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A Aventura dos Museus

Abstract

Palestra proferida no Io. ENCONTRO DE MUSEUS DO MERCOSUL, São Miguel das Missões -RS, outubro de 1995.

MUSÆ - Consultoria e Produção Cultural A AVENTURA DOS MUSEUS MARIA DE LOURDES PARREIRAS HORTA Palestra proferida no Io. ENCONTRO DE MUSEUS DO MERCOSUL, São Miguel das Missões - RS, outubro de 1995. Introdução Estamos aqui reunidos, neste primeiro Encontro de Museus do Mercosul, promovido pelo IPHAN, através de sua 12a. Coordenação Regional e do Museu Imperial de Petrópolis, RJ, e com o apoio do Comitê Brasileiro do ICOM, para discutir, refletir e propor idéias sobre o papel e a missão dos museus nas diversas regiões e países envolvidos nas diretrizes e propostas do Tratado que criou o MERCOSUL. A integração destes países para a formação de um mercado comum, de acordo com a tendência mundial de formação de grandes blocos político-econômicos, pressupõe a abertura das fronteiras comerciais entre estes países, e a livre circulação de bens e produtos, a parceria nos processos de produção e o intercâmbio de tecnologias. Não é preciso ser economista, político ou sociólogo para perceber a importância e a profundidade das transformações que afetarão o cone sul, e por reflexo, a todo o continente latino-americano no decorrer deste processo. Não basta ser economista, político ou sociólogo, entretanto, para se poder prever o rumo e a natureza destas transformações, ou para determinar as conseqüências desta integração na história e na cultura de nossos povos. A abertura das fronteiras econômicas não ficará restrita à construção de mais uma dezena de “Pontes da Amizade”, por onde deverá escorrer o fluxo das mercadorias nas malas dos turistas felizes ou nos caminhões de carga. Os futurólogos já não tem mais credibilidade nos dias de hoje, e já não há como recorrer a mecanismos de previsões estatísticas, como aqueles que costumam anunciar, com algumas semanas de antecedência, quem vai ganhar as eleições... De uma coisa, entretanto, podemos estar certos - a integração econômica provocará a abertura de outras fronteiras, além das alfandegárias, e levará sem dúvida à abertura das fronteiras sociais e culturais. Do mercado de bens de consumo passaremos ao mercado das trocas simbólicas, que tão precisamente analisou Pierre Bourdieu. Os meios de comunicação, as redes eletrônicas e cibernéticas, os contatos pessoais e institucionais, o intercâmbio de técnicos e especialistas nas mais diversas áreas da produção e do conhecimento, se encarregarão de acelerar este processo. Num percurso natural e inevitável, os grandes rios que sempre foram caminhos de circulação de bens e produtos, de riquezas e de almas, na grande Bacia do Prata, transbordarão de suas margens físicas para ampliar suas margens culturais. Os terrenos banhados por essas novas águas não ficarão imunes à inundação inevitável, com maior força e volume de elementos e informações, de detritos e sedimentos das culturas de toda a região afetada. Uma inundação que pode ser fertilizadora, como as cheias do Nilo, mas que também pode levar de roldão os espécimens mais frágeis das sociedades e povos que, desavisadamente, em sua solidão pacífica e inocente, não se prepararem para enfrentar a correnteza. O grande mercado do sul não se limitará portanto à troca de toneladas de soja, de carros, de geladeiras ou de maionese, mas implicará, sem dúvida, num imenso mercado de almas! Não é preciso dizer para historiadores, arqueólogos, museólogos, arquitetos, técnicos do patrimônio, cientistas sociais e educadores aqui presentes, que a cultura material, do passado ou do presente, nem sempre é o reflexo direto do comportamento humano, em suas relações com a realidade. Como propõe Ian Hodder, o arqueólogo britânico que formula novas abordagens para a interpretação do passado, os objetos e testemunhos da cultura material refletem, antes, as transformações do comportamento humano, em face das mudanças que ocorrem na realidade. Entre as pessoas e as coisas estão as idéias, as crenças, os significados, o modo como nos relacionamos com os fenômenos e com as mudanças na vida social. O modo como o enterramento reflete uma determinada sociedade vai depender do modo como ela se relaciona com a morte. Durante muito tempo acreditou-se que a similaridade estilística entre objetos de diferentes culturas aumentava a medida em que a interação entre os povos era maior. Hodder (1986) observou, em seus estudos, que em alguns casos de fronteiras étnicas, quanto mais interação entre os povos, menos similaridade estilística ocorria. É possível assim generalizar-se, como propôs Hodder (1979) uma “lei” já incorporada à “Nova Arqueologia”, de que a distinção na cultura material é correlata ao grau de reciprocidade negativa entre os grupos. Assim, quanto mais competição entre grupos, mais marcadas as fronteiras de sua cultura material. Aplicada ao contexto e à realidade que se anunciam hoje para nós, no cone sul, esta lei, se válida, pode nos ajudar a antecipar o que ocorrerá no processo de produção cultural, como conseqüência das transformações e da integração previstas. Neste caso, é possível imaginar que o risco da homogeneização e da pasteurização, como hipótese, está afastado. Caberá entretanto aos nossos sucessores, no próximo milênio, realizar a “leitura” dos vestígios do nosso presente, para interpretar os resíduos que deixamos de nossa cultura de hoje, não como um reflexo direto de nossas relações e intervenções na realidade, mas como um reflexo indireto de nossas atitudes em relação às