antiga (2006). Nele, os mitos são sem dúvida a categoria central, pois articulam os dois outros aspectos que juntamente com o ele constituem a própria religiosidade grega: o rito, que seria uma encenação, (re)apresentação e performance de re-atualização do mito; e a imagem ou figuração, que também seria uma forma de representá-lo em contextos específicos, como, por exemplo, no culto público e na devoção pessoal. Nesse ponto do trabalho importa-nos perguntar como essas teorias, possíveis chaves de leitura, podem nos ajudar a entender nosso objeto, as narrativas tradicionais amazônicas. Seriam elas mitos, na acepção trabalhada pelos teóricos citados até aqui? Seriam elas material restrito à cultura popular, ou poderiam ser classificadas em outra categoria, propriamente literária, a das lendas? Consideramos que mesmo que não possamos classificar as narrativas tradicionais amazônicas em uma categoria ou noutra, fazer essa discussão já alarga nosso entendimento. Desse modo, pelos próximos parágrafos retomaremos algumas questões que nos parecem relevantes dentre aquelas levantadas por alguns teóricos que se preocupam com a distinção ou com os pontos de contato entre mito, lenda e outras formas de narrativas orais tradicionais. Abordaremos algumas ideias de Bruno Bettelheim (1980), Everardo Rocha (1989), Sérgio Dalate (1997) e retornaremos a Mircea Eliade (1972) para nos auxiliar a entender diferentes aspectos desse tema que pode guardar camadas de riqueza e profundidade insuspeitos à primeira vista. Muitas pessoas confundem mitos e lendas, já que os mitos e lendas têm núcleo comum enquanto relatos tradicionais originários da oralidade, no entanto, são diferentes em certos aspectos. Tanto o mito quanto a lenda surgem a partir de narrativas orais, contudo, enquanto os mitos costumam abordar aspectos ligados ao surgimento de personagens ou instituições, as lendas costumam abordar feitos e proezas muito mais próximas dos humanos. Se fizemos uma rápida pesquisa no dicionário encontraremos alguns significados para a palavra lenda, um dos mais citados é que ela vem do latim tardio, legenda que significa o que deve ser lido 140 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... (PRIBERAM 2022). A lenda também é uma narrativa que pode ser passada de geração a geração através da oralidade ou colocada por escrito. A lenda tem um caráter maravilhoso, pois trata de histórias heroicas, em que o imaginário e o real se misturam. Cascudo (1976) é um dos autores que vai procurar entender as especificidades das lendas. Ele afirma que: As lendas são episódio heroicos ou sentimentais, com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral e popular, localizável no espaço e no tempo. De origem letrada, lenda, legenda, “legere” possui características de fixação geográfica e pequena deformação e conservam-se as quatro características do conto popular: antiguidade, persistência, anonimato e oralidade. As lendas têm como função básica historiar ou explicar fatos como a origem das coisas, fenômenos naturais, figuras sobrenaturais, as lendas fazem parte da vida social das pessoas. Toda narrativa é um fato histórico e se amplia e se transforma decorrente ao tempo e surgem novas lendas, porque o homem é o fator determinante na produção da cultura e do repasse podendo ser de maneira oral ou escrita (CASCUDO 1976). As lendas também absorvem características geográficas dos locais em que são contadas. No caso das lendas amazônicas, é muito comum que apresentem cenários de rios, florestas e aspectos das comunidades ribeirinhas. Mais adiante abordaremos o quão forte é essa ligação do mundo concreto com o imaginário. Numa perspectiva de diálogo entre a literatura e a psicanálise, Bettelheim (1980) defende que os mitos podem estar mais ligados ao superego do indivíduo e que tentam preconizar um modo correto de conduta, ao mesmo tempo em que explicam a origem de algo, como a criação do mundo. Já as lendas, para esse autor, poderiam se chamar também sagas locais e estão relacionadas ao cotidiano de uma determinada cultura. Por outro lado, segundo Everardo Rocha (1989 p. 06), “o mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala, é uma forma das sociedades espelharem suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações”. Para Rocha, em cada história contada há valores representados nas narrativas, por isso o mais 141 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz importante é perceber que em conjunto elas nos possibilitam várias formas de explicar o mundo, de expressar sentimentos, temores, anseios. São maneiras encontradas pelas pessoas de interpretar as realidades criadas há muito tempo pelos nossos antepassados e transmitidas oralmente como forma de ensinamento entre as gerações. Numa discussão advinda do campo da literatura, Sérgio Dalate, procura diferenciar o mais explicitamente possível a história mítica da lenda: [...] a história mítica, [estaria] ligada a entes sobrenaturais, tem como atitude mental a crença; o relato legendário tem como heróis seres humanos cujo alto valor cívico ou espiritual estimula a imitação [...] a lenda se origina a partir de um fato histórico, embora sua veracidade, com o passar de tempo, seja transfigurada pela imaginação popular [...] (grifo nosso) como se depreende do sentido do adjetivo ¨lendário¨. Existe quase uma oposição entre história e lenda: chama-se lenda ao fato historicamente não comprovado [...] outra peculiaridade da lenda é sua localização no espaço e no tempo, diferentemente do mito e do conto popular, cujas origens são geograficamente e cronologicamente indeterminados (DALATE 1997, p. 109). É interessante notar que os mitos estiveram ligados, pelo menos em algum momento do passado, à ideia de crença, até pelo seu caráter explicativo de a) fenômenos naturais ou b) das origens de instituições ou seres vivos (Veyne 2014). As lendas, entretanto, apesar de apresentarem elementos de cunho mitológico, têm características que as relaciona diretamente a determinadas regiões, ou seja, de certa forma são elementos do imaginário ligados ao mundo real. Observando a vida na comunidade rural, percebemos que ainda hoje os mitos e lendas contribuem para constituição das regras ou na organização da vida social, ou, pelo menos, influenciam fortemente nas escolhas e nas decisões das pessoas de um modo que seria impensável em contextos urbanos. Se examinarmos atentamente as narrativas, percebemos que cada história traz consigo uma mensagem, seja um relato de criação do mundo, como nas narrativas indígenas, seja um alerta aos humanos dos 142 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... limites no uso da mata, como ocorre nas lendas amazônicas ou nas narrativas de outros povos que, por meio das histórias da tradição oral, compartilham saberes milenares com os seus descendentes. Segundo Norberto Guarinello (2012), uma sociedade é formada a partir de muitos elementos, alguns dos quais são herdados ou aprendidos de outras sociedades. Os múltiplos contatos entre sociedades permitem importantes trocas culturais. Nesse sentido, as sociedades ocidentais estão marcadas, direta e indiretamente, pelas tradições gregas e romanas, as quais influenciam modos de pensar, de ver o mundo, de perceber a si mesmo e aos outros. No entanto, não há por que pensar que outras sociedades não tenham feito e não continuem a fazer parte ativamente desse jogo de trocas culturais. Nesse sentido, os mitos e lendas não apenas foram, mas continuam sendo veículos privilegiados para transmissão da cultura, isto é, dos modos de fazer, de sentir, de pensar e de agir (Geertz 2015). Portanto, estudar os mitos e as lendas amazônicas pode ser importante no esforço de conhecer camadas muito profundas da nossa própria cultura. Segundo Guarinello (2012), a produção de saberes está intrinsecamente ligada aos conceitos de memória e identidade. Nesse sentido, os saberes das pessoas das comunidades rurais são um acúmulo de conhecimento produzido por várias gerações, conhecimentos construídos a partir de suas experiências de vida e que derivam numa forma particular de compreender o mundo, com suas próprias representações, seu imaginário e seus valores. Consideramos que tais referências nas histórias de vida dessas pessoas trazem uma percepção diferente, muito particular. Ela está ancorada em sua própria realidade, nos saberes tradicionais, os quais apresentam uma dimensão de experiência cotidiana, mas também um acúmulo geracional importante, fruto das interações com os ambientes amazônicos das águas, das terras-firmes e das florestas. Essa dimensão existencial, além de muito rica, pode-se dizer estética, é o que João de Jesus Paes Loureiro (2015) denominou “uma poética do imaginário amazônico”: os modos de vida nas comunidades ribeirinhas apresentam, reproduzem e reatualizam os saberes ancestrais, os quais vêm à tona de modos inesperados em meio à vida cotidiana: sonhos, crenças, religiosidades, anseios, conflitos e limites frente a suas leituras de mundo. 