Luiz Gonzaga: Traduto da Discursividade de Nordeste
Jurema Mascarenhas Paes
É possível ser Tupi - portanto índio no Brasil - e tocar um instrumento
europeu tão antigo, tão refinado como o alaúde. Nada é inconciliável, nada é
incompatível, mesmo se a mistura é por vezes dolorosa, como lembra
Macunaíma. Não é porque o alaúde e os tupis pertencem a histórias
diferentes que eles não podem se encontrar na pena de um poeta ou no meio
de uma aldeia indígena administrada pelos jesuítas. (Gruzinski, 2001:28)
A música, assim como os outros objetos da cultura que se desenvolveram no
Brasil, possui um caráter mestiço, e a música de Luiz Gonzaga, personagem central
deste artigo, não poderia ser entendida de forma diferente ou fora desse raciocínio. A
mestiçagem cultural questiona conceitos e
instituições trazidos de outras tradições,
especialmente a racionalista européia, com:
[...] a multiplicidade artística, a relação ímpar entre modernidades e
tradicionalismos, os sincretismos étnicos e religiosos, as políticas de
favorecimento pessoal, as apropriações privadas dos espaços e serviços
públicos, a instabilidade democrática, a complexidade das estruturas sociais,
a permissividade ética, uma moral constantemente flexibilizada e pluralizada,
a prática cultural da tradução, a criatividade, as rítmicas musicais inusitadas
com acentos deslocados, os personagens de perfil mutante das narrativas, as
“identidades” constantemente em xeque, os perfis culturais indefinidos, as
adaptações dos padrões teórico-científicos e das ideologias e muitas outras
formas denominadas híbridas. (Vargas, 2007:186).
Esse potencial híbrido e mestiço, às vezes questionador e caótico, às vezes
apaziguador e cordial, esteve presente em muitas manifestações e também na música.
Perceber o caráter híbrido e mestiço da música de Gonzaga é atentar para o processo
histórico-cultural da formação dessa música, para os movimentos de junção, atritos e
mesclas das linguagens, e não apenas para os elementos que a constituíram. É atentar
para a dinâmica, a relação, as conexões entre as forças, as estratégias que estiveram
subjacentes às características estéticas e simbólicas dos discursos construídos.
É a partir da análise dessas relações que se pode afirmar que a música de
Gonzaga, embora muito próxima da visão e da linguagem tradicionalista e política da
região onde ele nasceu, a região Nordeste, no sentido discursivo, se fez e emergiu
enquanto linguagem estética, enquanto forma no entre-lugar campo-cidade, enredada às
estratégias de sobrevivência de milhares de migrantes. Portanto, mesmo permeada de
saudade, permanências e resistências perante a mudança, ela foi movediça, pois se fez
no campo da vivência, entre concessões e atritos, se transformando de acordo com a
lógica embrionária fluida, não-linear, da mestiçagem.
A construção musical-simbólica de Gonzaga não foi resultante de uma
sobreposição, quando situações periféricas invadem os centros, ou quando formas nãoclássicas destronam as clássicas, mas de “estruturas internas e externas [que] se
fecundam mutuamente” (Pinheiro, 2007:13). Sua música é fruto dessa relação fecunda
entre o dentro (os variados tipos de música que entroncam tradições e
contemporaneidades nos instrumentos, nas letras, na voz, na dança, no gestual, no
cotidiano) e o fora (diálogos entre os corpos e as séries culturais em acontecimentos
urbanos e rurais), entre o campo e a cidade, entre o arcaico e o moderno, entre o
periférico e o hegemônico, entre as inter-regionalidades. É fecunda às relações de
negociações e conflitos, de atrito e fluidez que permearam a sua existência e sua vida
cotidiana, cheia de contradições.
Gonzaga foi um dos primeiros artistas de massa da era do rádio e, como tal,
marcou a história da música brasileira pela genialidade com que fez conexões em
circularidade entre cultura popular, erudita, cultura massiva e tecnologia. Ele gravou
choros, valsas, tangos, mazurcas, sambas, Fox-trotes e inúmeros outros gêneros
musicais.
