V Í R U S , CO N TA M I N AÇÕ E S E CO N F I N A M E N TO S
PANDEMIDIA
LabArteMídia
Almir Almas
Luís Fernando Angerami Ramos
Deisy Fernanda Feitosa
Daniel Lima
Lyara Oliveira
João Knijnik
(Orgs.)
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes
ISBN 978-65-88640-14-2
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
Diretor: Prof. Dr. Eduardo Henrique Soares Monteiro
Vice-Diretora: Profa. Dra. Brasilina Passarelli
DEPARTAMENTO DE CINEMA, RÁDIO E TELEVISÃO
Chefe: Prof. Dr. Almir Antonio Rosa [Almir Almas]
Vice-Chefe: Prof. Dr. Rubens Arnaldo Rewald
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEIOS E PROCESSOS AUDIOVISUAIS
Coordenador: Prof. Dr. Eduardo Vicente
Vice- Coordenador: Prof. Dr. Atílio José Avancini
LabArteMídia – LABORATÓRIO DE ARTE, MÍDIA E TECNOLOGIAS DIGITAIS
Coordenador Geral: Prof. Dr. Almir Almas
Vice-Coordenador: Prof. Dr. Luís Fernando Angerami Ramos
Este livro foi elaborado durante a gestão do LabArteMídia acima
COMISSÃO DE SELEÇÃO:
Almir Almas (Escola de Comunicações e Artes/USP)
Luís Angerami (Escola de Comunicações e Artes/USP)
Deisy Fernanda Feitosa (Escola de Comunicações e Artes/USP)
Daniel Lima (Escola de Comunicações e Artes/USP)
Lyara Oliveira (Escola de Comunicações e Artes/USP)
João Knijnik (Escola de Comunicações e Artes/USP)
1a Edição | São Paulo | 2020
Escola de Comunicações e Artes / USP
Parceria: Invisíveis Produções
Capa: “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes
P189
Pandemídia [recurso eletrônico] : vírus, contaminações e confinamentos /
organização Almir Almas … [et al.] ; projeto gráfico Daniel C F Lima. –
São Paulo: ECA-USP, 2020.
240 p .; il.
ISBN 978-65-88640-14-2
DOI 10.11606/9786588640142
1. Quarentena - Aspectos sociais. 2. Covid 19 - Impactos sociais. 3 Audiovisual. 4. Arte.
5. Mídia. 6. Comportamento. I. Almas, Almir. II. Lima, Daniel C F.
CDD 23. ed. – 302.23
Elaborado por: Alessandra Vieira Canholi Maldonado CRB-8/6194
Atribuição-SemDerivações-SemDerivados
CC BY-NC-ND
Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte
e autoria e respeitando a Licença Creative Commons indicada.
Parceria:
DOI 10.11606/9786588640142
V Í R U S , CO N TA M I N AÇÕ E S E CO N F I N A M E N TO S
PANDEMIDIA
LabArteMídia
Almir Almas
Luís Fernando Angerami Ramos
Deisy Fernanda Feitosa
Daniel Lima
Lyara De Oliveira
João Knijnik
(Orgs.)
2020
APRESENTACAO
A pandemia obrigou o LabArteMídia a rever seus planos para o ano de 2020. Com
os encontros presenciais cancelados, passamos a nos reunir, como a maioria dos seres humanos, por meios virtuais. As discussões se voltaram para esta nova realidade. Debatemos,
ainda atônitos, sobre teorias conspiratórias e definições vindas do esforço geral de entender aquele momento. Novo normal, ou novo anormal? Sairíamos mais ou menos sábios?
Vivos ou mortos? E o audiovisual, que transformações traria? Foram conversas animadas,
às vezes confusas, sempre afetivas, de procura, entre conceitos teóricos, devaneios e experiências pessoais. Daí surgiu a ideia de chamar uma publicação que expandisse o conhecimento sobre este fenômeno do confinamento e seus efeitos nas nossas
matérias-primas, nossos objetos de estudo: a arte, as mídias, a geração de novas tecnologias audiovisuais, as conexões que podemos fazer com as lutas identitárias em favor da
igualdade de raças e gêneros. Seria uma publicação científica, solicitando o rigor da reflexão teórica, ao mesmo tempo em que abriria o caminho para manifestações artísticas que
se permitissem residir no formato livro virtual. Queríamos, com ela, compreender como as
mídias tomaram outras formas e se disseminaram de maneira compatível com o temido
vírus. Ou, em última instância, aqueles que responderiam ao nosso chamado trariam contribuições que nos dissessem e nos mostrassem o que a pandemia trouxe para a nossa área
e que experiências estaríamos vivendo e que valessem a pena publicar e divulgar.
Essa publicação, leitor, está chegando à sua tela agora, e se chama Pandemídia.
Os trabalhos chegaram com uma variedade de abordagens. Muitos eram reflexões
bem gerais, sobre o futuro do audiovisual, partindo do momento extremo em que estávamos e ainda estamos vivendo. Outros focaram em eventos específicos, nas redes sociais, na produção artística contemporânea, nas possíveis narrativas da Internet, e
naquelas que se revelavam como a expressão do momento. De imediato, houve uma
grande dificuldade em se fazer uma classificação. Daí, agrupamos os textos selecionados
que tivessem alguma identidade, em variações da Pandemídia.
O primeiro capítulo, “Mundo em Quarentena: inspirações e afetações”, refere-se
a questões mais abrangentes, que procuram compreender a pandemia no seu aspecto
sociológico e filosófico. Como resume bem um dos autores, Fabrício Oliveira, vivemos
uma “crise complexa; em primeira instância, médico-sanitária; em última instância, civilizacional”. Os textos projetam efeitos futuros, desvendam lugares comuns como “o novo
normal”, apontando definições apressadas e se podemos considerar a pandemia como
algo transformador, um impulso à redenção da humanidade, um passo evolutivo ou algo
que veio radicalizar desigualdades e consolidar a irracionalidade.
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Seguimos para abordagens direcionadas ao audiovisual. O capítulo “Audiovisual
Viral: audiovisualidades entre vírus e janelas” traz artigos versando sobre legislação e
mercado, e também sobre a criação e produção neste mundo transformado em confinamento. Um subgênero cinematográfico, os filmes de zumbis, é contextualizado para
a crise sanitária, como explica o autor do texto, Lúcio Reis Filho: “no século XXI, as narrativas de zumbis trazem o tema da pandemia que leva ao colapso da modernidade tecnológica e do capitalismo transnacional em escala planetária.”
No capítulo “Comportamentos em Lockdown: imuniz(ações) e reações”, o olhar
se volta para entender como a pandemia mudou comportamentos e transformou relacionamentos. Esta perspectiva se evidencia já no artigo de Giovanna Caetano da Silva,
que diz: “o fio que conecta gerações na receita de bolo ou na história de ninar é o
mesmo que pede colo na chamada de vídeo.” É uma singela, porém bem posicionada
mensagem de uma neta para sua avó. A citação vale para outros artigos do capítulo
como o questionamento dos corpos sexuais reclusos em seus lares; uma reflexão sobre
a máscara, seus significados na pandemia; e um projeto já consolidado que permite a
famílias e amigos vivenciar e realizar o luto através de meios virtuais.
O fenômeno das lives foi contemplado com questionamentos sobre sua validade,
se é um fenômeno passageiro ou se realmente vamos ter permanentemente a tela como
mediação, seja no entretenimento, ou na educação. Existe a tendência, então, de que
daqui pra frente os atos de comunicar, ensinar e aprender terão mediação de telas como
premissa. No capítulo “Viralização da Live: a ressignificação da presença”, os artigos comentam o envolvimento de músicos, intelectuais e artistas e também o ponto de vista
do receptor, os milhões de espectadores que ligaram seu dispositivo para assistir um
show, uma aula, um debate. No próprio título de um dos artigos, “Mais um ensaio que
deveria ser uma live”, já está embutido a relevância que este termo ainda impreciso adquiriu para nossa atenção.
No capítulo “Sintomas em Rede: atravessamentos e (des)encontros”, conceito de
rede está presente como interligação de atividades e seus participantes numa Rede de
Solidariedade no Piauí de combate à covid-19. Sob um outro aspecto, um artigo aborda
uma rede social - no caso, o Instagram - e as reações de usuários sobre a imagem de celebridades em tempos de pandemia, reconhecendo assim “o enorme potencial de rede
e na rede” como enfatiza a autora, Thayla Bertolozzi.
A criação em prosa finca uma cunha na fala acadêmica com dois textos no capítulo
“Prosa Pandêmica: poesia do existir além vírus”; um de ficção, outro de crônica. São
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duas visões do isolamento, do medo, do contato com um vírus invisível que pode se materializar em gêneros, sons e imagens. Com um DJ muito mais que infectado pelo vírus
e os fragmentos de um casal confinado no seu apartamento que delira entre citações e
linguagens, temos o fantástico e o prosaico se alternando em volta do mesmo horror.
No capítulo “Anticorpos Artísticos: arte como antígeno, resistência, sobrevivência”,
os temas se complementam na intenção de valorizar o caráter transgressor da arte. Uma
videoinstalação gera várias reflexões e põe a nu as concepções ideológicas e estéticas
de seu autor. Um ensaio artístico desenvolvido no Instagram se utiliza dos conceitos de
contaminação e compartilhamento para disseminar diversas manifestações artísticas. As
bases para uma curadoria interativa propõem que o espectador tenha uma participação
ativa no jogo que lhe é proposto.
As artes visuais também se apresentam em Ensaios Visuais. Suas imagens pontuam
os sete capítulos. São olhares e vivências sobre a pandemia. Entre o humor e o lirismo,
imagens e palavras se combinam e procuram captar a essência do que está pairando
no ar além da própria covid-19. Fotos de fora para dentro, projetos artísticos em construção, o sarcasmo penetrando por imagens numa pesquisa histórica e artística sobre o
uso da máscara; são propostas que inserem a imagem no caos da pandemia.
Nesses olhares tão diversos, esta publicação traz um painel de ideias, de pensamentos, de sensações que jogam luz sobre este entrecruzamento entre a pandemia e
as mídias. Queremos que, ao acessar o ebook Pandemídia, o leitor possa mobilizar suas
reflexões toda vez que abrir uma tela. Confinados ou não, mesmo com as vacinas começando a chegar às populações de alguns paises – no momento desta publicação –
as transformações decorrentes da pandemia , se não vieram para ficar,indicaram novas
formas com que se produz e se consome imagens.
Organizadores
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ORGANIZADORES
ALMIR ALMAS
Professor Associado e Chefe do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e Pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo. Coordenador Geral do Grupo de Pesquisa LabArteMídia – Laboratório de Arte, Mídias e Tecnologias
Digitais e Co-fundador e Co-Coordenador, ao lado de Deisy Fernanda Feitosa, do Observatório Brasileiro de
Televisão Digital e Convergência Tecnológica (Obted), na Universidade de São Paulo. Doutor e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cineasta/ Videoartista/VJ; Artista
do Coletivo de Arte Cobaia. Membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão (SET)
e membro do Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (Fórum SBTVD). Autor de "Televisão digital
terrestre: sistemas, padrões e modelos", dentre outros livros e artigos.
LUÍS ANGERAMI
Professor doutor da Universidade de São Paulo, atuando no Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola
de Comunicações e Artes da USP desde 1997, sendo responsável por disciplinas nas áreas de direção e linguagem audiovisual. Pesquisador nas áreas de Audiovisual (cinema, TV e vídeo) e Comunicação Ambiental.
Vice coordenador do Grupo de Pesquisa LabArteMídia - Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais. No
campo da realização audiovisual, atuou em atividades de criação, roteirização, produção e direção de programas em vídeo, TV e cinema.
DEISY FERNANDA FEITOSA
Jornalista, radialista, professora universitária (Centro Universitário Senac e Universidade Anhembi Morumbi)
e colaboradora da Revista da SET (Sociedade de Engenharia de Televisão). Cofundadora e cocoordenadora,
ao lado professor Dr. Almir Almas, do Observatório Brasileiro de Televisão Digital e Convergência Tecnológica
(Obted-CTR-ECA/USP) e pesquisadora do LabArteMídia (CTR-ECA/USP). É mestre em TV Digital (Faac/Unesp),
Doutora em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e Pós-Doutora pelo Núcleo de Estudos das Diversidades,
Intolerâncias e Conflitos (Diversitas – FFLCH/USP). Desde 2005, realiza pesquisas que relacionam televisão
aos seguintes eixos temáticos: televisão digital, comunicação comunitária, interatividade, inclusão sociodigital,
educação, telejornalismo, representatividade e convergência tecnológica.
DANIEL LIMA
Artista, curador, editor e pesquisador. Bacharel em Artes Plásticas, mestre em Psicologia Clínica, doutorando
em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo e membro do laboratório LabArteMídia.
Desde 2001, cria investigações-ações em pesquisas relacionadas à mídia, às questões raciais, às resistências
coletivas, ao presente colonial e às análises geopolíticas. Membro fundador de diversos coletivos, entre eles,
a Frente 3 de Fevereiro com trabalhos desenvolvidos em várias cidades do mundo. Recebeu em sua carreira
mais de 15 prêmios nas áreas de Artes Visuais, Cinema e Estudos Sociais, tendo participado de diversas exposições, festivais internacionais e seminários. Dirige a produtora e editora Invisíveis Produções.
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LYARA OLIVEIRA
Artista audiovisual, criadora de conteúdo audiovisual e de experiências imersivas, professora e pesquisadora.
Mestre em Artes Visuais. Doutoranda na ECA/USP, onde realiza pesquisa sobre audiovisual e realidade virtual,
integrando o grupo de pesquisa LabArteMídia. Atualmente leciona na Faculdade Cásper Líbero, na ESPM e
na FAAP. Participa da APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro e atua como administradora
do Mulheres do Audiovisual Brasil.
JOÃO KNIJNIK
Mestre em Comunicação Social na UNIP (2015). Roteirista cinematográfico de documentários antropológicos,
como “Sal nas veias - o povo do mar em Acaraú” (2020) e também de vídeos 360°, como “Beco 360” (2019).
Professor de cursos de cinema e literatura. Diretor e roteirista do vídeo POLACO LOCO PACA com os poetas
Paulo Leminski, Retta e Alice Ruiz. Já tem contos publicados em várias antologias como “@normal” (2020). O
conto “Personagens” foi premiado no 4° Concurso de Contos da cidade de Lins (2014).
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PREFACIO
A URGÊNCIA DE SE PENSAR EFEITOS DA PANDEMIA
NA MÍDIA CONTEMPORÂNEA
Alessandra Meleiro
O e-book PANDEMÍDIA: Vírus, Contaminações e Confinamentos, levado a cabo
pelo LabArteMídia, nasce ao fim de nove meses completos de pandemia da covid-19
em nosso país, gerado em circunstâncias incomuns e durante a mais profunda crise econômica de nossas vidas.
Diferentes foram os prognósticos realizados para entender o impacto e a extensão
da crise na economia nacional, como o da Fundação Getúlio Vargas, que evidenciou
que, caso não houvesse o coronavírus, a década atual já seria a 'mais perdida' em termos
de crescimento econômico dos últimos 120 anos, pior do que os anos 1980, chamados
de 'década perdida'1.
A pesquisa do IBGE “Pulso Empresa: Impacto da covid-19”2 também se voltou a entender os efeitos da pandemia no setor de serviços, o maior gerador de empregos do país,
e o que mais foi afetado negativamente. Aqui, o impacto mais profundo foi nas pequenas
empresas e é justamente nesse segmento que as empresas do setor cultural se inserem.
A pandemia chegou paralisando produções, impedindo o funcionamento de salas
de cinema e inviabilizando o lançamento das obras produzidas em todo o mundo. Atividades culturais, como shows, espetáculos, teatros e museus foram as primeiras a serem
paralisadas, relegando toda uma gama de empresas e trabalhadores em condições limítrofes de sobrevivência. Importante ressaltar que, no Brasil, a crise desencadeada pelo
covid-19 no setor audiovisual ocorre em empresas já fragilizadas anteriormente pela
crise institucional deflagrada em 2018.
Muitos são os desafios enfrentados pelos gestores culturais e do audiovisual desde
o início da pandemia. Enormes transformações nos modos de produção, circulação e
consumo de produtos e serviços estão em andamento, exigindo reinvenções nas políticas públicas e nos modelos de negócios. Dessa capacidade de reinvenção e de ação
depende a sustentabilidade, a sobrevivência de organizações, empresas e trabalhadores
e a recuperação do setor cultural e do audiovisual enquanto durar a pandemia.
1. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/11/09/fgv-ibre-estudo-brasil-dez-maiores-economias-pib.htm. Acesso em 02/12/2020.
2. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/28291-pesquisa-pulso-empresa-impacto-da-covid-19-nas-empresas.html?=&t=o-que-e.
Acesso em 03/12/2020.
PANDEMIDIA 11
Por tudo isso, no combate aos impactos do coronavírus, governos de vários países
do globo voltaram suas ações de amparo à sociedade e mitigação de danos econômicos
também para o setor cultural e audiovisual. Em nosso país a reação do governo federal
foi tardia e, ao que parece, ineficaz. Apesar da Lei nº 14.017/2020 (Lei Aldir Blanc) ter
potencial para injetar repasses maiores que as dotações orçamentárias de alguns estados e capitais brasileiros para a cultura (37% dos estados receberão repasse maior que
sua dotação orçamentária para 2020 – com metade deles podendo somar mais que o
dobro de seu orçamento –, como Alagoas, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Santa Catarina)3, o processo foi desarticulado e os benefícios parecem não estar atendendo amplamente aos que foram mais afetados
Ao mesmo tempo em que a pandemia afetou mais fortemente os pequenos empreendedores/ produtores criativos, grandes players internacionais de Video on Demand cresceram de forma exponencial. Pela primeira vez o número de assinantes de
uma única empresa de Video on Demand, a Netflix, ultrapassou o número de assinantes
de TV paga no Brasil, segundo consultoria americana Bernstein4, o que contrariou a previsão de alguns analistas de que assinaturas estariam entre os primeiros itens a serem
cortados em meio a uma onda de demissões e temores de recessão econômica.
Apesar do Video on Demand (VoD)/ Streaming ser a nova realidade da indústria audiovisual, o que se vê nas políticas públicas federais é a desorganização de nosso aparato regulatório – aquele mesmo que impulsionou os grandes avanços dos últimos 10 anos (regulando
a TV por assinatura, por exemplo), e favoreceu as empresas, os produtores e a indústria audiovisual brasileira. Ao mesmo tempo, há iniciativas no Congresso Nacional tentando legitimar a ausência de regras econômicas para o VoD – regras estas que garantiriam o
desenvolvimento setorial e a concorrência equilibrada, resultando no aumento da oferta de
opções e na melhoria das condições de acesso e de consumo de conteúdo audiovisual.
Esta ausência de regulamentação atende aos lobbies dos grandes players internacionais, que reconhecem o Brasil como um grande mercado consumidor de audiovisual
e buscam ocupá-lo monopolisticamente, relegando nosso país a apenas consumidor, e
não produtor de cultura, de audiovisual.
Com ou sem pandemia, com ou sem Ministério da Cultura em nosso país, os interesses continuam em disputa. A economia do audiovisual é uma economia central no
mundo contemporâneo, e os lobbies que disputam o futuro dessa economia não param
3. Dez anos de Economia da Cultura no Brasil e os Impactos da Covid-19. Itaú Cultural, São Paulo, 2020.
4. https://www.infomoney.com.br/consumo/brasil-tem-mais-assinantes-da-netflix-de-que-tv-a-cabo-segundo-consultoria-americana/.
Acesso: 02/11/2020
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porque o governo brasileiro intencionalmente decidiu paralisar a indústria audiovisual
nacional – ao contrário: percebem a fragilidade desta política, e estão ocupando este
espaço. O mesmo ocorre em Portugal: ao final do ano de 2020, o país aprovou proposta
de lei que inclui a criação de uma nova taxa de apenas 1% anual para as plataformas de
streaming, relativa ao volume de negócios desses operadores no país – muito aquém
do necessário para assegurar a proteção da indústria audiovisual local.
Em direção contrária, na França, ao final deste mesmo ano pandêmico de 2020, há
uma proposta legislativa de transposição para a lei francesa de uma diretiva europeia
de 2018 - que atualiza e harmoniza a legislação sobre serviços de audiovisual entre os
Estados-membros da União Europeia -, na qual as plataformas de streaming deverão investir entre 20-25% dos seus proveitos em cinema e audiovisual francês ou europeu,
algo que seria revolucionário e estruturante para o cinema e audiovisual do país.
De qualquer forma, resta a dúvida do que iremos consumir no próximo ano. A retomada da produção das obras audiovisuais dependerá da adoção de novas medidas
de segurança, prevenção à contaminação e distanciamento social, que poderão alterar
a concepção de produção cultural da forma na qual estamos acostumados.
Neste sentido, protocolos de produção foram elaborados nacional e internacionalmente, estabelecendo diretrizes a serem seguidas para a retomada das atividades presenciais para o setor audiovisual, que inclui a utilização obrigatória de máscaras, luvas
e protetor facial, bem como o uso de outros equipamentos de proteção individual (EPIs)
para evitar o contágio do vírus.
Tão complexo quanto conter a contaminação pelo vírus é conter a contaminação
pela desinformação que se espalha em texto, imagens, vídeos e som pelas redes sociais:
ao fenômeno Pandemídia, cunhado pelo LabArteMídia, associa-se a Desinfopandemia,
termo cunhado pela UNESCO. Ambos trazem importante contribuição para, publicamente, evidenciar o papel societário da pesquisa, da comunicação e das boas e responsáveis práticas midiáticas, rumo a um futuro melhor.
ALESSANDRA MELEIRO
Pós-doutorado junto à University of London e Professora do Bacharelado em Imagem e Som da Universidade
Federal de São Carlos. Presidente do IC – Instituto das Indústrias Criativas, membro da UNCTAD/ONU. Foi Presidente do FORCINE entre 2014-2018. Autora de 12 livros sobre cinema mundial, políticas e indústria audiovisual. Atuou como Research Fellow na Dinamarca junto à Aarhus University (2012-2018) e VIA University
College/ School of Business, Technology and Creative Industries (2020) e como Consultora de empresas como
Netflix Brasil e Anima Mundi/JLeiva.terrestre: sistemas, padrões e modelos", dentre outros livros e artigos.
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INDICE
CAPÍTULO I
MUNDO EM QUARENTENA:
INSPIRAÇÕES E AFETAÇÕES
Somos o que produzimos? Uma reflexão sobre a mídia em plena quarentena
23
Luís Fernando Angerami Ramos e Beatriz Di Giorgi
A falácia do suposto novo normal
30
Piero Sbragia
Uma temporada na caverna
37
Carlos Turdera
Pandemia / Pandemônio
41
Fabrício Silveira
Pandemia covid-19. Reflexões acerca do hoje e o devir
49
Sidney de Paula Oliveira
Os principais problemas da cobertura sobre a pandemia
criticados em colunas de ombudsman
55
Diana de Azeredo
Flusser em Wuhan
Gilson Schwartz
61
CAPÍTULO II
AUDIOVISUAL VIRAL:
AUDIOVISUALIDADES ENTRE VÍRUS E JANELAS
Questionamentos Pandêmicos: o fazer audiovisual para as telas através das telas
67
Lyara Oliveira
Covid-19: Mudanças e confirmações na TV e serviços de streaming
70
Fernando Carlos Moura
Cinema de casa: poéticas de atravessamento em tempos de pandemia
77
Tatiane Mendes Pinto
Parece um filme de terror: relações entre a pandemia de covid-19
e os filmes de zumbi
Lúcio Reis Filho
83
CAPÍTULO III
COMPORTAMENTOS EM LOCKDOWN:
IMUNIZ(AÇÕES) E REAÇÕES
Os sentidos das máscaras: COVID, bombas de gás lacrimogêneo e deep fakes
92
Marcus Bastos
Labaredas da dissidência sexual em tempos comunicacionais asfixiantes
99
Vicente de Paula
Conexão intergeracional
106
Giovanna Caetano da Silva
Transcender: luto, rituais, tecnologias virtuais e reinvenção da presença
Projeto Transcender (publicação coletiva)
111
CAPÍTULO IV
VIRALIZAÇÃO DA LIVE:
A RESSIGNIFICAÇÃO DA PRESENÇA
Apocalipses, lives e o novo normal: um ensaio epidemiológico musical
122
Regis Rossi A. Faria e Diósnio Machado Neto
Rock and Roll, mídia contemporânea e fake news:
efeitos pré, durante e pós-pandemia
132
Rafael Bitencourt e Claudia Assencio de Campos
Das caixas de música ao vaudeville doméstico na web:
o show das lives em um Brasil confinado pela covid-19
138
Márcio Rodrigo Ribeiro
Eventos e tecnologias audiovisuais durante o isolamento:
Expressividade e excesso de lives musicais
145
Fernanda Castilho e Gabrielle Cifelli
Mais um ensaio que deveria ser uma live
Fernando Cespedes
151
CAPÍTULO V
SINTOMAS EM REDE:
ATRAVESSAMENTOS E (DES)ENCONTROS
Fiscais de quarentena em rede:
reflexões sobre o uso do Instagram, no Brasil, como verificador de cumprimento do
isolamento social associado à Pandemia de covid-19
160
Thayla Bicalho Bertolozzi
Quem cuida de quem cuida? A Rede de Solidariedade de Segurança do Trabalho no
Combate e Prevenção à covid-19 no estado do Piauí. Uma utilização da comunicação
audiovisual para o “novo normal”
167
Orlando Maurício de Carvalho Berti
Reflexões sobre o movimento na Idade Mídia
Helena Araújo
175
CAPÍTULO VI - PROSA PANDÊMICA:
POESIA DO EXISTIR ALÉM VÍRUS
Infecção
182
João Knijnik
Fragmentos
187
Rafaela Bernardazzi e Vanessa Paula Trigueiro
CAPÍTULO VII - ANTICORPOS ARTÍSTICOS: ARTE COMO
ANTÍGENO, RESISTÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA
Práticas e processos de uma vídeo-intervenção em estruturas privadasde lazer
na costa britânica em diálogo com ataques incendiários pré-pandêmicos
198
Roderick Steel
PEÇA 1 | 3
204
Anna Lucchese, Marcos Lamego e Roberto D’Ugo
Novas formas de lidar com as imagens em rede
a partir de um pensamento de curadoria interativa
212
Fernanda Oliveira e Paula Squaiella
@AMULTIDAO: eXtremidades nas redes
audiovisuais em tempos de pandemídia
Christine Mello e Larissa Macêdo
219
EPÍLOGO - LABORATÓRIO VISUAL
Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar
232
Letícia Santana Gomes
Sem Título
234
Daniel Seda
Estética da Quarentena: Um ensaio visual
Vinicius Alves Sarralheiro
236
CAPÍTULO I
MUNDO EM QUARENTENA
I N S P I R AÇÕ E S E A F E TAÇÕ E S
SOMOS O QUE PRODUZIMOS?
UMA REFLEXÃO SOBRE A MÍDIA EM PLENA QUARENTENA
Luís Fernando Angerami Ramos e Beatriz Di Giorgi
1 - UM OLHAR SUBJETIVO
Com Pandemídia, o LabArteMídia nos convida a pensar efeitos da pandemia na
mídia contemporânea e nos instiga a “abraçar as contradições que vêm com tal acontecimento”. É justamente este universo de contradições que provoca a reflexão que se
segue: somos o que produzimos? Uma reflexão permeada de perguntas. Sua riqueza é
o calor e a emoção do momento, em que pese a falta de distanciamento.
2 – A IMPOSIÇÃO MIDIÁTICA DE ACOMPANHAR A VIDA EM TEMPO REAL
De imediato, todos nós temos constatado que os assuntos ‘pandemia’ e ‘a vida na
quarentena’ tomaram as redes em escala mundial. Milhões de pessoas estão confinadas
em suas casas e, como consequência natural, recorrem às redes sociais para manter contato com a família, com amigos, desenvolver atividades profissionais, educativas, e buscar informação, alívio e distração em sessões de lives, webinares, cursos online, vídeos
e etc. Um movimento, quase que involuntário, de aderir, penetrar e participar do espetáculo midiático, devido à necessidade/urgência de estar presente, de realizar, de produzir. Atos que já faziam parte do nosso cotidiano antes da pandemia e, agora, parecem
ter se tornado uma obrigação. É nesse contexto que surgem repetições exaustivas de
afirmações de que ‘o mundo mudou’ e que, de agora em diante, estamos sob a égide
de ‘um novo normal’ mediado, essencialmente, pelas mídias digitais. Estas falas parecem
querer significar que, passada a pandemia, as relações humanas estarão substancialmente transformadas. Será?
3 – A ELABORAÇÃO DA DOENÇA E DO LUTO NAS REDES SOCIAIS
A covid-19 explicitou nossa fragilidade enquanto seres vivos, escancarou a presença da morte em um contexto cultural em que as pessoas são, via de regra, despreparadas para lidar com a impermanência. Há alguns anos temos observado que a
comunicação digital via internet, ainda que discretamente, vem mudando a relação das
pessoas com a morte, como se pode observar com a manutenção de perfis de usuários
PANDEMIDIA 23
nas redes sociais mesmo depois de suas mortes. Esses perfis têm funcionado como uma
espécie de tributo e representam uma novidade na forma de lidar com os mortos, muitas
vezes tratados como se vivos estivessem.
Recentemente, uma experiência que chamou muita atenção foi o uso da realidade
virtual para promover um “encontro” entre uma mãe e sua filha falecida, na Coréia do Sul.
O programa "Meeting You", criou uma versão virtual de Nayeon, que morreu em 2016,
aos 7 anos de idade, com a voz, as feições e o corpo da menina, e gravou a conversa de
sua mãe com o corpo virtual de sua filha, em 2019, como se ela estivesse viva na frente da
mãe. A realidade virtual poderá substituir a experiência de contato com o humano?
Com o avanço da pandemia e o altíssimo risco de contágio, muitas atividades concernentes ao relacionamento com doentes e mortos estão sendo realizadas via online,
com pessoas internadas em quartos, UTIs, e em sepultamentos. Neste contexto observamos que as novas formas virtuais de “visitar” ou “enterrar”, evidenciam as diferenças
sociais: os mais ricos podem realizar estes rituais, ainda que de forma limitada, enquanto
os mais pobres, muitas vezes, sequer conseguem ter contato com seus doentes e mortos,
já que hospitais, funerárias e cemitérios populares não oferecem a comunicação online.
Donde se constata que, também no universo virtual, as pessoas estão limitadas a um
determinado espaço de atuação, maior ou menor, em proporcionalidade às suas capacidades socioeconômicas. A lógica capitalista se apresenta, aqui também, com sua face
de desigualdade.
É perceptível, portanto, que até na questão da experiência do luto, a inserção na
rede virtual reproduz a dinâmica da injustiça. O que nos remete a pensar sobre o significado político da ocupação e uso das mídias sociais.
4 – BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE NATUREZA, CAPITALISMO E MÍDIA
A sociedade global tem vivido graves problemas decorrentes da forma em que
nos relacionamos com a natureza no processo de produção capitalista. Nas últimas décadas, vários alertas têm sido feitos de que é preciso repensar o conceito de produção,
na perspectiva de transformar nossa interação com a natureza. “O planeta saiu da esfera
do conhecimento local e regional, saltando para uma dimensão global: interligado pelas
redes de comunicação, qualquer ponto da Terra pode ser visualizado e pesquisado, em
qualquer momento, obtendo-se informações praticamente instantâneas sobre os mais
diversos acontecimentos que envolvem o homem, a sociedade e a natureza. A comuni24 PANDEMIDIA
cação passou a fornecer subsídios para que a humanidade se coloque diante de si
mesma numa perspectiva de avaliação de seu passado, da trajetória de seu desenvolvimento e de projeção de seu futuro.” (Ramos, 1996)
Natureza e sociedade têm uma relação histórica e interdependente. Na dinâmica
do sistema capitalista, a natureza é tida como um baú de recursos infinitos, que permite
a extração e produção de riquezas. A natureza precede o capitalismo e o ser humano
faz parte da natureza. Não obstante, o capitalismo tem acentuado a perda da identidade
do ser humano com a natureza, na medida em que o humano vai se distanciando do
seu lugar na natureza. É um processo contraditório e limitador. Ao se distanciar da natureza o ser humano perde sua liberdade, vê limitado seu acesso aos meios de produção
e consumo, restando-lhe, tão somente, vender sua mão-de-obra.
Lideranças e pensadores como Ailton Krenak (2019, p. 23), entre outros, vêm alertando para a necessidade de repensarmos nosso modo de vida: “o que aprendi ao longo
dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos
nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos
sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência da Terra não suportar
a nossa demanda.”
A necessidade de reformular a estrutura capitalista e transformar o modo de vida
da sociedade industrializada – baseada no consumo desenfreado e apoiada no distanciamento do ser humano com a natureza - aponta para uma reflexão sobre o papel das
tecnologias de comunicação digital nesse processo. Num primeiro momento, o advento
de diversos tipos de aplicativos, e sistemas de processamento de informações, foram
saudados como um portal para uma nova era de liberdade de escolha, de criar pontes
e conexões entre quem tem um trabalho/produto a oferecer e quem precisa desse
bem/serviço. Enfim, vislumbrava-se uma promessa de grande avanço nas relações de
trabalho e serviços. Passado algum tempo, temos assistido a uma apropriação dessa tecnologia por grandes corporações resultando em um processo acelerado de exploração
da força de trabalho, notadamente em camadas sociais mais vulneráveis, com jornadas
extenuantes, rendimentos diminutos, nenhuma garantia contratual, ausência de assistência médica e/ou previdenciária. Na pandemia, estamos assistindo a um processo semelhante no que tange às tecnologias de comunicação à distância, igualmente saudadas
como um grande facilitador das relações de trabalho, capazes de manter as empresas
e as escolas funcionando no período de isolamento social, enfim mantendo as engrenagens girando. No entanto, já são evidentes os problemas decorrentes: profissionais,
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de diversos setores, relatam que o ‘home office’ transformou-se num martírio, aumentando a pressão e a carga de trabalho, em meio a uma jornada já intensa de atividades
domésticas e cuidados decorrentes da proteção contra a covid-19. Resultado: esgotamento físico e mental. No campo da educação, os relatos sobre a dificuldade de acompanhar aulas à distância, de absorver conteúdos propostos, de esclarecer dúvidas e,
minimamente, interagir com os professores, têm revelado nosso despreparo para usar,
adequadamente e de forma saudável, os recursos tecnológicos disponíveis.
Por conta desses sintomas, despontam alguns questionamentos: estamos sabendo
lidar com o “novo mundo” que está sendo desenhado via online? Ou estamos reproduzindo valores do “velho mundo” em uma nova roupagem ainda mais perversa? A sociedade virtual poderá substituir a experiência de contato com o humano, com a natureza?
5 – A ONIPOTÊNCIA DA PRESENÇA VIRTUAL
A exacerbação do papel das mídias sociais parece nos dizer, a todo tempo, que se
não produzirmos, se não nos expressarmos, não existimos. O silêncio nas mídias equipara-se a uma morte simbólica do ser. Não basta ser, é preciso postar (estar presente
nas mídias). Eis mais uma forma de servidão contemporânea que, com diferentes algozes, parece alimentar à insaciável sede do capitalismo.
Essa situação que a pandemia nos impôs nos leva a refletir com mais intensidade
sobre o comportamento que estamos demonstrando no uso das mídias digitais. Por um
lado, está forjado, nas “bolhas” que ocupamos, o entendimento que o atual estado de
isolamento físico é decorrente de um processo histórico de esgotamento das relações
com o meio ambiente, de trabalho e do consumismo desenfreado. Por outro, estamos a
reproduzir uma participação passiva e subserviente ao sistema, nos colocando no lugar,
ou aceitando o lugar, daqueles que têm que produzir / mostrar / registrar o que está a
nossa volta, sob ameaça de não valorizarmos nossa existência. Em outras palavras, é
complicado pretender afastar-se da lógica capitalista que nos têm como objetos e, ao
mesmo tempo, nos submetermos às exigências midiáticas de fazer, no mínimo, um “espetáculo” por dia e sermos, assim, reduzidos ao que postamos, ao que produzimos. Superar essa contradição é um enorme desafio a ser enfrentado por todos nós.
Ao longo da história, o ser humano se viu, inúmeras vezes, diante da exigência de
limitar o uso de objetos que inventou, sob pena de se ver por eles destruído. O que
ocorre com o avião, por exemplo, que pode servir para vencer longas distâncias com
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rapidez assim como pode servir para realizar bombardeios. Ou como uma faca, que
pode ser a arma de um homicídio ou o bisturi que salva uma vida. As mídias digitais que
nos avisam dos horrores que se pratica mundo a fora, como o brutal assassinato de
George Floyd, agilizam a organização de protestos antirracistas e contra a violência policial, ao mesmo tempo em que também são veículo de disseminação de ódio, nazismo,
racismo e homofobia.
A questão que envolve o uso das criações humanas é de máxima importância para
definição dos rumos da história. Percebemos que há risco real de persistimos na inversão
de papéis e sermos dominados pelos desígnios de grandes corporações e não conseguirmos nos libertar da opressão do trabalho exagerado e mal remunerado, desprovidos
de capacidade decisória e de autonomia de vontade.
6 – UM NOVO MUNDO? OU O MESMO MUNDO? QUAL MUNDO QUEREMOS?
Em artigo veiculado no Jornal da USP, Camila Braga nos informa que o movimento
criado pelo Conselho Latino-Americano de Investigação para a Paz (Claip), cujo slogan
‘Uma Nova Normalidade é possível e necessária’ “convida cidadãos latino-americanos
e ao redor do mundo a refletir sobre o passado, presente e futuro de nossas sociedades.
Nosso objetivo é estimular o compromisso cidadão com a construção participativa de
uma nova normalidade justa e necessária, por meio da conscientização e reflexão coletiva. Iniciado no dia 14 de maio, esse movimento de comunicação para a paz visa ainda,
através da ação coletiva, a tensionar as estruturas, narrativas e práticas que antes considerávamos normais”.
Em um trecho o manifesto afirma: “a profunda crise mundial que hoje sofremos por
conta do vírus SARS CoV-2 é um sintoma da normalidade enferma em que vivíamos. A
virulência da crise é potencializada por um modelo civilizatório que antepõe os interesses
particulares sobre os direitos universais, que privatiza os benefícios e socializa as perdas,
que estimula a acumulação de uns poucos à custa do despojo de muitos e que impõe
uma cultura política aniquiladora da vida. Nenhum bem está a salvo das garras do
egoísmo exacerbado por políticas privatizadoras que se fazem passar por públicas: nem
a água que bebemos, nem o ar que respiramos. Tampouco nossa exígua liberdade se
encontra a salvo, agora confundida com a auto exploração a qual nos submetemos.”
Em suma, a pandemia nos trouxe a urgência de questionar a lógica produtivista:
quanto mais você produz, mais é exigido de você e menos sua produção é valorizada.
PANDEMIDIA 27
O lucro prevalece sobre a pertinência da produção, a quantidade se sobrepõe à qualidade e à necessidade.
Nesse contexto, o sociólogo Bruno Latour, em artigo recente “Imaginar gestos que
barrem o retorno da produção pré-crise”, se alia àqueles que acreditam que a pandemia
mostrou ser possível desacelerar o sistema econômico, constatação que contradiz discursos políticos hegemônicos que vinham negando a possibilidade concreta de transformação dos modos de vida. Latour aventa a tese que a interrupção da nossa forma de
viver (a alteração do nosso modus vivendi), imposta temporariamente pela pandemia,
oferece um caminho de reflexão sobre o mundo que queremos. Nesse contexto, ele sugere que respondamos, primeiro individualmente e depois coletivamente, algumas perguntas essenciais e complexas, que ele formulou para tentarmos fazer a mudança:
1. Quais as atividades agora suspensas que você gostaria de que não fossem retomadas?
2. Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem
sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes.
3. Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles
trabalhadores / empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar
nas atividades que você está suprimindo?
4. Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?
5. Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis.
6. Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados / agentes /
empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar /
desenvolver / criar esta atividade?
Estamos em um momento crucial, precisamos descobrir o que queremos do
mundo e do papel da mídia digital, bem como desenvolver uma espécie de metodologia para alcançar a transformação almejada. Talvez as questões propostas por Bruno La-
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28 PANDEMIDIA
tour e pelo manifesto ‘Uma Nova Normalidade’ possam oferecer um roteiro inicial para
uma reflexão sobre os caminhos para nos contrapormos às forças que nos querem limitar
apenas ao que produzimos. Os seres humanos têm, certamente, potencial para ser muito
mais do que isso.
REFERÊNCIAS:
BRAGA, Camila Braga. “Por uma nova normalidade”. 29/05/2020. Disponível em
jornal.usp.br/?p=325602 . Acesso em 10/06/2020.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LATOUR, Bruno. “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”. 29 março 2020. Tradução
Déborah Danowski. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5243658/mod_resource/content/0/B%20Latour%2C%20Imaginar
%20gestos%20que%20barrem.pdf. Acesso em 10 maio 2020.
RAMOS, Luís Fernando Angerami. Meio Ambiente e Meios de Comunicação. São Paulo: Annablume &
Fapesp, 1996.
“Uma nova normalidade”. Manifesto do Conselho Latino-Americano de Investigação para a Paz, CLAIP.
14/05/2020. http://unanuevanormalidad.org. Acesso em 10/06/2020.
LUÍS FERNANDO ANGERAMI RAMOS
Professor doutor da Universidade de São Paulo, atuando no Departamento de Cinema, Rádio e TV da Escola
de Comunicações e Artes da USP desde 1997, sendo responsável por disciplinas nas áreas de direção e linguagem audiovisual. Pesquisador nas áreas de Audiovisual (cinema, TV e vídeo) e Comunicação Ambiental.
Vice coordenador do Grupo de Pesquisa LabArteMídia - Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais. No
campo da realização audiovisual, atuou em atividades de criação, roteirização, produção e direção de programas em vídeo, TV e cinema.
BEATRIZ DI GIORGI
Advogada, conselheira da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP, conciliadora/mediadora judicial
e privada. Foi professora na Faculdade de Direito da PUC/SP e, atualmente, leciona na APAMECO - Academia
Paulista de Mediação e Conciliação. É autora de diversos artigos e livros abordando temas jurídicos, direitos
humanos, feminismo, ética, conciliação e mediação. É também poeta e publica regularmente poesias em diversas revistas especializadas.
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A FALÁCIA DO SUPOSTO
NOVO NORMAL
Piero Sbragia
Ficamos plenos de esperança, mas não cegos diante de
todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias
questões a enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior
de acreditar novamente no valor da vida.
Conceição Evaristo em “Olhos d’água”
Certamente você já ouviu falar em novo normal, certo? Essa expressão tem sido
repetida exaustivamente durante a pandemia do novo coronavírus pelas empresas de
jornalismo, por agentes do mercado financeiro e até por esses gurus de autoajuda que
ficam milionários vendendo livros com receitas de sucesso, amor e gratidão. Normal é
um adjetivo de duplo gênero, com origem no latim normalis, que significa aquilo que
remete a algo feito com esquadros (sim, aquele instrumento usado para traçar ângulos
que você já manuseou no colégio). Normal é tudo aquilo feito conforme a regra ou
norma, sem defeitos, correto de acordo com algum ponto de vista. Para que algo seja
normal é preciso ser considerado aceitável por uma maioria comum. Anormal seria
quem contraria esta maioria normal. Reside na semântica e na etimologia da palavra o
maior problema dela: normal é algo que exclui. E, no Brasil, exclusão faz parte de nossa
bagagem cultural e social.
Ailton Krenak lançou no fim de abril um pequeno livro com reflexões feitas a partir
de três entrevistas que concedeu durante a quarentena. Krenak, ambientalista e uma
das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, reflete sobre o novo normal:
"Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada
a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro". Pare e pense sobre o que diz Krenak.
Muitas pessoas estão encarando a quarentena involuntária apenas como algo provisório, o que, convenhamos, de fato é. Mas não existe na quarentena somente uma suspensão de projetos, atividades e calendário. O show da Taylor Swift, que você pagou
caro pelo ingresso, pode não rolar. A formatura do seu primo, momento de conquista e
felicidade, pode não ser remarcada. Aquela entrevista de emprego que você fez, uma
semana antes da quarentena começar, pode não dar em nada. Ou seja, não podemos
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mais ficar adiando compromissos, eventos e programações feitas no passado como se
tudo, eventualmente, fosse voltar ao normal, ou novo normal, como preferir. Krenak nos
lembra que "o futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem". Se já era difícil
conviver com o presente, cada vez mais distópico, como lidar agora com o fato de o futuro estar em nossas vidas assim, sem aviso, inadvertidamente?
Os brasileiros e brasileiras são bons vendedores. Há quem venda sonhos, há quem
venda o amanhã, há quem venda good vibes, há quem venda Ginsu 2000. No Brasil há
todo tipo de vendedor e vendedora. E nós, impávidos como o Colosso de nosso hino,
temos uma carência latente de sermos convencidos de algo. Não basta o Jornal Nacional
colocar nomes e fotografias das dezenas de milhares de pessoas mortas pela covid-19,
não basta o Fantástico chamar atores e atrizes para declamarem textos em homenagens
às vítimas. Cito apenas essas duas iniciativas da Rede Globo, emissora de maior audiência no Brasil, para tentar referenciar que ninguém pode argumentar que o mercado de
notícias não informou a população.
O produtor cinematográfico M. M. Izidoro escreveu em sua coluna para o ECOA,
plataforma de jornalismo do UOL, um manifesto contra o novo normal. "Pois se a gente
estiver pensando no sentido coletivo, a gente vai para um novo normal baseado nas
ideias do ocidente, do oriente, do capitalismo, do socialismo, das religiões afrodescendentes ou das religiões cristãs? E qualquer um que for escolhido, já terão milhões de pessoas vivendo aquele normal, então para elas não vai mudar nada". Izidro coloca em xeque
esse discurso de que após a pandemia as coisas vão mudar e nossa sociedade vai estar
mais atenta ao coletivo. Será mesmo? Podemos mudar? Podemos. Vamos mudar? Difícil.
Mal reabriram na França, as lojas da Zara (aquela marca condenada na justiça por trabalho
escravo no Brasil) já colecionavam filas homéricas sem a distância recomendada entre as
pessoas. Poucos ali, inclusive, estavam de máscaras. E você no seu sofá achando que as
pessoas vão ser menos consumistas quando tudo isso passar... Sei!
A dificuldade de mudança reside no fato de que muitos de nós ainda pensamos
que somos protagonistas no planeta. Vou recorrer mais uma vez a Ailton Krenak: "A sociedade precisa entender que não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo
contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo
descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração
PANDEMIDIA 31
civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos". Se para você leitor ou leitora continua difícil entender a nossa insignificância, recomendo o belíssimo filme Honeyland (2019), de Tamara Kotevska e
Ljubomir Stefanov. A protagonista do documentário é última caçadora de abelhas na
Europa. Sua missão: salvar os insetos e devolver o equilíbrio natural à região onde vive,
na Macedônia do Norte. Quem são os inimigos dela? Uma família de apicultores nômades que invade terras em busca do lucro acima de tudo. Há uma cena importante em
que a protagonista explica aos invasores em busca do lucro que só metade do mel produzido pelas abelhas pode ser vendido. A outra metade, segundo ela, precisa continuar
ali, na natureza, intocada. Para sustento das próprias abelhas e para fortalecer a estrutura
da comunidade dos insetos. Sim, não somos apenas nós que vivemos em comunidade.
Talvez a protagonista não saiba, mas há no discurso dela uma crítica à mais valia, ao
lucro acima de tudo e de todos.
Gosto sempre de fazer uma pergunta quando estou lecionando para turmas de jornalismo: Quem sabe o nome do vizinho? Eu não sei o nome dos meus, e olha que são
quatro apartamentos por andar aqui no prédio. E se fosse casa? E se fosse um condomínio fechado? Essa invisibilidade dos vizinhos não é exclusividade deles. Também não sabemos o nome dos porteiros, motoristas de aplicativo, faxineiras, garçons. São muitos
né? Fica até difícil memorizar. Mas sabemos os nomes dos gurus de autoajuda, dos CEO's
das startups, dos supostos influenciadores digitais, das blogueiras, de quem estava na
call de hoje cedo. Perceba que é uma questão seletiva, e não de falha de memória. Temos,
sim, a capacidade de lembrar dos nomes, apenas escolhemos de quem queremos esquecer e de quem queremos lembrar. Mesmo que seja uma escolha inconsciente.
Dados do Ministério da Saúde mostram que o novo coronavírus mata mais preto
do que branco no Brasil. Mata também mais pobre do que rico. Portanto, não estamos
todos no mesmo barco como esses economistas de botequim gostam de dizer. Eu, com
meus privilégios por ser branco de elite, tenho menos chance de morrer do que um
amigo meu preto que mora em Paraisópolis. Samuel Emílio, conselheiro do movimento
Acredito e fundador de Engaja Negritude, Fellow do Pro Líder, Guerreiros Sem Armas e
Aryrax, defende políticas públicas que considerem a desigualdade social como epicentro
da pandemia: "O que já está claro, contudo, é que precisamos de políticas de saúde segmentadas, que considerem os contextos e as especificidades dos negros. Que precisamos de um governo que investigue o que acontece dentro dos hospitais onde a taxa de
óbitos entre negros é maior em relação aos internados; da construção em massa de leitos
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nas periferias; e de pré-atendimentos e triagens via telefone focadas nesse público, explicando detalhadamente o passo a passo para conseguir o atendimento. E, principalmente, que precisamos de um país que reconheça a estrutura racista que construiu e que
comece a trabalhar para salvar as vidas negras que ainda não foram perdidas".
Impossível não pensar em eugenia quando o presidente do Brasil diz que os mais
vulneráveis vão mesmo morrer. E daí, né? Impossível não pensar em manutenção dos
privilégios quando o Ministro da Economia diz que o país precisa salvar as grandes empresas e deixar as pequenas quebrarem. O novo normal vai abraçar a minoria dominante ou a maioria oprimida? O novo normal vai mudar a vida de quem tem uma SUV
ou de quem pega busão? Quem trabalha para pagar o jantar não consegue pensar no
futuro, muito menos nesse tal de novo normal. O futuro é hoje! O futuro é o saco de
biscoito de polvilho que a pessoa consegue vende por 10 reais quando já estava indo
embora depois de um dia de vacas magras. Não adianta perder tempo pensando em
novo normal quando ainda metralhamos e assassinamos um menino preto que mora
no Salgueiro. Quantos meninos brancos do Leblon já foram assassinados dentro de
casa no Brasil?
Ah, mas você pode estar pensando. Quem é este cara para querer politizar a dor
alheia? Onde já se viu politizar a pandemia? Isso é um absurdo! E nosso pensamento
positivo? Desculpe o spoiler, mas não adianta! Meu amigo de Paraisópolis pensa positivo há 30 anos e continua na merda. E a torcida por um Brasil melhor? Também não
adianta. Torci pra caramba para o Palmeiras em 2002 e mesmo assim o time foi rebaixado para a Série-B do Campeonato Brasileiro. Positivismo e torcida não vão resolver as
mazelas do Brasil! Tampouco vão nos ajudar a vencer a pandemia com dignidade.
O que muda o Brasil, o planeta, a sociedade, enfim, o que muda você é uma palavrinha com apenas quatro letras: AÇÃO! A mesma palavra que diretoras e diretores de
cinema grita antes de filmarem as cenas. Eduardo Escorel, montador de "Terra em
Transe", "Cabra Marcado para Morrer" e diretor de "O Tempo e o Lugar", nos alerta para
o perigo da omissão em tempos de pandemia: "Para nos protegermos e não sermos
agentes transmissores do vírus, fomos compelidos a ficar isolados e emudecer”. Escorel
refuta a ideia de que estamos em isolamento social, para ele existe sim um distanciamento social. Concordo com ele, digo isso com a certeza de que a quarentena me fez
ficar mais próximo das pessoas, ainda que virtualmente. Se nós, que já destruímos bastante o planeta, nos isolarmos do outro, aí sim acontece o apocalipse. Não podemos
perder o pouco de coletividade que ainda existe na vida humana.
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Em seu Alfabeto da sociedade desorientada, Domenico de Masi faz uma interessante
reflexão sobre a obsessão pelo tempo como fundamento para uma economia baseada
na produção de bens. Se você resistiu à leitura desse texto até agora, certamente se preocupa com seu chefe (no masculino mesmo, já que 60% dos cargos de chefia pertencem a
homens segundo o IBGE) te cobrando ao fim do dia. Os relatos sobre excesso de trabalho
na quarentema são diversos. Sindicatos protestam, trabalhadores reclamam, mas nada
adianta. As notas de repúdio, sejam elas quais forem, tampouco vão mudar o Brasil. Quem
disse que precisamos produzir na quarentena? Quem disse que precisamos estar ocupados na quarentena? Você pode estar se perguntando agora: mas e meu salário? Como
vou me manter? Sinto lhe informar, mas para quem corta 30% dos seus vencimentos, cortar
50% ou 100% não custa nada. Para a ideologia neoliberal, o trabalhador é um número,
ainda mais se for PJ. Nesse caso, nem direito ao panetone de Natal nós temos.
Já pensou se aproveitarmos a quarentena para fervilhar nossas ideias? Eficiência,
velocidade e produtividade não combinam com o distanciamento social. Precisamos de
tempo! Tempo para respirar, para dormir, para fazer a faxina, para cozinhar, para cortar
as unhas, para dar um tapa no cabelo. Na quarentena, descobrimos que não temos
tempo para fazer nada além daquilo que o patrão exige no trabalho. A rotina deixa os
trabalhadores sem tempo para sonhar. Sonho é uma utopia, quase que um privilégio
para aqueles que gozam o ócio.
Um grupo da USP está pesquisando justamente o sonho dos brasileiros durante a
quarentena. Como será que a pandemia do novo coronavírus está afetando os sonhos
das pessoas? Os pesquisadores ainda não têm uma resposta objetiva para essa questão,
mas podem confirmar dois fatos: as pessoas estão sonhando mais e há uma maior ocorrência de pesadelos. O neurocientista Sidarta Ribeiro define o sonho como um simulacro
da realidade feito a partir de fragmentos de memórias, sejam memórias recentes ou antigas: “Apesar de refletir as preocupações do sonhador, o curso do sonho é quase sempre imprevisível. A lógica dos eventos é fluida e errática em comparação com a
realidade. A sucessão de imagens se caracteriza por descontinuidades e cortes abruptos
que não experimentamos na vida desperta”.
E nossa vida também não está assim? Quando William Bonner fez mímica para ironizar os terraplanistas na edição de 27/05/20 do Jornal Nacional, houve uma ruptura
daquele padrão engessado do telejornal de maior audiência no Brasil. Anderson Cooper
já usa essa abordagem nos EUA há muito tempo e Bonner parece ir pelo mesmo caminho. Se as descontinuidades estão mudando o formato da cobertura jornalística, por
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outro lado reforçam comportamentos perigosos.
Já era noite quando eu desci para pegar as compras do mercado. Desde o início
da quarentena em São Paulo, minha esposa e eu passamos a fazer compras pelo celular.
Não escolhemos mais as bananas, não tocamos nas maçãs, tampouco sentimos o perfume da hortelã. Alguém escolhe por nós e outro alguém vem entregar. O entregador
de aplicativo já é uma pessoa invisível à sociedade, nunca perguntamos o nome dele.
Dificilmente oferecemos uma água ou um café. Raramente soltamos um obrigado depois de retirar o pedido. Eu estava de máscara e o entregador também. Eu branco, ele
preto. Um homem, uma mulher e duas crianças se aproximam da portaria pela calçada.
A família mora no mesmo condomínio de classe média alta que eu. Todos os quatro,
brancos, estavam de máscara. Notei imediatamente que viraram as costas. A mulher
ameaçava voltar, o homem a segurou. Os filhos ficaram sem reação. Eu não entendi o
que estava havendo. O entregador, como se estivesse lendo meus pensamentos, diz:
“Relaxa, estou acostumado!” Assinei o comprovante de entrega e voltei ao elevador.
Tive vergonha de olhar pra trás, tive vergonha de confirmar a tese do entregador de que
aquela família não estava com medo de um contágio pelo novo coronavírus. Aquela família estava com medo do homem preto de máscara na calçada de um bairro de classe
média alta de São Paulo à noite. Será esse o novo normal?
Certo, talvez, estava o poeta. A Cota Zero de Carlos Drummond de Andrade é composta de apenas três linhas e oito palavras. Não precisamos mais do que isso para frear
o que nos leva ao caos.
“Stop.
A vida parou
Ou foi o automóvel?”
Carlos Drummond de Andrade
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REFERÊNCIAS
DE MASI, Domenico. Alfabeto da sociedade desorientada. São Paulo: Objetiva, 2017.
EMÍLIO, Samuel. Cara gente preta, o coronavírus vai matar você.
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/cara-gente-preta-o-coronavirus-vai-matar-voces.shtml
ESCOREL, Eduardo. Silêncio e Ação – Cinema em tempo de pandemia.
https://piaui.folha.uol.com.br/silencio-e-acao-cinema-em-tempo-de-pandemia/
IZIDORO, M. M. Não existe o novo normal.
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mm-izidoro/2020/05/16/nao-existe-o-novo-normal.htm
KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
PIERO SBRAGIA
Jornalista, documentarista e mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Escreveu Novas Fronteiras do
Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade (2020, Chiado Books) e dirigiu Uma Bala (2018), seleção oficial do 29º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo e da 12ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos, e Em Refúgio (2018), feito em parceria com a ONU. É co-fundador do canal 3 em Cena no
YouTube e diretor da produtora Segundas Estórias Filmes.