143 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz Ao analisarmos as narrativas das lendas amazônicas, perceberemos que muitas delas trazem uma mensagem consigo, seja de respeito, seja de aviso com relação à mata, aos rios e a vida animal e vegetal que os compõem. Essa questão do respeito está muito ligada às regras, às normas sociais implícitas nas comunidades. Nas grandes cidades a palavra respeito tem um sentido diferente, por exemplo de admiração por alguém, mas nas comunidades está relacionada a regras que precisam ser seguidas. Frequentemente aparece nas falas dos entrevistados junto com a palavra medo, é como se fosse uma regra que se quebrada trará sérios problemas. Assim, o respeito aqui é muito mais uma advertência de que se as normas e tabus, principalmente aqueles relacionados com os limites de ação e dos horários corretos para adentrar a mata e as águas, não forem seguidos, a pessoa pode passar por experiências desagradáveis, até mesmo punições provenientes dos seres que habitam esses espaços. Nesse contexto, o respeito que as pessoas têm por essas histórias, como falamos anteriormente, é muito mais perceptível nas comunidades ribeirinhas. A crença e o respeito se misturam com o medo de fazer mal, de descumprir uma regra de respeito a um lugar e receber um castigo. Retomemos a questão do mito em sua relação com as crenças e os comportamentos das pessoas em seu cotidiano. Falando da religião na Grécia antiga, Jean-Pierre Vernant destaca o papel fundamental dos mitos na configuração dos conjuntos de crenças e do próprio imaginário que permitia aos gregos ler o mundo. Ele afirma que: um vasto repositório de narrativas conhecidas desde a infância, em versões suficientemente diversas e em variantes numerosas o bastante para deixar, a cada um, uma ampla margem de interpretação. É dentro desse quadro e sob essa forma que ganham corpo as crenças em relação aos deuses e que se produz, quanto à natureza, ao papel e às exigências deles, um consenso de opiniões suficientemente seguras. Rejeitar esse fundo de crenças comuns seria, da mesma maneira que deixar de falar grego e deixar de viver ao modo grego, deixar de ser si mesmos (VERNANT 2006, p. 14) 144 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... A leitura desse trecho nos leva a considerar por analogia que as narrativas tradicionais amazônicas são também um conjunto de relatos que, por mais variados e divergentes que possam ser, contribuem para dar certa coerência, uma segurança básica dos conhecimentos a respeito dos seres que habitam as matas, as águas e a terra firme, sejam eles originários deste ou de outros mundos. O mito é uma forma de explicação da realidade em si mesmo, bem como uma explicação de como as pessoas enxergam o mundo. Eles são uma expressão do pensamento humano, celebram as realizações populares e se mantêm por meio da oralidade, ou seja, são transmitidos de geração a geração por meio das rodas de conversas, principalmente entre famílias. Outra forma de preservação e transmissão dos mitos são as festas ritos e produções artísticas de uma determinada sociedade. Para Mircea Eliade, O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Entre outros termos, o mito narra como, graça às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente, os personagens dos mitos são os entes sobrenaturais (ELIADE 1972, p.04) Algo importante a destacar é que o mito está entrelaçado com a religião, o sobrenatural, já que em suas narrativas podem ser encontrados ritos, orações, danças, cerimônias e sacrifícios, isso tudo gera um fascínio muito grande e contribui para perpetuar crenças. Como visto anteriormente, os mitos não fogem totalmente da realidade, eles tratam de questões que são reais, que fazem parte das inquietações de muitos de nós. Por exemplo a criação da terra, do céu, do mar, e relata tudo isso de uma maneira mágica, sobrenatural e misteriosa. Por mais que esses elementos sejam fruto de uma criação artística das emoções e do imaginário 145 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz dos seres humanos, são também uma tentativa de explicar os fenômenos da natureza e as instituições humanas. Mircea Eliade (1963, p. 12-13) argumenta que: “o mito é uma “história sagrada” e, por isso, revela uma “história verdadeira”, porque se refere sempre a “realidades”. Considerar os mitos como falsificação dos mundos ou ficções equivale a negar o próprio mundo que eles relatam”. 4. Considerações finais: as narrativas tradicionais diante das transformações do mundo moderno Na atualidade, os saberes tradicionais orientados pelo imaginário tecido a partir das narrativas orais têm cada vez tido menos importância mesmo nas comunidades rurais. As novas gerações têm aspirações de vida influenciadas pela onipresença dos dispositivos de comunicação das novas tecnologias. O modo de vida tradicional parece cada vez mais algo do passado de certa forma superado e destinado a cair no esquecimento. A chegada cada vez mais comum, com maior qualidade e por maior tempo da eletricidade nas comunidades rurais e a utilização de aparelhos como computadores e telefones celulares, mesmo em áreas onde não há cobertura de Internet, parece colocar um desafio à preservação e à transmissão dos saberes ancestrais para as novas gerações. Hoje em dia não é mais comum, principalmente nas cidades, termos rodas de conversas onde são transmitidas por meio da oralidade narrativas da cultura amazônica. Nesse sentido, pensemos nas inúmeras histórias que foram perdidas ao longo do tempo, várias e várias gerações que deixaram de conhecer um pouco da sua própria cultura. Nesse período de cursar a graduação em História, tivemos a oportunidade de participar do cotidiano dos alunos nas escolas por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) no município de Tefé, e essa foi uma experiência de intenso crescimento profissional, mas que nos permitiu observar a dificuldade dos alunos em se lembrarem de alguma história que seus pais ou avós contavam quando eram crianças. 146 Seres fantásticos e onde habitam: Narrativas tradicionais, história oral e estudos... Em um dos vários dias de acompanhamento da nossa turma, um dos alunos comentou em sala que ninguém mais se interessava por lendas, que isso não passava de mentiras inventadas pelos mais velhos para fazer medo nas crianças. Bem no canto da sala uma aluna levantou a mão e pediu permissão para falar, ela iniciou a fala com um pouco de vergonha, mas foi firme em suas palavras. Contou que morava em uma comunidade perto de Tefé, que de onde ela vinha as pessoas tinham um respeito muito grande por essas histórias e concluiu dizendo que com os espíritos da floresta não se brinca. Depois desse dia, as falas desses alunos nos levaram a propor esse questionamento: afinal, os mitos e lendas estão destinados a desaparecer? Para quem mora nas grandes cidades ou em municípios maiores há um contato muito grande com os novos meios de comunicação. Hoje em dia uma pessoa que mora no município de Tefé pode se comunicar com alguém que mora em outro lugar do Brasil ou até mesmo com pessoas de outros países sem sair de casa, pode saber o que acontece no mundo através do seu smartphone ou da sua TV. Com o avanço da tecnologia, o que antes era impossível, ou demorava muitos dias ou semanas, hoje pode ser resolvido em questão de segundos. As tecnologias facilitam a vida das pessoas, são tantas ferramentas que o mundo atual pode nos oferecer, aplicativos de mensagens, redes sociais de vários tipos, que as crianças perdem interesse nos costumes que eram tradição outrora. As crianças não têm tanto interesse nas rodas de conversa. Alguns acham aquilo pura bobagem, como é o caso do aluno citado acima. A maneira como as duas crianças foram criadas é muito diferente: uma criada em uma comunidade ribeirinha com costumes específicos, conhecendo as mais diversas histórias do lugar ou das redondezas, outra criada na cidade, crescendo desde cedo em contato com a tecnologia: videogames, celular, televisão etc. Contudo, será esse motivo suficiente para que uma acredite nas narrativas tradicionais e a outra não? Seja qual for a resposta, por que essas duas visões de mundo não podem coexistir? Apesar das diferenças impostas pelo desenvolvimento acelerado das tecnologias, percebemos que as histórias não são deixadas de lado, elas apenas se tornam pouco frequentes em alguns lugares e em outros elas são relembradas sempre que possível, como é o caso das comunidades ribeirinhas. Tivemos a oportunidade de acompanhar, 147 Macário Lopes de Carvalho Júnior e Arilson Nogueira Cruz por meio de uma iniciativa nas escolas da rede municipal de Fonte Boa, um projeto de recuperação das narrativas tradicionais, visando justamente que os alunos conheçam um pouco da sua cultura local. Projetos como esse são muito importantes nas escolas porque além de recuperar boa parte da cultura local possibilitam também o avivamento das histórias, ficando disponíveis a todos da comunidade para conhecerem e transmitirem aos demais. No município de Tefé também existem projetos que visam recuperar histórias locais das comunidades, como é o caso do Projeto Vagalume. Nesse caso, são os próprios moradores que participam e contribuem com as histórias. No final do projeto tudo é transcrito em forma de livro, que é distribuído para várias bibliotecas e assim fica disponível para a sociedade em geral. Projetos como esse contribuem para a sobrevivência das narrativas tradicionais, permitindo que parte dos saberes dos mais velhos sejam preservados e se adaptem diante das mudanças trazidas com a modernidade. Referências ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História in PINSKY (org.). Fontes históricas. 2a ed. São Paulo: Contexto, 2008. BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. São Paulo: Paz & Terra, 1980. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, v. 1. Petrópolis: Vozes: 1986. BUSSATO, C. Contar e Encantar. Pequenos segredos da narrativa. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. CARMO, Hermano e FERREIRA, Manuela. Metodologia da Investigação: Guia para auto-aprendizagem. Lisboa: Universidade Aberta, 2008. CASCUDO, L. da Câmara. 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A partir da exposição dos resultados das pesquisas em andamento, estendendo seus procedimentos a outros fundos de documentação, poderemos confrontar documentos de origens diversas além de mapear e descobrir novas fontes. A multiplicidade de documentos localizados na cidade de Tefé, bem como outros municípios do médio Solimões, destacam a singularidade e potencialidade destas fontes para pesquisas científicas regionais e/ ou nacional. 