Por meio da canção (letra e música) ele expressou alegria, tristeza, frustração,
mandou recado, falou da fauna, da flora, dos costumes e das relações humanas no
campo e na cidade. As canções de Gonzaga exprimiam a manifestação direta das coisas,
pessoas, pássaros, natureza, sapos, a cultura oral dos vaqueiros, cangaceiros, padres e
coronéis, o roçado, o cavalo, a sanfona, as memórias. As letras se encaixavam
perfeitamente dentro das divisões rítmicas, nas quais consoantes e vogais eram
colocadas de forma percussiva enredadas ao tecido melódico, dando liga ao processo
dançante, de celebração ou de protesto, proposto por sua música, que circulava entre o
sagrado e o profano, o canto de festejo e de trabalho.
Ele fez da sua tradução um discurso oral-táctil representante da região rural
nordestina. Tal discurso foi um daqueles percebidos e editados, dentro do processo de
unidade nacional proposto pelo suporte rádio e pelo Estado, para representar o Brasil
nacional rural nordestino, que passou a simbolizar a tradição e as permanências, que
tinha como ponto de confluência em sua emersão a maior migração nordestina na
década de 1950.
Gonzaga foi um artista que “bebeu no folclore” e o adaptou aos padrões e gostos
urbanos da época em que viveu de forma dinâmica. Ou melhor, ele, em sua tradução,
ressignificou o folclore e a tradição1, por intermédio do rádio, em convivência com
novas formas de expressão musical e tecnológica.
Relevar-se-á de passagem que a tarefa do tradutor, confinada no duelo das
línguas [...], dá lugar somente ao esforço criador, e quando o tradutor ‘cria’, é
como um pintor ‘copia’ sem ‘modelo’. O retorno da palavra ‘tarefa’ é
bastante notável, em todo o caso, por todas as significações que ele tece em
rede, e é sempre a mesma interpretação avaliadora: dever, dívida, taxa,
contribuição, imposto, despesa de herança e sucessão nobre obrigação, mas
labor a meio caminho da criação, tarefa infinita, não acabamento essencial,
como se o presumido criador do original não estivesse, ele também,
endividado, taxado, obrigado por um outro texto a priori tradutor. (Derrida,
2002:62)
Do processo de ebulição criativa até a tradução dos gêneros e de outros objetos
de criação, o cotidiano do artista foi dinâmico na luta pela sobrevivência e na
formatação das suas estratégias e práticas. Como colocou Gilberto Gil:
Luiz Gonzaga fez com a música nordestina que era até então folclore, coisas
das feiras, dos cantadores, ao nível da cultura popular não massificada, não
industrializada - exatamente o que João Gilberto fez com o samba [...]. (Gil
2009:191-192)
Em outras palavras, Gilberto Gil quis dizer que Luiz Gonzaga renovou,
transformou, traduziu a música “nordestina”, para que a mesma fosse amplificada pelo
rádio, ampliando o seu campo de memória. Dando continuidade ao seu depoimento,
Gilberto Gil aborda a qualidade de artista da cultura de massa atribuída a Gonzaga:
Uma coisa bacana no Luiz Gonzaga [...] foi o reconhecimento de que Luiz
Gonzaga foi também possivelmente, a primeira coisa significativa do ponto
de vista da cultura de massa no Brasil, talvez o primeiro grande artista ligado
à cultura de massa, tendo a sua atuação vinculada a um trabalho de
propaganda, de promoção. Nos idos de 51-52, ele fez um contrato fabuloso,
de alto nível promocional, com o colírio Moura Brasil, que organizou
excursões de Luiz Gonzaga por todo o Brasil. (Gil, 2009:191-192)
Gilberto Gil desdobrou de uma maneira muito clara o processo de urbanização e
modernização por que a música de Luiz Gonzaga passou mediante a tradução do mesmo
e o processo de capitalização dessa música via a publicidade.