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UMA TEMPORADA
NA CAVERNA
Carlos Turdera
No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois,
foram de natureza dialética.
Jorge Luis Borges, “As ruínas circulares”
Como jornalista, a pandemia não trouxe no meu dia a dia uma mudança significativa para a produção de matérias, pois o home office e ferramentas digitais fazem parte
do meu cotidiano como correspondente estrangeiro há vários anos. O confinamento físico, porém, me levou a enxergar e explorar esse estado de consciência que acredito
ser a grande novidade psicossocial que vivemos ao sermos imobilizados em escala global: uma nova camada de mídia na teia da comunicação social e novas telas de representação imagética como consequência dessa virtualização da vida.
Mergulhei nessa percepção levando como referências a caverna de Platão, o universo onírico de Jorge L. Borges (1) e os experimentos de hipnagogia dos labs do MIT
(2), todas para sustentar a minha perspectiva de que vivemos um processo de digitalização não apenas do mundo e das coisas, mas da própria experiência do “real”.
Dispositivos invisibilizados seja pela sua miniaturização, seu funcionamento wireless
(IoT) ou sua mimesis com a pele (wearables) fizeram com que acessar informações e socializar durante esse apagão da vida “lá fora” que foi a pandemia trouxesse para a intimidade
do lar representações de realidade com uma espessura maior que a simples evocação intelectual, assim como as sombras representavam a realidade no mito da caverna.
O mergulho massivo nesse estado de obnubilação em que as rotinas foram alteradas pelo derretimento dos horários e o senso de quarentena ad eternum, abriu, de
um modo semelhante ao cinema primigênio dos Lumière, uma nova forma de estar na
escuridão (apagadas as fronteiras entre o real e o sonho, e tornando a psicose como um
“novo normal”).
Com a chamada telepresença, mesmo que ainda majoritariamente bidimensional,
abriu-se a porta para um cenário em que numerosas pessoas podem mergulhar juntas e
interagirem em ambientes completamente virtuais em tempo real, usando capacetes imerPANDEMIDIA 37
sivos 360, numa experiência que tem tanto de onírico para a psique quanto os sonhos lúcidos induzidos no laboratório. Poderia se dizer que os amigos imaginários da infância
hoje não se distinguem de amigos reais à distância, nem para nós nem para as crianças.
Contando a história
Já falando concretamente de jornalismo, o incessante fluxo de falácias (como as
fake news) que circulam através das redes sociais integradas, por sua vez, num ecossistema inteligente em que são processados imensos volumes de dados a cada nanosegundo – levou a estados de hipnose coletiva que dariam inveja à lendária Cambridge
Analytica e que colocam ao jornalismo e toda a indústria de conteúdo (informativa, formativa e recreativa) face a uma histórica oportunidade de atualizar as narrativas.
Assim, eu interpretei a pandemia como um túnel de passagem rumo a um estado
de imersão total em realidades estendidas num ecossistema que incluirá o nosso espaço
de consciência (o lugar onde acontecem as projeções neuropsíquicas) como uma tela
onde já é possível imprimir narrativas (ou pelo menos rudimentos de uma narrativa) do
mesmo jeito em que as primeiras projeções do kinetoscópio já carregavam em si o
germe do cinema e das linguagens audiovisuais que contariam nossa história ao longo
do século XX.
Vivendo a história
Ao citar espaços imersivos me refiro não apenas a uma tendência que acredito ser
central ao pensarmos o jornalismo de cara às audiências do futuro (realidade virtual, aumentada, estendida como o ponto de partida de socialização das crianças de hoje), mas também
o tipo de conteúdo-experiência que poderá moldar a ideia do real após ter atingido um
grau de verossimilhança equivalente ao que hoje detenta o conteúdo-audiovisual.
Abre-se dessa maneira a possibilidade de que gêneros narrativos hoje conhecidos,
como reportagem, crônica, entrevista, documentário etc., passem a coexistir com um
novo tipo de especificidade narrativa, a experiência, expandindo assim o repertório que
os públicos terão à disposição para se informar, se formar ou se entreter, como o fazem
hoje com o conteúdo que a mídia de telas lhes entrega atualmente.
Vejo que a migração de boa parte da vida pós-pandemia para a esfera digital consolida esse ecossistema de mídia como o “novo normal” para a produção, distribuição e
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consumo de peças jornalísticas que, para se garantirem um lugar na preferência do público, devem dar conta dessa nova “espessura” que a realidade tem para as audiências.
Ao mesmo tempo, imagino que não vai demorar para assistirmos à consolidação
de um novo tipo de “redação-lab” como o que vimos passar fugazmente durante a primeira onda de capacetes, câmeras e soft 360 que chegaram nas redações da grande
mídia tradicional antes da pandemia (BBC, NYT, The Guardian, CGTN, Al Jazeera). É possível que amanhã estejamos consumindo conteúdo imersivo usando um chapéu nãoinvasivo ou, ainda, simplesmente fechando os olhos.
Estado de live
No referente à indústria de mídia, houve nas primeiras análises da pandemia (no
Brasil e outros países) um entendimento de que o aumento no compartilhamento de
matérias evidenciaria que a população privilegia informação produzida profissionalmente. O fato desse aumento ter acontecido após a queda de paywalls poderia evidenciar também, na minha opinião, que, em meio à “whatsappização” da sociedade, o
público passa a compartilhar conteúdo jornalístico quando tem acesso a ele tão fácil
quanto às informações falsas.
O “sucesso” de fake news reforça a percepção de que o jornalismo não só continua
a ser um bem de luxo para as maiorias, mas também não tem credibilidade suficiente
entre esse mesmo público e é um último refúgio identitário na consciência de classe. O
que prima na preferência por um ou outro tipo de informação é a narrativa. Se bem que
produzir fake news é um desvio ético, isso não deve ser confundido com uma falta de
destreza profissional de quem as produz, com conhecimento específico dos gatilhos
que irá acionar no seu público alvo.
Assim, o aumento de interesse em dados apresentados com “storytelling” evidencia
a preferência do público, notoriamente o menos escolarizado, pela “historinha”, chave
na propagação das teorias conspiratórias. Mas também mostra o risco de ficar encapsulado numa bolha que corre todo aquele que lê só “conteúdos sérios” ao desconhecer as
narrativas sociais que o circundam. De modo que se torna mais imperiosa a necessidade
de os jornalistas conhecerem a fundo o funcionamento da indústria das falácias para ficar
a par de todas as camadas metalinguísticas a que fica exposta sua produção.
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As fatoriais digitais
Outro legado que a pandemia deixa é a urgência de se reestruturar o modelo de
negócio das empresas jornalísticas nesse movimento de quarta revolução industrial impulsado pelo paradigma digital. Uma mudança já iniciada é a formação de audiências
flutuantes como legiões de seguidores e jornalistas agindo como influencers.
Penso que vai se firmar o trabalho na nuvem e as redações físicas se reduzirão ou
passarão a ser espaços de eventos, funcionando os aplicativos como a nova sala de reunião, canal para entrevistas e, talvez, espaço de apresentação de reportagens. A produção jornalística passará a ser mais “conversacional” por efeito das redes sociais e crescerá
a audiência dos sites de checagem de dados.
Enfim, num prazo mais remoto – e a partir da massificação dos já ditos dispositivos
de realidade virtual, aumentada, misturada e velocidades 5G de transmissão de dados
em matrizes de inteligência artificial autônoma em redes com interface cerebral- poderá
surgir, talvez, esse ecossistema do qual esse jornalismo imersivo fará parte. Nessa pandemia, ele já começou a desabrochar.
REFERÊNCIAS:
1. Jorge Luis Borges, «As ruínas circulares», dezembro de 1940.
http://www.cienciamao.usp.br/tudo/exibir.php?midia=cfc&cod=_asruinascirculares
2. Dormio: Interfacing with Dreams, Fluid Interfaces, Media MIT, 2018
https://www.media.mit.edu/projects/sleep-creativity/overview/
3. Sonho lúcido, estudos de consciência durante sonho REM
http://www.lucidity.com/SleepAndCognition.html
CARLOS TURDERA
Jornalista. Estudou Ciências da Comunicação Social (UBA, Argentina, não-concluído). Trabalhou para redações
da Argentina (La Nación, La Razón), Bélgica (aNews), Brasil (Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil, Terra) e Espanha (Dirigentes). Atualmente pesquisa VR e jornalismo digital (cursos em Knight Center of Journalism, Austin;
UAM-El País, Espanha). Publicou A realidade virtual decola na América Latina (2017), traduziu Step to the Line
(Laganaro, 2017) e co-escreveu Tempus Fugit (Hofnik, 2019). Em 2020, organizou o e-book coletivo Manifesto
Jornalismo Imersivo.
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PANDEMIA / PANDEMÔNIO
Fabrício Silveira
A justaposição dos termos “pandemia” e “pandemônio” foi feita, entre outros, pelo
conhecido neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis para referir à concomitância de duas
crises enfrentadas pela sociedade brasileira a partir de março de 2020: de um lado, o
alastramento do coronavírus, com seu potencial “apocalíptico”, assim definido pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS); de outro, o agravamento da polarização política que marcou o país desde as últimas eleições presidenciais, em outubro de 2018.
Utilizamos aqui essa equiparação metafórica (que é também uma repetição em
eco, uma similaridade fonética) como síntese de dois textos curtos escritos entre 31 de
março e 02 de abril, todos alusivos a distintas inquietações suscitadas por ocasião (e em
decorrência) do isolamento social recomendado pelo Ministério da Saúde a partir de
15 de março do corrente ano.
Trata-se de uma experiência de escrita, não só de mera justaposição de fragmentos
textuais, mas de promoção de um certo hábito escritural, de busca de alguma regularidade – o leitor perceberá uma recorrência de assuntos e angulações de fundo – e de incorporação de uma tensão dialógica como método compositivo. O texto se definirá
entre o diário (de um primeiro período de quarentena, no caso), a crônica de imprensa
e o ensaio curto, na órbita da cobertura televisiva e do jornalismo impresso.
O que resultará daí é um mosaico de temas que se recobrem parcialmente, que
são recuperados e revistos, funcionando como um documento público (isto é: produzido, de certa forma, ao vivo, no calor do momento, submetido a um apelo social, reorientado ou redirigido por ele) e uma peça de intervenção acadêmica num cenário de
overdose informacional, anomia e medo generalizados1.
Os textos, como será indicado, foram publicados em distintos veículos de imprensa,
compartilhando, em razão disso, o mesmo tom e a mesma extensão média. São reações
1. Dentre tantos reordenamentos sócio-midiáticos que vimos tomar forma – as performances de entretenimento nas sacadas dos prédios, os fenômenos das lives de artistas consagrados ou não, a invasão das cidades esvaziadas por macacos, javalis e animais diversos –, é oportuno registrar a
circulação gratuita de publicações digitais “instantâneas”: Wuhan – No isolamento do coronavirus. Histórias de coragem e determinação (Editora
Contraponto), Coronavírus e Luta de Classes (Editora Terra Sem Amos), Sopa de Wuhan. Pensamento contemporâneo en tiempos de pandemias
(Editorial ASPO), reunindo artigos de autores reconhecidos internacionalmente, e A Cruel Pedagogia do Vírus, com textos de Boaventura de Souza
Santos (Edições Almedina), são alguns exemplos. Desses livros, os três primeiros entraram em circulação já no final de março. Essa urgência, essa
necessidade de buscar uma resposta rápida foi também o que nos motivou aqui a escrever.
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ao claustro e à agenda midiática, como já dissemos, e se encontram aqui datados, de
modo que se faça evidente, assim, um processo de recepção, a imersão progressiva num
acontecimento de tamanha magnitude e um percurso de alastramento, revisão e confirmação de informações disponíveis. Tudo isso singularizado pela atenção, pela subjetividade, pelo consumo midiático e pela experiência vivida do autor.
Como veremos, um tema específico – a “culpa chinesa” – detona os trabalhos e
acaba se impondo como mote central, ao redor do qual são propostos outros investimentos, afastamentos parciais, eventuais ampliações, recuperações teóricas e sínteses
conclusivas (ao final, sempre frágeis, presas numa expectativa constante).
31/03/2020
A culpa chinesa2
Tão perigoso e intratável quanto a covid-19 é a ignorância e a desinformação epidêmicas com que temos enfrentado o vírus. Ao medo puro e simples, à ausência de uma
estrutura suficiente do sistema de saúde, soma-se agora a desorientação cognitiva, o
que só embaralha ainda mais nossa capacidade de reagir com precisão.
Um desses discursos traiçoeiros que têm povoado as redes sociais nos últimos dias
é o discurso de culpabilização da China. Neles, são atribuídas ao Estado chinês uma intencionalidade escusa, a prática de um “jogo sujo” necessário para vencer disputas econômicas globais e/ou se impor ideologicamente, alterando assim o delicado equilíbrio
da ordem mundial.
Nada mais fantasioso. Pensar em termos de culpabilização e polaridades simplistas
desse tipo (“culpa” x “absolvição”) é o fundamento de qualquer explicação sociológica
equivocada. Diversos setores da comunidade científica já se pronunciaram quanto à improcedência quase criminosa desse tipo de narrativa.
Além do mais, do ponto de vista estritamente jornalístico – ou factual, de modo
mais abrangente –, tais registros promovem imprecisões grosseiras. Nem todas as grandes pandemias vêm ou vieram da China. Dizer isso é professar uma sinofobia, uma
2. Este trecho foi publicado originalmente no site Brasil De Fato / RS, em 31/03/2020 – disponível em:
https://www.brasildefators.com.br/2020/03/31/artigo-a-culpa-chinesa. Mais tarde, em 11/04/2020 apareceu no blog AntropoLÓGICAS EPIDÊMICAS, mantido por um grupo de pesquisas interdisciplinares na área da Antropologia da Saúde vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Três dias depois, em 14/04/2020, foi publicado como coluna de opinião no Diário de Santa Maria, em Santa Maria /
RS. Há pequenas correções entre uma versão e outra. Agradeço aos editores desses espaços, que consideraram o texto relevante e digno de ser
veiculado, nessas circunstâncias, e encaminhado ao público aos quais se dirigem e com os quais trabalham.
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guerra étnica. O primeiro grande surto de gripe A, em 1918, veio de Kansas (EUA), por
exemplo. Há casos que se deflagraram a partir de Cingapura, da antiga União Soviética,
da Tailândia.
Uma crítica procedente que se pode fazer a China diz respeito ao controle de informação e ao cerceamento à imprensa livre, à demora na divulgação dos primeiros
casos identificados. Uma coisa, no entanto, é vacilar diante de uma ameaça, um fenômeno biológico extremo, novo e assustador. Outra, bem diferente, é assumir riscos falseando informações.
No Brasil, o que temos visto é o presidente eleito esforçando-se para desacreditar
a imprensa profissional, restringindo-lhe o trabalho, e, além disso, disseminando informações falsas, irresponsavelmente contrárias àquilo que recomendam os organismos
internacionais e os setores sensatos que compõem seu atual governo. No dia 19 de
março, a hashtag #VirusChines chegou aos Trending Topics no Twitter. Uma investigação
recente coletou evidências de utilização de robôs ou processos automatizados para interferir no debate público em torno do assunto. Redes e influenciadores bolsonaristas
estariam implicados no impulsionamento (em parte, programado) dessas mensagens.
...
O sociólogo e urbanista norte-americano Mike Davis, em 2005, quinze anos atrás,
escreveu um livro sobre a gripe aviária H5N1. O livro saiu no Brasil traduzido como O
Monstro Bate à Nossa Porta. É um ensaio leve, agradável de ler, bastante detalhado, falando sobre a pandemia que ameaçara a todos entre 2003 e 2004. Semana passada,
durante minha quarentena, terminei a leitura e saí com a sensação de que as sociedades
não aprendem e que os vírus – esses seres inteligentes, rápidos e ardilosos, “bandos mutantes” – operam, fundamentalmente, no espaço sempre alargado de nossa ignorância.
Os políticos e os empresários, por exemplo, seriam mais espertos e perderiam quantidades muito menores do capital que valorizam (seja o capital político ou o capital econômico) se ouvissem um pouco mais os cientistas.
O estudo de Davis deixa isso muito claro: o que se faz na China – embora não só
lá – é organizar um determinado sistema produtivo tendo em vista responder às demandas de competitividade e consumo globais. É uma combinação explosiva: convívio interespécies, alta densidade populacional, condições precárias de trabalho,
trabalhadores despreparados e mal-pagos, ausência de direitos trabalhistas e de condições de higiene, exigência de produtividade em larga escala, expectativas de lucros
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máximos, consumo elevado de proteína animal e cidades com péssima infraestrutura
de saneamento básico e saúde pública. São condições muito similares àquelas induzidas
pelas economias neoliberais e pelo necrocapitalismo extrativista e hiperespeculativo
hoje hegemônico em nosso país e em várias outras partes do mundo.
É lamentável que milhares de mortos sejam necessários para que possamos nos
convencer de que o atual sistema político-econômico precisa ser freado, que regulações
são benéficas e que as universidades e os cientistas precisam ser ouvidos.
Vale, portanto, repetir: colocar a questão em termos de “culpa”, além de ser um
modo muito empobrecedor de enquadrar o problema, é também um modo de pensar
que está enredado numa estrutura de valores católicos (e isso, no mínimo, seria algo
alheio ao confucionismo e ao ethos chinês). O fato de que possamos encontrar indícios
de responsabilização política – ou riscos políticos assumidos em nome de projetos econômicos a serem perseguidos, a todo custo – não significa que exista intenção consciente (o que seria também um impulso suicida) de produzir e disseminar o vírus. Nesse
caso, se recorrêssemos à terminologia jurídica, haveria dolo, mas – outra vez, é até patético dizê-lo – não haveria “culpa”.
Além disso, a narrativa infantil de “culpabilização” da China soa como uma teoria
conspiratória, como se o chinês – o “nosso outro”, exótico e estranho – fosse o estrangeiro
maquiavélico, representante do “eixo do mal”, o agente de um estado bioterrorista ou
bobagens desse tipo, que, antes de tudo, só reforçam o desconhecimento, a pseudoexplicação e o nonsense. Típico dos filmes de Bruce Willis ou Sylvester Stallone.
Teorias conspiratórias, como sabemos, proliferam em tempos de crise. Proliferam
também quando faltam condições de apreender uma realidade complexa qualquer.
Acreditar na estipulação da “culpa” – e esse é outro ponto a destacar – seria o mesmo
que dizer, na contramão, que os norte-americanos inventaram o Anthrax, que o HIV também foi calculadamente produzido num laboratório, nos confins de algum país africano,
por forças malignas com interesses de dominação do mundo.
Uma outra razão – e paro por aqui, sem mencionar as questões diplomáticas e de
comércio internacional envolvidas – é o fato de que discursos precários como esse prestam-se a uma captura ideológica, produzem adesão inconsciente num cenário de disputas econômicas entre China e EUA. O sujeito que dissemina narrativas como essa não
quer compreender, com seriedade, um importante tema do cenário de tensões globais.
Antes disso, quer apenas se deixar instrumentalizar numa disputa ideológica, assumindo,
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dentro dela, o pólo que mais lhe acalma, que o reconforta tanto quanto limita sua compreensão de mundo. E isso, sem dúvida, não ajuda em nada.
02/04/2020
Ameaças, enfrentamentos e destinos comuns3
Dois dias atrás publiquei um artigo onde sublinhei a improcedência de uma “culpabilização” frontal da China quanto à pandemia de covid-19. Minha motivação era a
de reagir aos memes e aos vídeos amadores que proliferavam (e ainda hoje proliferam)
em nossas redes sociais, em paralelo ao alastramento do próprio vírus. Esse material midiático estaria disseminando desinformação e preconceito étnico, sustentei, prestandose, acima de tudo, a uma “captura ideológica” e, nesse contexto, atrapalhando-nos ainda
mais no que toca às saídas urgentes que precisamos encontrar.
Meus argumentos foram argumentos formais, de fundo culturalista, atentos, sobretudo, aos efeitos sociais deletérios que esses produtos midiáticos, com seus respectivos
processos de circulação, poderiam suscitar.
Ontem, para minha grata surpresa, recebi o comentário de um aluno4. Educadamente, ele me disse:
Achei superinteressante o texto. Queria comentar algumas coisas que tenho lido porque estou fazendo um relato para o observatório de jornalismo ambiental (...) e acho que pode ser
uma forma de contribuir à distância. Eu realmente acho que
essa culpabilização da China é, em parte, racismo e desinformação, mas também não acho que há falta de responsabilidade
governamental pela emergência da pandemia. Acho que admitir que o governo chinês é responsável pela emergência de uma
questão sanitária, que tem um caráter socioambiental inegável,
não é incorrer necessariamente em [xenofobia ou] sinofobia, já
que se trata de questionar uma governança que cometeu o erro
de capitalização massiva sobre a natureza e os animais.
3. Este trecho foi publicado originalmente no site Brasil De Fato / RS, em 02/04/2020. Disponível em:
http://www.brasildefators.com.br/2020/04/02/artigo-ameacas-enfrentamentos-e-destinos-comuns.
4. Agradeço a Matheus Cervo pela conversa pessoal que mantivemos em nossas redes sociais.
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Ele mencionou, na sequência, o trecho de um programa telejornalístico de uma
emissora internacional que teria trazido nova luz ao problema.
Essa matéria – prosseguiu o estudante – mostra que o vírus tem
uma dimensão sócio-histórica que emerge na década de 1970,
quando o governo chinês muda sua produção de alimentos.
Nessa época, ocorreu um boom [nas ações de compra-e-venda]
de animais silvestres (...) porque era o que as pessoas conseguiam produzir (...). Em 1988, o governo [chinês] decreta que
considera a vida silvestre como recurso pertencente ao estado,
possibilitando que a prática se tornasse legal. Aí se percebe,
conforme [mostra] a matéria, que já estavam acontecendo surtos de SARS e de outros coronavírus, na primeira década do século XXI, por causa dessa prática legalizada. O governo tornou
a prática ilegal durante o surto e depois a legalizou de novo,
principalmente porque essa indústria tomou uma dimensão
econômica enorme nas últimas duas décadas. Então, na minha
opinião, torna-se claro que é necessário ‘culpabilizar’ as escolhas da governança chinesa, mas não em uma dimensão de racismo ambiental. Acho que é importante ‘culpar’ justamente
para fazer ver [ou trazer à tona] o que está sendo feito em outros
lugares que também criam situações sanitárias e ecossistêmicas
insustentáveis.
Trata-se, é evidente, de um reparo digno de ser feito: para muito além do desnecessário acúmulo de lixo e ruídos midiáticos – com seu bom humor e seus apelos lúdicos,
com seu viés ideológico e seus efeitos anestesiantes ou indutores –, há, de fato, que reconhecer responsabilizações políticas. É fundamental, junto disso, estipular distinções
entre o âmbito formal (decisório, técnico-jurídico) do Estado e o âmbito “desinstituído”
do cidadão comum, do cotidiano e dos costumes chineses.
O julgamento de base, contudo, permanece um tanto inalterado: diante de uma
demanda global e de circuitos internacionais de consumo, diante de um ecossistema
de trocas globais generalizadas (do turismo, das migrações de mão-de-obra precária,
das mercadorias, de moedas e informações em trânsito – dos vírus que encontram aí
seus melhores hospedeiros), pode um único governo, seja ele qual for, se responsabilizar, sozinho e integralmente? Num cenário mundializado, como regular a interação entre
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as esferas socioeconômica e microbiológica, o modo de produção neocapitalista e o
substrato natural – o não-humano, as bactérias, os agentes infecciosos?
Os críticos chineses do Coletivo Chuang, por exemplo, falam na necessidade futura
de um “naturalismo politizado”, onde se dariam novos arranjos entre empreendimentos
transnacionais (a big pharma, as redes de fast food), Estados em crise e atores locais atomizados, em franco desamparo. Donna Haraway, uma importante filósofa norte-americana, num texto de 2015, já defendia que não é mais apropriado falarmos em “espécies”,
mas em “forças bióticas” interagentes. Cinco anos atrás ela já vislumbrava o imperativo
de estabelecermos “arranjos interespécies” ou “políticas multiespécies”, propondo a viabilização de um parlamento de “eco justiça” ou algo do tipo. Uma “justiça ambiental”,
num termo, entre nós, mais corrente.
As proposições, contudo, não terminam aqui: os teóricos chineses, há pouco citados – recorrendo a um estudo de Robert G. Wallace, Big Farms Make Big Flu, de 2016 –
reconhecem a existência de dois processos através dos quais o capitalismo desencadeia
e acentua epidemias: o primeiro, no qual os vírus são gerados dentro de laboratórios
industriais submetidos por completo à lógica capitalista; o segundo, no qual os vírus
“transbordam” conforme a expansão capitalista e a extração do meio ambiente progridem – os vírus, nesse caso, são “contrabandeados”, “colhidos” de modo indireto, trazidos
para o interior das engrenagens do capital global.
Além de vertiginosa, a mutação será planetária, prevê Paul Beatriz Preciado (in
VVAA, 2020). O filósofo esloveno Slavoj Zizek (in VVAA, 2020), por sua vez, reclama poderes executivos à OMS. Nesse sentido, gerir a dimensão necropolítica da moeda, tal
como afetada pelo coronavírus ou por outras pragas vindouras – e é certo que elas virão!
–, é tarefa que parece transcender a competência de qualquer Estado e nos obriga a reconhecer a todos como pertencentes a uma comunidade única, de ameaças, enfrentamentos e destinos comuns.
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REFERÊNCIAS
COLETIVO CHUANG. Contágio Social. Coronavírus e luta de classes microbiológica na China. São Paulo:
Veneta, 2020.
DAVIS, Mike et al. Coronavírus e Luta de Classes. Brasil: Editora Terra Sem Amos, 2020.
HARAWAY, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes.
ClimaCom Cultura Científica – Pesquisa, Jornalismo e Arte. Volume Ι Ano 3 – N. 5 / Abril de 2016 / ISSN
2359-4705.
HARVEY, David. O Monstro bate à Nossa Porta. A ameaça global da gripe aviária. São Paulo: Record, 2006.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020.
VVAA. Sopa de Wuhan. Pensamento contemporâneo en tiempos de pandemias. Espanha: Editorial ASPO
(Aislamento Social Preventivo y Obligatorio), 2020.
VVAA. Wuhan – No Isolamento do Coronavírus. Histórias de coragem e determinação. Rio de Janeiro:
Editora Contraponto, 2020.
FABRÍCIO SILVEIRA
Jornalista formado pela UFSM, Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS) e Doutor em Ciências da Comunicação (Unisinos, RS). É pós-doutor pela School of Arts and Media (Salford University, UK). Atualmente,
realiza estágio pós-doutoral – bolsa PNPD Capes – junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
UFRGS. Em 2020 lançou Mecanosfera / Monoambiente, um experimento narrativo que combina produção
teórica e escrita ficcional.
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PANDEMIA COVID-19:
REFLEXÕES ACERCA DO HOJE E O DEVIR
Sidney de Paula Oliveira
Determinados termos, com conotação de esgotamento, passaram a fazer parte do
vocabulário cotidiano das pessoas com mais frequência desde o início da pandemia
que assola o planeta, porém, e fundamentalmente, com a adoção das medidas de isolamento/distanciamento sociais tais termos afloraram de modos mais prementes e, dentre os quais se pode citar, por exemplo, stress, cansaço, exaustão, etc. e, além dos termos
referidos, frases e orações como: Cansei! Não suporto mais! Até quando vai tudo isso?
Quero sair! e, no limite: Desse jeito vou morrer, senão pela covid-19, de tédio, agonia,
tristeza e aflição!
Uma das hipóteses para esse estado de coisas talvez é o noticiário praticamente
monotemático que abarca, diária e exaustivamente, a pandemia da covid-19 provocada
pelo novo coronavírus, deste o primeiro trimestre de 2020.
Principalmente nos programas jornalísticos televisivos, notadamente nas TVs abertas, inclusive e notadamente nos horários considerados nobres, esvaiu-se a diversidade
de temas e reportagens e, devemos atentar para o fato de que sempre há notícias outrora relevantes que poderiam ser veiculadas concomitante ou paralelamente às abordagens da pandemia e suas consequências.
Importante repisar que, até um tema importante como o ENEM – Exame Nacional
do Ensino Médio – quando abordado, mantém vínculo com a pandemia, em função das
gestões e ingerências que propuseram o adiamento do certame, por exemplo. A suspensão das aulas presenciais em decorrência da covid-19, impulsionou entidades estudantis, movimentos sociais atrelados à educação e estudantes, notadamente de escolas
públicas, a cobrar alterações no calendário inicialmente estipulado.
Além dessa questão da quase exclusividade do tema exposto nos veículos de
comunicação de massa, comentários nos logradouros públicos, quando possível,
meios de transportes coletivos e conversas através das mídias e redes sociais, há que
se destacar a “frieza” com que são expostos os dados e atualizações sanitárias e de
saúde, principalmente nos finais de tardes ou início de noites quando, em geral, versam tais dados sobre os novos casos de infectados, números de óbitos atualizados
nas últimas 24 horas, casos confirmados totais, considerações acerca da curva asPANDEMIDIA 49
cendente, platô ou descendente, além de projeções atreladas ao eventual achatamento da curva.
Em São Paulo, tanto o atual prefeito da maior metrópole do país, Bruno Covas,
quanto o governador do Estado, João Doria, aliás ambos filiados à mesma agremiação
partidária, concedem entrevistas coletivas diárias, em geral absolutamente modorrentas,
a partir do Palácio dos Bandeirantes, sede administrativa do governo estadual, atualizando os números e projetando eventuais flexibilizações do isolamento/distanciamento
social, além de outas medidas sanitárias e de saúde.
Por óbvio, tantos outros temas ora margeiam, ora estão no centro dos debates,
dentre os quais, as taxas de ocupação de leitos nos hospitais, índices das testagens,
lockdown e a recomendação, ou não, do uso de medicamentos diversos como a cloroquina, inclusive por parte de quem não tem a mais remota autoridade médica, científica,
acadêmica, ou até moral para abordar o assunto de modo sólido e consistente, caso do
atual ocupante do Palácio do Planalto.
No tocante às questões que orbitam as discussões, também estão as eventuais ampliações dos serviços considerados essenciais, reabertura da economia/comércio, possíveis colapsos do sistema público de saúde, prioridades no atendimento, escassez de
vagas nas UTIs e leitos de estabilização, acusações e atribuições de responsabilidades,
geralmente infundadas, à China e ataques genéricos e impertinentes aos chineses, resenhas intermináveis entre autoridades públicas e representantes dos setores produtivos
para traçar possíveis caminhos no sentido de não se prejudicar o mercado, sucumbir
ante a pandemia, asfixia do setor produtivo, eliminação de postos de trabalho, reaquecimento e retomada do crescimento econômico, etc.
Consideradas essas questões que invariavelmente são postas de modo subsidiário, o ponto nuclear e nevrálgico é o que fica estampado pela pandemia propriamente
dita, decretada pela OMS – Organização Mundial de Saúde - na primeira quinzena de
março de 2020, coronavírus/covid-19 que, em última análise, alterou substancialmente
a rotina e a vida das pessoas, com especial relevo nas periferias das grandes cidades,
metrópoles como São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Manaus e Fortaleza, dentre
tantas outras no Brasil, afetadas de modo mais incisivo pelo problema.
Cabe pontuar que, já com o vírus e a doença se alastrando exponencialmente por
praticamente todo o país, outras questões graves também vinculadas ao tema emergiram como uma enxurrada nos noticiários e estampadas nas páginas policiais, envol50 PANDEMIDIA
vendo compras irregulares, superfaturamento na aquisição de equipamentos e insumos
médicos e de enfermagem, hospitais de campanha não entregues e, novamente, com
autoridades públicas fazendo acusações mútuas, inclusive na tentativa de se eximirem
de responsabilidades quanto aos desmandos e desvios.
Trazendo a reflexão para o aspecto humano e das relações comunitárias, há dois
grupos etários/sociais em especial que são afetados de modo mais drástico e dramático
pela pandemia, que resultou na imposição do isolamento/distanciamento sociais, quais
sejam, os idosos e as crianças, principalmente as crianças em tenra idade, mas já aptas
para a educação infantil fundamental.
O primeiro segmento mencionado, além das variantes atreladas ao fator idade e
possíveis comorbidades, em geral, se ressente e carece da ausência das relações sociais
a(e)fetivas, comunitárias e familiares. Tem sido comum notícias de filhos(as) que não visitam pais e mães idosos(as) com receio de que esses ascendentes sejam contaminados(as) e adoeçam, quiçá irreversivelmente.
A título de exemplo, equipamentos públicos como os NCIs - Núcleos de Convivência dos Idosos - que são geralmente administrados por organizações do terceiro setor
mediante parceria com o poder público municipal, (na cidade de São Paulo através da
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social), e os grupos informais
da chamada terceira, ou melhor idade como alguns(as) preferem, simplesmente suspenderam suas atividades frustrando, para além dos(as) idosos(as), os(as) profissionais que
os(as) atendem, além dos familiares.
Podemos ainda citar alguns locais de encontros e convivência tradicionalmente frequentados por esse grupo etário, como templos religiosos, dos mais variados credos,
jardins e praças públicas, etc. Muitos desses locais estão com restrições ou totalmente
interditos, como medida profilática e de prevenção.
Para ilustrar isso me reporto à fala de uma pessoa idosa relativamente próxima que,
por esses dias, me confidenciou do portão da sua casa algo do tipo, “queria pelo menos
poder ir à missa, mas minha filha não deixa, ela disse que é pra me preservar, mas também, nem tá tendo missa, né? E eu tenho que ficar aqui...sem poder sair...”
Ponderei com o idoso, brevemente, que há emissoras e programas televisivos que
transmitem, inclusive ao vivo e nos mesmos horários que os templos respectivos costumam observar, missas e outros conteúdos similares e, ao ouvir meus argumentos, ele
simplesmente me devolveu: mas não é a mesma coisa, né? A gente não pode apertar a
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mão da televisão, não tem hóstia... não dá pra pedir a benção do padre...
As máscaras não bloqueiam olhos e olhares, mas não permitem e partilha de sorrisos e, percebe-se nitidamente pelo breve relato, a grande carência que alguns(as) idosos(as) tem pela falta de contatos, inclusive físicos, que toda a parafernália tecnológica
de comunicação não dá conta de suprir, mesmo com recursos considerados de ponta.
Televisões, computadores, tablets, celulares, smartphones, internet, redes sociais,
plataformas digitais variadas e outros recursos do gênero, não substituem pessoas e relações humanas e sociais, por mais que haja tecnologia e interatividade acopladas a
esses itens citados.
Nesse sentido, me vem à mente uma frase cunhada há muito tempo pelo escritor
irlandês George Bernard Shaw, falecido em 1950, ou seja, num tempo em que determinadas tecnologias das quais desfrutamos na contemporaneidade, sequer eram imaginadas. O sagaz escritor apontou de modo irônico que “a ciência nunca resolve um
problema sem criar pelo menos dez outros.”
De modo algum queremos insinuar que o coronavírus foi criação da ciência através
de experimentos gestados em laboratórios de modo vil, sorrateiro, clandestino e com
objetivos absolutamente escusos, entretanto, os recursos tecnológicos dos quais dispomos atualmente, ainda que possam mitigar os efeitos da pandemia, não são capazes de
eliminar os efeitos psíquicos, psicológicos e emocionais do isolamento social que já se
fazem presentes, ampliando o número de patologias como a depressão.
O distanciamento social também traz consequências para as crianças estudantes,
principalmente aquelas em tenra idade, já que a escola é um espaço de convivência por
excelência, sendo certo também que a educação pública é um direito constitucionalmente assegurado, bem como o convívio familiar e comunitário.
Ainda que muitas escolas, inclusive as públicas, tenham colocado em prática sistemas remotos de ensino/aprendizagem, para tanto lançando mão de recursos digitais e
tecnológicos, por óbvio, as questões do convívio e interação, tão necessárias ao desenvolvimento, restam prejudicas. Crianças, na sua relação com professores(as), lançam mão
do tato, contato físico.
Por esses dias tive acesso a uma postagem numa rede social, cujo relato da genitora de uma infante ilustra bem a situação. Num diálogo entabulado entre mãe e filha,
esta última pediu para ir à escola, pois queria ver e brincar com as amiguinhas. A geni-
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tora, que segundo o relato chegou a se emocionar e lacrimejar com o pleito da filha, estrategicamente colocou a criança no carro da família e ambas passearam com o veículo,
em marcha reduzida, defronte à escola, como forma extrema de tentar fazer valer o desejo da filha. Convenhamos que, para a criança formular tal pedido, é possível que esteja
numa situação que beira ao desespero.
Para que os exemplos postos não fiquem adstritos às situações narradas por terceiros, recentemente minha própria filha, que eu ingenuamente imaginava estar nesse
período de confinamento entretida com as seduções da Netflix, enquanto assistia a uma
dessas centenas de séries, me fulminou com a seguinte colocação: Pai, eu não quero
mais ficar em casa, eu queria passear...
Algumas questões insistem em se fazer presentes e não se calam, vejamos: Quem
suporta, e como? Quem sustenta nessa situação? Como suportar tudo isso do ponto de
vista da saúde mental? A psicologia e a psiquiatria reúnem recursos para tratar e dar
respostas assertivas para períodos longos de isolamento social? O SUS – Sistema Único
de Saúde -. no pós pandemia, imaginando-se uma situação de esgotamento, dará conta
de patologias como depressão, ansiedade, síndrome do pânico, etc.?
O direito à vida e à saúde, inclusive à saúde mental, devem ser garantidos a todos
e todas, como direitos fundamentais e, esses novos paradigmas de relações e comunicações virtuais que afloraram de modo mais proeminente durante a pandemia e devem
reverberar no pós, apontam desafios a serem enfrentados, quiçá de modo inter e multidisciplinar, haja vista que não há apenas questões médicas e sanitárias aí inseridas.
Abordagens e aspectos vinculados à áreas outras do conhecimento, além da medicina e saúde, como a psicologia, pedagogia, direito, econômica, ciências sociais, informática, comunicação social, filosofia, etc., se apresentam como hipóteses a serem
consideradas no sentido do necessário enfrentamento da situação de modo urgente e
assertivo.
Uma questão se apresenta de modo cabal envolvendo o dilema do distanciamento
social imposto pelas autoridades públicas em função da pandemia, e se os recursos tecnológicos disponíveis podem ou poderiam sustentar tal isolamento por períodos consideravelmente longos.
Se o distanciamento social pode ser mantido por longo tempo, outras questões
surgem: Como? Por quanto tempo? A que preço? Quais as consequências? Que sociedade teremos após a pandemia? Como se darão as relações sociais e comunitárias com
PANDEMIDIA 53
esses novos ditames sanitários e de saúde? Como serão tratadas as possíveis sequelas,
individuais e coletivas?
Independentemente das possíveis respostas às questões postas, não podemos
perder de vista as implicações e consequências que virão com o pós pandemia, sendo
que as implicações e consequências podem se consubstanciar em traumas e feridas que
deverão ser tratados por uma gama de profissionais.
Acredito, enquanto hipótese, que todos os recursos tecnológicos contribuem como
um lenitivo, permitindo que a vida flua, com percalços múltiplos contudo, nos médio e
longo prazos, provavelmente não sejam suficientes. Do ponto de vista da saúde mental,
danos psíquicos de difícil reparação ou quiçá irreparáveis se farão presentes, desafiando
toda a sociedade ao enfrentamento das demandas atuais. O devir apontará, ou não, se
tal hipótese se concretizará.
SIDNEY PAULA OLIVEIRA
Doutorando em Ciências pelo PPG Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades - Diversitas-FFLCH-USP,
Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP (2018). Título da Dissertação: Cotas
Raciais ou Sistema Universal: Um Estudo Sobre o Acesso de Estudantes Negros(as) na Universidade Federal
de São Paulo. Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie (1996), bacharel em
Letras (Português) pela Universidade de São Paulo – USP (2009), Licenciado em Letras pela USP (2010), pósgraduado (especialização) em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de
São Paulo – ESPGESP (2009) e pós-graduado (especialização) em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP (2017).
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OS PRINCIPAIS PROBLEMAS DA COBERTURA SOBRE A
PANDEMIA CRITICADOS EM COLUNAS DE OMBUDSMAN
Diana de Azeredo
1. Observações prévias sobre produção midiática no contexto de crise mundial
Quais são os erros mais cometidos pela mídia ao cobrir “a crise mundial de saúde
que define a nossa época”1? Essa foi a pergunta que primeiramente motivou a pesquisa
apresentada aqui na forma de ensaio. A fim de cumprir o objetivo de identificar os principais problemas, foi definido como contorno empírico sete colunas de ombudsman dos
jornais Folha de S. Paulo e O Povo publicadas nos meses de março, abril e maio de 2020,
com críticas à cobertura do próprio veículo. A delimitação considerou o período que
marca o anúncio oficial do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil2 (26 de fevereiro)
e a confirmação do país como o quarto com mais mortes (29.101) e o segundo com
mais casos confirmados de covid-19 no mundo (506.708)3. Mediante a aplicação do protocolo de seleção utilizado em pesquisa anterior (AZEREDO, 2019), observou-se, entre
outros aspectos, que os três problemas mais criticados nas coberturas correspondem a
falta de informações, informações distorcidas e destaque para informação de pouca relevância.
De forma bastante sintética, cabe contextualizar este estudo que se encontra em
fase preliminar, assumindo os riscos inerentes à investigação de um fenômeno contemporâneo. Identificado pela primeira vez na China em dezembro de 2019, o novo coronavírus SARS-CoV-2 é o causador da covid-19, doença respiratória que até o momento
levou a óbito 367 mil pessoas no mundo4. Para este ensaio, é importante lembrar as seguintes datas: em 11 de março a Organização Mundial da Saúde (OMS) caracterizou a
covid-19 como pandemia, devido à sua expansão geográfica; em 12 de março, a Folha
de S. Paulo liberou para internautas o acesso gratuito e ilimitado a conteúdos sobre co-
1. Em tradução livre da frase “This is the defining global health crisis of our time” utilizada em publicação no site oficial da Organização Mundial de
Saúde, disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---16march-2020
2. Conforme publicação no site do Ministério da Saúde (mas contestada posteriormente), disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus e https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/02/ministerio-da-saude-identifica-1-caso-de-coronavirus-no-pais-em-janeiro.htm
3. Conforme informações divulgadas pelo Portal G1 em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/31/casos-de-coronaviruse-numero-de-mortes-no-brasil-em-31-de-maio.ghtml
4. Conforme informações divulgadas pelo Portal UOL em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/2020/05/31/coronavirus-balanco-da-omsregistra-367166-mortes-e-5934936-casos-no-mundo.htm
PANDEMIDIA 55
ronavírus; no dia seguinte, O Povo anunciou decisão idêntica; em 09 de maio, o Congresso decretou luto em virtude das 10 mil mortes por coronavírus no Brasil; e em 21
de maio, o país contabilizou 20 mil mortos segundo números oficiais. A circunstância é
agravada pela subnotificação, a falta de testes, a quantidade reduzida de profissionais
e equipamentos na rede pública de saúde, além de problemas brasileiros estruturais
como a desigualdade social e problemas recentes como a disseminação de informações
falsas.
Aos desafios de uma cobertura midiática inédita, marcada pelas restrições de circulação orientadas pela OMS e decretadas por governos municipais e estaduais a fim
de diminuir o risco de contaminação, somam-se duas dificuldades. A primeira é a precarização das condições de trabalho dos jornalistas, situação não exclusiva do Brasil. A
segunda, esta, sim, particularidade nacional, é a instabilidade política provocada pela
demissão de dois ministros da Saúde e o ministro da Justiça e Segurança Pública entre
abril e maio, além dos conflitos entre representantes dos poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, manifestando divergências e até ataques verbais publicamente.
No país, atualmente, os únicos jornais que contam com o trabalho de ombudsman
são Folha de S. Paulo e O Povo. Como já detalhado em trabalhos anteriores (AZEREDO,
2016), trata-se de um jornalismo que desempenha a dupla função de ouvidoria (acolhimento de elogios, dúvidas e, na maioria das vezes, reclamações de leitores e providência
de soluções por meio de encaminhamentos internos) e crítica (publicação de uma coluna, em ambos os casos, dominical, com análises acerca do trabalho desempenhado
pelo veículo e/ou pela mídia em geral). O cargo completou 30 anos de implementação
no Brasil em setembro de 2019. Pioneira nessa iniciativa, a Folha inspirou outros 12 jornais impressos no território nacional. Porém, a maioria das empresas alegou dificuldades
para manter o projeto, conforme relatos reunidos em recente pesquisa de Javorski e
Gadini (2018).
2. Falta de informações, distorção e destaque indevido
Definido o recorte temporal da análise das colunas, tinha-se, inicialmente, 28 textos
publicados pelos jornais Folha de S. Paulo e O Povo de março a maio deste ano. Foram
excluídas seis que não tratavam sobre o comportamento midiático durante a pandemia.
Aplicou-se, a partir de então, o protocolo de seleção com cinco filtros (fonte principal,
foco, tema e abordagem da coluna e intensidade da crítica). Descartando as colunas
56 PANDEMIDIA
cujo parecer era de fonte externa (manifestações de estudiosos) (1), que tinham como
foco a imprensa em geral (10) e que abordavam temas como postura empresarial (2) e
aspectos administrativos (2), chegou-se ao conjunto dos sete textos aqui analisados. Eles
têm como fonte principal as observações das ombudsmans Flavia Lima e Daniela Nogueira, titulares das colunas, respectivamente, na Folha e n’O Povo, têm como foco os
veículos pelos quais foram contratadas e tratam da cobertura jornalística, fazendo abordagens críticas, que variam entre fracas (3), moderadas (2) e fortes (2). Devido às limitações de espaço, não é possível detalhar aqui os critérios de classificação de intensidade
das críticas, o que tampouco traz prejuízo à compreensão dos resultados desta pesquisa,
já que o objetivo central é identificar quais são os principais problemas criticados nas
colunas.
Na maioria delas (4), o equívoco avaliado é a falta de informações. O primeiro
exemplo é a cobertura da Folha sobre a exoneração do então ministro da Saúde, Luiz
Henrique Mandetta (que defendeu o isolamento social e não endossou o uso da cloroquina no combate à Covid-19, contrariando o desejo do presidente Jair Messias Bolsonaro). Conforme Lima (2020b), faltou divulgar informações sobre o histórico do médico
ortopedista e ex-deputado federal. O segundo caso foi a ausência de mulheres na matéria da Folha sobre como profissionais do Direito estão se adaptando ao trabalho em
casa (home office) durante a quarentena, em uma flagrante perspectiva machista da cobertura.
Em O Povo, Nogueira (2020d) apontou que faltou pluralidade na matéria sobre
empresários favoráveis à manutenção do isolamento restritivo (lockdown) em Fortaleza,
já que não foram publicados depoimentos contrários. Em outra coluna, Nogueira
(2020b) julga de forma geral a cobertura sobre a pandemia, lembrando a necessidade
de abordar questões sobre saúde mental e a vida de pessoas em situação de rua, sem
acesso a saneamento e internet e profissionais informais. Entre os sete, esse é o único
texto que critica dois problemas: a falta de informações e o destaque para informação
de pouca relevância.
Esse erro é abordado em outras duas colunas, ambas de Nogueira (2020a, 2020c).
A ombudsman reforça sua discordância quanto ao que considera exageros por parte
d’O Povo: identificar como “urgente” as notícias sobre o coronavírus e veicular imagens
de caixões e covas coletivas. “A publicação de imagens violentas como essas é capaz
de causar traumas terríveis a leitores e demais jornalistas, dentro da já delicada situação
de vulnerabilidade e tensão em que se vive”, escreve Nogueira (2020c, s/n).
PANDEMIDIA 57
Por fim, a terceira categoria de problemas encontrada na observação dessas colunas são as informações distorcidas, que ocorre quando a cobertura jornalística apresenta
informações verídicas, porém, fora de contexto. O exemplo vem da Folha, que publicou
a foto de um casal chinês na matéria sobre infectado brasileiro. “Ainda que agregue informação, há o aspecto simbólico da imagem: a conexão entre o vírus e os asiáticos, reforçando o preconceito”, alerta Lima (2020a, s/n) na primeira coluna sobre a cobertura
do contágio – que, naquele 1º de março, ainda não tinha sido definido como pandemia
pela OMS.
3. Colunas de ombudsman e a crítica nos jornais Folha de S. Paulo e O Povo
De forma geral, importa destacar que esta grande crise sanitária mundial impõe
desafios inéditos ao trabalho jornalístico. O cenário pandêmico acentua dificuldades já
existentes e traz consigo novas agruras. Possivelmente, isso ajuda a entender o motivo
de quase metade das colunas (10 do total de 22 sobre o comportamento midiático durante a pandemia) ter como foco a imprensa em geral, sinalizando para o enfrentamento
coletivo desta conjuntura complexa. Não que tais condições adversas justifiquem os
erros cometidos, mas contribuem para ampliar a compreensão dos resultados encontrados até agora.
Também não deixa de ser notável que, entre 13 jornais que iniciaram o projeto
de ombudsman, apenas dois tenham mantido a função. Sabe-se que tão importante
quanto a mídia fiscalizar as demais instituições (principalmente, em tempos de fake
news, subnotificação de casos e desvios de verbas na área da saúde) é a própria mídia
agir com transparência, assumindo suas falhas, permitindo a crítica e a autocrítica. Já
em relação às três categorias de problemas criticados nas sete colunas (falta de informações, destaque para informação de pouca relevância e informações distorcidas), seria
possível aprofundar a análise de suas origens (concepções preconceituosas, apuração
preguiçosa, sobrecarga profissional...) e seus danos (reforço da discriminação, ansiedade
nos leitores, perda de credibilidade...) - e até mesmo se os critérios de crítica empregados pelas ombudsmans sustentam sua validade à luz de princípios jornalísticos como
valor-notícia.
Também considerando o distanciamento social e a possibilidade de mais leitores
com tempo livre, seria interessante averiguar se houve aumento na quantidade de manifestações enviadas para as ombudsmans Flavia Lima e Daniela Nogueira. Além de am58 PANDEMIDIA
pliar a investigação sobre as colunas enquanto durar a pandemia, essa é outra oportunidade de estudo. Por ora, tendo em vista o caráter ensaístico desta pesquisa, acreditase que o objetivo de apresentar os principais problemas da cobertura midiática tenha
sido cumprido.
PANDEMIDIA 59
REFERÊNCIAS
AZEREDO, Diana de. Ética e narratologia: significados que emergem da coluna da ombudsman Vera
Guimarães Martins. 2016. 97 f. Monografia (Curso de Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade de
Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2016. Disponível em:
https://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/1457/1/Diana%20de%20Azeredo.pdf Acesso em: 03 jul.
2018.
AZEREDO, Diana. A crítica da cobertura jornalística nos 30 anos da coluna de ombudsman da Folha de S.
Paulo. 2019. 263 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Jornalismo) – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2019. Disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PJOR0132-D.pdf Acesso em:
08 maio 2020.
JAVORSKI, E.; GADINI, S. (Orgs.). Ombudsman no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2018.
LIMA, Flavia. O vírus do preconceito. Folha de S. Paulo, São Paulo, 01 mar. 2020a. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/03/o-virus-do-preconceito.shtml
Acesso em: 29 abr. 2020.
______. Herói pelas circunstâncias. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 abr. 2020b. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/04/heroi-pelas-circunstancias.shtml
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______. Mulheres invisíveis. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 maio 2020c. Disponível em:
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em: 18 maio 2020.
NOGUEIRA, Daniela. O jornalismo das urgências. O Povo, Fortaleza, 08 mar. 2020a. Disponível em:
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Acesso em: 02 maio 2020.
______. Jornalismo em tempos de coronavírus. O Povo, Fortaleza, 22 mar. 2020b. Disponível em:
https://mais.opovo.com.br/colunistas/danielanogueira/2020/03/22/jornalismo-em-tempos-decoronavirus.html Acesso em: 02 maio 2020.
______. Entre caixões e covas: as imagens chocantes. O Povo, Fortaleza, 26 abr. 2020c. Disponível em:
https://mais.opovo.com.br/colunistas/danielanogueira/2020/04/26/entre-caixoes-e-covas--as-imagenschocantes.html Acesso em: 02 maio 2020.
______. Pandemia: o papel que cabe ao Jornalismo. O Povo, Fortaleza, 24 maio 2020d. Disponível em:
https://mais.opovo.com.br/colunistas/danielanogueira/2020/05/24/pandemia--o-papel-que-cabe-aojornalismo.html Acesso em: 31 maio 2020.
DIANA AZEVEDO
Jornalista graduada pelo Curso de Comunicação Social - Jornalismo, na Universidade de Santa Cruz do Sul
(Unisc), mestra em Jornalismo pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) com bolsa CAPES e integrante do Grupo de Pesquisa Transverso - Estudos
em Jornalismo, Interesse Público e Crítica, liderado pelas professoras doutoras Gislene da Silva, Maria Terezinha da Silva e Daiane Bertasso Ribeiro.
60 PANDEMIDIA
FLUSSER EM WUHAN
Gilson Schwartz
Dizem que o coronavírus veio dos morcegos.
Embora essa origem (de acordo com a Organização Mundial da Saúde, OMS) seja
por enquanto nada mais que uma hipótese1, é uma explicação que ganhou ares de
quase-verdade tamanha a sua exposição na mídia.
É o que informa o Guardian2. Também vai nessa linha o New York Times3. E ainda
o Zeit Online4.
Talvez nenhum ícone ou imagem técnica esteja nesse momento a tal ponto associada à pandemia, ao lado da culpabilização da China que frequenta o imaginário dos
terraplanistas e congêneres. É uma imagem forte, com antecedentes na fantasia ocidental que vão de Drácula ao Batman, passando por Nosferatu (além do filme de Werner
Herzog, o clássico de Murnau) ou pela opereta “Die Fledermaus” de Johann Strauss.
Mas é na obra de Vilém Flusser que vamos encontrar essa intuição científico-filosófica genial que recorre de modo pioneiro à alegoria de um ser “sugador de sangue”,
abissal e líquido para designar a emergência da pós-história em que somos “mergulhados” na liquidez digital.
Como nos tempos em que viveu Flusser, hoje vivemos acuados diante de uma viralização do fascismo que não é sem paralelos com a própria construção imaginária de
“invasores” que marca a indústria audiovisual desde o pós-guerra: da invasão orsowelliana de marcianos à infantilização do E.T., a dificuldade da cultura para lidar com o Outro
é um tropo recorrente que espelha a própria repugnância nazista à diferença democrática e à opressão tecnológica das sensibilidades divergentes. Flusser em sua mais radical
obra de “ficção científica” explicita essas questões (Felinto remete ao filme “Arrival”
(Denis Villeneuve, 2016): a “lula-vampiro do inferno” (tradução do nome científico em
latim) é um polvo, um “cefalópode vampiro” é o ser vivo totalmente outro, uma derivação genética alternativa ao DNA humano, um quase-ET abissal que ilumina ao mesmo
1. https://www.who.int/csr/disease/coronavirus_infections/faq_dec12/en/
2. https://www.theguardian.com/world/2020/apr/28/how-did-the-coronavirus-start-where-did-it-come-from-how-did-it-spread-humans-was-itreally-bats-pangolins-wuhan-animal-market
3. https://www.nytimes.com/2020/01/28/science/bats-coronavirus-Wuhan.html
4.https://www.zeit.de/wissen/umwelt/2020-02/coronavirus-ansteckung-tiere-fledermaus-ausbreitung-viren
PANDEMIDIA 61
tempo o permanente mistério da natureza para a ciência e uma alegoria poderosa para
decifrar os caminhos da pós-história digital.
Um polvo que é um morcego! E que na poética das imagens técnicas inventada
por Vilém Flusser, ganha o estatuto de alegoria central para a emergência criativa, até
mesmo erótica, de uma nova era civilizacional em que as relações entre cultura, técnica
e natureza apontam para uma nova configuração emancipatória.
O registro de uma transformação civilizacional, transição epocal (epochalen Übergang), uma mudança de paradigma, constitui um aspecto determinante da obra de
Vilém Flusser. A pandemia e a emergência de ícones referidos a novos elos perdidos
entre a genética humana e animal que se disseminam pelo espaço-tempo acelerado da
globalização é uma oportunidade inusitada para revisitar a ficção filosófica flusseriana.
O elo fundamental na construção da iconomia flusseriana é o conceito de memória.
É na diferenciação entre competências mnemônicas que se diferencia o animal superior
do inferior. A memória já não se dá na dimensão da reprodução, mas da criação de projeções mnemônicas, ou seja, todo lugar de memória é a projeção de uma geração futura
e não apenas a reprodução de uma informação que viria de um tempo pretérito.
Nos humanos, portanto, a transmissão de informação é um processo cumulativo e
aberto à evolução criativa. É acumulação de capital simbólico, ou seja, ampliação da
produção material que é indissociável de uma expansão icônica que, no dinheiro, assume o caráter de entidade sobrenatural, como ídolo ou adoração.
