Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023
DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859
Revista Brasileira de Cartografia
ISSN 1808-0936 | https://doi.org/10.14393/revbrascartogr
Sociedade Brasileira de Cartografia, Geodésia, Fotogrametria e Sensoriamento Remoto
Sensoriamento Remoto como Jogo Semiótico
Remote Sensing as a Semiotic Game
Estevão Pastori Garbin 1
1 Universidade
Estadual de Maringá, Departamento de Geografia, Maringá, Brasil.
[email protected].
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4513-9298
Recebido: 12.2022 | Aceito: 03.2023
Resumo: A partir da metáfora do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, este artigo tem como propósito
apresentar uma leitura semiótica do processo de obtenção e interpretação dos produtos oriundos dos sistemas sensores.
Para tanto, empregou-se a teoria semiótica de Charles Sanders Peirce como fundamento teórico, sobretudo suas
discussões sobre a estrutura do signo, as categorias fenomenológicas e as relações evidenciadas pela segunda
tricotomia, quais sejam: dos ícones, índices e símbolos. O argumento central é que o emprego da metáfora do jogo
para a prática do Sensoriamento Remoto permite um olhar mais minucioso sobre este processo, pois as abordagens
desta prática costumam valorizar sobremaneira as discussões do âmbito físico, protagonizado pela radiação
eletromagnética, mas deixam em um segundo plano as discussões sobre como os signos participam da semiose que
permite a construção de conhecimento a partir desses registros. Como resultado, evidenciou-se como a noção de signo
pode conectar as dimensões física/psíquica do Sensoriamento Remoto, as limitações semióticas desses registros na
representação do Objeto dinâmico e a recorrência das estratégias heurísticas das relações imagéticas, indiciais e
metafóricas no processo de transdução das feições desses produtos.
Palavras-chave: Charles Sanders Peirce. Signo. Semiose. Imagens de satélite.
Abstract: Based on the metaphor of remote sensing as a semiotic game, this article aims to present a semiotic
interpretation of the process of obtaining and interpreting products from remote sensing. For that, Charles Sanders
Peirce's semiotic theory was used as a theoretical foundation, especially his discussions on the structure of the sign,
the phenomenological categories and the relationships evidenced by the second trichotomy, namely: icons, index and
symbols. The central argument is that the use of the metaphor of the game for the practice of Remote Sensing allows
a more detailed look at this process, since the approaches of this practice tend to greatly promote discussions of the
physical scope, played by electromagnetic radiation, but leaves in a second plan the discussions about how the
participating signs of semiosis that allows the construction of knowledge from these registers. As a result, it became
evident how the notion of sign can connect the physical/psychic dimensions, the semiotic limitations of these registers
in the representation of the dynamic object and the recurrence of imagery, indexical and metaphorical relationships in
the process of transduction the features of these products.
Keywords: Charles Sanders Peirce. Sign. Semiosis. Satellite images.
1
INTRODUÇÃO
No jogo do Sensoriamento Remoto é preciso decifrar as pistas fornecidas pela natureza usando
conhecimento técnico e criatividade: a natureza fornece os enigmas, e o jogador procura desvendá-los.
Também é um jogo sempre coletivo, mesmo que o jogador se encontre sozinho em seu gabinete. Da energia
que deixa os alvos até a resposta cognitiva do usuário das imagens de satélite, além da radiação eletromagnética
(REM), participa um outro elemento fundamental pouco creditado nas geociências e que é abordado nesse
texto: o signo.
Nas definições mais recorrentes de Sensoriamento Remoto, é frequente a menção à energia
eletromagnética, mas não ao trabalho desempenhado pelos signos. Para Jensen (2009, p. XIII, destaque nosso),
o “Sensoriamento Remoto é a arte e a ciência de obter informação sobre um objeto sem estar em contato
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físico direto com o objeto”. Novo (2010) entende o Sensoriamento Remoto como sendo a utilização conjunta
de sensores e os demais equipamentos para o processamento e transmissão de dados “com o objetivo de estudar
eventos, fenômenos e processos que ocorrem na superfície do planeta Terra a partir do registro e da análise
das interações entre a radiação eletromagnética e as substâncias que o compõem em suas mais diversas
manifestações” (NOVO, 2010, p. 28, destaque nosso). Para Zanotta, Ferreira e Zortea (2019, p. 11), “é a
prática de obter informações sobre a superfície da Terra por meio de imagens adquiridas do espaço, utilizando
radiação eletromagnética refletida ou emitida, em uma ou mais regiões do espectro eletromagnético”.
Sem dúvida, essas definições apresentam os aspectos centrais do sensoriamento remoto, por
ressaltarem a ausência de um contato físico direto com o alvo e o trabalho intelectual do usuário desses
produtos em reconstruir mentalmente o objeto a partir da resposta de sua radiação eletromagnética. Neste
artigo, propõe-se que esta prática funciona como uma espécie de jogo: o usuário deve desvendar as
características de um objeto de estudo sem, necessariamente, ter acesso direto a ele.
É da ausência desse contato direto com o objeto que se refere o termo remoto. O adjetivo deixa
implícito que o contato entre o usuário e seu alvo ocorre de forma mediada: de um lado, os traços do objeto
são obtidos a partir da radiação eletromagnética que interage com ele e é transmitida ao sensor. O sensor, seja
ele embarcado em um drone ou satélite, vai permitir a transdução da energia captada para um outro produto,
como uma imagem digital. Esta imagem, por sua vez, será decifrada por uma mente que pode ou não ser
humana, responsável pela interpretação do registro da energia coletada e processada durante o levantamento.
É perceptível que há inúmeras mediações estabelecidas entre o objeto e a mente humana.
Entretanto, todo o universo é constituído por mediações: da mesma forma que a radiação
eletromagnética irradiada pelo Sol é capaz de desencadear o processo de fotossíntese em uma planta sem que
ela esteja em contato direto com a fonte da energia, a estrela interage com o organismo vivo, mas interage em
certa medida. A rocha, instada pela força da gravidade e pelas intempéries atmosféricas, desencadeia seu
deslocamento para um ponto menos elevado: a atmosfera, portanto, em certa medida entra em contato com a
rocha. A pele, ao tocar diretamente uma superfície, desencadeia uma resposta neurológica que será processada
por uma mente e que serve, em certa medida, como mediadora da superfície propriamente dita para uma mente.
Nesse sentido, é possível afirmar que toda e qualquer interação que existe no universo é permeada de
mediações, isto é, de signos. Daí a relevância da Semiótica, a ciência que estuda os signos e seus processos de
transformação (SANTAELLA, 2004).
Considerando o exposto, elenca-se alguns questionamentos sobre o processo de Sensoriamento
Remoto: de que maneira a interação física da radiação eletromagnética com o alvo e o sensor é transformada
em uma interação psíquica com a mente do usuário desses produtos? Se a mediação é um traço comum a todas
as formas de interação do ser humano com o mundo, qual seria a especificidade das mediações oportunizadas
pelos produtos de Sensoriamento Remoto? Como ocorre a interação da dimensão física da energia
eletromagnética com a dimensão psíquica do usuário? Essa “quebra” entre mente/matéria é um dos enigmas
que pode ser estudado pela Semiótica. Nas palavras de Abbagnano (2007):
Embora essa palavra [enigma] até hoje seja empregada com fins retóricos, tornou-se
imprópria para exprimir a atitude do homem moderno em face das limitações ou da
imperfeição do seu conhecimento do mundo. Enigma significa propriamente "adivinhação",
e a expressão enigma do mundo parece indicar que o mundo, como um gigantesco jogo de
adivinha, só tem uma solução que, uma vez encontrada, eliminaria todos os problemas. O
que, por certo, é uma visão bastante pueril, pois o mundo não tem enigma, nem no plural nem
no singular, mas só problemas para os quais existem soluções mais ou menos adequadas,
nunca definitivas e sempre sujeitas a revisões (ABBAGNANO, 2007, p. 396).