A sua produção artística pode ser entendida dentro da perspectiva de tradição
inventada e reinventada. Gonzaga foi produto típico da mestiçagem brasileira,
negociante de símbolos, códigos e territórios. Um mulato pernambucano de ascendência
cabocla e rural, criado entre o som da sanfona de oito baixos de seu pai, Januário, que
1
Tradição aqui é pensada como “[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas
de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico
apropriado [...]. Consideramos que a invenção das tradições é essencialmente um processo de
formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado”. (Hobsbawn, 1984:XX).
também consertava e afinava o instrumento, e as novenas de sua mãe, Santana, em meio
aos repentistas nas feiras do interior, ao aboio dos vaqueiros, nos sambas de latada e
cocos, nas festas juninas, ouvindo cantos de trabalho, as bandas de pifes, o som do trotar
de cavalos e mulas, os sapos no brejo, o canto dos pássaros, os fogos de São João, sem
falar da literatura de cordel ouvida em recital nas feiras do Nordeste e de toda a cultura
oral que circulava no território rural de onde ele veio.
Sua música tem uma ligação com diversas temporalidades e geografias e,
sobretudo com o cotidiano. Na geografia rural brasileira, Gonzaga foi se estabelecendo
como dono de um discurso produtivo tradicionalista e, como tal, foi sendo tratado
enquanto manifestação folclórica, porque estava próximo das permanências do passado
colonial. Luiz Gonzaga amoldou signos rítmicos, melódicos, harmônicos, lingüísticos,
vocais e corpóreo-táteis no movimento fecundo entre referências da cultura oral
nordestina, referências urbanas e a referência nacional-popular e tecnológica do rádio e
do disco.
Foram muitas as possibilidades que se abriram a Gonzaga a partir do momento
em que o artista chegou ao Rio de Janeiro, em 1939, e essa gama de possibilidades foi
sendo apreendida e absorvida por ele. Mas Gonzaga já trazia consigo da região Nordeste
outras marcas que ele mesmo apresentou na letra da música Pau de Arara (Luiz
Gonzaga/ Guio de Moraes, 12/05/1952, Maracatu, RCA Victor), na qual descreve os
elementos da cultura nordestina que trouxe na bagagem:
Quando eu vim do sertão,
seu môço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei
Trouxe um triângulo, no matolão
Trouxe um gonguê, no matolão
Trouxe um zabumba dentro do matolão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matolão.
A linguagem poética da letra da canção mostra-se contagiada pela vivência
humana. O compositor descreve na letra o drama de milhares de sertanejos que
migraram para os centros urbanos nos caminhões paus-de-arara, transporte que se
popularizou na década de 1950, momento de maior movimento migratório nordestino.
Embora a letra esteja na primeira pessoa, Gonzaga não viajou de pau-de-arara para o
Rio de Janeiro. Ele chegou à então Capital Federal de navio, ainda em 1939. Desse
modo, fica claro na composição a intenção de se referir ao migrante nordestino da
década de 1950, quando a música foi gravada, evidenciando o intuito de falar da vida
desses migrantes, para os mesmos.
Na letra, o compositor enumera os instrumentos musicais percussivos (triângulo,
gonguê e zabumba) trazidos na bagagem do migrante e presentes na formação
instrumental que Gonzaga apresentou ao Brasil: o trio nordestino (sanfona, triângulo e
zabumba). Cabe notar ainda que tais instrumentos são fundamentais para a concepção
sonora das células rítmicas características dos ritmos a que ele, na sequência, faz
referência: xote, maracatu e baião.
Os instrumentos percussivos e os ritmos citados são uma amostra da música
nordestina gestada na conexão entre o passado e o momento de êxodo das populações
rurais para os centros urbanos, representando o caminho que a música popular do
Nordeste percorreu do campo para a cidade, onde o processo histórico anunciou o entrelugar entre tempos e espaços enquanto territórios de emersões simbólicas, portanto,
espaços de saberes e poderes.
A música de Gonzaga está envolvida por todas as suas vivências entre o campo e
a cidade, em um processo fecundo e imprevisível.
A complexidade das mestiçagens e a desconfiança que provocam talvez
decorram dessa ‘natureza’ caprichosa que, com freqüência, transforma seus
inventores em verdadeiros aprendizes de feiticeiros arrastados para os
caminhos mais imprevisíveis. Fenômenos sociais e políticos, as mestiçagens
manobram, na verdade, com tal número de variáveis que confundem o jogo
habitual dos poderes e das tradições, escapolem das mãos do historiador que
as persegue. [...] Essa complexidade também tem relação com os limites que
a mistura cruza num determinado momento de sua história, ou porque se
transforma em realidade nova, ou porque adquire uma autonomia imprevista.
