Texto Digital
Ano 1, n 1
O lugar onde a estrutura se descontrola
Rogério Lima
“Coisas novas requerem palavras novas. Mas as coisas novas tam bém
m odifi cam palavras velhas que têm significados com profundas raízes.”
Neil Postman1
A respeito da realidade do virtual Deleuze escreve:
A realidade do virtual consiste nos elementos e relações
diferenciais e nos pontos singulares que lhes correspondem.
A estrutura é a realidade do virtual. Aos elementos e às relações
que formam uma estrutura devemos evitar, ao mesmo tempo,
atribuir uma atualidade que eles não têm e retirar a realidade
que eles têm. Vimos que um duplo processo de determinação
recíproca e de determinação completa definia essa realidade:
em vez de ser indeterminado, o virtual é completamente
determinado. Quando a obra de arte se reclama de uma
virtualidade na qual mergulha, ela não invoca qualquer
determinação confusa, mas a estrutura completamente
determinada, formada por seus elementos diferenciais
genéticos, elementos tornados virtuais, tornados
embrionários. Os elementos, as variedades de relações, os
pontos singulares coexistem na obra ou no objeto, na parte
virtual da obra ou do objeto, sem que se possa assinalar um
ponto de vista privilegiado sobre os outros, um centro que
seria unificador de outros centros.2
Desde a sua origem o texto tem se configurado como um objeto de caráter
virtual, abstrato que tem a sua existência garantida independente do suporte
que o contenha. O texto enquanto entidade virtual é passível de atualização
sob muitas formas, versões, exemplares, traduções, edições e cópias. Ao
estabelecer sentido para o texto no aqui e agora o leitor põe em funcionamento
todo esse complexo de atualização textual. A questão da atualização aqui está
relacionada especificamente à leitura, pois no que diz respeito à realização
esta se concretizaria no âmbito da seleção entre possíveis. O texto é formado
por um conjunto de estímulos, coerções e tensões que são propostos ao leitor
e que serão atualizados durante o ato da leitura. Caberá à leitura solucionar
de maneira criativa e sempre singular questões relativas à con strução de sentido
no texto. É prerrogativa do leitor, usando de sua inteligência, firmar uma
cartografia da deriva da atualização na “paisagem semântica móvel e
acidentada”3 que o texto lhe apresenta.
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Pierre Lévy analisa o trabalho de atualização con struído por meio da leitura
e levanta algumas questões acerca do relacionamento do leitor com o texto:
Lemos ou escutamos um texto. O que ocorre? Em primeiro lugar, o texto é
esburacado, riscado, semeado de brancos. São as palavras, os membros de frases
que não captamos (no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo).
São os fragmentos de texto que não compreendemos, que não conseguimos juntar,
que não reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que, paradoxalmente,
ler, escutar, é começar a negligenciar, a desler ou desligar o texto.
Ao mesmo tempo (em) que o rasgamos pela leitura ou pela escuta,
am arrotam os o texto. Dobramo-lo sobre si mesmo. Relacionamos uma à outra
as passagens que se correspondem. Os membros esparsos, expostos, dispersos,
na superfície das páginas ou na linearidade do discurso, costuramo-los juntos:
ler um texto é reencontrar os gestos textuais que lhe deram seu nome.4
A topografia textual acidentada identificada por Lévy, as dobras impostas
pela leitura, os saltos e esquecimentos provenientes dessa mesma leitura são
decorrentes da pluralidade que o texto apresenta nas múltiplas situações em
que ele se apresenta para o leitor. Esse é o texto escrevível de que fala Barthes5,
o texto que faz do leitor não mais um con sumidor, mas um produtor de texto.
