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1
Félix e Gilles
Foi Félix quem me procurou, eu não o conhecia... Fui eu quem foi procura-lo, mas
depois foi ele que propôs o trabalho em comum... Foi amor à primeira vista...2
Em 1972, Félix Guattari dedicou um exemplar da primeira edição do volume 1 de Capitalismo e Esquizofrenia,
o Anti-Édipo, para Jean-Pierre Muyard: a Jean-Pierre, a verdadeiro culpado, o indutor, iniciador desta
empreitada perniciosa. Eles se conheciam desde 1964, quando Muyard cursava medicina em Lyon e era uma
liderança do movimento estudantil. E ele guardou de Félix a “impressão quase fisiológica de um estado
vibratório incrível”, que o levou a aderir ao “movimento de energia” que vinha do então psiquiatra e militante
de grupos à esquerda do PCF: sua inteligência era excepcional, o mesmo tipo de inteligência que Lacan, uma
3
energia luciferiana. Lúcifer sendo o anjo da luz. A verdade é que Félix transitava por muitos lugares, desde
que Jean Oury foi seu professor de ciências naturais no Liceu. O encontro foi breve, pois Oury foi preso em
1943 pelos alemães, mas marcou o jovem Félix – depois da guerra eles retomariam a relação de amizade e
trabalhariam juntos. Ainda adolescente entrou para o PCF – época em que costumava dizer: prefiro errar com
Sartre a ter razão com Raymond Aron... Em 1948 se juntou aos trotskistas e foi um dos organizadores do grupo
em Paris – que segundo o PCF era “um dos piores inimigos da classe trabalhadora”. Dois anos depois, os
colegas da Sorbonne o apelidaram de “Lacan”, por falar sem parar no “Doutor”. Nesse momento anotou em
seu diário o desejo de escrever, enquanto procurava um assunto... Na universidade prossegue formando seus
“bandos”, iniciando os colegas em Trotsky, enquanto manifesta interesse pela linguagem e começa a usar a
noção de “máquina” para pensar a esquizofrenia: sempre fui apaixonado, atraído pelos esquizos. É preciso
conviver com eles para compreender. Os problemas dos esquizos pelo menos são verdadeiros problemas, não
4
problemas de neurótico. Em 1954 fez uma viagem relâmpago a China, com outros militantes e intelectuais.
Um ano depois chegou à La Borde, a clínica que definiu as bases teóricas e práticas da psicoterapia
institucional, onde o tratamento terapêutico era indissociável da análise das instituições. Fundada em 1953 por
Jean Oury, essa revolução tinha antecedentes na experiência de Saint-Alban, criada em 1921, que viveu uma
mutação na prática psiquiátrica com a chegada do “psiquiatra vermelho” François Tosquelles, em 1939.
Catalão, trotskista, combatente na Guerra da Espanha, Tosquelles já defendia a necessidade de cuidar da
instituição tanto quanto dos “doentes”, pensando em termos “geo-psiquiátricos” a inserção da atividade nas
realidades locais, com uma prática médica migrante. Em 1947 Jean Oury entrou nessa instituição que reuniu
a Resistência armada e escrita ao fascismo, a prática médica inovadora e as edições clandestinas, e foi uma
fonte da memória ativa e do ethos da instituição. A presença de Oury e experiência desenvolvida em La Borde
o atraem – curiosamente eu não estava muito interessado na loucura –, e em 1957 ele assumiu a direção da
5
Clínica, então frequentada por estudantes ativistas de esquerda de várias áreas, interessados na junção da utopia
social com a prática clínica, sempre convidados por Félix. Durante sua formação na prática psiquiátrica, ele
1
Maurício Rocha, PPG Direito da PUC Rio.
2
F. Guattari, Écrits pour l’AE. Paris: Lignes/IMEC, 2012, p. 12; K. Uno e L. G. dos Santos, Guattari: confrontações. S. Paulo: n-1
edições, 2016, p. 45.
3
F. Dosse, Biografia cruzada. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 14.
4
G. Deleuze, “Capitalismo e esquizofrenia” [1972] in A ilha deserta.
5
Idem.
2
seguiu Jacques Lacan, que o convidara a participar de seu seminário – e em 1964 Félix foi um dos fundadores
da Escola Freudiana de Paris. Em 1958 participou da criação da Via Comunista, à esquerda do PCF, em meio
à guerra de libertação da Argélia. O grupo denunciou a violência colonial, apoiou o levante argelino e reuniu
trabalhadores, estudantes e intelectuais, cabendo a Félix singrar entre esses mundos. Em 1964 ele introduz o
conceito de “transversalidade”: a transversalidade de grupo é uma dimensão contrária e complementar às
estruturas geradoras de hierarquização piramidal e modos de transmissão que esterilizam as mensagens. A
transversalidade é o lugar do sujeito inconsciente do grupo, o “para-além” das leis objetivas que o fundam,
6
o suporte do desejo do grupo. Em 1965, após a dissolução da Via Comunista, Félix organizou uma federação
com centenas de pesquisadores cujo braço institucional era um “grupo sujeito” que intentava testar na prática
as referências teóricas em voga (Marx & Freud) e promover a transdisciplinaridade, ao religar a pesquisa, a
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formação dos saberes e das práticas. Nesse mesmo ano, recebeu Fernand Deligny em La Borde, com quem
cultivou amizade e correspondência – ele e Gilles serão responsáveis posteriormente pela recepção filosófica
de Deligny, através do conceito de linhas e da noção de cartografia.
