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Sensoriamento Remoto como Jogo Semiótico

Revista Brasileira de Cartografia

A partir da metáfora do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, este artigo tem como propósito apresentar uma leitura semiótica do processo de obtenção e interpretação dos produtos oriundos dos sistemas sensores. Para tanto, empregou-se a teoria semiótica de Charles Sanders Peirce como fundamento teórico, sobretudo suas discussões sobre a estrutura do signo, as categorias fenomenológicas e as relações evidenciadas pela segunda tricotomia, quais sejam: dos ícones, índices e símbolos. O argumento central é que o emprego da metáfora do jogo para a prática do Sensoriamento Remoto permite um olhar mais minucioso sobre este processo, pois as abordagens desta prática costumam valorizar sobremaneira as discussões do âmbito físico, protagonizado pela radiação eletromagnética, mas deixam em um segundo plano as discussões sobre como os signos participam da semiose que permite a construção de conhecimento a partir desses registros. Como resultado, evidenciou-se como a noção de signo pode cone...

Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 Revista Brasileira de Cartografia ISSN 1808-0936 | https://doi.org/10.14393/revbrascartogr Sociedade Brasileira de Cartografia, Geodésia, Fotogrametria e Sensoriamento Remoto Sensoriamento Remoto como Jogo Semiótico Remote Sensing as a Semiotic Game Estevão Pastori Garbin 1 1 Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Geografia, Maringá, Brasil. [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4513-9298 Recebido: 12.2022 | Aceito: 03.2023 Resumo: A partir da metáfora do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, este artigo tem como propósito apresentar uma leitura semiótica do processo de obtenção e interpretação dos produtos oriundos dos sistemas sensores. Para tanto, empregou-se a teoria semiótica de Charles Sanders Peirce como fundamento teórico, sobretudo suas discussões sobre a estrutura do signo, as categorias fenomenológicas e as relações evidenciadas pela segunda tricotomia, quais sejam: dos ícones, índices e símbolos. O argumento central é que o emprego da metáfora do jogo para a prática do Sensoriamento Remoto permite um olhar mais minucioso sobre este processo, pois as abordagens desta prática costumam valorizar sobremaneira as discussões do âmbito físico, protagonizado pela radiação eletromagnética, mas deixam em um segundo plano as discussões sobre como os signos participam da semiose que permite a construção de conhecimento a partir desses registros. Como resultado, evidenciou-se como a noção de signo pode conectar as dimensões física/psíquica do Sensoriamento Remoto, as limitações semióticas desses registros na representação do Objeto dinâmico e a recorrência das estratégias heurísticas das relações imagéticas, indiciais e metafóricas no processo de transdução das feições desses produtos. Palavras-chave: Charles Sanders Peirce. Signo. Semiose. Imagens de satélite. Abstract: Based on the metaphor of remote sensing as a semiotic game, this article aims to present a semiotic interpretation of the process of obtaining and interpreting products from remote sensing. For that, Charles Sanders Peirce's semiotic theory was used as a theoretical foundation, especially his discussions on the structure of the sign, the phenomenological categories and the relationships evidenced by the second trichotomy, namely: icons, index and symbols. The central argument is that the use of the metaphor of the game for the practice of Remote Sensing allows a more detailed look at this process, since the approaches of this practice tend to greatly promote discussions of the physical scope, played by electromagnetic radiation, but leaves in a second plan the discussions about how the participating signs of semiosis that allows the construction of knowledge from these registers. As a result, it became evident how the notion of sign can connect the physical/psychic dimensions, the semiotic limitations of these registers in the representation of the dynamic object and the recurrence of imagery, indexical and metaphorical relationships in the process of transduction the features of these products. Keywords: Charles Sanders Peirce. Sign. Semiosis. Satellite images. 1 INTRODUÇÃO No jogo do Sensoriamento Remoto é preciso decifrar as pistas fornecidas pela natureza usando conhecimento técnico e criatividade: a natureza fornece os enigmas, e o jogador procura desvendá-los. Também é um jogo sempre coletivo, mesmo que o jogador se encontre sozinho em seu gabinete. Da energia que deixa os alvos até a resposta cognitiva do usuário das imagens de satélite, além da radiação eletromagnética (REM), participa um outro elemento fundamental pouco creditado nas geociências e que é abordado nesse texto: o signo. Nas definições mais recorrentes de Sensoriamento Remoto, é frequente a menção à energia eletromagnética, mas não ao trabalho desempenhado pelos signos. Para Jensen (2009, p. XIII, destaque nosso), o “Sensoriamento Remoto é a arte e a ciência de obter informação sobre um objeto sem estar em contato 1 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 físico direto com o objeto”. Novo (2010) entende o Sensoriamento Remoto como sendo a utilização conjunta de sensores e os demais equipamentos para o processamento e transmissão de dados “com o objetivo de estudar eventos, fenômenos e processos que ocorrem na superfície do planeta Terra a partir do registro e da análise das interações entre a radiação eletromagnética e as substâncias que o compõem em suas mais diversas manifestações” (NOVO, 2010, p. 28, destaque nosso). Para Zanotta, Ferreira e Zortea (2019, p. 11), “é a prática de obter informações sobre a superfície da Terra por meio de imagens adquiridas do espaço, utilizando radiação eletromagnética refletida ou emitida, em uma ou mais regiões do espectro eletromagnético”. Sem dúvida, essas definições apresentam os aspectos centrais do sensoriamento remoto, por ressaltarem a ausência de um contato físico direto com o alvo e o trabalho intelectual do usuário desses produtos em reconstruir mentalmente o objeto a partir da resposta de sua radiação eletromagnética. Neste artigo, propõe-se que esta prática funciona como uma espécie de jogo: o usuário deve desvendar as características de um objeto de estudo sem, necessariamente, ter acesso direto a ele. É da ausência desse contato direto com o objeto que se refere o termo remoto. O adjetivo deixa implícito que o contato entre o usuário e seu alvo ocorre de forma mediada: de um lado, os traços do objeto são obtidos a partir da radiação eletromagnética que interage com ele e é transmitida ao sensor. O sensor, seja ele embarcado em um drone ou satélite, vai permitir a transdução da energia captada para um outro produto, como uma imagem digital. Esta imagem, por sua vez, será decifrada por uma mente que pode ou não ser humana, responsável pela interpretação do registro da energia coletada e processada durante o levantamento. É perceptível que há inúmeras mediações estabelecidas entre o objeto e a mente humana. Entretanto, todo o universo é constituído por mediações: da mesma forma que a radiação eletromagnética irradiada pelo Sol é capaz de desencadear o processo de fotossíntese em uma planta sem que ela esteja em contato direto com a fonte da energia, a estrela interage com o organismo vivo, mas interage em certa medida. A rocha, instada pela força da gravidade e pelas intempéries atmosféricas, desencadeia seu deslocamento para um ponto menos elevado: a atmosfera, portanto, em certa medida entra em contato com a rocha. A pele, ao tocar diretamente uma superfície, desencadeia uma resposta neurológica que será processada por uma mente e que serve, em certa medida, como mediadora da superfície propriamente dita para uma mente. Nesse sentido, é possível afirmar que toda e qualquer interação que existe no universo é permeada de mediações, isto