38 Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas/CEST [email protected] 39 Professor Titular da Universidade do Estado do Amazonas/CEST [email protected] 40 Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas/CEST [email protected] 150 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... Cabe destacar que Tefé desde tempos coloniais, quando se configurou enquanto Missão e, depois, tornando-se vila de Ega, caracterizou-se por ser um espaço estratégico, abarcando por força disso interesses e questões políticas, econômicas, sociais e culturais que faziam da região do Médio e Alto Solimões sua “extensão”. Diversos municípios hoje existentes no Médio e Alto Solimões, para se ter uma ideia, foram desmembramentos desta grande área colonial lusitana. (REIS, 1999; QUEIROZ, 2015). Vários documentos que remontam ao século XIX e XX são objetos deste trabalho, realizado até o presente e que serve de parâmetro para outros acervos, como das Instituições governamentais. Ressalte-se que a potencialidade do acervo documental da prelazia não se esgotou. Pesquisas de caráter mais aprofundado são relevantes para o desenvolvimento do conhecimento cientifico no interior do Estado do Amazonas. A Lei nº 12.527/2011 denominada de Lei de Acesso à Informação (LAI) regulamentou o direito fundamental de acesso à informação pública. Tal decreto estabelece o dever de transparência do Estado na divulgação de informações de interesse público. Focada muito mais nos Poderes e no Estado a implementação da LAI cria parâmetros não apenas para os agentes públicos, mas para a sociedade civil. (SILVA, 2013) Os documentos localizados em Tefé referem-se à história do Médio e Alto Solimões, uma vez que versam sobre cidades e regiões localizadas na calha deste rio, mas também de seus afluentes. Cidades como Santo Antônio do Içá, Amaturá, Fonte boa, Alvarães, vila de Nogueira, Tefé e outras, são mencionadas em documentos que trazem consigo aspectos do cotidiano destas comunidades. Documentos de batismo, casamento, periódicos, registros etnográficos, dentre outros, constituem-se em exemplos significativos que se bem explorados, a partir de pesquisas científicas, possibilitam uma maior compreensão histórica da região. Importante frisar a existência de uma gama documental na cidade de Tefé que por sua variedade exige um olhar multidisciplinar, que assenta este projeto. Dada à dimensão e importância do acervo, que contém inclusive documentos em francês e holandês sobre a região, uma intervenção no sentido de organizá-lo e democratizá-lo fazia-se urgente. 151 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva Este projeto vem realizando esta primeira intervenção por meio de uma equipe composta por dois professores da área de História e Geografia, e bolsistas da Universidade do Estado do Amazonas, fator que contribuiu para a formação de recursos humanos: bolsas de pesquisa de extensão e iniciação cientificas, trabalhos de conclusão de curso, projetos de tese, além de produção acadêmica: artigos em periódicos, capítulos de livros, anais de eventos científicos, etc. e o aparelhamento junto à Universidade do Estado do Amazonas, no Centro de Estudos Superiores de Tefé, do Laboratório de Pesquisa em História Social (localizado no prédio anexo à Instituição, que conta com: desktops, notebooks, câmaras fotográficas, impressora, obtidas com financiamento junto à agência de fomento.). Cabe destacar que alguns trabalhos via iniciação científica - PAIC, financiado também pela FAPEAM, e de extensão, via PROGEX/ UEA, tem já mobilizado esforços de demonstrar a potencialidade do acervo e realizado ações no caminho da democratização ao acesso do mesmo, junto à comunidade. Neste sentido, o projeto também focou e ainda foca na ampliação e intensificação desse processo sumamente importante para a preservação da história e da memória da região Amazônica. Identificou-se uma gama de documentos que emergiram da presença histórica da igreja católica e outras instituições na região amazônica. A Universidade enquanto espaço de produção do conhecimento e divulgação deste é detentora de saberes e conhecimentos técnicos que podem em sua função tripartite de ensino, pesquisa e extensão fomentar na sociedade civil a preservação de acervos, portanto de memórias e a democratização das informações, bem como sua divulgação públicas. O século XIX, a partir da chamada instalação da Província do Amazonas (1852), traz uma rica quantidade de fontes oficiais, sejam os relatórios, exposições e falas dos Presidentes de Províncias; jornais ou outros documentos produzidos pelos poder público, amplamente explorado pelas ressentes pesquisas desenvolvidas pela chamada história social do trabalho. Novas fontes e novas abordagens em decorrência da ampliação dos estudos em história do Amazonas apontam para uma massa documental significativa e relativamente pouco exploradas: as fontes paroquiais. 152 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... As fontes paroquiais são documentos de grande valor por seu caráter repetitivo e por sua quantidade. Paróquias e Cúrias possuem um conjunto de assentos que tratam da vida dos paroquianos, quase individualizada. Esses relatos, por conta da influência da sociedade católica, transformavam-se em livros de batismos, de habilitações de casamentos, livros de óbitos e nestes papéis, encontramos informações preciosas tais como, nome, filiação, naturalidade, qualidade social (cor, título), moradia, status social. (FRAGOSO, 2010) As possibilidades analíticas que se abrem a partir da coleta, catalogação e indexação de tais fontes, aumentam consideravelmente a capacidades da história aprofundar seus conhecimentos das relações sociais do Amazonas no período provincial. O desejo de estudar o chamado “mundo do trabalho” em contato com uma série de fontes primárias, algumas inéditas, outras já mencionadas, com certa frequência nas obras de história regional. As fontes do Arquivo Público do Estado do Amazonas (Relatórios, Fallas e Exposições de Presidentes da Província do Amazonas – 1852 – 1889; Livros de Ofícios da Secretaria de Polícia da Província do Amazonas – 1853 – 1888; Relação dos Escravos existentes na Comarca da Capital 1869; Lista Classificação dos Escravos para serem libertados pelo Fundo de Emancipação - 1873) são ao lado dos arquivos paroquiais, fontes nas quais relevantes para compreender a dinâmica da sociedade amazonense durante o século XIX em especial durante a montagem do aparelho estatal da Província, entre os anos de 1850 e 1889. Sociedade esta que se apresentava como multiétnica, além da presença de diversos atores sociais de origens étnicas e condições jurídicas diferenciadas. A leitura de obras que apontam para a utilização das chamadas fontes dos arquivos paroquiais pela história social, entramos em contato com fontes inéditas, coletadas na Cúria Metropolitana de Manaus. Livros de batismos, assentamento de óbitos, indícios de como a sociedade amazonense via seus habitantes, muitos com fenótipo variado, o que ultrapassava a condição jurídica. A mesma potencialidade encontrada nos arquivos da cúria de Coari e também da Prelazia de Tefé, onde livros de batismos do século XIX, apresentam dados significativos sobre o perfil social dos habitantes do interior da Província do Amazonas durante o período destacado. 153 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva A construção de um projeto, utilizando-se da potencialidade das fontes da prelazia de Tefé, notadamente os arquivos paroquiais presentes também na chamada Casa Paroquial, nos permite a partir de tais fontes que tem uma quantidade considerável de informações conhecer de forma mais ampliada o universo do mundo do trabalho e as relações multiétnicas que se estabeleceram na Província, por conta da presença de atores sociais das mais diferentes origens e condições jurídicas (escravos, sejam negros e mestiços, trabalhadores livres, indígenas) que transitam por todo o território da Província É notória a importância dos arquivos para a sociedade como um todo. Explorados de variadas formas, os documentos preservados, organizados e disponibilizados ao público em geral, e aos pesquisadores em particular, têm possibilitado recuperar dimensões históricas e culturais de sociedades passadas. Em que pese esse caráter salutar, muitos documentos do passado eventualmente têm chegado à atualidade mediante um processo de “entulhamento”. Não é raro identificar espaços cujos acervos se encontram desorganizados, não higienizados e, numa situação mais grave, em processo de desintegração. Existem esforços acadêmicos em diversas áreas 41, em especial na história, de mobilizar energia no sentido de modificar essa realidade que se faz presente em várias regiões do país. Recentemente, no Amazonas, vários projetos foram desenvolvidos visando à organização e disponibilização de acervos documentais, assentados em editais de agência de fomento e/ou instituições de ensino superior. 42 O presente texto, na esteira das ações realizadas a partir do projeto “História, arquivo e memória de Tefé”, financiado pela FAPEAM e com o foco na organização e democratização do acervo da Prelazia de Tefé/AM, localizado na Rádio Rural do município, tem como objetivo apresentar parte da documentação existente 41 Como, por exemplo, Arquivologia, Biblioteconomia, entre outras. Como o projeto “Documentos históricos do Judiciário amazonense: diagnóstico de acervo e organização do arquivo permanente do Poder Judiciário do Estado do Amazonas” (PGCT-FAPEAM), com a finalidade de organizar 15 mil processos (SILVA et. al., 2012). Além desse, existe o projeto “Colégio Amazonense D. Pedro II: memória, patrimônio e fontes históricas”, financiado pela FAPEAM através do Edital 010/2013 – PRÓACERVO com o objetivo de organizar o acervo documental do Colégio Amazonense D. Pedro II, entre outros. 