(Gruzinski, 2001:304).
Podem-se entender as traduções de Gonzaga sob a lógica dinâmica em que
formas mestiças foram se apropriando do processo estético musical, assim como
ocorreu em outras regiões e momentos, desde o período colonial.
Baião: gênero e festa
As festas populares e a música no Brasil foram sendo gestadas desde o período
colonial, quando cantos ritualísticos indígenas, batuques africanos e músicas
portuguesas, francesas e espanholas (sacras e de liturgia, como o canto gregoriano)
passaram a negociar territórios, gestos, sons, melodias, ritmos e modos musicais.
Muitos foram os ritmos e gêneros musicais no Brasil que foram criados dentro do
contexto coletivo, em festas e festejos, ao sabor da bebida e do erotismo, dos corpos no
movimento da dança, abrindo espaço para o improviso do músico como estratégia para
fazer a música dar liga ao movimento dos corpos, em um processo interativo e
comunicativo.
O universo da música formal, escrita, representada pelas partituras, era, em
geral, subvertido em meio aos bailes e as danças no salão, na rua, nas praças, em
ambientes fechados ou abertos. A música era envolvida e se recriava por meio da dança
em ambientes festivos, e a dança se refazia por meio da música. O improviso se fazia
presente nas melodias, harmonias e ritmos.
Ponha-se uma mulata a movimentar seus quadris ao alcance coreográfico de
um dançarino, e todos os presentes produzirão os ritmos adequados, com as
mãos, em caixote, em uma porta, na parede. (Carpentier, 1988:221).
A polca, por exemplo, é uma dança e um ritmo que chegou ao Brasil pelo viés
do colonizador, para entreter as classes mais favorecidas. Aos poucos, foi sendo
absorvida pelas classes menos abastadas (levada pelos homens da elite para os cabarés),
sofreu modificações, incorporou outros sotaques, sonoridades, formas de tocar, acentos
rítmicos, geografias, segmentos sociais, e às vezes se transformou em outros ritmos e
gêneros, num processo epistemológico móvel e não-cumulativo. Paulatinamente, esse e
outros ritmos trazidos pelos colonizadores europeus começaram a se misturar e tomar
novas formas e nomenclaturas.
A cultura não pode ser vista como um projeto cumulativo na direção de um
coroamento linear no futuro, mas como uma rede de conexões entre séries,
cuja força de fricção e engaste ressalta a noção de processos dentro de sua
estrutura. Daí a importância de se mostrar como certos processos
civilizatórios têm o seu modo de conhecimento fundado numa especial
relação material entre séries culturais concretas que constituem, ao mesmo
tempo, relações entre sistemas e subsistemas de signos. (Pinheiro,
Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem. Disponível em:
http://barroco-mestico.blogspot.com. Acesso em: 17 jan. 2009)
Essa lógica também funcionou com o xamego, o baião e o forró, gêneros
polêmicos em seus processos criativos, em suas emersões e em suas definições estéticotextuais, assim como com muitos outros gêneros musicais brasileiros. O mundo do
forró, do baião, da música que se denominou nordestina, mais do que informação
lúdica, festiva, entretenimento e folclore, foi luta por territórios simbólicos, por espaços
de saber e de poder. O baião, assim como tantos outros gêneros musicais brasileiros,
teve e continua tendo por definição o movimento, os descentramentos, a mestiçagem, a
fusão e a adaptação de elementos provenientes de várias fontes. Pode-se notar a
continuidade desse movimento:
Quando eu falo de baião, eu ponho todas as tendências que têm em volta do
baião. Tem que modernizar. Aí Luiz Gonzaga tem uma música: Qui nem Jiló.
Tem uma harmonia, os acordes que ele fazia naquele tempo. E o baião... Se
Luiz Gonzaga estivesse aqui presente, ele tocaria moderno. Quando cheguei a
São Paulo, eu era apelidado pejorativamente como um cara que só tocava
baião. Aí eu falei para os músicos que hoje querem tocar baião, mas não
sabem porque não quiseram aprender, por preconceito: o baião é a música do
futuro, porque nos dá a oportunidade de usar várias tendências em volta dele.