é, de signos. Daí a relevância da Semiótica, a ciência que estuda os signos e seus processos de transformação (SANTAELLA, 2004). Considerando o exposto, elenca-se alguns questionamentos sobre o processo de Sensoriamento Remoto: de que maneira a interação física da radiação eletromagnética com o alvo e o sensor é transformada em uma interação psíquica com a mente do usuário desses produtos? Se a mediação é um traço comum a todas as formas de interação do ser humano com o mundo, qual seria a especificidade das mediações oportunizadas pelos produtos de Sensoriamento Remoto? Como ocorre a interação da dimensão física da energia eletromagnética com a dimensão psíquica do usuário? Essa “quebra” entre mente/matéria é um dos enigmas que pode ser estudado pela Semiótica. Nas palavras de Abbagnano (2007): Embora essa palavra [enigma] até hoje seja empregada com fins retóricos, tornou-se imprópria para exprimir a atitude do homem moderno em face das limitações ou da imperfeição do seu conhecimento do mundo. Enigma significa propriamente "adivinhação", e a expressão enigma do mundo parece indicar que o mundo, como um gigantesco jogo de adivinha, só tem uma solução que, uma vez encontrada, eliminaria todos os problemas. O que, por certo, é uma visão bastante pueril, pois o mundo não tem enigma, nem no plural nem no singular, mas só problemas para os quais existem soluções mais ou menos adequadas, nunca definitivas e sempre sujeitas a revisões (ABBAGNANO, 2007, p. 396). Como ressalta Abbagnano (2007), o enigma não é atributo do mundo, mas da leitura do mundo realizada pelo ser humano. As “adivinhações” do enigma podem ser mais ou menos satisfatórias, mais ou menos elaboradas, mas não absolutas, pelo menos quando se trata de enigmas científicos. Além da passagem de uma dimensão física/psíquica, outro enigma que se apresenta é sobre a maneira o usuário dos produtos de Sensoriamento Remoto consegue adivinhar as características do seu objeto de estudo. A ideia apresentada neste texto considera que os dois enigmas têm como elemento central o conceito de signo. Nesse sentido, o propósito central deste texto é discutir como ocorre o processo de transformação 2 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 dos signos obtidos pela captura e processamento da radiação eletromagnética, que ocorre no âmbito físico, com as informações e o conhecimento gerado pelo usuário desses produtos sobre o alvo de estudo, que ocorre no âmbito psíquico. Propõe-se que este jogo de adivinhação pode ser compreendido a partir das discussões semióticas de Charles Sanders Peirce. O intuito dessas discussões é contribuir para tornar mais evidente o processo de Sensoriamento Remoto que é, por vezes, “automatizado” pela prática e pelas aplicações técnicas. Analisar com um pouco mais de detalhamento esse processo semiótico pode permitir aos professores a tomada de consciência dos diferentes desafios que envolvem o ensino e a aprendizagem dessa prática. Para os profissionais que trabalham diretamente com esses produtos, uma análise semiótica do processo pode contribuir para o aprimoramento das reflexões construídas sobre os objetos de estudo. Aos estudantes, conhecer um pouco melhor as regras desse jogo semiótico. Para tanto, além da Introdução, o texto é organizado nas seguintes seções: primeiramente, é realizada uma revisão de literatura para apresentar os instrumentais teóricos-metodológicos da Semiótica, com o intuito de familiarizar o leitor com os recursos analíticos deste texto. Em seguida, é realizada uma leitura fenomenológica e semiótica dos produtos gerados pelo Sensoriamento Remoto, elencando os pressupostos teórico-metodológicos da teoria peirciana, sobretudo dos elementos da segunda tricotomia (ícone, índice e símbolo). Posteriormente, é apresentado o princípio da continuidade da semiose como nexo para a articulação entre o objeto e seus indícios coletados pelos sistemas sensores, bem como a transformação desses signos em conhecimento pelo usuário. 2 DEFININDO AS REGRAS DO JOGO O contato com o mundo é sempre uma experiência mediada: ao se realizar uma chamada telefônica para alguém distante para se obter informações sobre a sua vida, o aparelho celular serve como elemento mediador. Da mesma forma, ao se olhar diretamente para uma pessoa que se encontra à frente, as informações obtidas pela visão, como o aspecto do rosto do interlocutor, o timbre da voz percebido pelo sistema auditivo ou mesmo o seu cheiro são mediadas pelas ondas eletromagnéticas, sonoras e pelas partículas desprendidas dos corpos (SANTAELLA, 2013). Isso significa que toda prática de sensoriamento é em maior ou menor grau remota, pois aquilo que se denomina de contato direto implicaria na possibilidade de se realizar cognições sem mediações, isto é, sem signos (CP1 5.251; SANTAELLA, 2004). De acordo com o dicionário Michaelis (2022), a palavra remoto é de origem latina (remotus) e significa algo que está afastado no espaço, distante. Para Meneses (2012), este termo foi usado em conjunto com sensoriamento pela primeira vez por Evelyn L. Pruit e seus colaboradores em 1960 para denotar o processo de obtenção de informações sobre um alvo, mesmo que através do vácuo, por intermédio da radiação eletromagnética. Os elementos responsáveis por realizar essas pontes entre os elementos que compõem o universo são denominados signos. A consciência da existência dos signos pode ser encontrada pelo menos desde os gregos, mas a sua sistematização enquanto ciência moderna ocorre apenas a partir da segunda metade do século XIX, sobretudo com as contribuições do lógico, filósofo e matemático norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914). Na sua concepção semiótica, um signo pode ser definido como: qualquer coisa que, de um lado, é assim determinada por um Objeto e, de outro, assim determina uma ideia na mente de uma pessoa, esta última determinação, que denomino o Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinado por aquele Objeto. Um signo, assim, tem uma relação triádica com seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343, destaque nosso). Graficamente, as relações expressas na definição acima podem ser representadas de acordo com a Figura 1. Ressalta-se que a tri-relatividade das relações incorporada no signo impede que seus elementos sejam 1 Convenção internacional para a menção à obra: PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. 8 v. Eds.: Hartshorne and Weiss (v. 1-6); Burks (v. 7-8). Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1931-1958. Os números indicados após a sigla CP se referem ao volume e ao parágrafo da citação. 3 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 reduzidos à díadas (Objeto – Representamen; Representamen – Interpretante; Objeto – Interpretante), e o Objeto, que tem a primazia ontológica no signo, é representado pelo Interpretante apenas nos termos viabilizados pelo Representamen. O significado das relações de determinação e representação é tratado nos parágrafos seguintes deste texto. Figura 1 – Elementos e relações do signo. Elaboração: O autor (2022). Os termos empregados por Peirce na definição de signo são formais e abstratos, pois não foram pensados para contemplar seu material constituinte, por exemplo, mas sua função lógica (SANTAELLA, 2004). Isso permite que qualquer elemento possa exercer o papel de signo, seja ele material ou imaterial, real ou imaginário, sem deixar de ser também outra coisa: uma carta que carrega uma mensagem elaborada remotamente por alguém é um signo, assim como a energia eletromagnética advinda de um alvo distante. A partir dessa visão pansemiótica, Peirce afirma que “todo o universo está permeado de signos, se é que ele não é composto exclusivamente de signos” (CP 5.448). Nesse sentido, ao adaptar a definição formal de signo proposta por Peirce para os produtos do Sensoriamento Remoto, pode-se dizer que: [é uma imagem] que, de um lado, é assim determinada por um Objeto [o alvo] e, de outro, assim determina uma ideia