Como ressalta Abbagnano (2007), o enigma não é atributo do mundo, mas da leitura do mundo
realizada pelo ser humano. As “adivinhações” do enigma podem ser mais ou menos satisfatórias, mais ou
menos elaboradas, mas não absolutas, pelo menos quando se trata de enigmas científicos. Além da passagem
de uma dimensão física/psíquica, outro enigma que se apresenta é sobre a maneira o usuário dos produtos de
Sensoriamento Remoto consegue adivinhar as características do seu objeto de estudo.
A ideia apresentada neste texto considera que os dois enigmas têm como elemento central o conceito
de signo. Nesse sentido, o propósito central deste texto é discutir como ocorre o processo de transformação
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dos signos obtidos pela captura e processamento da radiação eletromagnética, que ocorre no âmbito físico,
com as informações e o conhecimento gerado pelo usuário desses produtos sobre o alvo de estudo, que ocorre
no âmbito psíquico. Propõe-se que este jogo de adivinhação pode ser compreendido a partir das discussões
semióticas de Charles Sanders Peirce.
O intuito dessas discussões é contribuir para tornar mais evidente o processo de Sensoriamento Remoto
que é, por vezes, “automatizado” pela prática e pelas aplicações técnicas. Analisar com um pouco mais de
detalhamento esse processo semiótico pode permitir aos professores a tomada de consciência dos diferentes
desafios que envolvem o ensino e a aprendizagem dessa prática. Para os profissionais que trabalham
diretamente com esses produtos, uma análise semiótica do processo pode contribuir para o aprimoramento das
reflexões construídas sobre os objetos de estudo. Aos estudantes, conhecer um pouco melhor as regras desse
jogo semiótico.
Para tanto, além da Introdução, o texto é organizado nas seguintes seções: primeiramente, é realizada
uma revisão de literatura para apresentar os instrumentais teóricos-metodológicos da Semiótica, com o intuito
de familiarizar o leitor com os recursos analíticos deste texto. Em seguida, é realizada uma leitura
fenomenológica e semiótica dos produtos gerados pelo Sensoriamento Remoto, elencando os pressupostos
teórico-metodológicos da teoria peirciana, sobretudo dos elementos da segunda tricotomia (ícone, índice e
símbolo). Posteriormente, é apresentado o princípio da continuidade da semiose como nexo para a articulação
entre o objeto e seus indícios coletados pelos sistemas sensores, bem como a transformação desses signos em
conhecimento pelo usuário.
2
DEFININDO AS REGRAS DO JOGO
O contato com o mundo é sempre uma experiência mediada: ao se realizar uma chamada telefônica
para alguém distante para se obter informações sobre a sua vida, o aparelho celular serve como elemento
mediador. Da mesma forma, ao se olhar diretamente para uma pessoa que se encontra à frente, as informações
obtidas pela visão, como o aspecto do rosto do interlocutor, o timbre da voz percebido pelo sistema auditivo
ou mesmo o seu cheiro são mediadas pelas ondas eletromagnéticas, sonoras e pelas partículas desprendidas
dos corpos (SANTAELLA, 2013). Isso significa que toda prática de sensoriamento é em maior ou menor grau
remota, pois aquilo que se denomina de contato direto implicaria na possibilidade de se realizar cognições sem
mediações, isto é, sem signos (CP1 5.251; SANTAELLA, 2004).
De acordo com o dicionário Michaelis (2022), a palavra remoto é de origem latina (remotus) e
significa algo que está afastado no espaço, distante. Para Meneses (2012), este termo foi usado em conjunto
com sensoriamento pela primeira vez por Evelyn L. Pruit e seus colaboradores em 1960 para denotar o
processo de obtenção de informações sobre um alvo, mesmo que através do vácuo, por intermédio da radiação
eletromagnética.
Os elementos responsáveis por realizar essas pontes entre os elementos que compõem o universo são
denominados signos. A consciência da existência dos signos pode ser encontrada pelo menos desde os gregos,
mas a sua sistematização enquanto ciência moderna ocorre apenas a partir da segunda metade do século XIX,
sobretudo com as contribuições do lógico, filósofo e matemático norte-americano Charles Sanders Peirce
(1839-1914). Na sua concepção semiótica, um signo pode ser definido como:
qualquer coisa que, de um lado, é assim determinada por um Objeto e, de outro, assim
determina uma ideia na mente de uma pessoa, esta última determinação, que denomino o
Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinado por aquele Objeto. Um
signo, assim, tem uma relação triádica com seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343,
destaque nosso).
Graficamente, as relações expressas na definição acima podem ser representadas de acordo com a
Figura 1. Ressalta-se que a tri-relatividade das relações incorporada no signo impede que seus elementos sejam
1
Convenção internacional para a menção à obra: PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. 8 v. Eds.: Hartshorne and
Weiss (v. 1-6); Burks (v. 7-8). Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1931-1958. Os números indicados após a
sigla CP se referem ao volume e ao parágrafo da citação.
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reduzidos à díadas (Objeto – Representamen; Representamen – Interpretante; Objeto – Interpretante), e o
Objeto, que tem a primazia ontológica no signo, é representado pelo Interpretante apenas nos termos
viabilizados pelo Representamen. O significado das relações de determinação e representação é tratado nos
parágrafos seguintes deste texto.
Figura 1 – Elementos e relações do signo.
Elaboração: O autor (2022).
Os termos empregados por Peirce na definição de signo são formais e abstratos, pois não foram
pensados para contemplar seu material constituinte, por exemplo, mas sua função lógica (SANTAELLA,
2004). Isso permite que qualquer elemento possa exercer o papel de signo, seja ele material ou imaterial, real
ou imaginário, sem deixar de ser também outra coisa: uma carta que carrega uma mensagem elaborada
remotamente por alguém é um signo, assim como a energia eletromagnética advinda de um alvo distante. A
partir dessa visão pansemiótica, Peirce afirma que “todo o universo está permeado de signos, se é que ele não
é composto exclusivamente de signos” (CP 5.448).
Nesse sentido, ao adaptar a definição formal de signo proposta por Peirce para os produtos do
Sensoriamento Remoto, pode-se dizer que:
[é uma imagem] que, de um lado, é assim determinada por um Objeto [o alvo] e, de outro,
assim determina uma ideia na mente de uma pessoa [o usuário das imagens], esta última
determinação, que denomino o Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente
determinado por aquele Objeto [o alvo]. Um signo, assim, tem uma relação triádica com
seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343, destaque nosso, inclusão nossa).
É importante ressaltar que o signo não é uma coisa, mas um engendramento lógico entre três entes: o
Objeto, que determina o Representamen e este, por sua vez, determina o Interpretante (SANTAELLA, 1995).
De forma mediada, o Objeto é representado pelo Interpretante, mas apenas nos termos definidos pelo
Representamen. Daí se apresentam duas relações que constituem o signo, quais sejam: a de determinação e a
de representação.
Afirmar que o Representamen é determinado pelo Objeto significa dizer que este elemento tem uma
primazia real sobre aquele, ou seja, que o Objeto exerce uma predicação sobre o Representamen
(SANTAELLA, 1995). Por predicação, entende-se, em lógica, como “o ato de unir um predicado a um sujeito
de uma proposição de forma a aumentar a extensão lógica sem diminuir a profundidade lógica” (CP 2.359),
isto é, uma operação que permite derivar informações do objeto. No caso da relação de representação, o Objeto
estabelece uma interação com o Interpretante, mas não de forma diádica: ele o faz a partir da mediação do
Representamen. Por esta razão, incorpora nessa dinâmica as determinações que exerce sobre o Representamen
e que este, por sua vez, exerce sobre o Interpretante. Ao se alterar o Representamen de um signo, transformase a determinação do Objeto e, consequentemente, a mediação com o Interpretante.