Foi então que Jean-Pierre Muyard reuniu-se ao “bando do Félix” em La Borde, em 1966.... No ano seguinte,
8
movido pelo entusiasmo dos colegas da faculdade de Letras, e fascinado com o livro sobre Sacher Masoch
assistiu aos cursos de Gilles em Lyon, enquanto se especializava em psiquiatria. Sua experiência com
psicóticos atraiu o interesse do filósofo, de quem se tornou amigo. Em 1969, perturbado pela desmedida
“nervosa” de Félix, que criava e desfazia os grupos constituídos na clínica, e reiterava o intento de escrever
sem leva-lo adiante, Muyard organizou um encontro da dupla, e logo se retirou: eu tinha cumprido minha
tarefa, e Mefisto se retira. Minha intuição e que esse não era mais meu lugar. Embora Deleuze tivesse vontade
de trabalhar comigo e me quisesse presente nas sessões, eu sentia que incomodava Felix. A operação
alquímica funcionou, e por longo tempo.9 Naquele ano, o texto “Máquina e estrutura”10, originalmente uma
palestra para lacanianos que se extraviou do endereço, antecipou elementos do agenciamento por vir. Em abril,
Félix escreveu: caro amigo, nem tenho palavras para lhe dizer o quanto fiquei tocado com a atenção que o
senhor teve a gentileza de dedicar aos artigos que lhe enviei. Uma leitura lenta, muito minuciosa, de Lógica
do Sentido me leva a pensar em uma espécie de homologia profunda de “ponto de vista” entre nós. Encontra-
lo quando isso for possível para o senhor constitui para mim um acontecimento já presente retroativamente
através de várias origens.11 Gilles responde no mesmo tom e toca no tema da escrita em meio à “confusão
extremista” do outro: também sinto que somos amigos antes de nos conhecermos... é evidente que você inventa
e maneja um certo número de conceitos complexos muito novos e importantes fabricados em conexão com a
pesquisa prática de La Borde... seu conceito de transversalidade, que me parece de natureza a superar a
velha, mas sempre pronta para ressuscitar, dualidade “inconsciente individual-inconsciente coletivo”... mas
6
F. Guattari, “A transversalidade” [1964] in Psicanálise e Transversalidade. Aparecida: Ideias e Letras, 2004, p. 116.
7
Respectivamente: Fédération des groupes d'études et de recherches institutionnelles (FGERI) e Centre d'etudes, de Recherches et de
formation institutionnelles (FGERI).
8 G. Deleuze, Sacher-Masoch, o frio e o cruel [1967]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
9
F. Dosse, Gilles Deleuze e Félix Guattari - biografia cruzada, p. 15.
10
F. Guattari, Psicanálise e transversalidade, p. 309-319.
11
Idem, ibidem.
3
não é menos evidente que esses conceitos não tenham ainda, por falta de tempo, ocasião, sido objeto de uma
elaboração teórica propriamente dita. A ideia de que as condições não estão ainda boas para fazê-lo, seja
porque as coisas não vão bem na atual agitação, seja porque você mesmo não vai bem, me parece falsa:
porque isso significa que só se pode verdadeiramente escrever quando as coisas vão bem, em vez de ver na
escrita um fator modesto, porém ativo e eficaz, para se desligar da agitação e para a gente mesmo ir melhor...12
Para Félix, o encontro foi liberador, como ele dirá em várias ocasiões: Quando entrei em contato com Deleuze
em 1969, realmente aproveitei a oportunidade. Avancei na contestação do lacanismo em dois pontos: a
triangulação edipiana e o caráter reducionista de sua tese do significante. Pouco a pouco, todo o resto se
esboroou como um dente cariado, como um muro detonado.13 Tempos depois, ele acrescentará: o que nos
aproxima é que temos a mesma paixão construtivista relativa aos conceitos. Só que não partimos dos mesmos
agenciamentos de enunciação, dos mesmos materiais.... Ele constrói sua coerência com uma preocupação de
diálogo com interlocutores, com personagens filosóficos. Seu trabalho de professor foi um dado fundamental.
Nunca tive essa preocupação. A pedagogia me é estranha.14 De fato, durante a “Grande Véspera” desse
15
encontro, a política e o direito não saíram do horizonte do professor Gilles – que costumava dizer: no começo
interessava-me mais pelo direito que pela filosofia16. Desde os anos 1950 ele pensava as instituições na
contramão da visão liberal – que as concebe como determinadas pelo acordo (ou luta) das vontades livres que
estariam na sua origem, e pelas suas diferentes finalidades (educar, produzir, reproduzir...). Gilles as pensará
como condição das condutas e das regras sociais, sujeitas a usos imanentes, normas e finalidades, que elas não
determinam. Distinta da Lei, que limita as ações, a instituição é signo da inventividade social, um modelo
positivo de ação no qual a experiência coletiva é conduzida – porém: a tendência é satisfeita por meios que
não dependem dela. Da mesma forma, ela nunca é satisfeita sem ser, ao mesmo tempo, coagida ou maltratada,
e transformada, sublimada. De modo que a neurose é possível. Além disso, se a necessidade encontra na
instituição uma satisfação tão-somente indireta, “obliqua”, não basta dizer que “a instituição é útil”, pois é
preciso ainda perguntar: para quem ela é útil? Para todos aqueles que dela têm necessidade? Ou antes, para
alguns (classe privilegiada), ou somente para aqueles que põem em funcionamento a instituição (burocracia)?
O mais profundo problema sociológico consiste, então, em procurar qual é esta outra instância da qual
dependem diretamente as formas sociais da satisfação das tendências. Ritos de uma civilização, meios de
17
produção? Essa preocupação é constante e inseparável de outra, como escreveu em 1966: uma nova
concepção do que significa pensar é hoje a tarefa da filosofia... erigir uma nova imagem do pensamento: um
pensamento que não mais se oponha de fora ao impensável ou não-pensado, mas que o alojaria nele, que
18
estaria em uma relação essencial com ele. A crítica à “imagem dogmática do pensamento”, tema que
atravessa os anos 1960 em sua obra, interpelava o pressuposto implícito extraído do senso comum, segundo o
12
Gilles Deleuze, Cartas e outros textos, 2018, Carta a Guattari, 13 de maio de 1969, p. 37-38.
13
F. Dosse, Deleuze e Guattari - biografia cruzada, p. 14.
14
K. Uno, op. cit. p. 105
15 A fórmula é de Rafael Cataneo Becker, Natureza e Direito em G. Deleuze [Tese de Doutorado, PPG Direito PUC Rio, 2018].