na mente de uma pessoa [o usuário das imagens], esta última determinação, que denomino o Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinado por aquele Objeto [o alvo]. Um signo, assim, tem uma relação triádica com seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343, destaque nosso, inclusão nossa). É importante ressaltar que o signo não é uma coisa, mas um engendramento lógico entre três entes: o Objeto, que determina o Representamen e este, por sua vez, determina o Interpretante (SANTAELLA, 1995). De forma mediada, o Objeto é representado pelo Interpretante, mas apenas nos termos definidos pelo Representamen. Daí se apresentam duas relações que constituem o signo, quais sejam: a de determinação e a de representação. Afirmar que o Representamen é determinado pelo Objeto significa dizer que este elemento tem uma primazia real sobre aquele, ou seja, que o Objeto exerce uma predicação sobre o Representamen (SANTAELLA, 1995). Por predicação, entende-se, em lógica, como “o ato de unir um predicado a um sujeito de uma proposição de forma a aumentar a extensão lógica sem diminuir a profundidade lógica” (CP 2.359), isto é, uma operação que permite derivar informações do objeto. No caso da relação de representação, o Objeto estabelece uma interação com o Interpretante, mas não de forma diádica: ele o faz a partir da mediação do Representamen. Por esta razão, incorpora nessa dinâmica as determinações que exerce sobre o Representamen e que este, por sua vez, exerce sobre o Interpretante. Ao se alterar o Representamen de um signo, transformase a determinação do Objeto e, consequentemente, a mediação com o Interpretante. Segundo Pinto (1995), o Representamen é um termo técnico empregado por Peirce para designar qualquer coisa que apresenta uma potencialidade não realizada de mediação. No contexto da cognição humana, o Representamen é a forma que um signo pode assumir para ser interpretado. Uma imagem de satélite, por exemplo, materializa as possibilidades de comunicação das informações que potencialmente carrega sobre um alvo, mas o seu Representamen independe do fato de que esse signo possa ser encontrado por alguém ou mesmo interpretado corretamente: por esta razão que o autor afirma que todo signo é composto por um Representamen, mas nem todo Representamen é signo (PINTO, 1995). 4 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 Na definição apresentada de signo, a imagem de satélite é “diretamente controlada” pelo alvo imageado, que neste caso desempenha o papel de Objeto. A noção de determinação vem da força exercida pelo alvo sensoriado, que literalmente marca o Representamen com a sua energia. Embora o sujeito não veja diretamente o alvo, mas o seu signo, ele se torna mediatamente acessível por meio de uma representação. Já a representação envolve “estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (CP 2.273, destaque nosso). No Sensoriamento Remoto, a relação de representação é evidente: não se trata de ter acesso total e irrestrito (“direto”) ao alvo, mas aos padrões de energia eletromagnética que dele derivam e atingem os sensores. Tratase dos atributos energéticos do alvo, mas a totalidade da área imageada contém caracteres que são apenas parcialmente detectados pelos sensores. Assim, toda e qualquer operação de Sensoriamento Remoto envolve a coleta e a transformação de signos, que estão, sob certa medida e para certos propósitos, sendo considerados como estando no lugar dos alvos. A relação de determinação do Objeto para com o Representamen não é biunívoca: mesmo que a radiação eletromagnética seja o principal elemento que controle os traços impregnados nos produtos dos sensores, esta relação é mediada por este sistema, cujas especificidades podem gerar imagens muito distintas: basta imaginar que duas imagens de satélite, mesmo que sejam obtidas de uma mesma cena, apresentam potencialidades comunicativas muito diversas se possuírem resoluções radiométricas distintas, por exemplo. Além disso, entre o alvo e o sensor, a atmosfera terrestre desempenha um papel importante no comportamento da radiação eletromagnética, refletindo, absorvendo e refratando o fluxo radiante (JENSEN, 2009; NOVO, 2010). Neste sentido, esse processo revela que o signo possui ao menos dois tipos de Objeto: o imediato, que é uma porção limitada e parcial da totalidade do alvo, e o dinâmico, que corresponde a todos os caracteres do fenômeno imageado e não apenas aos traços captados pelos sistemas sensores (SANTAELLA, 1995; SILVEIRA, 2007). Um signo não precisa ter necessariamente apenas um Objeto. Na verdade, a multiplicidade é regra no universo semiótico. No caso dos produtos oriundos do Sensoriamento Remoto, as imagens contêm as marcas não apenas do alvo, mas do próprio equipamento imageador, do horário em que realizou o procedimento (que afeta a disponibilidade de energia captada da cena), da altitude em que se encontra numa certa posição orbital, das coordenadas do local, dentre outros, como bem apontam Camargo e Gudwin (2022). Por essa razão que a afirmação de que a imagem de satélite é “diretamente controlada” pelo alvo imageado deve ser recebida de forma parcimoniosa. Este fato torna claro que a capacidade informativa potencial de um signo não reside inteiramente na habilidade interpretativa do usuário, pois é uma propriedade objetiva dos signos. A relação que existe entre o signo e seu Objeto não ocorre da mesma forma na natureza. Uma palavra, por exemplo, está no lugar de uma ideia de maneira distinta da fumaça para o fogo; da mesma forma, a semelhança de uma nuvem com um animal ocorre de maneira diferente do caso anterior. Como a diversidade de signos envolve os fenômenos de toda natureza (físico, mental, onírico, químico, energético, etc.), a Semiótica peirciana demanda o amparo de uma quase-ciência que tem como único objetivo desenvolver categorias universais para identificar a peculiaridade dos fenômenos, que é denominada Fenomenologia (ou Faneroscopia) (SANTAELLA, 2004 e 2013). De acordo com Peirce (CP 1.284), “Faneroscopia é a descrição do faneron (phaneron); com este termo designo tudo o que é presente ao espírito, sem cuidar se corresponde a algo real ou não”. Ainda, segundo o autor, deve-se ficar entendido que “o que temos a fazer enquanto estudantes de fenomenologia é simplesmente abrir os olhos do espírito e olhar bem os fenômenos e dizer quais suas características, quer o fenômeno seja externo, quer pertença a um sonho, ou uma ideia geral e abstrata da ciência” (CP 1.41). A Fenomenologia peirciana considera a existência de três grandes categorias denominadas primeiridade, secundidade e terceiridade: A Categoria-Primeiro [primeiridade] é a Idéia daquilo que é independentemente de algo mais. Quero dizer, é uma Qualidade de Sensação. Categoria-Segundo [secundidade] é a Idéia daquilo que é, como segundo para algum primeiro, independente de algo mais, em particular independente de Lei, embora podendo ser conforme uma Lei. O que é dizer, é Reação como um elemento do Fenômeno. Categoria-Terceiro [terceiridade] é a Idéia daquilo que faz de Terceiro, ou Medium, entre um Segundo e seu Primeiro. Quer dizer, é Representação como um elemento do Fenômeno (CP 1.66, destaques do autor, grifos nosso). 5 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 Embora o trecho seja conciso, ele sintetiza várias implicações nas relações sígnicas que são de interesse para o Sensoriamento Remoto. Em primeiro lugar, demonstra que as categorias fenomenológicas são universais e não particulares, estando presentes de forma simultânea em um determinado fenômeno: por esta razão que o alvo a ser sensoriado pode ter predominância na secundidade, mas também permite vislumbrar a primeiridade e a terceiridade. Em segundo lugar, o trecho evidencia que os atributos do alvo pertencem ao universo da primeiridade (das qualidades), mas estas só podem ser percebidas quando incorporadas no universo da existência (secundidade). O reconhecimento ou a categorização de um atributo como qualidade típica de um fenômeno envolve a conformação da primeiridade e secundidade à certas leis (terceiridade). Portanto, sem a terceiridade, não haveria o reconhecimento de padrões ou hábitos na natureza ou nos sinais captados pelos sistemas sensores; sem secundidade, não haveria tangibilidade do alvo sensoriado; sem primeiridade, não haveria informação a ser derivada pela prática do Sensoriamento Remoto. Segundo Peirce, há três formas de determinação do objeto para com o signo: o ícone, o índice e o símbolo (CP 4.531). Elas envolvem a articulação do signo em relação ao seu Objeto dinâmico, variando de acordo com a predominância fenomenológica do Representamen. 