O polvo marítimo é a metáfora biológica/oceânica para um tempo de liquidez digital ainda mais acelerada. E nos remete para um tertius, uma possibilidade que vai
além da oposição entre animais inferiores (transmissão genética da informação) e superiores (registro inanimado e sujeito à deterioração em objetos exteriores onde a informação é codificada) porque a arte do ser social “Vampyroteuthiano” consiste numa
ejaculação de cores, um orgasmo artístico em que é a superfície da pele, é o próprio
corpo que se contrai e secreta pigmentos como reação à percepção de informação
nova que, assim, é transmitida a outros seres vivos horizontalmente (não a objetos inanimados, nem à descendência biológica). É a transformação auto criativa que anima o
encontro propício ao acasalamento e à procriação cumulativa. A reprodução torna-se
uma conversação.
O que está em jogo nas metáforas da oceanografia biodigital flusseriana?
O consumo de animais silvestres, sobretudo de animais marítimos, mas também
62 PANDEMIDIA
de morcegos e outras espécies “selvagens” aparece hoje como uma fronteira viral que
ameaça a própria reprodução ampliada do capital.
A ficção científica torna-se mais real e a alegoria flusseriana dos cefalópodes como
antípodas a partir dos quais podemos perceber os limites do antropoceno capitalista
faz muito sentido.
Estamos novamente diante do caráter precário, vulnerável e volátil do código genético e da necessidade de outras formas de comunicação intervitais sob o risco de sucumbirmos à hiper exploração que leva ao consumo irrefreado e destrutivo do Outro e
do meio-ambiente, porta de entrada para a morbidade viral e a destruição planetária.
Se é fato que a obra de Flusser nos convida a repensar a arte, os códigos e o imaterial, sua ficção científica ganha atualidade emergencial quando traduzida em termos
biopolíticos e a economia política do “capitaloceno” vem para primeiro plano.
Esse é o horizonte interpretativo aberto pela leitura de Flusser, convidando o leitor
contemporâneo a um perspectivismo em que o morcego de Wuhan e o polvo-morcego
dos mares profundos sejam nossos irmãos e jamais um imaginário e indomável algoz.
PANDEMIDIA 63
REFERÊNCIAS
Felinto, E. (2018), Oceano digital: imaginário marinho, tecnologia e identidade em Vilém Flusser, Galáxia
(São Paulo) no.39 São Paulo Sept./Dec. 2018, https://doi.org/10.1590/1982-255434444
Flusser, V., Bec, L, Vampyroteuthis Infernalis, Coimbra: [s.n.]. 159 p. ISBN 978-989-26-0254-7. Acessível em
https://digitalis.uc.pt/pt-pt/livro/vampyroteuthis_infernalis
Hanke, M.M. (2015), Pós-História e Pós-Modernidade. Dois conceitos-chave da filosofia da cultura crítica de
Vilém Flusser e sua análise contemporânea da mídia e das imagens técnicas, Galáxia (São Paulo) no.29 São
Paulo Jan./June 2015, acessado em 30 de maio de 2020 em
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-25532015000100096
Moore, J.W. (2017), The Capitalocene, Part I: on the nature and origins of our ecological crisis, The Journal of
Peasant Studies, 44:3, 594-630, DOI: 10.1080/03066150.2016.1235036, acessado em 30 de abril de 2020
em http://dx.doi.org/10.1080/03066150.2016.1235036
GILSON SCHWARTZ
Professor Livre-Docente do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH da USP. Criou em 1999 o
projeto "Cidade do Conhecimento" no Instituto de Estudos Avançados da USP (www.cidade.usp.br). Autor de
"Brinco, Logo Aprendo" (Campus, 2016) e “Iconomia: Introdução à crítica digital da economia industrial e financeira” (Coleção Cibercultura/Lab404, EDUFBA, 2019). Fellow do Departamento de Humanidades Digitais
do King 's College de Londres (CAPES, 2019-2020).
Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
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CAPÍTULO II
AUDIOVISUAL VIRAL
AUDIOVISUALIDADES
ENTRE VÍRUS E JANELAS
QUESTIONAMENTOS PANDÊMICOS:
O FAZER AUDIOVISUAL PARA AS TELAS ATRAVÉS DAS TELAS
Lyara Oliveira
Quem trabalha com produção audiovisual está acostumado a lidar com o inusitado,
a entrar com equipes em lugares pouco ou nada acessíveis às pessoas comuns, a testemunhar presencialmente experiências que a maioria só irá acessar pelas telas. Quem
trabalha com audiovisual se anima em formar uma equipe meio trupe, meio time, que
vai a lugares inusitados, que desvenda espaços interditos, com visitas, muitas vezes, em
horários indisponíveis ao público.
Isso atrai quem trabalha com audiovisual. Essa vida meio nômade, meio mambembe, ao mesmo tempo regrada e cercada de tecnologias. Isso atrai quem trabalha
com audiovisual.
Desenvolver, produzir, criar um mundo imaginário ou recortar um mundo realista
fascina quem trabalha com audiovisual. Um mundo criado para as telas – às vezes para
a ausência de telas, imagens e sons técnicos que impulsionam visões de mundo.
Produzir conteúdo audiovisual. No princípio, a ideia, os delírios, as propostas, as
conceituações. Encontros, encontros e mais encontros. Testes, testes e ensaios. Microfones abertos, liga câmera ou renderiza o frame, e algo acontece – ou algo já está acontecendo. Depois desliga, desmonta, devolve, desfaz, apaga. E então edita, corta, elimina,
escolhe.
Nasce uma versão, uma possibilidade de obra se vislumbra, resultado da mediação
entre saberes técnicos e artísticos, fruto de trocas afetivas e criadoras, do encontro do
estímulo visual e sonoro com a tecnologia de captação, de pós-produção, de fruição.
Tudo isso é fazer audiovisual, é parte do que atrai quem cria e produz. E como fazer
quando a circulação é impossível, quando os encontros são inviáveis, quando os espaços
estão proibidos ou restritos?
Distanciamento social, isolamento, quarentena. Inviável produzir audiovisual?
Tudo ficou suspenso. Em recolhimento.
Mas então pequenos agitos iniciam-se. Observam-se iniciativas fora e dentro do
Brasil. Equipes que se encontram no espaço virtual. Trupes que constroem caminhos
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mesmo à distância. O que já era possível e viável em esquemas de trabalho alternativo
como uma opção a mais, de uma hora para outra, virou rotina incontornável.
Plataformas de videconferência tornaram-se nosso cotidiano de produção, reuniões encontros, conspirações. Separados no espaço físico, mas unidos nas trocas. Distanciados pelas circunstâncias, aproximados pela necessidade, pelo desejo.
As ideias seguem transitando. Agora, mais do que nunca, as trocas são mediadas
tecnologicamente. Ligar a câmera é um dos primeiros gestos. Estamos expostos. Voluntariamente expomos nossas ideias através das telas, tudo frui por elas, a conexão se dá
por meios tecnológicos. As trocas inventivas fruem por meio das telas, as elaborações
criativas acontecem por meio das telas. Esse transpassamento tem consequências? Pensar através das telas e por meio delas influencia também nosso modo de criar para as
telas?
Quem trabalha com audiovisual se sente desafiado por essa nova configuração de
trabalho? Aqueles que aparecem na tela vão manter um distanciamento mínimo? Não
vão se tocar, já que os que estão atrás das câmeras também não se tocam? Os que assistem audiovisual perceberão a diferença?
Brotam outros modos de trabalho, outras estratégias, outros fluxos criativos. Surgem obras audiovisuais compostas de imagens caseiras, de estratégias que são resultado de ensaios a distância, de gravações isoladas, de equipes onde todos estão
confinados juntos. Criam-se novos protocolos para os locais de gravação, novas regras
de interação. Inventam-se sets controlados a distância, técnica e artisticamente. Cada
membro da equipe em um lugar, atores em outro. Arranjam modos de corpos em cena
se tocarem graças a computação gráfica que os aproxima.
O resultado disso tudo começa a aparecer nas telas.
E o futuro? Em termos de produção audiovisual, o que resultará da pandemia? Personagens virtuais ganharão mais destaque? Surgirão narrativas de confinamento em
massa? Relatos de quebra do distanciamento social? Teremos no futuro uma ‘geração
PAN’ de criadores e realizadores marcada por essa experiência na infância?
Perguntas, perguntas e um destino incerto.
O que sabemos é que o audiovisual transpassa nosso presente e nosso futuro. A
demanda por conteúdo segue ávida. Produzir audiovisual é desejável e se faz necessário. Seguiremos produzindo e, diante das circunstâncias impostas, seguiremos com o
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fazer mediado pelo próprio meio. Não estamos apenas produzindo para os meios audiovisuais, mas também por meio deles mesmos. Quando criamos por meio de plataformas de videoconferência e compartilhamento audiovisual, cada criação desenvolvida
na pandemia carrega em si o cerne da metalinguagem em exercício. O fazer audiovisual
através do próprio audiovisual e o que daí advém.
LYARA OLIVEIRA
Artista audiovisual, criadora de conteúdo audiovisual e de experiências imersivas, professora e pesquisadora.
Mestre em Artes Visuais. Doutoranda na ECA/USP, onde realiza pesquisa sobre audiovisual e realidade virtual,
integrando o grupo de pesquisa LabArteMídia. Atualmente leciona na Faculdade Cásper Líbero, na ESPM e
na FAAP. Participa da APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro e atua como administradora
do Mulheres do Audiovisual Brasil.
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COVID-19: MUDANÇAS E CONFIRMAÇÕES
NA TV E SERVIÇOS DE STREAMING
Fernando Carlos Moura
Introdução
Idolatrada por uns, desacreditada por outros, a TV, como móvel e como distribuidor
de conteúdos audiovisuais talvez seja um dos objetos mais visados das Ciências Sociais,
ainda mais em 2020, quando as mudanças drásticas que a Revolução 4.0 trouxe à cadeia
produtiva audiovisual tornaram essencial tentar entender o estado da arte do setor e,
com isso, elaborar inferências que permitam vislumbrar linhas de análise e estudo nos
próximos anos. Tudo isso porque poucos estudos têm misturado a análise do conteúdo
audiovisual com a parafernália técnica necessária para sua produção e distribuição, um
ponto central em uma era de convergência (MOURA, 2017).
Assim, analisando a TV tradicional desde a óptica de consumo e, mais tarde,
desde o ponto de vista tecnológico, parece claro que ela não vai desaparecer como foi
vaticinado por diversos teóricos, mas, sim, que está a mudar não só na forma de distribuição, como também no seu consumo. Não estamos frente ao fim da TV (CARLON,
2013), mas sem dúvidas frente a mudanças estruturais no seu funcionamento e, sobretudo, na forma de assistir, de como o espectador, que em muitos casos deixa de ser um
(tel)espectador e se converte em um consumidor de conteúdos audiovisuais em diferentes suportes e plataformas, observa, enxerga e consome audiovisual.
Hoje a TV é mais do que um móvel, é uma instituição social, pública ou privada,
que faz parte da indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1998), porque traz instrumentos de percepção e conhecimento do mundo para grande parte da população,
contribuindo, desta forma, para a elaboração de representações acerca da realidade,
distante ou não. Mas parece evidente que a TV que nasceu há mais de 80 anos tem de
se reinventar para lidar com as novas formas de distribuição e consumo audiovisual.
Essa reinvenção parece recorrente, já que:
Em Março de 1939, um repórter do The New York Times destacado à Feira Mundial, onde a televisão fazia a sua apresentação,
fez uma predição sobre o novo invento. O problema com a televisão, escreveu, “radica em que as pessoas devem permanecer sentadas com a vista fixa na tela; a família norte-americana
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em média não tem tempo para isso (…) Por este motivo, não
por outro, a televisão nunca será um rival sério das transmissões
da rádio (MOURA, 2010)
Neste contexto de mudanças, estamos em um mundo em convergência e, com
isso, as mídias são cada vez mais convergentes. De fato, para Henry Jenkins (2009) a
convergência se deve, essencialmente, à incorporação do ecossistema digital à vida dos
usuários das novas tecnologias de informação. Sendo assim, o autor define quais são,
no contexto convergente, as transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e
sociais e afirma que “a convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera
e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento (...) a convergência
refere-se a um processo, não a um ponto final”. (JENKINS, 2008, p. 43)
De fato, para o autor, a convergência passa por fluxos de conteúdos em diferentes
mídias onde os (tel)espectadores adquirem um “comportamento migratório”, já que
estes podem estar a uma determinada hora em uma plataforma linear, e em outro em
uma não linear, ou vice-versa, porque eles “vão a qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam”. Neste ponto, já existem opções pensadas para
esta migração constante, exemplos de experimentos de TV híbrida, onde o broadcast e
o broadband convivem sem colidir um com o outro.
Mudanças na cadeia produtiva
As duas primeiras décadas deste século mudaram o ecossistema audiovisual.
Tanto na produção, como na distribuição e recepção de conteúdos. A produção se
transformou em um grande storytelling - palavra de origem inglesa relacionada às narrativas e histórias relevantes – que abrange todos os aspectos do audiovisual contemporâneo. Ainda, na última década, com a chegada da Revolução 4.0, mudou,
basicamente, a forma de produção, distribuição e consumo de TV. Toda a cadeia de
produção da indústria audiovisual se transformou, ou se encontra no processo. Passamos de uma experiência de consumo em grupo, coletiva, para uma experiência cada
vez mais individual e solitária. O consumo audiovisual sofreu transformações significativas, tantas que passamos de um consumo unicast (um sinal) para um multicast (vários
sinais). Ou seja, podemos assistir simultaneamente em diferentes plataformas, e diferentes espaços, e de formas complementares. A atenção parece ser compartilhada em
vários devices, suportes ou plataformas.
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A mudança parece passar por um mundo convergente e, nesse sentido, a convergência já é uma realidade, não só tecnológica senão de hábitos e consumos, por isso
termos como “storytelling” fazem sentido, já que o broadcast e o broadband avançam
para uma indústria “tell a story”, que não é outra coisa que “contar uma história” desde
a ótica do storyteller, ou seja, do contador de histórias. Uma indústria híbrida e cada dia
mais transparente, multiplataforma, multitela. Tudo porque o consumo audiovisual, seja
o tradicional com uma TV na sala – TV aberta, a cabo, ou TV conectada -, ou em dispositivos móveis, permitem interações. As novas formas de entrega e distribuição de vídeo,
com destaque para o streaming para diferentes dispositivos, sejam fixos ou móveis, permitiu que o (tel)espectador assumisse, em certo sentido, o controle.
Com isso, mudou o conceito de emissor e receptor e sua relação primária. O sinal
já não é unicamente linear – quando este segue uma sequência espaço temporal definida pelo programador –, ou seja, a emissora, e avança para uma forma de entrega não
linear, na qual o usuário escolhe onde – tipo de device –, como – tipo de conexão –, e
quando – horário – assistir a um determinado conteúdo. Por isto e porque a forma de
consumir conteúdos audiovisuais está em uma etapa de transição e mudança de hábitos,
os modelos de negócios tradicionais das emissoras de TV têm lutado nos últimos tempos
contra os serviços OTT1, VoD2 e TV Everywhere3 oferecidos por streaming (transferência
de pacotes de dados via internet) para não perder audiência. Tudo apimentado pelo
desenvolvimento das redes e infraestruturas de TI e serviços de banda larga em constante aumento (MOURA, 2017).
Streaming
Após o advento do streaming, a experiência de assistir TV mudou, porque não
houve só uma alteração na distribuição de sinais, mas também porque mudou a forma
de consumo de TV. Passamos de uma experiência basicamente comunitária, para uma
experiência cada vez mais individual e solitária. Ou seja, o que mudou é o habitus
(BOURDIEU, 1972) de consumo audiovisual, seja o tradicional com uma TV na sala, ou
o fornecido pelas novas formas de entrega de vídeo por streaming para dispositivos,
sejam fixos ou móveis que determinaram novas formas de olhar para o dispositivo
(MOURA, 2017).
1. OTT (Over-the-Top), denominação que se dá aos serviços de valor agregado por streaming que precisam de internet para fornecer o serviço.
2. Video on Demand (Vídeo sob demanda).
3. TV em tudo lugar, em todas as plataformas.
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O habitus funciona como uma práxis. Nela muda o conceito de
emissor e receptor, porque o sinal já não é linear, quando este
segue uma sequência espaço temporal definida pelo programador, ou seja, a emissora, e avança para uma forma de olhar
não linear, onde o usuário escolhe onde, como e quando assistir
a um determinado conteúdo. (MOURA, 2017, p. 22)
Mas nada é definitivo. Estamos em um momento de transformação que passa por
uma experiência em múltiplas telas, na qual o conteúdo ao vivo continuará a ser preponderante para os serviços de TV aberta, seja por espectro ou streaming. Tempo no
qual os serviços de SvoD4, VoD, OTT ou TV Everywhere, sejam plataformas de exibição
e monetização, deverão juntar conteúdos ao vivo e acervos, porque os dois tipos de serviços são complementares e não excludentes. Um não exclui o outro.
Em termos de adaptações às novas formas de consumo, a TV aberta tem avançado
em modelos que podem criar um novo modelo de distribuição, como explicado acima,
um modelo híbrido, um HybridCast. Um exemplo internacional seria o padrão de TV digital ATSC 3.0 utilizado nos Estados Unidos, que permite a junção dos dois mundos de
forma transparente para o espectador. O exemplo brasileiro é a criação do DTVPlay,
uma adaptação do middleware Ginga para poder criar um modelo híbrido de TV. A evolução do padrão ISDB-T de TV Digital foi lançada em agosto de 2018 e consiste em um
novo framework5 avançando, de alguma forma, para um formato de HybridCast (TV Híbrida) que permitiu que aos (tel)espectadores que tinham, nesse momento, a aplicação
Globoplay (plataforma OTT da Globo) “em suas TVs conectadas pudessem comutar automaticamente o sinal de TV aberta para broadband e, assim, usufruir dos conteúdos
que a emissora produz em 4K” (MOURA, 2018).
Neste ponto, o Globoplay gerou outra disrupção no mês de setembro de 2020,
mês que a TV aberta brasileira comemorou os seus 70 anos, quando o Grupo Globo, o
maior conglomerado de mídia familiar do mundo e um dos primeiros 20 do planeta,
virou o jogo da distribuição de TV brasileira e anunciou a integração na sua plataforma
Globoplay com os conteúdos da Globosat e TV Globo. O pacote “Globoplay + canais
ao vivo” pretende, segundo a empresa, levar a experiência de consumo linear dos canais
Globo, além de todo portfólio Globoplay, juntando na sua plataforma TV Aberta, TV
paga e conteúdos exclusivos de streaming, “proporcionando a experiência de consumo
4. Subscrição de Video On Demand.
5. Desenvolvimento de software.
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linear em um ambiente único, seguindo o conceito all in one”. Este anúncio mudou o
conceito, já que a Globo começou a ofertar os seus canais de TV Paga de forma direta,
transformando o ecossistema da TV por Assinatura e os serviços de streaming no país.
Pandemia e as mudanças no consumo
A pandemia gerou uma série de modificações na vida das pessoas e, junto delas,
das emissoras, rádios e toda a cadeia audiovisual não só brasileira, mas também global.
Com as mudanças de hábitos forçadas pela maior permanência das pessoas em suas
casas, a indústria audiovisual teve de se reorganizar. Para isso, as emissoras tiveram de
mudar fluxos e formas de trabalho com plataformas na nuvem, playouts remotos, links
realizados com tecnologias de streaming ou satélites, com estúdios virtuais geridos com
MAMs (Media Asset Management), remotos que permitiram que os produtores de conteúdo continuassem informando, e não só, senão que aumentassem o tráfego de conteúdos e a quantidade de horas que os consumidores assistem os conteúdos.
Em termos de informação (MOURA, 2020), as pesquisas indicam que no que se refere ao acesso à informação, “77% dos brasileiros confiam principalmente na TV para
se atualizar sobre o coronavírus”, conclui o estúdio da Kantar IBOPE Media. De fato, a
segunda edição do estúdio Thermometer afirma que "a audiência da televisão vem aumentando dia após dia no Brasil, mantendo-se em um patamar acima da média registrada antes das medidas de isolamento social. A televisão tem um importante papel de
entreter e também de informar", de fato, o tempo total aumentou, tanto que de 21 a 22
de março alcançou 1h26 a mais que o tempo médio diário de consumo de televisão no
fim de semana no período de comparação”.
Por outro lado, o grande tráfego de dados e o aumento da utilização de streaming
em plataformas audiovisuais gerou que as principais empresas (Netflix, Youtube, Facebook Watch, Globoplay, Apple TV, Looke, Amazon Prime Videos, entre outras) tivessem
que mudar o bit-rate e baixar a qualidade de vídeo dos conteúdos disponibilizados, e
as operadoras de telecomunicações criaram estratégias individuais e até conjuntas para
poder continuar com a prestação de serviços.
Globoplay, serviço da Globo, anunciou a redução da qualidade de seus vídeos
para, dessa forma, garantir o atendimento a mais usuários criando “um perfil de consumo de tráfego mais conservador para evitar um possível colapso da infraestrutura de
troca de tráfego público", e suprimir temporariamente perfis de resoluções como 4K e
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Full HD (1080p). Mas a Globo não foi a única. A maioria das plataformas adotou medidas
similares. Por exemplo, o YouTube teria reduzido a qualidade estabelecendo como definição padrão (SD, ou 480p) para todos os vídeos visualizados no período de quarentena. Por outro lado, as telcos, Claro, Oi, TIM e Vivo se uniram em campanha inédita para
apresentar as iniciativas em comum das empresas para que as pessoas pudessem ficar
em casa. Assim, adotaram diversas iniciativas “para trazer o máximo de informação e
possibilidades de entretimento às famílias, como a liberação de conteúdo de TV e internet, bônus de internet no celular e navegação gratuita no App Coronavírus SUS”. As
operadoras também avançaram com propostas como, por exemplo, Sky, Claro Net TV,
Oi e Vivo que liberaram os sinais de canais fechados durante o mês de março de 2020.
Inferências
Nada é conclusivo, mas pode-se inferir que a pandemia reordenou o tabuleiro. As
emissoras de TV ganharam audiência devido à sua credibilidade, enquanto as plataformas de streaming ganharam usuários e horas de consumo audiovisual. Assim, o que se
vaticinava como a disrupção na linearidade da distribuição de conteúdos, deu alguns
passos atrás. O que pode fazer-nos pensar, com algum otimismo, que no futuro os usuários terão no seu smartphone ou TV Conectada plataformas OTTs, e ainda assistirão a
programas da TV aberta ou fechada. Talvez o próximo passo, ousando um pouco na análise, seja um serviço que faça curadoria dos serviços audiovisuais, sejam de on-demand
(VoD ou OTT), ou ao vivo, e o usuário escolha o que quer consumir, como e onde,
exemplo da iniciativa do Globoplay. Para isso, no device onde o (tel)espectador assista
aos conteúdos coabitarão serviços de TV aberta, TV paga e plataformas de OTT, sem ser
excludentes nem proprietárias, mas sim integradoras de microsserviços audiovisuais
adaptáveis aos usuários e aos seus perfis, e as circunstâncias sociais que rodeiam a cadeia audiovisual. Nesse marco de pandemia, a TV brasileira comemorou as suas primeiras 7 décadas com mudanças tecnológicas que levam as transmissões broadcast a um
novo patamar, o de uma TV 3.0 que emerge de uma profunda hibridização dos seus
conteúdos e tecnologias de produção e distribuição em um mundo convergente com
experiência “all in one”.
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REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. (1972) La Distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Les Éditions de Minuit.
_________. (1994) Raisons Pratiques. Paris: Éditions du Seuil.
CARLON, M. (2013) Contrato e fundação, poder e midiatização: notícia do front sobre a invasão do
YouTube, ocupação dos bárbaros. In MATRIZes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo, nº 1. (jan/jul. 2013) São Paulo. ECA/USP
JENKINS, H (2008) Cultura da Convergência. Editora Aleph, São Paulo
MOURA, F (2020, Março/Abril ) Tech Innovation destaca os novos produtos do mercado audiovisual.
Revista da SET, N 190, pág. 12-36
_______. (2018, Setembro/Outubro) Globo anuncia integração de broadcast e broadband na TV dos
brasileiros. Revista da SET, N 180, pág. 14-17,
_______. (2017) TV Brasileira: novo século, novos modelos de negócio. Revista GEMInIS, São Carlos, UFSCar,
v. 8, n. 2, pp.16-31, mai. / ago. 2017.
_______.(2010) A construção da identidade de uma comunidade imigrante portuguesa na Argentina
(Escobar) e a comunicação social. (Tese de doutoramento não publicada) Universidade Nova de Lisboa
SCRANK, Jack. (1989). Comprendiendo los medios masivos de comunicación. México: Edit. Publigrafics S.A.
FERNANDO CARLOS MOURA
Doutor em Ciências da Linguagem e Comunicação com especialidade em Comunicação e Cultura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal (2010) Experiência na área de Comunicação, com ênfase em Ethnic Minority Media, rádio e televisão. Especialista em implantação de TV Digital no Brasil e América Latina com
trabalhos realizados para a Revista da SET (Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão) nessa área e nas
novas tecnologias de TV como 4K e 8K, transmissões televisivas e grandes eventos esportivos. Professor do
Centro de Linguagem e Comunicação (CLC) da PUC Campinas, e Editor-Chefe da Revista da SET
(https://www.set.org.br/publications/revistadaset/).
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CINEMA DE CASA: POÉTICAS
DE ATRAVESSAMENTO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Tatiane Mendes Pinto
Dos corpos e imaginários para as mentes, almas, páginas de livros e telas de cinemas, assim se constroem as utopias, nossas crenças de um mundo melhor de que
as indústrias culturais tão bem se apropriaram para construir universos de sonho e
consumo. Mas é quando o mundo vira de ponta-cabeça, espaço e tempo colidindo
em uma nova e eletrizante narrativa onde os seres humanos são confinados às suas
casas, as ruas esvaziadas, os corpos bloqueados em suas errância, Estados, indústrias,
pessoas perguntando-se cada um do seu lugar: e agora? E quando cada um tem sua
distopia particular e o intenso barulho da cidade, em vozes e sons que se cruzam, vai
se tornando aos poucos um burburinho cheio de silêncios, o que resta de humano nas
experiências com que estabelecemos nosso contato com o mundo? Medo? Ansiedade? Tristeza? Do lado de fora ficam as memórias da vida tal qual era, com todas as
pequenas certezas que a ignorância nos dá, os perigos de sempre, as notícias do dia,
as imagens que construíamos, clique a clique, em cada passo que dávamos. De repente, à luz intensa dos holofotes contemporâneos fez-se uma inevitável escuridão,
onde ficamos como cegos tateando uma saída que não chegará. De provisórios e vazios vamos construindo nossos cotidianos, em meio à pandemia que avança, a cada
semana somando mais uma casa decimal ao número de doentes e mortos. Nas cores
esmaecidas da rotina viramos zumbis, resgatando pedaços de rostos, risos, memórias
e afetos, tentando sobreviver. Somamos nossos dias aos hábitos que já não temos mais
e colecionamos histórias de horror para a hora de dormir. O momento mais terrível
não é quando a luz apaga e todos se calam. O silêncio mais frio, que gela a espinha,
vem em plena luz do dia, quando abrimos nossos olhos e descobrimos que não estamos em um pesadelo, mas na incompreensível realidade que se estende infinitamente
diante de nosso desespero. Em tempos onde se esgarça a fronteira entre o particular
e o público, uma função humana se modifica, segundo Slavov Zizek (2020, p.15) a subjetiva, “ela nos diz que tipo de gozo podemos nos autorizar e que tipo deverá permanecer interditado”. Seria o cinema um tipo de gozo possível, em tempos de
covid-19? As salas de cinema, fechadas ao redor do mundo parecem dizer que não.
Nesse momento da história humana, o mesmo fluxo globalizado de pessoas e coisas
que permitiu o desenvolvimento tecnológico e os aparatos com que nos cercamos em
PANDEMIDIA 77
nossas práticas constroem uma outra vinculação social, em que muros e quarentenas
são construídos ao bel prazer do reforço das desigualdades sociais, onde se decide
quem morre e quem vive e Estados-nação reinventam as políticas de protecionismo
em um novo tipo de capitalismo de confinamento. Nesses tempos de emergência planetária, deve haver mais de uma voz que possa narrar o presente. Afirmo que o cinema
pode ser uma dessas vozes, mesclando realidade e poesia. Mas em tempos onde os
mortos se somam aos milhares, como falar de poesia, em uma hora dessas? Como
ousar atravessar o silêncio da espera, com sons de música, diálogos, luz e sombra projetados nas telas dos prédios? Para certos coletivos, a ousadia é diária. E se salas de
projeção se encontram fechadas, nas janelas de cidades como Roma, Bruxelas, Salvador e Rio de Janeiro, a potência do cinema projetado como janela do mundo persiste,
para além da materialidade das salas de projeção, mas enquanto ação de reunir pessoas mesmo que virtualmente, imaginários e emoções Será justamente enquanto atravessamento da cidade e do cotidiano que a importância do cinema se faz, experiência
que se dá por vezes na medida do inesperado, de alcançar pessoas que estariam distraídas, imersas em seus afazeres, confinadas a seus lares, quando são surpreendidas
pelo cinema enquanto manifestação cultural efêmera e, até então gratuita, mas não
menos potente para propor coletivamente uma solução ao isolamento social.
Aqui, a indústria do cinema de portas fechadas contrasta com as imagens livres,
atravessando janelas e muros e se opondo a um sistema de produção de viés muitas
vezes mercantilista, que exclui por vezes populações inteiras de cidades pela ausência
de acesso a meios e espaços de produção cultural. Não é à toa que, segundo Zizek
(2020) o verdadeiro vírus é o capitalismo. Também ngela Davis entende o modo de
produção capitalista como o verdadeiro desastre e propõe que o trabalho durante a
pandemia é “abrir a porta da transformação radical” (2020, p.174) com a qual possamos quebrar o neoliberalismo, resgatar pessoas e nossa solidariedade. Seria então o
cinema esse espaço de atravessamento e potência de transformação pós-pandêmica?
Afirmo que a grande força do cinema em tempos atuais, de confinamento, insegurança
e crise humanitária estará no caráter inesperado da ação, na mobilidade com que tal
experiência se dá e principalmente quando cria um espaço político na cidade à revelia
do Estado, mas pautado em redes de solidariedade e, principalmente, cidadania. Pensar na forma como o cinema ainda se constitui na sociedade, mesmo em tempos de
confinamento é compreender que a importância da democratização do acesso a mecanismos de produção, fruição, letramento audiovisual e distribuição. Torna-se funda-
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mental localizar o cinema como um espaço político de enfrentamento às estratégias
de precarização sistemática de manifestações culturais como o cinema. Pelo fato de
que a potência do cinema que se faz das projeções no atual cenário está na gratuidade
e na democratização do acesso, bem como na garantia da ocupação do espaço para
gerar reflexões em relação à cidade, ele se torna atualmente uns lócus de consolidação
da cidadania. Cidadania que se dá quando se constrói o bem comum não no asfalto e
concreto das construções, ou em grandes aglomerações, mas na intensidade dos afetos dos sujeitos, reunidos em aliança sob a luz do cinema, do alto de suas varandas e
janelas, ainda que seus corpos não estejam próximos, dado o contexto pandêmico
atual. Na instância de afeto, o fortalecimento de laços gera esperança, em dimensões
igualmente sensíveis e políticas. Este e o caso de ações como o #cinemanajanela, da
Prefeitura do Rio, inspirada no #cinemadecasa, ações de projetar filmes em fachadas
de cidades italianas. O primeiro é uma capital italiana, Roma, imaginada pelo festival
internacional Alice nella città1. As sessões nascem da ideia de projetar as imagens dos
filmes em paredes das casas italianas. Os filmes são exibidos todas as noites e muitas
cidades já aderiram ao projeto, convidando os italianos, castigados pelo COVID-19, a
abrirem as janelas e o coração. Já no Brasil, iniciativas começam a surgir, como no caso
da prefeitura do Rio de Janeiro e o projeto Cinema nas janelas, que exibe filmes na
Zona Norte da cidade e Salvador convida os moradores em isolamento a assistirem
de suas janelas filmes de Charles Chaplin. Todas as iniciativas, ao expandirem e reinventarem o cinema para além do espaço físico e do encontro de corpos, mas na relação entre as pessoas e na vinculação social, em diálogo com Muniz Sodré (2010) como
o ato de criar conexões, nexos entre o eu e outro. Entre a cidade e as pessoas, seria a
arte através do cinema esse lugar múltiplo dos sentidos, de criar vínculos possíveis,
para que mentes e corpos possam convergir? Não o cinema que conhecemos, mas
certamente uma outra experiência de cinema, herdeira das projeções e instalações
que tensionam a ideia de forma-cinema? De André Parente (2011) sobrevém o debate
sobre as diferentes formas do cinema, antes defeso à forma de uma arte em que espaço e tempo entendiam o relativo circular de corpos em comunicação para existir.
Em tempos de distanciamento social, de que modos o cinema pode atuar para pensar
a realidade?
1. https://www.facebook.com/alicenellacittafestival/ Acesso em 20/05/2020
2. https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/03/27/cine-janela-grupo-projeta-filmes-em-fachada-de-predio-para-moradores-em-isolamento-social-em-salvador.ghtml Acesso em 20/05/2020
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Cinema como forma múltipla
Segundo André Parente, o cinema convencional, chamado pelo autor de “forma-cinema”, se estabelece como sistema de representação, que não deve ser tomado como
única forma cinematográfica possível, pois, como observa o autor, “nem sempre há sala,
[...]a sala nem sempre é escura. [..]o projetor nem sempre está escondido” (MACIEL, 2009,
p.25). O cinema, historicamente, se coloca, para o autor e para o presente estudo, como
forma múltipla. Assim, o cinema que se projeta em paredes, na rua ou em salas de projeção se coloca a um só tempo como processo social (dimensão sociocultural), espacial,
afetivo e técnico, posto que se utiliza de equipamentos para produzir efeitos nos ambientes que ocupa. Assim, como deslocamento e reunião de pessoas, o cinema projetado de
casa ou na rua também é analisado como produção de um espaço político na cidade,
mesclando-se às dimensões de espaço e tempo, mas também poesia e afeto.
Com a perspectiva de Arlindo Machado (1997), os cinemas da atualidade são identificados como um estágio em que a película cinematográfica se transmuta tecnicamente
em híbridos e, posteriormente, com os trabalhos de André Parente e Katia Maciel sobre
os transcinemas (2009), o cinema é contextualizado como uma experiência que vai se
modificando ao longo da moderna história humana, oferecendo-se como uma miríade
de possibilidades estéticas. E se há uma ruptura de modos de ver e, em consonância,
uma ruptura de contexto social, o cinema permanece espaço permeado de provisórios,
mobilidade e efêmero, os fluxos de sons, imagens e afetos ainda reverberando sobre os
corpos e produzindo atravessamentos, inconstâncias, transmutações e sensibilidades e
modos de ver e viver o mundo? E teria assim o cinema projetado de casa um momento
de ruptura do cinema vinculado ao espaço das salas de exibição? Acredito que não se
poderia compreender a evolução da técnica do cinema e seu desenvolvimento como
dispositivo atravessado pelas forças do social, se não o compreendêssemos também
como permeado por emoções e sensações humanas, muitas das quais não explicáveis
pelas vias da racionalidade, o que aqui associa-se à magia, não no sentido de mistificação, mas de experiência sensível, igualmente racional e emocional, partes de uma visão
mágica do mundo, que insisto em pontuar como parte da análise do presente trabalho.
Ou, nas palavras de Morin: “a varinha de condão está presente em todo aparelho de captação de imagens” (MORIN, 2014, p.76) e assim, em toda experiência cinematográfica
como modo de ver e ser no mundo. E se o tempo desacelera, o cinema permanece como
narrativa de seu tempo. Expande-se além da luz projetada e alcança os corpos - da tela
para a plateia, mesmo que esta permaneça confinada, atuando na medida de ressignificar
80 PANDEMIDIA
também as pessoas em sua forma de viver e ver o mundo. O cinema em tempos de pandemia também pode assim atuar como memória coletiva, ou, como Roland Barthes entende a imagem e seu elemento mais representativo, o punctum que convoca o olhar. A
memória então seria aquilo que “me atinge diretamente” (1984, p.84), como um tempo
em que reinventamos diariamente modos de ser por ocasião do vírus planetário que nos
acomete. Ao caos que nos cerca ainda resta um espaço de criação, fragmento de poesia
que chega até a janela nas projeções do cinema em tempos de pandemia.
Poéticas do atravessamento: considerações de quarentena
Da grave pandemia que nos atinge e das circunstâncias da emergência humanitária
que expõe e agrava desigualdades sociais e posicionamentos de Estados de caráter genocida, ao abandonar a população vulnerável sem recursos para enfrentar o vírus covid19, é urgente pensar em saídas afetivas e, portanto, políticas, para garantir que os direitos
fundamentais dos cidadãos sejam garantidos, a cultura e a cidadania entre eles. Nesse
viés o cinema, seja na rua, na praça, nas escolas ou mais recentemente, na janela, ainda
reserva sua potência transformadora. Arrisco dizer que a única dimensão do cinema que
jamais poderá ser substituída é a dimensão afetiva, que envolve os sujeitos em uma experiência que é igualmente coletiva e individual. Coletiva, que se dá em meio ao espaço
de encontro que o cinema proporciona, auxiliando a consolidar laços que a pandemia
atual esgarça e por vezes rompe. Magia por excelência, posto que constituído nas dimensões modernas do insólito e do maravilhoso, o cinema não é a linguagem prioritária
ou unicamente transformadora da vida através da técnica ou discurso, mas, prioritariamente – e daí sua importância –, janela que abre para a alma humana, através da tela e
fora dela. Temos Pandemia? Sim. Genocídio também. Sistemático, constante e sobrevivente ao vírus, nas políticas de Estados capitalistas que escolhem ao sabor da economia
os corpos que podem ou não sobreviver. Contudo cabe aos coletivos, na contramão da
lógica protecionista que separa respiradores, máscaras e conta corpos entre os mais vulneráveis, a saber pobres e idosos. Nesse cenário, o cinema de casa pode ser comparado
aos vagalumes de Didi-Huberman (2011), “não saber, prova do desconhecido, ausência
de projeto, errância nas trevas. [...]. Ela é não poder por excelência, notadamente com
relação ao reino e à sua glória. Mas ela é potência” (2011, p.143), experiência clandestina,
desvio e atravessamento poético na cidade. Se o cinema existe como um vagalume capaz
de gerar lampejos, será no caráter provisório da forma que gera – coletivamente e de
modo sensível – uma assembleia onde intensidade e efêmero se cruzam, produzindo tanPANDEMIDIA 81
tas variações quanto for a duração experimentada por cada participante em sua interação
com a luz e o som. Tal e qual o poético movimento do vagalume, descrito por Didi-Huberman (2011), os corpos ainda que confinados refletem e criam lampejos de luz e de
sons, inventando outras formas de se viver ou sobreviver, poética do efêmero em meio
ao brutal contexto do covid-19.
REFERÊNCIAS
BARTHES, R. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
DAVIS, Ângela. Construindo movimentos [recurso eletrônico]:uma conversa em tempos de
pandemia/Angela Davis, Naomi Klein: tradução Leonardo Marins. - 1.ed. São Paulo:Boitempo,2020
DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova,
Márcia Árbex. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011
______________. Levantes. São Paulo: SESC, 2017
MACHADO, A. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
MACIEL, K (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009
MORIN, E. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D´Água, 2014.
SODRÉ, M. Antropológica do espelho: Uma teoria da comunicação linear e em Rede. Petrópolis: Vozes,
2010.
ZIZEK, Slavok. Pandemia. Covid-19 e a reinvenção do comunismo. TRad:Artuz Renzo, Boitempo,2020
TATIANE MENDES PINTO
Doutora em Comunicação Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestre em Mídia e Cotidiano
da UFF no PPGMC (Programa de Pós -Graduação em Mídia e Cotidiano), coordenadora de conteúdo digital
do Laccops (Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social-UFF) e membro
do Laboratório de Comunicação, Arte e Cidade (UERJ) .Graduada em Comunicação Social com habilitação
em Jornalismo pela FACHA (2010) .Professora de Jornalismo e Publicidade na Universidade Estácio de Sá.
É especialista em Artes Visuais (2010).
82 PANDEMIDIA
“PARECE UM FILME DE TERROR”: RELAÇÕES ENTRE
A PANDEMIA DE COVID-19 E OS FILMES DE ZUMBI
Lúcio Reis Filho
Conforme a covid-19 se alastra, contabilizando até o momento mais de 40 milhões
de casos e mais de 1 milhão de mortos em todo o mundo1, os espaços urbanos sofrem
profundas mudanças. As ruas e marcos de Nova York ficaram desertos, a ponto de um
âncora da CNN comparar cenas da Times Square com as de um “filme catástrofe”.2 Podemos lembrar de Extermínio (28 Days Later..., dir. Danny Boyle, 2002) e Contágio (Contagion, dir. Steven Soderbergh, 2011). De início, a venda de armas e munições cresceu
tanto quanto o pânico naquele país3. Os mortos foram enterrados em massa na Itália,
na Espanha e em Manaus, capital do Amazonas, sem direito a extrema-unção. Corpos
se empilharam nas ruas do Equador e nas regiões periféricas da América Latina. “Parece
filme de terror”, declarou o prefeito de Barra do Piraí, cidade fluminense, diante do aumento do número de infectados4. Depois dele, o prefeito de Manaus chorou5. O imaginário apocalíptico desencadeado pelo coronavírus evoca tanto A Peste (1947), clássico
do escritor e filósofo francês Albert Camus (1913-1960), quanto inúmeros tropos do cinema de horror, mais especificamente dos filmes de zumbi, subgênero que nos permite
refletir sobre o estigma dos infectados e a segregação inerente à quarentena.
Os monstros imaginados por qualquer cultura oferecem visão singular dos medos
e preocupações atinentes a dado momento histórico, observou Jamie Russell (2010, p.
18). O escritor Colson Whitehead concorda: “Os tempos criam seus monstros. Nós temos
os nossos, a próxima geração terá os deles” (apud MADRIGAL, 2011). Com A Noite dos
Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), o cineasta norte-americano George A.
Romero (1940-2017) lançou um olhar crítico para o fim de uma década e fez uma projeção perturbadora do “ano que não terminou”, parafraseando Zuenir Ventura. No enredo, um grupo de sobreviventes se tranca em uma casa de fazenda, cercada de
“mortos-vivos” que vagam pelo interior de Pittsburgh. Microcosmo da sociedade norte-
1. Dados atualizados pela última vez em 19 de outubro de 2020. Uma versão expandida e mais detalhada deste artigo será publicada em uma
coletânea da Universidade Federal de Goiás, com foco no conceito de “necropolítica” de Achille Mbembe.
2. Disponível em: https://edition.cnn.com/videos/us/2020/04/02/us-new-york-coronavirus-covid-19-pandemic-times-square-subway-quest-pkgintl-ldn-vpx.cnn
3. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/mar/16/us-sales-guns-ammunition-soar-amid-coronavirus-panic-buying
4. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-28/parece-filme-de-terror-se-1000-pessoas-ficarem-doentes-no-futuro-teriamos-de-escolher.html
5.Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/04/prefeito-de-manaus-chora-pede-ajuda-e-diz-que-bolsonaro-tem-de-serpresidente-de-verdade-e-respeitar-coveiros.shtml
PANDEMIDIA 83
americana, a casa é um espaço de quarentena e palco do que Romero chamou de “crônica sociopolítica dos tempos” (apud ECO, 2007, p. 422), pois seu filme fala “sobre a revolução, sobre as novas gerações tomando o lugar das mais velhas” (apud SARACINO,
2009, p. 41). Nesse filme, os zumbis funcionam como metáfora da conjuntura política,
econômica e social, das mudanças demográficas e da ruptura dos tradicionais papeis
de gênero nos EUA da contracultura.
Com o seu primeiro longa-metragem, Romero criou o subgênero dos filmes de
zumbi e suas convenções: a doença inexplicável, os mortos comedores de carne humana, o silêncio ou o negacionismo das autoridades, a desarticulação política, os ruídos
da mídia e a erosão dos valores tradicionais da classe média. Novos tropos seriam definidos (ou reforçados) tempos depois: a conspiração do governo, a epidemia tornando-se pandemia, o colapso da ordem social e os grandes centros urbanos como
espaços arruinados.
Crítica ao consumismo e ao capitalismo predatório, personificação de doenças contagiosas e alegoria da sublevação das classes sociais subalternas, o zumbi continua
sendo usado como “lente pela qual vemos o momento histórico” (BERNARDINI, 2010,
p. 179). Durante o surto de covid-19, os tropos dos filmes de zumbi reemergem quase
diariamente nas culturas mainstream e alternativa. A constatação desse fenômeno me
fez retomar os estudos sobre a usabilidade do zumbi na sociedade pós-industrial (REIS
FILHO, 2018), considerando a remodelagem dessa forma de representação.
A relação do zumbi com as doenças, seja a peste bubônica, o câncer, a AIDS e até
mesmo a acne, é histórica (DENDLE, 2001, p. 12) e tem sido retratada pelo cinema. Mas
foi Resident Evil (Biohazard, 1996) que popularizou a ideia do vírus criado em laboratório
como causador da epidemia dos zumbis, e esse game estava bem sintonizado com seu
tempo. No novo milênio, esporos de antraz foram usados como arma biológica6; a droga
“sais de banho” levou viciados a cometerem homicídios brutais nos EUA7; depois, vieram
as epidemias de SARS, H1N1 e, finalmente, covid-19. Nas histórias de zumbi, a única resposta é a execução dos infectados em nome da ordem, da segurança e da autodefesa.
No desfecho de A Noite dos Mortos-Vivos, o protagonista Ben (Duane Jones) é o
único sobrevivente da quarentena. Ele não se parece com um zumbi, mas isso não o
previne de ser executado com um tiro na cabeça por um miliciano. A despeito da crueza
do ato, a morte de Ben carrega um valor simbólico: um homem negro é morto pelas
6. Em 2001, esporos de antraz foram liberados através de cartas pelo sistema postal dos EUA.
7. Disponível em: https://abcnews.go.com/US/face-eating-attack-possibly-linked-bath-salts-miami/story?id=16451452
84 PANDEMIDIA
mãos de um homem branco, no mesmo ano em que Martin Luther King foi assassinado,
no ápice da era dos Direitos Civis. No entanto, a ideia de que o zumbi só pode ser morto
com um tiro na cabeça deriva de um registro da Guerra do Vietnã, a imagem de um
chefe de polícia executando à queima-roupa um prisioneiro vietnamita (HERVEY, 2008,
p. 22). Num contexto de banditismo social, a ordem de “atirar na cabeça” foi dada pelo
governador do estado do Rio de Janeiro em novembro de 2018, autorizando a polícia
a atirar para matar em suspeitos de crimes. Durante a crise de covid-19, conforme um
enredo de filme de horror se desenrola, o presidente Rodrigo Duterte das Filipinas advertiu que poderiam ser executados aqueles que violassem a quarentena.
A trilogia final de Romero — Terra dos Mortos (Land of the Dead, 2005), Diário dos
Mortos (Diary of the Dead, 2007) e A Ilha dos Mortos (Survival of the Dead, 2009) — encapsula questões contemporâneas que alimentaram o ressurgimento dos zumbis no início do século XXI. O crítico Kim Newman identificou comentários sobre doenças virais
como a AIDS e a gripe suína, eventos como o 11/09 e a Guerra ao Terror, o furacão Katrina, os conflitos no Oriente Médio, as crises bancária e de crédito. Dessa maneira, o cineasta teria atualizado o conceito do zumbi como alegoria (2011, p. 578). Roteirista de
Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, dir. Edgar Wright, 2004), Simon Pegg relacionou a súbita popularidade dos filmes de zumbi no novo milênio ao medo do outro
e de nós mesmos, à sensação de impotência diante de um ataque terrorista, bem como
à paranoia viral e à xenofobia (apud RUSSELL, 2010, p. 228-9).
Decerto, os estrangeiros têm sido relacionados aos arquétipos do contágio e da
impureza. Reflexões sobre esta última, segundo Mary Douglas, envolvem as relações
entre ordem e desordem, ser e não ser, forma e ausência de forma, vida e morte. A
noção de impureza abarca o cuidado com a higiene e o respeito às normas, e prevê
todos os elementos excluídos de um sistema ordenado. Nessa óptica, a impureza seria
uma anomalia, “elemento que não se encaixa em um determinado conjunto” (1991,
p. 52). Ora, em um sistema onde o igual predomina, “a defesa imunológica volta-se
sempre contra o outro ou o estranho em sentido enfático”, explica Byung-Chul Han.
Logo, o mundo imunologicamente organizado “é marcado por barreiras, passagens e
soleiras, por cercas, trincheiras e muros. Essas impedem o processo de troca e intercâmbio” (2017, p. 13, 16). Em tempo de crise de refugiados e nacionalismos à flor da
pele, os zumbis reivindicam seu lugar como representação de grupos marginalizados.
Terra dos Mortos aborda a desigualdade e a estratificação social enquanto males
que residem nas práticas capitalistas. No enredo, os zumbis dominaram o mundo. Os
PANDEMIDIA 85
humanos sobreviventes estão separados entre os ricos e os pobres. Estes habitam o submundo, à mercê de toda sorte; aqueles vivem protegidos em cidades muradas. Retrato
de uma tendência observada por Zygmunt Bauman, que enfatizou nosso desejo de dividir a humanidade em “nós” e “eles”, civilização e barbárie. Conforme atesta o filósofo,
os “extremamente ricos” vivem hoje em comunidades muradas, novos enclaves superluxuosos, mas também segregados, abrigados, escondidos e superprivados8. Nessa lógica, os estrangeiros representam tudo o que é evasivo, frágil, instável e imprevisível. É
contra eles, e para se livrar deles, portanto, que os residentes de uma localidade infectada “irão se organizar para defender sua política e sua cultura”, tentando remodela-las
como um “pequeno Estado” (WALTZER apud BAUMAN, 2017, p. 61).
Não por acaso, o vilão de Terra dos Mortos é o homem rico em seu “castelo”. Kaufman (Dennis Hopper) é a “combinação de barão capitalista gatuno, imperador romano
louco e rei do crime organizado” (PAFFENROTH, 2006, p. 125). Seu nome significa “mercador”, e esta seria a essência do personagem. Definir neste termo o novo governante
da humanidade revela uma convicção de Romero: de que a mais elevada forma de
poder na velha estrutura social é o comércio.
Nessa visão horrífica e cínica, mas desconfortavelmente realista,
os militares, o governo ou a igreja não exercem poder real, mas
sim os ricos, que podem usar essas instituições como frentes ou
representantes de suas maquinações egoístas. Segundo Romero, a Casa Branca, o Pentágono e o Vaticano não administram
ou exploram o mundo — Wall Street o faz (PAFFENROTH, idem).
Analogia pode ser feita com os EUA de Trump, magnata que virou presidente e
notório negacionista da pandemia de covid-19 e seus efeitos. Com discursos inflamados
de retórica ultraconservadora e racista,9 o presidente norte-americano pode se enquadrar na categoria dos “políticos de ódio”, referência de Bauman a um texto do boletim
Social Europe (2017, p. 69). Para o The Guardian, a jornalista Eliane Brum o definiu como
um dentre outros “déspotas eleitos”, incluindo nessa categoria o presidente do Brasil e
o primeiro-ministro da Hungria.10 Em artigo para esse mesmo jornal, Tom Phillips e Caio
Briso relacionam os “super ricos” brasileiros à introdução e disseminação do vírus no
país, uma das sociedades mais desiguais do mundo. Embora a primeira onda de contá8. Bauman (2017, p. 98, 99) cita o artigo de Nelson D. Schwartz, “In the age of privilege, not everyone is in the same boat”. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2016/04/24/business/economy/velvet-rope-economy.html
9. De acordo com: https://www.washingtonpost.com/opinions/2020/06/23/follow-general-sanchezs-lead-trumps-language-is-racist/
86 PANDEMIDIA
gio tenha atingido a elite branca, os mais afetados poderão ser os pobres e os negros —
economicamente mais vulneráveis, incapazes de se isolar ou recorrer a hospitais privados caros.11 Aparentemente, é isso que vem ocorrendo no Brasil e nos EUA.
Uma das peças mais críticas das últimas décadas, Terra dos Mortos propõe a derrubada dos muros que oferecem falsa segurança aos ricos e mantêm vasta maioria segregada, em pobreza extrema. Em tempos de construção de muros, fechamento de
fronteiras, extradição de imigrantes e erosão de comunidades internacionais, o filme
não perde a sua atualidade. Como a ficcional epidemia dos zumbis, o surto de covid-19
revela quão profundo é o abismo entre ricos e pobres nos espaços urbanos.
Em tempos incertos, a iminência da catástrofe encontrou nos filmes de zumbi uma
válvula de escape. De acordo com Neil Ferguson,12 epidemiologista no Imperial College
London, relacionar os zumbis ao contágio reflete medos próprios de nosso tempo, seja
da manipulação genética ou da disseminação de novas doenças por laboratórios. Hoje,
tais medos são alimentados por teorias da conspiração xenofóbicas que culpam a China
pela criação e propagação do covid-19,13 às custas de sua própria economia e sociedade. Acusações de um “vírus chinês” ecoaram nos EUA e no Brasil.
Essa última racionalização de uma arma biológica pode ser um
sintoma de um mundo pós-11 de setembro, ansioso com as
possibilidades do bioterrorismo, pois uma geração anterior
vivia constantemente à sombra da guerra nuclear, e os zumbis
eram então retratados como o resultado da radiação (PAFFENROTH, 2006, p. 3).
No século XXI, as narrativas de zumbis desembocam na pandemia que leva ao colapso da modernidade tecnológica e do capitalismo transnacional em escala planetária.
No cinema, Extermínio (2002) é uma peça importante dessa renovação. Escrito e produzido antes dos ataques com antraz, dos debates sobre vacinação, da busca por armas
de destruição em massa no Iraque e da ansiedade global relacionada à SARS e à H1N1,
o filme se alimentou do Zeitgeist e do medo de uma catástrofe microbiológica. Londres
está deserta. Poucos sobreviveram à epidemia de um vírus associado à raiva, cujos sintomas são chocantes: transmitido por fluidos corporais, espalha-se em questão de se10. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/apr/02/brazil-message-world-our-president-wrong-coronavirus-jair-bolsonaro
11. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/04/brazils-super-rich-and-the-exclusive-club-at-the-heart-of-a-coronavirus-hotspot
12. “The infectious nature of the zombies”. Entrevista com Neil Ferguson. Disponível em:
http://news.bbc.co.uk/today/hi/today/newsid_8206000/8206612.stm.
13. Disponível em: https://www.cnn.com/2020/04/06/us/coronavirus-scientists-debate-origin-theories-invs/index.html
PANDEMIDIA 87
gundos, transmutando os infectados em assassinos desvairados, com habilidades atléticas super-humanas e compulsão por atacar e devorar os sãos. Trazendo a temática para
o presente, Extermínio reforça o papel da epidemia no imaginário apocalíptico.
As cenas de cidades vazias são familiares hoje, em tempos de quarentena e isolamento. Internautas não demoraram a comparar a rodovia deserta de Atlanta, conforme
aparece na imagem promocional da série The Walking Dead (2010-), a uma foto tirada
do mesmo local durante a pandemia de covid-19, depois das medidas restritivas. A comparação reforça a ideia de fim do mundo como o conhecemos e mostra como os tropos
dos filmes de zumbi estão presentes no imaginário.
88 PANDEMIDIA
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
BERNARDINI, Craig. Auteurdämmerung: David Cronenberg, George A. Romero, and the twilight of the
(north) American horror auteur. HANTKE, Steffen (ed.), American horror film: the genre at the turn of the
millennium. Jackson: University Press of Mississippi, 2010.
DENDLE, Peter. The zombie movie encyclopedia. Jefferson: McFarland, 2001.
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70, 1991.
ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
HERVEY, Ben. Night of the living dead. London: British Film Institute, 2008.
KRZYWINSKA, Tanya. Zombies in gamespace: form, context, and meaning in zombie-based video games.
McINTOSH, Shaun; LEVERETTE, Marc (eds.), Zombie culture: autopsies of the living dead. UK: Scarecrow
Press, 2008.
MADRIGAL, Alexis. Bookforum talks with Colson Whitehead. In Bookforum, 2011. Retrieved from:
<https://www.bookforum.com/interviews/-8491>.
NEWMAN, Kim. Nightmare movies: horror on screen since the 1960s. UK: Bloomsbury, 2011.
PAFFENROTH, K. Gospel of the Living Dead: George Romero’s visions of hell on Earth. Texas: Baylor
University Press, 2006.
REIS FILHO, Lúcio. A usabilidade do morto-vivo na sociedade pós-industrial. PENHA, Diego; GONSALVEZ,
Rodrigo. Ensaios sobre mortos-vivos: the walking dead e outras metáforas. São Paulo: Aller editora, 2018.
RUSSEL, Jamie. Zumbis: o livro dos mortos. São Paulo: Leya Cult, 2010.
SARACINO, Luciano. Zombies! Una enciclopedia del cine de muertos vivos. Buenos Aires: Fan Ediciones,
2009.
LÚCIO REIS FILHO
Doutor em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em Estudos Clássicos e historiador.
Dedica-se ao campo das relações entre o Cinema e a História, bem como às pesquisas em Literatura e Artes Visuais. É estudioso da obra de H. P. Lovecraft e suas adaptações para o cinema. Sua dissertação de mestrado
(UFJF, 2012) foi um estudo da obra do cineasta George Romero e dos filmes de zumbi. Participou do livro Ensaios sobre mortos-vivos: The Walking Dead e outras metáforas (2018), entre diversas outras publicações.