transformações ocorridas em nosso contexto social, econômico e cultural, decorrentes de um Tratado diplomático e político assinado pelos governos de nossos países. Os arqueólogos, os museólogos, os etnólogos e os antropólogos do futuro só terão como referência aquilo que lhes deixarmos como patrimônio, em nossas cidades e campos, em nossos museus, arquivos e bibliotecas, em nosso subsolo e em nosso meio-ambiente. Talvez possamos, entretanto, ajudá-los nesta tarefa, que podemos começar hoje, com este Encontro, deixando-lhes algumas anotações sobre como imaginamos poder nos comportar, em relação a estas mudanças e aos fenômenos e processos delas decorrentes; como as transformações culturais poderão nos afetar ou já estão nos afetando, e como pretendemos nos comportar em relação aos produtos, materiais e imateriais, de nossas culturas, nos museus e fora deles. Poderíamos assim começar por analisar como nos relacionamos hoje, uns com os outros, e como abrir as fronteiras que ainda nos separam, com que atitudes, com que propostas, com que intenções, com que objetivos, com que estratégias e ações. Aprofundando a questão, poderíamos enfocar, no âmbito desse Encontro de Museus, como nossas instituições estão se relacionando com a realidade em seu entorno, que fronteiras, reais ou artificiais existem em sua relação com as comunidades, que tipo de comportamentos e atitudes demonstramos em nosso relacionamento com os diferentes grupos sociais e culturais em que nos inserimos. Num terceiro nível de abordagem e investigação, podemos ainda questionar nossa relação, ou nossa visão do fenômeno museológico, o conceito e o significado que atribuímos a estas instituições, e como nos situamos no processo acelerado de transformação por que passam os museus em nosso continente e em todo o mundo. É possível analisar nosso comportamento, neste processo inexorável de mudança, e o que estamos fazendo para contribuir com ele ou para retardá-lo, para o bem ou para o mal. De que modo estamos abrindo as fronteiras da nossa ortodoxia e da nossa mente, em relação ao papel, à função e à missão dos museus em nossos contextos sociais, econômicos e políticos? De que modo estaremos nos comportando em relação às atitudes que os outros, fora dos museus, possam ter em relação a eles e a nós mesmos? Que tipo de idéias, crenças e conceitos temos sobre a natureza de nosso trabalho e de nossos objetos e coleções? Já vai longe o possível relatório que poderemos deixar aos que nos sucederão, para alimentar suas elucubrações e discussões sobre quem e como éramos nós, e sobre o significado, passado e futuro, de um Tratado das Missões, assinado pelos profissionais de todas as áreas então presentes a este célebre Encontro. É possível que o diário, ou as cartas que escreveremos durante esta semana, sejam encontrados pelo navegante imaginado por Umberto Eco, o único ser humano que naufragou num navio deserto. Quem já leu este enigmático livro do último grande semiólogo da nossa era, poderá concordar com a idéia de que o personagem que procura desvendar o mistério de um navio à deriva, cheio de objetos e de bichos empalhados, pode ser a imagem do último museólogo que sobreviveu ao naufrágio das velhas instituições, e que por ter desaprendido a nadar e a olhar para a luz do dia, foi condenado a viver na obscuridade a nunca chegar à ilha do dia anterior. Jamais conseguirá chegar, assim, ao momento em que estamos hoje, em terra firme, a tentar definir o roteiro de uma longa viagem para o futuro. Tratemos pois de explorar a nossa ilha, e se necessário, alguns séculos anteriores ao nosso, para entender onde chegamos. A longa viagem dos museus Para traçar novos caminhos e itinerários de viagem, precisamos de mapas de orientação, de cartas geográficas e astronômicas que nos situem no ponto em que estamos agora. Para conseguirmos analisar a nossa relação com o contexto atual, para definir as ações possíveis e as possíveis mudanças de rota, comecemos por examinar o terreno abaixo dos nossos pés. O que está abaixo de nossas cadeiras é um vasto campo de enterramento de uma cultura que sucumbiu a mudanças, impostas há mais de 200 anos atrás, por um outro “Tratado”diplomático e político, fundamentalmente econômico, assinado muito longe daqui. Podemos começar nossa investigação com algumas perguntas: -que tipo de relação temos nós com os indivíduos que produziram estes resíduos e cuja poeira de ossos já se misturou com esta terra? - se acreditamos que temos alguma coisa a ver com esses povos, é confortável continuar sentados, tranqüilamente, sobre eles? -em que medida os fragmentos e as ruínas que preservamos hoje, com tanto empenho, nos revelam o modo de relação desses povos que aqui viveram com sua própria cultura e a cultura dos outros que vieram de longe? - de que maneira estes resíduos nos revelam o comportamento desses indivíduos, jesuítas e guaranis, em relação às transformações impostas ao seu contexto de vida de maneira arbitrária e acelerada, e o modo como reagiram a elas? - de que maneira estas transformações estão marcadas e indicadas nestes fragmentos e resíduos? - se nada disso pode ser deduzido da análise desses testemunhos, porque preservá-los? - de que modo a história das reduções jesuítico-guaranis pode ter relação com a história dos museus, e pode nos fazer entender, hoje, a natureza de nossas instituições, de sua trajetória, de nosso trabalho e de nossa missão? Não vou responder a essas perguntas aqui, nem pretendo responde-las por vocês. Até porque não seria capaz de fazê-lo tão facilmente. Quanto à última questão, atrevo-me a arriscar