Segundo Pinto (1995), o Representamen é um termo técnico empregado por Peirce para designar
qualquer coisa que apresenta uma potencialidade não realizada de mediação. No contexto da cognição humana,
o Representamen é a forma que um signo pode assumir para ser interpretado. Uma imagem de satélite, por
exemplo, materializa as possibilidades de comunicação das informações que potencialmente carrega sobre um
alvo, mas o seu Representamen independe do fato de que esse signo possa ser encontrado por alguém ou
mesmo interpretado corretamente: por esta razão que o autor afirma que todo signo é composto por um
Representamen, mas nem todo Representamen é signo (PINTO, 1995).
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Na definição apresentada de signo, a imagem de satélite é “diretamente controlada” pelo alvo
imageado, que neste caso desempenha o papel de Objeto. A noção de determinação vem da força exercida pelo
alvo sensoriado, que literalmente marca o Representamen com a sua energia. Embora o sujeito não veja
diretamente o alvo, mas o seu signo, ele se torna mediatamente acessível por meio de uma representação.
Já a representação envolve “estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para
certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (CP 2.273, destaque nosso). No
Sensoriamento Remoto, a relação de representação é evidente: não se trata de ter acesso total e irrestrito
(“direto”) ao alvo, mas aos padrões de energia eletromagnética que dele derivam e atingem os sensores. Tratase dos atributos energéticos do alvo, mas a totalidade da área imageada contém caracteres que são apenas
parcialmente detectados pelos sensores. Assim, toda e qualquer operação de Sensoriamento Remoto envolve
a coleta e a transformação de signos, que estão, sob certa medida e para certos propósitos, sendo considerados
como estando no lugar dos alvos.
A relação de determinação do Objeto para com o Representamen não é biunívoca: mesmo que a
radiação eletromagnética seja o principal elemento que controle os traços impregnados nos produtos dos
sensores, esta relação é mediada por este sistema, cujas especificidades podem gerar imagens muito distintas:
basta imaginar que duas imagens de satélite, mesmo que sejam obtidas de uma mesma cena, apresentam
potencialidades comunicativas muito diversas se possuírem resoluções radiométricas distintas, por exemplo.
Além disso, entre o alvo e o sensor, a atmosfera terrestre desempenha um papel importante no comportamento
da radiação eletromagnética, refletindo, absorvendo e refratando o fluxo radiante (JENSEN, 2009; NOVO,
2010). Neste sentido, esse processo revela que o signo possui ao menos dois tipos de Objeto: o imediato, que
é uma porção limitada e parcial da totalidade do alvo, e o dinâmico, que corresponde a todos os caracteres do
fenômeno imageado e não apenas aos traços captados pelos sistemas sensores (SANTAELLA, 1995;
SILVEIRA, 2007).
Um signo não precisa ter necessariamente apenas um Objeto. Na verdade, a multiplicidade é regra no
universo semiótico. No caso dos produtos oriundos do Sensoriamento Remoto, as imagens contêm as marcas
não apenas do alvo, mas do próprio equipamento imageador, do horário em que realizou o procedimento (que
afeta a disponibilidade de energia captada da cena), da altitude em que se encontra numa certa posição orbital,
das coordenadas do local, dentre outros, como bem apontam Camargo e Gudwin (2022). Por essa razão que a
afirmação de que a imagem de satélite é “diretamente controlada” pelo alvo imageado deve ser recebida de
forma parcimoniosa. Este fato torna claro que a capacidade informativa potencial de um signo não reside
inteiramente na habilidade interpretativa do usuário, pois é uma propriedade objetiva dos signos.
A relação que existe entre o signo e seu Objeto não ocorre da mesma forma na natureza. Uma palavra,
por exemplo, está no lugar de uma ideia de maneira distinta da fumaça para o fogo; da mesma forma, a
semelhança de uma nuvem com um animal ocorre de maneira diferente do caso anterior. Como a diversidade
de signos envolve os fenômenos de toda natureza (físico, mental, onírico, químico, energético, etc.), a
Semiótica peirciana demanda o amparo de uma quase-ciência que tem como único objetivo desenvolver
categorias universais para identificar a peculiaridade dos fenômenos, que é denominada Fenomenologia (ou
Faneroscopia) (SANTAELLA, 2004 e 2013).
De acordo com Peirce (CP 1.284), “Faneroscopia é a descrição do faneron (phaneron); com este
termo designo tudo o que é presente ao espírito, sem cuidar se corresponde a algo real ou não”. Ainda,
segundo o autor, deve-se ficar entendido que “o que temos a fazer enquanto estudantes de fenomenologia é
simplesmente abrir os olhos do espírito e olhar bem os fenômenos e dizer quais suas características, quer o
fenômeno seja externo, quer pertença a um sonho, ou uma ideia geral e abstrata da ciência” (CP 1.41). A
Fenomenologia peirciana considera a existência de três grandes categorias denominadas primeiridade,
secundidade e terceiridade:
A Categoria-Primeiro [primeiridade] é a Idéia daquilo que é independentemente de algo mais.
Quero dizer, é uma Qualidade de Sensação. Categoria-Segundo [secundidade] é a Idéia
daquilo que é, como segundo para algum primeiro, independente de algo mais, em particular
independente de Lei, embora podendo ser conforme uma Lei. O que é dizer, é Reação como
um elemento do Fenômeno. Categoria-Terceiro [terceiridade] é a Idéia daquilo que faz de
Terceiro, ou Medium, entre um Segundo e seu Primeiro. Quer dizer, é Representação como
um elemento do Fenômeno (CP 1.66, destaques do autor, grifos nosso).
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Embora o trecho seja conciso, ele sintetiza várias implicações nas relações sígnicas que são de interesse
para o Sensoriamento Remoto. Em primeiro lugar, demonstra que as categorias fenomenológicas são
universais e não particulares, estando presentes de forma simultânea em um determinado fenômeno: por esta
razão que o alvo a ser sensoriado pode ter predominância na secundidade, mas também permite vislumbrar a
primeiridade e a terceiridade.
Em segundo lugar, o trecho evidencia que os atributos do alvo pertencem ao universo da primeiridade
(das qualidades), mas estas só podem ser percebidas quando incorporadas no universo da existência
(secundidade). O reconhecimento ou a categorização de um atributo como qualidade típica de um fenômeno
envolve a conformação da primeiridade e secundidade à certas leis (terceiridade). Portanto, sem a terceiridade,
não haveria o reconhecimento de padrões ou hábitos na natureza ou nos sinais captados pelos sistemas
sensores; sem secundidade, não haveria tangibilidade do alvo sensoriado; sem primeiridade, não haveria
informação a ser derivada pela prática do Sensoriamento Remoto.
Segundo Peirce, há três formas de determinação do objeto para com o signo: o ícone, o índice e o
símbolo (CP 4.531). Elas envolvem a articulação do signo em relação ao seu Objeto dinâmico, variando de
acordo com a predominância fenomenológica do Representamen.
2.1 Ícones e hipoícones no Sensoriamento Remoto
Ícones e hipoícones são signos que apresentam uma relação de semelhança com seu(s) objeto(s)
dinâmico(s). A diferença entre eles ocorre pela natureza da primeiridade na qual participam. Para Peirce:
276. Um ícone é um Representamen cuja Qualidade Representativa é uma sua Primeiridade
como Primeiro. Ou seja, a qualidade que ele tem qua coisa o torna apto a ser um
representamen. Assim, qualquer coisa é capaz de um Substituto para qualquer com a qual se
assemelhe [...].