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CAPÍTULO III
COMPORTAMENTOS
EM LOCKDOWN
IMUNIZ(AÇÕES) E REAÇÕES
Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
OS SENTIDOS DAS MÁSCARAS:
COVID, BOMBAS DE GÁS LACRIMOGÊNIO E DEEP FAKES
Marcus Bastos
No momento de sua derrota,
a máscara celebra seu verdadeiro triunfo
Claude Levy-Strauss
As máscaras se tornaram pop. Mesmo. Arnaldo Antunes usa máscaras como cenário do show Real ao Vivo, e depois transforma seus desenhos num aplicativo de realidade
aumentada para redes sociais. Numa época em que as pessoas estão confinadas em
casa como resultado da pandemia de covid-19, e dando continuidade ao seu engajamento com as tecnologias mais recentes de cada época, o artista encontra uma forma
de ir até seu público. Além disso, as máscaras em questão exploram o imaginário do
rosto coberto de forma ampla e lúdica. Há máscaras mais realistas, que lembram máscaras antivírus, máscara para canibais e máscaras para modelos. Tem máscara alegórica,
que explora o imaginário tropical. Tem máscara que nem parece máscara e sim um desenho abstrato sobre o rosto.
Bjork também se apropria das máscaras. Enquanto administra as datas da turnê Orkestral conforme a situação da pandemia de covid-19, a cantora Björk realiza uma série
de três concertos por streaming. Parte do ganho é revertido para uma instituição de caridade, e as músicas são tocadas em arranjos instrumentais, como forma de lembrar sua
colaboração de anos com os músicos da Islândia. Sempre em sintonia com seu tempo, a
Imagem capturada do canal de Youtube de Bjork. Imagens capturadas do Instagram de Arnaldo Antunes
92 PANDEMIDIA
cantora divulgou a série de apresentações num vídeo em que vestia uma máscara futurista. As formas sinuosas e o material transparente produzem um efeito de aparente desaparecimento. A máscara modifica o rosto de Björk. Também sugere um dispositivo
necessário, talvez algo sem o que ela não possa respirar, ou torne-se exposta aos perigos
que, no mundo dos vírus circulando sem controle, vem do ar. Mas a máscara desaparece
através do material invisível. O vídeo em que Björk explica os motivos de seu concerto
remoto, com olhos sem íris, por trás desta máscara que mostra e deforma um rosto que
outras esconderiam, é síntese e fábula de uma necessidade inesperada, que mudou a
face de 2020. Algo no vídeo sugere uma aproximação complexa entre tipos de mediação.
Entre a câmera e o corpo filmado, surge a máscara, como uma segunda lente.
Talvez a máscara seja um avesso do selfie. Com a portabilização dos processos de
fotografia e filmagem, o gesto de virar a câmera para o próprio corpo se tornou comum,
generalizando uma relação íntima entre rosto e câmera. Se o rosto é um “lugar privilegiado de figurativização de intensidades”1, como afirma Patricia Moran, as máscaras são
o elemento que impedem o acesso a estes devires.
Hoje os rostos passaram a conviver de forma indireta. Com corpos presentes, mediados por máscaras. Quando sem máscara, mediados por telas. A máscara mudou de
sentido com a pandemia do COVID. Usada de forma ritual em algumas culturas, tingida
de tons carnavalescos em outras, usada como traje para o sexo em certos grupos, presente no rosto de heróis e bandidos como forma de ocultar a identidade, mais recentemente inserida no contexto ativista, ou associada à militância pelo anonimato, a máscara
tornou-se de uma hora para outra uma necessidade sem a qual as pessoas ficam desprotegidas diante do vírus que se alastra.
O uso de máscaras como um recurso de proteção não é novo. O que muda é a amplitude e o contexto. De prática obrigatória para trabalhadores em situação de risco, a
máscara transforma-se em item de uso disseminado e diário. Não demora muito para
as pessoas passarem a combinar suas máscaras com os demais itens da roupa, como se
ela fosse um acessório ou adorno. Não são mais os soldadores, pintores industriais, metalúrgicos, dentistas, médicos ou enfermeiros que usam máscara. Ela está no rosto do
padeiro, do caixa de supermercado e, o que é mais significativo, do vizinho de quem
não sabemos a profissão. Na esfera pública mais ampla, a máscara deixa de ser uma
proteção contra a bomba de gás lacrimogênio no embate cru da multidão com a polícia,
e torna-se proteção contra o organismo minúsculo que circula oculto no ar.
1. Moran, Patricia. Rostilidades. Os sentidos do rosto. Doutorado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUC-SP, 2003. p. 23.
PANDEMIDIA 93
Na fotografia de Jean Marquis, um manifestante em Maio de 68 usa uma máscara de pano atrás de uma barricada na rua de Lyon; na foto ao lado,
de autor não identificado, o manifestante nas ruas de Paris atira um coquetel molotov, vestindo uma máscara que o protege do gás lacrimogênio
atirado pela polícia; em fotos recentes, Sabrina Sato e Cindy Crawford usam máscaras que combinam com as roupas, já durante a pandemia do
COVID. Há muitos elementos em jogo nestas imagens. A máscara de pano do primeiro manifestante lembra as máscaras de justiceiros e bandidos
românticos, e liga-se em forma às máscaras anti-COVID, misturando algo de heroísmo ingênuo e fragilidade latente. O impulso disruptivo do antiherói cinematográfico e a postura antissistema do ativista na rua representam atitudes de rebeldia diante do estado das coisas. Já as máscaras antiCOVID, apesar das cores alegres que lhes emprestam certa leveza, são a imagem de um impedimento complexo. Protegem contra o vírus ao mesmo
tempo que projetam assepsia, num mundo que tem procurado evitar dissonâncias das piores maneiras possíveis. O trágico é que a máscara é necessária, o que diz muito sobre o contemporâneo. Essas três máscaras se afastam em forma e fragilidade da máscara industrial e de aspecto distópico
do segundo manifestante. Sua imagem lembra a figura de alguém em meio a um desastre, um corpo blindado. Já a precariedade improvisada da
arma que atira na polícia é desproporcional à força que lhe agride. O uso de máscaras nas manifestações de rua assumem um caráter alegórico. A
escolha da máscara desempenha um papel maior que a mera proteção do rosto. Isto se torna mais intenso a partir dos ativismos micropolíticos,
que surgem na esteira de Maio de 68, mas vão se consolidar de forma mais efetiva a partir dos anos 1990.
A máscara faz hoje o papel desempenhado pelos preservativos durante a epidemia de AIDS. Em que pese o caráter íntimo e opcional do sexo em comparação
ao caráter onipresente e inevitável da respiração, trata-se de dois impulsos vitais obstruídos por uma catástrofe sanitária que afeta os domínios mais íntimos das pessoas.
O HIV e o COVID surgem como ameaças invisíveis e envoltas em incertezas, mudando de forma rápida, e provavelmente definitiva, o modo como as pessoas se
comportam – guardadas as devidas proporções, já que a AIDS começa restrita a grupos de risco, como os hemofílicos, e o COVID rapidamente passa a ameaçar toda a
população dos países que contamina. Apesar disso, são exemplos de como se desestabiliza, de uma hora para outra, o espaço aparentemente protegido que o corpo
parece ocupar no mundo contemporâneo (especialmente no Ocidente, desde o século 182), e a fragilidade da vida ganha uma dimensão concreta muito evidente.
2. Os conceitos de organização da cidade de forma a permitir a circulação ampla, evitando o acúmulo de sujeira, consolida-se durante o iluminismo,
em consequência das descobertas na medicina a respeito da circulação sanguínea. Em Carne e Pedra, Richard Sennet discorre sobre este parale-
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Parece que, de algum modo, a história das culturas e sociedades passa por uma
dimensão que envolve modos de cobrir a pele. Dos elos evidentes entre o uso de roupas
e a constituição de processos culturais mais complexos, em que a interdição do contato
visual com o corpo do outro é o princípio de uma organização mais marcada por sinalizadores simbólicos de limites e balizas dos relacionamentos, às ligações mais recentes
entre o uso de dispositivos e a reinvenção das funcionalidades do corpo, há uma relação
entre os modos que se inventa de cobrir o corpo e a forma como as pessoas se comportam. A pele é o invólucro frágil que separa o corpo das coisas ao seu redor, mas sua
porosidade faz com que sempre algo do mundo entre para o interior. Isto pode acontecer por necessidade, como no caso do ar, da água, dos alimentos, ou de forma involuntária, como no caso do pólen, da poeira, e até mesmo de pequenos insetos. Apesar da
maior parte das coisas que entram no corpo humano serem bem-vindas, diante da fragilidade da pele as pessoas parecem não se livrar do temor ancestral de ter seus corpos
invadidos por corpos estranhos.
Elias Canetti descreve esse medo visceral, em Massa e Poder, explicando como não
“há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver
aquilo que o está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo”.
Por este motivo, por “toda parte, o homem evita o contato com o que lhe é estranho”3.
Se a expressão “o rei está nu” nos lembra de como as roupas oferecem uma tranquilidade simbólica, protegendo do contato com o desconhecido por meio do pacto de civilidade implícito nas distâncias reguladas que as culturas foram inventando ao longo
do tempo, os teatros do inconsciente em que se alojam os medos ancestrais parecem
não se satisfazer com tranquilidades simbólicas.
A dimensão invisível do vírus ressignifica a proximidade entre contato inofensivo
e perigoso. Nada é aparentemente mais inofensivo que respirar. A respiração é associada à saúde, à vida. O fluxo do ar pelo aparelho respiratório é tão suave que sequer é
percebido. Quem respira não percebe, a não ser na falta de ar, tosse ou engasgo, todos
sinais de cansaço ou mal funcionamento do corpo. Com o vírus, é como se o ar se transformasse num cavalo de tróia, que traz escondido em sua transparência sem cheiro o
lismo entre a descoberta da importância da circulação sanguínea para a saúde do corpo e o surgimento de um urbanismo concebido em torno da
ideia de circulação: “No Iluminismo do século XVIII, elas começaram a ser aplicadas aos centros urbanos. Construtores e reformadores passaram a
dar maior ênfase a tudo que facilitasse a liberdade do trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias
contínuas, através das quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no plasma saudável. A revolução médica parecia
ter operado a troca de moralidade por saúde — e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e locomoção/circulação. Estava
criado um novo arquétipo da felicidade humana”. Cf. Sennet, Richard. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. 3 ed. Rio de
Janeiro: Record, 2003. p. 214.
3. Canetti, Elias. Massa e Poder...
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elemento que vai deixar o corpo doente. Por isso, a máscara torna-se necessária.
A máscara também é a face visível do pânico que se instala diante deste outro discreto e letal. A presença da covid-19 ativou o asco — mesmo que residual ou inconsciente
— com o desconhecido. A proximidade não mais é suficiente para inspecionar o outro.
São necessários instrumentos, medir temperatura, escanear o corpo. Surge daí o novo
pânico contemporâneo. Cruzar alguém na rua ou retirar um pacote na portaria de um
prédio tornou-se desconfortável para muita gente. Ironicamente, para certa classe média
Uma das ênfases da arte contemporânea está nos debates sobre os
processos de vigilância, em consequência da atual pervasividade dos
processos de registro e mapeamento da presença. Situações trágicas
acentuam esses processos. Por isso, procedimentos que se tornaram
comuns em países em que a pandemia do COVID iniciou mais cedo
parecem indicar que o chamado do novo normal terá entre suas características um aumento em práticas de vigilância. O guarda-chuva com
luzes infravermelhas criado por Mark Shepard como parte da obra
Sentient City Survival Kit serve como dispositivo para confundir os mecanismos de visão computacional embutidos nas câmeras de vigilância
de um futuro distópico que ele imagina como cenário fictício da obra
(mas que não difere muito do mundo atual). Este tipo de prática dialoga
com obras que buscam formas críticas de se posicionar contra a vigilância excessiva no espaço urbano, de que o coletivo inglês Surveillance Camera Players são pioneiros, com sua encenação de 1984 de
George Orwell diante de câmeras de vigilância no metrô de Londres.
Mais recentemente, começaram a surgir obras que se valem de máscaras para confundir as câmeras. Um exemplo é Facial Weaponization
Imagens capturadas nos sites dos artistas.
Suite, de Zach Blas.
urbana, ver um homem mascarado tornou-se um alívio. Ao invés de ladrão aterrorizante,
ver um estranho de máscara deixa as pessoas mais seguras. Esta ressignificação da máscara, que sempre representou alteridade, é resultado da amplitude e da importância de
seus usos na pandemia. E, provavelmente, algo temporário. As máscaras se tornaram
comuns a ponto de os telejornais serem obrigados a mudar seus procedimentos, primeiro para explicar por que seus repórteres trabalhando sem máscara, em seguida para
incorporá-la como elemento visual inevitável.
Em Massa e Poder, quando Canetti trata da malta de multiplicação, a máscara aparece como um componente constitutivo. As maltas, no livro, são grupos que organizam
processos coletivos através dos quais o homem inverte o temor do outro. Diferente das
maltas de caça, de guerra ou de lamentação — grupos temporários unidos por um objetivo — as maltas de multiplicação, onde as máscaras vão assumir papel importante, são
mais perenes. Elas ligam-se ao desejo de multiplicação da espécie, inicialmente minúscula diante da amplitude da natureza ao redor. Se nos primórdios a máscara ligou-se à
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multiplicação, hoje ela protege contra a subtração (de vidas).
Nas maltas de multiplicação, surgem formas rituais de sinergia com os animais. Metamorfoses simbólicas em que a máscara é um elemento da transformação. Me configuro outro, ao adotar sua figura em meu rosto. Mais adiante no livro, a máscara aparece
com um sentido menos direto. Se a máscara ritual, que serviu durante um bom tempo
para ativar a sinergia entre o homem e os animais, era um objeto físico posicionado
sobre o rosto de quem a usa, em outro contexto a máscara passa a ser uma espécie de
atitude pouco transparente, em que uma pessoa se comporta de modo deliberadamente teatral para transmitir uma figura pública ou obscurecer suas intenções. Canetti
introduz este tema por meio da história indiana do Burro em pele de tigre, cujo título
explica seu teor.
Ao tratar da velocidade como dimensão do poder, Canetti discute a captura do inimigo. A perseguição e a fuga concretizam um jogo de revelação e ocultamento, em que
num primeiro momento não percebo o inimigo pois ele está disfarçado. É este teor enfeitiçante das máscaras relaciona-se com os deep fakes: vídeos que os algoritmos transformam nos tipos mais perfeitos de máscara. No deep fake, não distingue os dois rostos
que se fundem, pela aderência da voz a lábios que não são seus, mimetizando seus movimentos com perfeição.
Esta passagem de máscaras que são uma sinergia com o outro radicalmente diferente de si para máscaras que são disfarces diante do inimigo mostram a complexificação da cultura humana. A máscara se torna um artifício, um dispositivo simbólico que
não precisa ser visto. A própria pele se transforma numa máscara, velcro da expressão
facial dissimulada. Esta dimensão menos literal da máscara, ligada ao efeito instantâneo
de desmascaramento, funciona como uma espécie de segunda natureza.
Esta inversão tem no avatar um elemento complexificador. Nos games e ambientes
tridimensionais, as pessoas assumem o papel de personagens e entidades. Estar em
outro corpo, nesta transferência digital em que a pessoa assume o controle remoto da
entidade que controla recupera algo da sinergia com o radicalmente outro, típico do
uso ritual das máscaras. Mas agora trata-se de um outro que tem algo de semelhante. É
diferente na substância corpórea, mas compartilha a consciência. Isto representa um retorno reconfigurado do papel que a máscara desempenhou, ao mesmo tempo que a
máscara esvazia seu sentido. Não por acaso, o ativismo através de máscaras mais contundente de que se tem notícia recente advoga a estratégia do anonimato. O anony-
PANDEMIDIA 97
mous marca um momento em que o estar indireto em público usando máscaras resulta
na indistinção entre os rostos.
Não surpreende, portanto, que hoje em dia as práticas de iludir a opinião pública
acontecem pela manipulação genética de imagens e sons. Os deep fakes são uma transformação radical das máscaras. Há, ao mesmo tempo, identidade integral entre máscara
e rosto e dissociação completa entre o devir ficcional da máscara e o devir verídico do
rosto. Não que antes houvesse uma distinção nítida entre ficção e realidade. Na cultura
os pontos-de-vista sempre se interpõe aos modos de ver o mundo, mas agora estes imbricamentos são de outra ordem. A dimensão do invisível parece ser a tônica do contemporâneo: da mesma forma que não é possível enxergar o vírus que desorganiza a
rotina, e a máscara se torna a forma de impedir que ele entre pelas vias respiratórias,
não é possível enxergar as marcas que denunciam o deep fake. Diante destes desafios,
torna-se necessário encontrar novos modos de ver, o que provavelmente só será possível
com tecnologias que emprestem tangibilidade a processos hoje invisíveis.
MARCUS BASTOS
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, onde é professor do Departamento de Artes, desde 2003,
e do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, desde 2012. Publicou os
livros Audiovisual ao Vivo: tendências e conceitos (com Patrícia Moran, Intermeios, 2020) e Limiares das Redes
(Intermeios, 2014), além de organizar Cinema Apesar da Imagem (com Gabriel Menotti e Patrícia Moran, Intermeios, 2016) e Mediações, Tecnologia, Espaço Público: panorama crítico da arte em mídias móveis (com
Lucas Bambozzi e Rodrigo Minelli, Conrad, 2010).
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LABAREDAS DA DISSIDÊNCIA SEXUAL EM TEMPOS
COMUNICACIONAIS ASFIXIANTES
Vicente Paula
Onde é que há gente no mundo?1 Qual mundo que vive de lives e abdica cada vez
mais da complexidade das relações humanas? E quem está longe de ser vista como
gente onde podemos encontrar? Onde estão as travestis, sapatonas, bixas e toda potência de corpas dissidentes que estão à margem dos meios de comunicação de massa
e dos louros da indústria cultural? Esta ausência brutal não é ocasional e advém da
enorme precariedade que estes corpos têm de viver, quiçá comunicar-se ampla e plenamente. Ainda mais no Brasil, com seus seculares entraves à liberdade de imprensa e
democratização da comunicação. Estas corpas fervem fluxos urbanos brasileiros, rompem silêncios e se fazem visíveis principalmente no movimento das ruas. Raramente
estão nas telas. Seja qual for a tela (de galeria ou de televisão ou de telefone…). São
marcadas pela invisibilidade.
Com a pandemia de covid-19 são interditadas nas ruelas e mais ainda nas telas.
Onde então estarão elas? Boa parte delas resistindo e fissurando os regimes hegemônicos de visibilidade dos corpos. Inquirir sobre esta ausência é problematizar o biopoder
e políticas de extermínio contra subjetividades desviantes. Na instabilidade acentuada
pela pandemia, as biopolíticas engrossam-se em malabarismos governamentais que,
sob batuta neoliberal, sintetizam-se na intensificação do esquema vigilância-disciplina
e desresponsabilização econômica/social. Enfrentar tamanhas violações não é novidade
para as vidas insubordinadas e sexualidades degeneradas dos trópicos.
Bruna Kury e Walla Capelobo (2020) enfatizam a resistência de corpas demarcadas
pelos recortes de raça e gênero/sexualidade consideradas potencialmente como Infectáveis: “corpas que pelas manobras de exclusão do sistema dependem da e são a própria
rua”, estando na linha de frente do que as autoras nomeiam como sacrifício colonial.
Elas ressaltam que há tempos “travestis, transvestigeneres, bichas” sobrevivem a pandemias. Uma recente referência de resistência destas populações foram os surtos de
HIV pelo mundo na década de 1980. Sobrevivências das quais podemos colher alguns
aprendizados.
Uma das principais diferenças entre o HIV e covid-19 é o modo de transmissão. A
primeira por vias sanguíneas e sexuais enquanto a última pelo ar. É certo que a contenção
1. Fernando Pessoa - Poema em Linha reta
PANDEMIDIA 99
do HIV não exigiu esta “clausura” atual, porém adensou a repressão sexual e a perseguição
a corpos dissidentes, que havia sido aparentemente mitigada pelos movimentos de emancipação sexual, principalmente feministas, que pipocaram na década de 1960.
Outra diferença que observamos é a reação aos processos repressivos decorrentes
destes momentos de crise. O filme 120 Batimentos (Robin Campillo, 2017) retrata os
esforços do ACT UP2 na luta pelo tratamento, prevenção e conscientização sobre o HIV.
Dentre as ações do grupo são emblemáticas as manifestações em que ativistas atiram
balões com sangue contaminado, ou não, em reuniões com autoridades de saúde estatais/empresariais. É dizer, as políticas públicas de saúde minimamente humanizadas garantidas (atualmente ameaçadas pelo bolsonarismo) devem-se sobretudo ao ativismo,
isto é, reivindicações públicas que pressionam o poder estatal a domar a selvageria dos
mercados e oferecer garantias mínimas de cidadania. Este ativismo fez florescer a militância e o boom dos estudos queer.
A vulnerabilidade aflorada com a HIV possibilitou arranjos comunitárias, como a
emblemática casa de Brenda Lee, que acolhia travestis soropositivas. Além disso, reacendeu a chama das rebeliões Stonewall (1969) e uma retomada nas lutas por direitos,
ocupação dos espaços políticos/públicos. É dizer, o enfrentamento, ou melhor, modos
de convivência com o vírus reposicionou visibilidades para os movimentos LGBTs, que
precisaram agenciar formas de lidar com diversas camadas sociais vulneráveis.
Pandemias provocam comoção e mobilizações sociais. Contudo, onde estão as mobilizações nesta pandemia de covid-19? Estão proibidas e pior que isso estão sem força,
sem coragem. AGAMBEN (2020) tem sido um dos analistas mais polêmicos por assinalar
o estado de medo que têm tomado a consciência dos indivíduos ao ponto de desejarem
o controle do biopoder, em perversa aliança ao estado de exceção que culmina na busca
por sobrevivência a todo custo diante da deterioração das potencialidades do viver. Yara
Frateschi (2020) critica duramente o comprometimento de Agamben com sua filosofia
em detrimento das mortes que se alastram.
Apesar do filósofo italiano ser julgado como isolado, anticientífico alinhado a propostas neoliberais e fascistas/bolsonaristas, não podemos deixar de observar a proximidade da visão de Agamben com perspectivas dissidentes, como as da ativista e
comunicadora feminista boliviana Maria Galindo (2020). “Nada más fascista que declarar
2. ACT UP - AIDS Coalition to Unleash Power - Coalizão de Aids para Liberar o Poder é um grupo internacional de ativistas que trabalham em prol
do combate a Aids. Ações diretas e militância institucional fez do grupo uma referência nos avanços aos tratamentos destinados à pessoas soropositivas.
100 PANDEMIDIA
una guerra contra la sociedad y contra la democracia aprovechando el miedo a la enfermedad. Nada más fascista que hacer de las casas de la gente sus cárceles de encierro.
Nada más neoliberal que proclamar el sálvese quien pueda como solución tutelada.”
(GALINDO, 2020, p.122). O pensamento de Galindo aproxima-se de Agamben ao considerar que evitar o contágio evitando o contato é renunciar uma característica potencial
dos grupos humanos: o espírito comunitário.
Galindo se apresenta pronta para o contágio e critica as medidas adotadas na Bolívia, sob égide de Jeanine Áñez, como arremedo inapropriado das medidas espanholas. Galindo questiona a militarização e a ausência de recursos para manter as pessoas
reclusas. A ativista argumenta que, por conta do neoliberalismo/colonialidade, uma
massa de bolivianos encontra-se na informalidade e, desamparados, dependentes das
ruas. Frente a penúria e a repressão, Galindo (2020) proclama a desobediência às normativas sanitárias, como única alternativa real de sobrevivência no contexto precário
da América Latina.
É preciso evitar ânsia de interpretar estas ponderações como mera fantasia negacionista que romantiza as ruas e demoniza as quarentenas. O que pinçamos das críticas
às intervenções estatais é a coerente problematização das debilidades das democracias
corroídas por violações de liberdades/direitos sob ameaças de arroubos tirânicos do
neoliberalismo. Enquanto comunicadoras somos acometidas não só pela ausência do
profícuo debate, mas pela permanência do silenciamento das vozes dissidentes nos
meios de grande circulação. Na ausência deste debate diverso e qualificado somos reféns de overdose informacional forjada de proteção e rigidamente alinhada às cautelas
e contendas dos mandatários econômicos -autoritários e extrativistas- que nos minam
há séculos.
Isto nos instiga a observar dominação/emancipação nas teias do poder que se reconfiguram e reinventam-se com as crises. É neste rumo que PRECIADO (2020) conduz
sua análise sobre a pandemia ao afirmar que os domicílios pessoais são “el nuevo centro
de producción, consumo y control biopolítico.” (PRECIADO, 2020, p.179) Desta constatação o filósofo espanhol arremata: “Es precisamente porque nuestros cuerpos son los
nuevos enclaves del biopoder y nuestros apartamentos las nuevas células de biovigilancia que se vuelve más urgente que nunca inventar nuevas estrategias de emancipación
cognitiva y de resistência (...)” (PRECIADO, 2020, p.184). Como emancipar a cognição e
consciências com as mídias que temos sob um contexto de intensa individualização em
que estamos submetidos em tempos de pandemídia?
PANDEMIDIA 101
Em suma, o discurso #fiquemcasa não problematiza a peculiar situação que vivemos e que se agrava no Brasil, onde as liberdades democráticas estão ameaçadas desde
antes da pandemia por conta de um governo autoritário assombrado por um turbilhão
de crimes desde a Ditadura Militar às milícias.
Com avanço das investigações sobre fakes new, as denúncias de intervenção presidencial na Polícia Federal e o apoio do clã Bolsonaro a atos antidemocráticos, a imprensa
passou a problematizar os riscos que correm a democracia brasileira. Na contramão o
presidente arroga-se como defensor da liberdade de expressão (fakes News) e o direito
de ir e vir. Não esqueçamos que a intervenção presidencial que levou à demissão do ministro da Justiça e crise no governo teve como um dos pretextos as supostas prisões de
cidadãos que desrespeitam a quarentena. A imprensa dá palanque ao pseudodiscurso
de defesa das liberdades individuais bolsonaristas, que anunciam “rupturas” (temido estado de exceção arvorado no biopoder, conforme Agamben). Eis a grande contradição
macabra do Brasil: o chefe maior do Estado planeja desbaratar o Estado por meio de um
Estado de exceção (que elimina inimigos pelo controle e censura) para que este mesmo
Estado não interfira nas “liberdades de opressão” dos cidadãos.
Além da grave confusão entre censura e regulação perpetrada pela imprensa, o
bolsonarismo distorce mais ainda a questão ao considerar crimes de fake news como liberdade de expressão. As tumultuadas tentativas do Estado de conter a catástrofe informacional são apontadas como censura. Junto ao vírus, o Estado passa a ser inimigo
da liberdade na lógica bolsonarista. Nesta surreal tragédia, a mídia hegemônica não
teme a censura e sim a perda de receita. Quando se discutia marcos regulatórios para
as comunicações no Brasil no início desta década, a elite econômica midiática argumentava que democratizar o acesso às grandes mídias era censura. O argumento e silenciamento das discussões sobre regulação perdura.
Os danos sociais intensificam-se diante da frágil autonomia, sobretudo financeira,
de comunicadores profissionais que enfrentam num ambiente hostil e cada vez mais perigoso com a expansão de canais via internet que incitam o ódio às diferenças. Hoje assistimos jornalistas lamentarem a “polarização” política de ser pivô da crise democrática.
Os mesmos queixosos esquecem-se que estão polarizados em torno da ideologia neoliberal que oportunizou toda esta atmosfera ditatorial tão criticada. Basta lembrar da recente reforma da previdência social. A veiculação massiva enalteceu a reforma e não
abriu debate ao contraditório. O pólo neoliberal que domina as mídias escancara violações ao direito à comunicação, sendo um enorme obstáculo à coexistência democrática.
102 PANDEMIDIA
Regulação dos meios é uma pauta necessária, porém é ingênuo tratar leis como
tábua de salvação, sobretudo, porque a tendência das políticas públicas estatais é operar
e engessar padrões civilizatórios coloniais que anulam subjetividades desviantes. Corpas
dissidentes e vírus, são alvo de uma guerra subliminar. Guerra esta que em nome da
“paz aos homens de bem” e da “normalidade” tem se arvorado em ordem e disciplinas
explicitamente militaristas.
Patricia Manrique (2020) observa que a retórica dos responsáveis políticos (governantes e seus porta-vozes, mídias) é belicista (guerra ao inimigo, a uma crise/pandemia)
o que revela uma “sociedad que entiende la relación entre el yo y el otro en términos de
una recíproca aniquilación: al igual que la inmunitas llevada al extremo destruye la communitas”(MANRIQUE, 2020, p.156). Delírios bélicos e fabricação de inimigos é especialidade do bolsonarismo, tanto na forma de gerir a pandemia como na gestão de
marketing de seus anseios totalitários. O discurso é: “Arme-se, forme uma família nuclear
e vire-se sozinho, defende sua liberdade individual ainda que valha direito/dever de
morte”. Isto aniquila a organicidade da vida comum em agenciar violências e vulnerabilidades e alveja os corpos mais vulneráveis.
Kury (2020) assinala o extermínio de corpas vulneráveis (pobres, idosos, periféricos,
pretes, indígenas...) pelo vírus ou pelo racismo e a transfobia: “Se não morremos de vírus,
morremos de balas que só acham nossos corpos; quando não morremos por falta de
emprego e condições básicas de estruturação nesse cis-tema capitalista, morremos por
(trans)feminicídio, transfobia, racismo e até mesmo suicidadas.” Os modos de lidar com
as vidas e com o vírus partem de concepções de corpo, doença e cura alicerçadas na
modernidade ocidental colonizadora que define quem é humano e quem deve viver,
como destaca Kury.
Na análise foucaultiana de Preciado (2020), o biopoder prega eficiência demográfica que maximiza a vida pela disseminação de normativas higienistas que expurgam desvios. Preciado demarca que os aparatos semióticos/midiáticos são tecnologia
fundamental na transmissão do padrão disciplinador/docilizador de corpos. A mídia
insufla ao máximo toda tecnologia que a ciência puder vender para nos tranquilizar
em momento tão delicado. A tranquilidade propalada implica numa normalidade
cúmplice da necropolítica brutal que gere sistematicamente e secularmente o genocídio de corpos específicos a partir de lastros científicos e/ou religiosos. Agamben
rejeita a prerrogativa da ciência ditar relações/comportamentos/normas com a autoridade comparável ao arbítrio das religiões, como aponta a crítica de Frateschi,
PANDEMIDIA 103
que por sua vez parece contrapor a luta por direitos da crítica ao Estado Democrático
de Direito.
Criticar o biopoder estatal não impede a luta por políticas públicas que incluam a
dissidência - demolidora dos padrões exigidos para acessar recursos produzidos pela
sociedade. Os retrocessos no âmbito da vida pública/política se dão pela maximização
do Estado disciplina/controle (militarização) e redução do Estado/estado comum de bem
viver (garantias sociais). As políticas estatais totalitárias disciplinam indivíduos/guerreiros
a serem imunes/infalíveis/eficientes e isentos da corresponsabilização pelo comum.
Contrassexualidades (PRECIADO, 2014) relacionam-se com contraprodutividade e
a dissidência sexual tem se recusado a ser produtivas dentro desta cadeia de exploração.
Cintia Guedes (2020) indaga sobre o medo de abdicar do normal habitual que bloqueia
nossa corajosa força imaginativa: “A imaginação foi posta em cativeiro. Quem sobreviverá
às imagens deste tempo?” A pensadora nos convoca a mergulhar numa “temporalidade
escura, indefinida, no qual a terra não seja convertida pelo sistema-mundo em dote e privilégio” (GUEDES, 2020). Tamanha coragem é necessária aos contemporâneos, que defrontam o “facho das trevas que provém do seu do seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p.61).
Friccionando a rígida disciplina do “indivíduo obediente, consumidor e estatizado”, Bruna
Kury também nos provoca a refletir sobre comunicação e contato que resistem e movimentam-se pela redistribuição das riquezas, privilégios e sobrevivências: “Pensemos aqui
também em uma comunicação outra que não a normatizadora, assim como presencialidade ancestral - que é a oposta a essa cultura de controle das potências diversas.” (KURY,
2020). Precisamos de uma comunicação disposta a encarar/mediar os conflitos ao em
vez do cordial hermetismo vigente que abafa divergências.
A desvalorização da multiplicidade da vida em comunidade e o rechaço aos modos
de vida incomum - em que situamos a dissidência sexual- é um problema acentuado
com a pandemia, que amplificam nossa letargia. A escassez de questionamentos e submissão incondicional ao aparato estatal apagam nuances plurais da conflituosa dinâmica
social. Capelobo e Kury destacam que riscos para corpos dissidentes já eram altos antes
da pandemia e nos provocam a refletir mais sobre políticas de inclusão social do que as
de contenção. Nosso problema principal não tem sido a falta de isolamento, mas de cidadania! É preciso escutar as vozes dissonantes, que convivem há muito com o caos.
Esta escuta não é abstrata e requer uma comunicação democrática, que promova ampla
circulação de seus conteúdos, garantindo que corpas plurais ocupem as telas e redistribuam visibilidades da nossa complexa paleta social.
104 PANDEMIDIA
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. La invención de una epidemia. IN: Sopa de Wuhan, Buenos Aires: ASPO, 2020.
______________. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó, SC: Argos, 2009.
FRATESCHI, Yara. Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia, Boitempo, 12/05/2020,
Disponível em:<https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/12/agamben-sendo-agamben-o-filosofo-e-a-invencao-da-pandemia/> Acesso em: 22/05/2020.
GALINDO, Maria. Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. IN: Sopa de Wuhan, Buenos Aires: ASPO,
2020.
GUEDES, Cíntia. A coragem que não temos. Outros fins que não a morte. Disponível em:
<https://outrosfins.cerealmelodia.com/Cintia-Guedes> Acesso em: 10/10/2020
CAPELOBO, Walla; KURY, Bruna. Desejo que sobrevivamos pois já sobrevivemos. Glacediçoes, 22/04/2020,
Disponível em: <https://www.glacedicoes.com/post/desejo-que-sobrevivamos-pois-ja-sobrevivemos-brunakury-e-walla-capelobo> Acesso em: 20/05/2020.
KURY, Bruna. Sobre contato e comunicação e o velho colonial víru$. Disponível em:
<https://ehcho.org/conteudo/sobre-contato-e-comunicao-e-o-velho-colonial-virus > Acesso em:
20/09/2020
MANRIQUE, Patrícia. Hospitalidad e inmunidad virtuosa. IN: Sopa de Wuhan, Buenos Aires: ASPO, 2020.
PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus. IN: Sopa de Wuhan, Buenos Aires: ASPO, 2020.
______________. Manifesto Contrassexual. Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: N-1 Edições,
2014.
VICENTE DE PAULA
Bixa Jornartista (jornalista artista) nordestina das margens do Parnaíba entre Piauí e Maranhão. Mestranda
em comunicação pela UnB investiga relações entre comunicação e dissidências sexuais com ênfase em estudos de gênero, teorias queer/cuíer/ kuir, arte e mídia contemporânea. Dedica-se à democratização da comunicação e valorização das dissidências sexuais e cultura popular. Colabora com o site ocorrediário e é
consultora/curadora do Casarão Equilíbrio Cult.
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CONEXÃO INTERGERACIONAL
Giovanna Caetano da Silva
Em Cloé, a cidade grande, as pessoas que passam pela
rua não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito uma das outras, os encontros que poderiam
ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as
mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros
olhares, não se fixam. (CALVINO, 1972, p. 24)
O relato trazido por Ítalo Calvino aplica-se quase que perfeitamente ao nosso atual
cenário. Em meio a uma pandemia inesperada, foi preciso ressignificar nossa necessidade pelo outro, pela sua presença e afeto. Um novo visual se estabeleceu pelas ruas,
escancararam-se certas desigualdades e nivelaram-se outras—somos todos sujeitos em
confinamento. Nos vemos sem nos enxergamos, caminhamos com pressa e quase que
automaticamente desviamos daqueles que cruzam os nossos caminhos. Foi preciso acelerar o tempo gasto no supermercado, reduzir as caminhadas e encontrar-se na distância. Assim, em meio à tantas incertezas, o cuidado com o outro virou também o cuidado
consigo mesmo. Empatia por mim, empatia por ela, empatia por nós. E quem um dia
iria pensar que um luxo nesse momento seria uma troca de olhares duradoura, um
aperto de mão, ou um pedaço de colo?
Apesar de ter-nos privado de tantos momentos, o confinamento também escancarou simplicidades que já não faziam parte de nosso dia a dia. Fez com que esse
homem dotado de sentidos que Edgar Morin (1999) chama de homo demens, revisitasse histórias e retornasse ao mais íntimo das tradições. Somente a razão realmente já
não seria o suficiente para lidar com tantas mudanças e incertezas. Rapidamente as notícias revelaram a falta de fermento no supermercado, as famílias compartilharam fotos
de seus quebra-cabeças um dia esquecidos, alguns resolveram aprender crochê ou tricô
e até revisitar os livros não lidos que sempre estiveram na estante.... As interações foram,
inesperadamente, tomando novas formas. A busca pela conexão. A busca pelo que
fomos, pelo que somos e pelo que seremos. A resiliência quanto à espera e a dúvida
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sobre o que fazer com essa espera. Seria uma longa e intensa viagem para dentro de
nós mesmos. O que levo e o que encontro?
Dentro desse panorama, a saudade - palavra nossa tão carregada de sentimento se personifica na ausência dos que amamos e se faz presente nessas tais buscas por conexões. O homem, como ser social, anseia pelo reencontro. Busca, na tradição, na receita
de bolo antiga, no fazer com as mãos e no fio da meada o que une e o que separa. A conexão intergeracional. Não estamos falando de nada muito distante do fio da vida, tecido
pelas moiras da antiga mitologia grega. É esse fio que une o ontem com o amanhã.
Assim, para conectar com suas origens, busca também, na atualidade caminhos que
amenizem, que tragam colo e segurança. Em meio a cartas escritas a próprio punho e a
vontade de escutar o respirar, a entonação e a emoção, encontra novas meios de se conectar com as suas raízes:
O mundo em que vivemos talvez seja um mundo de aparências,
a espuma de uma realidade mais profunda que escapa ao
tempo, ao espaço, a nossos sentidos e ao nosso entendimento.
Mas no nosso mundo da separação, da dispersão, da finitude
significa também o mundo da atração, do reencontro, da exaltação. (MORIN, 1999, p 8)
Há algum tempo realizamos na tecnologia o imediatismo e a praticidade que precisávamos, ou que acreditávamos que precisávamos. Pouco a pouco os mais diversos
recursos começaram a fazer parte do dia a dia do ser humano. A voz, as expressões faciais e o respiro de quem estava longe se aproximaram. Gerações foram adaptando-se.
Os registros agora além de na memória, eram físicos e virtuais. A foto chega rapidamente, a notícia não espera dizer “pode contar” e o gps localiza aquilo que não se pode
alcançar. O que continua parte da tradição e o que reassume novas formas? É uma questão de ótica...
Mas hoje não. Hoje a tradição teve que ser mantida através dessas ferramentas.
Hoje não pudemos e não quisemos dar pause em nosso passado. Hoje a receita de bolo
foi ditada pelo celular. O ponto de crochê foi buscado no youtube. O sorriso chegou em
forma de emoticon. A espera física, foi momentaneamente compensada pela presença
virtual. Teríamos aguentado esperar? Quiçá tivéssemos outra opção... Precisamos do outros, precisamos sentir que estamos mais do que em um lugar, mesmo que a situação
nos impossibilite de tal. O que nos conecta é mais do que essa possibilidade de man-
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termos virtualmente conectados. É o fio que tece nossos hábitos e que liga o ser humano
com as suas raízes. É a necessidade do compartilhar, do sentar em rodas, do aprender
com os que já aprenderam. É a conexão entre gerações que sempre esteve no interior
de cada um. Retornamos a nossas origens e trouxemos um pouco delas para a nossa
atualidade.
A pandemia nos fez pensar sobre muito de nós e muito do outro. Sobre à tecnologia e o seu (não) alcance a diversas camadas da população, sobre o papel do outro em
nossas vidas e as conexões que tanto nos movem. Hoje, em especial, eu gostaria de falar
um pouco sobre o que fica quando não há quase mais nada, sobre as tais conexões intergeracionais. Foi preciso que olhássemos para dentro, mas também para fora. Então,
em meio a esse cenário, vimos gerações conectando-se através dos modos possíveis.
Precisávamos, durante esse tempo, ter certeza de que olharíamos para aquele rosto, trocaríamos sorrisos e nossos olhares se (re) encontrariam.
O que é verdadeiramente notável é que a união do mitológico
e do físico realiza-se no rosto. Há algo no olhar amoroso que,
tendencialmente, poderia ser descrito em termos magnéticos
ou elétricos, algo que se origina na fascinação...
(MORIN, 1999, p. 25)
O fio que conecta gerações na receita de bolo ou na história de ninar é o mesmo
que pede colo na chamada de vídeo. Gerações mais novas, como a minha, resolveram
retornar as tradições e alguns ousaram enviar cartas por aí. Claro que nunca abandonando as vantagens que a tecnologia e os recursos virtuais trouxeram, era preciso rastrear a carta e ter certeza que chegaria em mãos. Já as gerações mais antigas, como as
de minha querida avó, se adaptaram e, onde a tecnologia alcançou, houve superação.
Os olhares se encontraram através das telas e as vozes trocaram palavras de amor,
mesmo que eventualmente com falhas. Formou-se uma rede de aprendizados e trocas
entre o mundo de ontem, hoje e amanhã. Troca essa que nunca antes foi tão possível e
tão necessária. Foi preciso correr: o coração não espera. E nesse mundo um pouco incerto, encontrou-se uma certeza: eu preciso estar conectada às minhas raízes.
Esse texto é sim uma reflexão sobre o que nos tocou durante a pandemia ou sobre
como ela nos tocou, mas também sobre o que fizemos com isso. É um relato sobre como
as nossas gerações veem se conectando ao longo do tempo e como a tecnologia nos
traz novos paradigmas e possibilidades. Esse texto é uma menção a minha vó, a qual
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com seus 80 anos pela primeira vez recebeu uma chamada de vídeo enquanto estava
só. Ela me perguntou muitas vezes se eu a enxergava mesmo e se escutava tudo o que
dizia. Ela fazia seu bordado e eu fazia sua receita de omeletes de batata, o mesmo fio
nos conectava. Eu sempre a enxerguei através de nossas tradições, quando plantava
uma muda de flor, quando lembrava de algum dito popular que só ela usava ou quando
me olhava no espelho. Mas hoje, poder encontrar meu olhar no dela não teve preço. Só
hoje, a pandemia ficou lá fora e aqui dentro, por um segundo, me conectei com meu
mais íntimo eu: com ela. Às vezes a ligação falha, ela esquece de carregar o celular ou
a câmera não está apontando para o lado certo, mas estamos sempre à espera da próxima conexão.
Corremos um pouco atrás do tempo e minha vó também. Foi preciso que três gerações encontrassem um modo de não perder o fio da meada: avós, filhos e netos. Foi
preciso aprender junto, superar junto e conectar nossos desejos. Obrigada vó por tentar
e conseguir, obrigada por entender as estranhezas da nossa geração. Obrigada por
compartilhar comigo a ideia de que o amor está no bordado, na receita de bolo e nas
nossas chamadas de vídeo também. O confinamento mudou um pouco nosso modo de
vida, mas nos relembrou também que sempre fizemos parte de um todo, que nossas
raízes são e estão. Que será sempre preciso encontrar uma maneira de conectarmos
com o nosso passado, ainda que o futuro pareça “inconectável”. Obrigada.
Com amor, empatia e você vivo um dia de cada vez. Encontro nas nossas tradições
novos caminhos e te convido a vivenciar as tantas outras atuais formas de amar também:
“Amar diz respeito a autossobrevivência através da alteridade” (BAUMAN, 2004, p .13).
Que nos conectemos!
De sua neta,
Giovanna
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REFERÊNCIAS
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Calvino, I. As cidades invisíveis. Biblioteca Folha, 1972.
Morin, Edgar. Amor, poesia e sabedoria. Instituto Piaget, 1999.
GIOVANNA CAETANO DA SILVA
Pedagoga e pesquisadora, concluiu em 2017 sua graduação em pedagogia pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FE-USP), onde desenvolveu pesquisa na área de educação e psicanálise. Trabalhou
com crianças de diversas faixas etárias, em contextos formais e não formais. Mestranda no programa Erasmus
Mundus Petal: Play, Education, Toys and Languages (Universidad de Córdoba, Politécnico de Lisboa e Marmara
University) e desenvolve pesquisa com ênfase no brincar infantil e na formação profissional.
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TRANSCENDER: LUTO, RITUAIS,
TECNOLOGIAS VIRTUAIS E REINVENÇÃO DA PRESENÇA
Projeto Transcender
Almir Almas, Wellington Zangari, Marcos Ribeiro Pereira Barretto, Deisy Fernanda
Feitosa, Daniel Lima, Cristina Barreto de Menezes Lopes, Natália Dantas do Amaral,
Jaqueline Vasconcellos, Ricardo Nogueira Ribeiro, Antonio Bianchini Borduque,
Eduardo Acquarone, Mateus Donia Martinez, Gabriel Teixeira de Medeiros, Fernando
Lamanna, Leonardo Breno Martins, Douglas Kawaguchi, Fatima Regina Machado, João
Knijnik, Rafisa Lobato e Jeverson Reichow.
A dor e o sofrimento podem se tornar intoleráveis
quando há medo, incompreensão ou depressão. A arte é encontrar um canal para sua expressão. (KOVÁCS, 2014).
Vendo sua rotina impactada pela pandemia de covid-19, a humanidade fala de um
novo normal. Por ser uma pandemia global, ninguém no mundo todo fica imune aos impactos de um futuro em que o normal como o conhecemos sofre uma transformação e
nos apresenta uma outra forma de lidar com nosso dia a dia. Um dos aspectos que
mudam mais radicalmente nossa percepção do mundo é a morte de um ente querido.
Nos últimos meses, milhares de famílias têm sofrido perdas repentinas em um momento
onde o processo de luto tem sido sacrificado em meio ao caos sanitário e midiático instalado pela pandemia. Será que podemos entender que o momento, e em especial, a
perda da possibilidade de vivenciar e realizar o ritual de luto pode nos levar a uma mudança no entendimento do mundo e sua episteme? Será que essa mudança radical que
nos atinge individual e coletivamente nos levaria a uma ruptura epistemológica, apresentando-nos a um real antes não inscrito em nosso entendimento do mundo?
O que é o luto, do ponto de vista psicológico? O luto é um conceito complexo que
vem sofrendo modificações ao longo dos anos por diversos autores. Sigmund Freud
(2013), foi um dos pioneiros a abordar o fenômeno, descrevendo-o como a reação à
perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que ocupa um lugar de objeto de
amor na vida do sujeito - a exemplo da pátria ou da liberdade - sendo observável em
muitas pessoas uma melancolia no decorrer desse processo. Embora sua abordagem
tangencie a ideia de uma possível patologização do luto, ele defende a não-medicali-
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zação das perdas, afirmando que, após um tempo de elaboração, o luto pode ser superado. Outros autores (PARKES, 1998; KREUZ E FRANCO, 2017; BOWLBY 1998) compartilham da perspectiva de que o luto não é um processo linear, ao contrário, é um
complexo processo de reações à uma perda, requerendo adaptação a uma nova realidade e desencadeando reações emocionais, físicas, cognitivas e comportamentais. Parkes (1998) destaca a perda do mundo presumido no processo de luto, no qual o sistema
de crenças e a imagem internalizada que o indivíduo tem da realidade se rompe, imergindo-o num imenso vazio. As crenças anteriores à perda não dão conta de explicar a
nova realidade de ausência do ente querido, confrontando-o com sua vulnerabilidade,
falta de controle e impotência. Embora se rompa o vínculo presencial, o vínculo simbólico com a pessoa perdura na memória e nas lembranças, caracterizando uma sensação
de “presença na ausência” (KOVÁCS, 1992, P.54).
Cabe destacar aqui a perda do mundo presumido em um nível coletivo diante o
alastramento do novo coronavírus. O mundo está de luto, seja pela morte de pessoas
queridas próximas, seja pela perda da realidade anteriormente vigente, incluindo perdas
de empregos, mudanças de cidade, distanciamento social, necessidade de confinamento, perdas de projetos e planos futuros, dentre outros lutos sobrepostos que apresentam importantes impactos na saúde mental da coletividade. A emergência de uma
epidemia de saúde mental, denominada de quarta onda da pandemia (TSENG, 2020),
gera crescimento de casos de depressão, lutos traumáticos e suicídios.
Foto: Reprodução/Victor Tseng
Fonte: Correio 24 Horas
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Conforme identificada na historiografia da morte de Ariés (1977), o momento histórico atual que vivenciamos é de interdição da morte, por esta acontecer distante de
nós, nos hospitais, sob o jugo de cuidados médicos que muitas vezes estão centralizados
em manter a vida a todo custo e aplacar a morte enquanto uma inimiga que deve ser
combatida. Já Kovács (2020) sugere que a sociedade pandêmica tem inaugurado um
novo momento histórico no tocante ao nosso relacionamento com a morte. Presentificase a morte escancarada, que adentra nossas vidas através dos meios de comunicação e
impacta diretamente a nossa subjetividade. As notícias diárias são dedicadas a nos lembrar da necessidade de distanciar-nos socialmente, dos cuidados com a higienização,
da necessidade de redução da nossa circulação pelas cidades, do uso obrigatório de
máscaras, dentre outras medidas de prevenção da covid-19. Ainda assim, Kovács (2020)
retifica que a morte continua a ser negada, o que pode ser observado nos hábitos de
grande parte da população, que resiste em aderir às normas de biossegurança, cabendo
destacar também a banalização dessas mortes que têm sido desumanizadas e transformadas em dados epidemiológicos.
Na pandemia de covid-19, observa-se realidade semelhante, no sentido de que os
rituais fúnebres precisam ser reinventados em atenção às normas de biossegurança. Técnicas de tanatopraxia estão suspensas de forma a impedir a contaminação dos agentes
funerários. Os velórios só podem acontecer com no máximo dez pessoas e por um curto
período de tempo, com o caixão fechado, e recomenda-se cremação (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2020). Partindo dessa perspectiva, reforça-se a importância da construção de
uma rede social de apoio aos enlutados por covid-19, que envolva não apenas o fortalecimento de vínculos, mas também iniciativas de práticas de reconstrução em emergências e desastres, tais como a elaboração de memoriais. Para Borges e Carvalho (2009,
p.9), “esse trabalho deve ser interdisciplinar e não pode funcionar enquanto não houver
um projeto de atuação social que contemple todas as fases dos desastres.”
Diante desse novo real, buscamos novas formas de entender o mundo a partir de
encontro de ferramentas que nos permitam transitar de um a outra compreensão, sem
nos deixarmos enlouquecer pelas novas referências da realidade, ou de um universo
“metarreal” (Bhaskar, 2012). Desse modo, as tecnologias de informação e comunicação
têm nos permitido recriar e reinventar presenças em atendimento a uma demanda verdadeira, face ao sofrimento inerente a um contexto permeado de perdas em nossas vivências e rituais de despedida. A utilização de tecnologias de áudio e vídeo, mediadas
pelas equipes de saúde, podem contribuir para a mitigação dos danos psicológicos ocaPANDEMIDIA 113
sionados por esse distanciamento (Wang, 2020; Fiocruz, 2020), possibilitando despedidas e dignificando o processo de morrer. Em diversas culturas e religiões, os rituais
de luto permitem vivenciar a despedida do corpo, recebendo destaque o momento do
sepultamento ou da cremação como mobilizadores de intensas emoções. Eles auxiliam
a elaborar que de fato houve uma morte, favorecendo a expressão do pesar, dos sentimentos ligados à perda e mobilizando a comunidade a reconstruir sua identidade (OLIVEIRA et al, 2015).
O projeto Transcender, que tem como base tecnológica e comunicacional uma solução de vídeo imersivo ao vivo em plataforma colaborativa via streaming, é de uma ferramenta de comunicação que experimenta múltiplas realidades (virtual, aumentada e
mista) para dar suporte à realização de rituais de despedida e velórios a distância. Ressalte-se que o projeto não visa substituir rituais tradicionais de despedida, mas atender
uma demanda específica do mundo diante da pandemia de covid-19, que é manter a
vivência do ritual de luto e de despedida, na tentativa de proporcionar conforto emocional às famílias e amigos que perderam entes queridos durante processo de elaboração do luto e na conservação de memórias.
Pretende-se proporcionar ao público participante, radicado em diferentes localidades, uma experiência imersiva, através de vivências customizáveis, que admitam a inserção de fotografias, vídeos, músicas, textos escritos e falados e elementos simbólicos.
Para isso, desenvolve-se uma plataforma com ferramentas amigáveis, dispostas em ambiente circular, e que sobretudo considera as diversidades culturais, locais e/ou religiosas
dos vários rituais de despedida. Como parte da narrativa do ritual, serão oferecidos aos
participantes elementos/símbolos para que possam enriquecer a construção da experiência e proporcionar a sensação de presença e pertencimento ao momento do ritual,
vivenciada de forma simultânea e sincronizada, por vários familiares e amigos. Assim, a
experiência que será individual pode ser também coletiva.
Entendemos a importância de uma atuação que possa ir além da interdisciplinaridade, requerendo um exercício de transdisciplinaridade, com contribuições de diversos
atores para a construção de uma ferramenta que visa atender esta demanda. Para tanto,
juntaram-se em colaboração: o LabArteMídia (Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias
Digitais) - grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão
e do Programa de Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP; o InterPsi (Laboratório
de Estudos Psicossociais: Crença, Subjetividade, Cultura & Saúde), grupo de pesquisa
vinculado ao Instituto de Psicologia da USP; e o Laboratório de Robôs Sociáveis, vincu114 PANDEMIDIA
lado à Escola Politécnica da USP. Os cientistas envolvidos no Transcender formam uma
equipe transdisciplinar composta por cineastas, artistas, comunicólogos, engenheiros,
cientistas da computação e psicólogos especialistas em rituais e estudos das religiões.1
Transcender propõe a construção de uma plataforma mediadora de uma realidade sensível, delicada, para além do mundo concreto e palpável - citado por Rudolf Steiner
(2006[1919]), em A questão pedagógica como questão social) -, atravessada por demandas culturais diretamente ligadas ao sentido da existência e ao processo de ressignificação e interpretação individual e coletiva da morte.
A filosofia da metarrealidade descreve a maneira como o
mundo depende, é sustentado e existe somente em virtude da
energia livre, amorosa, criativa, inteligente e de ações em estados não-duais de nosso ser e de nossa atividade. Ao nos tornarmos
conscientes
disso,
começamos
o
processo
de
transformação e superação da totalidade das estruturas de
opressão, alienação, mistificação e miséria que temos produzido. (BHASKAR, 2012, p. 8);
Em nosso projeto buscamos apoio na ciência e nas tecnologias para conseguirmos
chegar ao propósito de apoiar famílias na realização de rituais remotos, porém vale ressaltar que para além do cientificismo racional, materialista e mecanicista, juntamos objetos de estudos, áreas do conhecimento e pessoas com um objetivo comum: a
coletividade, quando, mais do que nunca, a pandemia expôs o abismo da diferença de
classes e de acesso a sistemas de saúde dignos. Tudo potencializado pela inabilidade
dos governos brasileiros municipais, estaduais e, principalmente, federal para lidar com
as consequências deste momento. Nessa lógica, vale aqui trazer as reflexões de Vieira
e Dias (2016), no artigo “Análise de discurso crítica e filosofia da meta-realidade”.
O foco no sistema econômico, tecnológico, assim como no conflito e na luta como
forças propulsoras de mudanças sociais (CAPRA, 2004), abre espaço, nessa epistemologia e ontologia sistêmicas, para possibilidades de mudanças inicialmente emergentes
na base da formação humana holística, integrada, na qual, conforme Bhaskar (2012),
estão importantes mecanismos (com seus poderes gerativos causais) que podem se movimentar para a superação de estruturas sociais de opressão e sofrimento, as quais são,
1 Participantes do projeto: Almir Almas, Wellington Zangari, Marcos Ribeiro Pereira Barretto, Deisy Fernanda Feitosa, Daniel Lima, Cristina Barreto
de Menezes Lopes, Natália Dantas do Amaral, Jaqueline Vasconcellos, Ricardo Nogueira Ribeiro, Antonio Bianchini Borduque, Eduardo Acquarone,
Mateus Donia Martinez, Gabriel Teixeira de Medeiros, Fernando Lamanna, Leonardo Breno Martins, Douglas Kawaguchi, Fatima Regina Machado,
João Knijnik, Rafisa Lobato e Jeverson Reichow.
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em grande medida, (re)produzidas inconscientemente por nós mesmos/as. (VIEIRA;
DIAS, 2016, p. 58);
Por tudo o que foi exposto e que conhecemos com nossas próprias experiências
pessoais, sabemos que dizer adeus não é fácil. A impossibilidade de dizer adeus chamou
atenção para um ritual milenar e universal a todas as culturas e religiões, e que faz parte
do processo de luto: as cerimônias de velório. Por isso, propomos a construção de um
processo ritualístico em ambiente digital que converge com a “ideia da transcendência”
descrita por Bhaskar (2012, p. 175): “a ideia de um nível além ou atrás ou entre a realidade”. No nosso caso, o Transcender acontece em ambiente de metarrealidade, apoiado
por várias realidades: tecnológicas, culturais e sociais.