42 154 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... no acervo, notadamente os registros paroquiais e os periódicos, destacando suas singularidades e potencialidades para os estudos históricos regionais e/ou nacionais. O projeto: História, arquivo e memória de Tefé/AM No segundo semestre de 2013, os professores ligados à linha de pesquisa de História Social (Alcemir Arlijean Teixeira Bezerra, Luciano Everton Costa Teles e Tenner Inauhiny de Abreu) submeteram coletivamente ao edital n. 010/2013 – PRÓ-ACERVO (Programa de apoio à organização, restauração, preservação e divulgação de acervos documentais do Estado do Amazonas), lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), um projeto 43 cuja finalidade consistia na organização, preservação e democratização do acervo localizado na Rádio Rural de Tefé, sob a guarda da Prelazia da cidade. A documentação presente no acervo retrata aspectos da história das cidades do Alto e Médio Solimões 44, em especial Tefé. A relevância desta cidade na região remonta ao seu passado 45, sobretudo pela sua posição estratégica. Foi alvo de ações missionárias (Carmelitas x Jesuítas) e disputas territoriais profundas, especialmente entre Portugal e Espanha (UGARTE, 2000; BOXER, 1977; MAXWELL, 1996). A atuação missionária da igreja católica na região foi inconteste. No período colonial, as ordens religiosas disputavam as áreas para suas Coroas, os carmelitas para Portugal e os jesuítas para a Espanha, e os impactos causados sobre as etnias indígenas provocavam, constantemente, deslocamentos das mesmas ao longo do rio Solimões. Do mesmo modo, os agentes coloniais leigos entravam em conflito com os povos indígenas, em especial para escravizá-los e direcioná-los para a extração das chamadas “drogas do sertão” 46 (SANTOS, 2002). 43 O projeto intitula-se “História, arquivo e memória de Tefé”. O financiamento obtido foi da ordem de R$ 66.593,33. 44 Em especial Tefé, Alvarães, Uarini, Fonte Boa, Jutaí, Tonantins entre outras. 45 Passado ligado ao mundo colonial, entre os séculos XVII e XVIII. 46 São produtos extraídos da floresta – como, cacau, canela, baunilha, cravo, etc. – 155 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva Com efeito, os conflitos ligados ao avanço dos missionários (catequização) e colonos leigos (busca de mão de obra) não se encerraram no século XVIII. Avançaram nos séculos subsequentes, particularmente no XIX e XX. Por exemplo, no século XIX, uma nova ordem passou a ter influência na região, desta vez eram os espiritanos. Atualmente ainda marcam presença no local. Neste sentido, o acervo possui documentos desses períodos, sobretudo dos séculos XIX e XX. Livros de batismo, casamento, óbitos, periódicos e demais peças documentais que acabam retratando de alguma forma a história da região do Alto e Médio Solimões. 47 Ciente da importância do material presente no acervo, esforços foram canalizados para sua preservação e democratização (BEZERRA, TELES, ABREU, 2013). Tais documentos podem ser utilizados para a recuperação da história e da memória(s) da região, para além da história/memória oficial da Igreja e/ou cidades da Amazônia. As ações do projeto já desenvolvidas resultaram na constituição de um inventário parcial dos documentos presentes no acervo. São aproximadamente 2.774 documentos organizados em 30 caixas de arquivos distribuídos em diversos temas: documentos, cartas, jornais, livros, apostilas, mapas, relatórios, livros de ponto, atas de reuniões, cursos, formulários, projetos, informativos, boletins, encartes, programas de rádio, cadernos sobre os movimentos sindicais, não contando com os que não foram catalogados e inseridos no inventário. Alguns desses materiais são significativos do ponto de vista de suas possibilidades de pesquisa histórica. A Geo-história do Médio Solimões A história da cidade de Tefé em suas origens mais longevas se confunde com a atuação missionária da Igreja Católica na então Amazônia Colonial. Conforme destaca Arthur Reis (1999, p. 129) a região do rio Solimões foi ocupada pela coroa portuguesa em virtude da presença dos jesuítas espanhóis na área. e exportados para a Europa. Sobre a mão de obra indígena e sua exploração para a extração das “drogas do sertão” ver também (SOUSA, 2002). 47 Antigamente a área de Tefé abrangia o Médio e parte do Alto Solimões. Portanto os documentos do século XIX e início do século XX também registram aspectos de cidades localizadas nessa região da calha do rio. 156 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... O nascedouro da cidade está ligada a missão de Santa Tereza D’Avila, fundada pelo então padre jesuíta Samuel Fritz, na barra do rio Tefé em 1688. Arthur Reis (1999) destaca a figura do jesuíta Samuel Fritz e a atuação missionária dos espanhóis na área do rio Solimões, de acordo com o autor a raia de ação do missionário se estendia até o rio Negro. Entre os rios Javari e Negro, havia de acordo com Reis (1999) quatro grandes postos missionários. Por volta de 1691, carmelitas portugueses iniciam uma reação para frear a influência espanhola na região do vale amazônico, fato que de acordo com o autor tem seu ápice em 1710 quando foi “de vez, sacrificado o trabalho dos loyolistas de Fritz, incorporando-se a imensa faixa de terra onde operavam à colônia de Portugal no vale” (Reis, 1999, p. 130). Dentre os núcleos missionários fundados pelo jesuíta Samuel Fritz, Tefé era nas palavras de Arthur Reis (1999) um dos mais prósperos. André da Costa, carmelita, conforme assinala o autor, iniciou conquista e tarefa da catequese na região a partir da ilha dos veados, entretanto ao ter contato com Tefé, leva para lá os índios sob sua guarda. Tal núcleo naquela época denominava-se de Santa Thereza. Arthur Reis (1999, p. 131) recorre ao viajante La Condamine para descreve os primeiros aspectos referentes ao núcleo originário da cidade de Tefé. De acordo com o autor: Em 1743, La Condamine, descendo o Amazonas, visitou-o. encantou-se com o que se lhe deparou. Em Tefé, como em Coary (sic), como nos outros sítios onde exerciam os seus misteres os carmelitas, o aspecto era surpreendente: capelas, presbitérios, casas de pedra ladrilhadas, os nativos vestidos, cercados de conforto em franca atividade agrícola. Já posteriormente, ainda conforme Reis (1999) Tefé, passa gradativamente a ter destaque, quando o Governador e capitãogeneral Francisco Xavier de Mendonça Furtado, chefe da comissão portuguesa de limites com as colônias espanholas ao norte, mandou ocupar o lugar construindo um destacamento militar. Tal fato de acordo com Reis era uma providência estratégica contra a possível invasão espanhola pelo rio Solimões. Deste destacamento militar Arthur Reis (1999, p. 132) começou a se organizar a sociedade de Tefé, na medida em que realizaram-se 157 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva casamentos entre os soldados e as mulheres indígenas e com esses elementos se forma a família tefeense: soldados, comerciantes, e indígenas. Criada em 1757 a Capitania de São José do Rio Negro, seu então primeiro governador, Joaquim de Mello Póvoas, em conformidade com suas obrigações administrativas, desceu para, nas palavras de Arthur Reis (1999, p. 132) visitar o território. Passando pelo rio Solimões escolheu Tefé e São Paulo de Olivença, para sede de outras vilas, isso nos últimos meses de 1759. Mello e Póvoas muda o nome da vila de Tefé para Ega, de acordo com Reis (1999) pois dava continuidade a política de Mendonça Furtado de denominar as vilas a partir de nomes portugueses, de acordo com nomes europeus. Arthur Reis afirma que a origem do nome Ega estava ligada a: “Ega, era a vila do Condado de Candeixas, em Portugal, no Douro.” (1999, p. 133) A vila de Ega conforme assinala Reis (1999) vivia de atividades econômicas vinculadas a pesca e a fabricação de manteiga de tartaruga. Não tinham trato com as questões de lavoura. Moravam na vila conforme Reis, em consonância as informações do ouvidor Ribeiro Sampaio, em 1775, 36 brancos, 10 escravos e 449 índios. A vila tinha três ruas: uma pequena, acompanhando o curso do rio, outras perpendiculares de larga extensão. O terreno era desigual e pouco se elevava das águas do rio Solimões (1999). Acima da vila, assinala Reis (1999, p. 134) havia um povoado subordinado a vila de Tefé, denominado de Nogueira, levantado em uma planície, à margem oriental da baia de Tefé, com duas ruas, avançando para o sul. Tal localidade fora também missão do Jesuíta Samuel Fritz, com o nome de Parauary. Em 1777, Reis (1999, p. 136) Ega é escolhida para sede das comissões de limites entre Portugal e Espanha na Amazônia. Em março de 1781 chegava a comitiva espanhola, porém em 1784, de acordo com o autor, ambas as comissões retiraram-se do local. Em 1790 o governador da Capitania de São José do Rio Negro, Manoel Lobo d’Almada tentando minorar a presença espanhola na região, fato assinalado por Arthur Reis (1999, p. 137-8) como novo chefe da comissão portuguesa de limites enviou tropas de Iça e Tabatinga para a vila de Ega. 158 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... De 1815 em diante, Ega, de acordo com Arthur Reis (1999, p. 140) ficou sendo sede de uma comandância de praias. O fato significativo para o autor dava-se com a captura de indígenas do Japurá, que eram levados para o Lugar da Barra. Durante o século XIX, Reis (1999) ressalta que a vila sofre um aumento no seu contingente populacional: 2200 indivíduos em Ega, 1200 em Nogueira, totalizando 3400 nos distritos do município. Quanto ao aspecto da vila o autor afirma sua característica pitoresca: “o casario coberto de palha, inclusive a igreja, um quartel e um armazém do rei, esses dois de telha” (p. 141) Em 1833, pela Divisão do Código do Processo ficou sendo, de acordo com Arthur Reis (1999, p. 141) a única vila do rio Solimões, com fronteiras absorvendo a José do Javari e São Paulo de Olivença, os lugares de Alveollos, Alvarães, Fonte Boa e Nogueira. Em 1855, Tefé, pela resolução 44 de 15 de junho teve o titulo de cidade com o nome atual. (Reis, 1999, p. 143). Documentos Paroquiais Identificou-se uma gama de documentos que emergiram da presença histórica da igreja católica na região amazônica. Trata-se de livros de batismos, casamentos e assentamentos de óbitos. Imagem 1 – Livro de batismo, Vila de Ega 48 – 1800 Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação. 48 Tefé, cidade amazônica, nasceu de uma missão carmelita no início do século XVIII, especificamente 1718. A partir do Diretório dos Índios de 1757, a missão foi transformada em Vila, com denominação de Ega. Para conhecer essa história ver (FAULHABER, 1998; AZEVEDO, 1990; REIS, 1999). 