16
G. Deleuze, “Controle e devir”, entrevista a Toni Negri [1990] in Conversações.
17
G. Deleuze, “Instintos e instituições” [1953] in A ilha deserta e outros textos [1953-1974]. S. Paulo: Iluminuras, 2006.
18
G. Deleuze, “O homem, uma existência duvidosa” [1966], in A ilha deserta e outros textos.
4
qual o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer
materialmente o verdadeiro. E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que cada um saiba o
que significa pensar. Pouco importa, então, que a Filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito, pelo ser ou
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pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a esta Imagem que já prejulga tudo . Ele dizia que
não era uma provocação a sua prática heterodoxa da história da filosofia, um dos motores da crítica à imagem
dessa atividade como formação de cultura que vive e se legitima apenas de seus próprios problemas, sob a
mistificação de uma filosofia perene subtraída ao campo de forças que envolve sua criação – daí a necessidade
de um aprendizado indispensável e uma lenta modéstia.... Fazer a história da filosofia é restaurar esses
problemas e assim descobrir a novidade dos conceitos. A má história da filosofia enfileira os conceitos como
20
se fossem óbvios, como se não fossem criados, e há uma ignorância total dos problemas. A história da
filosofia só vale a pena se determinar as condições e implicações de um problema, que dá sentido aos conceitos
de um filósofo, com o trabalho historiográfico devendo coincidir com ele. Pois o que é próprio das filosofias
é voltar contra o seu tempo as exigências de um problema que as soluções inventadas pelo seu tempo não
impunham nem previam – e é difícil entender o quanto uma filosofia pode ser portadora de um sentido liberador
qualquer, quando ela parece ter soado solene e respeitável desde sempre. A seu modo, ele politizava o
pensamento ao se voltar para a parte escondida dessa história, para desfazer os contrassensos correntes e
alcançar a intempestividade dos pensadores de reputação sulfurosa, colocados à margem justamente por
recusaram qualquer transcendência (daí Spinoza como “herói filosófico”). É notável nesse percurso seu
interesse pelas “lógicas” inventadas pelos filósofos (da relação, da diferença, da multiplicidade, da duração,
da expressão, dos paradoxos do sentido, dos incorporais, dos simulacros etc.) e pelas lógicas que excediam os
limites escolares da disciplina, caso do masoquismo e do processo esquizofrênico – a experiência involuntária
21
e extremamente aguda de intensidade e passagens de intensidade. No final da década de 1960, o prólogo de
Diferença e Repetição anunciou: aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de
Filosofia como há muito tempo se faz... Naquela altura, suas obras demostravam que não se tratava de salvar,
reanimar, refundar ou sair da filosofia: Nunca me senti comovido por aqueles que dizem que se deve ir além
da filosofia. Desde que haja necessidade de criar conceitos, haverá a filosofia, pois ela é a sua definição. E
os problemas crescem. Fazer filosofia é criar novos conceitos em função de problemas que ocorrem hoje... As
forças históricas, sociais, mas também um devir do pensamento, resultam numa colocação diferente de
22
problemas diferentes. E a insuficiência respiratória de Gilles não impediu alguns raros episódios de
engajamento: no Maio de 68 em Lyon, ele participou de assembleias e apoiou o quanto pode os estudantes –
uma exceção entre os docentes da universidade. Mais tarde estava ao lado do amigo Foucault na criação do
GIP23, nos atos e manifestações que interpelaram as condições penitenciárias na França, em meio a dezenas de
19
G. Deleuze, Diferença e Repetição [1968], cap. III. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
20
Abecedário, H de HF.
21
D. Lapoujade, Deleuze, os movimentos aberrantes. S. Paulo, n-1, 2015, introdução
22
Abecedário, verbete H de História da Filosofia.
23
Grupo Informações prisões. Em maio de 1970, o governo francês aprovou uma lei contra distúrbios de rua, além de dissolver
organizações de extrema-esquerda, prender e processar integrantes do jornal Cause du Peuple, veículo do grupo maoísta Gauche
Prolétarienne. O manifesto do GIP foi lançado em fevereiro de 1971, assinado por Foucault. O GIP defenderá a tese de que os detentos
são vítimas de uma sociedade e de uma justiça de classe, com as infrações resultando da lógica do sistema, e não da responsabilidade
5
motins duramente reprimidos. Ele ainda organizou, com Sartre entre outros, manifestações contra o racismo e
a violência policial, assinou petições, manifestos... É certo que após o encontro com Guattari as ocasiões de
intervenção se multiplicaram.24 Mas, em janeiro de 1969, após concluir seu doutorado, publicar três livros e
em seguida sofrer uma cirurgia que lhe extraiu um pulmão, Gilles foi convalescer no interior da França.