Não há, talvez nada a dizer sobre os textos escrevíveis. Em primeiro lugar,
onde encontrá-los? Na leitura, certamente não (ou, pelo menos, muito pouco:
por acaso, fugidia e obliquamente, em algumas obras limites): o texto escrevível
não é uma coisa, dificilmente será encontrado em livraria. Além disso, sendo
seu modelo produtivo (e não representativo), ele suprime toda crítica, que,
produzida, confundir-se-ia com ele: o re-escrever só poderia consistir em
disseminar o texto, dispersá-lo no campo da diferença infinita. O texto escrevível
é um presente perpétuo, no qual não se vem inscrevendo nenhuma palavra
conseqüente (que, fatalmente, o transformaria em passado); o texto escrevível é
a mão escrevendo, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo como um jogo)
seja cruzado, cortado, interrompido, plastificado por algum sistema singular
(Ideologia, Gênero, Crítica) que venha impedir, na pluralidade dos acessos, a
abertura das redes, o infinito da linguagens. O escrevível é o romanesco sem o
romance, a poesia sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escritura sem o
estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.6
O escrevível é o virtual e a virtualidade na sua plena realização. É o texto
desterritorializado, inserido na deriva e no nomadismo do hipertexto. É o
texto no qual o leitor desobedece todas as orientações de balizamento da leitura,
corta caminho por transversais, produzindo dobras interditas, estabelece redes
secretas, fazendo emergir outras geografias e cartografias semânticas.
Deslocamentos e próteses de leitura
Em artigo intitulado lendo de ouvido, publicado na The Atlantic Monthly,
James Fallows, leitor contumaz, adepto da cultura visual, relata a sua descoberta
da palavra sonora, e se confessa alarmado.
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Sinto como se tivesse passado a maior parte do meu tempo de vigília
lendo, desde os seis anos de idade, razão porque uma descoberta que fiz no
ano passado me alarmou. Estava caçando uma estação no rádio do carro quando
ouvi a leitura dramática de um trecho de um romance. Era “Independence
Day”, de Richard Ford, que eu já havia lido, por isso continuei a busca,
pensando: “já sei como isso acaba”. Mas sem encontrar nada melhor voltei a
ela e me surpreendi. A história era melhor do que eu recordava. Ou melhor,
era diferente. Personagens que mal havia notado tinham falas completas. As
descrições dos relatos eram mais vivas — eu conseguia imaginar as casas as
cenas de rua como não fizera antes. Quando a leitura terminou tive a sensação
de ter escutado uma história completamente nova.7
Típico participante da cultura visual de massa, Fallows coloca para si a
questão da excessiva valorização da visão em detrimento da audição, de fatura
extremamente baixa na economia de armazenamento de produtos culturais
na memória humana. Como a maioria dos participantes das sociedades hightech apreciava a visão e tomava para si a idéia de que a audição era uma espécie
de backup analógico de baixa velocidade.
Homero e Chaucer que fiquem com suas tradições orais — eu tinha um
livro de 300 páginas para percorrer até a hora de dormir. Pouco me importava
se podia ou não compreender o que um tagarela parisiense dizia, contando
que pudesse ler seus jornais. Mesmo as partes da leitura envolvendo algo além
da visão me pareciam retrógradas.8
A conclusão a que Fallows chega é a de que é possível captar os acontecimentos
muito mais rapidamente com o olhar, porém eles parecem mais propensos a serem
retidos pela memória se penetrarem no cérebro pela via auditiva.
Isso talvez seja uma decorrência dos sinais aurais que parecem provocar
estímulos mais variados em regiões do cérebro que a visão de coisas impressas.