159 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva Esse tipo de documentação é vista como significativa para os estudos históricos, pois se colocam como importantes pistas para o processo de reconstrução de complexas relações sociais articuladas no século XIX. Por ela, é possível, por exemplo, reconstituir redes de relações entre variados grupos (comerciantes, indígenas escravizados e/ou libertos, etc.), assinalando suas características e dinâmicas. Cabe destacar que esse tipo de material pode ser intensamente explorado regionalmente. Documentos paroquiais são peculiares pelo seu caráter repetitivo e por tratar, de forma bastante individualizada, da vida dos paroquianos. Nesses papéis se encontram informações salutares, tais como nome, filiação, naturalidade, qualidade social (cor, título), moradia, status social, entre outros (LIBBY, 2010: 41). Tal documentação ainda pode esclarecer questões ligadas à estratificação social, sistema de parentescos, relações de vizinhança, sistema de casamentos, etc. Consoante João Fragoso é possível mediante os registros paroquiais realizar uma história demográfica ou das famílias (2014: 80). Mas se articulados a outros documentos, como jornais, revistas, boletins e demais, podem ainda fornecer uma série de informações relevantes. Imagem 2 – Livro de batismo Tefé – 1842/1851 Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação. 160 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... Dos vários exemplos que são possíveis identificar, optou-se por salientar o estudo de Douglas Libby (2010). Este autor examinou a documentação paroquial de Minas Gerais durante o século XVIII, procurando analisar as representações identitárias e o processo de racialização envolvendo escravos e ex-escravos na região. Constatou que é possível observar uma mudança na descrição da origem e condição dos indivíduos naquele período. Usando os documentos paroquiais o autor chegou à conclusão de que tais representações estariam mais vinculadas à posição social do que a própria identidade racial. Significativo na obra de Libby foi o uso da documentação paroquial na análise de racialização e posição social dos grupos estudados por ele. Com efeito, os historiadores sociais têm explorado, embora de maneira menos intensa do que em outros países, os registros paroquiais. Internacionalmente, existe um largo uso dessa documentação que pode servir como referência para estudos internos e regionais (FRAGOSO, 2010: 74). Periódicos Além dos documentos paroquiais, encontram-se também periódicos. Jornais, revistas e boletins compõem também o acervo da Prelazia de Tefé. Imagem 3 – Boletim o missionário – N. 7 Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação. 161 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva O uso de periódicos na disciplina histórica foi gradativamente tomando corpo, em especial nas últimas quatro décadas. Tornaram-se material empírico de grande potencialidade na reflexão histórica. Isso se deu, grosso modo, quando a história tradicional e o foco dado ao documento produzido pelos órgãos oficiais do Estado foram criticados enquanto hegemônicos (CARDOSO, 1981; BORGES, 1980; BARROS, 2004). Como resultado disso, revistas, jornais diários, boletins, entre outros, foram explorados no sentido de potencializar a recuperação de aspectos significativos do passado das sociedades. Nesse processo de uso dos periódicos, há quem tenha assinalado sua relevância: Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época (CAPELATO, 1988: p. 13). Embora destacando a imprensa, não se pode negar a importância dessa assertiva para os periódicos em geral, uma vez que eles trazem em seu bojo férteis informações que podem lançar luzes sobre dimensões sociais importantes como, por exemplo, a trajetória de lutas, os interesses, os ideais de grupos sociais que estão presentes na cena histórica em específicos contextos e lugares do passado. 162 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... Imagem 4 – Jornal O Solimões – N. 30 Fonte: Prelazia de Tefé. Seção de documentação. Tais documentos potencializam uma reflexão histórica significativa das sociedades no nível de suas condições de vida, manifestações culturais, políticas, dentre outros. Inserindo-os em seus contextos históricos, identificando os grupos por traz dos periódicos e seus “discursos”, dimensões sociais e culturais importantes podem ser iluminadas (LUCA, 2005; ZICMAN, 1985). Arquivo/História: preservação e memória Certamente que nas sociedades contemporâneas os esforços voltados para a constituição de arquivos, pautados na seleção de documentos 49, porém salutar na preservação de informações e 49 Nem tudo é preservado. Não obstante, os documentos que escaparam da destruição e do esquecimento se enquadraram em torno de critérios específicos 163 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva conteúdos, em especial institucionais, relacionam-se não somente com a preocupação de cumprir uma legislação específica 50, mas também de preservação de memórias (JARDIM, 1995). Recentemente, a questão do patrimônio histórico e cultural ganhou corpo, como destacou Fratini: É cada vez maior a preocupação com a conservação e a preservação do patrimônio histórico e cultural de uma sociedade, de um país. As dimensões e as características que definem o nosso tempo e espaço geram discussões constantes sobre o que, como e para quem preservar (2009: 1). Como parte significativa desse processo, os arquivos foram mencionados, por serem formados por documentos legados de outras épocas e, neste sentido, inseridos como elementos que formam o patrimônio histórico e cultural. Portanto, atualmente o interesse em preservá-los vai muito além do Estado e de suas instituições, envolvendo a sociedade civil como um todo. Com efeito, não se pode negar que o processo de preservação e constituição de arquivos abarca questões ligadas à memória histórica, particularmente quando se opera a seleção dos documentos. O que preservar? Que documentos merecem ser legados a posteridade? E por quê? Essas perguntas revelam um movimento no sentido de fazer emergir uma memória que, dependendo do grupo, da instituição ou da entidade, será diferente. Um exemplo bastante notório se refere ao Estado Nacional que sempre buscou traçar memórias oficiais em diferentes contextos (BREFE, 2005). Por outro lado, documentos que foram produzidos, porém jamais pensados para a posteridade ou para compor algum tipo de memória oficial, quando descobertos podem apontar para o surgimento de outras memórias, muitas vezes incômodas, reforçando seu caráter plural, revelando conflitos e disputas (POLLAK, 1989: 4-8). que nortearam esse processo. Nesses critérios se materializaram interesses sociais, políticos, econômicos e culturais hegemônicos em contextos diferentes (REIS, 2006). 50 Lei n. 8159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. 164 História e outros arquivos: memória, patrimônio histórico e cultural nos registros... Um exemplo de uma “memória incômoda” corresponde aos arquivos das ASI Universitárias. Motta recuperou a trajetória dos arquivos das Assessorias de Segurança e Informações das universidades e os embates e disputas que eclodiram nesse caminho. Para o autor, controlar “a memória coletiva sempre foi um mecanismo de exercício de poder, de garantir e conferir legitimidade aos governantes e aos sistemas de organização política em vigor...” (MOTTA, 2008: 43-44). A importância dada aos arquivos levou diversos pesquisadores de diferentes áreas – arquivologia, antropologia, história e outras - a realizarem estudos, sob diferentes perspectivas (COOK, 1998; ROUSSO, 1996; CHUVA, 1995). Neste sentido, o projeto desenvolvido e direcionado ao acervo da Prelazia de Tefé, assim como o presente texto, surgiram no sentido de reforçar esse movimento de preservação e democratização, mas também de demonstrar que alguns (existem muitos outros que ainda serão observados e mencionados) documentos desse acervo podem revelar diferentes histórias e memórias sobre a região amazônica. Considerações finais Através das ações realizadas no âmbito do projeto “História, arquivo e memória de Tefé” (FAPEAM) foi possível identificar uma gama diversificada de documentos que compõem o acervo da Prelazia de Tefé/AM. Desse universo se buscou destacar, como exemplos, os documentos paroquiais e os periódicos para, a partir deles, explicitar suas peculiaridades e potencialidades para as pesquisas históricas e culturais acerca da região. Como mencionado anteriormente, mediante os arquivos paroquiais questões ligadas à estratificação social, sistema de parentescos, relações de vizinhança e sistema de casamentos podem ser exploradas. Já com relação aos periódicos aspectos referentes às condições de vida, materiais e culturais, dinâmicas políticas, formas de circulação de ideias e tantos outros temas (que acabam emergindo das questões registradas e levantadas pelos periódicos) podem também serem alvos de pesquisas. Desta forma, os documentos assinalados, assim como o conjunto deles, colocam-se como fundamentais para a região (e até 165 Tenner Inauhiny de Abreu, Luciano Everton Costa Teles e Jubrael Mesquita da Silva mesmo numa escala maior, nacional e internacional), sobretudo para recuperar e fazer emergir novas histórias e memórias. Nesta esteira, fica então evidente que a preservação, organização e democratização de acervos, como este desenvolvido em Tefé, são extremamente importantes para a compreensão histórica das sociedades do passado. Referências AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. 2ª ed., Lisboa: Clássica Editora, 1990. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2004. BORGES, Vavy Pacheco. O que é História? São Paulo: Brasiliense, 1980. BOXER, Charles. O Império Ultramarino Português. Lisboa: Edições 70, 1977. BREFE, Ana Cláudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso Taunay e a memória nacional. São Paulo: Editora de Unesp; Museu Paulista, 2005. 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São Paulo, n. 4, p. 89-102, 1985. 