277. Os hipoícones, grosso modo, podem ser divididos de acordo com o modo de
Primeiridade de que participam. Os que participam das qualidades simples, ou Primeira
Primeiridade, são imagens; os que representam as relações, principalmente as diádicas, ou as
que são assim consideradas das partes de uma coisa através de relações análogas de suas
próprias partes, são diagramas; os que representam o caráter representativo de um
representamen através da representação de um paralelismo com alguma outra coisa, são
metáforas (CP 2.276-77).
A determinação por meio de uma relação icônica ocorre quando o signo e o Objeto compartilham
alguma semelhança de alguma qualidade (primeiridade). Essas qualidades podem ser na forma, na estrutura,
na cor, na textura ou qualquer outro aspecto do fenômeno. No caso de uma imagem produzida por um sensor
remoto, a forma ‘circular’ de uma plantação irrigada por meio de um pivô central pode cumprir este requisito,
assim como os tons de cinza que preenchem a forma geométrica. Outro exemplo é a semelhança existente entre
o padrão de desmatamento denominado “espinha de peixe” com a coluna vertebral deste animal (Figura 2).
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Figura 2 – Relações de semelhança entre os signos e seus objetos.
Elaboração: O autor (2022) a partir do acervo gratuito do site Pixabay.com e Google Earth Pro (2022).
A relação triádica dos signos da Figura 2 pode ser atestada pelo fato de que entre a qualidade
“compartilhada” entre a imagem de satélite (o ‘Representamen’) e o alvo (seu ‘Objeto’) deve ser construída a
partir de um Interpretante. No caso, sem uma mente, seja ela humana ou não, para conjecturar uma semelhança
entre a forma circular e a área com irrigação por pivô central ou mesmo o padrão de desmatamento que
“lembra” uma espinha de peixe, o signo seria apenas uma potencialidade a ser realizada, ou seja, seria apenas
um representamen. Logo, pode-se estender esse entendimento para todo produto de Sensoriamento Remoto:
uma fotografia aérea, por exemplo, registra os atributos de um alvo e guarda uma potencialidade comunicativa
que será realizada quando uma mente apta para sua interpretação for acionada.
Apesar do reino das semelhanças das qualidades ser povoado por possibilidades das mais diversas,
como todo fenômeno da primeira categoria fenomenológica, Peirce identificou três principais tipos de relações
de semelhança que um signo pode possuir com seu Objeto: essas relações são denominadas de imagem,
diagrama e metáfora. Essas três subclasses pertencem ao domínio dos hipoícones, pois já apresentam traços
da categoria da secundidade pelo fato de serem tangíveis e, portanto, participarem do universo dos existentes.
2.1.1 IMAGEM, DIAGRAMA E METÁFORA NO SENSORIAMENTO REMOTO
A imagem é a primeira relação de semelhança e está inserida dentro do domínio da primeira categoria
fenomenológica peirciana: a primeiridade. De acordo com Peirce, além dessa categoria, o universo apresenta
fenômenos da secundidade e terceiridade, que são contínuas e não-exclusivas de todos os fenômenos.
Conforme Silveira (2007, p. 42, destaque nosso), “a primeiridade, como o próprio nome indica, é a base
primeira de toda realidade, sendo pressuposta nos confrontos existenciais, assim como em todo contínuo e em
toda generalização”.
Todas as possibilidades, qualidades, originalidades e espontaneidades do universo pertencem à
primeiridade. Silveira (2007) pontua que a primeiridade é ‘pressuposta’ na realidade porque seu domínio das
qualidades é (co)agido pelo domínio da existência da secundidade: a forma circular de um fenômeno presente
em uma fotografia aérea faz parte da forma materializada. Por estar realizada em algo, seu aspecto de
primeiridade é sufocado pela secundidade da existência. Existir é reagir, e todo fenômeno da experiência
empírica pertence ao domínio da secundidade. Por sua vez, a primeiridade subsiste na secundidade, pois para
ser pressuposta necessita de um meio para se realizar. Embora incorporada na secundidade, a primeiridade
permanece no fenômeno, mas só pode ser percebida de maneira pressuposta a partir da superação das amarras
da secundidade. De acordo com Pinto (1995):
Em outras palavras, uma imagem mimetiza seu objeto e o propõe através de si mesma. Esse
seria um simples processo referencial, isto é, o signo apontado para um referente, que consiste
na apresentação de algo como se fosse aquilo que é. Na relação imagem/objeto, portanto,
privilegia-se a identificação da qualidade material do ícone (seu fundamento) com a do
objeto. Nesse tipo de relação, o objeto é o referente constante (PINTO, 1995, p. 26, grifos do
autor).
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As primeiridades mais recorrentemente valorizadas na interpretação dos produtos de Sensoriamento
Remoto são: tonalidade/cor, textura, tamanho, forma, sombra, altura, padrão e localização (FLORENZANO,
2011). Toda imagem de satélite pode apresentar esses atributos, mas o modo que eles se realizam em
secundidades distintas torna cada produto particular.
Por esta razão que o atributo “circular” (primeiridade), que é usado como signo da área de cultivo
irrigada por um pivô central, não é um atributo exclusivo apenas da fotografia aérea, mas de vários objetos do
cotidiano, como um disco ou um prato, por exemplo. E mesmo existindo vários objetos ‘circulares’, esse
atributo pode desencadear interpretantes completamente diferentes, porque se encontram em signos de
existência (sinsignos) diferentes. Nas imagens de Sensoriamento Remoto, a forma circular fornece uma pista
importante para decifrar qual é o alvo avistado, porém de maneira altamente subjetiva e fortemente dependente
do contexto e da capacidade do usuário em realizar uma conjectura correta. A única forma do usuário
comprovar se sua hipótese é verdadeira é por meio da busca de signos indiciais, que apontam para fatos que
realmente existem no universo: trata-se de um movimento fundamental no jogo do Sensoriamento Remoto.
Além da aparência, um signo pode se assemelhar ao seu objeto por compartilhar uma semelhança de
estrutura. De acordo com Santaella (1995, p. 157), “os diagramas, por sua vez, representam por similaridade
nas relações internas entre signo e objeto. Não são mais as aparências que estão em jogo aqui, mas as relações
internas de algo que se assemelha às relações internas de uma outra coisa”.
Todos os tipos de gráficos são considerados diagramas, pois estão relacionados com seus fenômenos,
mas a sua aparência em nada se assemelha com os seus respectivos Objetos. Um gráfico sobre a evolução de
infectados pela Covid-19 em nada se assemelha na aparência com as pessoas contaminadas, mas
estruturalmente é compatível com a sua quantidade. A carta topográfica, por exemplo, é constituída por várias
dessas relações diagramáticas, a começar pela disposição das curvas de nível: as isoípsas apenas representam
a estrutura do relevo, mas em nada lembram uma montanha ou um vale, por exemplo (GARBIN e SANTIL,
2020). Da mesma forma, o histograma de uma imagem de satélite a ela se assemelha apenas no nível estrutural,
mas não no da aparência (Figura 3).
Figura 3 – O histograma apresenta uma relação diagramática com sua imagem de satélite.
Elaboração: O autor (2022) a partir de NASA (2022).