Considerações finais
Voltando às perguntas colocadas no começo deste texto, sobre a mudança na maneira de entendimento do mundo e sua episteme, tanto no aspecto individual quanto
coletivo, entendemos que a ferramenta pensada por nós, na sua constituição como interface virtual, audiovisual e imersiva, amplia a discussão da constituição de um novo
entendimento do mundo, a partir da construção de ambientes de imersão que trazem
consigo "novas maneiras de pensar, novas maneiras de estabelecer relações com o outro
e consigo mesmo, novas maneiras de agir e interagir, novas maneiras de adquirir conhecimento e de entender o mundo físico e mental à sua volta". (ROSA, 2003, apud
ALMAS, 2013).
Como no Projeto Transcender a união da transdisciplinaridade com o estudo do
luto tem um lugar de reunião para contar histórias, encontramos em Kearney (2012) a
sugestão de que o próprio ato de contar histórias seja uma forma de superar o luto pessoal e coletivo. A catarse, definida como a expurgação emocional de uma vivência traumática mediante o processo da narração que é, de certa maneira, uma solução simbólica
para um problema que é vivido (KEARNEY, 2012). Por conta da raiz curativa que a catarse
narrativa tem de colocar em movimento nosso passado no presente, seja para revivê-lo
com uma perspectiva mais saudável, experiente e distante do trauma, ou para manter o
passado vivo no presente do relato cada vez que voltarmos a entoá-lo. Porém, para Kearney, colocar o passado em movimento narrativo não é só para curar nossas feridas, é
reescrever nossas memórias e preparar um novo estado emocional para lidar com elas,
e inevitavelmente, também reescrever a história e como lembraremos deste presente
nos anos a seguir.
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Talvez a mudança epistemológica sugerida no início do artigo venha da necessidade, então, de prestar atenção à forma como contamos nossas histórias de luto daqui
em diante, para não esquecer o que vivemos no presente. O projeto Transcender atua
nesse interstício entre o real atual e um novo real que se apresenta, entre as experiências
de âmbito pessoal e as experiências coletivas, entre o viver e o narrar o vivido. Desse
modo, ele nos ajuda a construir essa nova episteme, esse novo entendimento do mundo.
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REFERÊNCIAS
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VIEIRA, Viviane; FREITAS, Juliana de Dias. Análise de discurso crítica e filosofia da meta-realidade: reflexões
sobre ética e identidades. In: Polifonia, Cuiabá-MT, v. 23, nº 33, p. 51-69, jan-jun.2016. Disponível em:
<http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/3862/2654>. Acesso em: 30 de
jun. 2020
TRANSCENDER
Criado e desenvolvido em conjunto e em colaboração transdisciplinar pelo LabArteMídia (Laboratório de
Arte, Mídia e Tecnologias Digitais), grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e
Artes, pelo InterPsi (Laboratório de Estudos Psicossociais: Crença, Subjetividade, Cultura & Saúde), grupo de
pesquisa vinculado ao Instituto de Psicologia e pelo Laboratório de Robôs Sociáveis, vinculado à Escola Politécnica; todos eles da Universidade de São Paulo. Autores/pesquisadores: Almir Almas, Wellington Zangari,
Marcos Ribeiro Pereira Barretto, Deisy Fernanda Feitosa, Daniel Lima, Cristina Barreto de Menezes Lopes, Natália Dantas do Amaral, Jaqueline Vasconcellos, Ricardo Nogueira Ribeiro, Antonio Bianchini Borduque,
Eduardo Acquarone, Mateus Donia Martinez, Gabriel Teixeira de Medeiros, Fernando Lamanna, Leonardo
Breno Martins, Douglas Kawaguchi, Fatima Regina Machado, João Knijnick, Rafisa Lobato e Jeverson Reichow.
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Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
CAPÍTULO IV
VIRALIZACAO DA LIVE
A RESSIGNIFICAÇÃO DA PRESENÇA
APOCALIPSES, LIVES E O NOVO NORMAL:
UM ENSAIO EPIDEMIOLÓGICO MUSICAL
Regis Rossi A. Faria e Diósnio Machado Neto
Inegavelmente, vivemos um momento ímpar, onde as transformações ocorrem
com a mesma energia que a pandemia se alastra e vitimiza milhares de pessoas pelo
mundo. No meio dessa tragédia civilizacional surge, no entanto, uma janela para observar um fenômeno interessante: o papel da arte nos entreatos de uma vivência em ansiedade e confinamentos. Podemos dizer, com certeza, que nenhuma história sobre os
dias de hoje deixará de observar a arte como um dos palcos da narrativa. Não apenas
uma parcela da população ficou confinada em suas casas e transladou seus hábitos de
experiência lúdica para os canais virtuais, mas também o próprio exercício da arte, enquanto espaço de sinergia pública, foi drasticamente afetado pelas mudanças no cotidiano. Nesta realidade, que mudou as perspectivas laborais e emocionais da
humanidade, artistas, produtores, trabalhadores da arte, intelectuais e o público em
geral reconfiguraram suas formas de trabalho, assim como suas práticas criativas, reflexões e relacionamentos.
Diante dessas mudanças muitas interrogações surgem e, mesmo considerando-as
em curso, já podemos abordar algumas na forma de um ensaio. Por exemplo, como essa
nova dimensão de produção da arte, agora reduzida aos ambientes domésticos, sem a
interação presencial entre artistas e público, afetará nossas expectativas de consumo e
o redimensionamento estético do produto artístico? Como as redes estabelecerão seu
relacionamento com essa produção? E como isso se dará, considerando não só as diferenças abissais entre as possibilidades e formas com que os grupos sociais têm acesso
à internet? Como pesar tudo que se relaciona aos processos ativos de comunicação em
tempos digitais, desde as linguagens das múltiplas tribos e suas bolhas de sentido, passando pelos requisitos técnicos e incontinências tecnológicas, até os problemas sobre
censura, ética, direitos, capitalização, e projeção de performatividades? Como será o
desdobramento das subjetividades sobre a arte e seus meios? Este ensaio apresenta
uma discussão sobre essa conjuntura de anormalidade social cunhada de novo normal,
e o que poderá surgir dela.
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As lives: um novo normal
Dois fatos são inegáveis no novo contexto da atividade musical. Primeiro, a pandemia transformou o exercício da música, principalmente em sua performatividade. Segundo a tecnologia de produção colaborativa e a transmissão à distância com latência,
que suscitavam resistências, foram acolhidas. A pandemia tornou toleráveis essas fronteiras, antes desconsideradas. Também é fato que a baixa latência e a maior qualidade
dos codificadores de mídia atuais mudaram os rumos a favor da telemúsica. Impulsionados pelo grupo MPEG (ISO/IEC Moving Picture Experts Group)1 estes codificadores
tiveram avanços sem precedentes nos últimos anos, colocando uma série de aplicações
de tempo real ao alcance de todos.
Este cenário tecnológico permitiu o florescer das chamadas lives, fenômeno que
tomou a cena musical nos últimos meses, e abriu espaço para que músicos e artistas de
todo tipo interagissem colaborativamente com outros à distância, transmitindo suas performances ao vivo. Indo direto da fonte ao espectador em tempo recorde, e sem usar
os veículos e protocolos convencionais da indústria criativa, eis que nos deparamos com
uma quebra paradigmática do novo normal, um terreno espantosamente milagroso e
pantanoso.
Seu embaixador bebendo
Assumida a ideia de um inevitável isolamento social, em poucos dias a máquina
da indústria criativa pôs em nossas casas shows adaptados dos pop stars da atual cena
musical. O novo normal chegou com um ciclo inédito de produções de artistas populares, começando com os cantores de segmentos que arrastam multidões - sertanejos, pagodeiros e funkeiros – um modelo que logo seria seguido por todos, de orquestras
sinfônicas aos ícones da MPB.
Sem considerar aqui o fenômeno além das fronteiras brasileiras2, a agenda de
shows ao vivo transmitidos pela internet a partir de meados de abril de 2020 tornou-se
notícia nas páginas de cultura, e aumentou exponencialmente durante a quarentena.
Artistas de todos os segmentos marcaram presença inaugurando um novo modelo de
relacionamento artista-público. Transmitidos por canais próprios no Youtube, Facebook
e Instagram, ou por canais de concentradores de cultura como o SESC e até redes tele1.Grupo de trabalho internacional que desenvolveu o mp3, o dvd, o mp4, e diversas tecnologias que hoje permitem uma massiva transmissão em
tempo real de áudio e vídeo pela internet.
2. Que trataremos em um artigo futuro.
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visivas, estas apresentações ao vivo ampliaram a experiência de recepção, rompendo
com uma cadeia que parecia estabilizada: o show presencial.
O show ficou instantaneamente à disposição para todos, numa revolução de fato
na democratização do acesso e de veiculação. No entanto, essa democratização provocou a intensificação, quase hegemônica, de um gênero do cancioneiro nacional: a canção romântica. Como carro chefe da música de entretenimento de massa, os números
de visualização alcançadas por lives desse universo possivelmente confirmaram o potencial de monetização desse gênero musical.3 E, se por um lado é verdade que a internet facilitou o acesso, na era do streaming a ferocidade das estratégias comerciais do
entretenimento de massa transformaram as plataformas de divulgação de conteúdo
num espaço onde canções dançantes, de coreografias marcadas e letras sobre um cotidiano ordinário dominaram os rankings. Mesmo considerando que artistas consagrados
da MPB aderiram ao modelo das lives num segundo momento, a canção que pactua a
nostalgia com a “sofrência” mostrou a devida dimensão da audiência em números, a tal
ponto de podermos considerar a MPB dos anos 1970 um nicho cult.4
O boteco na sua casa tornou-se o novo normal. E, neste mundo monetizado, o
agenciamento das lives dos grupos ligados ao gênero romântico trouxe a presença de
marcas de bebidas alcoólicas. Estas, não só expuseram seus produtos, mas, de forma
inusitada e espantosa, por vezes tiveram o cantor como testemunha de sua qualidade.
Também não faltou o merchandise de carros de luxo e roupas de grife, mercadorias associadas ao novo normal da canção de massa. Mais que isso, reforçaram a ideia do consumo de marcas associada a uma juventude que usa jargões financistas, de
empreendedorismo e sucesso. Marcas associadas, também, ao comportamento alienado
em suas práticas de entretenimento, onde descarta-se o que não ative os hormônios necessários para liberar as energias do carpe diem. E a canção romântica embala bem esse
novo sentido de vida.
Ironicamente, estas lives, de artistas acostumados com mega produções, partiram
de transmissões semiprofissionais domésticas. Amparada na cultura da portabilidade
dos smartphones, a cena musical se reinventou, a ponto do sertanejo goiano Gustavo
Lima cantar solo por mais de 3 horas para uma câmera em casa, sob uma viola bem mar3. André Midani, em Do Vinil ao Download (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2015, p.227), expôs que em 1980 a indústria fonográfica passou por
grande transformação, migrando o foco de seu processo para a canção de sucesso instantâneo, mais do que no gerenciamento de carreira de
artistas de forte identidade artística, o que se intensificou na era digital do streaming.
4. A discussão dos problemas sociais e urbanos nas canções herméticas e metafóricas da década de 1970 aqui não mais faz sentido, para uma geração pró-neoliberal crescida entre games digitais
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cada e bebida à vontade. E esta onda etílica-musical vingou. Uma horda de militantes
sônicos se apoderou da ideia e, novidade brasileira, o movimento foi capaz de reanimar
um número de artistas e profissionais musicais que tiveram sua agenda de shows desmantelada, de uma hora para outra, pelo isolamento social.
E assim “celebramos” o descontrole da pandemia, nos impregnando do seu contrário. Isso porque, mais uma vez a canção romântica comandou o transbordamento da
nossa alienação diária escorando o inusitado na nostalgia cantada. Já havia sido assim
em outras épocas. É só lembrar que, em tempos recentes, até o movimento Black Rio,
de forte presença estético-política, sucumbiu por seu próprio ativo cultural nos funks em
estilo Miami Bass de Claudinho & Buchecha.
É agora?
Perdeu o ao vivo? Não tem problema: tudo está online para ver de novo depois,
até a data em que durarem os repositórios permanentes. Mas só assinantes podem ver
tudo sem interrupções comerciais, pois uma nova ordem vem estabelecendo filtros econômicos de acesso, sob o risco do que consideramos um testemunho documental de
época possa ser manipulado ad eternum.
Ademais, a indústria de shows agora descobre um novo espaço na tecnologia para
disseminar suas performances; e ao vivo! O que não se conhecia, todavia, era a intimidade dos artistas, transmitida sem ensaio. Ivete Sangalo transmitiu com seu filho e marido da cozinha de casa, de pijamas. A república sertaneja talvez seja a que mais
alimentou as redes com transmissões pitorescas e encenações inusitadas, contando até
com cavalos que fugiam de cena e outras improbabilidades. O universo pagodeiro também não ficou imune, inclusive com cenas infelizmente comuns ao cotidiano brasileiro,
de polícia atrás de bandidos armados, invadindo a casa onde ocorria a transmissão.
Como bater palmas? Através de comentários por hashtags de tweeter ou curtidas
nas redes sociais. Em algumas plataformas ao vivo aplaude-se também pelo chat, que
jorra mensagens dos fãs. E o espetáculo revela novos profissionais, como os operadores
de redes sociais e de ilhas transmissoras de streaming. E coloca outra ordem de padrões, como as durações espetaculares de 3 horas ou mais de shows. Padrões que rapidamente se provam numa velocidade assombrosa, porque a validação dos meios é
praticamente imediata: os retornos do que fez sucesso ou não são polidos nos bastidores das redes sociais.
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Talvez para não romper o limite do respeito pela tragédia momentânea, muitas e
cada vez mais lives de artistas populares foram incorporando ao time as figuras da doação
e da caridade: a misericórdia online. Dois meses depois do início da febre das lives, não
há, dentre os artistas que contam com alguma estrutura razoável de produção, aqueles
que não exibam as doações, os milhares de quilos de alimentos arrecadados e enviados
a instituições de caridade. Oportuna, esta onda filantrópica legitimou, pois, a boa vontade
de tantas transmissões que poderiam se passar só por meras explorações capitalistas.
O que não está sendo discutido é o quanto isso poderá impactar as futuras gerações e nossas formas de escuta e consumo pela réplica da performatividade doméstica.
Em outras palavras, o que significará de perda da experiência da produção musical,
como um dia ousaram os Beatles desafiando o mercado fonográfico? A live recente de
Tom Zé foi um prenúncio do novo "choque do novo". Pouco à vontade nesse novo modelo, o mestre do Tropicalismo atraiu seu público pelo capital afetivo que acumulou em
sua trajetória. Mas muita coisa não funcionou, talvez pela insegurança performática com
o modelo caseiro. O mesmo aconteceu com Daniela Mercury. Sua tradicional performance, destacada pelas coreografias e a plasticidade do conjunto de bailarinos, viu-se
comprometida.
Outro problema se desdobra ao introduzido acima: a questão da oportunidade
para negócios. Grupos empresariais, no risco, se articularam criando novas frentes de
mercado. Programas de videostreaming logo passaram a sobrepor às camadas do vídeo
ao vivo outras de propaganda, códigos QR, links, comentários de tweeter e outros ícones
midiáticos. E os contornos das telas nas transmissões ficaram cheios.
Legendadas ao vivo, as lives trouxeram anúncios dos mais diversos tipos, de supermercados, bebidas, planos médicos, e de anunciantes locais, desconhecidos do público que não mora nas cidades dos artistas. E, virtualmente, foram tomando como temas
as grandes festas da agenda brasileira, como os "arraiás".
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Embora atraente e fadada ao sucesso, a idéia não levou de súbito os artistas mais
consolidados da nossa MPB para o púlpito virtual. À exceção do rei Roberto Carlos, que
fez duas lives antes de tantos outros nobres. Mas, já ao final de junho de 2020, expoentes
como Gilberto Gil e Milton Nascimento, deram “live” às suas músicas. E partiram para o
aperfeiçoamento de um modelo de segunda geração para esta telearte.
A diferença com esses grandes nomes da cena musical brasileira foi a produção.
Primeiro, durações mais curtas que a maioria das mega lives anteriores. Segundo uma
seleção equilibrada de repertório, que evidenciou a presença de uma equipe e curadoria
profissionais atuando nos bastidores, encarregada de cenografia, iluminação, som e
transmissão ao vivo.
Gil fez uma live junina em 26 de junho de 2020 a partir de um belo quintal e com
a participação de sua prole artística e instrumentistas festejados. Celebrou uma "homenagem à música brasileira e em prol de todos os profissionais que fazem o show acontecer", arrecadando donativos para a classe profissional, ora com seu sustento
desestruturado pela pandemia. Fez assim referência a "centenas de profissionais que
trabalham nos bastidores e estão vulneráveis nesse momento". Gravada, a live teve
1,167 milhão de visualizações em 3 dias (mas nada perto dos aparentes 53 milhões que
assistiram à Marília Mendonça).
Milton Nascimento fez uma live de um estúdio em 28 de junho com mais dois instrumentistas, revivendo suas canções nostálgicas em belos efeitos reverberantes, já conhecidos na assinatura vocal de sua discografia. Com uma ficha técnica mais intimista,
a live também contou com patrocinadores: os QR codes para doações e o marketing de
relevância ao artista estiveram presentes. Milton obteve quase 860 mil visualizações em
2 dias (pouco, comparado a grupos de pagodes).
Transmitir de casa ou estúdios, todavia, não foi o que outros grandes fizeram. O
mineiro Skank fez uma megalive transmitindo a partir do Mineirão. Palco no gramado,
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estádio fechado, sem público e à noite, transmitiram quase 3 horas em uma live que,
certamente, agradou seu público e atraiu milhares de espectadores na internet.
E agora?
Modelos de lives de 2a ou 3a geração agora apontam para muitos lados, como
para festivais, mesclando manifestações ao vivo com gravações, ou para o lançamento
de trabalhos novos diretamente na internet, em plataformas interativas; ou para a (re)visitação de projetos do passado, remasterizados online, em vídeos ou animações. Ambientes múltiplos, a convergência com a realidade virtual, os 360 graus e a gamificação
se oferecem como vias de avanço.
Para aproveitar o embalo do desejo popular e da estabilização dos meios para enviar telearte interativa, artistas provavelmente se interessarão por oferecer sua produção
ao alcance de todos a qualquer hora pela internet. Marisa Monte, por exemplo, colocou
no ar uma plataforma para explorar seu estúdio virtual, ver e ouvir suas músicas em streaming e seus videoclipes gravados com parceiros.
De novo, serão as variáveis tempo e sucesso que vão ordenar os parâmetros desta
evolução. Instituições produtoras de cultura e espetáculos, equipamentos culturais tradicionais, e dezenas de festivais já migraram para o formato à distância, via internet. E
por que não lembrar que o segmento pode ser multiplamente lucrativo: o tag "ao vivo"
divide espaço com programas gravados para consumo posterior.
Não mais um público local, mas agora um público sem fronteiras, que vai do Ushuaia
à Sibéria. Contadores de público quantificam números miraculosos, contados em unidades múltiplas de "estádios ocupados", públicos que batem à casa de milhões. Espectadores digitais são o presente e o futuro da assistência em massa. O Spotify, por exemplo,
mostra que, no Brasil, adeptos da ordem de 1.700.000 pessoas curtem playlists de sertanejo. Por mês, alguns milhares de escutas são contabilizadas e - a confiar na transparên128 PANDEMIDIA
cia ou na correção dos números - as cifras são visíveis nas plataformas. Indicativos de audiência que muitas vezes atuam como atiçadores de novos ouvintes e de produtores.
E o futuro?
Isaac Asimov em seu admirável livro Os Robôs tematizou a experiência de uma sociedade que somente se “televia”. Humanos vivendo numa época muito longínqua e
num planeta chamado Solaria viviam sem se encontrar fisicamente uns com os outros,
e eram servidos por hordas de robôs, com quem conviviam fisicamente. Neste extremo,
hábitos de isolamento foram edificando paulatinamente regramentos que ampliavam
esta prática e garantiam direitos a ela. Ao final tinham uma sociedade que não suportava
mais a presença física.
Numa sociedade complexa e multivariada como a que vivemos não podemos traçar
visões de um futuro distante com precisão. Valeríamo-nos, talvez, de abstrações ficcionais,
como a de Asimov. Mas num futuro mais próximo, é de se esperar que o novo comportamento à distância se adicione ao convencional encontro físico e presencial, tão característico e basilar nas artes. Assim como a música eletrônica, e antes o atonalismo, não
substituíram nem fizeram sucumbir o edifício da música clássico-romântica, não deveremos ver a música à distância destituir a presencial. Ao final todas estas novidades – se se
tornarem sucessos de público - acabam só acrescendo novas práticas e ferramentas.
O destaque ao “se se tornarem sucessos” se aplica, porque a história é cheia de propostas sensacionais, mas que podem não vingar. Vejam, por exemplo, algumas das tecnologias digitais cheias de promessas, como o MPEG-A Music Player Application Format
(MAF)5, publicado em 2006. Ou o próprio MPEG-4 Structured Audio (SA), publicado em
1999, com potencial para aposentar o MIDI (uma tecnologia da década de 1970 e até hoje
amplamente pervasiva e suficiente no cenário musical) mas que não se tornou sucesso.
Restam ainda muitas pérolas produzidas pelo mesmo MPEG que não se tornaram
implementações de aplicativos nem são cobiçadas pela indústria criativa. A integração
destas com formatos de áudio e vídeo 3D ocorre em iniciativas como o mais recente
MPEG-H, e repercutem nas mídias imersivas em gestação, embora numa taxa de crescimento natural, ainda não fermentada pelo isolamento social. Num eventual crescimento
do interesse por estas tecnologias, se tornam candidatos ao sucesso também os gadgets
e os protocolos de produção para suas mídias.
5.ISO/IEC 23000-2:2008, Information technology — Multimedia application format (MPEG-A) — Part 2: MPEG music player application format.
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Enfim, estamos como num canteiro de obras de tecnologias artísticas. Uma espécie
de hackathon cultural midiático. O sucesso destas iniciativas dependem de muitas variáveis, e não menos também da facilidade de uso e da capacidade de serem incorporados
na rotina das pessoas, de produtores e consumidores. Diante da quebra paradigmática
forçada pelo isolamento social, é possível que estas tecnologias venham a ser, rapidamente, alvo de uma onda de gafanhotos sedentos. Mas a longo prazo, a quantidade de
informação transmitida, e toda a atenção que os aplicativos e programações virtuais e interativas exigem do espectador humano, podem levar também a uma estafa e intolerância ao formato. O formato das lives caiu no gosto dos fãs, mas não se sabe qual fração de
público poderá sustentá-lo como alternativa de mercado estável no pós-pandemia.
Apocalipses
E no meio da pandemia, quasi apocalipses se sucederam também no cenário da
tecnologia. O prestigiado MPEG, que funciona sob os auspícios da ISO (International
Standardization Organization), encontrou neste período suas fronteiras políticas pressionadas, forçando mudanças estruturais com repercussões ainda imprevisíveis sobre o
desenvolvimento e adoção de padrões tecnológicos audiovisuais no futuro. Após 30
anos operando sob o codinome de J TC 1/SC 29 WG11 - um único working group da
ISO - o supergrupo se estilhaçou em vários working groups menores em 2020.
Emblemática, esta fragmentação ocorreu sob críticas de muitos acerca de sua prolixa burocracia funcional e, de outros, pela supremacia continuada liderada por poucas
bandeiras tecnológicas, uma espécie de concentração de poder. Um poder que define
meios tecnológicos através dos quais a civilização vai se embrenhando, até não mais
parecer que há retornos. Marca deste apocalipse também é o surgimento de grupos alternativos, supostamente livres, que se organizam fora da estrutura da ISO para também
propor normas técnicas e promover sua adoção pelos players tecnológicos. Os novos
players do cinema online e do entretenimento virtual buscam se alinhar, bem como a
TV que se reinventa sob tudo isso.
Lembrando que foram o Napster e a música digital que deflagraram os primeiros
terremotos na indústria das artes nos anos 1990, a "uberização" dos grandes negócios
midiáticos acena para muitas transformações ainda por vir. A despeito do caráter apocalíptico que tudo isso insufla, não nos parece, todavia, que o mundo esteja piorando,
ou que todo o status quo vá se perder. Crê-se que as artes e as técnicas em um mundo
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altruísta tendem a se complementar. O futuro se traça, mas não se define antes de ser
presente. Não há como saber, ao certo, quais associações libertadoras e inconfidentes
serão veículos para as normas técnicas e artísticas que regularão os próximos padrões,
nem qual a velocidade dos seus ciclos de alternância.
REGIS ROSSI A. FARIA
Professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e no Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA). Atua na interdisciplinaridade entre artes e ciências, nas áreas
de engenharia de áudio, computação sonora e musical, abordando questões relacionadas à criação e recepção
sonora utilizando recursos tecnológicos, e desenvolvendo sistemas e aplicações para música, áudio digital e
processamento sonoro. Coordena o Laboratório de Áudio e Tecnologias Musicais (LATM) na USP, sendo também pesquisador no LabArteMídia (ECA), no Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas (CITI-USP) e
no Núcleo de Pesquisas em Sonologia (ECA). É membro da Comissão de Estudo de Codificação de Áudio,
Imagem, Multimídia e Hipermídia da ABNT, atuando como expert junto à ISO/IEC MPEG.
DIÓSNIO MACHADO NETO
Professor Livre-Docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACHUSP). Atua como professor nos programas de Pós-Graduação em Musicologia da Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e do programa em Mudança Social e Participação Política
(EACH-USP). É professor colaborador no Centro de Estudos em Sociologia e Estética da Música (CESEM-Universidade Nova de Lisboa) e no Programa de Magister em Musicologia Latinoamerica da Universidad Alberto
Hurtado, Chile. É membro do Italian and Ibero American Relationships Study Group (RIIA), sediado no IMLAVeneza (Instituto per lo studio de la musica latinoamericana durante il periodo coloniale); do Study Group IMS
Early Music in the New Word. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes em 2009 pela tese «Administrando
a festa: Música e iluminismo no Brasil colonial». É fundador da Associação Regional para América Latina e Caribe da International Musicological Society (ARLAC—IMS) e da Associação Brasileira de Musicologia (ABMUS).
Coordena o Laboratório de Musicologia (LAMUS).
PANDEMIDIA 131
ROCK AND ROLL, MÍDIA CONTEMPORÂNEA E FAKE NEWS:
EFEITOS PRÉ, DURANTE E PÓS-PANDEMIA
Rafael Bitencourt e Claudia Assencio de Campos
Na efemeridade dos stories, o vídeo do músico Bruno Razera soa despretensioso.
Bem à vontade, de boné, o vocalista da banda Capitão Nemo esconde os cabelos e convida os fãs para uma sessão virtual de rock and roll. Ao perceber o equívoco depois de
anunciar uma data errada, se apressa para corrigir a informação na ferramenta do Instagram que dura 24 horas. Ele sabe que não pode se arriscar. Em tempos de quarentena,
subestimar a importância das redes sociais é uma falha grave. “Antes, o digital era mais
um recurso. Hoje, é a única opção”, diz.
Com a pausa nos shows, durante o período em que o isolamento é uma arma essencial contra a disseminação do novo coronavírus, os músicos precisaram inovar. “Notamos que existem outras opções para trabalharmos como artistas. Isso exigiu renovar
a forma como a gente pensa a divulgação e o contato com o público”, conta Razera. “Começamos a ver possibilidades para fazer o som acontecer e de chegar até as pessoas
por outro meio, que é o digital”, explica.
“Chegar até as pessoas” – como define, aqui, o cantor – ganha um caráter de interatividade, uma vez que esse acesso, durante a quarentena, na pandemia, se dá por meio
das redes sociais, que permitem uma relação mais dialógica entre o artista e o público.
Trata-se de um ponto de ruptura de nossa era já previsto por Sérgio Bairon em 1995, no
livro “Multimídia”, quando o professor da Universidade de São Paulo (USP) escreveu que
o “século XXI não será a continuidade do século do homem espectador da tecnologia,
mas o século do homem que interage com ela”. Duas décadas mais tarde, a interação
mediada pelos dispositivos móveis configura-se quase como extensões do próprio
corpo, quando as diferenças entre o real e o virtual também se confundem.
Estrutura de poder horizontal e círculos sociais
Essa relação dialógica é a representação aplicada ao universo das artes do que, já
em 2017, Philip Kotler, Hermawan Kartajaya e Iwan Setiawan definiram como “um
mundo no qual pessoas diferentes estão conectadas entre si sem quaisquer fronteiras
geográficas e demográficas”, que denota um enfraquecimento das grandes corporações
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e uma dispersão do poder econômico. “Estamos testemunhando também como uma
estrutura de poder vertical tem sido diluída por uma força mais horizontal”, apontam os
autores que destacam ainda os “círculos sociais” como a principal fonte de influência,
“superando as comunicações de marketing” e até as preferências pessoais.
As mídias sociais desempenham papel fundamental nesse contexto. Ser um “reinventor da própria arte”, como se faz necessário em tempos em que o consumo cultural
se restringe ao ambiente on-line, passa pela devida compreensão das características de
tais redes, em que a interatividade, mais do que esperada, é um fator de diferenciação.
As pessoas esperam que suas “páginas” preferidas interajam com elas... Mesmo que
seja para reclamar de algo que não saiu a contento.
Quem não se lembra da fala do garoto, anos atrás, que, insatisfeito por esperar
desde cedo pelos jovens músicos da extinta banda Restart, bradou para a câmera: “Eu
não vou perdoar, vou xingar no Twitter hoje, muito”? Ao “xingar muito”, o fã espera uma
retratação dos ídolos, ou seja, um contato. Ou do caso mais recente, já em tempos de
pandemia, quando durante uma live no Youtube com sua banda Capital Inicial, o vocalista Dinho Ouro Preto arriscou cantar um trecho da dificílima "Bohemian Rapsody", clássico do Queen, e recorreu ao tecladista quando não se lembrou da letra ou destoou da
afinação. Um improviso até natural para bandas em geral, que poderia ser facilmente
esquecido se tivesse ocorrido num show tradicional. Mas, no ambiente on-line, os tropeços de um ícone do rock nacional, com milhares (milhões?) de visualizações, ganha
grande repercussão. Com direito, inclusive, a análises jocosas em outros canais do próprio Youtube ... Canais esses que buscam interação e engajamento!
“A mídia somos nós”
Um paradigma das relações interpessoais e da comunicação foi identificado cinco
anos antes do covid-19 no Brasil, por Ivana Bentes. O processo de mutação social a partir
da produção audiovisual e midiática tem gerado, no entendimento da autora, uma nova
ecologia ‘midialivrista’. “Pessoas que individualmente começam a se ver e se assumem
como produtores relevantes de conteúdos”, uma mutação antropológica causada pela
percepção de que “a mídia somos nós”. Seguindo a máxima das novas mídias, o conteúdo a ser produzido deve focar no receptor: o que importa não é o que a empresa
ou, nesse caso, o que o artista por trás da página quer dizer e, sim, o que o público quer
ouvir. Atenta a essa realidade, a banda Lô Balaio trabalha com materiais audiovisuais
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que reúnem o que os músicos têm chamado de “versão quarentena” de canções autorais
e covers. Com o sucesso e os feedbacks positivos do primeiro vídeo, o grupo deu continuidade ao projeto, com novos materiais sendo disponibilizados.
O formato é básico, porém, eficiente. Cada músico grava seu instrumento em casa
e, posteriormente, o material é editado e disponibilizado no ambiente on-line. Já que
“a mídia somos nós”, o guitarrista da Lô Balaio, Fernando Groppo acredita que criar conteúdo é o que o artista pode fazer melhor nesse momento. “Foi uma sacada que a gente
teve para manter a banda ativa. O fato de o pessoal ter gostado nos dá mais gás para
investir na empreitada e produzir mais material desse tipo”, opina.
Uma importante variante deve ser considerada nessa relação digital entre artistapúblico: os imprevistos tecnológicos. Em maio, a Violet Soda, banda de destaque na
cena independente, após divulgação de uma transmissão on-line ao vivo, foi pega de
surpresa e não conseguiu executar o prometido. No Facebook e no Instagram, a banda
se justificou. “Fizemos milhões de testes antes, mas, na hora H, o servidor simplesmente
não conectou, não conseguimos iniciar a live e infelizmente tivemos que adiar”, dizia o
post do dia 17 de maio. As respostas dos fãs amenizavam uma possível e compreensível
frustração dos músicos. “Problemas acontecem”, “só remarcar a próxima”, “vai ser massa”
e “banda maravilhosa” foram algumas das mensagens de incentivo...Interação!
Na semana seguinte, a promessa foi cumprida e o grupo transmitiu, ao vivo, pelo
Youtube, um bate-papo em que os quatro membros responderam perguntas dos fãs,
além da gravação de parte do show de lançamento do primeiro álbum full (após dois
EPs bem sucedidos), ocorrida poucos dias antes da quarentena, que os pegou de surpresa, com o cancelamento de show naquele que, disseminação do novo coronavírus à
parte, seria um momento muito propício para tal.
Fake News e o “novo normal”
É voz corrente entre músicos e demais pessoas que trabalham com atividades
culturais que o setor artístico foi o primeiro a ser atingido pela pandemia e que será
um dos últimos (se não o último) a retomar seu fluxo no que já é chamado de “novo
normal”, embora ninguém, ao certo, saiba o que isso, de fato, signifique. Mas, após a
análise do comportamento da mídia antes e durante a pandemia, surge um apontamento: voltar a olhar efetivamente para as mídias tradicionais, ao que tudo indica, poderá ser um diferencial.
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Vistos por alguns especialistas como o “mal da nossa era”, os processos de desinformação, que têm nas Fake News sua faceta mais conhecida, fazem vítimas também no
cenário do rock, mesmo antes do covid-19.
As redes sociais disseminaram a suposta morte de Paulo Pagni, o PA, membro da formação clássica do RPM, dias antes do músico falecer. A própria banda também compartilhou em seu Facebook oficial a informação falsa, num momento em que o baterista estava
internado. Apesar do alívio pelo amigo estar vivo (e, claro, isso vale mais do que qualquer
coisa), assumir um erro e desmentir um post é sempre uma situação desagradável.
Durante a pandemia, quando apresentações on-line de sertanejos dominavam as
atenções, circulou pelo WhatsApp uma falsa lista de lives internacionais, incluindo representantes do rock. Os mais atentos perceberam a inclusão do cantor de soul e R&B
Charles Bradley, morto em 2017. Mais uma mentira disseminada no aplicativo de mensagens instantâneas que, segundo estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado no site da Agência Brasil, também propagou 73,7% das informações falsas sobre
o novo coronavírus. Outras 10,5% foram publicadas no Instagram e 15,8% no Facebook.
É fato que a desinformação no universo musical não circula apenas em redes sociais, nem é um fenômeno novo. Desde os anos 1960 são conhecidas versões da suposta
morte de Paul McCartney e sua substituição por um sósia, no auge dos Beatles. Elvis
Presley, ao contrário, tem sido vítima de teorias sobre sua suposta “vida escondida”,
mesmo 40 anos após sua morte – dois boatos entre os mais conhecidos e duradouros
de todos os tempos.
É inegável o alcance de uma informação falsa em plataformas cujo número de
usuários ativos mensalmente pode ultrapassar dois bilhões no caso de Facebook, Youtube e Whatsapp e ronda a marca de um bilhão quanto o assunto é Messenger, Instagram e Tik Tok – essa última, nova queridinha da web. Alguma luz no fim do túnel? Na
avalanche de desinformação disseminada, principalmente pelas redes sociais, cresceu
também o acesso aos sites oficiais de veículos de imprensa.
Segundo o Observatório da Imprensa, as visualizações no site do Clarín subiram
35% quando o primeiro caso de coronavírus foi registrado na Argentina, ao passo que
o conterrâneo La Nación teve alta de 108% em sua audiência digital na segunda semana
de março, o que representou a superação de todos os recordes desde 1995, quando o
veículo iniciou suas publicações digitais.
Nos Estados Unidos, um estudo mostrou que metade das pessoas acredita que a
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grande mídia tradicional é uma forma de ter acesso a informação confiável. A pesquisa
aponta ainda que 74% dos americanos desconfiam das redes sociais. No Brasil, um outro
levantamento indicou o aumento de 68% nos downloads dos principais aplicativos de
notícia entre o final de fevereiro e o final de março.
Ao buscar informação confiável, apurações profundas e mesmo opiniões, porém,
devidamente embasadas, o público volta-se para os meios de comunicação tradicionais,
com longa trajetória, que contribuem para frear a desinformação. É cedo dizer se o fenômeno resultará no fim da crise (que não é recente) do formato tradicional da mídia,
representada por jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, mesmo que em suas versões
digitais. O fato é que essas linguagens voltaram a ganhar força durante a pandemia.
Importância da mídia tradicional
Ora negligenciados ou mesmo desconsiderados muitas vezes, os esforços em
busca de publicações em veículos tradicionais devem somar-se às estratégias de produção de conteúdo em redes sociais. Embora não sejam tão vastas como há dez, vinte
anos, há boas opções de publicações voltadas à música e à arte: a segmentação – máxima das redes sociais – também é possível e, dependendo do caso, recomendada. Uma
vantagem: contatar quem atua nesses meios tradicionais ficou mais fácil, exatamente,
por conta das redes sociais. Sim, a tão falada interação!
Empresa focada em marketing de conteúdo e estratégias digitais, a Rock Content,
em uma das postagens de seu site, afirma, sobre a divulgação em rádio, que “você pode
alcançar pessoas enquanto elas dirigem, trabalham ou caminham com o cachorro”.
Quanto a jornais e revistas, a empresa aponta que “você pode alcançar uma audiência
mais engajada, especialmente se eles estão sentados tranquilos lendo enquanto tomam
uma xícara de café”, o que configura a chamada “audiência qualificada”, já que, nesse
caso, a atenção do leitor está completamente direcionada ao que está lendo e, assim,
absorve mais o conteúdo.
Outra questão a ser levada em conta: 25,3% dos brasileiros não têm acesso à
internet, o que representa cerca de 46 milhões de brasileiros. É o que mostrou a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) 2018, divulgada no final de abril de 2020 pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pela Agência Brasil. Em áreas
rurais, o índice de pessoas sem acesso à rede mundial de computadores chega a
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53,5%. Assim, é preciso considerar outras formas de consumo de conteúdo, que superem o ambiente digital.
Os veículos tradicionais, ao contrário do que muitos esperavam, não foram extintos.
A grande questão é que as pessoas os consomem hoje de maneira mais seletiva e pontual. De forma a, assim como praticamente tudo na narrativa da internet, atender um
nicho. O fato é que, por ora, ignorar esse nicho não parece ser uma boa ideia.
REFERÊNCIAS
BAIRON, Sérgio. “Multimídia”. São Paulo: Global, 1995.
BENTES, Ivana. “Mídia-multidão: estéticas da comunicação e biopolíticas”. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
KOTLER, Philip; KARTAJAYA, Hermawan; SETIAWAN, Iwan. “Marketing 4.0 – do tradicional ao digital”.
Tradução de Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Sextante, 2017.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-04/whatsapp-e-principal-rede-de-disseminacao-defake-news-sobre-covid-19 (Acesso em maio de 2020).
https://www.oficinadanet.com.br/post/16064-quais-sao-as-dez-maiores-redes-sociais (Acesso em maio de
2020).
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/coronavirus/pandemia-aumenta-uso-de-apps-de-noticias-nobrasil-e-no-mundo/ (Acesso em maio de 2020).
https://rockcontent.com/blog/midia-online-vs-midia-tradicional/ (Acesso em maio de 2020).
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/um-em-cada-quatro-brasileiros-nao-temacesso-internet (Acesso em maio de 2020).
RAFAEL BITENCOURT
Jornalista graduado pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e produtor cultural, com Especialização em Gestão e Políticas Culturais pelo Observatório Itaú Cultural/Universidade de Girona. É apresentador
e repórter do Programa É Rock e membro da organização do Festival Rockaipira. Apresentador e um dos idealizadores da websérie “Lugar Onde o Rock Não Para”, que resgata a história do estilo. Como jornalista, acumula
passagens pelo Portal G1/Globo e TV Beira Rio.
CLAUDIA ASSENCIO DE CAMPOS
Jornalista e professora. Desenvolve projetos de Educação Midiática. Escreve sobre transparência pública para
o Observatório Cidadão de Piracicaba (OCP). No Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e
Outras Legitimidades da FFLCH/USP, estuda a cobertura midiática do rompimento das barragens de Mariana
e Brumadinho. Foi repórter e editora do Portal G1/Globo e acumula passagens pelo jornal O Estado de S.
Paulo, Jornal de Piracicaba e Canal Universitário.
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DAS CAIXAS DE MÚSICA AO VAUDEVILLE
DOMÉSTICO NA WEB: O SHOW DAS LIVES EM UM BRASIL
CONFINADO PELA COVID-19
Márcio Rodrigo Ribeiro
À Lyara que me apresentou o Boteco Semente na Lapa
numa das tantas lives de nossa juventude aglomerada
Introdução
O objetivo principal deste ensaio é entender, numa perspectiva mais ampla e histórica, o fenômeno das lives, surgido nas redes sociais com a pandemia da covid-19.
Para tanto, elege-se como seu objeto de estudo as próprias lives que se multiplicaram
no Brasil quase que imediatamente após o País ter decretado o distanciamento social
no final de março de 2020. Para se entender esse novo fenômeno, o texto buscará promover um resgate sobre a importância de questões que relacionam o entretenimento
doméstico, os sons e as imagens em movimento desde que as primeiras caixas de música foram inventadas na Suíça no final do século XVIII.
Como alicerce teórico desta empreitada, serão utilizados conceitos de Arlindo Machado, referentes ao que o autor discute sobre os chamados “pré-cinemas” e “pós-cinemas”, e sobre a visão dos “divertimentos”, de Vicente de Paula Araújo, marcados pelo
vaudeville no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o século XX.
Este ensaio também resgatará brevemente a análise promovida por Lucas Bittencourt, curador da mostra A Arte na Mecânica do Movimento, promovida pelo Centro Cultural FIESP e a Prefeitura de Sainte-Croix, entre abril e junho de 2011, em São Paulo. Na
exposição, foram apresentadas as primeiras caixas de música domésticas, fabricadas no
vilarejo suíço, exibindo aos olhos dos brasileiros uma invenção que modificaria para
sempre a fruição musical e o entretenimento social, como se verá a seguir.
Vida urbana, trabalho e diversão em casa
Ao contextualizar a origem das caixas de música no final do século XVIII, Lucas Bittencourt observa que “a história de Sante-Croix, na Suíça, é marcada pelo esforço de
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seus habitantes em sobreviver às adversidades, naturais e econômicas”. Segundo o curador, foi essa dificuldade que fez com que os moradores do vilarejo passassem a se dedicar à fabricação de relógios e, quase que, simultaneamente, a construir caixas de
música. Sem ter a exata dimensão do que estavam fazendo, os suíços inventavam o chamado entretenimento doméstico mediado por uma máquina.
Se as grandes invenções tecnológicas trazidas com a Revolução Industrial ampliaram o leque de diversões domésticas até então, possibilitando novos usos para as artes
musicais, essas mesmas invenções levaram a humanidade também a encontrar uma das
formas de entretenimento fora de casa mais difundidas do século XX: o cinema.
Mais do que uma máquina de fixar e projetar imagens, o cinematógrafo se transformou rapidamente em um fenômeno social que estimulou, desde seus primórdios,
pessoas a saírem de casa para irem ver um filme num ambiente coletivo, fechado e propício a aglomerações. Neste cenário, a sala escura não será inicialmente destinada somente à exibição de filmes. Antes de serem salas de cinema, tais locais, como destaca
Arlindo Machado, abrigavam nos grandes centros urbanos do início do século XX os
hoje quase esquecidos teatros de vaudeville. De Paris ao Rio de Janeiro, esses espaços
eram a síntese da diversão do “proletariado”.
Estas “casas de espetáculos de variedades”, como bem as definem Machado, tiveram papel fundamental como legítimos alicerces para o teatro, a música e o cinema que
emergia nas cidades cada vez mais voltadas ao capitalismo de consumo do século XX.
O vaudeville estimulava a cobrar ingressos, a reunir pessoas em volta de um gosto estético popular, assim como funcionava como válvula de escape para a rotina de trabalho
imposta pela sociedade urbana.
A chamada cultura do “divertimento”, como a denomina Vicente de Paula Araújo,
marcará toda a sociedade global, portanto, desde o início do século XX até a presente
data do século XXI. Nem as Grandes Guerras, e crises econômicas graves, como a de
1929 ou de 2008, serão capazes de demover a humanidade daquilo que ela passa a
considerar como um direito fundamental em sua vida: divertir-se.
O audiovisual sempre “exigiu” música
É justamente neste contexto em que o entretenimento ou “divertimento” passa a
ser uma parte essencial no cotidiano das pessoas que a primeira sessão de cinema acon-
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tecerá no Grand Café Paris, em 28 de dezembro de 1895, promovida pelos irmãos Lumière. Ao imitarem tão bem a vida, contudo, nada mais natural de que as imagens que
reproduzem os movimentos do cotidiano clamassem por sons.
Boa parte dos filmes produzidos no início do cinema, como afirma Machado, eram
“os próprios números de vaudeville” que de silenciosos nada tinham. A sanha do público
por imagens com sons era tanta que desde as primeiras sessões, os filmes eram exibidos
acompanhados por uma pequena orquestra ou ao menos um pianista que, muitas vezes,
compunha uma “trilha” no ritmo em que as imagens surgiam aos olhos dos espectadores.
Paulo Emílio Sales Gomes registra em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento
que no Brasil, já na primeira década do século XX, era comum tanto a apresentação de
filmes seguidos por trilhas por fonógrafos, como os chamados filmes “cantantes”, em
que “artistas se escondiam atrás das telas” e acompanhavam com suas vozes as “movimentações das imagens”.
Não por acaso também, o primeiro filme oficialmente sonoro da história do cinema
será The Jazz Singer, em 1927. Produzido pela Warner Bros., o longa-metragem estrelado por Al Johnson deriva da “tradição americana do vaudeville, inspiração de várias
obras cujo enredo gira em torno dos bastidores da produção de um show”, conforme
explica Ronald Bergan.
Com apenas duas cenas realmente faladas e 354 palavras, como nota Celso Sabadin, “o filme foi um sucesso absoluto” levando crítica e publico a ovacionarem a novidade.
Os filmes então passaram a levar ao público as adaptações de óperas e espetáculos do
vaudeville, do mesmo modo que usariam para sempre as mais variadas músicas e canções como elementos de trilhas para criar emoção e identificação junto à plateia.
Popularizada após a II Guerra, a televisão, porém, traria uma nova perspectiva a
todos os tipos de espetáculos públicos. O novo meio de comunicação desbancaria o
rádio e o cinema, tornando-se uma espécie de caixa de sons com imagens ao levar para
os lares divertimento, ao mesmo tempo em que desobrigava os espectadores de terem
que ir a um espaço público para ver imagens em movimento e ouvir música.
Vitrines
A TV se tornou, rapidamente, uma poderosa vitrine doméstica. Nos seus primórdios
enquanto experiência comercial, as emissoras eram obrigadas a realizar sua programa-
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ção toda ao vivo devido à inexistência do videoteipe. Numa realidade de produção tão
limitada, shows recheados de atrações musicais surgiram como uma opção estratégica
para preencher as grades de programação. Especialmente em países como o Brasil, estrelas do rádio passaram a ser cada vez mais prestigiadas dos sofás das casas dos novos
“telespectadores”.
Do mesmo modo, para se entender o fenômeno das lives no Brasil do confinamento da pandemia da covid-19, é preciso recordar a importância de mobilização do
público que tiveram, desde o início da década de 1960, programas como o Brasil 60,
da TV Excelsior, dedicado às apresentações com artistas ligados à música popular brasileira, além dos célebres Festivais da MPB que estiveram presentes nas grades de emissoras com a própria Excelsior e TV Record.
Nenhum fenômeno da TV dos primórdios, contudo, talvez seja tão expressivo como
o programa Jovem Guarda, levado ao ar pela TV Record aos domingos à tarde, entre
1965 e 1968. Transmitido ao vivo, o show era comandado por Roberto Carlos, Wanderléia
e Erasmo Carlos, “copiando” no país o iê iê iê romântico do rock “bom moço” dos Beatles.
Logo, não surpreende que Roberto Carlos tenha realizado uma live para celebrar
seu aniversário de 79 anos em 19 de abril de 2020. O sucesso do Rei ao vivo, reunindo
mais de 1,1 milhão de espectadores, estimulou o Grupo Globo a realizar uma nova live
com ele no segundo domingo de maio para celebrar o Dia das Mães na quarentena brasileira. Desta vez, transmitida também pela TV aberta e pela Globoplay, o programa
quase que substituiu o clássico Especial de Natal da emissora que não foi ao ar no final
de 2019.
Super Lives
Também é importante ressaltar que a live de Roberto foi ao ar menos de 24 horas
depois da apresentação global da One World: Together at Home. Com curadoria de
Lady Gaga, a megaprodução reuniu nomes como Paul McCartney, Rolling Stones, The
Killers, entre tantos outros e foi transmitida no horário nobre das maiores emissoras de
TV norte-americanas, integrando também a grade do canal pago Multishow no Brasil.
Roteirizada, produzida e editada, a One World - uma realização da Organização
Mundial da Saúde (OMS) com a ONG Global Citzen - elevou o novo formato à condição
de “super live”, estimulando no Brasil o que ocorreu nos Estados Unidos. Lá, não só as
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emissoras de TV decidiram transmitir o programa, como também patrocinadores resolveram associar suas marcas ao evento num momento complexo e delicado da economia
global, como fizeram a Pepsi Co. e a IBM.
Até então, as lives brasileiras estavam ocorrendo de maneira quase espontânea,
movidas pelo isolamento social decretado no País. Impedidos de trabalhar, artistas brasileiros encontraram em suas redes sociais, como o Instagram e o Youtube, um novo
“palco”, transferindo o vaudeville diretamente para os lares de seus fãs. Foi assim que,
em 28 de março, Gusttavo Lima, ídolo do sertanejo, realizou da cozinha de sua casa uma
apresentação que durou mais de cinco horas, sendo considerada a primeira live do Brasil
em tempos de covid-19.
A live, assistida naquela noite por mais de 750 mil fãs, seria rapidamente superada
pela performance de outros artistas sertanejos, como Marília Mendonça, que reuniu em
sua live no início de abril mais de 3,3 milhões de espectadores, uma audiência absoluta
muito maior do que boa parte do que canais de TV abertos no Brasil vêm obtendo em
horário nobre, segundo dados recentes do Ibope Kantar.
De certa maneira, o novo formato auxiliou que ao menos uma pequena parte da
classe artística musical conseguisse sobreviver ao cancelamento de seus shows em 2020
ao mesmo tempo em que divulgavam campanhas de solidariedade que, muitas vezes,
procuravam arrecadar doações para técnicos e produtores culturais que estão em situação crítica por não estarem trabalhando devido à pandemia.
Em um intervalo de poucos meses desde que a pandemia chegou ao Brasil, marcas
poderosas se apropriaram deste novo formato, elevando as lives ao mainstream. Tal situação é atestada em iniciativas como o do Circuito Brahma Live e também do Grupo
Globo que promoveu lives não apenas como a de Roberto Carlos, mas também de artistas pops como o DJ Alok e Ivete Sangalo.
Saideira
No final de maio de 2020, as lives do Brasil Covid se viram envolvidas em polêmicas
e deram sinais de queda de audiência. Enquanto o pioneiro Gusttavo Lima teve uma representação aberta contra ele no Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), devido ao excesso de consumo de bebidas alcóolicas numa live
patrocinada por uma cervejaria e exibida pelo Youtube, outros artistas - muitos sem ne-
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nhum cachê ou incentivo - seguem se apresentando simplesmente para manterem contato com seus fãs.
Durante esse período, por exemplo, a cantora carioca Teresa Cristina fez mais de
60 lives com duração de mais de três horas diárias em sua conta no Instagram. Tanta dedicação e a escolha de repertórios homenageando figuras memoráveis da música brasileira, como Cartola, Cazuza e Chico Buarque, levou a cantora a conseguir seu primeiro
patrocínio na carreira de uma marca de cerveja.
Já o público começou a dar sinais de arrefecimento na busca por lives, conforme
indicou levantamento do portal de notícias G1 publicado no final de maio de 2020.
Usando entre outros artistas Gusttavo Lima, o levantamento checou que as apresentações do cantor atraíram quase 2,8 milhões de fãs na live de abril e “somente” 1,5 milhão
na de maio. Do mesmo modo, a reportagem informou que formato deu sinais de saturação junto aos patrocinadores já que se transformou em uma das poucas possibilidades
de produção audiovisual em um grave momento da saúde pública.
A primeira crise das lives, no entanto, precisa ser avaliada de maneira mais estratégica para o futuro do entretenimento num mundo pós- confinamento. O formato poderá ser usado tanto por grandes majors do entretenimento internacional quanto por
pequenas produtoras locais como forma de realização de shows de artistas musicais de
todos os gêneros. Também pode abrigar patrocínios, como pode ser realizado com a
cobrança de ingresso para o acesso a apresentações pela internet. Tudo isso, somado à
possibilidade de shows presenciais quando a pandemia acabar.
A live se tornou a nova caixa de música do mundo pandêmico, o vaudeville que se
assiste de casa e faz esquecer, ao menos temporariamente, a aspereza de um mundo às
voltas com uma doença complexa e altamente contagiosa.
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REFERÊNCIAS.
ARAÚJO, Vicente de Paula. A Bela Época do Cinema Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1985.
BERGAN, Ronald. ...ismos – para entender o cinema. São Paulo: Globo, 2010.
BITTENCOURT, Lucas. A Arte na Mecânica do Movimento. São Paulo: Sesi, 2011.
GOMES, Paulo E. S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
LINS, Flávio. Uma Aventura chamada Tupi: os primeiros anos da TV brasileira. Rumores, São Paulo, Jan-Jun.
2013. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/download/58935/61918>. Acesso em
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LORENTZ, Bráulio; ORTEGA, Rodrigo. Um mês de lives... de Gusttavo Lima no churrasco à Ivete de Pijama:
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mentos-iconicos.ghtml?fbclid=IwAR0TXlK33BZ6YncSuG_5WO7nxXCDdmaMFr600BRvtORqTBElcrxmXxYxug>. Acesso em 28 de abril de 2020.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas; Papirus, 1997.
PORTO, Walter. Com Stones e McCartney, festival de Lady Gaga eleva lives a patamar histórico. Folha de S.
Paulo, 18 de abril de 2020. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/com-stonese-mccartney-festival-de-lady-gaga-eleva-lives-a-patamar-historico.shtml?utm_source=facebook&utm_mediu
m=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR3EpW08dlxwjgR5cCS9QAHhnrWl4LEV0nqlhSDz70igaiha1
WTnEk8G5dk>. Acesso em 18 de abril de 2020.
SABADIN, Celso. Vocês Ainda Não Ouviram Nada – a barulhenta história do cinema mudo. São Paulo:
Lemos, 1997.
SARMENTO, Gabriela. Teresa Cristina comemora 1º patrocínio da carreira: “Sou invisível desde 1998”. G1,
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/poparte/musica/noticia/2020/05/30/teresa-cristina-comemora-1o-patrocinio-da-carreira-sou-invisivel-desde-19
98.ghtml>. Acesso em 30 de maio de 2020.
MÁRCIO RODRIGO RIBEIRO
Doutor em Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, pela UNESP, jornalista e ex-crítico de cinema.
Docente dos cursos de Comunicação Social da Belas Artes, Cásper Líbero e ESPM em São Paulo. Contato:
@marciorodrigo (Instagram).
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EVENTOS E TECNOLOGIAS AUDIOVISUAIS DURANTE O
ISOLAMENTO: EXPRESSIVIDADE E EXCESSO DE LIVES MUSICAIS
Fernanda Castilho e Gabrielle Cifell
Introdução
Com a chegada da primeira pandemia do século XXI, provocada pelo coronavírus,
e das políticas restritivas que estabelecem a necessidade de isolamento social, o mercado de eventos sofreu um notável abalo econômico em conjunto com diferentes setores da economia cujas atividades pressupõem a aglomeração de pessoas, afetando toda
a cadeia produtiva deste segmento (produtores, artistas, casas de espetáculo, etc.)
(AIRES, 2020).
O mercado de eventos foi um dos mais afetados pela pandemia, pois possui uma
extensa cadeia produtiva que engloba aproximadamente 50 setores formados, em sua
maioria, por empresas de pequeno e médio porte (SEBRAE, 2015, p. 4), que repentinamente tiveram que interromper grande parte de suas atividades devido ao cancelamento repentino dos eventos. Assim, durante as primeiras semanas de quarentena no
Brasil, verificou-se que os organizadores de eventos, especialmente do campo da cultura, dividiram as suas decisões estratégicas e emergenciais de sobrevivência econômica
entre adiar, cancelarou realizar os eventos pré-agendados e produzir novos eventos,
ambos na modalidade virtual.
Neste sentido, observamos eventos de diferentes tipologias migrarem para o online, apresentando maneiras inusitadas de realizar, por exemplo, reuniões de negócios,
casamentos, peças teatrais e shows, apenas para citar alguns exemplos. Um dos primeiros efeitos observados no mercado de eventos foi, precisamente, uma readequação do
que se entende por “reunião de pessoas”, passando, assim, a haver a ideia de “reunião
mediada de pessoas”, mediação esta realizada, em sua maioria, por meio do uso de tecnologias audiovisuais.