Tempos depois, ele recordará o encontro: à primeira vista, não tínhamos nada para nos entender. Félix sempre
teve muitas dimensões, muitas atividades, psiquiátricas, políticas, trabalho de grupo. Era uma “estrela” de
grupo. Ou, antes, seria preciso compará-lo ao mar: sempre móvel na aparência, com lampejos de luz o tempo
todo. Ele pode pular de uma atividade à outra, ele dorme pouco, não para. Ele nunca cessa. Ele tem
velocidades extraordinárias. Quanto a mim, eu seria antes como uma colina: me mexo muito pouco, sou
incapaz de fazer duas tarefas ao mesmo tempo, minhas ideias são ideias fixas, e os raros movimentos que
tenho são interiores. Adoro escrever sozinho, mas não gosto muito de falar, exceto nas aulas, quando a palavra
25
é submetida a outra coisa. Nós dois, Félix e eu, daríamos um bom lutador japonês.... E no prefácio da
coletânea de textos de Félix, enfim publicados em 1972, Psicanálise e transversalidade, ele compôs o retrato
maquínico de Pierre-Félix: Guattari encarna de maneira mais natural os dois aspectos do antiego; de um lado
um pedregulho catatônico, corpo cego e enrijecido, que se penetra de morte sempre que ele tira os óculos; do
outro, brilhando de mil fogos formigando de vidas múltiplas quando ele olha, age, ri, pensa, ataca. Ele se
chama também Pierre e Félix: duas potências esquizofrênicas. E se Félix trouxe um “novo fôlego” para
26
Gilles, este foi um intercessor decisivo: o milagre, para mim, foi o encontro com Deleuze. Eu expliquei a ele
minhas concepções relativas à subjetividade de grupo, todas essas histórias de transversalidade etc. Eu estava
contente, ele me aprovava calorosamente. E depois ele me dizia: por que você não escreve tudo isso? Na
verdade, a escrita me incomodava um pouco, discutir com as pessoas, falar, tudo bem; mas escrever.... Então
ele me disse: nós podemos fazer isso juntos. Na minha cabeça, durante um certo tempo houve uma
ambiguidade: “juntos” significava meus amigos, meu grupo. Mas rápido compreendi que seriamos apenas
nós dois.... A base filosófica e o trabalho a longo prazo com Deleuze deram uma eficácia completamente nova
às minhas primeiras tentativas de teorização... Efetivamente, Deleuze, de modo gentil, quebrou um certo mito
grupuscular.27
O agenciamento Gilles-Félix teve seus segredos de fabricação, documentados nos textos trocados pela dupla,
em notas tomadas por Félix, em entrevistas posteriores e na correspondência – que registra a conduta sugerida
por Gilles: Seria preciso, evidentemente, abandonar todas as fórmulas de polidez, mas não as formas da
amizade que permitem a um dizer ao outro: você está brincando, não compreendo, isso não dá etc..... Seria
individual – a delinquência seria uma das formas da violência das relações sociais. Fruto da dinâmica de contestação que entrou pelos
anos seguintes, o GIP indica um ângulo novo, teórico e prático, voltado para alvos e lutas locais – daí a preocupação com o corpo como
domínio de investimento político, o que dará lugar a uma politização do cotidiano, um esforço em pensar aquilo que afeta as condições
concretas da vida. Cf. Dits et Écrits, II, 86, pp. 174-175.
24
Como documentado nos artigos sobre a primeira Intifada Palestina, sobre Yasser Arafat, sobre a repressão à Autonomia Operária na
Itália em 1979, com dois textos em defesa de Antonio Negri, e sobre a repressão ao “terrorismo” na Europa dos anos 70 e inúmeros
outros textos de intervenção. Cf. Dois regimes de loucos, textos e entrevistas 1975-1995. S. Paulo, 2016. François Dosse fornece uma
crônica em “Os engajamentos políticos de Gilles Deleuze” [ https://goo.gl/QoXkPM].
25
G. Deleuze, Dois regimes de loucos, “Carta a Uno: como trabalhamos a dois” [1984].
26
G. Deleuze, A ilha deserta, “Três problemas de grupo” [1972].
27
F. Guattari, Les anées d’hiver 1980-1985. Paris, 2009, pp. 100-102.
6
28
preciso, enfim, que não houvesse regularidade forçada.... De saída, desponta a escrita a quatro mãos: cada
um escreve uma versão sobre um dado tema... cada um funciona como uma incrustação ou citação no texto
do outro, e não se sabe mais quem cita quem. É uma escritura de variações. É a mesma coisa que dizer:
29
estamos sempre sozinhos, estamos sozinhos a dois e somos vários quando estamos sós... Não se tratava de
comunicação refletida de pontos de vista, mas das condições para a invenção conceitual: Um se cala quando
o outro fala. O que não é somente uma lei para se compreender, mas significa que cada um se coloca
perpetuamente a serviço do outro. Aquele que se cala está por natureza a serviço do outro. Trata-se de um
sistema de ajuda mútua no qual aquele que fala tem razão pelo simples fato de falar. A questão não é discutir.30
Por sua vez, Félix assinalaria essa heterogeneidade constituinte: somos muito diferentes um do outro, de modo
que o ritmo de adoção de um tema ou conceito são diferentes. Mas há também uma complementaridade. Eu
sou levado à operações aventureiras de comandos conceituais, de inserção em territórios estrangeiros.
Enquanto Gilles possui armas filosóficas pesadas.... Mas o que nós fazemos não funciona à base de debates
31
ou resolução de conflitos. De uma certa maneira, nunca há oposição. Anos depois, Gilles recordará o modo
de trabalhar dos dois: começamos por longas cartas, desordenadas, intermináveis. Depois, tivemos reuniões
a dois, de vários dias ou várias semanas.... Era um trabalho muito cansativo, mas, ao mesmo tempo, nós
ríamos o tempo todo... nós desenvolvíamos este ou aquele ponto, em direções diferentes, nós misturávamos as
escritas, criamos palavras cada vez que tínhamos necessidade delas. O livro, por vezes, assumia uma forte
coerência que não se explicava mais nem por um nem pelo outro. É que nossas diferenças nos atrapalhavam,
mas também nos ajudavam. Nunca tivemos o mesmo ritmo. Félix me xingava por não responder às cartas que
ele me enviava: é que eu não estava pronto, naquele momento. Eu não era capaz de aproveitar suas ideias a
não ser mais tarde, quando Félix já tinha passado para outra coisa.... Eu não largava Félix, mesmo quando
ele já estava cheio, mas Félix me perseguia, mesmo quando eu não podia mais. Pouco a pouco, um conceito
assumia uma existência autônoma, que às vezes continuávamos a compreender de maneira diferente.... O
trabalho a dois nunca foi uma uniformização, mas, antes, uma proliferação, uma acumulação de bifurcações,
um rizoma. Eu poderia dizer quem é o responsável pela origem deste ou daquele tema, desta ou daquela
noção: na minha opinião, Félix tinha verdadeiros relâmpagos e eu era uma espécie de para-raios, enfiava
32
aquilo na terra para que renascesse de uma outra maneira, mas Félix retomava etc., e assim avançávamos.