algumas idéias... Algumas anotações sobre como se passou da coleta do mundo à coleta dos homens- sobre as ligações perigosas da História com a Economia, e sobre as relações de parentesco do fenômeno das Missões com o fenômeno dos Museus Jacques Hainard, o museólogo da ruptura, diretor do Museu Etnográfico de Neuchâtel, na Suiça, e etnólogo por formação, publicou a alguns anos uma coletânea de ensaios intitulada “Collections- Passion” (1982), um guia de idéias para acompanhar a exposição com o mesmo título realizada em 1982, naquele Museu. Na introdução deste catálogo, ele nota, ou observa, que já é tempo do “observador observar a própria observação” (cit.Evrard, 1981-82). Entre os ensaios que analisam as diferentes formas e os aspectos intrínsecos à paixão de colecionar, encontramos um texto de Daniel Defert, da Universidade de Paris VIII. Neste trabalho, o autor enfoca o estudo dos relatos de viagem do século XVI ao XVIII. A análise feita nos permite estabelecer um paralelo e uma explicação da natureza dos museus e de sua longa trajetória, ao longo do tempo, movida pela paixão do colecionismo e da acumulação. É possível assim buscar, nas origens do fenômeno museológico, a explicação de alguns de seus comportamentos e atitudes ainda hoje arraigados em sua essência institucional e em sua prática profissional, e que tem relação com o modo de ver o mundo dos homens daquela época. Explicações e modos que podem nos ajudar a entrever as relações do fenômeno missioneiro com o nosso trabalho de hoje, em nossas instituições e museus, e a perceber o nosso próprio modo de “ver o mundo”, cujo modelo revela uma notável capacidade de permanência. A antropologia jamais assumiu a literatura considerável dos relatos de viagem como sua “pré-história”, comenta Defert, apesar de que Lévi-Strauss tenha considerado a “História de uma viagem feita à Terra do Brasil”, como o “breviário do etnólogo”. O considerável corpus desses relatos, publicados regularmente nas principais línguas européias entre o século XVI e o século XVIII, não constituem propriamente um gênero literário, como os livros de viagem dos escritores do século XIX. Constituem antes um conjunto de discursos, regulados por múltiplos saberes: astronomia, arte marítima, arte militar, história natural, teologia, direito; e um conjunto de práticas determinadas por estratégias econômicas, políticas e religiosas. Não constituem assim um gênero, como diz Defert, mas uma “formação cultural”, ou melhor, uma “região de cultura, do saber e das práticas que o constituem e que nele se apoiam”; uma formação cultural, que por sua contribuição e seus efeitos de relativismo crítico, exerceria um pouco a função de nossas ciências humanas, ao mesmo tempo em que, por suas implicações economico-politicas, poderia ser comparada a um saber tal como a “sovietologia”.(Defert,1982:17). Historicamente, diz o mesmo crítico, a viagem, o gabinete de curiosidades (ancestrais, como sabemos, dos nossos museus) e o trabalho de campo prevaleceram, cada um por sua vez. Neste processo, não é apenas o conteúdo das observações feitas e registradas que muda, mas o próprio princípio de produção e organização das informações que se modifica. Para se compreender o regime de observação desta literatura de relatos de viagem é preciso buscar as técnicas constitutivas da arte de viajar. Técnicas que, curiosamente, e não por acaso, podem ser detectadas no arcabouço dos museus tradicionais, em seu modelo clássico. O conjunto destes relatos de viagem descreve o planeta como era então conhecido; já não se confunde mais com os compêndios do saber cosmográfico, produzidos na Idade Média. Nesses compêndios, a prática científica era essencialmente uma atividade de sistematização. Como o eram também, à sua maneira, os gabinetes de curiosidades dos príncipes renascentistas, e os primeiros museus. A partir das viagens de descoberta, é a viagem em si mesma que constitui uma prática, uma “instituição científica”. A viagem não é mais o meio de se chegar ao terreno de um saber possível - ela é o suporte de um saber, seu motor, o lugar de levantamentos sistemáticos, de observações celestes e marítimas e de recolhimento de amostras da flora, da fauna e da humanidade; o modo de escrituração dessas amostragens é a descrição e a crônica circunstanciada, cujo registro funciona como “ato notarial”, observa Defert (1982:18). Não seria difícil aplicar esta definição à trajetória dos museus até os dias de hoje. O capitão, o médico de bordo, o padre e o notário, os missionários linguistas e naturalistas, todos elaboram seus diários e registros. Para se prepararem para sua missão, eram especialmente treinados para a viagem - o que era chamado de “prudentia peregrinandi”. E aprendiam especialmente as “linguae peregrinae”: línguas necessárias à atividade de viajar, e de se comunicar com povos desconhecidos – como, por exemplo, o latim, língua peregrina para um japonês convertido, o japonês, ou o guarani, linguae peregrinae para um missionário jesuíta. A questão da comunicação coloca-se então como requisito primeiro para o cumprimento da missão que orienta a viagem. Coleta-se o mundo e coletam-se as gentes, com uma intenção e uma metodologia precisas - quase museológicas, poderíamos dizer. Jean de Léry descreve com a mesma minúcia a travessia do Atlântico como a sua estadia entre os Tupinambás, na Guanabara, e os dois acontecimentos tem para ele a mesma importância e o mesmo significado antropológico e teológico (id.82:18). Cristóvão Colombo decifra ao mesmo tempo as algas boiando nas ondas como indícios de profundidade