Embora a estrutura dos fenômenos seja o principal elemento na constituição de diagramas, isso não
significa que os diagramas não possam compartilhar, também, os atributos dos ícones imagéticos. Conforme
lembra Santaella (2005), a combinação e a mescla dos signos é uma regra geral no universo semiótico, sendo
as classes puras apenas presentes na formulação analítica da teoria semiótica. Na Figura 2, por exemplo, a
estrutura da espinha de peixe apresenta as conexões topológicas semelhantes ao padrão de desmatamento, qual
seja: a irradiação de pequenos filamentos de uma linha central. Trata-se de uma semelhança estrutural. Mas, a
qualidade formal desses filamentos também se assemelha na aparência: portanto, trata-se também de uma
relação imagética.
São vários os diagramas empregados para a fotointerpretação das imagens de satélite. Saito et al.
(2011), por exemplo, apresentam alguns dos padrões de desmatamento, bem como seus significados mais
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regulares no contexto da Amazônia legal, conforme demonstra o Quadro 1.
Quadro 1 – Tipologia dos diagramas dos padrões de desmatamento presentes na Amazônia legal a partir dos elementos
constituintes do signo na escala 1:100.000 (branco = desmatamento, preto = floresta).
Signo
Objeto (estrutura
de desmatamento)
Consolidado
Representamen (forma de
desmatamento)
Manchas grandes e contínuas de
desmatamento; forma variada; densidade
baixa e áreas pequenas de remanescentes
florestais; manchas compactas.
Difuso
Manchas pequenas, isoladas;
variada, irregular; baixa a
densidade; distribuição uniforme.
Espinha de peixe
Manchas grandes alongadas e lineares
com ramificações semelhantes à vértebra
de peixe; média densidade.
Área de projeto de Assentamento rural
do INCRA; pequenos e médios
estabelecimentos
rurais;
estágio
intermediário de ocupação.
Geométrico regular
Manchas médias a grandes e isoladas;
forma geométrica regular; baixa a média
densidade.
Médios e grandes estabelecimentos
rurais; atividades agropecuárias de
média a larga escala; estágio
intermediário de ocupação.
Multidirecional
desordenado
Manchas pequenas, médias e grandes;
manchas de formas variadas, irregulares,
complexidade elevada; média, alta
densidade; multidirecional.
Pode haver concentração fundiária;
pequenos,
médios
e
grandes
estabelecimentos
rurais;
estágio
intermediário de ocupação direcionada a
expansão, muitas vezes espontânea.
Unidirecional linear
Manchas médias e grandes; manchas de
forma alongada dispostas ao longo de
hidrografia ou vias de acesso; baixa
densidade.
Ocupação ribeirinha; ocupação ao longo
de estradas e vias de acesso; pequenos e
médios estabelecimentos rurais; estágio
inicial a intermediário de ocupação.
forma
média
Interpretante (resultado do
desmatamento)
Concentração fundiária; pequenos,
médios e grandes estabelecimentos
agropecuários; esgotamento da floresta;
fragmentação
florestal;
estágio
avançado de ocupação.
Áreas de ocupação espontânea;
pequenos produtores rurais; agricultura,
pecuária
e
extrativismo
para
subsistência;
estágio
inicial
de
ocupação.
Fonte: Adaptado de Saito et al. (2011).
Como a estrutura é o elemento possibilitador na construção das semelhanças e não propriamente a
aparência do fenômeno, essas estruturas podem ser visualizadas em signos cujos atributos visíveis sejam
distintos. Evidentemente, por compartilhar uma semelhança estrutural, a semelhança imagética também pode
ocorrer, mas não é este o elemento central na definição dos diagramas, conforme está exemplificado por meio
do Quadro 2. É importante ressaltar que a recorrência de determinados diagramas como um padrão de um
fenômeno aproxima o signo da terceiridade.
Quadro 2 – Recorrência da estrutura dos diagramas em ocorrências imageticamente distintas na escala 1:100.000
(branco = desmatamento, preto = floresta).
Signo
Padrão de desmatamento
Geométrico regular
Exemplo 1
Exemplo 2
Exemplo 3
Unidirecional linear
Elaboração: O autor (2022) a partir de Saito et al. (2011) e Google Earth Pro (2022).
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A terceira relação de semelhança que pode ocorrer entre o signo e seu objeto é denominado por Peirce
(2012) de metáfora e se constitui numa relação de paralelismo do signo com algo diverso. Segundo Santaella
(1995, p. 157), “extraem tão-somente o caráter, o potencial representativo em nível de qualidade, de algo e
fazem o paralelo com algo diverso. Há sempre uma forte dose de mentalização e de acionamento de
significados nas metáforas, daí elas serem hipoícones de terceiridade”.
O papel das metáforas para a cognição humana do mundo é recorrente e se manifesta nas mais diversas
situações, sendo este o objeto de estudo de Lakoff e Johnson (2003). Para os autores, as metáforas podem
demonstrar seu papel heurístico a partir dos mais variados exemplos: ao se considerar um debate como uma
‘guerra’ de argumentos, as metáforas permitem afirmar que determinadas ideias são ‘indefensáveis’, que o
interlocutor foi ‘direto ao alvo’ ou que os argumentos foram completamente ‘destruídos’ (LAKOFF e
JOHNSON, 2003). Ao estabelecer um paralelismo entre argumentar e guerrear, é possível estender a dimensão
conotativa que originalmente os signos linguísticos apresentavam.
É por esta razão que se costuma dizer que uma pessoa tem uma “pele de pêssego”, que o tempo está
“carrancudo” ou que “o mar não está pra peixe”. No Sensoriamento Remoto, as metáforas também
desempenham um papel heurístico estratégico, como pode ser expresso por meio do efeito “salt-and-pepper”
(sal e pimenta), que é um ruído “caracterizado por pequenos polígonos disseminados por toda a área mapeada
e que acabam por demandar operações de pós-processamento, como filtragens, para a sua eliminação”
(BRITES, BIAS e ROSA, 2012, p. 209), do ruído “stripping” (descascando), ou mesmo quando afirma-se que
uma área está ‘contaminada’ por nuvens, conforme ilustra a Figura 4. A metáfora é empregada para indicar
que a imagem parece ter sido “temperada” com grãos de sal e pimenta, que está sendo “descascada” ou que a
área de interesse não está “limpa”, e auxiliam na constatação de ruídos e que exigem operações de pré ou pósprocessamento.
Figura 4 – Ruídos “salt-and-pepper” (à esquerda), “stripping” (centro) e “contaminação por nuvens (à direita)”.
Fonte: Kolhe e Jain (2013, p. 2055) e USGS (2022).
O próprio título deste texto, que estabelece o paralelismo entre a prática do Sensoriamento Remoto
como jogo semiótico, permite estruturar uma argumentação semiótica de tal forma para facilitar um novo
concatenamento de ideias para se explorar novos aspectos desta prática. Nesse sentido, o jogo semiótico do
Sensoriamento Remoto exige a elaboração de diferentes semioses para se resolver o enigma dos signos
presentes nesses produtos. A chave para a solução desse mistério envolve as habilidades de encontrar
semelhanças do signo com seu Objeto dinâmico, que sempre se revelam parcialmente. Este Objeto dinâmico,
conforme já mencionado, é a própria realidade em todas as suas dimensões, podendo ser explorada no nível da
aparência (primeiridade, imagem), da estrutura (secundidade, diagrama) ou do paralelismo por meio de uma
ação mental (terceiridade, metáfora).
2.2 Os índices no Sensoriamento Remoto
Se a imagem de satélite corresponde ao signo e o seu referente ao Objeto dinâmico, e a relação de
semelhança percebida tem sempre um caráter hipotético, cabe esclarecer os mecanismos que o usuário recorre
para garantir que essas relações icônicas percebidas correspondam, de fato, a uma característica verdadeira do
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objeto e não a uma conjectura falsa. É aqui que se apresenta a necessidade da coleta de signos indiciais.