Conforme Félix: a gente se via toda semana... Discussões, confrontações sobre textos, troca de textos, idas e
vindas, quero dizer, de cada coisa que escrevemos, houve muitas versões.... Trabalhávamos sobre um tema
de cada vez e, ao mesmo tempo, de minha parte, eu escrevia sobre todos os temas.... Eu desenvolvia todas as
implicações em um nível sincrônico. E Gilles retomava, reclassificava as coisas, era ele que dirigia a
organização do trabalho, que dizia: “isso não é para agora”. Sim, o tempo todo, havia um ir e vir. De modo
28
G. Deleuze, Cartas e outros textos. S. Paulo: n-1, 2018.
29
F. Guattari, Écrits sur AE, p. 20.
30
F. Guattari, Écrits sur AE, p. 18.
31
F. Guattari, Écrits sur AE, p. 28.
32
G. Deleuze, “Carta a Uno: Como trabalhamos a dois” [1984] in Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995). S. Paulo:
Editora 34.
7
que depois não se pode dizer se é o texto de um ou do outro.... Geralmente era Gilles que tinha a última
33
palavra...”.
E assim O Anti-Édipo foi a crítica em ato do paradigma hermenêutico do livro como “deciframento do mundo”,
em proveito de uma concepção maquínica e pragmática, da conexão com um fora que mudava a filosofia de
lugar, na cultura e na crítica social – Não vivemos esse livro como um livro, e as pessoas que gostam dele não
o vivem como um livro. Não dizemos que é um livro, dizemos que é um elemento que se chama “livro”, num
conjunto exterior. O livro não vale pela sua interioridade, pelas páginas que ele encerra, ele vale em relação
34
à multidão de conexões exteriores ao livro. A vertiginosa abertura da obra, a proliferação conceitual, a
literalidade dos enunciados, as paródias de condutas mentais respeitáveis como a “história universal”, tudo
isso resultou da escrita a quatro mãos tratada como “uma maquinaria que absorve energia e a transforma em
potencial metamórfico no leitor”35. A filosofia se entrelaçava com saberes não-filosóficos (psicanálise,
antropologia, linguística, economia política, história, a literatura, as artes etc.), concebidos como forças que
constrangem o pensamento, mas sob o modo da experimentação e da criação conceitual, forças avaliadas em
função dos modos de pensar e agir que suscitavam: os militantes revolucionários não podem deixar de ser
concernidos estreitamente pela delinquência, pelo desvio e a loucura, não como educadores ou reformadores,
36
mas como aqueles que só nesses espelhos podem ler o rosto de sua própria diferença. Foucault o celebrou
como o primeiro livro de ética que foi escrito na França desde há muito tempo, uma introdução à vida não
fascista. É certo que foi inteiramente um livro de política – que ainda desconcerta, por não apresentar um
37
“programa”, nem abordar a política como objeto codificado sob os modos da instituição, do saber universitário,
da lógica partidária. É certo também que os tópicos da política (o Estado, a Revolução, a Guerra, o Direito)
são objeto da análise crítica endereçada às forças “abafadas no presente”, cujos dinamismos demandavam
conceituação própria e original. O envolvimento da obra com os movimentos ativistas e a criação social e
política, pretendia orientar um processo de formação de grupos sujeitos em vez de assujeitados, que fossem
aptos em articular a análise do desejo e o engajamento: será preciso que se forje uma outra raça de intelectuais,
38
uma outra raça de analistas, uma outra raça de militantes... Era a fuga da tentação de ser polo de autoridade,
na figura de um sujeito de enunciação que tomaria a si próprio como um partido ou aparelho de Estado. O que
Félix anotava: ao modo de Marx podemos considerar que não nos cabe definir o que deveria ser uma ordem
esquizoanalítica, muito menos o comunismo! Trata-se de o promover! É um ponto de método: o anti-
programa. Mesmo se ainda há “programa” na luta revolucionária! Vamos fazer juntos! Mas injetaremos de
39
início um axioma complementar do desejo como desprogramador. Preocupação constantemente partilhada
por Gilles: E por que razão, até o presente, as revoluções foram tão mal? Não há revolução sem uma máquina
33
K. Uno e L. G. dos Santos, Guattari, confrontações, 2016, pp. 53-55.
34
Entrevista com R. Bellour, 1973 in Cartas e outros escritos, p. 201.
35
J.-F. Lyotard, “Capitalismo energúmeno” in M. M. Carrilho, Capitalismo e esquizofrenia - Dossiê Anti-Édipo. Lisboa: Assírio &
Alvim, 1976.
36
G. Deleuze, “Três problemas de grupo” [1972] in A ilha deserta e outros textos.
37
Michel Foucault, prefácio de Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New. York, Viking Press, 1977.
38
G. Deleuze, “Deleuze e Guattari explicam-se” [1972] in A ilha deserta e outros textos.
39
F. Guattari, Écrits sur AE, p. 283.
8
de guerra central, centralizadora. Não se luta, não se duela a socos, é preciso uma máquina de guerra que
organize e unifique. Mas, até o presente, não existiu no campo revolucionário uma máquina que não
reproduzisse, a seu modo, uma outra coisa, ou seja, um aparelho de Estado, o organismo mesmo da opressão.
Eis o problema da revolução: como uma máquina de guerra poderia dar conta de todas as fugas que se fazem
40
no sistema sem esmagá-las, liquidá-las, e sem reproduzir um aparelho de Estado?
O ineditismo da obra residia em pensar a pressuposição reciproca entre capitalismo e esquizofrenia,
preservando a heterogeneidade dos dois processos e sua diferença de regime. A relação não era apenas posta
no nível dos “modos de vida”, mas no nível mais profundo de um só é mesmo processo de produção.