das águas e de aproximação da terra, as constelações no céu como indicadores de posição, as cicatrizes nos corpos dos índios como sinais de sua belicosidade e os anéis de ouro que eles trazem, como indícios da existência das minas. A atividade de decifração dos sinais e índices, na semiologia da navegação, não se faz por mera curiosidade. Corresponde e obedece a uma intenção, a um cronograma e a um planejamento estratégico. Que intenções, que estratégias determinam essas práticas? Quando o rei de Portugal determina o empreendimento da circunavegação da África em direção ao Oriente, não o faz por mero capricho ou lance de ousadia - a expedição marítima se torna uma aventura política. A investigação e a coleta, a observação e o registro minucioso, em fichários sistematizados, a conservação das coleções, nos grandes museus que se estabelecem a partir do século XVIII, não estão longe de obedecer às mesmas intenções, às mesmas estratégias. As grandes viagens de descoberta se encarregaram de deixar-lhes um grande legado de coisas, espécimes, ideias e práticas. A “imago mundi” que passa a ser construída nos museus é um reflexo da “imago mundi” que começa a ser delineada pelos mapas e relatos das navegações e seus troféus de conquista - do mundo e dos homens. Imagens fragmentadas e particularizadas, intercaladas de terras incógnitas, mas definidas a partir daquilo que se vê e do que se recolhe, e que é considerado, a princípio, a verdade, ou uma forma particular de verdade. “Vejo”, logo “existe”, parece ser o lema pré-positivista dessas empresas, pensando aquilo que existe de acordo com seus modos particulares de ver o mundo. Os armadores privados participam da empresa, mas o suporte logístico dos governos é imprescindível. Os relatos de viagens tem quase sempre a função de documento dirigido ao cliente - “itinerário de uma descoberta, iniciação à conquista, reivindicação de apanágio”, comenta Defert em seu estudo, colocando a viagem de descoberta em algum ponto entre as cruzadas medievais e a organização do Laboratório - uma maneira possível de entendermos hoje as missões jesuítico-guaranis, cruzadas de salvação dos gentios contra o fogo do inferno e a cobiça dos vizinhos, laboratórios de observação e de experimentação administrativa e social. Utopia também sonhada por muitos museus, que se tomam por “salvadores da pátria” das culturas ameaçadas, e laboratórios de estudo de seus resíduos, salvos graças a nós do desaparecimento, após a morte inevitável daquelas culturas (... sobre o que, lamentamos, nada podemos fazer...). O quadro de produção dos relatos das grandes viagens de descoberta/ conquista teve para Defert mais peso na história da Humanidade do que toda a Antropologia até hoje produzida (id. 82:19). Antes da Antropologia, o que existia era este saber organizado, coerente, eficaz, produzido por estruturas de dominação inigualáveis. Os esquemas de organização desses textos permitem-nos discutir, como demonstra Defert, os esquemas de dominação aos quais eles correspondem (id.,82:19). A intensa atividade de edição destes relatos é um dos suportes do imperialismo cristão do século XVI, como um elemento da cultura política da época. Linhas de ruptura e transformações nesta cultura política vão determinar a autonomização de um discurso específico que passa a descrever algumas sociedades extra europeias. O saber empírico sobre os povos do mundo começa a ser transcrito e difundido, constituindo-se ao mesmo tempo em objeto de curiosidade e em jogo político, econômico, jurídico e teológico. A retórica específica do gênero é a narração. Os relatos tem a forma de crônica de acontecimentos sucedidos a alguém, ou a alguns, representantes de um rei ou de uma fé. Diários de bordo, relatos de viagens, crônicas de martírios: indivíduos, monarcas e o próprio Deus estão envolvidos nesta historia. A organização dos saberes do mundo na Idade Média justapõe medidas, cálculos, dados astronômicos e descrições sob a forma de citações ( Plínio, Estrabão, Isidoro de Sevilha) misturadas a histórias mitológicas, fábulas, etimologias, referências bíblicas... sobre cada parte da terra, ofereciam a soma das coisas ditas; o Ymago Mundi de Pierre d’Ailly, que Cristóvão Colombo levou consigo e anotou em sua primeira travessia do oceano é uma das produções mais bem elaboradas deste período. As crônicas das descobertas recebem um modo novo de organização: a coleção de relatos, e não mais a imagem organizada da terra e do céu. Os esquemas astronômicos e os elementos discursivos se separam. O saber matemático se concretiza em instrumentos: bússolas, astrolábios, esferas armilares, relógios cada vez mais complexos. O que libera o espaço do livro para a narração: a descoberta pode assim se apresentar como “História”. Com a ajuda da imprensa, o mundo passa a integrar a Biblioteca, oferecendo-se assim a uma nova manipulação que vai determinar o estatuto e a função das informações recolhidas pelos viajantes (Defert, 1982:20). A descrição do mundo não é mais uma soma, mas torna-se uma narração, partindo do diário de bordo para adquirir formas romanescas, como a Peregrinação, de Mendes Pinto, ou as Cartas Edificantes e Curiosas dos Jesuítas (id. 82:20). Mas esta sucessão narrativa de acontecimentos não é uma forma livre de descrição - o relato deve obedecer a um percurso obrigatório, segundo uma ordem regular e muito antiga, que pode se reportar ao século XIII, com o relato de viagem à Mongólia de du Plan Carpin. Nele se indica a acessibilidade do sítio geográfico, as produções agrícolas, a alimentação e o vestuário, a