Diferentemente dos hipoícones, que dependem de uma mente para construir uma relação de
semelhança entre o signo e o Objeto, a relação estabelecida pelos índices não ocorre desta maneira: o índice é
factualmente afetado pelo seu objeto (SANTAELLA, 1995). Ainda segundo a autora:
Onde houver ligação de fato, dinâmica, por mais rudimentar que seja, aí haverá traço de
indexicalidade [...]. É claro que só funcionará como signo ao encontrar um intérprete, mas
não é este que lhe confere esse poder, e sim sua afecção com esse objeto. Quando o índice é
genuíno, realmente dual, o papel do intérprete é tão-só e apenas o de constatar a marca, no
signo, de sua afecção pelo objeto (SANTAELLA, 1995, p. 160, grifo nosso).
São os índices que permitem a conexão de uma imagem resultante do Sensoriamento Remoto com um
alvo particular. Segundo Peirce, os índices apontam para fenômenos individuais e de existência, ou seja, da
secundidade (CP 2.283). Por exemplo: o formato circular de uma área irrigada por pivô central é fixado pelo
sensor porque a área, que é circular, afeta factualmente o sensor; se a forma da área irrigada fosse quadrada, a
imagem produzida iria adquirir uma forma correspondente.
Percebe-se que a qualidade (primeiridade) da forma permanece no signo, mas a razão da forma fixada
ser esta e não aquela independe da capacidade de um usuário perceber ou concordar com esta semelhança.
Logo, no índice se sobressai a conexão dual entre o signo e seu objeto, cabendo ao interpretante “apenas” a
tarefa de perceber este fato, com o custo de, se errar nessa tarefa, em último grau, colocar a própria
sobrevivência em risco:
A sobrevivência de todas as espécies, e de cada membro individual de todas as espécies,
depende da decifração correta dos signos indexicais [...]. Os seguidores de trilhas de cavalos
ou outros animais, o profeta e o adivinho, o detetive, o historiador da arte, o médico, o
psicanalista e os cientistas modernos são, cada um a seu modo, leitores e intérpretes de
metonímias naturais no Livro da Natureza – do mesmo modo que nós temos a experiência
dos signos em nossa vida cotidiana, embora talvez de modo menos concentrado e menos
especializado (SEBEOK, 1991, p. 49 apud SANTAELLA, 1995, p. 157-8).
Isso ocorre porque os índices marcados nas imagens de Sensoriamento Remoto são factuais, ou seja,
a imagem digital é genuinamente afetada pelo Objeto (CP 2.283), mas essa relação genuína ocorre apenas no
instante da formação da imagem. Ao ser transmitida para uma central de processamento de dados ou mesmo
impressa, a imagem de satélite perde sua conexão real com o alvo, tornando-se apenas referencial, ou seja,
torna-se um índice degenerado.
Pode-se afirmar que é a decifração correta da posição dos astros celestes que permitiu ao ser humano
sua orientação no espaço, assim como é a decifração correta dos padrões de energia captados pelos sensores
remotos que permite ao usuário conhecer o Objeto, mesmo que remotamente. Se a imagem que retrata um alvo
não é o próprio alvo, mas um signo indicial (genuíno ou degenerado) que aponta para ele, então este signo
deve apresentar ou já apresentou uma conexão real com seu Objeto dinâmico, de tal modo que este contato
tenha marcado (modificado) o signo, como uma pegada na areia em relação ao pé, por exemplo. Ao entrar em
contato com o Representamen, o Objeto também transfere parte de seus caracteres, tornando o signo
potencialmente apto para comunicar as qualidades do Objeto.
No caso das imagens de Sensoriamento Remoto, o meio empregado para deixar essa marca do objeto
no signo é a radiação eletromagnética (REM) (JENSEN, 2009; NOVO, 2010). Portanto, não é o alvo
propriamente dito que é diretamente sensoriado, mas a REM que deixa um determinado corpo e, ao colidir
com o sensor posicionado em um satélite, transmite ao sensor uma quantidade específica de energia produzida
pelo alvo em questão. Existe uma conexão física entre o signo e o objeto, que são as ondas eletromagnéticas e
os fótons: a teoria construída pelo usuário sobre a relação entre a energia e o corpo é uma conjectura, mas a
relação da energia com o corpo são fatos materiais (MONTEIRO, 2018).
Embora a distância entre um usuário dos produtos de Sensoriamento Remoto dentro do seu gabinete e
o alvo seja relativamente grande, impossibilitando a constatação ‘direta’ do fenômeno, no dia a dia o processo
de decifrar os índices que permeiam a rotina também é resultado das conjecturas de raciocínios hipotéticos.
Ao olhar, neste momento, a tela do dispositivo eletrônico ou o papel que se encontra há poucas dezenas de
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centímetros de distância, o mecanismo de transmissão, recepção e decodificação dos índices ocorre de maneira
mediada.
Talvez, no limite, pode-se dizer que toda interação da mente humana com o universo ocorre de maneira
remota, pois as conexões energéticas, mesmo que ocorram em níveis subatômicos, mediam o nosso contato
com o mundo, e as mentes humanas estão o tempo todo decifrando esses enigmas (SANTAELLA, 1998).
3
O SENSORIAMENTO REMOTO COMO JOGO COLETIVO
Embora a atividade de interpretação de uma imagem de satélite possa ser realizada a partir da ação
individual, o jogo do Sensoriamento Remoto é sempre coletivo, assim como toda atividade científica. De
acordo com Peirce (2008), toda investigação decorre da necessidade humana em superar um estado de dúvida
e atingir um estado de crença. Em linhas gerais, no estado de crença existe a segurança das certezas sobre as
questões que se impõem à vida, mas a partir do momento em que uma dúvida escapa às crenças anteriores,
instaura-se um estado bastante desconfortável de ausência de segurança para tomar as decisões adequadas e
que é denominado estado de dúvida.
Há vários níveis de dúvidas no qual o ser humano se depara: desde a incerteza sobre a possibilidade
de chuva para levar uma capa impermeável ao trabalho, até a incerteza sobre o aumento ou diminuição do
desmatamento de uma área de estudo. Ao esforço de superação do estado de dúvida e a chegada a um estado
de crença, Peirce denominou investigação (PEIRCE, 2008).
A investigação científica é constituída por importantes diferenciais em relação às outras formas de
construção de conhecimento. De acordo com Peirce (2008), o método da ciência considera que existe uma
realidade externa, que não deve ser restringida ao indivíduo, ou seja, uma realidade que possa ser atestada por
uma coletividade, garantindo que qualquer pessoa encontre os mesmos resultados, caso siga adequadamente
os procedimentos de análise. Além disso, os resultados obtidos nessa busca “devem ser públicos e submetidos
à crítica do outro” (SANTAELLA, 2004b, p. 73), possibilitando o progresso da ciência e a busca da verdade
(sempre de caráter temporário) em uma constante construção.
O caráter provisório do conhecimento gerado pela investigação e sua necessidade de estar em
permanente reexame por uma comunidade de pesquisadores não significa que a verdade ou falsidade é uma
questão de acordo cultural ou conveniência histórica, mas que existe um estado das coisas que insiste na sua
condição de real e que a longa caminhada humana deve tentar ao máximo se aproximar (SANTAELLA,
2004b). Na prática, isso significa que em uma situação hipotética de dois usuários de uma mesma imagem de
satélite que apresentem conclusões absolutamente discordantes, um deles terá sua hipótese radicalmente
corrigida ao ser posta à prova de uma comunidade de investigadores, pois o método científico pressupõe a
existência de uma realidade externa, que não é mero produto da subjetividade humana (SANTAELLA, 2004b).