41
Conforme Félix: Existe, segundo pensamos, uma produção desejante que, anteriormente a toda atualização
na divisão familiar dos sexos e das pessoas e na divisão social do trabalho, investe as diversas formas de
produção de fruição e as estruturas estabelecidas para as reprimir. Sob diferentes regimes, é a mesma energia
desejante que encontramos na face revolucionária da história, com a classe operária, a ciência e as artes, e
que reencontramos na face das relações de exploração e do poder de Estado, enquanto ambas pressupõem
42
uma participação inconsciente dos oprimidos. Perguntado sobre a razão da conexão, Félix explicou: para
sublinhar os extremos.... O capital e, na outra extremidade, ou antes, no outro polo de não senso, a loucura,
e, na loucura, precisamente a esquizofrenia. Pareceu-nos que esses dois polos na sua tangente comum de não
senso possuíam uma relação. Não apenas uma relação contingente em função da qual é possível afirmar que
a sociedade moderna torna as pessoas loucas. Mas muito mais do que isso: que, para dar conta da alienação,
da repressão que o indivíduo sofre quando é envolvido no sistema capitalista, mas também para entender a
verdadeira significação da política de apropriação da mais valia, devemos convocar conceitos que são os
mesmos que aqueles aos quais deveríamos recorrer para interpretar a esquizofrenia. Ao que Gilles
acrescentou: Nós colocamos um problema bem simples, semelhante ao de [William] Burroughs a propósito
da droga: será que é possível captar a potência da droga sem se drogar, sem se produzir como um farrapo
drogado? É a mesma coisa para a esquizofrenia. Nós distinguimos a esquizofrenia enquanto processo e a
produção do esquizo como entidade clínica boa para o hospital.... O esquizo de hospital é alguém que tentou
alguma coisa e que falhou, desmoronou. Não dizemos que o revolucionário seja esquizo. Afirmamos que há
um processo esquizo... que só a atividade revolucionária impede de virar produção de esquizofrenia....
Paranoia capitalista e esquizofrenia revolucionária; podemos falar assim porque não partimos de um sentido
psiquiátrico... partimos de suas determinações sociais e políticas... O que explica a posição da dupla, na
apoteose do “freudo-marxismo”: não desejamos, no que nos diz respeito, participar de tentativa alguma que
se inscreva numa perspectiva freudo-marxista... uma tentativa freudo-marxista procede em geral por um
retorno às origens, ou seja, aos textos sagrados (de Marx e Freud). A segunda razão que nos distingue de toda
tentativa freudo-marxista é que tais tentativas se propõem sempre a reconciliar duas economias: economia
política e economia libidinal ou desejante.... Nosso ponto de vista é, ao contrário, que há apenas uma
economia e que o problema de uma verdadeira análise antipsicanalítica é mostrar como o desejo inconsciente
40
G. Deleuze, “Cinco proposições sobre a psicanálise” [1973] in A ilha deserta e outros textos.
41
P. Macherey, “Compte rendu de deux ouvrages de G. Sibertin-Blanc” in Methodos, 14, 2014.
42
G. Deleuze: “Deleuze e Guattari explicam-se” [1972], in A ilha deserta e outros textos.
9
43
investe as formas dessa economia. A própria economia é que é economia política e economia desejante.....
Não era o caso de conciliar economia política e libidinal mantendo o dualismo psíquico/real e o repertório
conceitual corrente, e os reducionismos de uma instância à outra – Não podíamos contentar em prender um
44
vagão freudiano ao comboio do marxismo-leninismo... Além disso, o pressuposto da exterioridade entre
desejo e poder, com o primeiro impedido pela ação do segundo, só podia resultar em uma negação da realidade
dada e no abismo do voluntarismo, dada a sensação de que não havia mais saída – enquanto se permanecer
numa alternativa entre o espontaneísmo impotente da anarquia e a codificação burocrática e hierárquica de
45
uma organização de partido, não há libertação de desejo. Naquela altura, uma estrita fidelidade à filosofia
spinozana movia a crítica às concepções idealistas do desejo marcadas pela falta, da última à mais vetusta:
como visada de um objeto real ou fantasma; como projeção mítica; como avesso ao lógos e à razão; como
“instância caprichosa, turbulenta, inconstante, inimiga de toda medida, que não se distingue do arbitrário puro
e simples”.46 Um ano após a publicação do Anti-Édipo, Gilles reiterou em entrevista: quando dissemos que o
desejo não era falta, mas produção, queríamos dizer, evidentemente, que ele produzia seu própria objeto. Não
queremos dizer que a fome do bebezinho produz e basta para produzir leite... O que estamos dizendo é que a
divisão objeto do desejo/pessoa distinta/sujeito desejante já implica um corte que pode vir do campo social,
que pode vir também da natureza. É um corte sobre fundo de fluxos que fluem, e o desejo é, fundamentalmente,
essa fluência de fluxos onde nada falta... Mas nós dizemos que o desejo, em sua essência, são esses encontros
e não encontros de fluxos, assim como há fenômenos de desgosto, porque fluxos podem se encontrar e produzir
efeitos de repulsa, ou então não se encontrar e, assim, produzir efeitos que são sentidos como falta por um
sujeito, e não pelo próprio fluxo, obviamente... Sabemos também que a sociedade é organizada para distribuir
a falta em tal lugar, o excesso em outro. De maneira alguma estamos dizendo que não há falta. Dizemos: os
47
fenômenos de falta, isso não é desejo. Félix registrou uma nota sobre o tema: A máquina capitalista regula,
pelo mercado, a organização da falta. Das faltas moleculares ela faz faltas molares. Mas ela não inventa a
falta, ela a encontra. É o maquinismo que nasce de necessidades novas. A começar pelo maquinismo das
viagens que criou a demanda de temperos e produtos exóticos. A máquina capitalista regula a intrusão
maquínica. A seu modo ela a humaniza. A crueldade do mercador não é a do guerreiro.... O ideal capitalista
é o de uma máquina pura, sem trabalho humano e que seria capaz de se reproduzir maquinicamente...48
Então, Félix e Gilles conceberão o desejo como movimento produtivo: Guattari e eu partimos da idéia de que
o desejo só poderia ser compreendido a partir da categoria de “produção”. Isto é, era preciso introduzir a
produção no próprio desejo. O desejo não depende de uma falta, desejar não é ter falta de alguma coisa, o
desejo não remete à Lei alguma, ele produz.... Tudo isso, em outros termos, significa talvez que o desejo seja
revolucionário. O que não significa que ele queira a revolução. Melhor que isso, ele é revolucionário por
natureza porque constrói máquinas que, inserindo-se no campo social, são capazes de fazer saltar algo, de