apresentação do soberano local com os rituais de corte, que permitem a avaliação de sua autoridade, a religião. Esta regularidade, afirma Defert, evoca sem dúvida uma arte da memória, uma matriz mnemológica de origem seguramente administrativa, que todo viajante formado deve conhecer. É interessante notar que uma ordem diferente foi seguida por Marco Polo- iniciado na administração mongol, ele anota sistematicamente as coisas segundo uma ordem característica dos relatos de viagem dos peregrinos chineses. A “imago mundi”, como se depreende aqui, passa a ser determinada de acordo com a cabeça dos administradores, e não mais dos cientistas, dos teólogos ou dos filósofos. Os povos descobertos não são submetidos a uma análise de sua coesão interna: eles são expostos a um inventário! O mesmo modelo que se perpetua poderá ser encontrado nos relatórios das expedições etnográficas dos séculos XIX e XX, em suas atividades de pesquisa nas colônias europeias da África e da Ásia, e nos países da América Latina. Modelo que determina, indiscutivelmente, a atividade e a prática específica dos grandes museus (e dos menores, por imitação e decorrência), alguns mantendo seus próprios territórios e missões de estudo. A representação do indígena tem o valor de uma enumeração, em que os caracteres físicos, a nudez e o vestuário, o instrumento de guerra e o instrumento de paz, a produção agrícola e natural, a fauna e a flora, deviam ser memorizados. Alguma coisa de muito parecido com as páginas dos livros que recebemos nos primeiros anos escolares. Se Hans Staden descreve um banquete antropofágico, as instruções para a coleta dos espécimes naturais e humanos nas expedições etnográficas do século XIX quase que ilustram a mesma cena. Vejamos o que diz o manual do famoso professor de craniologia clínica, formado na escola de Cuvier, e titular, durante a segunda metade do século XIX, da cadeira de antropologia e de etnologia no Muséum francês, Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau: “Entre os objetos mais fáceis de se encontrar e de transportar, citaremos em primeira linha as amostras de cabelos e de barbas. Não se deverá negligenciar qualquer ocasião de recolher cabeças em osso de origem bem autêntica. Se as circunstâncias o permitirem, dever-se-á se juntar às cabeças esqueletos inteiros ou ao menos o osso da bacia.[...] Amostras de peles de dez a doze centímetros quadrados, tomadas das diversas regiões do corpo e colocadas no álcool teriam um grande interesse para o estudo das raças coloridas”(1875: 257-58). Como na obra de Hans Staden, a organização cronológica da narrativa (História) e o quadro de inventário (Descrição) são os dois grandes eixos que dividem as observações. Um modelo básico que divide as atividades museológicas até os dias de hoje, distinguindo-se a Narrativa (exposição, História, cronologias) e a Descrição (inventário analítico, classificação, documentação). Estamos mais próximos de Hans Staden do que pensávamos e o hipertexto que prepararemos para fazer o CD Rom do nosso museu pode ser facilmente adaptado para descrever as aventuras do audacioso alemão, sem grandes problemas além da reprodução dos sons e do movimento... Como afirma Daniel Defert em seu trabalho, inventário e narração colocam em jogo duas grandes semiologias que se originam em um único e bem definido projeto de dominação. Nessas descrições, não são as paisagens que importam, nem as sociedades nelas referidas, mas apenas entidades específicas que só tem sentido para uma estratégia diplomática: a beleza de uma baia é sua amplidão para receber uma flotilha; a majestade das árvores garante a reparação dos mastros, a afabilidade e as cicatrizes dos selvagens falam de possibilidades de ocupação e de guerra; os banquetes de acolhida são decifrados como rituais de corte - abundância de pratos e de mulheres indicam territórios férteis para férteis alianças. Mais tarde, nos séculos XVII e XVIII, as inúmeras descrições de costumes e hábitos servirão para definir as formas da sociabilidade comercial (Defert, 1982:23). Esta língua política universal, decifráveis por todos e bem conhecida por viajantes e diplomatas, funcionava também nas cortes europeias, nos rituais das cortes, nas etiquetas e protocolos... através deles se poderia facilmente compreender as hierarquias, os conflitos, as relações de poder; graças a estes códigos podia-se entabular negociações políticas, discussões comerciais, alianças e trocas, formular e assinar Tratados. É esta língua, ou códigos da diplomacia universal, que os viajantes trazem com eles, e que utilizam para fazer suas observações. Mas havia ainda um outro princípio, diferente daquele usado por Cortez no México ou pelo Padre Ricci na China, nas suas análises das transações sociais que lhes permitem chegar ao Imperador. O olhar do confessor é diferente. A penetração religiosa exige um saber específico sobre os povos a serem convertidos (id. 82:23). Um saber apaixonado por sua intimidade. “Batizar, inculcar uma crença, um estilo de vida e de esperança, uma sexualidade, confessar, controlar a ortodoxia, supõe técnicas e saberes distintos dos procedimentos próprios à dominação política, mesmo numa época em que o poder político e o poder religioso estavam ainda imbricados (id. 82:24).Assim, o poder político pode inculcar sua própria língua; o poder religioso precisa aprender os segredos da língua indígena para pregar e confessar o maior número possível de almas.