- Depoimento prestado ao jornalista Assis Ângelo, na presença de Carmélia
Alves por Hermeto Pascoal. Foi levado ao ar parcialmente no programa “Tão
Brasil”, da al TV, na noite de 25 de outubro de 2006, e repetido no dia
seguinte. (Ângelo, 2006:171).
Pode-se observar o processo constitutivo da cultura mestiça como originário de
um processo em “contaminação” atravessado pela memória do passado, ressignificando
o presente daqueles que, inseridos dentro de seus processos, traduziram e recriaram
novos elementos, de acordo com novas possibilidades e necessidades. Dentro dessa
lógica podem-se traçar as genealogias do baião, do forró, do xaxado, do siridó, do trio
nordestino, da zabumba e de uma série de objetos da cultura. Essas genealogias não são
lineares, elas se encontram dentro da trajetória entre vida e arte, entre regional e
nacional, entre colonial e pós-colonial, entre campo e cidade, entre dança e música e
festa, entre o sagrado e o profano, trajetória esta em que a concessão e o conflito são
fatores predominantes.
O baião, durante o século XIX, no norte brasileiro, podia ser considerado uma
dança, que também era chamada ou entendida como sinônimo de baiano ou rojão.
Dança popular muito preferida durante o século XIX no nordeste do Brasil.
Falando sobre as danças escreveu Rodrigues de Carvalho: “No norte do
Brasil ciranda, são Gonçalo, maracatu, rolinha-doce-doce, o baião, que é o
mais comum entre a canalha e toma diversas modalidades coreográficas”. O
mesmo que baiano. O mesmo que rojão. Pequeno trecho musical executado
pelas violas nos intervalos do canto no desafio. (Cascudo, 1972:110)
E essa dança tinha a seguinte performance:
Bateu rente no terreiro com as mãos para trás, recuou, pé atrás, pé adiante,
pisou duro, estirou os braços para frente, com a cabeça curvada e estalando as
castanholas nos seus dedos rijos fez uma roda de galo que arrasta asa e tira
uma dama. Esta sai empinada para adiante, dando castanholas para os lados.
Outro dançador, dizendo que o baião precisa ser de quatro junta-se àquela e
tira uma dama. Os dois pares executam volteados, trocam de damas e
repetem as figuras. (ÂNGELO, 2006. p.9).
Humberto Teixeira citou algumas das referências do “baião urbano” criado ou
reinventado por ele e Gonzaga: “Estrofes de Rogaciano Leite... O balanceio de Lauro
Maia... A viola do cego Aderaldo...” (Tinhorão, s/d:210). Ou seja, o baião estilizado por
ele e Gonzaga é uma amalgamação que teve como referências a poesia de cordel, o
balanceio (ritmo) e a batida da viola executada pelos cantadores repentistas nos
momentos de intervalo do canto, batida esta em que o ponteado da viola preenchia o
espaço entre uma estrofe e outra, cuja forma de cantar era recitativa e monocórdia,
sendo o baião a única sequência rítmica e melódica dentro do repente.
Luiz Gonzaga fez a seguinte colocação sobre o processo criativo do baião junto
a Humberto Teixeira:
Quando toquei um baião pra ele. Saiu a ideia de um novo gênero. Mas o
baião já existia como coisa do folclore. Eu tirei do bojo da viola do cantador,
quando faz o tempero para entrar na cantoria e dá aquela batida, aquela
cadência no bojo da viola. A palavra também já existia. Uns dizem que vem
do baiano. Outros que vem da baía grande. Daí o baiano saiu cantando pelo
sertão deixou lá a batida e os cantadores do nordeste ficaram com a cadência.
O que não existia era uma música que caracterizasse o baião como ritmo. Era
uma coisa que se falava: Dá um baião ai... Tinha só o tempero, que era o
prelúdio da cantoria. É aquilo que o cantador faz, quando começa a pontilhar
a viola, esperando a inspiração. (“O eterno Rei do Baião”. Veja. São Paulo,
15 de março de 1972. In: Tinhorão, s/d:210).
Gonzaga, em letra de música, reconheceu também a relação do baião com o
balanceio:
Uma peixeira, um gibão, um chapéu de couro
vale um tesouro
vale um tesouro
Mas o gemer de uma sanfona num balanceio
Então isso é baião
E baião por si só é tesouro e meio
Oi, baião, faz a gente lembrar e esquecer
Oi, baião, traz saudade gostosa de ter
Um triângulo, uma sanfona, um zabumba
Uma cabrocha baionando num balanceio
Quanto vale?