Afinal, uma passagem de três segundos de qualquer peça musical familiar
evoca instantaneamente não só o resto da música, mas também as visões,
cheiros e emoções de acontecimentos associados a ela. É difícil imaginar um
parágrafo escrito com o mesmo poder geral.9
Porém é possível que a diferença esteja na velocidade com que o
acontecimento é percebido e recebido. Após todo um ano de audição de
diversos livros gravados, de Lolita, de Nabokov, a Pastoral Americana, de Philip
Roth, enquanto dirigia, Fallows elaborou a seguinte hipótese em relação à
leitura acerca da existência de uma lei de conservação da memória: “o valor de
atenção de uma hora vai produzir um valor de idéias e imagens retidas de
uma hora, venham elas de um capítulo lido, em voz alta, ou de quatro capítulos
vistos na página e relembrados, em média na proporção de um quarto”.10
Na sua busca por títulos gravados Fallows usou de todos os recursos
disponíveis desde o aluguel de fitas áudio a textos disponíveis em portais na
Internet para serem copiados pelo processo de ftp, protocolo de transferência
de arquivos digitais11. Foram copiados romances e biografias gravadas para
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serem reproduzidas em aparelho de áudio digital do tipo walkman com fones de
ouvido. É importante notar a quantidade de máquinas e próteses que intermedeiam
a leitura de Fallows. Primeiramente, ocorrer uma desmaterialização do texto, a
sua desaparição da página impressa, e, conseqüentemente, a sua desterritorialização
do livro, sendo este transformado em fantasmagorias. Essas fantasmagorias se
presentificam nas gravações eletromagnéticas, dispostas numa fita de áudio e em
gravações digitais disponíveis na nos portais de literatura na Internet. Uma das
máquinas que entram na mediação da leitura é o automóvel. O automóvel coloca
o corpo em deslocamento, inserindo no ato da leitura sensações que ao corpo
imóvel do leitor proustiano, no gabinete de leitura, não foi possível vivenciar. Para
esse corpo a experiência da leitura configurou-se em outra ordem, ainda que ele
viesse a perceber que havia uma grande volatilidade e mutabilidade do espaço.
A leitura em deslocamento vivenciada por Fallows leva ao questionamento
das relações que podem ser estabelecidas entre as categorias espaço, movimento
e leitura. Quais seriam as interferências do primeiro sobre o segundo? Há uma
nova sensibilidade da leitura mediada por esses dois primeiros elementos? Cremos
que sim, pois essa relação se dará também no âmbito da Internet que se configurou
como um novo espaço de leitura e de ressurgimento do texto. Outra máquina
que participa da nova leitura é o walkman, prótese auditiva, que possibilita a
audição em deslocamento tanto mediado pelo automóvel como pelo movimento
do próprio corpo. As máquinas-prótese auditivas liberam o olhar para outras
tarefas: captação de dados, placas de orientação rápida, lista de e-mails e outros.
Enquanto o corpo imerge nos livros gravados e numa infinidade de sons.
Fallows pensava conhecer muitos livros que ouviu, porém a intensidade do
processo de reintrodução da leitura auditiva o fez duvidar de que já os houvesse lido.
Uma das grandes descobertas da imersão em livros gravados é memorável.
Qualquer coisa que entre pelos ouvidos tem chance de se fixar, mas algumas
combinações de voz e palavra são tão eficazes que, como a música, é
praticamente impossível esquecê-las. Talvez Philip Roth não estivesse pensando
na voz do ator Ron Silver quando escreveu Pastoral Americana, mas o
casamento é tão perfeito que é como se tivesse escrito. Ao recordar a
performance de Silver consigo recitar episódios inteiros com o personagem
central do livro, Swede Levov — o diálogo é tão fácil de lembrar quanto a letra
de uma canção. Quem tiver lido Lolita sabe que Nabokov era um escritor
engenhoso. Quem tiver ouvido a leitura que Jeremy Irons — muito mais
poderosa que a versão cinematográfica por ele estrelada, pois não há nada
para distrair a atenção das nuances de sua voz — sentirá mais imperiosamente
do que seria possível usando também a visão, que cada uma das palavras
exóticas e cuidadosamente escolhidas pelo autor era a palavra inevitável.
Assim, tento inspirar e melhorar a voz em minha cabeça. Menos soporífera
que a de um político; com mais verve e rispidez, como um Irons sem britanismo.
Se houver uma voz em sua cabeça enunciando essas palavras, espero que seja
sonora e evocativa.12
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A introdução de máquinas-prótese no processo de leitura, velocidade e do
deslocamento tendem a levar a uma nova percepção da leitura. Não mais à
leitura feita por um leitor apenas para um ouvinte impedido de ler seja por
doença, seja por incapacidade física, ou para atender a um desejo erótico de um
determinado ouvinte, mas a uma leitura mediada por uma nova sensibilidade
que integra novas formas de organização do tempo e da vida cotidiana nos grandes
centros urbanos, que termina por guiar o leitor para uma redescoberta da leitura.