No setor cultural, o então intitulado “mercado de lives musicais” movimentou a
área de eventos de maneira descomunal durante os primeiros meses de isolamento,
pois algumas destas lives disponíveis em redes sociais chegaram a ultrapassar os três
milhões de acessos simultâneos no Brasil, considerado um recorde mundial1. Embora a
1. RIBEIRO, R. (2020) Excesso de lives faz audiência de shows on-line cair durante a quarentena. Disponível em: https://www.metropoles.com/entretenimento/musica/excesso-de-lives-faz-audiencia-de-shows-on-line-cair-durante-a-quarentena
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audiência das apresentações virtuais tenha enfraquecido com o passar dos meses de
distanciamento social, por deixar de ser propriamente uma novidade para se tornar algo
corriqueiro nesse período – para muitos até excessivo – trata-se de um momento singular
do mercado de eventos que merece ser estudado.
Assim, o objetivo deste artigo é realizar uma breve reflexão acerca dos impactos
da crise do coronavírus no mercado de eventos culturais, com destaque para o setor
musical. Como fonte principal de pesquisa, avaliamos um conjunto de 50 notícias publicadas no online2 a respeito das lives musicais transmitidas por meio da tecnologia
audiovisual, cuja seleção foi realizada por conveniência do estudo, sem pretensão de
representatividade ou de análise aprofundada do ponto de vista metodológico. É importante notar que esse artigo trata-se de uma reflexão bastante inicial, tendo em vista
que no momento da concepção deste texto ainda estávamos vivenciando tal crise pandêmica, e, inclusive, em conjunto com as crises econômica e política que já assolavam
o país antes mesmo do início da pandemia.
Isolamento social com trilha sonora: as lives musicais
Um dos efeitos que pudemos observar durante o período inicial da quarentena no
Brasil foi o número expressivo de lives realizadas por artistas de diferentes gêneros musicais. A rapidez com que o mercado organizou suas estratégias e modelos de negócio foi
surpreendente, mesmo considerando que eventos online já ocorriam antes da quarentena.
Neste sentido, surgiram rapidamente projetos de grandes marcas que deram suporte para organização destes eventos online, possibilitando o sucesso financeiro dos
mesmos por meio de patrocínios. A cervejaria Brahma, da Ambev, por exemplo, criou o
Circuito Brahma Live3, que patrocina lives de música sertaneja – um dos gêneros com
maior audiência online (PAGNO, 2020). Percebeu-se, inclusive, que uma das estratégias
foi a associação de determinadas marcas a certos gêneros musicais, de forma a fixar na
memória do público o patrocínio destas lives.
Observou-se também que organizadores de eventos e produtores com experiência
no campo do audiovisual passaram a apresentar alternativas para suprir determinadas
demandas de ordem técnica e que envolvem logística, como o envio, montagem e operacionalização de toda estrutura necessária de áudio e vídeo para a realização de lives
2. Incluindo jornais, revistas e portais de referência nacionais, bem como mídias mais segmentadas.
3. https://mcervejaria.brahma.com.br/circuito-brahma-live
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na casa dos artistas (G1, 2020). Assim, notamos que houve certa ampliação de modos
de produção, transmissão e recepção de eventos.
Por outro lado, com o decorrer dos dias de isolamento, o mercado acabou por
pecar pelo excesso, pois a larga oferta de lives resultou, junto à opinião pública, em
certo desgaste desta modalidade de evento. Alguns artigos da imprensa de referência4
chegaram a satirizar a situação “Na quarentena, o mundo virou uma live” (AGRELA;
CURY e VITORIO, 2020) “Overdose de lives e museus virtuais causam cansaço e vertigem” (LAVIGNE, 2020), questionando o futuro dos eventos neste formato, pois tal excesso resultou na queda da audiência dos shows online ao longo da quarentena
(RIBEIRO, 2020)5.
O que o mercado brasileiro de eventos poderá aprender com este comportamento
do público durante a quarentena, que foi de aproximação inicial, face à novidade, e certo
distanciamento diante do excesso de lives? Cabe aqui uma reflexão acerca do conceito
de eventos em articulação com as tecnologias e as noções de presença física e virtual.
Eventos, sociabilidades e presença online
De acordo com diversos autores (BRITO e FONTES, 2002; GIACAGLIA, 2003;
CESCA, 2008; MATIAS, 2013), o conceito de evento pressupõe reunião de pessoas com
diferentes objetivos, do entretenimento aos negócios, da socialização fundada na tradição, como festas de casamento, passando pelos eventos de apresentação/promoção de
produtos ou serviços, bem como os eventos com propósito acadêmico-científico e entre
outros. Assim, trata-se de um conceito que abarca um extenso conjunto de atividades,
envolvendo também a ideia de acontecimento, que podem ser categorizadas conforme
seus objetivos, por isso a bibliografia indica a existência de tipologias de eventos (BRITO
e FONTES, 2002; GIACAGLIA, 2003; CESCA, 2008; MATIAS, 2013), cuja centralidade do
componente humano e da socialização com presença física em determinado lugar ainda
permanece como condição fundamental, embora a tecnologia tenha possibilitado a substituição de reuniões presenciais por virtuais (FORTES e SILVA, 2011).
Neste sentido, o encontro entre pessoas adquiriu novos significados, na medida em
que a presença física deixou de ser um componente fundamental no caso dos eventos
4. Neste caso, revista Exame e do jornal Folha de S. Paulo, respectivamente.
5. “Somente no Dia das Mães, celebrado no último domingo (10/05), foram realizadas mais de 15 lives, algumas, inclusive, no mesmo horário. Maria
Rita, Zeca Pagodinho, Michel Teló, Anitta, Ivete Sangalo, Leonardo & Zé Felipe e Zezé Di Camargo & Luciano foram alguns dos artistas que fizeram
transmissões ao vivo no YouTube. Nenhuma deles, porém conseguiu atrair a audiência de mais de 1 milhão de views simultâneos.” (RIBEIRO, 2020).
PANDEMIDIA 147
realizados online. Berger (2016), enquanto artista (performer) e pesquisadora, identifica
diferentes modalidades de presença após realizar extensa discussão acerca da concepção da presença na contemporaneidade, principalmente com base nos pressupostos de
Gumbrecht (2010)1. Segundo a autora, pensar em presença no contexto das telas e das
redes sociais, por exemplo, envolve considerar diferentes formas de conexões (entre pessoas) não materiais, pois a ideia de ausência como antônimo direto de presença já não
dá conta das nossas experiências atuais que englobam outras formas de presença (BERGER, 2016, p.43). Assim, temos uma profusão de eventos que abrem mão da presença
corpórea de artistas e público, para dar lugar a outras formas de interação. Assim, surgem
questionamentos acerca do lugar da sociabilidade no online, em espaços culturais de
participação como o YouTube (CASTILHO, 2019), ou o Instagram que têm o potencial de
reunir grandes públicos de forma síncrona, em grandes eventos midiáticos que poderão
então formar, talvez, comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008).
Se as lives permanecerem como opção de entretenimento no mercado de eventos
culturais, como shows, podem gerar certas vantagens, como a ampliação do acesso ao
público, a possibilidade de interação desse com os artistas e a comodidade de acompanhar uma apresentação musical sem sair de casa. Por outro lado, podem resultar no
agravamento da crise econômica da cadeia produtiva atrelada ao setor, como de transportes, alimentação, segurança, limpeza, decoração entre outros. Em termos sociais, em
que medida as lives musicais conseguem suprir as necessidades de socialização inerentes ao entretenimento de multidões? Como os públicos compensaram as interações próprias dos shows, quando estiveram em casa assistindo as lives musicais?
Considerações breves
Depoimentos como o da repórter Natália Eiras no âmbito da realização da matéria
“Balada no Zoom: como é me arrumar para curtir uma festa na minha sala” suscitam reflexões acerca de questões como solidão, socialização e oferta de eventos online. Segundo
Eiras (2020), no início da participação na festa online ela estava tímida, com a câmera desligada, mas ao ouvir a música e observar os demais, adquiriu coragem para mostrar sua
imagem e as luzes que havia comprado para dar ambiência à festa na sua sala.
Por um lado, o conjunto de reportagens estudado apresentou perspectivas positivas no sentido das alternativas encontradas pelo mercado para sobrevivência da área
1 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não pode transmitir. Rio de Janeiro: Editora PUC RIO, 2010.
148 PANDEMIDIA
de eventos como um todo durante a quarentena, nas quais os eventos musicais adquiriram destaque noticioso em virtude da mobilização de grandes públicos. Por outro,
abrem um conjunto de discussões acerca do conceito de eventos e suas formas de realização em contextos inabituais.
Assim, este artigo, devido à sua brevidade e urgência temática, trata-se de um texto
que levanta muito mais questões do que propriamente as responde, servindo, assim, como
mote para pesquisas futuras acerca dos eventos online e o comportamento dos públicos.
REFERÊNCIAS
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Exame, 23. abr. 2020. Disponível em: <https://exame.com/revista-exame/o-mundo-e-uma-live/ Acesso em:
13 jun. 2020.
AIRES, Maurício. Impactos da Covid-19 em eventos e entretenimento. Meio e Mensagem, 7. abr. 2020.
Disponível em:<https://www.meioemensagem.com.br/home/opiniao/2020/04/07/impactos-da-covid-19em-eventos-e-entretenimento.html Acesso em: 13 jun. 2020.
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São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Editora Aleph, 2002.
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Summus, 2008.
EIRAS, Natalia. Balada no Zoom: como é me arrumar para curtir uma festa na minha sala. Uol, 3. jun. 2020.
Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/06/03/balada-no- zoom-comoe-me-arrumar-para-uma-festa-e-curtir-sentada-na-sala.htm>. Acesso em: 8 jun. 2020. Repórter narra sua
experiência de participação em uma festa virtual por Zoom.
FORTES, Waldyr Gutierrez; SILVA, Mariângela Benine Ramos. Eventos: estratégias de planejamento e
execução. Summus Editorial, 2011.
G1. Coronavírus: empresários investem em 'lives' como negócio durante quarentena. G1, 18. mai. 2020.
Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2020/05/18/empresariosinvestem-em-lives-como-negocio-durante-quarentena.ghtml Acesso em: 13 jun. 2020.
GIACAGLIA, Maria Cecília. Organização de eventos-Teoria e Prática. São Paulo: Cengage Learning Editores,
2003.
LAVIGNE, Nathalia. Overdose de lives e museus virtuais causam cansaço e vertigem. Folha de São Paulo/Uol,
17 abr. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/overdose-de-lives-emuseus-virtuais-causam-cansaco-e-vertigem.shtml>. Acesso em: 4 jun. 2020.
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Gauchazh, 22. mai. 2020. Disponível em: < https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-elazer/musica/noticia/2020/05/cantores-sertanejos-dominam-ranking-das-10-lives-com-maior-audiencia-no-
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RIBEIRO, Raquel Martins. Excesso de lives faz audiência de shows on-line cair durante a quarentena.
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SEBRAE. Turismo de negócios e eventos. Boletim de Inteligência. SEBRAE, dez. 2015. Disponível em:
http://www.bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVOS_CHRONUS/bds/bds.nsf/fc664c6f5670e0c36bd
14c8831dc659a/$File/5848.pdf. Acesso em 29. jun. 2020
FERNANDA CASTILHO
Pós-doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Doutora e Mestre
pela Universidade de Coimbra (Portugal). Professora do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza
(Fatec) e do curso Especialização em Produção de Conteúdo Audiovisual para Multiplataformas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ex-coordenadora do Grupo de Pesquisa Ficção Seriada da Intercom.
Membro do LabArteMídia ECA/USP. Investiga temas ligados ao audiovisual, novas tecnologias, gênero e mídia.
GABRIELLE CIFELLI
Mestre e Doutora em Geografia pela Unicamp, com doutorado sanduíche no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra. Licenciada em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho -UNESP - Rio Claro. Atua como docente há mais de 20 anos com experiência profissional como professora
de Geografia no ensino fundamental e Médio e no Ensino Superior. Desde 2013, é professora concursada da
Fatec Barueri e da Fatec Itu, ministrando disciplinas no curso Superior de Tecnologia em Eventos. Atua como
pesquisadora na área de Geografia, Turismo, Patrimônio Cultural e Eventos.
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MAIS UM ENSAIO QUE
PODERIA SER UMA LIVE
Fernando Cespedes
O novo normal que a pandemia da covid-19 inaugurou inclui regras de etiqueta
como cumprimentar-se com toques de cotovelos e atitudes que rapidamente se instalaram no nosso dia-a-dia, como tomar banho com as compras assim que se chega do mercado. No trabalho, as reuniões que poderiam ter sido e-mails estão finalmente se
tornando e-mails. Alguns comportamentos, como sair só para o estritamente necessário
e sempre usando máscaras, são comuns a todos (ou pelo menos deveriam ser). Já outros
emergem dos desafios individuais diários de cada confinada como pequena estratégia
de tornar o confinamento menos desagradável.
À parte de toda a tragédia e severidade da situação global, a privilegiada parcela
da população que pode - de dentro de seus casulos - assistir à instalação do novo normal
como se fosse uma nova série do Netflix adota pequenas táticas para driblar as limitações causadas pela pandemia. Entre nossas mazelas está o isolamento social, cujo remédio estamos encontrando, em partes, na mídia digital. Olhe para os lados: quantas
pessoas você vê? E quantas telas? Tomando minha sala como amostragem, a proporção
é de 1 para 4: minha namorada, uma TV, um laptop, um monitor e um celular. Sem contar
o Kindle.
Fazia parte do meu antigo normal almoçar com a família quase todo domingo. Era
praticamente o único momento da semana no qual eu me dedicava totalmente à eles,
diferente do meu irmão mais velho, cujo antigo normal incluía ligar para minha mãe diariamente perto da hora do jantar, entre o jornal e a novela. Com os almoços de domingo
suspensos sem previsão de volta, a pequena tática adotada por nós foi transformar a ligação diária entre o mais velho e minha mãe numa chamada de vídeo com os 3 filhos.
Além dos 4 principais, o elenco de apoio inclui tias (que passam a quarentena com
minha mãe) e sobrinhos, filhos do mais velho. Primos, cunhada e namorada fazem aparições esporádicas. Cachorros e TVs fazem a trilha sonora.
O telefone toca, é uma chamada de vídeo no WhatsApp. Ainda destreinados e sem
tanto traquejo, eu e o mais novo abrimos espaço para as personagens principais: o mais
velho e minha mãe. Uma dupla que - ao telefone ou na vídeo-chamada - está azeitada
com anos de experiência diária de interação à distância. Já divididos nos 4 quadrantes
PANDEMIDIA 151
da tela, o roteiro é seguido à risca: todos bem? Bem. Fulano? Bem. Beltrano? Tá bem
sim. Sicrano? Bem também.
Entro em cena perguntando se minha mãe desceu para caminhar no térreo, seu
exercício diário, ela desconversa perguntando sobre os cardápios do jantar. Falamos um
pouco sobre a pandemia, mas não muito, se não a audiência cai.
O mais novo é pego por minha mãe olhando para outra tela: é minha deixa pra
perguntar o que ele está jogando, provavelmente algum jogo de estratégia em tempo
real. Emendo perguntando a ele novidades do trabalho, um projeto de desenvolvimento
de testes mais baratos para detectar a covid-19.
Se meu irmão joga, eu escrevo ou preparo aulas. Minha mãe e o mais velho não
fazem multitasking, como protagonistas da chamada são responsáveis por manter a reunião ativa: notícias sobre política, alguma anedota curiosa sobre os sobrinhos. Alguém
que passa ao fundo vira instantaneamente um convidado especial.
Me dou conta que não estou em um encontro familiar comum, estou em uma live.
Venho participando de outras lives desde o começo da quarentena: 2 ou 3 aniversários
com tentativas caóticas de sincronizar o parabéns a você; uma mesa de pôquer aos sábados com amigos em 3 fusos horários e as aulas que sigo dando como professor de
comunicação na pós-graduação.
Sim, o novo normal inclui a transformação de professores do mundo inteiro em
youtubers, influenciadores digitais tanto quanto musas fitness e blogueiros. Participei,
inclusive, de uma live sobre como fazer lives dedicada aos professores da Universidade
na qual leciono. Acostumados a décadas de sala de aula, muitos tiveram dificuldade em
operar a plataforma de transmissão ao vivo disponibilizada. Desconfio que - entre educadores - esta seja a regra.
Segundo a UNESCO1, só 13% dos professores de educação básica dos países da
OCDE têm menos de 30 anos de idade, o que me faz imaginar que muitos terão dificuldades em adaptar seus métodos de ensino ao novo normal. E, para cada um dos que
não se adaptarem, haverá dúzias de alunos entediados ou dispersos na outra ponta. Isso
se tiverem meios técnicos de acessar as aulas, já que outro relatório da OCDE sobre
transformação digital aponta que só 15% dos lares brasileiros têm conexão fixa de
banda larga.2
1. UNESCO, 2019.
2. OCDE, 2020.
152 PANDEMIDIA
É sabido que crises - de quaisquer naturezas - catalisam processos já em curso na
sociedade. É fato também que as transmissões ao vivo já vinham ganhando força e espaço na mídia ao longo da década que está para terminar. No jornalismo televisivo,
vimos o papel do âncora - antes o centralizador da informação - tornar-se o de um mestre
de cerimônias que, em sua fria bancada de estúdio, conecta repórteres em diversas locações. Estes sim os verdadeiros responsáveis por - ao vivo e in loco - deixar o espectador a par das novidades. Matérias escritas em sites não informam mais a data da
publicação, e sim a data da última atualização.
A melhoria na qualidade de câmeras e microfones, o aumento da oferta de banda
larga, o barateamento do acesso à internet e - por que não - a crescente dificuldade de
locomoção nos grandes centros urbanos são alguns dos fatores que impulsionaram o
crescimento do ao vivo ao redor do mundo. As principais redes sociais do mundo - Facebook, Instagram e Youtube - permitem transmissão ao vivo gratuita aos seus usuários
já há alguns anos.
Na onda das lives em redes sociais fui contratado, em 2012, pelo YouTube para
produzir transmissões ao vivo na América Latina. À época, a estratégia da plataforma
era comprar direitos de transmissão ao vivo de vários segmentos, além de permitir à
marcas lançarem suas próprias lives. Com isso, precisavam de uma equipe na região.
Dei consultoria na área técnica e criativa e produzi transmissões de todos os tipos: festivais como o Rock in Rio e o Lollapallooza, mesas-redondas com craques durante a Copa
de 2014, a transmissão mundial do Carnaval de Salvador, dezenas de shows, entrevistas
e eventos corporativos no Brasil, Argentina, Chile e México.
Durante minhas semanas de treinamento, na sede do YouTube em San Bruno, Califórnia, auxiliei a produção da live da lives, a transmissão que até hoje detém o recorde
mundial de audiência simultânea: em Outubro de 2012, mais de 8 milhões de pessoas
se conectaram para assistir ao vivo o paraquedista Felix Baumgartner saltando literalmente do espaço sobre o deserto do Novo México, nos EUA.
Recentemente, foi divulgado que a sertaneja Marília Mendonça bateu o recorde
de audiência de uma live com mais de 3 milhões de espectadores. Na verdade, este é o
recorde para uma live musical. O RedBull Stratos - nome dado ao projeto de queda livre
- mantém o recorde geral3. De qualquer forma, é sinal dos tempos que uma cantora cantando por cima de uma base de karaokê da poltrona de casa tenha atraído um número
de espectadores na mesma escala de um projeto que teve orçamento de mais de 20
3. Guinness World Records, 2012.
PANDEMIDIA 153
milhões de dólares, envolveu marcas globais como RedBull e GoPro (que acoplou 20
câmeras na cápsula e no traje espacial do paraquedista), contou com a consultoria de
veteranos da NASA e quebrou – além do recorde de audiência – a barreira do som, que
Felix ultrapassou em mais de 100 km/h ao saltar da estratosfera.
Nos anos seguintes, com a demanda pelas lives crescendo no YouTube, o dinheiro
vinha de carona, fazendo com que mais engenheiros da empresa fossem alocados para
desenvolver a plataforma. Acompanhei a chegada de cada vez mais funcionalidades às
lives: a inclusão de mais de uma câmera, a opção de rewind, a possibilidade de salvar o
conteúdo para assistir depois (o tal vídeo on demand), a escolhas entre câmeras pelo
próprio espectador, o vídeo em 360º, entre outras.
Com o tempo, a possibilidade de transmitir ao vivo foi chegando a cada vez mais
gente. Em 2012, só os principais canais de YouTube do mundo podiam transmitir ao
vivo. Era preciso ter um mínimo de centenas de milhares de inscritos no canal ou gastar
uma verba publicitária na casa dos 6 dígitos para que fosse liberada a transmissão ao
vivo. Esse limite caía a cada novo boletim de atualização da ferramenta. No final de 2013,
o pré-requisito de inscritos no canal ficou tão baixo que - se acontecessem naquela
época - as lives diárias comandados por meu irmão mais velho pra discutirmos os cardápios do jantar com minha mãe já estariam aptas a rodar no YouTube.
Lembro que nas visitas técnicas às locações (no antigo normal era possível fazer
lives de outros lugares que não a própria casa) eu respirava aliviado quando descobria
que havia conexão por fibra óptica no lugar. Quando não tinha fibra, era importante
que houvesse ao menos um grande estacionamento ao lado da locação. Nesse caso, o
sinal teria que ser mandado para o espaço - em sentido contrário ao do salto do Felix
- até um satélite que o redirecionaria de volta ao ponto de entrada na rede de distribuição do YouTube. E o estacionamento? Era para o caminhão que transportava a antena gigante que usaríamos para mandar o sinal da live. Tudo pra garantir a estabilidade
e a qualidade nas transmissões. Afinal, havia muito dinheiro, audiência e expectativas
em jogo.
Corta para o novo normal. Em twitch.tv/thegoatchick acompanho todos os passos
da vida de um grupo de cabras anãs nigerianas. A criadora, Erika Hopkins, transmite a
vida das cabras em tempo real - 24 horas por dia - com 12 câmeras. 3 das câmeras estão
ao vivo enquanto escrevo: uma mostra jovens cabras em torno de um bebedouro, a segunda, cabras deitadas ao lado de um cercado de metal. A terceira, em destaque, mostra
154 PANDEMIDIA
uma cabra sendo ordenhada por uma mulher que presumo ser Erika. O 'Show de Truman' caprino é transmitido globalmente sem a ajuda de satélites ou caminhões.
Se cabras não for o seu lance, talvez xadrez seja: em twitch.tv/chess24 você assiste
Mestres certificados pela Federação Mundial de Xadrez enfrentando reles mortais e comentando os jogos em tempo real. Tento acompanhar alguns lances da partida ao vivo
mas, como se os sotaques dos enxadristas - um russo e outro de algum país nórdico não fossem suficientemente difíceis, eles ainda falam em código morse - como se jogassem batalha naval. Descubro na Wikipedia que se trata da 'notação algébrica' do xadrez, usada para descrever jogos sem precisar do tabuleiro. Desisto.
Ambas as lives acontecem no Twitch, plataforma que - pelo menos até o ano passado - ainda não estava entre as 10 mais acessadas no Brasil. Pelo andar da carruagem,
aposto que no ranking pós-quarentena ela já terá ganho algumas posições. O Twitch é
uma rede social dedicada à transmissões ao vivo, foi comprada pela Amazon em 2014,
cujo dono, Jeff Bezos, tem uma fortuna maior que o PIB de Angola ou Marrocos, países
com mais de 30 milhões de habitantes cada. Jeff é o único dentre os maiores bilionários
do planeta a ficar ainda mais rico durante a pandemia. Parte dos bilhões adicionais vêm
do crescimento da audiência no Twitch que, no final de abril, lançou uma área da plataforma exclusiva pra e-sports (o novo normal acelerou a já corrente transformação do
vídeo game em 'esporte eletrônico').
Parece fazer bastante sentido tentar roubar a audiência dos principais campeonatos esportivos do mundo, já que muitas das estrelas do esporte mundial estão muito
ocupadas com o próprio Twitch, desafiando outros atletas em competições de FIFA20,
NBA 2K20, jogos de estratégia ou de tiro em primeira pessoa. Os duelos entre atletas
profissionais contribuíram para o total de 3 bilhões de horas de transmissões ao vivo assistidas na plataforma no primeiro trimestre deste ano4.
Como já fiz muito pão durante a quarentena, concedo a mim uma conta de padeiro: 3 bilhões de horas de lives assistidas no primeiro trimestre, um bilhão por mês,
guarde este número. Se a parcela da população mundial com acesso à internet era, em
2019, de 57%5, e o mundo tem 7,8 bilhões de habitantes, temos algo em torno de 4,5
bilhões de pessoas conectadas no planeta (arredondando pra cima, pois o dado é de
2019). Continue comigo: se no primeiro trimestre do ano assistiu-se a 3 bilhões de horas
de transmissões ao vivo, hoje, dia 15 de maio, já somamos mais 1,5 bilhão de horas ao
4. Streamlabs, 2020.
5. We Are Social, 2019.
PANDEMIDIA 155
total, afinal estamos exatamente na metade do segundo trimestre do ano. Chegando
ao ponto: 4,5 bilhões de usuários de internet no mundo e 4,5 bilhões de horas assistidas
de transmissões ao vivo em 2020. Pra cada ser humano com uma conexão de internet,
uma hora de cabras anãs nigerianas sendo ordenhadas em tempo real, russos fugindo
de um check mate inevitável ou, talvez, a Marília Mendonça cantando descalça na sala
de estar.
Aprendi em uma live na qual dois psicanalistas discutiam a ascensão das lives que
a live é uma forma de recriar o contato social, a sensação de proximidade perdida durante o afastamento. Sendo o ser humano um animal social, privar a si mesmo dessa socialidade é algo que chega com alto custo associado. O stress, a ansiedade e o aumento
no número de pesadelos relatados em várias pesquisas6 ao redor do mundo são indícios
de que os esforços necessários para achatar a curva de contágio cobram um preço no
bem-estar até mesmo de privilegiados que - como eu - assistem o número de vítimas
crescer diariamente do conforto de seus sofás.
As lives - dos sertanejos e seus patrocínios de cerveja; dos chefs de cozinha e suas
receitas já não mais secretas; dos astros da música agradecendo aos profissionais de
saúde – parecem remediar um pouco as mazelas deste novo normal. Não há como saber
o quão presentes as lives se manterão no nosso dia-a-dia quando a competição de bares,
cinemas, academias, salas de aula e restaurantes retornar. Nem há tempo para divagar
sobre isso agora: o celular treme, é meu irmão mais velho no WhatsApp, o mundo está
prestes a ganhar mais uma live.
6. National Geographic, 2020.
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REFERÊNCIAS
Guinness World Records - Felix Baumgartner: First person to break sound barrier in freefall. Disponível em
www.guinnessworldrecords.com/records/hall-of-fame/felix-baumgartner-first-person-to-break-soundbarrier-in-freefall/
National Geographic - The pandemic is giving people vivid, unusual dreams. Disponível em
https://www.nationalgeographic.com/science/2020/04/coronavirus-pandemic-is-giving-people-vividunusual-dreams-here-is-why/
OCDE - Going Digital toolkit. Disponível em goingdigital.oecd.org/en/countries/bra/
Streamlabs - Streamlabs & Stream Hatchet Q1 2020 Live Streaming Industry Report. Disponível em
blog.streamlabs.com/streamlabs-stream-hatchet-q1-2020-live-streaming-industry-report-9630bc3e0e1e
UNESCO - World Teachers' Day 2019: fact sheet - Disponível em
unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000370921
We are Social - Digital 2019: Global internet user accelerates. Disponível em
wearesocial.com/blog/2019/01/digital-2019-global-internet-use-accelerates
FERNANDO CESPEDES
Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) com
estágio de pesquisa na Divisão de Literaturas, Culturas e Línguas da Universidade de Stanford. Membro dos
grupos de pesquisa Sense & Sound (Universidades de Stanford e Princeton) e MidiaSom (CTR-USP). Trabalhou
em diversas áreas do Google e YouTube entre 2009 e 2015. É professor de Pós-Graduação da Universidade
Anhembi Morumbi e criador do podcast Ser Sonoro, um dos lançamentos do ano do Spotify.
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Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
CAPÍTULO V
SINTOMAS EM REDE
AT R AV E S S A M E N TO S E ( D E S ) E N CO N T R O S
FISCAIS DE QUARENTENA EM REDE: REFLEXÕES SOBRE O
USO DO INSTAGRAM, NO BRASIL, COMO VERIFICADOR DE
CUMPRIMENTO DO ISOLAMENTO SOCIAL ASSOCIADO À
PANDEMIA DE COVID-19
Thayla Bicalho Bertolozzi
Introdução
Seja para fotografar um novo destino turístico, compartilhar sua jornada rotineira
ou investir na captação de clientes em nome de uma marca comercial, o Instagram, enquanto rede social digital, tem se mostrado promissora, diversificada e com funcionalidades que tornam a ferramenta cada vez mais completa para seus usuários.
Em meio à Pandemia de covid-19 vigente em grande parte do mundo (VALENTE,
2020), entretanto, a plataforma adquire outros aspectos: influencers (grandes "celebridades" da Internet que, divulgando seus cotidianos, viagens, experiências de maquiagem
e outros, obtêm sucesso suficiente para "influenciar" seus seguidores a adquirirem tal
produto ou agirem de determinado modo) que, outrora, difundiam suas férias em um resort no exterior, agora, enfrentam a transformação da aplicação que, diante das limitações
impostas pelas recomendações de isolamento social no Brasil e em outros países, precisam se reinventar para criar outros tipos de conteúdo que respeitem tais restrições.
Tal mudança, contudo, não ocorreu somente no mundo dos ciberfamosos: usuários
"comuns" também parecem estar se adequando a uma nova realidade. Todavia, nem
todos os influencers, assim como nem todos os demais usuários, têm cumprido as orientações acerca do isolamento: este projeto objetivou, portanto, mencionar alguns casos
de descumprimento que fomentaram revoltas nos mais diversos seguidores e, sobretudo, compreender se, agindo em rede, outros internautas têm agido como forma de
protesto e demonstração de sua indignação perante o não-cumprimento de outros.
Ademais, destaca-se que, embora um pequeno survey informal tenha sido aplicado
em formato de enquete na própria plataforma, e que alguns dos dados obtidos tenham
sido mencionados e utilizados para suscitar reflexões acerca do tema, este não é um trabalho intencionalmente estatístico.
Contudo, ainda que de modo mais ensaístico, é importante ressaltar que recorrer
à revisão de literatura, em metodologia bibliográfica, também possibilita um maior apro-
160 PANDEMIDIA
fundamento no universo do tema, corroborando para a hipótese desta autora de que,
afinal de contas, é quase impossível estar na rede sem estar em rede - ou seja, é extremamente complexo dissociar comportamentos humanos nas redes sociais digitais das
teorias de redes sociais que permitem, no âmbito acadêmico, realizar uma análise estrutural dos fenômenos que acontecem no ciberespaço - um ambiente inédito e, ao
mesmo tempo, um modo de comunicação originado em meio à conexão sistêmica de
computadores ao redor do mundo e que compreende, ainda, todos os seres humanos
que o utilizam e o mantêm (LÉVY, 1999:15:16).
Redes
...De pescar, de proteção, de computadores, de trabalho, de estudos, de sociabilização e digitais. Todas as redes parecem ter alguns pontos em comum: nós e laços, que
e entrelaçam e entrelaçam seus componentes sem que sejam, no entanto, necessariamente iguais – há "laços fortes" ou weak ties, fracos e que podem fazer com que seus
elementos assumam diferentes papéis (KADUSHIN, 2012).
Conectados à Internet, argumenta-se, aqui, que talvez sejam mais imperceptíveis
as barreiras que separam e/ou distanciam os músicos de seus fãs e as celebridades de
seus seguidores. Todavia, tais distanciamentos podem ser observados de forma mais nítida nas redes presenciais: no trabalho, a hierarquia entre chefe e funcionários costuma
ser mais facilmente constatada, assim como a hierarquia entre um aluno e um professor
universitário. Mesmo nesses universos, porém, tais elementos das redes (profissionais e
acadêmicas, por exemplo) ainda têm o potencial de assumir diferentes papéis, ainda
que ao mesmo tempo, no que Beggs, Haines e Hurlbert (1996), assim como Kadushin
(2012:36), denominam multiplexidade.
Não é algo muito distante, na verdade, do que pode ser notado, se observado com
mais atenção, na Internet. No próprio Instagram, na realidade, é possível perceber que
seguidores apaixonados por determinado artista se sentem, frequentemente, à vontade
para tecer comentários (positivos ou não) acerca do mesmo em seus perfis oficiais e verificados. As barreiras para interações parecem mitigadas e, não raro, há o estabelecimento de uma sensação de proximidade, intimidade e conexão entre a celebridade que,
até então, poderia ser vista como "inatingível", e o usuário "comum" da plataforma.
É, assim, que se afirma que é praticamente impossível dissociar o estudo das
redes sociais do estudo e da análise das redes sociais digitais. Afinal, segundo alguns
PANDEMIDIA 161
autores, as ações humanas são sociais e dependem de "objetos sociais ou culturais no
seu ambiente", sendo estes: "[...] outros atores com os quais estão em interação, símbolos, valores, normas, ou as representações que pertencem ao universo cultural no
qual está mergulhada toda a ação humana [...]" (DA SILVA; FIALHO; SARAGOÇA,
2013:101).
Por conseguinte, é quase impensável compreender tamanha rede virtual de contatos, seguidores, computadores e demais aparatos técnicos e humanos, sem considerar
que aspectos culturais e sociais podem permeá-los. Ao comentar, portanto, no perfil de
uma determinada pessoa no Instagram (sendo uma celebridade ou não), cada um carrega consigo um imaginário de costumes, valores, credos e entendimentos do que é
certo, ético, moral ou não.
Instagram
Usado para diversas finalidades, o Instagram tem adquirido visuais cada vez mais
comerciais em meio a uma pluralidade de marcas que têm tentado fazer com que seus
fãs (futuros e atuais) se associam aos seus "[...] valores, sentimentos e pertencimento a
tribos" (SÁNCHEZ-TORRES; MONTOYA; POTES-ARCE, 2018:23). Sabe-se, no entanto,
que finalidades não-comerciais também obtiveram muito sucesso, progredindo para um
misto de comercialização e conteúdo pessoal compartilhado.
Nesse sentido, destaca-se que, cada vez mais, instagrammers (como são chamados
os usuários do aplicativo) passaram a agir como "[...] líderes de opinião, conectando a
cultura de moda oficial exclusiva baseada em sua individualidade [...]" (LUNGEANU; PARISI, 2018:50). Seja mesclando elementos de moda, seja mesclando elementos políticos,
cada celebridade pretendeu conquistar seu espaço de modo a simular ou, de fato, apresentar, uma autenticidade capaz de fazer sucesso e, ao mesmo tempo, conseguir parcerias e colaborações, novamente, em rede e na rede.
Se, por um lado, busca-se autenticidade, por outro, talvez não tanta autenticidade
assim. Muitos instagrammers, celebridades ou não, são criticados por terem conteúdo
muito "comum", já encontrado em seus próprios cotidianos. Outros, no entanto, são criticados por exibirem apenas uma "rotina perfeita", ideal, comercial e por seu excessivo
"profissionalismo", que "[...] tende a afastar os seguidores para longe [...]" (LUGEANU;
PARISI, 2018:51).
162 PANDEMIDIA
Contudo, as funcionalidades da plataforma permitem muitas outras formas de
ação: causas, movimentos e indivíduos ativistas têm se apropriado dos recursos da plataforma para obter apoio: Severo, Gonçalvez e Estrada (2019) analisam, no caso brasileiro, a atuação, no Instagram, em apoio ao programa "Escola Sem Partido", tendo
concluído que há uma tentativa de "[...] disseminar [...] valores conservadores [...]"(SEVERO; GONÇALVES; ESTRADA, 2019:22), corroborando, portanto, com a hipótese de
que, de fato, é quase impossível dissociar teorias de redes sociais que enfatizam a presença de aspectos culturais e de comunicação do estudo das redes sociais digitais.
Pandemia de covid-19 e isolamento social
É certo que, infelizmente, dada a amplitude da desigualdade no país, a adesão
à "quarentena" é limitada, uma vez que muitos trabalhadores informais e de baixarenda ainda sentem a necessidade de permanecer em seus postos, mesmo quando
conseguem o benefício concedido pelo Governo para lidar com a crise vigente. Além
disso, muitos trabalhadores são essenciais para manter hospitais funcionando, o que
faz com que permaneçam em suas atividades. É importante reiterar que este trabalho
não visa atingi-los ou questioná-los: todas as reflexões aqui postas são, sobretudo,
concentradas às grandes celebridades do Instagram, bem como aos demais usuários
que, tendo condições de ficar em casa e seguir as orientações adequadas, preferem
não fazê-lo pelos motivos mais diversos possíveis, porém não-essenciais, que não são
o foco desta análise.
Finalmente, observa-se que, para aqueles que seguem as recomendações, estar
em um período de isolamento social é exaustivo - podendo, até mesmo, contribuir para
ao desenvolvimento e/ou agravamento de outras doenças e transtornos pré-existentes
que não têm, necessariamente, relação com o covid-19, tais como depressão, transtornos de ansiedade e outros, mas cuja piora se deu justamente por conta das medidas
restritivas necessárias para combater a pandemia (LUZ; BERGER, 2020:2).
Análise final (resultados e conclusão)
Ao analisar os três pontos conjuntamente, e posto que somos seres essencialmente
sociais, não é complexo perceber que o distanciamento físico enfatiza a necessidade de
uma proximidade por outros meios - o que corrobora para que todos busquem maneiras
PANDEMIDIA 163
digitais de permanecer em contato com seus entes queridos, recorrendo a plataformas
como o Instagram.
Contudo, como resultado dessa onda de utilizações, muitos usuários, celebridades
ou não, têm publicado fotos suas em rotinas que contrariam as orientações de isolamento social, provocando a ira, o descontentamento e/ou a desaprovação de seus seguidores que, por sua vez, entende-se que cumprem adequadamente com a sua parte.
Mbembe (2020:3) reitera, atualmente, que é justamente na esfera digital que parecem residir os "conjuntos humanos", a "produção material" e os "seres vivos", mesmo
em meio ao vírus - o que poderia ajudar a explicar o porquê de tais elementos ainda
existirem no âmbito virtual. Mas o que explica, exatamente, a postura dos demais usuários frente aos que não cumprem com a quarentena?
Gráfico 1- Porcentagem de indivíduos que “fiscalizam” outros usuários no Instagram
Fonte: Elaborado pela autora, 2020.
Quando questionados se reparavam no descumprimento do isolamento social, no
não-uo ou uso incorreto de máscara facial e, ao mesmo tempo, teciam algum comentário
ao indivíduo que praticava tais atos (como forma de alertá-lo e/ou repreendê-lo), 21
(34.4%) usuários responderam que "sim", e 11 (65.6%) que "não" (vide Gráfico 1).
Tais resultados explicitam (e suportam a hipótese inicialmente apresentada), por
sua vez, o enorme potencial de ação em rede e na rede ("em rede" no sentido de em
conjunto, embora presencialmente distante, e "na rede" significando "estar em am164 PANDEMIDIA
biente virtual de rede") para disseminar boas práticas de contenção ao vírus e, ao
mesmo tempo, repreender celebridades e usuários "comuns" que têm propagado
comportamentos inadequados que contrariam as recomendações de saúde, dado que,
mesmo grandes influencers têm perdido contratos e seguidores ao divulgar suas rotinas como se fossem iguais ao período anterior à Pandemia: saindo de suas casas, chamando pessoas para festas etc.
Em vez de "cativados" (RAMOS-SERRANO;
MARTÍNEZ-GARCÍA, 2016:106), seus seguidores passaram a se revoltar com tamanho
descaso perante as outras vidas humanas, um fenômeno importante e atual, que contraria a "confiança textual" normalmente atribuída a esses formadores de opinião (DE
ALMEIDA ET AL, 2020:132).
REFERÊNCIAS
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PANDEMIDIA 165
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THAYLA BICALHO BERTOLOZZI
Mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela Universidade de São Paulo (USP). Graduada
em Relações Internacionais pela mesma instituição. Atualmente, pesquisa discriminação e desinformação nas
comunidades brasileiras e estadunidenses de jogos online da Twitch. Além disso, é assistente de pesquisa do
Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro/CEBRAP), atuando em um projeto destinado a analisar a pandemia de covid-19 e as desigualdades raciais. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8434997T1
166 PANDEMIDIA
QUEM CUIDA DE QUEM CUIDA? A REDE DE SOLIDARIEDADE
DE SEGURANÇA DO TRABALHO NO COMBATE E PREVENÇÃO
À COVID-19 NO ESTADO DO PIAUÍ. UMA UTILIZAÇÃO DA
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL PARA O “NOVO NORMAL”
Orlando Maurício de Carvalho Berti
Por que refletir? Como não?
Quem cuida de quem cuida? Esse é questionamento que tem nos incomodado
desde o início do anúncio da pandemia da covid-19 este ano no mundo e, consequentemente, no Brasil. Os incômodos vêm, principalmente, nas interfaces social, acadêmica e pessoal.
Socialmente, por estar atingindo as várias comunidades com as quais temos forte
ligação, bem como a nossa própria comunidade e, praticamente, todas as comunidades brasileiras. Como não se incomodar com algo que atinge o seu semelhante, seus
lugares de atuação, seu lócus de trabalho e ficar de braços cruzados?
Academicamente, por ter impactado não só nossos estudos, mas também a vida
de nosso alunado e das nossas instituições. A nossa universidade está com aulas suspensas há meses e tem gerado um caos na vida de milhares de estudantes de nossa
instituição. Como não se preocupar com o alunado, parte mais fraca do elo educacional, e deixar pesquisas de lado? Ou atrasar uma série de atividades acadêmicas?
Pessoalmente, por ter atingido o dia a dia de pessoas próximas que estão na linha
de frente ao combate da pandemia. Uma delas é minha irmã, que passou meses sem
poder visitar nossa mãe, sexagenária. Ela é profissional de saúde e está na linha de
frente de combate à pandemia. Meses, cuidando de muita gente, contraiu o vírus. Mas
já está recuperada. Por questões óbvias esse isolamento é mais que necessário e tem
atingido eu e minha esposa, reclusos, por obedecermos à risca o isolamento.
Como não se incomodar com tudo isso e não ter uma atitude, entre as várias nos
diversos campos de atuação e do conhecimento?
Também por questões pessoais tivemos a oportunidade de entender mundialmente o que era aquele problema de saúde. A pandemia dava seus primeiros sinais
ao mesmo tempo em que fazíamos nossa viagem de volta ao mundo para comemorar
nossa lua de mel nas primeiras semanas deste 2020.
PANDEMIDIA 167
Este 2020 seria um ano totalmente diferente, não só porque decidimos casar e
fazer nossa primeira volta ao Globo, mas também porque vivenciaríamos o “novo normal”: quarentena, lockdown, home office, isolamento, máscara, aula remota, à distância, virtual, Zoom, Meet ... “novo normal”.
A covid-19, segundo KOPMANS et al (2020), surgiu em Wuhan, China, no final
de 2019, sendo o terceiro tipo de coronavírus a atingir seres humanos neste século.
Ganhou proporção asiática ainda em 2019. No início de 2020 ganhou o status pandêmico após atingir – além da Ásia – a Europa, as Américas, a Oceania e a África. Ela é
pandêmica por atingir praticamente todo o Mundo e ser facilmente disseminada em
um mundo cada vez mais globalizado com viajantes cruzando as fronteiras aos milhões
por dia. “A doença causada pelo novo coronavírus recebeu a denominação COVID19, em referência ao tipo de vírus e ao ano de início da epidemia: Coronavírus disease
– 2019” (CRODA; GARCIA, 2020, p. 1).
Depois da gripe espanhola, até então a maior pandemia dos tempos modernos,
o mundo não tinha parado tanto por causa de um problema de saúde pública. Ainda
em tempos pandêmicos, podemos com certeza dizer que esta é a maior pandemia a
atingir a humanidade em termos de estragos sociais e econômicos.
A pandemia foi declarada mundialmente em 11 de março pela OMS (WHO, 2020)
e tudo praticamente parou no Brasil. Já havíamos retornado, mas tudo mudou, inclusive as nossas pesquisas.
Somos bombardeados diariamente com uma série de informações, verídicas e
não tão verídicas e muitas bem mentirosas sobre a pandemia. Brasileiristicamente falando, caçoamos com a pandemia, mas vemos que ela é séria. Ela matou muito e ainda
tem matado, e bastante gente! Em muitos casos, só nos damos conta de que tudo isso
é real quando atinge alguém próximo. Tive conhecidos que foram contaminados e até
um que faleceu.
Moramos e trabalhamos no Piauí, quantitativamente uma das unidades federativas do País a ter uma menor proporcionalidade de casos e falecimentos por conta da
covid-19. Mesmo assim os casos são preocupantes, pois, bem como em toda parte do
mundo (inclusive a com mais recursos públicos), a estrutura hospitalar não suporta de
uma única vez o atendimento de tantos casos.
Por isso surgiu o questionamento: o que podemos fazer, notadamente no campo
acadêmico, testando nossos conhecimentos, curiosidades, vontade de fazer algo e
168 PANDEMIDIA
contribuir para com o combate à covid-19?
Surgia assim, no meio de abril de 2020 a Rede de Solidariedade de Segurança
do Trabalho no Combate e Prevenção à covid-19 no estado do Piauí, um projeto de
pesquisa-ação, submetida dias depois ao financiamento de Edital Emergencial da FAPEPI – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí para tentar ajudar no combate dessa pandemia utilizando recursos comunicacionais audiovisuais.
Até meados de outubro de 2020, data de finalização deste texto, a Rede continuava ativa e sua existência era garantida também por contemplação de continuação
de trabalhos de pesquisa por meio de Edital de PIBIC – Programa de Bolsa de Iniciação
Científica da UESPI – Universidade Estadual do Piauí, com financiamento de bolsa por
meio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
A Rede
A rede em questão foi proposta pelos professores de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) Evandro Alberto de Sousa (atual vice-reitor da instituição)
e Orlando Maurício de Carvalho Berti (autor deste texto). Ela trabalha em seu conceito
de hub virtual, dado os problemas contemporâneos de exposição e isolamento social.
E tem como matriz comunicacional o audiovisual, utilizando recursos como vídeos, áudios e imagens.
A rede tem a função primordial de trazer, de maneira premente, consequências
práticas no combate à pandemia, abarcando profissionais de instituições públicas e
privadas do estado, tendo caráter especial metodológico nos 12 territórios de desenvolvimento do Piauí: Carnaubais; Chapada das Mangabeiras; Chapada Vale do Rio
Itaim; Cocais; Entre Rios; Planície Litorânea; Serra da Capivara; Tabuleiros do Alto Parnaíba; Vale do Canindé; Vale do Guaribas; Vale do Sambito e Vale dos Rios Piauí e
Itaueira (SEPLAN, 2020).
Justifica-se o estudo dos territórios de desenvolvimento por serem contemporaneamente as divisões estatais e políticas que melhor refletem a regionalidade do Piauí,
inclusive mostrando seus paradoxos e disparidades. Por isso entender cada uma delas
e suas construções sobre o universo dos 224 municípios do Piauí é um ponto a ser levado em conta neste projeto.
A Rede é interessante por tentar popularizar as demandas de segurança do tra-
PANDEMIDIA 169
balho entre os diversos profissionais estatais e privados junto a eles e as próprias comunidades envoltas.
No íntimo, quando os profissionais envolvidos no processo se solidarizam, empatizam e têm um canal em conjunto em que possam falar, exprimir, dar dicas, vivenciar momentos positivos e não tão positivos, podem congraçar-se e haver maior
possibilidade de análise, monitoramento, recomendações, avaliações e mapeamentos
para a construção, reflexão e vivência de manuais e produtos em combate e prevenção
à pandemia no Piauí.
A proposição da Rede não pretende parar somente o projeto de pesquisa, mas
deixar uma herança para combates e prevenções à epidemias e outros problemas sociais, pois atua no que Manuel Castells (2013) chama de redes de esperança. Essas
redes saem dos conceitos somente de interligação de pontos, mas de reverberação e
rapidez de atuações sociais, as chamadas redes sociotécnicas. No caso deste projeto,
de uma Rede de segurança e solidariedade.
O que esperamos da Rede
Esperamos: implementar um hub de divulgação e solidariedade, entre entes públicos e privados para vivência coletiva na feitura de manuais colaborativos de segurança relacionados ao combate e prevenção à pandemia do covid-19 nos 12 territórios
de desenvolvimento piauiense; incentivar a colaboração e a solidariedade via mecanismos virtuais (notadamente WhatsApp e Instagram) com ferramentas audiovisuais
para a troca de expertises e experiências sobre segurança do trabalho entre entidades
públicas e privadas do Piauí para o combate e prevenção à pandemia do covid-19; recomendar entre entes públicos e privados do Piauí – respeitando as regionalidades e
características dos territórios de desenvolvimento – ações coletivas da segurança do
trabalho durante o combate e prevenção à covid-19 no estado e mapear a aplicação
e vivência durante o combate e prevenção à pandemia da covid-19 no Piauí nos territórios de desenvolvimento.
Tínhamos como metas a implementação da Rede no espaço de dois meses (a
contar maio de 2020); a vivência da Rede a partir do primeiro mês, com consequências
práticas, no máximo, a partir do segundo mês; a reflexão coletiva e melhoria, para
construção e reflexão de materiais e produtos de segurança do trabalho, no prazo a
partir do segundo mês; a herança acadêmica e social dos trabalhos da Rede, em ter170 PANDEMIDIA
mos públicos e privados, a partir do quinto mês de implementação dos trabalhos.
Esperava-se, principalmente, os resultados da atuação desse hub a partir de três
pontos básicos: a formação da Rede, o funcionamento da Rede e a herança da Rede.
Para a formação da Rede atuamos no mapeamento dos territórios de desenvolvimento do Piauí; na pré-identificação de possíveis agentes de segurança do trabalho
no combate e prevenção a pandemia nesses territórios de desenvolvimento, com buscas virtuais e por meio de solidariedade de atuações nas redes, vivenciando, via sistema de indicação e de mobilização esses agentes; na potencialização da Rede por
meio do aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp sobre segurança do trabalho para prevenção e combate à covid-19; na potencialização dos discursos, da rede
de solidariedade e de informação via Instagram acerca de segurança do trabalho para
prevenção e combate à covid-19.
O funcionamento da Rede consistiu em: agregação de valores, de troca de mensagens, de informação e, principalmente de uma maior consciência, primeiro entre os
membros de empresas públicas e privadas sobre manuais informais de segurança do
trabalho para prevenção e combate à covid-19; mapeamento dos territórios com
maior e menor abrangência e participação da Rede; debates na Rede, via grupos de
WhatsApp institucionalizados no sentido de troca de expertises locais, regionais, nacionais e até internacionais sobre segurança do trabalho e criação de manual virtual
(via Instagram – @piauisemcovid) para prevenção e combate à covid-19; socialização
dos resultados científica, social e midiaticamente, uma vez que bons exemplos possam
ser inspiradores para outras partes do país e até do mundo.
A herança da Rede permite que ferramentas e expertises ajudem na prevenção
de possíveis novas pandemias e, inclusive, no enfrentamento de epidemias já existentes, recorrentemente presentes nos territórios de desenvolvimento do Piauí e prementes de serem prevenidas, debatidas. Se isso é feito em conjunto, sempre há melhores
resultados.
As principais contribuições científicas e tecnológicas da pesquisa vão desde a reflexão do fenômeno, justificando o próprio Edital em questão, e seus recursos públicos
aplicados, bem como no incentivo a entes públicos e privados do Piauí (e seus respectivos colaboradores), não só em questões de segurança do trabalho durante o combate e prevenção à pandemia, mas também no fortalecimento de redes de
solidariedade e esperança para outras perspectivas atuais, notadamente em consePANDEMIDIA 171
quência à batalha ao atomismo e dos tempos de isolacionismo determinados pelo
próprio isolamento social e as consequências pandêmicas da covid-19.
Cientificamente a feitura de relatórios de pesquisa, da própria socialização dos
materiais em artigo científico, a ser apresentado em eventos e também da feitura de
e-book, por si só já mostram a importância do contributo da proposta ora apresentada.
Passados seis meses da implantação da Rede, foram produzidos quatro artigos –
todos em análise em revistas científicas e o livro “Quem cuida de quem cuida? O Instagram e a rede de solidariedade e informação no combate à COVID-19 no Piauí (Teresina: EDUESPI, 2020)”.
Em termos tecnológicos, testou-se expertises, condicionamentos, perspectivas
de monitoramento via redes sociotécnicas, bem como entendeu-se questões analíticas, recomendativas e avaliativas para a construção de manuais e produtos relacionados à pandemia e a outras problemáticas da saúde e de questões sociais do Piauí.
E o amanhã?
Não sabemos como será. Mas estamos lutando, agindo, ficando em casa, respeitando a quarentena e, principalmente, entremeio a isso, tentando fazer acontecer por
meio da pesquisa, nossa função social e legado para a geração atual e gerações futuras.
Nunca a pesquisa foi tão essencial para a Humanidade quanto agora. A pesquisa
pode ajudar a salvar vidas, a conscientizar comportamentos, a desmontar discursos
inoportunos e errôneos, bem como instigar novos pesquisadores que conseguirão agir
contra essa e outras pandemias.
De resultados preliminares da Rede, que está em processo inicial de vivência,
temos a integração com as redes estaduais e regionais (notadamente nordestinas)
para trocas e divulgações de materiais, notadamente por meio do Instagram com o
perfil: @piauisemcovid, bem como o recebimento de materiais por meio do e-mail:
[email protected]. Foram milhares de mensagens. Suas sistematizações estão
em cursos e, no final do projeto, serão sistematizados em livro.
Outro ação da Rede foi disponibilizar um número para WhatsApp e receber conteúdos de todos os 224 municípios do Piauí, pois precisamos, mais do que nunca, cui172 PANDEMIDIA
dar de quem está cuidando dessa pandemia. Recebemos mensagens de pelo menos
40% dos municípios e a abrangência, como pretendida, de todos os 12 territórios de
desenvolvimento do Piauí.
Tivemos a oportunidade de experimentar linguagens, formas de ver e, principalmente, pensar e atuar em prol do combate a essa pandemia.
Que todas essas lições e aprendizados não tenham sido em vão para a vastidão
do que ocorreu, inclusive não tão positivamente.
Cuidemos! Ajamos!
PANDEMIDIA 173
REFERÊNCIAS
BERTI, Orlando Maurício de Carvalho. Quem cuida de quem cuida? O Instagram e a rede de solidariedade e
informação no combate à COVID-19 no Piauí. Teresina: EdUESPI, 2020.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.
CRODA, Julio Henrique Rosa; GARCIA, Leila Posenato. Resposta imediata da Vigilância em Saúde à
epidemia da COVID-19. Brasília: Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 29, n. 1, 2020, pp. 01-02.
KOPMANS, Marion; MUNSTER, Vicent J.; VAN DOREMALEN, Neeltje; VAN RIEL, Debby. A novel coronavirus
emerging in China – key questions for impact assessment. Massachusetts: The New England Journal of
Medicine, ed. 382, n. 8, 2020, pp. 692-694.
SEPLAN – SECRETARIA DE PLANEJAMENTO DO PIAUÍ. Territórios de desenvolvimento do Piauí – Mapa de
potencialidades. Disponível em: <http://www.seplan.pi.gov.br/mapa_abril19.pdf>. Acesso em:
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WHO – WORLD HEALT ORGANIZATION. Coronavirus disease (COVID-19) Pandemic. Disponível em:
<https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>. Acesso em: 04.mai.2020.
ORLANDO MAURÍCIO DE CARVALHO BERTI
Professor, pesquisador e extensionista do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Piauí (campi de
Teresina e de Picos). Pós-doutor em Comunicação, Região e Cidadania. Doutor e mestre em Comunicação Social. É líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação Alternativa, Comunitária, Popular e Tecnologias Sociais.
174 PANDEMIDIA
REFLEXÕES SOBRE
O MOVIMENTO NA “IDADE MÍDIA”
Helena Araújo
“A vida está no movimento, não está necessariamente no espaço. Se ela se traduz
em espaço, é através do modo como o espaço é apreendido num movimento.” Em uma
entrevista concedida a António Guerreiro, para o Jornal Público, o filósofo camaronês 1
Achille Mbembe propõe uma interessante comparação entre a “filosofia africana précolonial” e a “lógica do mundo digital”: em ambos os casos, o que prevalece é o ato de
movimentar-se, e não o espaço propriamente dito. Enquanto na primeira, “a circulação
é a condição de princípio de toda as dimensões da sociedade”, a segunda tem como
fundamento principal o fluxo de informações e o estabelecimento de conexões em rede.
Mbembe também aponta para uma das inúmeras contradições nas quais vivemos
atualmente: ao mesmo tempo em que o avanço tecnológico permite uma intensa circulação de ideias, imagens, discursos, transações econômicas etc; a possibilidade de movimento não é igualmente oferecida para todas as parcelas da população. “Parece-me
que há, à escala mundial, uma redistribuição completamente desigual da capacidade de
circular, de se estabelecer onde se quer.”