2.1 Ícones e hipoícones no Sensoriamento Remoto Ícones e hipoícones são signos que apresentam uma relação de semelhança com seu(s) objeto(s) dinâmico(s). A diferença entre eles ocorre pela natureza da primeiridade na qual participam. Para Peirce: 276. Um ícone é um Representamen cuja Qualidade Representativa é uma sua Primeiridade como Primeiro. Ou seja, a qualidade que ele tem qua coisa o torna apto a ser um representamen. Assim, qualquer coisa é capaz de um Substituto para qualquer com a qual se assemelhe [...]. 277. Os hipoícones, grosso modo, podem ser divididos de acordo com o modo de Primeiridade de que participam. Os que participam das qualidades simples, ou Primeira Primeiridade, são imagens; os que representam as relações, principalmente as diádicas, ou as que são assim consideradas das partes de uma coisa através de relações análogas de suas próprias partes, são diagramas; os que representam o caráter representativo de um representamen através da representação de um paralelismo com alguma outra coisa, são metáforas (CP 2.276-77). A determinação por meio de uma relação icônica ocorre quando o signo e o Objeto compartilham alguma semelhança de alguma qualidade (primeiridade). Essas qualidades podem ser na forma, na estrutura, na cor, na textura ou qualquer outro aspecto do fenômeno. No caso de uma imagem produzida por um sensor remoto, a forma ‘circular’ de uma plantação irrigada por meio de um pivô central pode cumprir este requisito, assim como os tons de cinza que preenchem a forma geométrica. Outro exemplo é a semelhança existente entre o padrão de desmatamento denominado “espinha de peixe” com a coluna vertebral deste animal (Figura 2). 6 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 Figura 2 – Relações de semelhança entre os signos e seus objetos. Elaboração: O autor (2022) a partir do acervo gratuito do site Pixabay.com e Google Earth Pro (2022). A relação triádica dos signos da Figura 2 pode ser atestada pelo fato de que entre a qualidade “compartilhada” entre a imagem de satélite (o ‘Representamen’) e o alvo (seu ‘Objeto’) deve ser construída a partir de um Interpretante. No caso, sem uma mente, seja ela humana ou não, para conjecturar uma semelhança entre a forma circular e a área com irrigação por pivô central ou mesmo o padrão de desmatamento que “lembra” uma espinha de peixe, o signo seria apenas uma potencialidade a ser realizada, ou seja, seria apenas um representamen. Logo, pode-se estender esse entendimento para todo produto de Sensoriamento Remoto: uma fotografia aérea, por exemplo, registra os atributos de um alvo e guarda uma potencialidade comunicativa que será realizada quando uma mente apta para sua interpretação for acionada. Apesar do reino das semelhanças das qualidades ser povoado por possibilidades das mais diversas, como todo fenômeno da primeira categoria fenomenológica, Peirce identificou três principais tipos de relações de semelhança que um signo pode possuir com seu Objeto: essas relações são denominadas de imagem, diagrama e metáfora. Essas três subclasses pertencem ao domínio dos hipoícones, pois já apresentam traços da categoria da secundidade pelo fato de serem tangíveis e, portanto, participarem do universo dos existentes. 2.1.1 IMAGEM, DIAGRAMA E METÁFORA NO SENSORIAMENTO REMOTO A imagem é a primeira relação de semelhança e está inserida dentro do domínio da primeira categoria fenomenológica peirciana: a primeiridade. De acordo com Peirce, além dessa categoria, o universo apresenta fenômenos da secundidade e terceiridade, que são contínuas e não-exclusivas de todos os fenômenos. Conforme Silveira (2007, p. 42, destaque nosso), “a primeiridade, como o próprio nome indica, é a base primeira de toda realidade, sendo pressuposta nos confrontos existenciais, assim como em todo contínuo e em toda generalização”. Todas as possibilidades, qualidades, originalidades e espontaneidades do universo pertencem à primeiridade. Silveira (2007) pontua que a primeiridade é ‘pressuposta’ na realidade porque seu domínio das qualidades é (co)agido pelo domínio da existência da secundidade: a forma circular de um fenômeno presente em uma fotografia aérea faz parte da forma materializada. Por estar realizada em algo, seu aspecto de primeiridade é sufocado pela secundidade da existência. Existir é reagir, e todo fenômeno da experiência empírica pertence ao domínio da secundidade. Por sua vez, a primeiridade subsiste na secundidade, pois para ser pressuposta necessita de um meio para se realizar. Embora incorporada na secundidade, a primeiridade permanece no fenômeno, mas só pode ser percebida de maneira pressuposta a partir da superação das amarras da secundidade. De acordo com Pinto (1995): Em outras palavras, uma imagem mimetiza seu objeto e o propõe através de si mesma. Esse seria um simples processo referencial, isto é, o signo apontado para um referente, que consiste na apresentação de algo como se fosse aquilo que é. Na relação imagem/objeto, portanto, privilegia-se a identificação da qualidade material do ícone (seu fundamento) com a do objeto. Nesse tipo de relação, o objeto é o referente constante (PINTO, 1995, p. 26, grifos do autor). 7 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 As primeiridades mais recorrentemente valorizadas na interpretação dos produtos de Sensoriamento Remoto são: tonalidade/cor, textura, tamanho, forma, sombra, altura, padrão e localização (FLORENZANO, 2011). Toda imagem de satélite pode apresentar esses atributos, mas o modo que eles se realizam em secundidades distintas torna cada produto particular. Por esta razão que o atributo “circular” (primeiridade), que é usado como signo da área de cultivo irrigada por um pivô central, não é um atributo exclusivo apenas da fotografia aérea, mas de vários objetos do cotidiano, como um disco ou um prato, por exemplo. E mesmo existindo vários objetos ‘circulares’, esse atributo pode desencadear interpretantes completamente diferentes, porque se encontram em signos de existência (sinsignos) diferentes. Nas imagens de Sensoriamento Remoto, a forma circular fornece uma pista importante para decifrar qual é o alvo avistado, porém de maneira altamente subjetiva e fortemente dependente do contexto e da capacidade do usuário em realizar uma conjectura correta. A única forma do usuário comprovar se sua hipótese é verdadeira é por meio da busca de signos indiciais, que apontam para fatos que realmente existem no universo: trata-se de um movimento fundamental no jogo do Sensoriamento Remoto. Além da aparência, um signo pode se assemelhar ao seu objeto por compartilhar uma semelhança de estrutura. De acordo com Santaella (1995, p. 157), “os diagramas, por sua vez, representam por similaridade nas relações internas entre signo e objeto. Não são mais as aparências que estão em jogo aqui, mas as relações internas de algo que se assemelha às relações internas de uma outra coisa”. Todos os tipos de gráficos são considerados diagramas, pois estão relacionados com seus fenômenos, mas a sua aparência em nada se assemelha com os seus respectivos Objetos. Um gráfico sobre a evolução de infectados pela Covid-19 em nada se assemelha na aparência com as pessoas contaminadas, mas estruturalmente é compatível com a sua quantidade. A carta topográfica, por exemplo, é constituída por várias dessas relações