É por esta razão que os índices são fundamentais para apontar a realidade no processo de investigação
científica.
O processo de comunicação entre os investigadores de uma comunidade científica que reexamina os
resultados obtidos pela pesquisa é viabilizado pelo compartilhamento de um fundamento comum que une as
mentes dos interlocutores, denominado por Peirce de commens: “uma mentalidade coletiva, contínua,
resultante das mentes envolvidas na comunicação” (ROMANINI, 2016, p. 27). A construção de um
fundamento comum para os investigadores é resultado da generalização das sensações e observações
individuais, o que cria uma cultura (ROMANINI, 2016). Pode-se afirmar que os usuários especialistas na
interpretação dos produtos oriundos do Sensoriamento Remoto compartilham uma mesma cultura, impregnada
de conceitos, ideias, crenças, isto é, de signos da terceiridade, que não se restringem ao saber do indivíduo,
mas que cresce e se generaliza coletivamente (GARBIN, 2020).
Um signo que é um geral e não um particular pertence ao universo fenomenológico da terceiridade
(SANTAELLA, 1995; SILVEIRA, 2007), recebendo a denominação de símbolo. Ele “é um signo que se refere
ao objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de ideias gerais que opera no
sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo àquele objeto” (CP 2.249). Sem o
símbolo, não haveria a possibilidade de aprendizado das técnicas de Sensoriamento Remoto. Os símbolos
podem ser classificados como resultantes ou não de uma convenção, entendida como “as relações semióticas
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colocadas por uma comunidade humana entre um signo e o que ela transmite, sem que o signo e o seu objeto
sejam ligados de outra maneira a não ser por essa convenção” (SCHAEFFER, 1996 apud SANTAELLA,
2013, p. 241).
3.1 Símbolos convencionais no Sensoriamento Remoto
As imagens de satélite não são produtos triviais e exigem uma preparação específica para o usuário
conseguir decifrá-la. Evidentemente, por apresentar relações imagéticas, usuários não-especialistas podem
conjecturar semelhanças entre a forma avistada e um tipo de alvo já conhecido (Figura 2), mas as operações
mentais mais sofisticadas (Quadro 1) exigem um conhecimento sobre o funcionamento e características dos
sensores, do comportamento e interação da REM, dentre outros.
Durante seu processo formativo, o usuário entrará em contato com os conceitos, exemplos, aulas e
experiências das mais diversas com o intuito de internalizar um determinado estado de conhecimento científico
mínimo que viabilize o uso dos produtos dos sistemas sensores (GARBIN, 2020). É a generalidade dos
processos apreendidos, exercitados e internalizados pelo estudante que vai incorporá-lo à uma cultura - a
cultura dos especialistas em Sensoriamento Remoto -, que fornece o código necessário para desvendar os
enigmas da natureza cifrados pelos sistemas sensores.
De acordo com Merrel (2012, p. 146), “um símbolo como a palavra “trem” não evidencia nenhuma
conexão particular com “trens” em geral ou com algum “trem” em particular, a menos que haja uma conexão
estabelecida por um outro agente semiótico, isto é, a menos que a conexão seja feita pela mente”. Da mesma
forma, a relação existente entre os níveis de cinza de uma imagem em uma determinada banda só é reconhecida
como um Interpretante efetivo caso o usuário desses produtos conheça um conjunto suficiente de símbolos que
convencionalmente sintetizam esse estado de conhecimento.
Quando Jensen (2009) e Novo (2010), por exemplo, apresentam as formas de interação possíveis da
REM com a matéria, expressando os conceitos de absorção, reflexão e espalhamento, estão contribuindo com
o processo de aprendizagem dos símbolos necessários para interpretar uma imagem de satélite. Nesse sentido,
a formação de um símbolo convencionalizado assume uma dinâmica semelhante ao enriquecimento do léxico
técnico do usuário, que não inventa novos termos, mas compartilha com os demais membros da comunidade
um repertório tal que permita a comunicação entre seus pares.
Vale ressaltar que exatamente pela condição típica de terceiridade, nenhum conjunto de ícones ou
índices pode esgotar ou se equivaler ao caráter geral das leis ou hábitos que são os caracteres dos símbolos,
pois “o símbolo não denota uma coisa particular, mas um tipo de coisa, assim como o interpretante de um
legissigno simbólico não se esgota na situação dinâmica da ocorrência de uma de suas réplicas”
(SANTAELLA, 1995, p. 178). Portanto, as consequências geradas pelos símbolos são formais e não materiais.
Segundo Peirce:
Qualquer palavra comum, como “dar”, “pássaro”, “casamento”, é exemplo de símbolo. O
símbolo é aplicável a tudo o que possa concretizar a idéia ligada à palavra: em si mesmo, não
identifica essas coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza, diante dos nossos olhos,
uma doação ou um casamento, mas supõe que somos capazes de imaginar essas coisas, e a
elas associar a palavra (CP 2.298).
A relação simbólica fica evidente ao considerar os padrões generalizados de desmatamento e seus
respectivos significados, conforme foi expresso pelo Quadro 1. É o símbolo que, ao incorporar um diagrama
que representa um padrão de um processo, permite, por exemplo, o reconhecimento dos traços em comum nos
exemplos do Quadro 2.
3.2 Símbolos não-convencionais no Sensoriamento Remoto
No jogo do Sensoriamento Remoto, os símbolos não se restringem aos hábitos convencionalizados na
interpretação das imagens de satélite, mas aos padrões de comportamento, sejam dos agentes semióticos
humanos, sejam das leis da natureza. Portanto, se os símbolos convencionais exigem do usuário o aprendizado
de um código para decifrá-los, os símbolos não-convencionais independem da capacidade individual de
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realizar julgamentos.
Isso acontece porque, segundo Peirce (CP 5.93), a terceiridade existe e é operatória na natureza. É a
existência de leis gerais e certos hábitos repetidos de comportamento no universo que permite, por exemplo,
afirmar que uma pedra colocada em um local sem obstáculo entre ela e o soalho, ao ser solta vai cair ao chão.
Mas como é que se pode saber disso? Peirce responde:
É claro que não entra clarividência no caso [...]. Sei que a pedra cai se eu deixar, porque a
experiência me convenceu que objetos semelhantes a ela sempre caem [...]. Mas a
proposição geral que estabelece que todos os corpos sólidos caem na ausência de força ou
pressão é uma fórmula de natureza representativa (CP 5.94-97, destaque nosso).
A lei da gravidade, portanto, apresenta uma natureza de terceiridade: ela governa a ação dos objetos
deixados sem um anteparo, o que permite adivinhar o que vai acontecer com os demais objetos que estiverem
na mesma circunstância.
No Sensoriamento Remoto, a regularidade imperfeita do comportamento da natureza expressa pelos
símbolos não-convencionais é que permite o reconhecimento da resposta espectral habitual dos alvos. Esses
símbolos da natureza são introjetados não apenas na mente dos usuários, mas no próprio funcionamento dos
sistemas sensores. Conforme aponta Novo (2010, p. 242), essas regularidades influenciam “à própria definição
de novos sensores, à definição do tipo de pré-processamento a que devem ser submetidos os dados brutos ou
mesmo à definição da forma de aquisição dos dados”.
Quanto ao papel dos símbolos naturais para as cognições humanas, o comportamento habitual da
resposta espectral dos alvos é uma condição necessária para que um determinado alvo seja identificado. Para
Novo (2010, p. 243), “teoricamente, se a reflectância de um objeto pudesse ser medida em faixas espectrais
adjacentes e estreitas ao longo da região reflexiva do espectro, poder-se-ia construir um gráfico
representativo de sua assinatura espectral”.