(id.82:24). Armado com textos da Escritura e manuais como o “Itinerarium Missionarum” de Focher, o missionário deve realizar um interrogatório de parentesco, para saber os laços de consanguinidade entre os indígenas e suas várias esposas, os ritos, as trocas que acompanharam seus casamentos; estes mesmos instrumentos servirão ao missionário para dizer ao indígena adulto e polígamo que ele pretende batizar, que será preciso romper todos os laços salvo um, que será validado. A análise do parentesco é um dos primeiros saberes sobre os “povos étnicos”, isto é, os “pagãos”, que a análise estratégica não requeria. Enquanto Cortez converte, em sua rota de conquista, alguns chefes nativos, através de sua estratégia diplomática, derruba seus ídolos e lhe faz prometer renunciar aos sacrifícios humanos, esta estratégia não produz nenhum saber sobre a religião desses povos; mas quando o padre franciscano Bernardino de Sahagún adverte os missionários que os índios já praticavam a confissão, e que é preciso conhecer os traços distintivos desta confissão para não se deixar macular a prática cristã por qualquer analogia suscitada por Satanás, já se está produzindo um “saber” sobre os indígenas. Para Cortez, um padre indígena pode tornar-se um padre cristão- um sacerdote é sempre um sacerdote. Para Sahagún, a coisa não se passa assim, e o essencial está precisamente nas diferenças entre eles... é preciso desconfiar, por trás das eventuais similitudes, de um principio totalmente diferente. Até mesmo da presença do Outro, por excelência, ou melhor, do Diabo (id.82:24). A observação das sociedades torna-se assim um capitulo da demonologia. Com que paixão a extirpação exaustiva do mal constitui a etnografia e o monumento de uma civilização, afirma Defert em seu trabalho. O inventário da diferença tem por base a vontade de conquista espiritual. O ato civil da conquista produzia homologias; a semiologia religiosa, ao contrário, produziu o olhar de estranhamento das sociedades, a vontade de definir as suas diferenças (id.82:25). Se a vontade específica da conquista espiritual está na base do saber que chamamos hoje a antropologia, não foi nesta direção que este saber se autonomizou. Para compreender esta autonomização, é preciso considerar o destino publico e político da literatura de viagens e de missões. As coleções dos relatos e a construção das identidades regionais A literatura das viagens chegou até nós graças a uma intensa atividade de coleção. Para quem quiser fazer um estudo da história da descrição das sociedades, é indispensável o estudo desta imensa literatura descritiva, que demonstra, em diferentes momentos, as maneiras de descrever os países que eram descobertos. “Vemos hoje em dia coisas maravilhosas”, começava, citando o Evangelho, a série talvez mais antiga de todas, de Valentim Fernandez, publicada em Portugal em 1502, e dedicada ao senhor Dom Manuel. Na mesma coleção traduzia-se para o português Marco Polo, a Viagem às Índias de Nicolo de Conti, redigida para o Papa no século XV. Esta série foi o início de uma dúzia de outras, publicadas em diferentes capitais européias ao longo do século XVI. Estes escritos vão abalar, inapelavelmente, a imagem ptolomaica do mundo e sua interpretação bíblica. Cada país constitui sua coleção, e as principais são a inglesa e a italiana. O conhecimento do mundo é um elemento indispensável à diplomacia europeia e cada novo relato é imediatamente traduzido pelas potências comerciais da época; para a assinatura de seus tratados de “paz”, que implicam geralmente a redistribuição dos territórios colonizados, visando o equilíbrio dos poderes nos quatro cantos do mundo, a literatura de viagens é um auxiliar fundamental. Não é apenas para fins políticos que esta literatura vai ter importância. Através dela, os termos “cristão” e “cristianização” começam a ser substituídos pelas palavras ‘europeu’ e “civilização”. Segundo Defert,(82:26), é nesta literatura que a Europa toma consciência de si mesma, se escreve e se lê cada vez mais como o princípio de um processo planetário e não mais simplesmente como uma região do mundo. A construção das identidades nas diferentes regiões do velho e do novo mundo, e as diferenciações entre elas, com a afirmação de umas sobre outras, inicia-se neste corpus de relatos descritivos e concretiza-se tridimensionalmente no corpus das coleções reais e principescas de seus museus e bibliotecas, que acumulam as ‘provas’ de tudo o que foi dito nos textos. A história e a prática dos museus podem igualmente ser ‘lidas’ com base nos mesmos princípios. À imagem ordenada do mundo medieval, organizada pelos cosmógrafos, substituem-se assim as “Relações Universais”, como a de Botero, no fim do século XVI: “Relazioni universali di totto il mondo allora conoscito, confrontandone le constituzione politiche e consizioni religiose, territoriale e economiche”. Tal relato demonstra claramente dois processos que se constituem então: a integração dos relatos de viagem numa coleção de vocação comparativa, e por outro lado, a passagem da concepção medieval de um Estado Universal teocrático, à representação de entidades políticas singulares que se repartem o mundo. Sabemos onde estes dois processos levarão as visões de mundo que se desenvolvem a partir de então. As coleções de viagem tornam-se um princípio explícito de classificação das regiões do mundo e dos saberes sobre o mundo. Os museus transformam-se em laboratórios destes sistemas e em depósitos destes saberes. É importante notar que as práticas e técnicas de descrição não se limitarão aos novos mundos descobertos, mas são aplicadas ao conhecimento dos próprios países europeus ou próximos a eles, utilizando-se as mesmas categorias: a descrição da Síria e da França, de Guillaume Postel, professor de “línguas peregrinas”, é um exemplo disto. Descrições heterogêneas em seu conteúdo, mas coerentes em sua finalidade, os relatos de viagem e as relações universais vão configurar uma parte importante da ‘literatura política’ da época. A estatística do mundo A partir desta nova função política, as informações contidas nas coleções de viagem passam a receber, no curso do século XVII, um novo tratamento, relativamente subterrâneo, como diz Defert (id. 82:28), de que só conhecemos os efeitos. Este tratamento é de natureza reservada, de gabinete, com vistas à constituição de uma ciência política. Não se trata mais aqui de estabelecer os fundamentos jurídicos da autoridade de um rei sobre os territórios conquistados, mas de elaborar um ‘saber sobre as coisas’ necessário às práticas administrativas. Uma vasta nação agrícola e pouco povoada pode ser governada da mesma forma que uma pequena nação marítima superpovoada? Que peso tem cada um destes fatores empíricos na forma do governo, e para as finalidades que um governante pode se propor? Estas questões foram dirigidas ao enorme material recolhido nos relatos, num tipo de empresa de um ‘naturalista de Estado’. Outros, como o inglês William Petty, abordou estas mesmas questões como aritméticos das proporções, em sua ‘Aritmética Política’. Os alemães vão preferir a ‘Estatística’, descrição sistematizada dos Estados, com vistas à sua administração, num trabalho de coleção de descrições e num método de classificação das informações. Temos aqui uma mutação importante, como indica Defert: pela primeira vez uma reflexão sobre os conhecimentos necessários ao exercício racional do governo vai se organizar no quadro da atividade universitária. Naturalmente, a prática da colonização foi desde as origens sustentada pelos saberes universitários - jurídicos, teológicos e linguísticos (os espanhóis deram o exemplo e Francisco 1o. criou uma cadeira de Matemática e Línguas Peregrinas, em 1538. O conhecimento das sociedades do mundo, a partir dos séculos XVII-XVIII, passa a ser tratado não apenas como um saber indispensável a uma técnica de governança, mas também como uma ‘Wissenschaft”, com o status e a dignidade de uma ciência. O “Thesaurus Rerum Publicarum”, publicado em Genebra por Oldenburg, analisa os países do mundo segundo uma sistemática que não tem nada a ver com os relatos de viagem anteriores. As informações relatadas pelos viajantes são divididas de acordo com uma grade que era tradicional no saber universitário da época, principalmente nas universidades alemãs do século XVIII, uma grade herdada do pensamento escolástico. Assim, eram analisadas - como ‘causa materialis’, o território e a população de um país; - como ‘causa finalis’, o objetivo perseguido pelo Estado; - como ‘causa formalis’, a natureza da sua constituição; - como ‘causa efficiens´ ‘principalis’, o príncipe; ‘instrumentalis’, o gabinete, a moeda. Desde então, aquilo que não entra nesta codificação “estatístico-escolástica”, vai se autonomizar sob um novo registro, bem distinto, de descrição: ao lado das informações que interessam a uma causalidade política regulamentada, aparece a descrição que tem a ver com a pura naturalidade: a geografia, a astronomia, a história natural das espécies animais, vegetais e humanas; os idiomas e as raças ai também encontram seu lugar. Trata-se, no caso, de descrever “a Terra” (id.82:29). A “Estatística Universal”, de J. Ch. Beckmann, “Historia Orbis Terrarum”, ilustra esta nova organização dual das informações tiradas das coleções anteriores. Sua obra é dividida em duas “histórias’: Historia Geographica e Historia Civilis (‘Historia’ no sentido de descrição). Temos assim uma relação inversa entre a análise estatística e a observação naturalista: quanto mais um povo demonstrará uma organização ‘estatal’, ‘estado’ designando a unidade do território, de uma sociedade, de um governo - menos será objeto de uma observação naturalista. E inversamente, menos um povo oferece à análise estatística, mais ele poderá ser decifrado no modo de uma história naturalista. Uma mutação profunda tem lugar na grade política de observação que ‘naturaliza´ a percepção de alguns povos da terra, à medida em que a administração estatal substitui a administração de corte. Os homens da `Staatistik` aplicam sua grade sobre países e regiões cada vez mais numerosas. Este esforço continuo de retratamento dos dados de viagens leva à consolidação de saberes acadêmicos cada vez mais distintos e especializados. Politização da apreciação dos dados, por um lado, naturalização, do outro. É neste momento que a história dos grandes museus, continuando a servir de ‘causa instrumentalis’ ao exercício da dominação e da competição pelo poder do mundo, afasta-se na prática e na sua direção da preocupação com a ‘Historia Civilis’, e assume cada vez mais a ‘Historia Geographica’, ou ‘Naturalis’. Advogando uma vocação puramente científica e ‘cultural’, o exercício da museologia, a partir do final do século XVIII, é marcado por um discurso filosófico e enciclopédico, que se propõe objetivo e inocente. As relações universais e os inventários descritivos sistematizam-se cada vez mais, e as expedições de pesquisa intensificam-se. As ‘instruções’ aos colecionadores, profissionais e amadores, organizam a produção etnográfica da imagem dos povos ditos ‘primitivos’, e elaboram um novo protocolo para os relatórios de viagens dos museus, na descoberta dos tesouros do mundo. Bem antes da integração dos povos na dramaturgia do evolucionismo, como