diagramáticas, a começar pela disposição das curvas de nível: as isoípsas apenas representam a estrutura do relevo, mas em nada lembram uma montanha ou um vale, por exemplo (GARBIN e SANTIL, 2020). Da mesma forma, o histograma de uma imagem de satélite a ela se assemelha apenas no nível estrutural, mas não no da aparência (Figura 3). Figura 3 – O histograma apresenta uma relação diagramática com sua imagem de satélite. Elaboração: O autor (2022) a partir de NASA (2022). Embora a estrutura dos fenômenos seja o principal elemento na constituição de diagramas, isso não significa que os diagramas não possam compartilhar, também, os atributos dos ícones imagéticos. Conforme lembra Santaella (2005), a combinação e a mescla dos signos é uma regra geral no universo semiótico, sendo as classes puras apenas presentes na formulação analítica da teoria semiótica. Na Figura 2, por exemplo, a estrutura da espinha de peixe apresenta as conexões topológicas semelhantes ao padrão de desmatamento, qual seja: a irradiação de pequenos filamentos de uma linha central. Trata-se de uma semelhança estrutural. Mas, a qualidade formal desses filamentos também se assemelha na aparência: portanto, trata-se também de uma relação imagética. São vários os diagramas empregados para a fotointerpretação das imagens de satélite. Saito et al. (2011), por exemplo, apresentam alguns dos padrões de desmatamento, bem como seus significados mais 8 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 regulares no contexto da Amazônia legal, conforme demonstra o Quadro 1. Quadro 1 – Tipologia dos diagramas dos padrões de desmatamento presentes na Amazônia legal a partir dos elementos constituintes do signo na escala 1:100.000 (branco = desmatamento, preto = floresta). Signo Objeto (estrutura de desmatamento) Consolidado Representamen (forma de desmatamento) Manchas grandes e contínuas de desmatamento; forma variada; densidade baixa e áreas pequenas de remanescentes florestais; manchas compactas. Difuso Manchas pequenas, isoladas; variada, irregular; baixa a densidade; distribuição uniforme. Espinha de peixe Manchas grandes alongadas e lineares com ramificações semelhantes à vértebra de peixe; média densidade. Área de projeto de Assentamento rural do INCRA; pequenos e médios estabelecimentos rurais; estágio intermediário de ocupação. Geométrico regular Manchas médias a grandes e isoladas; forma geométrica regular; baixa a média densidade. Médios e grandes estabelecimentos rurais; atividades agropecuárias de média a larga escala; estágio intermediário de ocupação. Multidirecional desordenado Manchas pequenas, médias e grandes; manchas de formas variadas, irregulares, complexidade elevada; média, alta densidade; multidirecional. Pode haver concentração fundiária; pequenos, médios e grandes estabelecimentos rurais; estágio intermediário de ocupação direcionada a expansão, muitas vezes espontânea. Unidirecional linear Manchas médias e grandes; manchas de forma alongada dispostas ao longo de hidrografia ou vias de acesso; baixa densidade. Ocupação ribeirinha; ocupação ao longo de estradas e vias de acesso; pequenos e médios estabelecimentos rurais; estágio inicial a intermediário de ocupação. forma média Interpretante (resultado do desmatamento) Concentração fundiária; pequenos, médios e grandes estabelecimentos agropecuários; esgotamento da floresta; fragmentação florestal; estágio avançado de ocupação. Áreas de ocupação espontânea; pequenos produtores rurais; agricultura, pecuária e extrativismo para subsistência; estágio inicial de ocupação. Fonte: Adaptado de Saito et al. (2011). Como a estrutura é o elemento possibilitador na construção das semelhanças e não propriamente a aparência do fenômeno, essas estruturas podem ser visualizadas em signos cujos atributos visíveis sejam distintos. Evidentemente, por compartilhar uma semelhança estrutural, a semelhança imagética também pode ocorrer, mas não é este o elemento central na definição dos diagramas, conforme está exemplificado por meio do Quadro 2. É importante ressaltar que a recorrência de determinados diagramas como um padrão de um fenômeno aproxima o signo da terceiridade. Quadro 2 – Recorrência da estrutura dos diagramas em ocorrências imageticamente distintas na escala 1:100.000 (branco = desmatamento, preto = floresta). Signo Padrão de desmatamento Geométrico regular Exemplo 1 Exemplo 2 Exemplo 3 Unidirecional linear Elaboração: O autor (2022) a partir de Saito et al. (2011) e Google Earth Pro (2022). 9 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 A terceira relação de semelhança que pode ocorrer entre o signo e seu objeto é denominado por Peirce (2012) de metáfora e se constitui numa relação de paralelismo do signo com algo diverso. Segundo Santaella (1995, p. 157), “extraem tão-somente o caráter, o potencial representativo em nível de qualidade, de algo e fazem o paralelo com algo diverso. Há sempre uma forte dose de mentalização e de acionamento de significados nas metáforas, daí elas serem hipoícones de terceiridade”. O papel das metáforas para a cognição humana do mundo é recorrente e se manifesta nas mais diversas situações, sendo este o objeto de estudo de Lakoff e Johnson (2003). Para os autores, as metáforas podem demonstrar seu papel heurístico a partir dos mais variados exemplos: ao se considerar um debate como uma ‘guerra’ de argumentos, as metáforas permitem afirmar que determinadas ideias são ‘indefensáveis’, que o interlocutor foi ‘direto ao alvo’ ou que os argumentos foram completamente ‘destruídos’ (LAKOFF e JOHNSON, 2003). Ao estabelecer um paralelismo entre argumentar e guerrear, é possível estender a dimensão conotativa que originalmente os signos linguísticos apresentavam. É por esta razão que se costuma dizer que uma pessoa tem uma “pele de pêssego”, que o tempo está “carrancudo” ou que “o mar não está pra peixe”. No Sensoriamento Remoto, as metáforas também desempenham um papel heurístico estratégico, como pode ser expresso por meio do efeito “salt-and-pepper” (sal e pimenta), que é um ruído “caracterizado por pequenos polígonos disseminados por toda a área mapeada e que acabam por demandar operações de pós-processamento, como filtragens, para a sua eliminação” (BRITES, BIAS e ROSA, 2012, p. 209), do ruído “stripping” (descascando), ou mesmo quando afirma-se que uma área está ‘contaminada’ por nuvens, conforme ilustra a Figura 4. A metáfora é empregada para indicar que a imagem parece ter sido “temperada” com grãos de sal e pimenta, que está sendo “descascada” ou que a área de interesse não está “limpa”, e auxiliam na constatação de ruídos e que exigem operações de pré ou pósprocessamento. Figura 4 – Ruídos “salt-and-pepper” (à esquerda), “stripping” (centro) e “contaminação por nuvens (à direita)”. Fonte: Kolhe e Jain (2013, p. 2055) e USGS (2022). O próprio título deste texto, que estabelece o paralelismo entre a prática do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, permite estruturar uma argumentação semiótica de tal forma para facilitar um novo concatenamento de ideias para se explorar novos aspectos desta prática. Nesse sentido, o jogo semiótico do Sensoriamento Remoto exige a elaboração de diferentes semioses para se resolver o enigma dos signos presentes nesses produtos. A chave para a solução desse mistério envolve as habilidades de encontrar semelhanças do signo com seu Objeto dinâmico, que sempre se revelam parcialmente. Este Objeto dinâmico, conforme já mencionado, é a própria realidade em todas as suas dimensões, podendo ser explorada no nível da aparência (primeiridade, imagem), da estrutura (secundidade, diagrama) ou do paralelismo por meio de uma ação mental (terceiridade, metáfora). 