167 A arte de benzer e seus processos de (re) construção a partir do olhar dos curandeiros (Tefé – AM) Adriana Nonato Braga 51 Cristiane da Silveira52 B enzer é um ato que consiste em curar pessoas dos mais diversos males, através de gestos e preces que vem acompanhada do uso de plantas selecionadas. A arte de benzer é uma atividade que sofre influência de diversas culturas, no Brasil as influências vêm, principalmente, dos povos indígenas e africanos. Em tempos remotos, normalmente se encontrava os(as) benzedores(as) em lugares mais distantes que não tinham acesso à médicos, nesses locais o(a) benzedor(a) era quem cuidava da saúde das pessoas não apenas com o benzimento, mas também com remédios feitos com o uso de plantas, banhos, sumos e chás. Na atualidade, mesmo com os avanços da medicina e a facilidade no acesso aos hospitais o ato de benzer continua presente na sociedade, isso porque há muitos que recorrem a esta prática e acreditam nela. O dom do benzer pode ser repassado de um(a) benzedor(a) mais velho(a) e experiente para um(a) mais jovem, ou também há casos em que o indivíduo nasce com o dom e o desenvolve durante a vida com a ajuda de outros(as) benzedores(as) ou sozinho. Para alcançarmos os objetivos propostos por esse trabalho que são entender, investigar e apresentar algumas das diversas formas de benzer, suas origens, influências e como se deram seus processos de (re)construção ao longo do tempo, a população da pesquisa foi de dois benzedores, sendo um do sexo masculino e outra do sexo feminino. 51 Licenciada em História pela UEA. Pós GraduaDA em História e Cultura Afrobrasileira. Mestranda do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH. 52 Professora Adjunta do CEST/UEA e do PPGICH/UEA. 168 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... O benzedor do sexo masculino de nome fictício Raimundo tem 66 anos, nasceu no município de Ouro Preto do Oeste, situado no estado de Rondônia. Durante sua vida residiu em alguns municípios até finalmente firmar residência no município de Tefé-AM, onde se encontra atualmente. Raimundo é uma pessoa simples, gentil e de muita fé. É devoto da religião católica, essa que segue desde a sua infância. A benzedora do sexo feminino de nome fictício Francisca tem 40 anos, nasceu no município de Itamaraty, interior do Amazonas, teve residência na cidade de Manaus e de Presidente Figueiredo até firmar moradia no município de Tefé- AM, no qual reside atualmente. Francisca é professora, profissão pela qual diz se sentir feliz em atuar. A benzedora anteriormente foi devota das religiões católica e evangélica, mas atualmente segue a umbanda, religião de matriz africana. Foi no umbandismo que começou exercer a função de Mãe de Santo e também de benzedora. Breves considerações sobre o contexto histórico da arte de benzer O ser humano preocupado com sua saúde descobriu maneiras de cuidar desta, sendo o benzimento uma destas formas de cuidar das enfermidades. Sob esta perspectiva identificamos como o homem aprendeu com as doenças e pensando numa cura passou a desenvolver formas de tratamentos, assim ele passou a compreender que cuidar da saúde seria o mesmo que investir em seu corpo, no seu espírito, em si mesmo. Considerando uma infinidade de meios como: “sistema de alimentação, consumo de fármacos, e outras substâncias, espiritualidades, estilos de vida, variavelmente combinados em composições pessoais criativas” (Cunha e Durand, 2011, p. 13). Consonante à crença da sabedoria popular e de diversas religiões, corpo e espírito não se separa, assim quando um mal atinge o corpo, o espírito também é atingido e para que esta cura ocorra há sempre uma reza ou um benzimento que possa ajudar. Por conta disso, Hoffmann-Horochovski (2015) afirma que mesmo com os avanços da medicina esta tradição segue e persiste 169 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira na sociedade atual. É uma prática de cura bastante utilizada, em especial nas regiões interioranas do Brasil. Remonta do período do Brasil colonial, trata-se de uma prática que é passada de geração em geração e que em sua maioria é realizada por mulheres. O surgimento e avanço da chamada ciência médica não coibiu a medicina popular que faz uso de bênçãos, chás e demais formas de tratamentos naturais. O que ocorreu foi uma opção a mais de tratamento e busca pela cura, que quando não provinha dos ritos de cura, poderia surgir através dos conhecimentos do médico formado. Desse modo, ir em busca de uma, não anulava a outra. Para Figueiredo (2008), o século XIX é considerado um importante marco na medicina de forma geral, pois foi onde surgiram as primeiras práticas de assepsia, o início do uso de anestesiantes nas intervenções cirúrgicas, bem com o avanço nas pesquisas sobre bactérias. A partir daí a medicina científica começa a conviver com a medicina popular e passam a coexistir. Ainda que as descobertas tenham trazido inúmeras contribuições para a melhoria da nossa saúde e bem-estar. No entanto: O espaço da fé, da crença, da simpatia não se contrapõe, na prática das pessoas do século XIX, ao espaço da razão e da chamada ciência médica. Aquele que procura o curandeiro pode, para o mesmo problema, consultar o médico formado. Encontramos relatos de médicos indicando que os pacientes passavam pelas mãos de outros curadores e procuravam os médicos quando não obtinham sucesso na primeira tentativa (Figueiredo, 2008, p. 31). Mesmo com certa dificuldade as práticas da medicina popular seguem resistindo e sobrevivem nos mais diversos espaços geográficos, principalmente no interior das grandes cidades ou ainda nas periferias dos grandes centros urbanos. Figueiredo afirma: A população das cidades interioranas espalhadas pelos espaços rurais se desenvolvera, pela tradição, formas próprias de intervir no corpo doente, no corpo que sofre fisicamente. A intermediação entre o paciente e o seu problema poderia ocorrer através da figura ampliada do curador, seja ele o benzedor ou 170 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... aquele que indica mezinhas, chás e receitas conhecidas, aquele que observa, diagnostica e prescreve ou, ainda, por meio de alguns elementos que podem representar proteção: patuás e amuletos espalhados pelo corpo, ou outras formas de crença (2008, p. 21). Diante disto, fica perceptível que a medicina popular foi durante muito tempo(e ainda segue sendo nas regiões mais remotas) a única forma de tratamento e cura de enfermidades. E que culturalmente falando, a arte de benzer é parte da identidade e cultura de muitos povos. E apesar do seu enfraquecimento ainda podemos encontrar pessoas que a dominam e exercem com a finalidade de cuidar daqueles que necessitam, seja espiritualmente ou fisicamente. Segundo Souza (1993), por pensar que a doença era algo celestial, os europeus acreditavam que para ser curados, era necessário que a cura também viesse dos domínios sobrenaturais e geralmente quem tinha essas respostas eram os curandeiros. Ainda conforme a autora supracitada: “na França do século XVI, ainda se pensava dessa forma, pois acreditava-se que o dom de curar era hereditário” (Souza, 1993, p. 167). Desse modo criou-se a crença de que a interpretação das doenças e seus procedimentos provinham das forças sobrenaturais, de algo divino bem como das forças da natureza. Através desta concepção é que surgem os curandeiros, benzedoras e ou rezadores (os nomes dados a eles podem variar de acordo com as literaturas existentes), que são vistos como pessoas com o dom de falar e agir das forças sobrenaturais. Durante séculos eles dominaram a cura em diferentes tempos, espaços e culturas, sendo a única forma de tratar dos doentes e de curar suas enfermidades. A arte de benzer através dos relatos dos benzedores do município de Tefé/AM A pesquisa ocorreu no município de Tefé, anteriormente chamada de Vila da Ega, situa-se no interior do estado do Amazonas, e ocupa uma área total de 23704,426 km². Tefé é um termo de origem nheengatu. Antes das expedições de Colombo em 1492 e Cabral em 1500, que marcam a chegada dos espanhóis 171 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira e dos portugueses ao território brasileiro, Tefé era habitada por diversos povos indígenas (Cabrolié, 1996). De acordo com as leituras realizadas e os dados coletados foi possível compreender parte das origens da arte de benzer e para diversos autores, trata de um ato que está intimamente ligado a um dom que vem do sagrado e relaciona-se com as doenças e comos rituais de cura. Nery compreende que: A tradição que o ato de benzer, ou de curar, é a ritualização das coisas da fé, onde muitas vezes se misturam o sagrado e o profano. Herança dos portugueses que ao chegarem ao Brasil sofreram influências dos índios e, posteriormente, dos africanos, sobretudo as mulheres. O conhecimento das plantas medicinais da colônia, dominado pela cabocla e pela mulata, unido ao das plantas medicinais trazidas pelos portugueses, foi sendo repassado de geração em geração, originando o costume de curar doenças por meio de recursos naturais. Daí a procura pelas rezadeiras para fazer chás, simpatias, rezas e benzeções uma solução eficaz para solucionar os problemas de saúde para as classes mais desfavorecidas (2018, p. 02). Desse modo, as pessoas passaram a procurar o benzimento a fim de alcançar a cura para doenças do corpo e da mente e também para pedir uma proteção ou ainda para pedir uma orientação sobre decisões que tem para resolver. É importante enfatizar que, apesar do fato dos benzedores(as) realizarem os mesmos processos, cada um(a) possui sua particularidade na hora de realizá-los. Pois, cada benzendor(a) tem seu próprio rito, ou seja, suas próprias orações. “Essa singularidade a torna ainda mais fascinante, uma vez que presenciamos várias maneiras de se alcançar o mesmo objetivo: a cura através da fé” (Nogueira, et al. 2012, p. 169). Cabe mencionarmos que não é qualquer pessoa que pode ser um(a) benzedor(a), haja vista que se faz necessário possuir o dom para benzeção. A escolha de novos benzedores ocorre por meio dos benzedores mais velhos que reconhecem e repassam seus ensinamentos e suas práticas aos mais novos. Mas antes de tudo, é imprescindível que a pessoa reconheça e aceite a existência do dom, que é um presente divino (Santos, 2007). 