Paul Zumthor chama a atenção para a importância e a concretude da voz
e de somente a sua escuta nos fazer tocar as coisas, ao falar da oralidade
característica da poesia medieval aponta esse gênero como locus dramaticus
privilegiado13. Com o advento de novas tecnologias de comunicação e
conseqüentemente a diminuição do tempo livre das pessoas, diminuição essa
gerada por essas mesmas transformações tecnologias, levar a voz humana a
longas distâncias no final do século XX e início do XXI, fazer com que as
pessoas falem e ouçam produtos de áudio, tornou-se um grande negócio.
Pierre Lévy escreve:
Escutar, olhar, ler equivale finalmente a construir-se. Na
abertura ao esforço de significação que vem do outro,
trabalhando, esburacando, amarrotando, recortando o texto,
incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para
erigir a paisagem de sentido que nos habita. O texto serve
aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de
nosso próprio espaço mental.
Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos
de signos que nomadizam dentro de nós. Essas insígnias,
essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a
ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica
viva do texto, mas contribuem para criar, recriar e reatualizar
o mundo de significações que somos.14
A leitura como esquecimento e deriva do hipertextual
na busca dos sentidos
“Uma leitura bem levada nos salva de tudo inclusive de nós mesmos”.15 O
gesto da leitura pode configurar-se também, conforme veremos mais adiante,
na liberdade de não ler. Barthes, em sua obra S/Z16, relata a vontade de escritura
provocada pela sua leitura da novela Sarrasine, de Balzac. Em S/Z o leitor
experimenta a leitura como condutora do Desejo de escrever. O desejo da
virtualização é o desejo do escritor pelo escrevível, o desejo do autor pela entidade
virtual que é o leitor17. Desejamos a virtualidade do texto que se presentifica
no ame-me, que é possível detectar em toda escritura.
Quanto ao texto escolhido (por quais razões? Tudo que sei é que há muito
tempo eu desejava analisar um texto curto em sua totalidade, e que a novela
de Balzac despertou minha atenção por causa de um estudo de Jean Reboul
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[“Sarrasine ou la castracion personifiée”, in Cahiers pour l´Analyse, março-abril
1967]; o autor dizia que sua escolha fora motivada por uma citação de Georges
Bataille; vi-me, desta maneira, envolvido nesse transporte cuja extensão me seria
revelada pelo próprio texto), esse texto é Sarrasine, de Balzac.18
Outra forma de con figuração da leitura pode ser a da sua presentificação
como esquecimento. Barthes contesta a afirmação Eu leio o texto, pois essa
afirmação nem sempre se apresenta como portadora de veracidade. Quanto
mais possibilidade de leitura apresenta um texto menos está escrito antes que
seja lido. O leitor não o submeterá a uma leitura, operação predicativa
conseqüente com seu ser. Outra questão levantada por Barthes se refere ao
eu. Esse “eu” que não é um sujeito imaculado, antecedente ao texto e que o
utilizaria, em seguida, como a um objeto cuja finalidade seria demonstrar um
lugar onde investir. O “eu” que se acerca do texto já é em si uma pluralidade
de textos anteriores, que carrega consigo uma história de gestos de leituras
“de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (cuja origem se perde)”.19
Barthes contesta as categorias objetividade e subjetividade como portadoras
de uma afinidade com o texto, embora reconheça que estas sejam forças que
podem apoderar-se dele.