2.2 Os índices no Sensoriamento Remoto Se a imagem de satélite corresponde ao signo e o seu referente ao Objeto dinâmico, e a relação de semelhança percebida tem sempre um caráter hipotético, cabe esclarecer os mecanismos que o usuário recorre para garantir que essas relações icônicas percebidas correspondam, de fato, a uma característica verdadeira do 10 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 objeto e não a uma conjectura falsa. É aqui que se apresenta a necessidade da coleta de signos indiciais. Diferentemente dos hipoícones, que dependem de uma mente para construir uma relação de semelhança entre o signo e o Objeto, a relação estabelecida pelos índices não ocorre desta maneira: o índice é factualmente afetado pelo seu objeto (SANTAELLA, 1995). Ainda segundo a autora: Onde houver ligação de fato, dinâmica, por mais rudimentar que seja, aí haverá traço de indexicalidade [...]. É claro que só funcionará como signo ao encontrar um intérprete, mas não é este que lhe confere esse poder, e sim sua afecção com esse objeto. Quando o índice é genuíno, realmente dual, o papel do intérprete é tão-só e apenas o de constatar a marca, no signo, de sua afecção pelo objeto (SANTAELLA, 1995, p. 160, grifo nosso). São os índices que permitem a conexão de uma imagem resultante do Sensoriamento Remoto com um alvo particular. Segundo Peirce, os índices apontam para fenômenos individuais e de existência, ou seja, da secundidade (CP 2.283). Por exemplo: o formato circular de uma área irrigada por pivô central é fixado pelo sensor porque a área, que é circular, afeta factualmente o sensor; se a forma da área irrigada fosse quadrada, a imagem produzida iria adquirir uma forma correspondente. Percebe-se que a qualidade (primeiridade) da forma permanece no signo, mas a razão da forma fixada ser esta e não aquela independe da capacidade de um usuário perceber ou concordar com esta semelhança. Logo, no índice se sobressai a conexão dual entre o signo e seu objeto, cabendo ao interpretante “apenas” a tarefa de perceber este fato, com o custo de, se errar nessa tarefa, em último grau, colocar a própria sobrevivência em risco: A sobrevivência de todas as espécies, e de cada membro individual de todas as espécies, depende da decifração correta dos signos indexicais [...]. Os seguidores de trilhas de cavalos ou outros animais, o profeta e o adivinho, o detetive, o historiador da arte, o médico, o psicanalista e os cientistas modernos são, cada um a seu modo, leitores e intérpretes de metonímias naturais no Livro da Natureza – do mesmo modo que nós temos a experiência dos signos em nossa vida cotidiana, embora talvez de modo menos concentrado e menos especializado (SEBEOK, 1991, p. 49 apud SANTAELLA, 1995, p. 157-8). Isso ocorre porque os índices marcados nas imagens de Sensoriamento Remoto são factuais, ou seja, a imagem digital é genuinamente afetada pelo Objeto (CP 2.283), mas essa relação genuína ocorre apenas no instante da formação da imagem. Ao ser transmitida para uma central de processamento de dados ou mesmo impressa, a imagem de satélite perde sua conexão real com o alvo, tornando-se apenas referencial, ou seja, torna-se um índice degenerado. Pode-se afirmar que é a decifração correta da posição dos astros celestes que permitiu ao ser humano sua orientação no espaço, assim como é a decifração correta dos padrões de energia captados pelos sensores remotos que permite ao usuário conhecer o Objeto, mesmo que remotamente. Se a imagem que retrata um alvo não é o próprio alvo, mas um signo indicial (genuíno ou degenerado) que aponta para ele, então este signo deve apresentar ou já apresentou uma conexão real com seu Objeto dinâmico, de tal modo que este contato tenha marcado (modificado) o signo, como uma pegada na areia em relação ao pé, por exemplo. Ao entrar em contato com o Representamen, o Objeto também transfere parte de seus caracteres, tornando o signo potencialmente apto para comunicar as qualidades do Objeto. No caso das imagens de Sensoriamento Remoto, o meio empregado para deixar essa marca do objeto no signo é a radiação eletromagnética (REM) (JENSEN, 2009; NOVO, 2010). Portanto, não é o alvo propriamente dito que é diretamente sensoriado, mas a REM que deixa um determinado corpo e, ao colidir com o sensor posicionado em um satélite, transmite ao sensor uma quantidade específica de energia produzida pelo alvo em questão. Existe uma conexão física entre o signo e o objeto, que são as ondas eletromagnéticas e os fótons: a teoria construída pelo usuário sobre a relação entre a energia e o corpo é uma conjectura, mas a relação da energia com o corpo são fatos materiais (MONTEIRO, 2018). Embora a distância entre um usuário dos produtos de Sensoriamento Remoto dentro do seu gabinete e o alvo seja relativamente grande, impossibilitando a constatação ‘direta’ do fenômeno, no dia a dia o processo de decifrar os índices que permeiam a rotina também é resultado das conjecturas de raciocínios hipotéticos. Ao olhar, neste momento, a tela do dispositivo eletrônico ou o papel que se encontra há poucas dezenas de 11 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 centímetros de distância, o mecanismo de transmissão, recepção e decodificação dos índices ocorre de maneira mediada. Talvez, no limite, pode-se dizer que toda interação da mente humana com o universo ocorre de maneira remota, pois as conexões energéticas, mesmo que ocorram em níveis subatômicos, mediam o nosso contato com o mundo, e as mentes humanas estão o tempo todo decifrando esses enigmas (SANTAELLA, 1998). 3 O SENSORIAMENTO REMOTO COMO JOGO COLETIVO Embora a atividade de interpretação de uma imagem de satélite possa ser realizada a partir da ação individual, o jogo do Sensoriamento Remoto é sempre coletivo, assim como toda atividade científica. De acordo com Peirce (2008), toda investigação decorre da necessidade humana em superar um estado de dúvida e atingir um estado de crença. Em linhas gerais, no estado de crença existe a segurança das certezas sobre as questões que se impõem à vida, mas a partir do momento em que uma dúvida escapa às crenças anteriores, instaura-se um estado bastante desconfortável de ausência de segurança para tomar as decisões adequadas e que é denominado estado de dúvida. Há vários níveis de dúvidas no qual o ser humano se depara: desde a incerteza sobre a possibilidade de chuva para levar uma capa impermeável ao trabalho, até a incerteza sobre o aumento ou diminuição do desmatamento de uma área de estudo. Ao esforço de superação do estado de dúvida e a chegada a um estado de crença, Peirce denominou investigação (PEIRCE, 2008). A investigação científica é constituída por importantes diferenciais em relação às outras formas de construção de conhecimento. De acordo com Peirce (2008), o método da ciência considera que existe uma realidade externa, que não deve ser restringida ao indivíduo, ou seja, uma realidade que possa ser atestada por uma coletividade, garantindo que qualquer pessoa encontre os mesmos resultados, caso siga adequadamente os procedimentos de análise. Além disso, os resultados obtidos nessa busca “devem ser públicos e submetidos à crítica do outro” (SANTAELLA, 2004b, p. 73), possibilitando o progresso da ciência e a busca da verdade (sempre de caráter temporário) em uma constante construção. O caráter provisório do conhecimento gerado pela investigação e sua necessidade de estar em permanente reexame por uma comunidade de pesquisadores não significa que a verdade ou falsidade é uma questão de acordo cultural ou conveniência histórica, mas que existe um estado das coisas que insiste na sua condição de real e que a longa caminhada humana deve tentar ao máximo se aproximar (SANTAELLA, 2004b). Na prática, isso significa que em uma situação hipotética de dois usuários de uma mesma imagem de satélite que apresentem conclusões absolutamente discordantes, um deles terá sua hipótese radicalmente corrigida ao ser posta à prova de uma comunidade de investigadores, pois o método científico pressupõe a existência de uma realidade externa, que não é mero produto da subjetividade humana (SANTAELLA, 2004b). É por esta razão que os índices são fundamentais para apontar a realidade no processo de investigação científica. O processo de comunicação entre os investigadores de uma comunidade