Ainda que a entrevista tenha sido realizada em 2018, essas reflexões se mostram
muito pertinentes no período atual. No que diz respeito ao movimento, seguimos vivendo em uma contradição, uma vez que, devido ao confinamento causado pela pandemia, nossa capacidade de circulação - em termos físicos - se torna cada dia mais
limitada, enquanto que a movimentação no mundo virtual se intensifica exponencialmente.
Além disso, a pandemia escancara a realidade brasileira extremamente desigual se é que essa já não estava suficientemente escancarada. Pesquisas recentes indicam
que a população negra - e pobre - é a que mais morre por COVID-19 no país.2 E isso
certamente não é por um fator biológico, e sim devido às desigualdades sociais, econômicas e raciais enfrentadas por esse grupo, tornando-o assim, mais vulnerável.
Acredito que esse possa ser um bom exemplo do que Achille Mbembe chama de
desigualdade de circulação - tanto física, quanto digital. Afinal, aqueles que podem se
1 Disponível em https://www.publico.pt/2018/12/09/mundo/entrevista/africa-ultima-fronteira-capitalismo-1853532
2 Fonte: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/02/covid-mata-54-dos-negros-e-37 -dos-brancos-internados-no-paisdiz-estudo.htm
PANDEMIDIA 175
manter em casa, protegidos do vírus, são os que possuem respaldo econômico para tal.
Os demais, se veem obrigados a saírem às ruas a fim de conseguir o mínimo sustento.
Existem, nessas circunstâncias, corpos que podem escolher entre se mover ou não, em
contraste com corpos que não possuem a opção de ficarem parados. Ora, a falta da escolha também é uma maneira de cercear o movimento. Há também a limitação desses
mesmos corpos no que diz respeito ao movimento dentro da esfera digital, uma vez que
uma parcela considerável dessa população não possui computadores, nem sequer internet.3 Se, para Mbembe, a vida está no movimento, podemos concluir que quando o
movimento cessa, a vida se interrompe. A morte, portanto, seria a estagnação. Seria,
então, possível afirmar que a enérgica atividade que estabelecemos virtualmente é o
que nos ampara e ameniza esse sentimento de mortificação que permeia em nossos
corpos temporariamente imobilizados? Estariam os corpos periféricos tendo sua condição de vulnerabilidade reforçada, uma vez que a limitação de seus movimentos significa uma supressão de uma esfera da vida?
São muitos os questionamentos que esse período no qual estamos vivendo nos
proporciona e não creio que cabe a mim respondê-los aqui. Gostaria, entretanto, de analisar como, ao meu ver, vem se dando nossa atividade na esfera virtual.
Me parece no mínimo sintomático que nossa presença on-line se torne mais frequente do que nunca, justo no momento em que nos vemos privados do tão aclamado
direito de ir e vir. Devido ao confinamento causado pela pandemia, a possibilidade de
movimentar-se nos parece muito mais viável, fácil e segura através das telas de nossos
computadores, tablets e celulares.
Absolutamente tudo se move dentro da rede. No infinito deslizar da timeline, as
informações circulam livres, leves e soltas. E o tempo de vida de um conteúdo digital se
mede justamente pelo quanto ele é capaz de se mover. Quanto mais ele for repassado
entre uma janela e outra, entre os diferentes usuários e plataformas, mais duradoura
será sua permanência no ambiente virtual - e consequentemente, fora dele.
A contradição se dá no momento em que, buscando compensar a limitação de
uma atividade vital - o mover, somos preenchidos com um cenário nocivo que parece
só ter a oferecer diferentes perspectivas sobre a morte. O fato é que esse cenário
abrange tanto o dentro quanto o fora da tela - afinal, o risco de contágio mora ali na esquina. Por isso, é perfeitamente plausível que se escolha viver a realidade através do
que a mídia nos oferece. Ao presenciar essa conjuntura caótica - que no caso brasileiro,
3 Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/04/com-aulas-remotas-pandemia-escancara-desigualdade-n o-acesso-a-educação-de-qualidade
176 PANDEMIDIA
se configura não só pela crise sanitária que afetou o mundo, mas também por uma crise
política - mediados por um aparelho digital, sentimos um certo distanciamento da atmosfera mórbida que protagoniza o nosso cotidiano atualmente - e que em alguns âmbitos, já estava presente antes, sendo apenas ainda mais explicitada pela pandemia.
Esse distanciamento nos gera uma falsa sensação de controle à medida que podemos
escolher desligar a TV, ou “deslogar” das redes quando nos deparamos com algo que
não nos agrada. E até que ponto não praticamos também uma espécie de autoflagelo
ao dizermos que não aguentamos mais ouvir sobre determinado assunto e ainda assim,
quando o mesmo aparece em nossas telas, hesitamos em desviar o olhar?
A maneira como somos frequentemente bombardeados pelas diferentes nuances
da morte produz em nós uma relação cada vez mais banal com o tema. A atualização
diária do número de óbitos é um exemplo explícito, mas a violência que se instaura tanto
no ambiente público, quanto privado e o oportunismo político no geral, também revelam a mortificação de valores éticos e morais que deveriam ser base para qualquer vida
em sociedade. Nossa estagnação frente essa elevada taxa de mortalidade - física e metafórica - também revela como passamos a viver paralisados, anestesiados por uma equivocada sensação de movimento, que apenas se concretiza no universo virtual. “Falta
vida pra tanta live.”4
Suponho que esse sentimento de estagnação compensado pela possibilidade de
movimentação on-line seja uma característica que se encontre predominantemente na
parcela privilegiada da população brasileira - essa que tem a opção de ficar recluso em
casa e que possui acesso à rede. Os demais grupos sempre tiveram sua mobilidade oprimida e limitada de diferentes formas - e certamente que suas principais preocupações
o momento não são as aqui debatidas, mas sim o que comer no dia de hoje e como
pagar as contas no dia de amanhã.
Então, como podemos usar de nossa condição privilegiada para tentar transformar
essa realidade? Será que um simples compartilhamento de uma hashtag é suficiente?
Será que estamos usando nossos dispositivos tecnológicos e nossas redes sociais para
de fato propor uma movimentação organizada, ou apenas mobilizar intensos fluxos de
compartilhamentos de imagens, textos, discursos e ideias?
Aqui, é importante fazer a distinção entre organização e mobilização, proposta
pelo ativista estadunidense Kwame Ture : enquanto a mobilização seria um evento tem4 Tuitado por @doisMendes em: https://twitter.com/doisMendes/status/1271985724859056140
PANDEMIDIA 177
porário,5 que gira em torno de uma questão específica; a organização seriam ações permanentes, que giram em torno de um objetivo mais amplo. Para Ture, é preciso transformar a mobilização em organização. “Nosso objetivo não é ensinar as pessoas a serem
conscientes, mas torná-las conscientes do seu comportamento inconsciente.”
Acredito que as redes sociais e os novos dispositivos inteligentes possuam um potencial de transformação social, mas creio que esse potencial só será devidamente atingido uma vez que nos tornarmos conscientes do nosso uso inconsciente desses meios.
Para isso, esse tema deve ser muito debatido e frequentemente repensado; do contrário,
essa transformação pode causar mais malefícios do que benefícios.
Compartilho novamente da visão de Achille Mbembe, quando ele afirma que “as
distinções que costumávamos fazer entre o humano e o objeto não são mais totalmente
válidas. Porque hoje em dia não existe ser humano sem sua prótese. Nosso ambiente não
é apenas saturado por todos os tipos de dispositivos tecnológicos. De fato, passamos a
maior parte de nossas vidas vivendo através de telas.” Por isso, qualquer discurso que insista em uma abordagem digamos, “separatista” entre nós e a tecnologia seria uma tentativa inútil de desvincular algo que não pode mais ser desvinculado.6 O que é preciso é
refletir sobre maneiras de tornar esses hábitos de consumo conscientes, e não ausentes.
São os dispositivos digitais que, neste momento, tornam possível a redução do isolamento social, ainda que de maneira não-física. Ultimamente, o exercício do ato social
se vê indissociável do ambiente virtual; e se colocar em sociedade é também uma forma
de se mover. Entretanto, como dito anteriormente, o acesso a esse ambiente ainda não
está completamente democratizado. Ora, se para se colocar em sociedade é preciso se
colocar na rede, estar fora dessa rede é também estar excluído dessa sociedade.
Nos vemos, portanto, frente a dois desafios - dentre os muitos outros que não se
aplicam diretamente ao tema deste texto: reavaliar a maneira como estamos nos movendo dentro do ambiente virtual e discutir ações organizadas que possam aumentar a
democratização desse mesmo ambiente. Enquanto o segundo parece ser algo muito
complexo e até mesmo inalcançável, o primeiro é perfeitamente possível de ser feito
cotidianamente.
Devemos permanecer atentos para que não continuemos anestesiados pela comodidade da movimentação através das telas. Do contrário, esse movimento corre o
risco de estar mais próximo de uma estagnação. Idealmente, o ato de mover-se estaria
5 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=iutMTaHkqao
6 Disponível em http://afita.com.br/outras-fitas-descolonizacao-necropolitica-e-o-futuro-do-mundo-com-achille-mbemb e/
178 PANDEMIDIA
associado ao incessável caminhar em direção à próxima fase; a evolução pessoal e social
que permite que não sejamos os mesmos de ontem; o desenvolvimento; o aperfeiçoamento. Se não é possível ver essa evolução, talvez é porque a qualidade do movimento
seja duvidável.
Do que adianta tamanho avanço tecnológico, se ainda somos obrigados a (re)discutir assuntos tão ultrapassados como “terra plana” e a defender a importância da pesquisa científica, dos direitos humanos e das instituições democráticas? Do que adianta
um fluxo tão intenso de - supostas - informações, se essas muitas vezes estão à serviço
da desinformação? Do que adianta um dispositivo capaz de elevar o alcance de seu
usuário a qualquer lugar, se para tantas pessoas ainda lhes são negados direitos básicos,
como saneamento, saúde, educação?
O quão distante está a “Idade Mídia” da Idade Média? Será que realmente estamos
confinados a apenas alguns meses, ou paramos de nos mover já há algum tempo?
HELENA DE ARAUJO ZIMBRÃO
Licenciatura em Cinema e Audiovisual pela UFF em 2019. Suas principais áreas de interesse em pesquisa são
o audiovisual nas redes sociais, cibercultura, educação e infância. Trabalha profissionalmente como editora
de vídeos. Já participou de sets de filmagens independentes, atuando em diversas funções.
PANDEMIDIA 179
CAPÍTULO VI
PROSA PANDEMICA
POESIA DO EXISTIR ALÉM VÍRUS
Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
INFECÇÃO
João Knijnik
Antes de acordar, naquela manhã de fim de verão, DJ Lomb teve um pesadelo. Ele
sentiu a mão pesada de uma espécie de médium sobre sua cabeça pedindo a desincorporação da alma de um animal. Na fronteira do despertar, um tremeluzir de luz fosca
perpassou sobre sua retina. Algo estava se instalando nele, um sistema operacional ou
um aplicativo mal programado rodando num antigo notebook. Enquanto a mão apertava o seu crânio, a voz insossa do médium em transe insistia que uma lagartixa saísse
do seu corpo. Sentiu muito medo, não desejava contatos com mortos. Ao menos não
era um de sua própria espécie, pensou se consolando. Ser possuído por uma barata, vá
lá. No instante que percebeu a potência do outro insistindo em ficar nele, acordou. Abriu
os olhos e se viu como as antigas TVs sem sintonia, envolto em uma realidade granulada
e perturbadora. Alguma parte sua havia sumido e ele logo saberia qual.
Com o celular de um lado e o tablet de outro, seguiu o contato com o lençol até alcançar os dois aparelhos ao mesmo tempo. Então se desequilibrou e percebeu que seu
corpo tinha arredondado, quase eliminando braços e pernas. Podia se contorcer, revirar
de lado a outro da cama. Depois que testou esses movimentos, ficou observando pequenas protuberâncias crescidas e esponjosas, inacreditavelmente elásticas a ponto de
se tornarem tentáculos. Nas pontas, ventosas aderiam facilmente a qualquer superfície.
Seu irmão mais moço, no quarto ao lado, assistia uma aula online. O professor abordava
noções básicas de álgebra, ontem tinha sido português, orações que se subordinavam,
que se confundiam, que se apossavam das outras. O ouvido profissional de DJ Lomb
deu um salto e grudou no lado oposto à janela e pôde ouvir com perfeição a voz aguda
divagando sobre fórmulas. Talvez não fosse exatamente audição. Era uma outra sensibilidade. Não podia mais chamar aquilo de ouvido, nem cabeça, nem boca, nem braço.
Poderia, quem sabe, furar a parede, mas se conteve. Os olhos se dissiparam nas centenas
de sensores, era possível manter a imagem mental das coisas, das cenas, num turvo incessante, sensação que lembrava alguns barbitúricos que tomou na adolescência.
Já há alguns meses não podia sair de casa e estava impedido de trabalhar como
DJ. A pandemia tinha eliminado comemorações e eventos. Sem renda, sem perspectivas
imediatas, ele se distraia criando clipes e trilhas para festas imaginárias e compartilhava
182 PANDEMIDIA
numa rede social. Já não se comunicavam com palavras. Imagens e sons pareciam criar
uma outra linguagem, com diálogos, sentimentos, emoções. O tédio se confundia com
a alegria de estar ali e se saber visto e ouvido, sem palavras, sem a desgastada língua.
Mas naquela manhã, bem cedo, o corpo se tornou sua principal preocupação Ele tinha
sofrido uma mutação. Tudo indicava que, ao invés de ter contraído a doença, ele tinha
se transformado no vírus hoje aclamado como um destruidor eficiente, capaz de acuar
a espécie humana de volta às suas cavernas. Ficou rolando na cama com estes pensamentos. Melhor nem sair do quarto. Pensou na mãe que não voltou do hospital, mais
um número estatístico da pandemia e que seguia corroendo a espécie humana já há
meses. Reviveu o drama da internação, da espera por notícias, da impossibilidade da
despedida, do velório breve e do enterro sem rito. Ela, que amava os Beatles e os Rolling
Stones, que gostava da vida mais que qualquer um naquela família, tinha sido a primeira
a partir, depois de dias de angústia, de espera daquela melhora nunca viria.
A voz do professor de matemática chegava abafada, sintetizada e Dj Lomb mentalmente inseriu uma melodia árabe sinuosa, vinda de um imaginário minarete. Zapeou
por vários canais da memória ou da imaginação, uma flauta vinda de um poço bem
fundo, uma TV ligada num programa de auditório, um ataque de abelhas num filme de
terror. Sabia que não devia entender sua condição, o esforço não valia a pena. O instinto
de se dividir em células, a função principal do vírus, já se anunciava, ao mesmo tempo
que a mente ainda segurava sinapses humanas, imagens já sem nitidez, traços de narrativas se embolando umas às outras. Agora seu corpo dava outras respostas a perguntas
que ele nem tinha ainda feito.
E as horas se passaram. O pai se levantou um pouco mais tarde e abriu o notebook
na mesa da sala. Já tinha estabelecido uma rotina. Ele lia as notícias nos sites preferidos,
levantava e ia até a cozinha, fazia o café sempre acompanhado de um pão de forma com
requeijão, uma fruta e voltava ao notebook. Conversava com o chefe sobre as demandas
do RH da empresa, estava cada dia mais difícil mantê-la. De 67 empregados, apenas 8
permaneciam. As tabelas matinais de Excel diminuíam. 7 páginas iniciais desidrataram
para 2 apenas, mantendo esforçados profissionais, moradores de apartamentos de no
máximo 2 dormitórios e que agora se espremiam todo dia, com crianças super excitadas
e um tédio opressivo. No apartamento de 3 quartos ainda era possível se suportar, faziam esforços de convivência, mesmo que cada um vivesse no seu mundo. O pai percebeu que seu filho não tinha vindo tomar café, o que sempre acontecia antes ou depois
dele, nunca juntos, e mandou uma mensagem com uma frase supostamente conferida
PANDEMIDIA 183
a Clarice Lispector. Uma mensagem de voz, tentando uma conexão que degelasse as
barreiras imaginárias entre eles.
O celular emudeceu numa das ventosas, sem Dj Lomb perceber. Ele divagava sem
desespero, num grau diferenciado de melancolia. Pensou que o apartamento tinha três
vezes mais telas que moradores e que em alguns momentos todas poderiam estar ligadas, o que sempre gerava um incômodo, um cruzamento de falas, um caos que não existia quando a família conversava. Houve um tempo que assistiam futebol juntos,
comentavam as crises da política e uma que outra fofoca. Agora quase se limitavam a
mensagens virtuais, dicas sanitárias e alguma anedota visual. Um estudava, outro trabalhava, um terceiro divagava por sons e imagens e a quarta integrante tinha emudecido
para sempre. DJ Lomb manteve a mente ocupada com algumas lembranças triviais, raciocínios pouco úteis, aleatórios, talvez seja essa transformação. Tentou retomar os clipes
e as trilhas, cansou logo, navegou por redes sociais a esmo, como se andasse numa
grande avenida sem rumo. Zapeando, assistiu um telejornal coreano, depois uma “live”
de um DJ amigo, uma rave em algum lugar do leste europeu. Por volta das13 horas, o
irmão se aproximou da porta, o chamou para o almoço e ouviu uma voz diferente, um
gemido meio trinado, como uma agonia histérica. Dj Lomb disse apenas que estava sem
fome. A voz estranha o surpreendeu, era dele mesmo, emitiu um grunhido de insatisfação e ficou atento às reações.
O irmão chegou à mesa intrigado com o som que ouviu. A TV ligada no telejornal
esmiuçava os efeitos da pandemia e do isolamento. Gráficos, tabelas, relações pouco
precisas; saia das aulas online confuso. Tinha criado o cotidiano de dormir toda a tarde,
estudar à noite, e ir dormir tarde, para acordar cedo, irritado e com sono, de manhã
cedo. Muitas vezes esquecia do banho. Certos dias comia em exagero, outros esquecia
de se alimentar.
Dj Lomb não estava com fome. Talvez nem tivesse mais esta necessidade com o
novo corpo. Foi tomado por uma vertigem em se saber atingido de uma forma tão
pouco usual de transformação, nunca divulgada, até onde ele sabia. Ouvia tudo que
acontecia na sala. Se aparecesse lá na sua condição especial, o pânico tomaria conta.
Pensou em chamar apenas o irmão. Lembrou do último inverno, de vê-lo namorando
outro garoto, o mal-estar que se seguiu, a conversa que teve com os pais logo depois
num tom de denúncia, relutando em aceitar a revelação não tão surpreendente. As mais
diversas piadas homofóbicas passaram por sua cabeça, todas que contou na mesa, que
abriram feridas de descontentamento. O pai reprovava o filho mais moço por esta es184 PANDEMIDIA
colha, a mãe reprovava o mais velho por exalar preconceito. O irmão desatava a chorar
num desabafo falando em rejeição e suicídio, vergonha que o afligia e a vontade de afirmar seu desejo, insistia que precisava de apoio. O irmão que agora pensava na cena se
manteve calado. Abriu a rede social de mensagens e viu dezenas de xingamentos homofóbicos que ele gostava de compartilhar, inclusive com o irmão. Não soube processar
arrependimento, talvez esse sentimento nem existisse mais. Alguém já viu um vírus arrependido? Desculpa, senhor, seu pulmão me pareceu tão confortável.
Num instinto ainda humano, imbuído de sua antiga mutação, DJ Lomb ligou a câmera do celular. E a afastou o mais que pôde. Testou vários ângulos e movimentos. O
formato do corpo o humilhou de início, uma ponta de asco, e alguns minutos depois,
de orgulho pela estrutura complexa. Gravou uma imagem parada e não gostou. Descartou e testou plano-sequência, ficou melhor. Um movimento de aproximação era mais
adequado, oferecia uma percepção tridimensional completa. Enviou a imagem recém
produzida por chamada de vídeo. O pai e o irmão perceberam que a receberam no
mesmo momento. Por que esta mensagem se ele estava ali a poucos passos? Mais uma
piada. Mais alguém com alguém do mesmo sexo, deboche do veado e do chupador.
Mais um linchamento político de alguém que se deve detestar a partir de agora. Aceitaram a chamada quase ao mesmo tempo e demoraram a compreender o que estava
acontecendo. Podia ser uma brincadeira, um alerta, um meme, um bug do android. O
pai foi levantando da mesa, pediu ao filho para esperar sentado e se aproximou do
quarto. A hipersensibilidade de Dj Lomb ouviu os passos se aproximando. A porta foi
aberta. O ser reproduzido na tela do celular jazia sobre a cama. O pai aguardou alguns
segundos, assustado, sem entender ainda, desviou o olhar e recuou, fechou a porta e
voltou à sala, sentou na mesma cadeira e encarou o filho mais moço parado ali, petrificado. Nada foi dito por um longo tempo. Então o jovem tornou a ver o vídeo que tinha
recebido e decidiu, por mensagem, estabelecer a comunicação. Quem é você agora?
Ainda sou seu irmão. Mas não te reconheço. Nem eu me reconheço, sou uma coisa, um
outro ser, um vírus talvez. O que posso fazer por você? Pense o que pode fazer por você
e o pai. Melhor não chegar perto. Não queremos te abandonar, a mãe não te abandonaria. Ela já se foi, não lembremos dela agora. Isso é impossível. Não há alternativa, na
dúvida, saiam.
Nas horas que se seguiram, um cheiro forte emanou do quarto. O pai e o irmão
debandaram de casa, fugidos cada um para um lado, buscando uma rede wifi e um colchão que seja. Uma fuga dolorida para os dois, sem entender aquela transformação, um
PANDEMIDIA 185
ser da estatura de um homem adulto à procura de um hospedeiro, se grudando pelas
paredes, uma célula avantajada que em poucas horas foi perdendo a consciência humana e ganhando outra, desconhecida, ainda assim consciência. DJ Lomb pipocava pelo
apartamento vazio, deixando um rastro de pestilência. Suas ventosas procuravam por
matéria orgânica, sem hospedagem não sobreviveria. Um dos tentáculos produzia trilhas
exóticas, sons enviesados, expandidos e contraídos, às vezes ofegantes, e compartilhava,
as ventosas digitando com fúria no seu notebook. Por uma estranha conexão, as redes
sociais perceberam a novidade, o sangue reciclado por células se desdobrando e morrendo em loopings sucessivos, a matéria orgânica transformada gerando imagens e sonoridades impensadas. A celebração da agonia em riffs vibrantes de dor e morte.
Muitos fãs urravam de êxtase, se contorcendo tentando reproduzir movimentos,
mas era impossível, e quanto mais se concentravam naquela experiência coletiva, tanto
mais ela criava um fosso entre eles e a nova forma daquele que já foi chamado de Dj
Lomb. As ventosas giravam por discos imaginários, contínuos. O som do vírus. A ascensão dele, em autoestima elevada, um ser temido e amado, mais que um santo e menos
que Deus.
Na média, um leito, uma tela. Assim era nos hospitais de campanha. Os que ainda
mantinham a consciência, como que recebendo um comando externo, acessavam os
canais daquele audiovisual tóxico. Era como se o general chamasse seu exército de seres
compenetrados a se espalhar por gargantas e pulmões. Era para eles que vírus Lomb
emitia seus grunhidos, exalava seus timbres mágicos. Não se sabe ao certo se isto apressou o fim das agonias, ou se trouxe alívio aos doentes. O vírus estava distante de uma
noção de bem-estar e apenas pretendia seguir sua escalada. Uma célula em vias de se
multiplicar, evoluindo por banda larga, um quase-bit, um extra chip, que fez o suposto
dono do planeta encarar sua própria face, mediado por infinitas telas.
JOÃO KNIJNIK
Mestre em Comunicação Social na UNIP (2015). Roteirista cinematográfico de documentários antropológicos,
como “Sal nas veias - o povo do mar em Acaraú” (2020) e também de vídeos 360°, como “Beco 360” (2019).
Professor de cursos de cinema e literatura. Diretor e roteirista do vídeo POLACO LOCO PACA com os poetas
Paulo Leminski, Retta e Alice Ruiz. Já tem contos publicados em várias antologias como “@normal” (2020). O
conto “Personagens” foi premiado no 4° Concurso de Contos da cidade de Lins (2014).
186 PANDEMIDIA
FRAGMENTOS
Rafaela Bernardazzi e Vanessa Paula Trigueiro
[Nota ao leitor]
Esse é um pequeno guia de libertação da leitura.
Estamos todos confusos, aprisionados e paradoxalmente livres na pandemídia.
Não espere desse texto uma linearidade.
Cada fragmento pode revelar um universo, uma linguagem, um formato.
Se permita.
01.
Em época de pandemia somos obrigadas a nos reinventar. Muitas vezes me pergunto o
que fazer com tanto estímulo visual que recebo diariamente nas mídias. Como dar conta
de tantas referências? Não tenho certeza sobre o tempo que estou vivendo. Como posso
me reinventar? Posso me reinventar? Devo me reinventar? Essa reinvenção trata de melhorarmos a produtividade que tantas vezes esmaga nossa saúde mental? A reinvenção
leva em consideração processos de ansiedade? Não tenho respostas. Sei que preciso
me reinventar em tempos de pandemia e sei que preciso fazer isso logo. Sinto que estou
ficando para trás ao ver fervilhar tantos projetos, ideias, filmes, ensaios, editais. Preciso
me reinventar. E preciso fazer isso antes que a pandemia acabe. O objetivo talvez seja
um só: estar preparada para um futuro incerto, que como todo futuro, ainda não existe.
02.
À parte de todo o privilégio de poder escrever sobre isso do topo do meu sexto andar
de um condomínio classe média, em meu iPhone número qualquer S. Aliás, reconhecer
o lugar de privilegiado é o mea-culpa preferido do hipster engaiolado. Comecei a pensar sobre o conteúdo do dentro em referência ao externo. Não criamos o que nos é interno, fazemos uma referência ao externo, contemplado pela nossa construção
individual. Temos dentro uma representação do fora que internalizamos. Nossa casa é,
em si, elementos externos que escolhemos internalizar, manter por perto. Seja como
PANDEMIDIA 187
forma de construirmos uma imagem de quem somos ou de lembrarmo-nos de quem
cremos ou queremos ser. Esses pensamentos me vieram muito forte na leitura visual que
fiz do quadrinho Solitário, de Chabouté. Essa percepção de quem somos é guiada por
quem? A diminuição de selfies nesse período de distanciamento físico é notável. Por
quê? Onde estão essas faces? O que não queremos mostrar sobre o dentro? Estar dentro nos impede de nos colocar fora? A circulação da imagem também é referência a circulação dos nossos corpos? O que é meu corpo senão sua imagem e sua circulação?
03.
Lembro de estar assistindo televisão há alguns anos e ver uma campanha publicitária do
Canal Futura. Ao final, o narrador me confessou: "não são as respostas que movem o
mundo, são as perguntas". Deve ser isso. Refletindo sobre a pandemia me sinto tomada
por perguntas. Minhas, dela e dela, e dele e nossa, e deles, com eles, sem eles.
04.
Abra o jogo, 04.
Pai, eu saí com metade do condomínio.
05.
Professora da rede pública federal, mulher branca, com pós-graduação, sem filhos. Não
tenho grandes preocupações na quarenta. Tenho comida, papel higiênico, máscaras de
tricoline, álcool etílico 70%, uma boa conexão de internet, iPhone, televisão com Chromecast, Playstation, Netflix, livros, tapete de yoga e ar condicionado. Como vinha dizendo, não tenho grandes preocupações na quarentena. A minha maior briga é comigo
mesma. Preciso arranjar um jeito de tornar útil a minha existência em tempos de isolamento social.
06.
Precisava produzir. Eu sei que já discutimos isso antes, mas ver tantas pessoas na ânsia
de produzir me causa uma constante sensação de inutilidade. No Instagram, o número
de conhecidos, semi conhecidos e desconhecidos - se é que há tal categoria na internet
188 PANDEMIDIA
- que estão fazendo yoga, pão, treinos funcionais, lendo livros, escrevendo artigos e participando de lives torna esses dias fisicamente desgastantes. Pular tantos stories de pessoas produtivas vai além da exaustão mental.
07.
Esbarrei no primeiro obstáculo: o isolamento criativo é muito bonito quando não se divide a casa com alguém. As pessoas tem tempos e consumos de mídia próprios. No
ápice da limpeza, o som que ecoava pela casa era de um podcast de notícias. "E daí?".
Busquei os fones de ouvido e fui para o quarto escrever ao som de um site que toca
ininterruptamente sons de chuva. Pensar que para me acalmar tenho que recorrer a um
site com barulhos da natureza que poderia estar ouvindo na natureza me atormenta um
pouco, mas nenhuma contradição moral que me impeça de realizar esse consumo midiático curioso.
08.
Entrei num curso on-line. Acho que pode ser uma boa forma de passar o tempo. Sempre
fui boa aluna. Consigo me engajar nos estudos e ainda repensar minhas práticas em sala
de aula. Faço exercícios para fixação de aprendizagem e penso de novo em como melhorar minhas práticas em sala de aula. Estudo a gramática do cinema e adivinhem:
penso mais uma vez em como melhorar minhas práticas em sala de aula. Sinto falta da
sala de aula. Sinto falta de uma rotina com os estudantes, com os amigos e até com os
colegas de trabalho que eu nem gosto tanto assim. Como será o nosso retorno? No que
se transformará aquelas quatro paredes outrora conhecidas como sala de aula?
09.
Uma notícia imageticamente repetitiva. Foto de pessoas em máscaras. Fotos de ruas vazias. Fotos de pessoas com respiradores. Fotos de laboratórios. Diferente de outras tragédias, na qual as imagens chocam e causam uma reação imediata, as imagens que
circulam na pandemia são redundantes.
PANDEMIDIA 189
10.
"Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte"
(SONTAG, p. 25). Essa frase ganha outras proporções depois que se vê o ensaio fotográfico do corpo de Susan sem vida realizado por Annie Leibovitz. Uma das narrativas
visuais mais emocionantes a que tive acesso. E aos prantos, o texto de Susan Sontag foi
ressignificado para mim. "Uma imagem produzida por uma câmera é, literalmente um
vestígio de algo trazido diante da lente, as fotos superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido e dos entes queridos que se foram. [...] a fotografia
adquiriu um imediatismo e uma autoridade maiores do que qualquer relato verbal para
transmitir os horrores da produção da morte em massa" (SONTAG, p. 25). Longe de mim
querer refutar ou questionar Susan, até mesmo porque seu discurso é localizado temporalmente, mas estamos em um momento em que o relato verbal tem retomado o seu
poder. Está acima da irrefutável imagem. Em meio a tantas postagens, as que mais
atraem minha atenção são as de relatos. Ouvir o outro voltou a ser o trânsito da informação, mesmo que temporariamente. Em um período midiático de imagens redundantes, cabe ao verbal retomar seu lugar de poder.
11.
Ei. Alô. Você que vive aí dentro de mim, acorda! Não voltaremos melhores. O capitalismo
se reinventa, a mercadoria continuará sendo essencial, as vidas continuarão sendo números, a escola continuará sendo conteudista e você voltará praquelas quatro paredes
fechadas com ar condicionado.
12.
Gramática do cinema. Cinema clássico. Direção no cinema narrativo. Progressão dramática. Progressão imagética. Cenas. Twitter. WhatsApp. Instagram. Tiktok. Pandemídia.
13.
Coragem, a vida precisa de coragem.
190 PANDEMIDIA
14.
Algoritmos. Estou isolada fisicamente pela quarentena, mas sou permanentemente isolada pelos altos muros das mídias que me cercam.
15.
abrir os olhos > procurar o smartphone pelo chão, onde provavelmente caiu durante a
noite > desbloquear a tela com minha digital, uma das poucas simulações de privacidade que me restam > buscar o Instagram > me atualizar sobre possíveis tragédias que
podem ter acontecido enquanto dormia > perceber que estou com fome > levantar da
cama > ligar o computador > preparar o café da manhã > ligar o PS3 > entrar na conta
da Netflix > comer o café da manhã vendo alguma série de comédia > ir para o computador > abrir o e-mail > responder e-mails > procurar um podcast > realizar ações do
trabalho > perceber que estou com fome > preparar o almoço na hora que deveria estar
lanchando > ligar o PS3 > conectar na conta da Netflix > almoçar vendo a mesma série
de comédia > entrar no WhatsApp e finalmente responder as várias mensagens de como
estou na quarentena > perguntar para vários amigos como eles estão na quarentena >
desligar o PS3 > procurar outro podcast > lavar a louça do café e do almoço > voltar
para o computador > assistir as aulas do curso on-line > fazer as atividades do curso online > desligar o computador > buscar uma aula de yoga no YouTube > fazer Yoga >
buscar o treino que o personal enviou pelo WhatsApp > fazer o treino do personal > entrar no app de meditação > tomar banho > deitar na cama > pegar o smartphone > entrar no Instagram > travar a tela do smartphone > dormir > derrubar o smartphone no
chão >
16.
Desfrutamos dos mesmos privilégios, ocupamos o mesmo sexto andar, dialogamos com
os mesmos alunos e colegas de trabalho, praticamos a mesma aula de yoga e nos inscrevemos no mesmo curso. Mas não somos uma só e eu posso provar: fazemos diferentes perguntas.
PANDEMIDIA 191
17.
~ fora ~ dentro ~ fora ~
18.
Conversas do eu sozinha.
19.
Horóscopo do Twitter: sua semana pode ser de muito fogo no rabo, mas seja forte e
continue em casa. No amor, continuará com seu dom de ser trouxa.
Horóscopo do Instagram: a retrogradação de vênus faz com que sua energia se movimente de forma mais introspectiva. Mercúrio também se encontra em retrogradação e
pode afetar o funcionamento dos equipamentos da casa.
Horóscopo do jornal impresso: cuide de sua energia e não deixe que ela caia. Não desanime agora que seus objetivos estão quase todos em suas mãos. A cor para essa semana é violeta.
20.
Entrevistadora: Qual foi a última compra que realizou?
Entrevistada: Comprei uns quadrinhos pela Amazon.
E: Não se sente mal de estar ajudando a destruir o mercado literário?
E: Não exatamente.
E: O que você tem feito nos dias de quarentena?
E: Assisto séries, faço receitas de Rita Lobo, testo filtros no Instagram, executo trabalhos
burocráticos, pratico yoga no canal da Pri Leite, faço receitas de Rita Lobo, leio os quadrinhos que comprei, acompanho as lives no final de semana, faço chamadas em vídeo,
faço receitas de Rita Lobo, escuto podcasts, crio playlists no Spotify, participo de reuniões on-line, faço receitas de Rita Lobo...
E: Você tem acompanhado as notícias do país diariamente?
E: Infelizmente.
192 PANDEMIDIA
E: Minha mãe me encaminhou no WhatsApp uma notícia falando que o coronavírus
pode ser curado se a pessoa tomar uma tigela de água de alho recém fervida em jejum.
E: E você confia nessa informação?
E: Não acredito, mas tenho alho na geladeira. Acredito na ciência, mas tenho quem me
garante? Quem me garante que não estamos em uma distopia?
E: E existe um futuro diferente dessa distopia?
E: Acho que nós deveríamos pensar mais sobre isso.
E: Nós?
E: Sim. Eu e você. Somos a mesma pessoa, não?
E: Não nos confunda. Sou aqui a figura que traz os questionamentos.
E: Conveniente e presunçosa essa afirmação. Condiz com a sua personalidade. Estar do
lado das perguntas é mais fácil.
E: Para estar no lado das perguntas é preciso ter conhecimento para perguntar. Para
estar ao lado da resposta, basta falar.
E: Mas e se eu quiser mentir, ou parecer inteligente?
E: ...
E: Como acha que estaremos quando isso passar?
E: Responder isso seria concordar que acredito que isso vai passar. O problema não é o
vírus. Ou pelo menos, não o corona. O problema já está ocorrendo há alguns anos. E
não há fim.
E: Qual sua cor favorita?
E: Verde e a sua?
E: Amarelo
Um silêncio constrangedor inundou o espaço inexistente.
Fiquei com sede e segui para a geladeira em busca da solução.
PANDEMIDIA 193
21.
Plano aberto de um corredor de um apartamento de classe média. As paredes e o piso
são brancos e ao longo do corredor há duas portas. Inserts de cenas de partes do apartamento (banheiro, sala, cozinha, quarto). O apartamento é decorado com peças de lojas
de departamento e quadros. Alguém acende a luz. Alguns segundos depois uma mulher
surge no corredor do apartamento tropeçando ao sair de uma das portas.
NARRADORA
Essa sou eu.
A câmera foca nela ainda tropeçando no corredor e congela nesse momento. A câmera se aproxima do rosto dela congelado na tela.
NARRADORA
Bêbada, patética, presa dentro de casa.
Detalhe do rosto dela.
NARRADORA
Só mais uma idiota que anda por aí.
E que faz filmes.
A cena descongela e o corpo dela vai ao chão. A câmera volta a congelar no último
momento antes de seu rosto encontrar o piso branco do apartamento.
NARRADORA
Não, esse não é mais um daqueles filmes que mostram um final feliz.
Não há novo normal.
194 PANDEMIDIA
RAFAELA BERNARDAZZI
Professora no IFRN Campus Natal-Cidade Alta, nas áreas de audiovisual e metodologia científica. Doutora
pelo Programa de Estudos da Mídia, na UFRN. Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual
pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Comunicação Social - Radialismo pela UFRN. Coordenadora do
Grupo de pesquisa COMUNICAL, no IFRN Natal-Cidade Alta.
VANESSA PAULA TRIGUEIRO
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), campus
Natal - Cidade Alta, nas áreas de fotografia e audiovisual. Mestre no Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Mídia (PPgEM) e participante do grupo de pesquisa Marginália - Grupo de Estudos Transdisciplinares em
Comunicação e Cultura e do grupo de pesquisa COMUNICAL. Graduada em Comunicação Social, habilitação
em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
PANDEMIDIA 195
CAPÍTULO VII
ANTICORPOS ARTISTICOS
ARTE COMO ANTÍGENO,
RESISTÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA
Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
PRÁTICAS E PROCESSOS DE UMA VÍDEO-INTERVENÇÃO EM
ESTRUTURAS PRIVADAS DE LAZER NA COSTA BRITÂNICA EM
DIÁLOGO COM ATAQUES INCENDIÁRIOS PRÉ-PANDÊMICOS
Roderick Steel
A pandemia certamente trará uma nova vitalidade à espaços e territórios e, também, uma demanda pela reconfiguração de relações de poder entre a arena pública
e privada. Este relato apresenta, em termos poéticos, notas sobre o processo de filmar
e editar a obra em vídeo BEDECKED (6’40”), junto com frames e trechos da narração
da obra final para comentar sobre inquietações sociais antecedentes à pandemia agravadas e ampliadas pela a situação atual. O filme organiza e problematiza conflitos urbanos que estão reconfigurando espaços privados a partir da criação de um
dispositivo artístico experimental propondo um vocabulário visual. A palavra “Bedecked” em inglês significa o embelezamento de algo, uma ornamentação excessiva. O
título cria um jogo com a palavra em inglês para as áreas privadas (“decked area”) e
como cada locatário pode eventualmente decorar e enfeitar seu “deck”. Filmado em
2018, foi formulado repentinamente durante um profundo estado de curiosidade e
inquietação que surgiu durante uma caminhada na orla de Eastbourne, reduto vitoriano da cultura praiana no sul da Inglaterra. Minha caminhada pelo calçadão e minha
vista do mar foi bloqueada durante centenas de metros por um paredão formado pela
parte traseira de dezenas de cabanas de fibra de vidro nas cores azul e branco. No
outro lado das cabanas, de frente para o mar, um cartaz pendurado numa corrente advertia: “Privado. Este deck é apenas para os locatários das cabanas.” Continuei caminhando pelo calçadão e a situação se invertia: havia dezenas de chalés atrás de um
muro encostado no calçadão. Na frente do muro, ainda no calçadão, bancos indicavam
que o espaço era público. Um cartaz na escadaria que levava aos chalés anunciava:
“Privado. Apenas para o uso de locatários.”
Foucault analisa espaços, territórios e a geografia em termos de sua capacidade
de regulamentar e controlar comportamentos e de afetar a saúde. Ele se interessou
pela ordenação e partição espacial urbana (quadrillage), e no livro “History of Madness”
(1961) ele compara como leprosos foram excluídos e marginalizados nos limites das cidades à mecanismos de "divisão e controle espacial" aplicados durante a praga. Foucault aponta dois problemas espaciais discutidos desde o século XVII. Primeiro, quais
198 PANDEMIDIA
são os perigos do espaço urbano em termos de doenças, revoltas e epidemias? Segundo qual a relação entre espaço e poder? As cabanas e chalés de Eastbourne servem
como emblemas de uma discussão sobre como, historicamente, litorais foram colonizados e apropriados para a recreação de diferentes classes de seres humanos em busca
de benefícios à saúde1 . Na era vitoriana em que os chalés de Eastbourne foram construídos, ricos e pobres viviam distantes uns dos outros na cidade, e essa separação foi
reproduzida no ambiente da praia; evitava-se essa justaposição em prol de questões de
saúde e segurança pública. No Brasil, a linha tênue entre espaços públicos e privados
na orla marítima pode ser observada, mais notadamente, quando condomínios fechados
bloqueiam acesso as praias2. Em Angra dos Reis, estima-se que o acesso a 25 praias tem
sido bloqueado por mansões, resorts e clubes de luxo3. No Estados Unidos, grande parte
dos Estados cobram uma taxa para ir à praia, enquanto bem antes da pandemia por coronavírus, em 2020, diversos países europeus já instituíram cobranças e limites em certas
praias para evitar superlotação. Quem visita praias mundo afora se depara com infinitas
combinações entre público-privado que geram, por sua vez reações adversas e/ou favoráveis. As cabanas e chalés da orla britânica servem como signos potentes dessa apropriação espacial. São objetos que se posicionam claramente entre territórios e
materializam esses conflitos espaciais. Tanto que “BEDECKED” foca numa postura criminosa para problematizar essa dialética de poder que privilegia pessoas e grupos de
pessoas em áreas públicas. Tomou como ponto de partida uma série de incêndios que
destruíram construções privadas na orla britânica entre 2018 e 20194. As ações criminosas – respaldadas pela ótica do filme – postulam uma necessidade exacerbada na pandemia ao questionar processos de exclusão e de exploração de espaços comuns para
fins privados. Não se sabe se uma consequência potencial do COVID-19 será uma aversão generalizada a grandes multidões em lugares como praias ou uma valorização desses grandes espaços ventilados justamente pelo seu uso flexível.
1. Na véspera dessa escrita o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou o relaxamento da quarentena e o aval para a circulação de pessoas em parques, praças e, principalmente, nas praias – “só calçadão para atividades físicas e o mar para esportes aquáticos; nada de ficar tomando
sol na areia.” (Fonte: https://diariodorio.com/crivella-vai-anunciar-relaxamento-da-quarentena-a-partir-desta-segunda/) Acessado em 31/05/20.
2. . Restrições de acesso à praia ocorrem em vários estados do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Denúncias são encaminhadas às unidades do Ministério Público, gerando, em determinados casos, longas batalhas judiciais”. Nota-se também no Brasil uma gradativa apropriação de
áreas cada vez mais significativas das praias por pessoas que cobram pelo aluguel de mesas, cadeiras e guarda-sóis, muitas vezes em parceria com
barracas e vendedores que se instalam nas mesmas porções de areia. (Fonte: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/3558_PRAIAS+PROIBIDAS).
3. Acesso a https://www.ecodebate.com.br/2017/11/28/com-25-praias-privadas-angra-dos-reis-ensina-como-os-ricos-limitam-o-acesso-dos-pobres-ao-mar/
4. Na primeira versão do filme extraí o texto usado nas legendas e narração de boletins postados diariamente na internet por voluntários (conhecidos
como “neighbourhood watch”) que caminham pela orla e trabalham em conjunto com a polícia para prevenir pequenos delitos, e atos de vandalismo. Incluí na integra trechos descrevendo problemas com turistas bêbados, apreensões, e até detalhes sobre um assassinato. As observações
eram mundanas, do tipo: “Concentramos as patrulhas no consumo excessivo de álcool e ao uso recreativo de drogas. Ficamos visíveis nesta área
por algum tempo, mas não encontramos nenhum grupo ou alguém causando comportamento antissocial.”
PANDEMIDIA 199
A estratégia inicial do filme foi criar um confronto crítico com essas estruturas ao
caminhar e fazer um mapeamento audiovisual dos territórios das cabanas e chalés. A
prática de descobrir e definir os limites espaciais entre o público e privado daqueles objetos propiciou a caminhada lenta e constante de uma câmera e um corpo por estes espaços. Havia algo de ritualístico na decisão de filmar algo antes de necessariamente
calcular as consequências de tal ato. Richard Schechner, no artigo “Ritual e Performance”
define ações rituais como comportamentos fixos, norteados por eficácia e resultado
(SCHECHNER, 1982). Estava imbuído em codificar e organizar os espaços através de
uma ação repetida, ou seja, altamente concentrado no ato de revelar o momento, contexto e uso daquele espaço. Também corporificada nessa ação estava a intencionalidade
de montar a “frente & verso” dos objetos observados (cabanas e chalés) em duas telas
horizontais. Como um caçador que cria um circuito para investigar um determinado espaço-tempo. O som dessa caminhada permeia o filme e enfatiza o propósito deste dispositivo ritualístico5.
Era alta-estação do verão europeu e essa atitude corporal frontal, alinhado à intervenção audiovisual naquele espaço específico, provocou um tipo de reação em série de
expressões faciais indignadas. Como nos lembra Richard Schechner, “indivíduos ou grupos usam técnicas teatrais (encenação, caracterização, cenografia, manipulação de recepção) para criar e gerenciar eventos sociais ‘reais’ e mudar a ordem social ou manter o status
quo” (SCHECHNER, 1982, p. 22). A lente da GoPro presencia uma performance cultural
por parte dos locatários das cabanas e a câmera deflagra expressões de irritação com
minha presença. Laura Chase, no seu artigo “Public Beaches and Private Huts” observa:
“Quando os usuários de cabanas de praia posicionam suas espreguiçadeiras do lado de
fora de suas cabanas, eles se movem para o domínio público, tornando-se flaneurs e objetos de atenção dos flaneurs que passam” (CHASE, 2005, p.212). Porém a mera presença
de uma câmera ligada contravém não somente os limites espaciais estabelecidos pelos
tantos cartazes tomados pela palavra “PRIVADO”, mas burla uma regra implícita hoje em
qualquer espaço – público ou privado – em que leis internacionais de direito de imagem
protegem pessoas do olhar alheio. Funda-se ali uma responsabilidade ética com esses
flaneurs privilegiados e o território de suas imagens como bens privados.
5. Evitei entrar no território privado do “deck” e caminhei nas pedras da praia, um espaço já “público”, mas a câmera certamente violou uma fronteira
e capturou o território em termos audiovisuais. Cruzei olhares com as pessoas documentadas, abrindo para a possibilidade de uma eventual troca
e conversa. Tenho muita familiaridade com a cultura britânica, com a necessidade cultural de afirmar privilégios e hierarquias de privacidade. Esperei
um minuto e uma mãe veio em minha direção, e senti que outras pessoas deixaram que ela os representassem. Mas ela quis saber se eu tinha
filmado o filho dela. Eu expliquei que a lente da GoPro servia como uma grande angular e não percebi se o filho estava em cena. Enquanto assistíamos as imagens comentei que estava mais interessado em mostrar a cultura das cabanas do que uma pessoa específica.
200 PANDEMIDIA
O conceito de liminaridade do antropólogo Victor Turner (1974) é útil para destacar
uma zona do “entre” em que assentam as fronteiras cambiantes, onde se destacam o
conteúdo simbólico das atividades e rituais à beira-mar e sua importância na definição
das hierarquias de classe. Laura Chase nos lembra que antes da guerra era muito comum
uma casa ter uma cabana ou chalé correspondente na praia (CHASE, 2005). Quem morava na parte elegante da cidade tinha um chalé na parte nobre da praia, e quem morava
na área menos nobre, uma área mais popular da praia. O Conselho da cidade aprovava
os regulamentos que regiam as cabanas, desde seus nomes (que correspondiam aos
nomes das casas na cidade) às cores das cabanas e estilo arquitetônico. De acordo com
a autora, “o uso e controle dos espaços na praia sempre foram contestados” (CHASE,
2005, p.212).
No artigo “The social life of small urban spaces,” William Whyte propôs que os espaços parecem ter uma capacidade máxima natural, ou carrying capacity, em inglês
(WHYTE, 1980). Para o autor cada espaço tem uma capacidade máxima e indivíduos intuitivamente evitam o espaço se a área chega próxima dessa carga. Existem hipóteses
que sugerem que a crise da covid-19 pode alterar nosso senso intuitivo de qual é o número “certo”. dessa carga. No artigo “The Impact of COVID-19 on Public Space: A Review of the Emerging Questions”, Jordi Honey-Rosés supõe que “Medos de contágio
em espaços fechados podem aumentar a demanda por mais espaços exteriores e com
ventilação melhorada” (HONEY-ROSÉS, 2020, p.6). Cada pedaço de praia torna-se mais
precioso e espaços privados mais contestados.
Alguns meses depois do primeiro corte, já em agosto de 2018, encontrei imagens
das cabanas e dos chalés em chamas no jornal local, “Eastbourne Herald” e procurei no
site do neighborhood watch (Equivalente a uma Associação de Amigos de Bairro no Brasil) para ver se algum membro do grupo havia testemunhado os crimes. Supri a ausência
de qualquer relato sobre o ocorrido com uma série de perguntas sobre possíveis motivações para os incêndios. Inclui no novo corte – e logo retirei – um único relato testemunhal do incêndio: “Aconteceu que eu e sete amigos estávamos em uma caminhada
noturna por Holywell quando vimos o incêndio que acabou sendo uma das cabanas em
chamas, por isso ligamos para os serviços de emergência e eles chegaram e lidaram
com o incêndio de maneira muito rápida e eficaz” (Eastbourne Herald, abril de 2018). A
matéria termina com: “A polícia iniciou uma investigação sobre o incêndio ao lado do
corpo de bombeiros, mas ninguém foi condenado. Novos chalés serão inaugurados no
PANDEMIDIA 201
início deste ano”6. Ataques incendiários são motivados por ódio, revanche, vandalismo,
necessidade de encobertar um crime, e acionados por um desejo de demonstrar e manter poder sobre algo. Porém, e mais significativamente, uma grande porcentagem de
incêndios são motivados por reinvindicações políticas e sociais. A voz do narrador em
“BEDECKED” procura pelo culpado do incêndio e faz perguntas constantes na ausência
de qualquer pista sobre eventuais motivações. Os mesmos jornais que descreveram os
incêndios também divulgaram um aumento no número de migrantes chegando nas
praias perto de Eastbourne. “The Herald” informou que autoridades francesas capturaram mais de 2.700 pessoas que tentavam atravessar o Canal em barcos em 2019, um
aumento 17 vezes maior que 2016. Mais de 1.800 chegaram às costas britânicas e cerca
de 125 foram devolvidas a países europeus. Imaginei as cabanas e chalés em chamas,
iluminando o caminho até a orla como faróis de fogo.
Estava terminando de montar o filme na véspera da quarentena e, ao ler um guia
tático de propagação de fogo e de como os vapores podem percorrer distâncias consideráveis e produzir misturas explosivas, invadir locais entre outros aspectos, comecei a
associar o fogo à covid-19. Neste sentido, a motivação política dos incêndios das cabanas fornecia a alegoria de uma futura reinvindicação política do vírus pela apropriação
de espaços privados em lugares públicos. Essa realização incitou modificações ao desenho gráfico do trabalho. Já na primeira versão as legendas em forma de noticiário
atravessavam a tela, transpondo informações encontradas no jornal para uma fonte digital. Essas legendas eram originalmente apenas em inglês, e cruzavam as duas telas de
vídeo numa faixa preta horizontal, da direita para esquerda. Essa intervenção gráfica
propicia correspondências e comparações entre as divisões presentes no espaço da
praia e o espaço digital do vídeo. Textos de noticiários, fake news, memes e afins nos
atravessam diariamente no território digital das mídias sociais, as vezes de maneira gráfica e escrachada. Essa barra preta também ecoou minha ação invasora nos decks privados, pois eu também cruzei linhas, borrei fronteiras. Além do mais essa faixa preta
restituiu privacidade e anonimato às pessoas filmadas, cobrindo-lhes os rostos enquanto
mantenho uma noção de como ocupam aquele espaço.
Com a pandemia veio a instauração de novos medos e paranoias frente as migrações legais e ilegais, pois diversos governos começaram a sistematizar o fechamento
de fronteiras. Resolvi multiplicar as legendas (inclui o chinês, italiano, espanhol, russo,
6. As informações sobre os incêndios foram encontradas online em duas edições do “Eastbourne Herald”. Matéria sobre 19 cabanas incendiadas
em abril de 2018 https://www.eastbourneherald.co.uk/news/update-investigation-launched-19-eastbourne-beach-huts-burned-down-1034690 e
sobre chalés incendiados em junho de 2019: https://www.eastbourneherald.co.uk/news/beach-hut-destroyed-fire-eastbourne-seafront-960597
202 PANDEMIDIA
etc...) e as legendas da narração dessas línguas atravessam a tela num ritmo constante:
remetem ao vírus, ora ao fogo e o mar que invadem orlas e atravessam fronteiras internacionais, sem diferenciar entre o público e privado. Essas imagens de letras, ideogramas e fontes diferentes cruzam territórios reais e digitais, invadindo telas e construções
da era vitoriana e surgem como intervenções gráficas coloridas expressas por línguas
pertencentes a uma era pré e pós-colonial.
Que padrões espaciais e temporais iremos observar agora em diante, pós-Pandemia? Será que as pessoas irão transformar padrões de uso público e apropriações indevidas e históricas desses espaços por interesses econômicos privados? A pandemia
também pode reforçar as diferenças sociais e de classe no uso do espaço público. Resta
ver se, no Brasil e na Inglaterra, incêndios e revoltas irão se multiplicar em prol da democratização desses espaços.
REFERÊNCIAS
CHASE, Laura. Public Beaches and Private Huts. In “Histories of Tourism: Representation, Identity and
Conflict”. Edited by John K. Walton. Channel View Publications, Toronto, 2005.
CRAMPTON, Jeremy W., C. Flazon, O’Leary, T., Sawicki, J. (eds.), “Foucault and Space, Territory, Geography”:
A Companion to Foucault. Oxford: Blackwell Publishing, 2012.
FOUCAULT, Michel. History of Madness. Routledge. 1961
HONEY-ROSÉS, Jordi. The Impact of COVID-19 on Public Space: A Review of the Emerging Questions, 2020.
SCHECHNER, Richard. From Ritual to Theatre, New York: PAJ Publications. (1982)
WHYTE, W. H. The social life of small urban spaces. Washington, D.C., Conservation Foundation, 1980.
TURNER, V. O processo ritual: estrutura e ante estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
RODERICK STEEL
Formado em cinema nos EUA, com mestrado em poéticas e técnicas pela ECA-USP, onde cursa o doutorado
em Meios e Processos Audiovisuais. Roderick Steel tem participado de exposições e festivais de cinema, videoarte, antropologia visual e arte contemporânea, aliando a pesquisa sobre o pensar e fazer a imagem com
dispositivos que atravessam linguagens e fronteiras artísticas, abordando temáticas que versam sobre o corpo
performático e seu poder de agenciamento. É membro dos Grupos de Pesquisa: Poéticas no Audiovisual (USP),
LabArteMídia (USP) e co-curador do Cine Tornado Festival.
PANDEMIDIA 203
PEÇA 1 | 3*
Anna Lucchese, Marcos Lamego e Roberto D’Ugo
Imagem 01: frame de vídeo. Marcos Lamego - acervo pessoal
Um de nós vasculha uma caixa de fitas cassete. Busca algo. Exercita as mãos. Outro
sonha. Algo sobre constrangimento, sobre lentes de contato e sobre um cara que esconde
e dissimula, mas não engana. O sol nasce e o terceiro de nós debruça os olhos e os ouvidos
na beirada da janela. Objetos que circulam, sem sair do lugar. A serendipidade, uma descoberta ao acaso. As fitas e o som do passado. A escuta do presente encontra aconchego.
As lentes seguem perdidas, o olhar é turvo. A poesia começa a transbordar como água
em um ralo entupido. Ela cristaliza o momento. O tempo segue um fluxo intenso ao redor
dos corpos aprisionados de três artistas, de três pesquisadores.
Artemídia1 é um conceito vivo dentro de um triângulo. Ciência, arte e
comunicação. Trinômio apresentado pelo líder do grupo de pesquisa Artemídia e Videoclip, Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira PEL, para orientar nossas explorações.
Essa é a nossa argila. E agora? A poesia nos faz ver três pintas na pele. Um triângulo imaginário. A luz cria outro triângulo no peitoral da janela. Nosso memorial poético-descritivo vira lápis, tinta e cor. Algo sobre a urgência de refletir nos escapa. Alguém
interrompe uma música que poderia servir para dançar. O sol parte e o triângulo desa1. Para além das artes eletrônicas, o termo artemídia tem sido utilizado também para traduzir uma práxis artística mais ampla e híbrida, plurívoca.
Esse diálogo entre arte, ciência e comunicação está presente em autores como Arlindo Machado (2007) e Baitello Jr. (2018), que abordam a questão
no contexto de uma ecologia da comunicação.
*. Peça criada por Anna Lucchese, Marcos Lamego e Roberto D’Ugo, disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=cXwwqW0Alxc
204 PANDEMIDIA
parece. Era assim tão efêmera a relação que organizava nossas emoções? Seria possível
estarmos sós e conectados pela tecnologia e pela expressão?