Tesouro e meio
Baião tesouro e meio, lançado em disco gravado pela RCA
Victor, em 1951. (Tinhorão, s/d:210).
Em sua tradução criativa Gonzaga percebeu a riqueza do trecho musical da viola
no repente (ritmo e melodia) e o transpôs para a sanfona. Na sanfona de 120 baixos, a
melodia minimalista feita pelo tocador na viola ganhou harmonia, volume e uma
dimensão rítmica mais chacoalhada e dançante.
Dessas intertextualidades em contaminação emergiram outros textos sonoros que
ele batizou como xamego, baião, forró, entre outros. Textos estes que considerou como
ritmos e gêneros musicais.
O baião, que era o dedilhado da viola ou a marcação rítmica feita em seu bojo
pelos cantadores de desafio entre um verso e outro, também conhecido como
baiano, vai ser fundido com elementos de samba carioca e de outros ritmos
urbanos que Gonzaga tocava anteriormente. Ele vem atender à necessidade
de uma música nacional para dançar, que substituísse todas aquelas de
origem estrangeira. Daí sua enorme acolhida num momento de nacionalismo
intenso, fazendo-o freqüentar os salões mais sofisticados em curto espaço de
tempo. O baião será a “música do nordeste” por ser a primeira que fala e
canta em nome dessa região. Usando o rádio como o meio e os migrantes
nordestinos como público, a identificação do baião com o nordeste é toda
uma estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta
sensibilidade regional que havia emergido nas décadas anteriores.
(Albuquerque Júnior, 1999:155).
Em referência específica à trajetória da música baião, lançada por Gonzaga e
Humberto, e suas possíveis mesclas, coloca-se:
[...] “Baião” apresenta o ritmo, com forte ênfase da síncope do segundo
tempo, e ensina como dançá-lo, ao mesmo tempo em que convida o ouvinte a
aderir à novidade, tudo isso sobre uma melodia cheia de sétimas maiores,
semelhante às cantigas de cantadores do nordeste. A bemolização da sétima
nota do acorde apresentaria o devaneio de um possível elo entre o baião e o
blues, mas na verdade remete ao ancestral mouro da música nordestina. A
nostalgia, a possibilidade de improviso, a tendência constante de caminhar
em busca da tônica e de bemolizar as terças, a quinta e a sétima, estão
presentes no blues, nas cantigas nordestinas e no canto da Andaluzia.
(Severiano, 1997:245)
Em relação ao baião de Gonzaga, cabe frisar que mais importante não é saber de
onde ele vem, ou melhor, a sua origem. O mais precioso é observar as inúmeras
possibilidades e conexões na construção dos discursos verificados nesse ritmo.
Igualmente relevante é notar as semelhanças entre o blues, as cantigas nordestinas, o
canto da Andaluzia e o baião. A origem do baião estaria no território mourisco, que teria
atravessado fronteiras e marcado presença na música de Gonzaga, ou no blues
americano?
Afirmar a influência em uma trajetória de mestiçagem não faz sentido, pois o
sentido está justamente nas inúmeras possibilidades em contaminação, e não em sua
origem certeira.
Na seqüência do baião, Gonzaga lançou outros ritmos, como o siridó e o xaxado,
sendo que para sustentar todas essas sucessivas criações rítmicas, em campanha para
estabelecer um espaço nacional para a música do Nordeste, ele acabou lançando uma
orquestração própria: o famoso trio nordestino (formado pela sanfona, zabumba e
triângulo). O que se percebe quando se escuta um trio nordestino é o evidente grau de
equilíbrio acústico entre as freqüências grave, média e aguda da instrumentação
escolhida. Gonzaga queria uma orquestração própria para representar a sua música,
assim como existiam os regionais das rádios.
Figura 1 - Participação de Gonzaga no filme “O galo sou eu” (1958), cantando e dançando o xaxado.