científica que reexamina os resultados obtidos pela pesquisa é viabilizado pelo compartilhamento de um fundamento comum que une as mentes dos interlocutores, denominado por Peirce de commens: “uma mentalidade coletiva, contínua, resultante das mentes envolvidas na comunicação” (ROMANINI, 2016, p. 27). A construção de um fundamento comum para os investigadores é resultado da generalização das sensações e observações individuais, o que cria uma cultura (ROMANINI, 2016). Pode-se afirmar que os usuários especialistas na interpretação dos produtos oriundos do Sensoriamento Remoto compartilham uma mesma cultura, impregnada de conceitos, ideias, crenças, isto é, de signos da terceiridade, que não se restringem ao saber do indivíduo, mas que cresce e se generaliza coletivamente (GARBIN, 2020). Um signo que é um geral e não um particular pertence ao universo fenomenológico da terceiridade (SANTAELLA, 1995; SILVEIRA, 2007), recebendo a denominação de símbolo. Ele “é um signo que se refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de ideias gerais que opera no sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo àquele objeto” (CP 2.249). Sem o símbolo, não haveria a possibilidade de aprendizado das técnicas de Sensoriamento Remoto. Os símbolos podem ser classificados como resultantes ou não de uma convenção, entendida como “as relações semióticas 12 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 colocadas por uma comunidade humana entre um signo e o que ela transmite, sem que o signo e o seu objeto sejam ligados de outra maneira a não ser por essa convenção” (SCHAEFFER, 1996 apud SANTAELLA, 2013, p. 241). 3.1 Símbolos convencionais no Sensoriamento Remoto As imagens de satélite não são produtos triviais e exigem uma preparação específica para o usuário conseguir decifrá-la. Evidentemente, por apresentar relações imagéticas, usuários não-especialistas podem conjecturar semelhanças entre a forma avistada e um tipo de alvo já conhecido (Figura 2), mas as operações mentais mais sofisticadas (Quadro 1) exigem um conhecimento sobre o funcionamento e características dos sensores, do comportamento e interação da REM, dentre outros. Durante seu processo formativo, o usuário entrará em contato com os conceitos, exemplos, aulas e experiências das mais diversas com o intuito de internalizar um determinado estado de conhecimento científico mínimo que viabilize o uso dos produtos dos sistemas sensores (GARBIN, 2020). É a generalidade dos processos apreendidos, exercitados e internalizados pelo estudante que vai incorporá-lo à uma cultura - a cultura dos especialistas em Sensoriamento Remoto -, que fornece o código necessário para desvendar os enigmas da natureza cifrados pelos sistemas sensores. De acordo com Merrel (2012, p. 146), “um símbolo como a palavra “trem” não evidencia nenhuma conexão particular com “trens” em geral ou com algum “trem” em particular, a menos que haja uma conexão estabelecida por um outro agente semiótico, isto é, a menos que a conexão seja feita pela mente”. Da mesma forma, a relação existente entre os níveis de cinza de uma imagem em uma determinada banda só é reconhecida como um Interpretante efetivo caso o usuário desses produtos conheça um conjunto suficiente de símbolos que convencionalmente sintetizam esse estado de conhecimento. Quando Jensen (2009) e Novo (2010), por exemplo, apresentam as formas de interação possíveis da REM com a matéria, expressando os conceitos de absorção, reflexão e espalhamento, estão contribuindo com o processo de aprendizagem dos símbolos necessários para interpretar uma imagem de satélite. Nesse sentido, a formação de um símbolo convencionalizado assume uma dinâmica semelhante ao enriquecimento do léxico técnico do usuário, que não inventa novos termos, mas compartilha com os demais membros da comunidade um repertório tal que permita a comunicação entre seus pares. Vale ressaltar que exatamente pela condição típica de terceiridade, nenhum conjunto de ícones ou índices pode esgotar ou se equivaler ao caráter geral das leis ou hábitos que são os caracteres dos símbolos, pois “o símbolo não denota uma coisa particular, mas um tipo de coisa, assim como o interpretante de um legissigno simbólico não se esgota na situação dinâmica da ocorrência de uma de suas réplicas” (SANTAELLA, 1995, p. 178). Portanto, as consequências geradas pelos símbolos são formais e não materiais. Segundo Peirce: Qualquer palavra comum, como “dar”, “pássaro”, “casamento”, é exemplo de símbolo. O símbolo é aplicável a tudo o que possa concretizar a idéia ligada à palavra: em si mesmo, não identifica essas coisas. Não nos mostra um pássaro, nem realiza, diante dos nossos olhos, uma doação ou um casamento, mas supõe que somos capazes de imaginar essas coisas, e a elas associar a palavra (CP 2.298). A relação simbólica fica evidente ao considerar os padrões generalizados de desmatamento e seus respectivos significados, conforme foi expresso pelo Quadro 1. É o símbolo que, ao incorporar um diagrama que representa um padrão de um processo, permite, por exemplo, o reconhecimento dos traços em comum nos exemplos do Quadro 2. 3.2 Símbolos não-convencionais no Sensoriamento Remoto No jogo do Sensoriamento Remoto, os símbolos não se restringem aos hábitos convencionalizados na interpretação das imagens de satélite, mas aos padrões de comportamento, sejam dos agentes semióticos humanos, sejam das leis da natureza. Portanto, se os símbolos convencionais exigem do usuário o aprendizado de um código para decifrá-los, os símbolos não-convencionais independem da capacidade individual de 13 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 realizar julgamentos. Isso acontece porque, segundo Peirce (CP 5.93), a terceiridade existe e é operatória na natureza. É a existência de leis gerais e certos hábitos repetidos de comportamento no universo que permite, por exemplo, afirmar que uma pedra colocada em um local sem obstáculo entre ela e o soalho, ao ser solta vai cair ao chão. Mas como é que se pode saber disso? Peirce responde: É claro que não entra clarividência no caso [...]. Sei que a pedra cai se eu deixar, porque a experiência me convenceu que objetos semelhantes a ela sempre caem [...]. Mas a proposição geral que estabelece que todos os corpos sólidos caem na ausência de força ou pressão é uma fórmula de natureza representativa (CP 5.94-97, destaque nosso). A lei da gravidade, portanto, apresenta uma natureza de terceiridade: ela governa a ação dos objetos deixados sem um anteparo, o que permite adivinhar o que vai acontecer com os demais objetos que estiverem na mesma circunstância. No Sensoriamento Remoto, a regularidade imperfeita do comportamento da natureza expressa pelos símbolos não-convencionais é que permite o reconhecimento da resposta espectral habitual dos alvos. Esses símbolos da natureza são introjetados não apenas na mente dos usuários, mas no próprio funcionamento dos sistemas sensores. Conforme aponta Novo (2010, p. 242), essas regularidades influenciam “à própria definição de novos sensores, à definição do tipo de pré-processamento a que devem ser submetidos os dados brutos ou mesmo à definição da forma de aquisição dos dados”. Quanto ao papel dos símbolos naturais para as cognições humanas, o comportamento habitual da resposta espectral dos alvos é uma condição necessária para que um determinado alvo seja identificado. Para Novo (2010, p. 243), “teoricamente, se a reflectância de um objeto pudesse ser medida em faixas espectrais adjacentes e estreitas ao longo da região reflexiva do espectro, poder-se-ia construir um gráfico representativo de sua assinatura espectral”. O gráfico mencionado pela autora generaliza a estrutura do comportamento médio espectral de uma folha, que poderá ser usada para se construir semelhanças entre sua resposta espectral com a do alvo em questão (Figura 5). Figura 5 – Assinatura espectral (média) da folha verde. Fonte: IBGE (2001, p. 36). Conforme exposto nas seções anteriores, o signo da Figura 5 apresenta uma mescla de hipoícones, índices e símbolos. Os hipoícones são do tipo diagramático, porque apresentam uma semelhança no nível estrutural da radiação refletida por meio de um gráfico. Os índices são de natureza degenerada, pois o gráfico foi construído a partir da resposta factual da radiação eletromagnética medida por um espectrorradiômetro, por exemplo. No que se refere à natureza simbólica, pode-se constatar a natureza convencional e não-convencional do signo: a primeira, porque a definição dos eixos do plano cartesiano (x = comprimento de onda; y = reflectância) é um padrão desse tipo de gráfico; quanto a natureza não-convencional, ela se apresenta na resposta habitual da REM dos pigmentos, estrutura e conteúdo de água da folha do vegetal que servirá como 14 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 elemento generalizador da experiência. 