A subjetividade é uma imagem plena, que obstrui o texto, mas cuja
plenitude, truncada, nada mais é do que esteira de todos os códigos que me
compõem, de tal sorte que minha subjetividade tem, no fundo, a própria
generalidade dos estereótipos. A objetividade exerce o mesmo princípio: é um
sistema imaginário como os outros (com a diferença que, nela, o gesto castrador
é mais forte), uma imagem que melhor me serve para nomear, melhor me
conhecer, melhor me desconhecer. A leitura não comporta riscos de
objetividade ou de subjetividade (ambas são imaginárias) até que se defina o
texto como um objeto expressivo (oferecido à nossa expressão), sublimado
por uma moral da verdade, aqui laxista, ali ascética. No entanto, ler não é um
gesto parasita, o complemento reativo de uma escritura que adornamos com
todos os prestígios da criação e da anterioridade. É um trabalho (razão pela
qual seria melhor falar de um ato lexiológico — lexiográfico até, já que escrevo
minha leitura) cujo método é topológico: não me oculto no texto,
simplesmente, nele não me podem localizar: minha tarefa é movimentar,
deslocar sistemas cujo percurso não para nem no texto nem no “eu”: os
sentidos que encontro são revelados, não pelo “eu” ou por outros, e sim por
sua marca sistem ática: a única prova de uma leitura é a qualidade e a resistência
de sua sistemática; em outras palavras: seu funcionamento.20
A leitura em Barthes se configura como deriva e problematização. Ler
significa inserir-se num nomadismo em busca de sentidos cujo objetivo é
nomeá-los. Porém esses sentidos são conduzidos em direção a outros nomes
que se atraem mutuamente e são renomeados: “assim passa o texto: é uma
nomeação em devenir, uma aproximação incansável, um trabalho
metonímico”.21 Essa busca pelos sentidos do texto, que identificamos como
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virtualização da leitura, é o que encontramos no hipertexto desterritorializado
do ciberespaço. Diante da multiplicidade de leitura que um texto apresenta, o
esquecimento de um sentido não pode ser con siderado uma falha ou omissão.
Barthes pergunta, esquecer em relação a quê? Qual é a soma do texto? Para ele
Alguns sentidos podem ser perfeitamente esquecidos, mas,
caso se tenha optado por observar o texto com um olhar
singular. No entanto, a leitura não consiste em fazer cessar
a cadeia dos sistemas, a fundar uma verdade, uma legalidade
do texto e, por conseguinte, em provocar as “faltas” do leitor;
consiste em imbricar esses sistemas, não de acordo com sua
pluralidade (que é um ser, não uma redução) passo,
atravesso, articulo, provoco, não conto. 22
Desta forma, o esquecimento não deve ser visto como omissão ou falha,
mas como uma ação afirmativa, uma forma de certificar a “irresponsabilidade
do texto”, garantindo assim as possibilidades dos sistemas. Fechar uma cadeia
de sentidos leva a constituição de um sentido singular, teológico, encaminha
o texto para um conjunto de possíveis. Para manter a pluralidade do texto,
garantindo assim a sua virtualidade, é que se deve esquecer o que é lido.
O leitor como rizoma de leituras
Enquanto leitores, muitas coisas nos unem a começar por essas perguntas
comuns que nos fazemos, cada um de seu lugar: O que é ler? Por que ler? Como
ler?23 Barthes se confessa desamparado no que diz respeito ao estabelecimento de
uma doutrina sobre a leitura. Esse desamparo chega, às vezes, a beirar a dúvida:
[...] nem sei se é preciso ter uma doutrina da leitura; não sei se a leitura não
é, con stitutivamente um campo plural de práticas dispersas, de efeitos irredutíveis,
e se, conseqüentemente, a leitura da leitura, a Metaleitura, não é mais do que um
estilhaçar-se de idéias, de temores, de desejos, de gozos, de opressões [...] .24
Barthes não busca reduzir esse desamparo: ao contrário, confessa-se
desprovido de meios para tal empreitada. O que procura realizar é “apenas
situá-lo, compreender esse transbordamento de que é objeto”,25 nele a noção
de leitura. Para iniciar o seu trabalho lança mão do procedimento que
possibilitou o avanço da Lingüística: a noção de pertinência.
A pertinência é, em Lingüística, o ponto de vista sob o qual se escolhe
olhar, interrogar, analisar um conjunto tão heteróclito, díspar, quanto a
linguagem. Somente quando Saussure passou a encarar a linguagem sob o
ponto de vista do sentido, e só desse ponto de vista, ele parou “de marcar
passo” e pôde fundar uma nova Lingüística. Foi aceitando, em detrimento de
uma infinidade de considerações possíveis, apenas ver, em centenas de contos
populares, situações e papéis estáveis, recorrentes, em suma, formas, que Propp
fundou a análise estrutural da narrativa.