43
G. Deleuze, “Cinco proposições sobre a psicanálise” [1973] in A ilha deserta e outros textos.
44
G. Deleuze: “Deleuze e Guattari explicam-se” [1972], in A ilha deserta e outros textos.
45
G. Deleuze, “Sobre o capitalismo e o desejo” [1973] in A ilha deserta e outros textos.
46
F. Zourabichvili, “Kant avec Masoch”, Multitudes 2006/2, 25 [https://goo.gl/mWKzHw].
47 G. Deleuze, “Entrevista sobre o Anti-Édipo com R. Bellour [1973] in Cartas e outros escritos.
48
F. Guattari, Écrits sur AE, pp. 240-244.
10
49
deslocar o tecido social... . O desejo não será pensado como uma variante derivada de um invariante (uma
estrutura), mas como um processo estruturante imanente: tomando a forma do social, ele entra em um regime
histórico de diferenciação que não lhe é imposto de fora, mas cuja fonte é ele próprio: partimos da ideia de
que não se devia considerar o desejo como uma superestrutura subjetiva mais ou menos no eclipse. O desejo
não para de trabalhar a história, mesmo nos seus piores períodos. As massas alemãs acabaram por desejar o
nazismo. Depois de Wilhelm Reich não é possível deixar de enfrentar esta verdade. Em certas condições, o
desejo das massas pode voltar-se contra os seus próprios interesses. Quais são essas condições? A questão
toda é essa... Trata-se de fazer passar o desejo para o lado da infraestrutura, para o lado da produção,
enquanto se fará passar a família, o eu e a pessoa para o lado da antiprodução. É o único meio de se evitar
que o sexual fique definitivamente separado do econômico.50. Daí a definição “industriosa” e naturalista do
desejo como causa imanente ou autoprodução da vida genérica na unidade da natureza e da história –
simultaneamente o que há de mais natural e mais histórico, no contexto de uma natureza apreendida em seu
devir produtivo, nos seus movimentos e trocas, dos quais é impossível efetuar a síntese, ou reduzir à unidade
(uma multiplicidade): para a psicanálise, pode-se dizer que há sempre desejos demais. Para nós, ao contrário,
não há nunca desejos o bastante. Não se trata, por um método ou outro, de reduzir o inconsciente; trata-se,
para nós, de produzir inconsciente: não há um inconsciente que estaria já por aí, o inconsciente deve ser
51
produzido e deve ser mas politicamente, economicamente, historicamente. A afirmação do desejo
inconsciente investindo imediatamente um campo social, econômico e político, introduzia a ideia de um plano
único da economia dos fluxos e investimentos de fluxos, no qual as máquinas sociais são imanentes às
máquinas do desejo e vice-versa. Essa nova teoria do inconsciente e do desejo foi solidária de uma nova teoria
geral das sociedades – e da criação de “disciplinas”, como a esquizoanálise.
52
Em julho de 1969, Gilles escreve: Eis as primeiras coisas que retenho do que você disse dizia: as formas da
psicose não passam por uma triangulação edipiana, em todo caso não passam forçosamente da maneira que
se diz... Então, de um lado temos o problema familiar e, de outro, os mecanismos econômicos, e se pretende
fazer facilmente a junção com a determinação da família burguesa, e, antes mesmo de se dar conta disso, a
gente já se encontra numa via completamente sem saída.... Em outros termos, enquanto se pensa que as
estruturas econômicas só atingem o inconsciente por intermédio da família e do Édipo, nem mesmo se pode
compreender o problema.... Trata-se, portanto, de mostrar como, por exemplo na psicose, dois mecanismos
socioeconômicos são capazes de se implantar no inconsciente. Isso não quer dizer, evidentemente, que eles se
53
implantem tais quais (como mais-valia, taxa de lucro).... Em que um louco faz economia política?
A dupla seguiu no sentido inverso ao familismo da psicanálise, considerada impotente para pensar o delírio
por interpretar os enunciados do capitalismo como enunciados individuais – mas a representação edipiana não
era um erro a corrigir: ela cumpria a função necessária de limitar, alienar e privatizar a produção desejante no
triângulo familiar, separa-la dos investimentos sociais, quando se tratava de pensar o capitalismo como