sugere Defert, alguns deles foram ‘naturalizados’ na medida em que não ofereciam dados suficientes para a análise ‘estatal’- povos que não eram sequer dignos da Estatística, como dizia o estatístico francês Donnant. Esta longa peregrinação, ou viagem pelos relatos dos viajantes do passado, pode nos fornecer muitos dados para chegarmos ao ponto de partida. Observar a própria observação foi o conselho de Jacques Hainard, que citamos na introdução a esta palestra. No momento em que estratégias econômicas, políticas e administrativas desenlaçam-se em tratados diplomáticos que visam equilibrar os poderes dos quatro cantos do mundo, é necessário observar de que modo os museus, na América Latina, e mais especialmente no cone sul, estão percebendo as implicações destes processos na vida coletiva de nossas populações, algumas ainda não ‘dignas de Estatística’. Se uma vez fomos ilhas paradisíacas e exóticas, em um dia anterior, parafraseando Umberto Eco, hoje nos propomos, a partir de um novo contexto político e econômico, a construir pontes de integração e a abrir nossas fronteiras, a esquecer as cicatrizes do passado, provocadas por espadas que não foram nossas, mas que ainda conservamos em nossos museus, juntamente com bandeiras esfarrapadas e ensanguentadas. A abertura de fronteiras é um convite às viagens, e os museus foram feitos para acumular as coletas de muitas viagens, de muitas expedições. Que tipo de relato estaremos escrevendo, a partir destas expedições de conhecimento e de intercâmbio? Qual a grade investigatória e analítica que estaremos aplicando como roteiro de nossas empresas culturais? A que comanditários estaremos servindo, ao realizar os nossos inventários e relatos minuciosos, que ficarão registrados não mais em livros de bordo ou de tombo, mas na memória de computadores? Qual a ‘causa finalis’ de nossas missões? Ao embarcar nesta nova aventura, museólogos, arqueólogos, historiadores e etnógrafos, pesquisadores de todas as áreas do conhecimento, arquivistas, agentes de preservação e especialistas em inventários precisam estar imbuídos da antiga ‘prudentia peregrina’, e avaliar cuidadosamente as consequências e os usos de seus trabalhos, no curso das transformações que estarão ocorrendo. Sabemos que o olhar do observador influencia o campo observado, e pode interferir nele por sua simples presença. Se acreditarmos que nossa missão vai um pouco além dos inventários e das descrições sistematizadas, de classificação e de registro das homologias e das diferenças, precisamos nos preparar para a viagem, começando por aprender uma nova ‘língua peregrina’, que nos permita o diálogo e a interação. A ‘Declaração de Caracas’, formulada em 1992 pelos representantes dos museus da América Latina reunidos pela UNESCO e o ICOM regional, propõe uma nova visão dos museus como instrumentos de comunicação, a serviço dos interesses e do desenvolvimento das comunidades. Vinte anos depois da Mesa Redonda de Santiago do Chile, que formulou o conceito do ‘museu integral’, como proposta para uma ‘nova museologia’, o texto de Caracas propõe um novo desafio para os museus: um museu ‘integrado nas comunidades em que atua, como parceiro em sua trajetória, em seus conflitos, em seu processo de mudança. Um museu com uma função específica, como meio de comunicação entre os indivíduos, seu patrimônio e suas comunidades com outros indivíduos e outras comunidades . E não só entre estas esferas, mas entre as esferas da cultura e da política, do mercado, da produção e da decisão. Como fazer isto é uma questão de aprendizado, de experimentação e de descoberta. Os modelos antigos já não nos servem, como os relatos de viagens do passado, que hoje são raridades bibliográficas e objetos de estudo para compreensão da herança que recebemos. Novos modelos terão de ser criados, específicos para cada contexto cultural. Não pode haver um museu igual a outro, pois museus são instrumentos, e não entidades imortais e imutáveis. Um museu será aquilo que faremos com ele, e será o produto daquilo que faremos. A aproximação não significará, em nosso contexto, a similaridade, a homogeneização de práticas e conteúdos, mas como foi dito antes, pelas leis da Arqueologia pós-processual, quanto mais próximas as fronteiras mais serão definidas as características e os estilos da produção cultural. Isto só pode tornar o encontro de nossas culturas e de nossas instituições mais rico e mais fértil Se nada podemos fazer em benefício daqueles que estão hoje sob os nossos pés, há dois séculos de distância, devemos nos perguntar o que podemos fazer hoje em benefício das culturas vivas de nossas terras, como ajudá-las a compreender o processo histórico das mudanças e como podem se relacionar com essas mudanças, sem perder a dignidade e a esperança. Se os museus de nossa região não forem capazes de oferecer às pessoas um roteiro para a aventura em que embarcamos todos, por vontade própria ou não, não restará outro destino aos profissionais que a eles se dedicam: o de se tornarem náufragos em navios desertos, como o personagem da ficção, eternamente à procura da ilha do dia anterior. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Defert, Daniel, 1982 - “La collecte du monde - Pour une étude des récits de voyage du XVIe. au XVIIIe, siècle” , in Hainard,J. e Kaher, R., COLLECTIONS PASSION, Musée d’etnographie, Neuchâtel, Suiça. Hainard, Jacques, 1982 - Collections Passion, Museée d’Etnographie, Neuchâtel, Suiça. Hodder, Ian, 1986 - Reading the Past, Cambridge University Press. Eco, Umberto. A Ilha do Dia Anterior. Aventura dos Museus 15