Além dos aspectos musicais, Gonzaga valeu-se de aspectos visuais e cênicos
como símbolos tradutores de seu discurso. No que diz respeito ao aspecto visual, teve
influências de Pedro Raimundo:
Ele tinha me influenciado porque sendo gaúcho ele fazia tudo de lá, então eu
tinha que fazer tudo ao contrário dele. Mas uma vez ele me serviu, porque
usava bombacha, botas, chapéu gaúcho, guaiaca e chicote. Então, eu achei
que Pedro Raimundo era minha base, comecei a pensar que tipo eu podia
fazer, porque o carioca tinha a sua camisa listada, o baiano tinha o chapéu de
palha, o sulista era aquela roupa do Pedro. Mas e o nordestino? Eu tinha a
oportunidade de criar sua característica e única coisa que me vinha a cabeça
era Lampião... Telegrafei para a minha mãe, pedindo que me enviasse um
chapéu de couro bonito, lembrando Lampião. (Dreyfus, 1996:134)
Gonzaga, tomando como referência o gaúcho Pedro Raimundo, foi compondo o
seu “personagem”, pautado em repertório de figuras populares do Nordeste: o
cangaceiro Lampião, bandido à margem da sociedade; e os vaqueiros tangedores de
gado. No figurino ele usou como referência o gibão de couro dos vaqueiros e boiadeiros
que tangiam o gado nas campinas nordestinas; na cabeça, chapéu semelhante ao do
cangaceiro Lampião. Gonzaga chegou a apresentar o xaxado, ritmo e dança divulgados
por Lampião no filme “O Galo Sou Eu” (1958). No sotaque, a emissão da sua voz, o seu
gestual e a sua dança, assim como a sua música, traduziriam o Nordeste, com sua
geografia simbólica, que emergiu, enquanto mosaico, de um Brasil mestiço.
O discurso vocal de Gonzaga, assim como suas composições, foi moldado no
entre lugar da expressão proveniente da lida diária de vaqueiros tangendo o gado, no
canto de trabalho – no qual a voz de peito com freqüência aguda era projetada
volumosamente na imensidão dos campos nordestinos, em sons de vogais imitando o
mugido do gado, na comunicação com o mundo animal –, em conexão com o polimento
da voz radiofônica médio-grave e de volume controlado, porque emitida por meio do
microfone, em um espaço textual em que as consoantes, principalmente os Rs, eram
fundamentais para a clareza da comunicação.
Nesse interstício entre o cotidiano do canto de trabalho e o do canto de festejo
com os mecanismos de comunicações vocais da mídia rádio, Luiz Gonzaga construiu
um discurso vocal particular e que se estabeleceu como o cantar do Nordeste. Fez-se o
espaço vocal de Luiz Gonzaga e, portanto, o espaço vocal representativo do discurso do
Nordeste.
Por intermédio do rádio, ele entrou para a história como instaurador da
discursividade do baião urbano e do trio nordestino. Ele foi o primeiro a fazer uso do
trio nordestino e o popularizou no sudeste brasileiro. Também foi o primeiro a divulgar
o baião, cabendo lembrar que, obviamente, o baião de Gonzaga não é o mesmo que o
baião do século XIX. Ele fez uso do enunciado e deu a ele novos códigos estéticos e
outras possibilidades enquanto gênero.
A música de Gonzaga e a sua projeção nacional foram fundamentais para os
migrantes que vieram viver nos centros urbanos do sudeste e enfrentar o desconhecido,
convivendo com os novos códigos urbanos. Com o fluxo migratório da década de 1950,
muitos sanfoneiros, ritmistas, zabumbeiros, repentistas migraram para o sudeste,
trazendo na bagagem “xote, maracatu e baião”, inundando de alegria, arte e saudade as
praças públicas, como se fossem feiras do Nordeste; de cordel, desafio e concertinas,
que varavam as noites paulistanas com forró, lembrando os arrasta-pés das estradas
enluaradas do sertão, delimitando, por meio dos hábitos culturais, os espaços da saudade
e sociabilidade, demarcando territórios dentro da cidade.
JUREMA MASCARENHAS PAES é Doutora em História
Social pela PUCSP, cantora e compositora.
Email:
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Lista de Figuras
Figura 1: Participação de Gonzaga no filme “O galo sou eu” (1958). Disponível em:
<http://www.luizluagonzaga.com.br>. Acesso em 17 jan. 2008.