49 G. Deleuze, “Capitalismo e schizophrenia” [1972] in A ilha deserta.
50
G. Deleuze: “Deleuze e Guattari explicam-se” [1972], in A ilha deserta e outros textos.
51
G. Deleuze, “Cinco proposições sobre a psicanálise” [1973] in A ilha deserta e outros textos.
52
P. Macherey, “Compte rendu de deux ouvrages de G. Sibertin-Blanc” in Methodos, 14, 2014.
53
G. Deleuze, “Carta de 16 de julho de 1969” in Cartas e outros escritos.
11
formação social cujo funcionamento converge com a edipianização, e que mascara a produção maquínica da
qual se alimenta com o teatro edipiano como o lugar de dissimulação e contenção. Gilles desdobrou o
problema, no prefácio à coletânea de Félix, Psicanálise e transversalidade: É mesmo curioso a que ponto os
conteúdos sociais, econômicos e políticos da libido mostram-se tanto melhor quanto mais nos encontramos
diante de síndromes de aspectos os mais dessocializados, como na psicose. Restituir ao inconsciente suas
perspectivas históricas sobre fundo de inquietude e de desconhecido implica uma inversão da psicanálise, e
sem dúvida uma redescoberta da psicose sob os ouropéis da neurose. Pois a psicanálise reuniu todos os seus
esforços aos da psiquiatria a mais tradicional para sufocar a voz dos loucos que nos falam essencialmente de
54
política, economia, ordem e revolução. Após a publicação de O Anti-Édipo, Gilles insistiu em entrevista sobre
a centralidade do delírio: nunca vimos um delírio esquizofrênico que não seja acima de tudo racial, racista,
político, que não se lance a todos os cantos da história, que não invista as culturas, que não fale de continentes,
de reinos etc.... O verdadeiro problema do delírio está nas transições extraordinárias entre um polo, digamos
reacionário ou mesmo fascista do tipo “eu sou de raça superior” – o que aparece em todos os delírios
paranoicos – e um polo revolucionário.... Daí a célebre evocação do psiquiatra e comunista vienense Wilhelm
55
Reich, junto ao filósofo polidor de lentes: Eis porque o problema fundamental da filosofia política é ainda
aquele que Spinoza soube levantar (e que Reich redescobriu): “Por que os homens combatem por sua servidão
como se se tratasse da sua salvação”. Como é possível que se chegue a gritar: mais impostos, menos pão!
Nunca Reich mostra-se maior pensador do que quando recusa invocar o desconhecimento ou a ilusão das
massas para explicar o fascismo, e exige uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas
não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é
56
isso que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário. Em meio a troca de cartas, encontros e
sessões de trabalho, Félix convidava especialistas para auxiliar. : os etnólogos ficaram muito interessados....
Eu gostava muito de trabalhar com [Pierre] Clastres, que era meu amigo e que, na época em que propus a
ideia de Urstaat, de um certo tipo de Estado que existe potencialmente em todas as sociedades arcaicas, ele
57
também trabalhava essa temática em A sociedade contra o Estado.... Essa colaboração impulsionou uma
revisão do problema da origem do Estado, efetuada com a mobilização de vasta bibliografia sobre povos não-
ocidentais, o que provocará nos futuros leitores “uma curiosa sensação, como um déjà vu às avessas: já vi isso
escrito depois”. A forma Estado será pensada como “objetividade histórica”, nas condições concretas de sua
58
realização, mas também como idealidade cerebral e desejo de Estado, como inconsciente que assombra toda
formação social – o Estado não é um fenômeno natural, nem universal, nem mesmo uma constante
antropológica, inúmeras formações sociais o ignoram ou impedem sua emergência, sem que isso seja índice
de uma carência constitutiva. E, no caso das sociedades com Estado, a homogeneização das suas formas é
relativa ao processo histórico do capitalismo, e não explica a razão do processo – antes o supõe. Em 1990,
Gilles disse a um interlocutor: creio que Félix e eu, talvez de maneiras diferentes, continuamos ambos
54
G. Deleuze, “Três problemas de grupo” [1972] in A ilha deserta e outros textos.
55 G. Deleuze, “Capitalismo e schizophrenia”, [1972] in A ilha deserta e outros textos.
56
G. Deleuze e F. Guattari, Capitalismo e esquizofrenia, volume 1 – O Anti-Édipo. S. Paulo: Editora 34, p. 47.
57
K. Uno, Guattari: Confrontações, p. 57.
58
E. Viveiros de Castro, “”Filiação intensiva e aliança demoníaca”, Novos Estudos CEBRAP, 77, 2007.
12
marxistas... não acreditamos numa filosofia política que não seja centrada na análise do capitalismo e de seu
desenvolvimento.59 Um traço da dupla foi “nunca ter uivado com os lobos” 60 contra o filósofo de Trier – e
Gilles cogitava uma obra derradeira, chamada Grandeza de Marx... Cinco décadas atrás, o primeiro volume
de Capitalismo e esquizofrenia foi um agenciamento de enunciação em meio à “crise do marxismo”, naquela
conjuntura histórica em que o ar era vermelho – uma época em que se podia ser comunista e inteligente, mas
não marxista, ou comunista e marxista, mas não inteligente, ou marxista e inteligente, sem ser comunista, e
finalmente foi possível ser as três coisas ao mesmo tempo: um intelectual comunista produzindo um discurso
sobre Marx à altura das teorias que dominavam o campo intelectual. 61
Em dezembro de 1971, Gilles escreve: Ah, por qual delicadeza das coisas nosso livro termina num 31 de
dezembro, para bem marcar que os fins são inícios. Este trabalho é bem bonito, marca da sua força criativa,
62
e da inventividade e da fluidez do meu esforço.... Tempos depois, em 1984, Félix avaliará o encontro: muita
gente pensa que, desde que Gilles começou a trabalhar comigo, ele não vale mais nada, que ficou perdido.
Gente que diz que antes ele era ótimo e que, a partir do momento em que encontrou Guattari, ele acabou.
Bem, eu acho que o estimulei a sair do campo tradicional, ou seja, trabalhamos de modo intenso sobre a
etnografia, sobre problemas econômicos etc... De minha parte, trabalhei setores inteiros em que tive de criar
um campo de competências, por exemplo, a antropologia.... Também introduzi dimensões gerais na ordem
das preocupações políticas, além de um certo número de temáticas, como a do phylum maquínico, da
desterritorialização, das máquinas abstratas etc.… para experimentar uma nova língua.... No fim das contas,
63
eu Gilles e eu criamos uma língua. Uma língua com a qual muita gente começou a falar conosco...
59
G. Deleuze, “Controle e devir” [entrevista a Toni Negri, 1990] in Conversações.
60
Isabelle Garo, Foucault, Deleuze, Althusser et Marx. Paris: Ed. Demopolis, 2011, p.189.
61
François Matheron, “Louis Althusser, o la pureza impura del concepto” in Demarcaciones, 7, 2014 [ https://goo.gl/dJaTRv].
62
G. Deleuze, Cartas e outros escritos, p. 53.
63
K. Uno, Guattari: Confrontações, p. 49.