172 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... Uma regra que é consenso entre as pessoas que praticam a benzeção é que não se pode cobrar por ela. Mas geralmente recebem presentes ou doações das pessoas que ajuda. Esses presentes são uma forma de agradecimento por partes das pessoas atendidas pelo(a) benzendor(a), as doações são um meio de retribuir a ajuda. Assim a benzeção faz parte da medicina popular e vem sendo executada por diversos povos no decorrer dos séculos, ela é tradicionalmente transmitida de geração a geração. O que notamos a partir da investigação é que essa prática se não repassada, com o passar dos anos pode desaparecer na ausência de novos aprendizes, em especial nos centros urbanos maiores. Benzer não é apenas realizar gestos aleatórios usando certas orações, através das entrevistas é possível notar que para quem pratica da benzição esta permeia toda a sua vida, pois ser um benzedor é um dom, logo tem que estar pronto para atender as pessoas necessitadas a qualquer momento, essa disponibilidade requer do benzedor(a) uma devoção a seu dom. O primeiro momento da entrevista utilizamos para conhecer melhor nossos dois entrevistados(as), saber um pouco mais sobre suas origens, idade, como e com quem aprenderam a arte de benzer. Os benzedores(as) possuem entre 40 e 66 anos de idade, sendo um natural do município de Eirunepé e outro nascido na cidade Itamaraty, municípios do interior do Amazonas. Ambos afirmaram que moram e atuam há muitos anos em Tefé. Quando questionados sobre como e com quem aprenderam a prática de benzer. Ambos afirmaram ser um dom recebido de Deus. Conforme as palavras da benzedora Francisca: “Eu não aprendi com ninguém na verdade, eu acho que já veio comigo um dom e aí eu só comecei a praticar e tive algumas orientações, mas a reza e a prática de benzer já veio comigo mesmo. É um dom” (Francisca, 2021). O benzedor afirma que: Bom, foi o dom que Deus me deu, a minha mãe ela sabia várias coisas, ela rezava também. Então ela me ensinou pouca coisa, mas a convivência a gente foi desenvolvendo [...] Então eu acredito como diz a população, eu acredito que foi um dom que Deus me deu. E rezando até o presente eu nunca desenganei ninguém, eu juro perante a lei de Deus, sempre que quando rezo na pessoa ela fica bom, pego desmentidura, e da reza não 173 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira cobro nada de ninguém, mas da desmentidura eu cobro, se eu pegar hoje na desmentidura da senhora eu cobro 10 reais e se amanhã a senhora estiver sentido, pode voltar que eu devolvo o dinheiro. (Raimundo, 2021). Por meio do relato de ambos notamos que a arte de benzer não é algo que se adquiri com o tempo ou que se pode ser aprendida, para ser benzedor(a) é necessário que a pessoa receba um dom que vem de Deus e que com o passar do tempo vai sendo aperfeiçoado. Notamos que um dos benzedores recebe gratificações em dinheiro, mas seu Raimundo reforça que só recebe dinheiro para uma atividade específica, para pegar desmentidura53, tendo em vista que não pode cobrar pelo benzimento. Questionamos de como é feita a transmissão do conhecimento sobre o benzimento. O benzedor Raimundo disse que: “Não aprendi com ninguém. Tudo foi dom, o que eu sei sobre reza tudo foi dom, porque o que eu aprendi com minha mãe foi o ‘pai nosso’, ‘ave Maria’ só oração para se deitar mesmo” (Raimundo, 2021). Quanto ao mesmo questionamento a benzedora Francisca responde: Então, essa transmissão eu acredito que é passada de geração para geração, só que no meu caso como eu já vim, a prática já veio comigo né, eu fui praticando e com o tempo fui me aprimorando e eu tive algumas orientações de outras pessoas que já praticavam a reza (Francisca, 2021). No relato notamos que os conhecimentos geralmente são repassados de geração em geração, por algum membro mais antigo da família que também recebeu o dom de benzer ou por algum(a) outro(a) benzedor(a) que ajuda os mais jovens a compreenderem seu dom para assim usá-lo de forma a ajudar as pessoas. É sabido que cada benzedor(a) possui uma forma única de praticar seus ritos, entretanto quando se trata de rezas e orações elas costumam ser as mesmas, o que difere é apenas a forma como 53 Definição regionalismo - Norte-Nordeste, deslocação de osso (ou articulação); qualquer tipo de contusão; luxação. Dicionário Online de Português, Site DICIO. Disponível em: https://www.dicio.com.br/desmentidura/. Acesso em 18 de junho de 2021. 174 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... cada benzedor(a) a entoa ou ainda quais os instrumentos que são utilizados para o rito. Quanto as músicas e orações utilizadas durante o ritual a benzedora respondeu: Geralmente eu não uso música, eu uso oração, o pai nosso, creio em deus pai e eu gosto muito de nossa senhora de aparecida a desatadora de nós, quando a gente está rezando a gente sempre faz essa oração. E a reza na verdade é um passe que é de purificação pra tirar as coisa ruim pra vim as coisa boa pra pessoa (Francisca, 2021). Já o benzedor menciona: Sempre que a oração e assim mesmo, a reza que eu rezo nas pessoas e que eu não posso ensinar, porque se eu ensinar não serve, mas para mim. Agora outra coisa, isso aí e uma grande força que nós temos dado por Deus, quando a senhora está deitada abri os olhos, mesmo que a senhora seja crente porque não sei como e a base do crente não sei como ele leva a vida, porque eu sou católico. Mas quando eu abro os olhos eu me lembro logo a Deus, então se faz o “Pai nosso” e reza a reza de se levantar, a noite reza a reza de se deitar que é uma reza muito fácil, esse tipo de reza eu posso ensinar a reza pra se levantar posso ensinar, só não posso ensinar as rezas que reza nas pessoas, porque se eu ensinar não serve, mas para mim (Raimundo, 2021). A fala dos(as) entrevistados(as) confirma a ideia inicial de que cada rezador(a) tem sua própria maneira de benzer, notamos que enquanto a benzedora Francisca não costuma usar música o benzedor Raimundo prefere saber a religião da pessoa para que então ele saiba como prosseguir. Ele faz isso, pois algumas pessoas não acreditam nos ritos por conta de sua religião. E acabam procurando os(as) benzedores(as) como uma alternativa para tratamento. Quando perguntados sobre os objetos que usam para benzer e quais suas respectivas funções, o benzedor Raimundo disse: “só uso as folhas né. As folhas, folhinhas porque tem que benzer com aquelas folhinhas que é pra poder tirar o mal que está em cima daquela pessoa. Tem que rezar com as folhinhas” (Raimundo, 2021). 175 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira Quanto ao mesmo questionamento a benzedora discorre: Eu uso a vassourinha que é uma planta que é pra tirar as coisa ruim, eu uso o pião roxo, pião roxo tira qualquer espírito, qualquer coisa ruim que a pessoa tem, só que aí tem que saber fazer na pessoa pra não pegar no outro que tá do lado quando tá tirando. Só uso planta e algumas vezes eu preparo não é porção porque a gente não e bruxa, um remédiozinho que é pra tirar quando a pessoa tá ruim, algo como se fosse uma água benta (Francisca, 2021). A partir das respostas dos(as) benzedores(as) observamos a importância das plantas como o pinhão-roxo e vassourinha no ato de benzimento e a finalidade delas dentro deste processo, além de outros objetos como velas, bebidas, chás e ou garrafadas que eles mesmos produzem. Pelas respostas de ambos os(as) entrevistados(as) vemos que o mais comum é o uso das plantas e da água benta na hora dos rituais de benzimento, isso porque acredita-se que os ramos das plantas usadas têm o poder de absorver a enfermidade que acomete a pessoa que está sendo benzida. E a água benta serve para benzê-la para que o mal não a acometa mais, e pode ser usada para beber,assim ela pode agir de dentro para fora. No que diz respeito ao uso de símbolos que são utilizados durante o benzer e seus significados, a benzedora Francisca respondeu: “símbolo eu não uso muito é mais o sinal que é o sinal do pai nosso que é pra tirar, em nome do pai, do filho e do espírito santo que a gente coloca Deus acima de tudo” (Francisca, 2021). O benzedor afirma: O sinal da cruz, se faz o sinal da cruz, reza primeiramente o pai nosso, pra começar a oração que vai se jogar naquela criatura. E o pai nosso né, assim em nome do pai do filho do espírito santo amém. Assim de proteção, se reza faz em nome do pai do filho do espírito santo amém, se benzeu, aí seria o pai nosso, depois do pai nosso vai rezar a oração que para aquele tipo de doença (Raimundo, 2021). Mediante as palavras dos(as) entrevistados(as) constatamos que ambos não costumam fazer outro símbolo além do sinal da 176 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... cruz, pois, eles acreditam que é o sinal da cruz que atrai proteção e repreende a enfermidade que acomete a pessoa doente, logo, é essencial utilizá-lo durante o ato de benzer. Como mencionado anteriormente os(as) benzedores(as) fazem uso de plantas durante a benzeção, com o intuito de compreender como se dá o processo de escolha das plantas e ervas utilizadas perguntamos como eles escolhem as plantas. O benzedor Raimundo disse que: “É sempre a vassourinha o pião-roxo senão tiver na área a gente pode pegar qualquer matinho o importante é que ele esteja seco, três galhinhos pra rezar em qualquer pessoa” (Raimundo, 2021). A benzedora corroborou: Dependendo de como a pessoa tá, se for no caso da vassourinha é quando ela tá muito doente, a gente usa vassourinha que é pra tirar, que já veio de antigamente, a vassourinha ela é uma planta usada só pra benzer. Então a gente usa a vassourinha quando ela tá doente, quando vem com energia negativa é a planta do pião roxo que é pra tirar espíritos ruim que a gente chama. Vassourinha pra doença, pião-roxo pra tirar energia negativa (Francisca, 2021). Pode-se notar que o estado que a pessoa a procurar o(a) benzedor(a) se encontra é de suma importância, haja vista, que cada situação exige um tratamento diferente, então o(a) benzedor(a) vai adaptar a sua reza de acordo com a necessidade da pessoa a ser benzida. Perguntados há quantos anos praticam o benzimento e quantas pessoas já foram benzidas por ele/a, Francisca disse: “difícil dizer a quantidade de pessoas que benzi, são muitas, não dá pra saber, estou há anos seguindo esse meu dom” (Francisca, 2021). Já o benzedor relatou que: Eu tinha 12 anos de idade quando eu comecei a rezar, agora tenho 66 é um bom tempo, eu sou chamado para muitos e muitos cantos [...] É difícil saber e é difícil mesmo de eu saber, porque é milhares eu tenho 66 anos de idade, e eu tenho rezado em milhares de pessoas, é muita coisa tem dia que me vejo sufocado ali no condomínio eu olho e está o multidão de gente (Raimundo, 2021). 