O gráfico mencionado pela autora generaliza a estrutura do comportamento médio espectral de uma
folha, que poderá ser usada para se construir semelhanças entre sua resposta espectral com a do alvo em questão
(Figura 5).
Figura 5 – Assinatura espectral (média) da folha verde.
Fonte: IBGE (2001, p. 36).
Conforme exposto nas seções anteriores, o signo da Figura 5 apresenta uma mescla de hipoícones,
índices e símbolos. Os hipoícones são do tipo diagramático, porque apresentam uma semelhança no nível
estrutural da radiação refletida por meio de um gráfico. Os índices são de natureza degenerada, pois o gráfico
foi construído a partir da resposta factual da radiação eletromagnética medida por um espectrorradiômetro, por
exemplo. No que se refere à natureza simbólica, pode-se constatar a natureza convencional e não-convencional
do signo: a primeira, porque a definição dos eixos do plano cartesiano (x = comprimento de onda; y =
reflectância) é um padrão desse tipo de gráfico; quanto a natureza não-convencional, ela se apresenta na
resposta habitual da REM dos pigmentos, estrutura e conteúdo de água da folha do vegetal que servirá como
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elemento generalizador da experiência.
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A PRIMEIRA RODADA
Ainda que o conhecimento das diferentes etapas do jogo semiótico do Sensoriamento Remoto permita
aos jogadores uma noção de como as partidas funcionam, torna-se imprescindível que este jogo seja
compreendido panoramicamente, como faz a Figura 6.
Figura 6 – Diagrama dos elementos que participam da semiose do Sensoriamento Remoto.
Fonte: Adaptada de Camargo e Gudwin (2022).
A Figura 6 apresenta as relações semióticas discutidas até o momento: o alvo imageado assume a
posição lógica do Objeto dinâmico, pois participa do universo dos fenômenos tangíveis, isto é, da secundidade.
Esta secundidade comporta uma série de propriedades que dela predicam: as formas espaciais, o tamanho, a
textura da cobertura do solo, o sombreamento, a altura, dentre outros atributos que são típicos da primeiridade.
Os processos naturais e antrópicos que interferem na conformidade das características do alvo, por serem da
natureza da terceiridade, permitem o reconhecimento de padrões de comportamento dos elementos da cena.
Portanto, nota-se que as categorias fenomenológicas operam simultaneamente e sua separação é apenas um
recurso analítico para visualizar o engendramento da semiose.
O primeiro salto evidenciado pela Figura 6 na semiose do Sensoriamento Remoto é a transdução da
energia do alvo (que ocorre no âmbito físico do ambiente) para um outro substrato material (também físico)
que vai representar o Objeto dinâmico, seja por meio de um pulso elétrico, seja por meio de uma imagem
digital. O termo transdução escolhido por Camargo e Gudwin (2022), em um sentido mais estrito, é
empregado na Biologia para indicar a “transferência de material genético entre bactérias, através de um vírus
que se multiplica no interior dos microrganismos” (MICHAELIS, 2022, s.p.) e nas engenharias como “a
conversão de um sinal de uma forma física para outra forma física, isto é, uma conversão energética”
(PALLÀS-ARENY e WEBSTER, 2001, p. 2, tradução livre). É curioso notar que tanto no contexto da Biologia
quanto no das engenharias há uma determinação de um ente (o vírus ou a energia – o Objeto) para um ‘veículo
sígnico’ (a bactéria ou o sinal convertido – o Representamen). Trata-se, portanto, de uma transdução de um
Objeto (o alvo) para um Representamen (o sinal gerado pela captura da radiação eletromagnética do Objeto)
por meio de uma relação de determinação.
A segunda relação de determinação presente na Figura 6 está situada na transdução do Representamen
para um Interpretante, que no contexto do Sensoriamento Remoto ocorre na passagem do âmbito físico para o
psíquico. As semioses possíveis são diversas, a depender do repertório e da capacidade cognitiva do usuário
em jogar com as pistas cifradas pela natureza e pelo processamento dos sinais elétricos registrados pelos
sistemas sensores.
Caso o jogador tenha em seu repertório o conhecimento dos padrões existentes nesses produtos que
indicam as circunstâncias do imageamento, ele poderá apostar (“abduzir”) na direção de realização do voo, na
angulação da arfragem, na rotação ou mesmo na deriva da aeronave, no seu ângulo de depressão, dentre outros
atributos registrados colateralmente pelo sensor durante o imageamento e que podem ser acessados também
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de forma colateral pelo usuário. Esses atributos da primeiridade podem ser usados para a formação de
hipoícones que poderão se remeter hipoteticamente ao Objeto dinâmico, em um movimento inverso às
transduções anteriores, ou seja, do âmbito psíquico para o físico.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se considerar a metáfora do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, é possível evidenciar a
pertinência do conceito de signo nesse processo e os desafios envolvidos na construção de conhecimento a
partir dos produtos oriundos de sistemas sensores. As imagens de satélite participam dessa semiose como signo
e como representamen: realizam uma possibilidade de estarem, em certa medida, no lugar do alvo para uma
certa mente.
O elemento mediador é a REM que é refletida pelo alvo, que literalmente marca o sensor remoto e o
permite criar índices genuínos e/ou degenerados do alvo a ser estudado. O signo, a partir da lei da continuidade
entre o universo físico e psíquico, é sorvido por uma mente apta a reconhecer relações de similaridade na
aparência, na estrutura ou no paralelismo com algo diverso.
As relações de semelhança de aparência são típicas das imagens, que permitem ao usuário associar o
signo ao Objeto dinâmico, mas apenas de forma hipotética. No Sensoriamento Remoto, as relações de
semelhança derivam da tonalidade/cor, textura, tamanho, forma, sombra, altura, padrão e localização dos alvos.
Os níveis de cinza, o histograma ou mesmo os números digitais que estruturam esses produtos também
permitem a busca de semelhanças estruturais por meio de diagramas. As metáforas, por sua vez, servem para
ampliar o domínio de significado do signo a partir de uma comparação estritamente mental. Os elementos que
permitem o uso da imagem de satélite como substituto de uma área devem ser de alguma forma ligada a elas,
resultando em signos indiciais.
Embora a assinatura energética dos alvos seja um fenômeno da natureza, os especialistas em
Sensoriamento Remoto necessitam de formação para permitir que esses padrões sejam decifrados. Portanto,
de um lado, verifica-se a existência de símbolos não-convencionais (da natureza) e, do outro, símbolos
convencionais. Estes símbolos convencionais permitem à comunidade de investigadores dialogar e se apropriar
de um determinado estado de conhecimento científico: daí a razão de se afirmar que o jogo do Sensoriamento
Remoto é sempre coletivo.
Embora as regras estejam postas por meio do conhecimento técnico, o sucesso da partida depende da
criatividade dos jogadores na geração de raciocínios ampliativos. Que comecem os jogos.
Contribuição dos Autores
O autor foi responsável pela pesquisa, conceptualização, redação, revisão e edição final.
Conflitos de Interesse
O autores informa que não há conflitos de interesse.
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Biografia do autor
Estevão Pastori Garbin é natural de Iporã/PR e nascido em 1991. É bacharel e
licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), com
mestrado e doutorado em Geografia pela mesma instituição. Fez estágio na
Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Técnica de Lisboa (20122013) e atua como docente no Ensino Superior em instituições públicas e privadas
desde 2016. Ministra a disciplina de Introdução à Semiótica dos Mapas no
Programa de Pós-Graduação em Geografia (PGE/UEM) com o intuito de favorecer
o diálogo entre a Semiótica e a Cartografia. Atualmente, é professor do
Departamento de Geografia da UEM.
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