Conjeturando sobre a decisão por uma pertinência, sob a qual
interrogaríamos a leitura, Barthes fala sobre desenvolver passo a passo uma
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Análise da Leitura (Anagnosologia, anagnose). É possível detectar, no campo
da leitura, a inexistência de uma pertinência de objetos: o verbo ler,
“aparentemente muito mais transitivo do que o verbo falar, pode ser saturado,
catalisado, com mil objetos diretos”:26 leio textos, figuras, cidades, rostos, gestos,
cenas etc. Esses objetos são tão variados que é impossível unificá-los sob alguma
categoria substancial, nem mesmo formal; pode-se apenas encontrar neles
uma unidade intencional: “o objeto que eu leio é fundado apenas pela minha
intenção de ler; ele é simplesmente: para ler, legendum, pertencendo a uma
fenomenologia, não a uma semiologia”.27
Barthes acusa também a falta de pertinência de níveis no campo da leitura,
segundo ele, o mais grave. Não há possibilidade de descrever em níveis de leitura,
porque inexiste a possibilidade de fechar esses níveis de leitura. Ele reconhece
que há uma origem da leitura gráfica: é o aprendizado das letras, das palavras
escritas. Por um lado, há leituras sem aprendizagem; como exemplo, cita as
imagens, que não passam por uma aprendizagem técnica, senão cultural.
Outro ponto abordado por Barthes é o recalque. Ele aponta dois tipos de
recalque que estão relacionados com a leitura. O primeiro está relacionado com
as injunções, sociais ou interiorizadas por diversos processos de substituição
que tornam a leitura um dever em que o próprio ato de ler é determinado por
uma lei: o ato de ter lido. Não estão sendo discutidas aqui as leituras instrum entais,
que são necessárias à aquisição de um saber, de uma técnica e nas quais o gesto
de ler se dilui no ato de aprender. O que está sendo discutido são as chamadas
leituras livres, que, no entanto, é necessário terem sido feitas. No nosso caso
essa necessidade está fundada na expectativa de que o aluno que venha freqüentar
um curso de Letras tenha feito determinadas leituras, que ele tenha tido acesso
aos cânones da Literatura. Espera-se que tenha lido os românticos, realistas,
modernistas e os pós-modernistas. Esta lei é proveniente de instâncias diversas,
fundamentadas cada uma em um valor. A lei de leitura não provém de uma
eternidade da cultura, mas de uma instância estranha, ou pelo menos enigmática
ainda, situada na fronteira entre a História e a Moda. O que se quer dizer com
isso é que existem leis de grupos, microleis, das quais é preciso ter o direito de se
livrar. A liberdade de leitura na concepção barthesiana é tam bém a liberdade de
não ler, e não importa o preço que se tenha que pagar por isso.
O segundo tipo de recalque que Barthes aponta é o da Biblioteca. Não há
no seu reconhecimento nenhuma intenção em contestar ou negar o
desenvolvimento desse espaço: trata-se de reconhecer apenas e simplesmente
a marca de recalque existente nesse traço fundamental e inevitável da Biblioteca
pública: a sua facticidade (caráter próprio da con dição humana pelo qual cada
homem se encontra, antecipadamente, comprometido com uma situação não
escolhida). Segundo Barthes, a facticidade não é em si uma via de recalque;
“se a Biblioteca pública se opõe ao Desejo de ler é por duas razões”:28
independente de suas dimensões, a biblioteca está sempre aquém ou além da
demanda: a tendência é nunca estar lá o livro desejado, ao passo que outro
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livro é proposto. A biblioteca instaura-se como o espaço dos substitutos do
desejo. Sempre grande demais ou pequena demais, ela é:
fundamentalmente inadequada ao Desejo; para tirar prazer,
plenitude, gozo de uma biblioteca, o sujeito tem de renunciar à
efusão de seu Imaginário; é preciso que tenha feito seu Édipo ð esse Édipo que não se deve fazer apenas aos quatro anos de
idade, mas a cada dia da minha vida que eu desejo. Nesse caso
é a profusão mesma dos livros que é a lei, a castração.29
A outra razão que Barthes aponta de oposição ao Desejo é a relação que
estabelecemos com a Biblioteca. A Biblioteca é um espaço que se visita, mas
não é um espaço que se habita. Ele se ressente da não-existência de uma
palavra que distinguisse o livro de biblioteca, livro-objeto de uma dívida,
mediado por uma relação burocrática ou magistral e outra para livro-em-casa,
livro-objeto de um desejo ou de uma demanda imediata, livre de mediação. O
livro-em-casa não se configura como um pedaço de desejo puro; ele, de maneira
geral, passou pela mediação do dinheiro; foi necessário comprá-lo. Do ponto
de vista barthesiano, o dinheiro funciona como um meio de desrecalque. Tom ar
emprestado seguramente não o é; na utopia fourierista os livros quase nada
valem, mas passam mesmo assim pela mediação de alguns tostões; são cobertos
por um Dispêndio e desde então o Desejo funciona: algo é desbloqueado.