177 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira Desse modo, devido ao longo tempo que ambos praticam a benzeção não conseguem quantificar com números exatos quantas pessoas já foram atendidas. Um outro ponto que destacamos em suas falas é a alta procura por atendimento que eles mencionam, ambos relembram que há dias que atendem mais de uma pessoa, o benzedor do sexo masculino aponta que tem dia que tem uma grande fila de pessoas esperando o atendimento. Buscamos saber se com o passar dos anos os(as) benzedores(as) modificaram a sua forma de benzer, a respeito disto, o benzedor discorreu: Não senhora. Sempre e do mesmo. Toda vida eu comecei a rezar nas pessoas do jeito e ainda é daquele jeito. A modificação vamos supor e o tipo da doença, porque tem tipo de doença e qualquer vento caído se reza no corpo, a mãe do corpo da mulher a reza no umbigo. Então é assim. As diferenças só e essas mesmos. A desmentidura é nos braços, que dizer que tem que ajeitar os braços as pernas a diferença só é essas mesmo (Raimundo, 2021). Quanto ao mesmo questionamento a benzedora respondeu: Com certeza, no início é só oração do pai nosso e o interessante que eu não falei que conforme a gente vai fazendo a oração vai vindo outras orações na cabeça, não dá nem para te explicar por que dependendo de como a pessoa tá, aí vem, como é que tu tens que fazer com ela, como fazer e vai benzendo até tirar (Francisca, 2021). Por meio das respostas notamos discrepâncias, pois enquanto o benzedor Raimundo relata que não modificou a sua prática com o passar dos anos, a benzedora Francisca por sua vez, afirma que as orações vão surgindo em sua mente e tudo prossegue de acordo com a situação da pessoa enferma. Ao pedirmos para que os benzedores descrevessem o que é ser benzedor(a), a entrevistada disse que: Para mim hoje em dia, agora, é tudo né, que a umbanda é minha vida, benzer e ajudar alguém que está precisando para mim é tudo, como diz um hino da umbanda, que a umbanda é 178 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... amor, é caridade e quando a gente sabe que tá fazendo o bem pro outro se sente bem, para mim umbanda e benzer para mim é tudo (Francisca, 2021). Em sua resposta o benzedor afirmou: Para mim significa como a pessoa me tratar com respeito, chamar “Doutor” como eu sou conhecido só basta falar que é seu Doutor. Ah! Doutor, porque a fé que as pessoas têm em mim e na benzeção é muita, ela já me chamou de doutor e eu já rezo e já fica bom (Raimundo, 2021). Ambos reforçam a importância de seu papel na sociedade, que é ajudar o próximo, fazer o bem sem olhar a quem, seja com um aconselhamento, com a indicação de um remédio, uma benção, uma reza. Perguntados se já sofreram algum preconceito por serem benzedores(as), seu Raimundo respondeu que: Não senhora, até o presente não, eu gosto de dizer diretamente ao público e a minha família, nunca sofri isso, não senhora ser reprovado, nunca graças a Deus. Sempre sou gabado aonde eu chego as pessoas me gabam e é como lhe digo sou chamado de Doutor, em qualquer canto que eu chegar, rapaz Doutor Mesquita, eles têm muita fé em mim. Nunca foi desaprovado, pessoas me desconsiderar por eu viver rezando assim, sempre passa gente assim lá comigo pra entrevista assim, estudante sempre me passa sempre dizendo orientando, porque e muito bom as pessoas terem orientação, as pessoas não têm vindo que é importante a senhora me procurar (Raimundo, 2021). A benzedora corroborou dizendo: Eu em si não sofri, mas eu sei que na minha religião, a religião que eu sigo é, ainda tem, ainda existe muito preconceito por achar que é só macumba, então eles costumam dizer que nós somos macumbeiros e ai eu costumo falar que eu sei o que quero e o que acredito então não deixo nenhum tipo de gente me rebaixar né, mas eles por achar que umbanda é macumba, por a gente ser macumbeiro a gente sofre esse tipo de preconceito (Francisca, 2021). 179 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira O relato dos(as) entrevistados(as) traz conforto ao saber que não sofreram preconceito pelo ofício que praticam, entretanto, as palavras da benzedora Francisca demonstram que por fazer parte de uma religião de matriz africana sofreu episódios de preconceito. Quanto ao repasse da prática do benzimento para outra pessoa, a benzedora disse: Não, ainda não porque eu não sou especialista em benzer, eu creio que tem pessoas que já vieram só com esse dom são eles que tem que entregar e ensinar essa prática, no meu caso como eu sou mãe de santo eu abro coroa para pessoas médiuns que esse dom já veio com eles então eu só o aprimoro, eu não passo o meu, ele já tem o dele eu só ensino (Francisca, 2021). O benzedor Raimundo mencionou: “Ainda não, quem sabe mais pra frente né, de verdade não tive essa chance ainda sabe, por hora eu só benzo mesmo, do jeito que falei pra senhora por aqui onde fico todos os dias, venho sem falta, faça chuva ou faça sol, sempre estou aqui para ajudar– (Raimundo, 2021). Mediante aos relatos dos benzedores notamos que eles ainda não repassaram seus ensinamentos adiante, no entanto, no caso do benzedor Raimundo, este diz estar disponível para ensinar aqueles que possuírem o dom para esta prática. No caso da benzedora Francisca, ela realiza um trabalho de apoio como Mãe de Santo e auxilia as pessoas – médiuns – que buscam aprimorar seus dons mediúnicos, através deste apoio ela ajuda as pessoas a aprenderem a lidar com seus dons. O relato dos/as entrevistados/as demonstra a satisfação e a alegria que ambos têm em poder ajudar as pessoas através de seu dom, que para praticar o bem e ajudar as pessoas que estão sendo acometidas por alguma enfermidade eles não medem esforços, estando sempre disponíveis para auxiliar, não importando o dia ou a hora. Desse modo, e diante dos relatos podemos afirmar que os benzedores desenvolvem uma importante função e através dos simples versos que eles proferem expressam sua fé e compartilham o seu dom, contribuindo na proteção e no processo de cura das pessoas enfermas que os procuram. 180 A arte de benzer e seus processos de (re)construção a partir do olhar dos curandeiros... E acima de tudo os benzedores configuram-se como guardiões da memória (SILVA, 2009), através de todo o conhecimento que possuem. Entretanto, é importante mencionarmos que se trata de uma prática que está se perdendo com o passar dos anos, pois, muitos benzedores falecem sem que ninguém faça nenhum relato de seus conhecimentos ou ainda sem repassá-los a outras pessoas. Considerações Finais Na sabedoria popular a arte do benzer ou de curar é compreendida como uma forma de ritualização da fé. Esta prática é mais uma das heranças dos povos indígenas que com o passar dos anos sofreu influências dos africanos e da religião católica que foi trazida ao Brasil pelos portugueses. Diversas culturas têm a crença de que a oração fortalece a alma e nósaproximasse de Deus. Na crença popular são os benzedores que tratam das enfermidades, entretanto eles sempre reforçam que são apenas instrumentos neste processo, pois, a cura é uma obra de Deus e que o próprio Jesus é quem lhes ensina as orações (Nery, 2018). Hoffmannn-Horochovski (2012) menciona que cada benzedor possui um jeito único de conceber sua prática, entretanto, eles têm um comum alguns gestos e símbolos cultuados no cristianismo, como o sinal da cruz, orações e rezas que são ditas em forma de sussurro. Por anos as práticas da medicina popular eram a única forma de tratar e prevenir doenças. Ainda que atualmente a medicina hospitalar tenha tido avanços significativos no que se refere à prevenção e tratamento de doenças, o benzimento segue sendo uma alternativa procurada. Nas periferias dos grandes centros urbanos ou nas cidades interioranas é onde a medicina popular segue resistindo com mais força. Assim com o passar dos anos as práticas inerentes à medicina popular foram sendo readaptadas ou ainda recriadas, isso deve ser atribuído ao fato de que tudo é dinâmico e vivemos em um mundo em constante mutação, e a benzedura não ficou de fora deste processo. Certeau (1994, p. 05) corrobora: “o homem inventa o cotidiano graças às artes de fazer, astúcias sutis, táticas 181 Adriana Nonato Braga e Cristiane da Silveira de resistência pelas quais se altera os objetos e os códigos, se reapropria do espaço e do uso a seu jeito”. Cabe frisar que os(as) benzedores(as) se configuram como guardiões da medicina popular e que seus conhecimentos carecem de mais registros e estudos como este. Haja vista, que esta seria uma forma de salvaguardar estes saberes para que as gerações futuras tenham o conhecimento da importância desta prática. No entanto, o que notamos a partir desta pesquisa que é uma preocupação, é que estes saberes e fazeres se percam com o passar do tempo, pois, muitos benzedores já faleceram e as novas gerações não têm demonstrado muito interesse em aprender sobre o benzimento. Com isto, caso não haja novos benzedores ou pesquisas que registrem essas práticas a mesma corre o risco de ser extinguida e se perder e com isso será perdida uma parte de nossa cultura. Referências Bibliográficas CABROLIÉ, Souza Augusto. Tefé e a cultura amazônica. Instituto Paulo Freire.Carimbo chaves: São Paulo, 1996. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. EphraimFerreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. CUNHA, Manuela Ivone; DURAND, Jean-Yves. Razões de saúde e política do corpo. Introdução. 2011. Disponível em:<http://repositorium.sdum.uminho. pt/bitstream/1822/11887/1/Raz%c3%b5es%20de%20Sa%c3%bade-Intro_ Cunha%2cDurand.pdf>. Acesso em junho de 2021. FIGUEIREDO, B. G. 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