4 A PRIMEIRA RODADA Ainda que o conhecimento das diferentes etapas do jogo semiótico do Sensoriamento Remoto permita aos jogadores uma noção de como as partidas funcionam, torna-se imprescindível que este jogo seja compreendido panoramicamente, como faz a Figura 6. Figura 6 – Diagrama dos elementos que participam da semiose do Sensoriamento Remoto. Fonte: Adaptada de Camargo e Gudwin (2022). A Figura 6 apresenta as relações semióticas discutidas até o momento: o alvo imageado assume a posição lógica do Objeto dinâmico, pois participa do universo dos fenômenos tangíveis, isto é, da secundidade. Esta secundidade comporta uma série de propriedades que dela predicam: as formas espaciais, o tamanho, a textura da cobertura do solo, o sombreamento, a altura, dentre outros atributos que são típicos da primeiridade. Os processos naturais e antrópicos que interferem na conformidade das características do alvo, por serem da natureza da terceiridade, permitem o reconhecimento de padrões de comportamento dos elementos da cena. Portanto, nota-se que as categorias fenomenológicas operam simultaneamente e sua separação é apenas um recurso analítico para visualizar o engendramento da semiose. O primeiro salto evidenciado pela Figura 6 na semiose do Sensoriamento Remoto é a transdução da energia do alvo (que ocorre no âmbito físico do ambiente) para um outro substrato material (também físico) que vai representar o Objeto dinâmico, seja por meio de um pulso elétrico, seja por meio de uma imagem digital. O termo transdução escolhido por Camargo e Gudwin (2022), em um sentido mais estrito, é empregado na Biologia para indicar a “transferência de material genético entre bactérias, através de um vírus que se multiplica no interior dos microrganismos” (MICHAELIS, 2022, s.p.) e nas engenharias como “a conversão de um sinal de uma forma física para outra forma física, isto é, uma conversão energética” (PALLÀS-ARENY e WEBSTER, 2001, p. 2, tradução livre). É curioso notar que tanto no contexto da Biologia quanto no das engenharias há uma determinação de um ente (o vírus ou a energia – o Objeto) para um ‘veículo sígnico’ (a bactéria ou o sinal convertido – o Representamen). Trata-se, portanto, de uma transdução de um Objeto (o alvo) para um Representamen (o sinal gerado pela captura da radiação eletromagnética do Objeto) por meio de uma relação de determinação. A segunda relação de determinação presente na Figura 6 está situada na transdução do Representamen para um Interpretante, que no contexto do Sensoriamento Remoto ocorre na passagem do âmbito físico para o psíquico. As semioses possíveis são diversas, a depender do repertório e da capacidade cognitiva do usuário em jogar com as pistas cifradas pela natureza e pelo processamento dos sinais elétricos registrados pelos sistemas sensores. Caso o jogador tenha em seu repertório o conhecimento dos padrões existentes nesses produtos que indicam as circunstâncias do imageamento, ele poderá apostar (“abduzir”) na direção de realização do voo, na angulação da arfragem, na rotação ou mesmo na deriva da aeronave, no seu ângulo de depressão, dentre outros atributos registrados colateralmente pelo sensor durante o imageamento e que podem ser acessados também 15 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 de forma colateral pelo usuário. Esses atributos da primeiridade podem ser usados para a formação de hipoícones que poderão se remeter hipoteticamente ao Objeto dinâmico, em um movimento inverso às transduções anteriores, ou seja, do âmbito psíquico para o físico. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se considerar a metáfora do Sensoriamento Remoto como jogo semiótico, é possível evidenciar a pertinência do conceito de signo nesse processo e os desafios envolvidos na construção de conhecimento a partir dos produtos oriundos de sistemas sensores. As imagens de satélite participam dessa semiose como signo e como representamen: realizam uma possibilidade de estarem, em certa medida, no lugar do alvo para uma certa mente. O elemento mediador é a REM que é refletida pelo alvo, que literalmente marca o sensor remoto e o permite criar índices genuínos e/ou degenerados do alvo a ser estudado. O signo, a partir da lei da continuidade entre o universo físico e psíquico, é sorvido por uma mente apta a reconhecer relações de similaridade na aparência, na estrutura ou no paralelismo com algo diverso. As relações de semelhança de aparência são típicas das imagens, que permitem ao usuário associar o signo ao Objeto dinâmico, mas apenas de forma hipotética. No Sensoriamento Remoto, as relações de semelhança derivam da tonalidade/cor, textura, tamanho, forma, sombra, altura, padrão e localização dos alvos. Os níveis de cinza, o histograma ou mesmo os números digitais que estruturam esses produtos também permitem a busca de semelhanças estruturais por meio de diagramas. As metáforas, por sua vez, servem para ampliar o domínio de significado do signo a partir de uma comparação estritamente mental. Os elementos que permitem o uso da imagem de satélite como substituto de uma área devem ser de alguma forma ligada a elas, resultando em signos indiciais. Embora a assinatura energética dos alvos seja um fenômeno da natureza, os especialistas em Sensoriamento Remoto necessitam de formação para permitir que esses padrões sejam decifrados. Portanto, de um lado, verifica-se a existência de símbolos não-convencionais (da natureza) e, do outro, símbolos convencionais. Estes símbolos convencionais permitem à comunidade de investigadores dialogar e se apropriar de um determinado estado de conhecimento científico: daí a razão de se afirmar que o jogo do Sensoriamento Remoto é sempre coletivo. Embora as regras estejam postas por meio do conhecimento técnico, o sucesso da partida depende da criatividade dos jogadores na geração de raciocínios ampliativos. Que comecem os jogos. Contribuição dos Autores O autor foi responsável pela pesquisa, conceptualização, redação, revisão e edição final. Conflitos de Interesse O autores informa que não há conflitos de interesse. Referências ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BRITES, Ricardo Seixas; BIAS, Edilson de Souza; ROSA, Antonio Nuno de Castro Santa. Classificação por regiões. In: MENESES, Paulo Roberto; ALMEIDA, Tati de (Org.). Introdução ao processamento de imagens de Sensoriamento Remoto. Brasília: UNB/CNPQ, 2012, p. 209-220. CAMARGO, Eduardo.; GUDWIN, Ricardo. Using Peircean Semiotics as the Grounding of Cognition. THE 2021 SUMMIT OF THE INTERNATIONAL SOCIETY FOR THE STUDY OF INFORMATION, 2021. Proceedings... Online: MDPI, 2022, p. 1-6. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.3390/proceedings2022081135>. Acesso em: 20 mar. 2023. FLORENZANO, Teresa Gallotti. Iniciação em Sensoriamento Remoto. 3ª ed. ampliada e atualizada. São 16 Rev. Bras. Cartogr, vol. 75, 2023 DOI: http://dx.doi.org/10.14393/rbcv75n0a-67859 Paulo: Oficina de Textos, 2011. GARBIN, Estevão Pastori. Ensaio epistemológico sobre o método geográfico a partir da Semiótica Peirceana. 2020. 161 f. 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