A artemídia quer encontrar seu público. A criação artística que nasce da convergência entre arte, comunicação e ciência pede circulação, o encontro com a alteridade
em multiplataformas. A comunicação estabelecida pela obra convergente, de natureza
experimental, não objetiva a reiteração de seu status artístico, a mera troca de sinais, a
persuasão publicitária, a propaganda ideológica; tampouco se satisfaz com a conexão
reconfortante ou a gratificação entorpecedora do entretenimento. Sua natureza é radical,
envolve ressignificações e o desenvolvimento de relações intersubjetivas, a construção
e o compartilhamento de vínculos, vivências. Se não a transformação, o desvelamento,
por meio da experiência estética, de diferentes níveis e configurações de realidade.
As tecnologias eletrônicas e digitais, desenvolvidas segundo princípios de produtividade e racionalidade industriais, despertam no artista contemporâneo o desejo pela
subversão de sua natureza mercantil intrínseca (desse seu programa produtivo e reprodutivo), em favor de potencialidades poéticas insuspeitas. O fazer artemidiático seduzse pela contramão, pelo desviante. A técnica como invenção e expressão artísticas.
Reapropriações, deslocamentos, confluências, tensionamentos de linguagens e de processos, hibridismos: o high tech encontra o artesanal, enquanto as dinâmicas colaborativas emergentes põem na roda novas subjetividades e possibilidades expressivas.
Com as formas tradicionais de arte entrando em fase de esgotamento, a confluência da arte com a mídia (ou convergência,
segundo Jenkins) representa um campo de possibilidades e de
energia criativa que poderá resultar proximamente num salto
no conceito e na prática tanto da arte quanto da mídia – se houver, é claro, inteligências e sensibilidades suficientes para extrair
frutos dessa nova situação. (MACHADO, 2007, p. 27)
Nesse contexto artemidiático, podemos propor uma aproximação com a estética
relacional, de Nicolas Bourriaud, que apresenta uma maneira de ver a arte contemporânea como possibilidade de existência no momento presente, a materialização de um
acontecimento artístico com o que é possível fazer diante do que temos hoje. Em outras
palavras, em uma apropriação da poesia de Leonard Cohen, é o ato de apontar para
uma rachadura na parede e mostrar que, por ali, entra luz.
PANDEMIDIA 205
Nosso Petit Comité, formado por Anna Lucchese, Marcos Lamego e Roberto
D’Ugo2, criou uma peça audiovisual em diálogo com este momento que nos rodeia, limita e transforma: a quarentena devido à pandemia de coronavírus. É um curto ensaio
sobre percepção e sentimentos, mas também uma espécie de revelação sobre relações
e processos criativos de três artistas-pesquisadores: nosso sentir, em suas diferentes
qualidades, em jogo aberto, descobrindo vínculos na distância. Um convite à experiência, à participação. Tempo presente, o instante acariciado, e lembranças possíveis – rastros acenando para outros achados, futuros projetos.
Cada um, em sua casa, produz fragmentos de experiências e acontecimentos em
forma de poesia, imagens, paisagens sonoras e performance. Construímos, então, nossa
colcha de retalhos para aquecer a atenção em uma relação imprevisível, como um vírus.
Essa é a nossa forma de reação e de contribuição artístico-científica diante dos desafios
do momento atual.
Origem e reverberações
Imagem 2: frame de vídeo. Marcos Lamego - acervo pessoal
2. Anna C. Lucchese, Marcos Lamego e Roberto D'Ugo Jr. são artistas-pesquisadores no Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp
- Campus de São Paulo e membros do Grupo de Pesquisa Artemídia e Videoclip liderado pelo Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira PEL. Anna
(
[email protected]) é artista visual, diretora audiovisual e mestranda em Artes. Marcos (marcos. lamego@ unesp.br) é artista- vídeo- fazedor,
mestrando em Artes. Roberto (
[email protected]) é artista sonoro, radialista, doutorando em Artes e também membro do Grupo de Pesquisa
Comunicação e Cultura do Ouvir - Faculdade Cásper Líbero.
206 PANDEMIDIA
Um subgrupo de pesquisa em artes, um coletivo autodenominado Petit Comité,
surge do mútuo reconhecimento de afinidades eletivas, em parte derivadas da formação
e da experiência profissional de seus integrantes. Iniciados nas artes da comunicação,
habituados ao trabalho criativo com ferramentas e ambientes tecnológicos, os três artistas-pesquisadores do Petit Comité pressentem estranhamentos e promovem deslocamentos em processos e procedimentos habituais da mídia. Buscam inspiração no
cotidiano, enxergam mundos possíveis e conexões improváveis, curtem viajar sozinhos.
Perplexidade e angústia: marcas da contemporaneidade. Ansiedade e nervosismo
difusos, que Marshall McLuhan percebeu acentuarem-se com o rápido desenvolvimento
dos meios elétricos.3 Remetendo ao conceito existencialista de angústia e às suas implicações sociais, o pensador canadense, ainda no começo dos anos 1960, pareceu antever a intensificação de aspectos perturbadores na configuração de um ambiente
midiático global (agora ainda mais complexo, com suas esferas virtuais). “Esta é a Idade
da Angústia, por força da implosão elétrica, que obriga ao compromisso e à participação,
independentemente de qualquer ‘ponto de vista’”, dizia McLuhan (1998, p. 19), referindo-se aos impactos envolventes da mídia eletrônica.
Parece evidente que a chamada era da internet tenha também sua face de “vertigem da liberdade”, que as exigentes demandas de um papel imensamente mais participativo e empático propõem ao indivíduo conectado. E é nessa configuração acelerada
que talvez a artemídia emerja como possibilidade de exercício da liberdade – intervenção estética disruptiva a modular qualitativamente a vida. E a internet como janela para
vínculos afetivos, como um abraço possível. O que era líquido se revela também profundo, talvez duradouro, como lastro de nossa humanidade, canteiro de relações interpessoais, estufa de afetos, não apenas no contexto do isolamento social.
E o artista a enxertar solitudes4 na solidão e o prazer em reação ao medo; a experimentar e a compartilhar maneiras de reencontrar Kairós nas encruzilhadas tecnológicas.
Resíduos prometem. O tempo como argila.
Ao mergulhar em referencial teórico e artístico e usá-lo como fonte de inspiração
para nossos experimentos, despimo-nos de uma proposta conceitual, da materialidade
de um objeto estético, do peso das utopias de um futuro movediço e abraçamos a ex3. “Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo
criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos
nervos através dos diversos meios e veículos. (MCLUHAN, 1998, p. 17)
4. Solitude é entendida aqui como a experiência de estar só, uma condição que não está associada a um sentimento negativo, como no caso de
solidão.
PANDEMIDIA 207
periência do presente com todas as contradições que ela pode oferecer. O registro do
aqui e do agora, em cada corpo ao redor, é nossa fonte de dados, catalogado em uma
poética própria, serendíptica, aberta à apropriação de seu fruidor. Mostramos possibilidades de existência, como os artistas contemporâneos sobre os quais Nicolas Bourriaud
reflete em sua estética relacional.
[...] aprender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar construí-lo a partir de uma ideia preconcebida da evolução histórica.
Em outros termos, as obras já não perseguem a meta de formar
realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir
modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade
existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista.
(BOURRIAUD, 2009, p. 18)
Em circunstâncias tidas como normais, o Petit Comité mapeava possibilidades de
colaboração marcadas pelo paradigma do presencial. Andávamos em busca de espaços
para reuniões, quiçá um ateliê compartilhado ou uma galeria para nossa primeira exposição enquanto coletivo. O exercício da arte no espaço público mediado pelas tecnologias digitais era, já há algum tempo, uma constante na expressão individual de seus
integrantes. Nossos encontros presenciais, em cafés, padarias, refeitórios, museus, calçadas, permitiam insights na faixa de pedestres, entre os sinais vermelho e amarelo. Um
grupo virtual no aplicativo de mensagens era, e continua a ser, não só uma extensão desses encontros e discussões, mas uma outra modalidade desse companheirismo em artes.
Há não muito tempo, pensávamos na beleza do convívio presencial, na fruição conjunta e compartilhada de um mesmo espaço. Não em oposição às diversificadas possibilidades de experiência e interação em ambientes e plataformas virtuais, mas como um
necessário contraponto de natureza ecológica. Um recuo consciente da abstração digital
como resgate de certa sensibilidade única, mais densa, plástica: a da pele, do corpo presente, do compartilhamento subliminar de batimentos distintos. Mas o que era principalmente uma alternativa, espaço de ensaio e rascunho, torna-se agora terra firme, ou
seu simulacro, pouco importa, pois a questão agora é de sobrevivência.
Era preciso dar uma resposta, gesto simbólico que justificasse nossa identidade
enquanto grupo. Não mais apenas uma troca de referências artísticas, intelectuais, histórias pessoais compartilhadas a nutrir nossas produções individuais. Não mais uma colaboração pontual, um palpite ou conselho. Um salto de mãos dadas é do que
precisávamos. O tema não podia deixar de ser nossa percepção do momento, da fragi208 PANDEMIDIA
Imagem 3: frame de vídeo. Marcos Lamego - acervo pessoal
lidade, do temor, do absurdo, bem como do suspeito silêncio nas ruas, serenidade artificial incapaz de mascarar o privilégio de um isolamento seguro. Nossas paixões e habilidades seriam mobilizadas, estratégias oblíquas perscrutadas. A contingência do
afastamento físico, o número de mãos envolvidas e o aguçamento de nossos sentidos.
Cada um a seu modo vinha gestando seu registro. Uma live experimental, feita por
um de nós, Roberto, em uma noite de quarentena, contrasta com as performances musicais de celebridades e de anônimos na internet. À celebração da resiliência e da solidariedade, a performance oferece um comentário existencial, um autoexame na escuta
silenciosa, e algo nervosa, de antigas fitas cassetes. Sobressaltos e estranhamentos, o
aflorar de emoções contrastantes na cadência dos botões; sibilâncias e chiados de um
gravador encostado, quase descarte. Em quadro, recortados por um foco de luz: uma
mão, fitas, livros, aparelhos, índices de uma existência. Na solitude criativa, a encenação
ritualística de um solitário personagem, à semelhança do velho Krapp de Samuel Beckett, remexendo seu passado, tirando a sorte. Reconforto no reencontro de uma tocante
canção do deserto. Constrangimento com experiências pueris de rádioarte. Espanto
com uma composição própria, esquecida. Basta.
Não espanta, porém, que algo dessa live tenha encontrado um lugar na colaboração subsequente do Petit Comité. Mais do que um experimento, a transmissão foi uma
descoberta, um processo de criação compartilhado na rede.
PANDEMIDIA 209
Dois textos poéticos de Anna surgem, por meio de sua própria voz, como potencial
elemento estruturante da Peça 1 I 3. Possibilidades. Um relato onírico, imbuído do sentimento de estranhamento, um mergulho no inconsciente alerta, nas viagens da madrugada. E outro fragmento, uma conversa interior, à luz do dia, em um novo contato com
o outro; olhar e pele se encontram, para aproveitar as horas e a vida, que se permite
atravessar a rotina, tradução em palavras de uma peculiar experiência sensorial no espaço doméstico, um convite à exploração criativa do mundo.
Marcos envia imagens que escutam: fachadas, telhados, beirais. Acompanham o
delicado trabalho da luz. Captam a metrópole “no tempo lento da decifração”, evocando
os questionamentos e reflexões de Norval Baitello Jr. sobre a cultura do ouvir.
[...] o mundo da audição, do fluxo lento e da temporalidade do
ouvir e do contemplar. Ambas as operações são também marca
do mundo da leitura, que exige um lânguido ler, um lânguido
movimento do tempo, análogo ao tempo do ouvir. Ouvir requer
um tempo do fluxo e o tempo do fluxo é o tempo do nexo, das
conexões, das relações, dos sentidos e do sentir.
(BAITELLO JR., 2014, p. 145)
Mensageiros dos ventos, outras paisagens urbanas. Compartilhamos o material,
certos de que a arte
[...] não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de
um projeto, produção segundo regras claras ou predispostas.
Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o
modo de fazer. A arte é uma atividade na qual a execução e invenção procedem pari passu, simultâneas e inseparáveis, na
qual o incremento da realidade é constituição de um valor original. (PAREYSON, 1984, p. 32)
Dias depois, em um sábado à tarde, Anna devolve sua assemblage, uma composição audiovisual polifônica, feita do jogo de nossas sensibilidades. Não há condução,
mas intertextualidade. Intencionalidades e coincidências em diálogo, narrativas sugeridas, virtualidades a serem atualizadas pelo espectador. Edição sutil, mínima pós-produção. A crueza do material, colhido e produzido com afeto, montado de acordo com seus
veios, livre de estreitos sincronismos.
210 PANDEMIDIA
Com um sorriso, ao nos reconhecermos na peça pronta, pensamos novamente em
Pareyson (1993, p. 78): “Eis aí o mistério da arte: a obra se faz por si mesma, e, no entanto, é o artista quem a faz”.
REFERÊNCIAS
BAITELLO JR., Norval. A carta, o abismo, o beijo: os ambientes de imagens entre o artístico e o midiático.
São Paulo: Paulus, 2018.
BAITELLO JR., Norval. A cultura do Ouvir. In: Baitello Jr., N. A era da iconofagia. Reflexões sobre imagem,
comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014, p. 133-146.
BOURRIAUD, Nicolas (1989). Estética Relacional. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009. MACHADO, Arlindo.
Arte e mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. São
Paulo: Cultrix, 1998.
PAREYSON, Luigi. Estética: Teoria da Formatividade. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 1993.
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Livraria Martins
Fontes Editora LTDA, 1984.
ANNA LUCCHESE
Diretora de TV, cinema e artista-pesquisadora. Formada em Rádio e Televisão pela Faculdade Cásper Líbero,
com especialização em Direção Cinematográfica pela ESCAC - Escola Superior de Cinema i Audiovisuals de
Catalunya - e mestre em artes pela Unesp. Foi diretora do programa de entrevistas “A Máquina”, de três séries
de documentários para televisão e do documentário de longa-metragem “Identidade Cotidiana”. Na área acadêmica, foi supervisora do órgão laboratorial “Produtora Experimental Audiovisual da Faculdade Cásper Líbero”.
MARCOS LAMEGO
Artista visual, pesquisador e professor de artes visuais, bacharel e licenciado pela UNESP, mestrando na linha
de pesquisa de Processos e Procedimentos em Artes pela mesma instituição e pós-graduando em EaD pela
UNIVESP. Atua também com atividades de vídeo e fotografia: captação de imagens, edição, produção de vinhetas, infográficos, keynotes, registro fotográfico de objetos e pessoas, e consultoria em vídeo. Nestes últimos
15 anos, atuou nos mais diversos segmentos audiovisuais, atendendo agências de marketing/publicidade,
institutos e fundações.
ROBERTO D’UGO JR.
Artista-pesquisador, radiomaker e professor universitário. Doutorando em Artes no Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo
e Bacharel em Rádio e TV pela FAAP. Foi coordenador de programação e produção da Rádio Cultura FM de
SP (1998-2005) e do curso de Rádio, TV e Internet da Faculdade Cásper Líbero (2013-2018), onde leciona
Produção e Direção em Rádio e Mídias Sonoras.
PANDEMIDIA 211
NOVAS FORMAS DE LIDAR COM AS IMAGENS EM REDE A
PARTIR DE UM PENSAMENTO DE CURADORIA INTERATIVA
Fernanda Oliveira e Paula Squaiella
Atualmente em uma sociedade totalmente remodelada pelas imagens, os sujeitos
adquirem novas sensibilidades criativas e imaginativas em detrimento das novas possibilidades imagéticas geradas pelas tecnologias. Em um contexto como este, as imagens
se transformam no principal meio de comunicação, concentrando e compartilhando uma
grande quantidade de informações.
Essa lógica informacional, dependente das imagens, foi absorvida pela sociedade
inaugurando o que seria um novo status da imagem, transformando-as em artefatos comunicacionais de natureza diversa e passível de vários significados. Tal fato é ampliado
em um momento como este que vivemos, em que, as redes sociais e as plataformas digitais se apresentam como um catalisador de percepções, gerando sensações de que o
mundo se estende para além daquilo com que se pode relacionar presencialmente.
A partir de questões como as citadas a cima, Fernando Velázquez, artista multimídia
Uruguaio radicado no Brasil, que constrói suas obras a partir da leitura das condições
cognitivas das imagens nos espaços informacionais e das relações entre natureza e cultura, discorre em seu texto a peste da imagem o poder comunicacional da imagem, de
como sua massificação reconfigurou a cultura e como as mediações por imagens nos
transformou em seres biologicamente imagéticos, fenômeno ainda mais evidente hoje
em consequência das redes sociais.
Por sua imediatez e despretensão, a imagem no fluxo das redes sociais reduz uma
grande quantidade de informação com significados abertos à disposição de pessoas letradas ou não letradas, permitindo uma comunicação mais direta e democrática.
A imagem é contagiosa como peste. Chegou devagar, sorrateira, mascarada, sedutora, técnica, sintética, violenta, tomou
conta das coisas do mundo, quer dizer, tomou conta de mim,
tomou conta de nós, tomou conta. Peste: fenômeno de propagação orgânica e emergente, com causas e efeitos que podem
ser desconhecidos e/ou conhecidos, a priori descontrolados.
Imagem: um fenômeno à deriva que nem peste, que nos afeta,
nos transforma, nos domina. (VELÁZQUEZ, 2019, p. 83)
212 PANDEMIDIA
Na história mundial o surgimento de pestes já é recorrente, a peste negra, a cólera,
a gripe espanhola, e agora o incerto corona vírus; para os religiosos as pestes vem como
castigo, por não cumprir os mandamentos de Deus, para os espiritualistas a peste aparece por um desequilíbrio energético, como uma lição a ser aprendida para evoluirmos
como seres vivos, já no texto de Velázquez a peste se manifesta como imagem, como
um aparato tecnológico que “têm a capacidade de nos envolver de tal maneira que (...)
revelam faces desconhecidas de nós mesmo, e alimentam a ansiedade e a desconfiança
em relação ao futuro” (VELÁZQUEZ, 2019, p. 85-86).
A leitura de Velázquez exemplifica a inquietude que vivemos hoje, convivendo com
uma ameaça invisível, um vírus que mantem as pessoas isoladas; deixando claro que se
trata aqui das pessoas com poder aquisitivo para tanto, pois esse vírus, forçadamente,
impacta nossa visão sobre a discrepante diferença social no país, onde não são os mais
fortes que sobrevivem e sim os com melhores condições financeiras.
Mas essa praga de 2020, se assim podemos chamar, escancara o dominio dos dispositivos tecnológicos nas relações sociais cotidianas, em que a relação mediada por
telas nunca se fez tão presente em nossa rotina, marcada por tantas videoconferências,
lives e redes sociais. Velázquez afirma que “os dispositivos tecnológicos contemporâneos irromperam na vida cotidiana de tal maneira que estamos permanentemente em
fluxo entre estados de consciência, em maior ou menor medida mediados por eles” (VELÁZQUEZ, 2019, p. 86). Este é o ponto de comparação da imagem como peste, onde,
sem uma trégua na velocidade de informações mediadas por imagens, hoje, entre
“posts, selfies, eleições suspeitas, fusões corporativas e pós-verdades” (VELÁZQUEZ,
2019, p. 83) não há meios de sermos imunes a ansiedade e as incertezas sobro futuro
que uma peste propaga.
Nas palavras de Fernando Velázquez “a civilização não passa de uma ficção coletiva
em tempo real” (VELÁZQUEZ, 2019, p. 92), mas como estar juntos, em tempo real se os
acontecimentos estão sendo mediados e filtrados a todo instante por algoritmos, códigos invisíveis que nos condicionam a um distanciamento? Não sabemos se essa pergunta tem resposta, mas na busca de inverter os papéis, tencionar os algoritmos,
controlar as imagens ao invés que ela no controle, se é que isso ainda é possível, veio a
experiência com a performance @multidão, que buscou criar, ao longo de aproximadamente 25 horas, um espaço de compartilhamento coletivo, durante o tempo real que
os algoritmos viabilizaram.
PANDEMIDIA 213
Criada para lidar com essa realidade de confinamento, a presença dos dispositivos
tecnológicos no nosso cotidiano e o dominio das redes sociais no nosso dia a dia, a performance audiovisual coletiva @amultidao, foi uma iniciativa dos integrantes do Grupo
de Pesquisa Extremidades: redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea Andy Marques, Christine Mello, Fernanda Oliveira, Larissa Macêdo e Paula Squaiella,
e dos pesquisadores Demétrio Portugal, Denise Agassi e Luana Fortes, uma proposta de
agenciamento das redes sociais através de produções artísticas
A ação se constituiu através de uma mobilização em rede, com o compartilhamento
de imagens, sons, vídeos, desenhos, ações e performances durante aproximadamente
25 horas. Tais produções e experiências de intervenção nas redes eram direcionadas e
agrupadas por hashtags, na plataforma Instagram, onde se concentrou os posts pelas
coordenadas de seus algoritmos.
Após a realização da ação e com a emergência de lidar com os fragmentos imagéticos que surgiram desta, catalogados em forma de registros - feitos em quase sua totalidade, pois no fluxo das redes não é possível ter um controle completo do que é
compartilhado, nasceu o pensamento crítico e a ânsia de realização de uma curadoria e
exposição por parte da artista e pesquisadora Fernanda Oliveira e da crítica e curadora
Paula Squaiella.
A principal vontade e questão, surgidas deste pensamento, se apresentaram na intenção de construir um espaço para exibir as imagens fora do seu contexto de concepção, as redes sociais, sem que fosse perdida a principal qualidade da ação: o seu
potencial de navegabilidade e da troca com o outro.
Partindo destes pressupostos, das ideias já mencionadas e dos conceitos contidos
no texto da temporalidade radical em arte e mídia urbana pela curadora dinamarquesa
Tanya Toft Ag, surge a curadoria X, um exercício curatorial em processo, que traz a luz
um realocamento do sujeito espectador de uma exposição como um sujeito ativo, compondo-a a partir de sua interação.
Neste sentido, o pensamento de um espaço expositivo, onde a intenção da curadoria se efetiva mediante a interação, se dá a partir dos principais aspectos das informações em rede, partindo de uma lógica de troca através da experiência para se
configurar como uma curadoria artística midiática em rede.
Para tanto, se apresentam alguns conceitos que norteiam e fundamentam a curadoria
X como uma experiência curatorial artística pautada na interação e na ação coletiva.
214 PANDEMIDIA
O primeiro conceito é o de contingência contemporânea, apresentado por Tanya
Toft Ag como uma condição de troca entre a arte e seu contexto, sendo um conceito
condicionante a uma arte liberta de regras e hierarquias, se apresenta como uma resposta direta a cultura visual contemporânea e a estética popular cotidiana. Sendo assim,
a curadoria X se apresenta como uma plataforma de mediação artística indo aos extremos das questões ligadas a técnica ou suporte em que é feita, se situando nas interações
e nas trocas com o outro e na incorporação daquilo que a norteia, situando-se na experiência mais do que no objeto, ajudando-nos a navegar pelas questões inerentes à ação
performática ao propor uma intervenção na ação do sujeito.
Outro conceito apresentado, ao decorrer do texto de Tanya, é o da temporalidade
radical por Boris Groys tido como uma qualidade artística derivada de uma arte pautada na experiência, apresentando a ideia de arte como “acontecimento”, um fenômeno em tempo real passível de interferências. Neste sentido, a curadoria X teria tal
qualidade da temporalidade radical à medida em que para se concretizar a experiência
é necessária a interação do sujeito em tempo real, sendo que em certas partes a interferência do sujeito com o espaço curatorial em rede acarretaria em experiências únicas
providas, seja pela aleatoriedade da apresentação do conteúdo de forma randômica
nas páginas, ou através da manipulação direta do conteúdo pelo gesto do sujeito, em
que este teria como possibilidade a realização de associações próprias a partir do contato o conteúdo disponibilizado. Levando o conceito de temporalidade radical para
um outro patamar, e seguindo as ideias da autora Tanya Toft Agque nos introduz o entendimento de arte-mídia como sendo essencialmente enraizada na luz, onde comportamentos artísticos midiáticos como a interatividade, o estar em rede e a
sobreposição temporal, anunciam um sentido de ruptura no tempo característico, de
como a arte midiática incorpora o ambiente urbano e seu entorno, e sendo aqui a relação direta da luz na raiz da arte-mídia entendida como presença constante das telas
e essas como mediadoras principais das relações comunicacionais contemporâneas,
podemos considerar que o ambiente urbano hoje vive um estado constante de hibridez entre o mundo online (luz) e offline.
Tal Ideia também é defendida por Fernando Velázquez quando este afirma que os
dispositivos tecnológicos já estão tão incorporados no nosso cotidiano que estamos permanentemente sendo mediados por eles. Neste sentido, a experiência curatorial, anunciaria
uma quebra com os pressupostos curatoriais ao incorporar a performatividade da ação,
sua qualidade interativa e todo o contexto de concepção em seu conteúdo e interface.
PANDEMIDIA 215
O último conceito apresentado no texto por Tanya Toft Ag é a ideia de mediação
radial por Richard Grusin, usada para pensar como o sistema sensório humano é evocado
na presença da arte ativamente transformadora, por afetar nossos estados conceituais e
afetivos. Seguindo esta lógica e como forma de resposta ao entendimento deste conceito, a curadoria X: surge como um meio de mediação que coloca o sujeito interator
como o próprio mediador, ou seja, como parte do processo, da ação ou do evento que
gera ou provê as condições sensórias que os instigam a habitar nossos ambientes de um
modo interativo, oferecendo espaços experienciais para contemplação e reflexão crítica.
Outro fato a ser pensado diante deste modelo curatorial é a questão da quebra
com a elitização, a ideia de uma arte para poucos, a partir de um deslocamento da experiência estética para um ambiente interativo e pautado na imagem, sendo absorvidas
pela curadoria X como o objeto artístico, propondo um acesso à arte e suas reflexões
de forma mais acessível. Entendendo que ainda vivemos em um contexto onde a discrepância social se faz totalmente presente em um país onde apenas 70% da população
possui acesso à internet.
O filósofo da imagem Vilém Flusser em seu livro O mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação diz que “a necessidade de comunicação é algo intrínseco ao homem, estopim da criação e desenvolvimento de linguagens”, a partir disso,
num período como este, é de extrema urgência pensar como o ambiente comunicacional pode se hibridizar com um ambiente artístico.
Para existir no ambiente digital, as imagens precisam ser compartilhadas, acessadas e curtidas, após isso, elas retornam a um estado de invisibilidade, uma nova forma
de latência criada por essa existência em rede, como sintetiza o artista e pesquisador
Joan Fontcuberta em seu livro A Câmera de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia:
Toda imagem infográfica é armazenada em um matiz numérico
e só se torna perceptível ao olhar quando passa a suportes
como a tela ou o papel. Ou seja, todo arquivo digital em formato gráfico é de fato uma imagem latente. O mecanismo
dessa latência eletrônica se caracteriza, além disso, por ser reversível, ou seja, por poder devolver a imagem final a sua fase
latente prévia. (FONTCUBERTA, 2012, p41)
Em um período de crise política e social como o que nos encontramos, estes novos
modos de expor e pensar a arte são de suma importância, dado que a necessidade de
216 PANDEMIDIA
refletir o espaço cultural como um lugar de experimentações, voltado a criação de proposições críticas, o transforma em um espaço de resistência, invenção e luta, pensando
nisso se construiu esse ensaio de pensamento crítico sobre um exercício curatorial de
fragmentos presentes nas redes socias e como dar conta de transportar esses fragmentos, tira-los da latência imposta pelos algoritmos.
Pensando uma forma mais direta de interação onde a ativação da curadoria depende da participação ativa do sujeito, deslocando o espectador do lugar de observador
para o lugar do espectador ativo. Fazendo com que o sujeito para ter acesso a algum
tipo de visualização das imagens, precise interagir diretamente com o “jogo” proposto
pela curadoria, buscando imagens que compartilhem qualidades entre si, desconstruindo uma lógica curatorial em que o espectador ou no caso sujeito apenas receberia
de forma passiva a seleção e as associações criadas pelo curador, de modo a construir
uma nova experiência estética a partir das imagens que circulam nas redes hoje.
PANDEMIDIA 217
REFERÊNCIAS:
As grandes epidemias ao longo da história. In: Revista Super Interessante. Disponível
em:<https://super.abril.com.br/saude/as- grandes-epidemias-ao-longo-da-historia/>. Acesso em: 01 mai
2020.
FONTCUBERTA, Joan. A Câmera de Pandora: a fotografi@ depois da fotografia. São Paulo: Editora G. Gili,
2012.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Barcelona: Editorial
Herder, 1994.
MELLO, Christine (Org.). Extremidades: experimentos críticos - redes audiovisuais, cinema, performance,
arte contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.
TOFT, Tanya. Da temporalidade radical em arte-mídia (urbana). In PORTUGAL, Demétrio; BAMBOZZI, Lucas
(org.). O cinema e seus outros: manifestações expandidas. São Paulo: Equador, 2019.
VELÁZQUEZ, Fernando. A peste da Imagem. In PORTUGAL, Demétrio; BAMBOZZI, Lucas (org.). O cinema e
seus outros: manifestações expandidas. São Paulo: Equador, 2019.
FERNANDA OLIVEIRA
Artista e pesquisadora multimídia. Mestranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNICAMP (bolsista
FAEPEX 2029/19). É especialista em Fotografia pela FAAP (2018), bacharel em Artes Visuais pela Universidade
Belas Artes de São Paulo (2015) e fotógrafa profissional pela Escola Panamericana de Artes (2010). Sua pesquisa está voltada na proposição do desenvolvimento de estudos e práticas sobre mediações interespécies –
deslocamentos e conexões entre humanos e não humanos – como um espaço de experimentação em torno
de uma estética híbrida.
PAULA SQUAIELLA
Curadora e comunicóloga multimidiática formada pela PUC-SP. Desenvolve pesquisa nas áreas de crítica, curadoria e acervos em novas mídias, tendo realizado sua primeira exposição videográfica, intitulada "Estados
Alterados" em 2019. Atualmente é integrante do Grupo de estudos Extremidades: redes audiovisuais, cinema,
performance e arte contemporânea, onde desenvolve pesquisas e atua na Gestão da Coleção de Livros "Extremidades Experimentos Críticos".
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@AMULTIDAO: EXTREMIDADES NAS REDES
AUDIOVISUAIS EM TEMPOS DE PANDEMÍDIA
Christine Mello e Larissa Macêdo
É possível acessar o perfil @amultidao no Instagram por meio deste QR Code, que está direcionado para o link <https://www.instagram.com/amultidao/>
O ensaio artístico @amultidao, realizado no Instagram em abril de 2020 e concebido pelo lab eXtremidades (www.extremidades.art), por meio dos curadores Christine
Mello, Larissa Macêdo [nós, presentes nesta crítica de arte ], Andy Marques, Fernanda
Oliveira, Paula Squaiella, Demétrio Portugal, Denise Agassi e Luana Fortes , inspira pensarmos experiências artísticas nas chamadas redes audiovisuais, que inter-relacionam
noções como extremidades, multidão e comunidade em tempos de pandemídia.
Na esfera da extremidade da pandemia, o mapa da contaminação da covid-19 no
final de junho de 2020, período em que o presente texto foi escrito, corresponde, no
âmbito global, a mais de dez milhões de casos confirmados, com mais de quinhentas
mil mortes, e a mais de um milhão e meio de casos confirmados no Brasil, com aproximadamente sessenta mil mortes. Nesse momento, o medo do coronavírus aumenta, mas
o isolamento total diminui.
Fonte: Mapa da contaminação do Covid-19 no mundo. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/coronavirus>. Acesso em: 30 jun. 2020.
PANDEMIDIA 219
Na esfera da extremidade da mídia, é possível observarmos, na escala cotidiana
de nossas relações em rede, o contato ampliado com o vírus por meio do acesso diário
a mapas da contaminação da covid-19, que apresentam uma visualização em tempo
real de sua proliferação por meio de sites como https://www.otempo.com.br/coronavirus. Trata-se, portanto, de mais um entre os muitos fenômenos relacionados atualmente
à comunicação biopolítica, que aqui se manifesta sob a forma do termo pandemídia, e
que produz, em estado de emergência, o aumento exponencial da experiência contemporânea associada às interfaces humano-tecnológicas, regidas tanto por algoritmos
como por inteligência coletiva.
Diante desse contexto, na esfera da extremidade da experiência artística, a proposição curatorial on-line @amultidao buscou tratar de questões multitudinárias associadas
às redes sociais, tendo como pressuposto desconstruir o trauma do vírus, o trauma da
morte, o trauma da angústia em tempos incertos, o trauma do isolamento, o trauma da
negação do outro, o trauma da violência e o trauma da retomada de políticas fascistas
no Brasil.
Quando estar em CONTATO passa a ser sinônimo de risco de vida, @amultidao
tem como objetivo principal ressignificar, nas extremidades, no epicentro da crise gerada pelo coronavírus, nos âmbitos das sociedades globalizada e local, a qualidade ética,
sensível e política de se estar em comunidade em tempos de pandemídia.
O ensaio artístico @amultidao, sob a forma de linguagens nas extremidades, nas
fronteiras entre redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea, propôs
um agenciamento coletivo das redes sociais através do compartilhamento em tempo
real de ações artísticas, no feed e nos Stories do Instagram, das 11h do dia 11 de abril
às 12h do dia 12 de abril de 2020.
Aprendendo com os artistas da performance – cujas experiências de alto risco e
forte intensidade parecem fazer com que seus corpos deixem de ser habitados pelo
medo –, propusemos a experiência @amultidao no Instagram, com o objetivo de ativar
laços comunitários, laços identitários, laços de afeto, justamente no momento mais
agudo em que se vivia o isolamento.
Articulada, portanto, no contexto de uma situação extrema, limítrofe, @amultidao
buscou ressignificar o sentido de CONTATO na esfera pública em tempos de pandemídia, por meio da ativação da PRESENÇA nos campos contaminados das redes audiovisuais, cinema, performance e arte contemporânea.
220 PANDEMIDIA
Na presente análise, buscamos compartilhar com os leitores da publicação PANDEMÍDIA alguns aspectos e percepções iniciais constituídas a partir das reverberações
em nossos corpos, que relacionam certos procedimentos e potências de reflexão observados com @amultidao.
Biopolítica, experiência comum, multidão e redes audiovisuais
O filósofo brasileiro José Roque Junges nos indica que o termo biopolítica “apareceu, pela primeira vez, na obra do filósofo francês Michel Foucault numa conferência
proferida em 1974 no Rio de Janeiro sob o título ‘O Nascimento da Medicina Social’”
(JUNGES, 2010, p. 63). Nela, Foucault afirma que o corpo, enquanto força de produção
e trabalho, foi socializado em fins do século 18 como instrumento do capitalismo.
No entanto, na passagem para o século 21, o filósofo italiano Giorgio Agamben
retoma a temática do biopoder, dando-lhe “um enfoque mais jurídico e político a partir
de uma análise dos estados totalitários, porque se centrou em investigar os mecanismos
de controle que incidem nos processos de subjetivação” (JUNGES, 2010, p. 64). Em tempos atuais, Agamben reflete a respeito da covid-19 sobre “os impactos da pandemia
nas camadas mais vulneráveis da população” (FRATESCHI, 2020).
Já o filósofo italiano Toni Negri e o professor norte-americano de literatura Michael
Hardt retomam no início do século 21 “a discussão do biopoder/biopolítica na perspectiva da globalização” (JUNGES, 2010, p. 66). Para eles, não existe apenas um controle
sobre a vida, mas o próprio contexto biopolítico em que essa vida se desenvolve é constituído por máquinas neocapitalistas que fecham, entre outras coisas, também os fluxos
de desejo, exigindo insurgências de âmbito multitudinárias.
Negri, desde os anos de 2010, comenta sobre os impactos da atividade produtiva
em máquinas neocapitalistas como as estruturadas na atualidade, em bases globalizadas, pelas redes digitais, nelas observando suas implicações políticas, que levam, como
diz, ao “desenvolvimento de novos processos decisórios caracterizados pela multiplicidade e interação” (HARDT; NEGRI, 2016, p. 390). Para ele, as experiências singulares
dos integrantes das redes digitais configuram um caminho micropolítico da multidão,
em que “tornar-se a mídia” é uma “linha de construção institucional de comunicação
na qual o controle coletivo de expressão em redes torna-se arma política” (HARDT;
NEGRI, 2016, p. 390).
PANDEMIDIA 221
Em entrevista para a rádio italiana Onda d’Urto, em 21 de março de 2020, época
de avanço da pandemia, Negri reflete sobre o modo pelo qual a atual crise do coronavírus opera nas forças do capital e imagina “modos de resistência política e reinvenção
da experiência comum” (ONDA D’URTO, 2020) com os fluxos midiáticos.
Nessa direção, ao observarmos hoje a produção audiovisual como lugar da experiência comum que circula nas redes sociais, integrante da ecologia da comunicação
biopolítica, podemos refletir que não se trata de vivermos a experiência comum nas redes
audiovisuais, mas sim de conseguirmos viver a experiência comum com as redes audiovisuais. Encontramos, desse modo, o aspecto multitudinário, viés pelo qual a experiência
comum se constitui sob a forma de experiência relacionada às atuais redes audiovisuais,
que instauram fluxos plurais e diversos de circulação audiovisual nas redes sociais.
Como Negri, acreditamos que em tempos de pandemia necessitamos recuperar
a experiência comum por meio do DESEJO DE ESTAR JUNTO E DE COMPARTILHAR
AFETOS. É desse lugar de desejo e afeto que procuramos tocar o outro, estar em CONTATO, entre 11 e 12 de abril de 2020, por meio das redes audiovisuais constituídas em
@amultidao.
Procedimentos artísticos em @amultidao
Realizada em uma plataforma social, no contexto de crise e contágios experenciados globalmente com a pandemia do coronavírus, o ensaio artístico @amultidao é organizado de modo tático como uma intervenção midiática coletiva no Instagram – feed
e Stories –, constituída simultaneamente como rede audiovisual, cinema, performance
e arte contemporânea.
@amultidao configura uma ação artística nas extremidades, potencializada pela
ação de redes virais – detectada tanto pelo campo da medicina social como pelo campo
da comunicação audiovisual biopolítica –, que nos conecta em torno da experiência
comum, que nos afeta e nos contamina em intensidades e formas diversas.
Mais de quatrocentos posts integraram a intervenção coletiva @amultidao, proposição que ganhou corpo nas redes audiovisuais e exerceu uma performatividade on-line
através da marcação do perfil @amultidao e da inclusão das hashtags #amultidao,
#acrowd, #ficaemcasa e #stayhome em cada post, que poderia ser recompartilhado
pelo perfil @amultidao, intensificando ainda mais a performatividade em rede. É inte-
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ressante pontuar que, mesmo após o encerramento do ensaio artístico performático,
ainda houve pessoas que continuaram compartilhando por alguns dias ações artísticas
marcando o perfil @amultidao no Instagram. Eis aqui a possibilidade de observarmos a
ação micropolítica, residual, da experiência comum nas redes audiovisuais.
@amultidao:
👾 Performance audiovisual em rede convida TODES! ⚡ De 11/4, às
11h, até 12/4, às 12 💥 COMPARTILHE AFETOS!
Posts convocando para a performance on-line coletiva compartilhados no feed do Instagram e no Whatsapp, e imagem do perfil @amultidao no
Instagram. Identidade visual desenvolvida por Fernanda Oliveira e Paula Squaiella.
Como é possível ver na imagem acima, na descrição do perfil da ação a convocação era: “@amultidao: 👾 Performance audiovisual em rede convida TODES! ⚡ De
11/4, às 11h, até 12/4, às 12 💥 COMPARTILHE AFETOS!”. Em tempos de #fiqueemcasa
, pandemia e contágios virais de toda ordem, as redes sociais se tornaram um lugar de
encontro com ainda mais potência, já que há uma suspensão dos encontros presenciais.
Com isso, considerando o contexto da cultura do compartilhamento relacionada às plataformas digitais, apps como o Instagram possibilitam novas formas de diálogo para a
arte, os artistas, os museus e as instituições artísticas.
Mais do que nunca, as redes sociais são usadas como uma tentativa de compensar
afetos perdidos, carências, lacunas e angústias relacionadas ao isolamento social presencial. A questão é: isso é possível? Ou estamos vendo um despertar dos artistas – e,
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por que não, das instituições de arte também – em relação às linguagens que essas redes
colocam? Quais as possibilidades que esses recursos impulsionam para a criação de experiências e intervenções artísticas nessas comunidades on-line?
É nesse contexto de #coronavida1, como bem define Giselle Beiguelman ao descrever as mudanças sociais que a mediação por telas nos impõe, que o ensaio artístico
@amultidao convocou todes a compartilhar, durante 25 horas, micronarrativas nos
Stories ou no feed do Instagram, relacionadas aos afetos e ao cotidiano, reunindo,
dessa forma, experiência comum, de caráter multitudinário, durante a quarentena.
Ações que formam um retrato desse período que estamos vivendo, onde o coronavírus nos faz questionar as formas de ser e de estar no mundo. Trata-se de um momento
em que a vida e a arte estão sendo ressignificadas pela ação de um vírus, que contamina a todos com as mudanças que promove em nossas micropolíticas diárias.
O ensaio artístico @amultidao partiu da leitura do conto O homem da multidão”
(1840) de Edgar Allan Poe, de procedimentos dadaístas e do trabalho coletivo O céu
nos observa (2010), proposto pelo artista Daniel Lima (www.danielcflima.com/O-CeuNos-Observa). O texto de Edgar Allan Poe traz a reflexão em torno da complexidade do
sujeito na esfera pública, permeado por relações de nomadismo e anonimato, de paradoxalmente estar junto e só em uma multidão.
Se é possível observar que O homem da multidão de Poe diz respeito a um tipo
de reflexão presente em diversos contextos atuais da nossa história, podemos a ele
acrescentar mais um paradoxo: o distanciamento social, ao impossibilitar os encontros
presenciais, faz com que o DESEJO DE ESTAR JUNTO E SÓ EM UMA MULTIDÃO E DE
COMPARTILHAR AFETOS aconteça pela mediação das redes audiovisuais conectadas
por máquinas neocapitalistas como apps, aparatos tecnológicos, smartphones e computadores interligados nas redes digitais.
Já o trabalho coletivo O céu nos observa, de Daniel Lima, traz uma proposta de
agenciamento coletivo para que pessoas e coletivos artísticos façam interferências para
o registro da imagem de satélite, em um mesmo dia e horário pré-combinados. Uma
convocação que traz, como falou Daniel Lima, no convite deste trabalho: “a possibilidade
de pessoas estarem juntas em ação no mesmo dia, num mesmo instante, em diferentes
espaços da mesma cidade”.
1. Série de ensaios relacionados à pandemia, desenvolvidos por Giselle Beiguelman para a revista seLecT. Disponível em:
<https://www.select.art.br/coronavida/>. Acesso em: 16 mar. 2020.
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Stories para a convocação da performance on-line coletiva compartilhados no perfil do Instagram @amultidao. Identidade visual desenvolvida por
Fernanda Oliveira e Paula Squaiella.
Considerando essas duas grandes inspirações, @amultidao constituiu uma proposta de experiência comum e intervenção nas redes sociais aberta à participação de
todos. A intenção era conectar o maior número de pessoas possível pela plataforma do
Instagram para a constituição de uma ação coletiva performática audiovisual em rede.
Nesse sentido, diante do âmbito multitudinário das redes sociais, deu-se o PARATODOS:
em rede aberta, todos foram convidados – através de compartilhamentos do perfil
@amultidao, dos perfis pessoais dos proponentes no Instagram e por meio de interações
no WhatsApp – a inundar as redes audiovisuais com imagens, sons, vídeos, desenhos,
ações, performances, em uma sequência de posts de expressão livre de tema, de controle, de direcionamento, que permitiu UMA OUTRA FORMA DE ESTARMOS JUNTOS E
SÓS NUMA MULTIDÃO, constituindo uma ação coletiva em redes audiovisuais, em um
mesmo dia e em um espaço on-line – o Instagram – que articula uma rede, uma comunidade ativadora de intensidades nas redes sociais.
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Amostra de parte dos compartilhamentos realizados na performance coletiva @amultidao no Instagram Stories. Identidade visual desenvolvida por
Fernanda Oliveira e Paula Squaiella.
Extremidades: contaminações e compartilhamentos em tempos de pandemia
Observar, pela abordagem das extremidades, a rede de relações criada pelas proposições artísticas presentes na performance midiática coletiva @amultidao, em que o
compartilhamento constitui e atua como procedimento artístico, é estabelecer um outro
tipo de jogo de leitura para fenômenos de caráter emergencial e contemporâneo como
esse. Instiga-nos a considerar as dimensões sobre limites, fronteiras, crises e atravessamentos inerentes ao trabalho artístico na atualidade, como um modo de questionar os
padrões hegemônicos presentes na experiência comum hoje, neste momento histórico
da pandemídia, que traz a incerteza como padrão e vetor de desconstrução. Permite,
portanto, observarmos tanto os atravessamentos no corpo como as experiências artísticas produzidas com as redes de compartilhamento audiovisual, assim como as redes
que se formam entre linguagens de natureza múltipla e plural.
Para dar conta de tais eXtremidades nas redes audiovisuais em tempos de pandemídia, nosso campo de análise é aqui constituído a partir da articulação de três procedimentos conceituais: desconstrução, contaminação e compartilhamento, sendo que os
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dois últimos nos ajudam a articular as potencialidades do presente agenciamento coletivo, estabelecido sob a forma de uma rede de relações sociais, circuitos e linguagens.
Em @amultidao, a contaminação ocorre com a potencialização de uma troca correspondente aos seus contágios no Instagram, contaminando a comunidade que se
forma a partir da convocação para a performance e dos processos de produção de subjetividade tanto de cada um presente como dos posts compartilhados em rede. Essa
potencialização afeta necessariamente todas as áreas envolvidas nesse diálogo.
Já o vetor do compartilhamento é compreendido por Mello (2017) como o mais extremo procedimento conceitual, na medida em que ocorre apenas onde existe necessariamente a transmutação, a partilha das linguagens e formatos presentes em tais redes
audiovisuais. O compartilhamento viabiliza a própria tática de contágio, ao atuar sobre a
proliferação de sentidos nessa ação performática audiovisual em rede. Ele se relaciona com
as mudanças na produção, recepção e distribuição dos posts compartilhados. É pelo procedimento do compartilhamento que há a possibilidade do agenciamento coletivo e das
singularidades presentes em @amultidao. Sem o compartilhamento, as redes sociais perdem
sua força, intensidade e sentido. Sem esse tipo de procedimento não haveria a formação
das comunidades on-line desses aplicativos, onde ocorre partilha, transmutação, outros
modos de circulação e distribuição agindo como um agenciador compartilhado, coletivo.
Esse jogo de leitura por meio do procedimento poético das extremidades interessa
por permitir análises que englobam os micro e macrocampos, que inter-relacionam práticas sociais, artísticas e midiáticas. É possível observar novos processos de descentralização dos circuitos e a ampliação de linguagens e potencialidades artísticas a partir
dessas relações. Como disse Mello (2019), “Segundo esse ponto de vista, não é a produção artística o objeto privilegiado da análise, mas o perfil de suas práticas e contextos,
bem como as inter-relações entre forma estética e experiência social”.
Para além da ação performática em si, a @amultidao articulou – ao olharmos para
as extremidades de seu alcance – UM LUGAR DE PRESENÇA NAS REDES, de intensidade, de proximidade e de encontro, sob a forma de relações entre ARTE E PRODUÇÃO
VITAL, por meio de aspectos disruptivos nas redes sociais, buscando romper a máquina
neoliberal de produção de LINGUAGEM BLINDADA nas redes sociais, que elimina o desejo de contato, ampliando, com isso, aspectos das redes audiovisuais articulados sob
a forma de experiência comum, agenciamentos coletivos de índole vibrátil e linguagens
performáticas, singulares, multitudinárias, dos sujeitos em rede.
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Em um tempo em que se pede distanciamento social (presencial) por conta do fenômeno viral, pudemos exercer, com a @amultidao, por 25 horas, a INTENSIDADE DO
CONTATO e do CONTÁGIO EM REDE, de âmbito simultaneamente virtual e artístico,
que não é igual à experiência física (nem precisa ser), mas que faz nos sentirmos próximos EM UM OUTRO LUGAR e de uma outra forma 💛 Seguimos ✨
@amultidao: registros e afetos compartilhados
Para que todos possam ter uma ideia de como foi o ensaio artístico @amultidao,
seguem abaixo alguns registros, em Stories, dos afetos e intervenções compartilhadas
no Instagram das 11h do dia 11 de abril às 12h do dia 12 de abril de 2020. A identidade
visual do mosaico dessas imagens foi concebido por Fernanda Oliveira e Paula Squaiella,
e as intervenções compartilhadas podem ser acessadas no endereço on-line da Plataforma Extremidades: www.extremidades.art/expansor
.
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REFERÊNCIAS
FRATESCHI, Yara. Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia. Blog da Boitempo, 12
maio 2020. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/12/agamben-sendo-agamben-ofilosofo-e-a-invencao-da-pandemia/>. Acesso em: 30 jun. 2020.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Bem-estar comum. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record,
2016.
JUNGES, José Roque. Biopoder e biopolítica. In: BARRETO, Vicente de Paulo; CULLETON, Alfredo. (Orgs.).
Dicionário de filosofia política. São Leopoldo: Unisinos, 2010, p. 63-66.
MELLO, Christine. (Org.). Extremidades: experimentos críticos – redes audiovisuais, cinema, performance e
arte contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.
______. Extremidades: leituras entre arte, práticas midiáticas e experiência contemporânea. In: BAMBOZZI,
Lucas; DEMÉTRIO, Portugal. (Orgs.). O cinema e seus outros: manifestações expandidas do audiovisual. São
Paulo: Editora X e AVXLab, 2019.
ONDA D’URTO. Coronavírus, a fase atual e o futuro: entrevista com Antonio Negri. Tradução de Bernardo
RB. Caderno de Leituras, n. 101, abril 2020. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira. Disponível em:
<https://chaodafeira.com/wp-content/uploads/2020/04/caderno-101-negri.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2020.
OTEMPO. Coronavírus: mapa da contaminação do Covid-19. OTempo, Belo Horizonte. Disponível em:
<https://www.otempo.com.br/coronavirus>. Acesso em: 20 jun. 2020.
POE, Edgar Allan. O homem da multidão. Tradução de Dorothée de Bruchard. Porto Alegre: Paraula, 1993.
CHRISTINE MELLO
Crítica, curadora e pesquisadora, é autora de Extremidades do vídeo (2008), Tékhne (2010) e Extremidades:
experimentos críticos (2017, e-book 2020). Pós-doutora em Artes pela ECA-USP, doutora pela PUC-SP, é professora da PUC-SP e FAAP. Coordena o Grupo de Pesquisa Extremidades da PUC-SP (www.extremidades.art).
Trabalhou na Bienal de São Paulo, Videobrasil, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Itaú Cultural, Laboratorio Arte Alameda, Paço das Artes, Sesc São Paulo, entre outros.
LARISSA MACÊDO
Crítica, curadora, pesquisadora, professora, doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Onde desenvolve uma pesquisa de doutorado relacionada às práticas artísticas de mulheres afro-indígenas
nas redes sociais, e onde desenvolveu a pesquisa de mestrado “Poéticas do efêmero: novas temporalidades
em rede a partir do Instagram Stories”. É professora dos cursos de Comunicação Social do Centro Universitário
Belas Artes (SP) e é vice-líder do Grupo de Pesquisa Extremidades (www.extremidades.art).
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Ensaio Fotográfico “Em cada janela vejo um lugar, um novo lugar” de Leticia Santana Gomes.
EPÍLOGO
LABORATORIO VISUAL
EM CADA JANELA VEJO UM LUGAR,
UM NOVO LUGAR
Letícia Santana Gomes
Pág 65
Pág 181
Pág 65
Pág 158
Capa
Pág 158
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Pág 90
Pág 120
Pág 197
Pág 230
LETÍCIA SANTANA GOMES
Doutoranda e mestra em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), onde também se bacharelou em Letras (Tecnologias de Edição) como editora de livros. É
também licenciada em Letras - Língua Portuguesa. É integrante do Piim - Pesquisas Interdisciplinares em Informação Multimídia e do grupo de pesquisas Narrar-se. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com
ênfase em Narrativas de Vida. Tem experiência em estudos sobre mercado editorial, com destaque aos/às
editores/as independentes. Atualmente, é pesquisadora e bolsista do CEFET-MG.
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A MÁSCARA
DE MÉDICO DA PESTE
Daniel Seda
Paul Fürst, gravura, c. 1721, de um médico da
Máscara de médico contra peste (século XVI). Atualmente em exibição no Museu Alemão de
peste de Marselha (apresentado como 'Dr.
História da Medicina em Ingolstadt. https://vintagenewsdaily.com/heres-an-authentic-16th-cen-
Beaky de Roma'). Seu nariz está cheio de ervas
tury-plague-doctor-mask-preserved-and-on-display-at-the-german-museum-of-medical-history/
para evitar a praga.
https://en.wikipedia.org/wiki/Plague_doctor_c
Máscara lo-poly de Médido da Peste.
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DANIEL SEDA
Doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Artes da UNESP, ingressante em 2019. Mestre em Artes Visuais pelo mesmo PPGA-UNESP com a dissertação Origami e Robótica - Do Plano ao Tridimensional, 2018.
Bacharel em Educação Artística pela Unicamp, 1998. É artista multimídia, educador e escritor. Trabalha como
educador de Tecnologias e Artes no SESC Avenida Paulista. Atua como artista pesquisador desde 1995 em
diversos meios. Opera tendo como elemento chave os conceitos de colagem, de remixagem e de reciclagem,
seja de matéria ou de idéias. Trabalha com foco nas conexões entre diversas áreas como vídeo, performance,
literatura, origami e robótica.
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ESTÉTICA DA QUARENTENA:
UM ENSAIO VISUAL
Vinicius Alves Sarralheiro
“Como você tem se sentido nessa quarentena?”
Essa é a pergunta que tenho me feito todos os dias desde que começou meu período de isolamento social por conta da covid-19. Então, para expressar esses sentimentos e questionamentos que surgiram devido às novas circunstâncias do país e do mundo,
coloquei tudo em fotos utilizando o espaço e os objetos que tenho em casa.
Essa tem sido uma experiência bastante interessante para descobrir novos jeitos
de olhar para o meu dia a dia e refletir sobre mim mesmo diante dessa situação de confinamento. Esses questionamentos refletem desde angústias, aprendizados e pensamentos sobre o caos, até diferentes relações com objetos e com outras pessoas que
estão em confinamento comigo, que ganharam novos significados.
Todas as imagens produzidas foram publicadas na minha conta do Instagram, que
a partir disso virou um espaço de mediação e de diálogo com outras pessoas sobre também seus sentimentos e questionamentos, levando as imagens a ganharem novos significados a partir de seu consumo.
Assim, este é um ensaio visual que busca fazer uma reflexão sobre esse contexto
imagético, social e midiático que se apresenta diante desta pandemia.
VINICIUS ALVES SARRALHEIRO
Doutorando e mestre em Ciências da Comunicação (PPGCOM ECA-USP) atuando em pesquisas com foco em
processos comunicacionais, tecnologias e consumos. Bacharel em Comunicação Social - habilitação em Publicidade e Propaganda também pela ECA-USP (2015), com intercâmbio acadêmico na Universidade de Coimbra (2013), em Portugal, onde iniciou a prática fotográfica aliada aos estudos. Atualmente é membro do Lab4C
- Centro de Comunicação e Ciências Cognitivas na Universidade de São Paulo.
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A DISSEMINAÇÃO DO CORONAVÍRUS EM ESCALA MUNDIAL CRIOU UM PANORAMA INESPERADO NO ANO DE 2020. A MAIORIA DAS PESSOAS FICOU
CONFINADA EM SUAS MORADIAS. RAPIDAMENTE, DIVERSOS FENÔMENOS
AUDIOVISUAIS FORAM CRIADOS NA ESTEIRA DAS TECNOLOGIAS DE IMAGEM QUE JÁ VINHAM SE TORNANDO COTIDIANAS NA VIDA DIÁRIA DO
PLANETA. PANDEMÍDIA SE REFERE A ESTE MOMENTO, EM QUE UM VÍRUS
LETAL NOS COLOCOU DIANTE DAS MAIS VARIADAS TELAS E MANIFESTAÇÕES DE COMUNICAÇÃO. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE ESSE ACONTECIMENTO ESTÃO AQUI, NESTA PUBLICAÇÃO, BUSCANDO VÁRIOS ASPECTOS
DO CRUZAMENTO DA PANDEMIA COM A MÍDIA, COM A SOLIDÃO DO CONFINAMENTO, COM O PERIGO REAL DA CONTAMINAÇÃO E, POR CONSEV Í R U S , CO N TA M I N AÇÕ E S E CO N F I N A M E N TO S
PANDEMIDIA
QUÊNCIA, DA MORTE. NA CRISE SANITÁRIA QUE SE INSTAURA SOMAM-SE
AS CRISES PESSOAIS, SOCIAIS E POLÍTICAS, MAS TAMBÉM UMA EXPLOSÃO
CRIATIVA QUE DELAS DECORRE.