Que há de desejo na leitura? O desejo está impossibilitado de nomear-se e
até mesmo de dizer-se. Barthes vê como certa a existência de um erotismo na
leitura, pois na leitura o desejo está presente junto com o seu objeto, o que é a
definição do erotismo. Como forma de exemplificar esse erotismo da leitura
Barthes utiliza o episódio de Em busca do tempo perdido, no qual Proust descreve
o narrador se fechando no gabinete sanitário de Combray — transformado em
espaço de alheamento da realidade — para ler, para fazer o seu rizoma.
Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, essa peça, de onde se via
durante o dia até o torreão de Roussanville-le-Pin, por muito tempo serviu de
refúgio para mim, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar,
para todas aquelas de minhas ocupações que exigiam inviolável solidão: a
leitura, o cismar, as lágrimas e a volúpia.30
A leitura desejante surge, então, portadora de duas características
fundamentais. Ao praticar ato de trancar-se para ler, ao tornar a leitura um
gesto absolutamente apartado, clandestino, no qual o mundo inteiro é
absorvido, o leitor identifica-se com dois outros sujeitos humanos,
extremamente próximos um do outro, cujo estado implica sempre numa
separação violenta: o sujeito apaixon ado e o sujeito místico. Teresa de Ávila é o
exemplo utilizado para o sujeito místico, pois ela fazia, de forma claramente
expressa, da leitura um substituto da oração mental. No que diz respeito ao
sujeito apaixonado, esse é caracterizado por uma completa demissão da
realidade, por um investimento num mundo totalmente subjetivo, virtualizado.
É legítimo reconhecer nesse paralelo entre o sujeito místico e o sujeito amoroso
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uma confirmação de que o sujeito-leitor é um sujeito totalmente desterrado
sob o registro do imaginário e do virtual. Toda a sua economia de prazer está
voltada para a sua relação com o livro “isto é, com a Imagem”, com a virtualidade
provocada pela leitura. O que se instaura então é uma relação narcísica entre
leitor e livro. O gabinete com perfume de íris onde se tranca o narrador proustiano
é a própria clausura do Espelho, a cena onde se realiza a coalescência edênica
entre o sujeito e a Imagem - “do livro”. Um leitor é um rizoma de leituras. Ele é o
representante substantivado de uma multiplicidade de textos e leituras, o corpo
de uma multiplicidade rizomórfica num só corpo. “Ser rizomorfo é produzir hastes
e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectam com elas
penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos.” 31
Na leitura, todas as emoções do corpo estão presentes e embaralhadas, e
essa é a segunda característica da leitura desejante: o deslumbramento, a vagância,
a dor, a volúpia. A leitura é o lugar da produção do corpo transtornado, mas não
despedaçado. A leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola, pois ler não
é um ato desprovido de intenção, é um ato doloroso, dramático, que exige do
leitor paciência e obstinação, a fim de que ele possa superar o intenso conflito
entre ele e o texto, conflito esse representado por uma imensa vontade de
compreender, de concordar, de discordar - enfim, aquele que lê não capta no
texto somente aquilo que o texto propõe, mas transmite ao texto lido as cargas
de sua experiência humano-existencial, daí o seu caráter virtualizante, que advém
de uma ressincronização e relocalização da escrita que tradicionalmente se
encontra dessincronizada e deslocalizada no texto. “Virtualizante, a escrita
dessincroniza e deslocaliza. Ela fez surgir um dispositivo de comunicação no
qual as mensagens muito freqüentes estão separadas no tempo e no espaço de
suas fontes de emissão, e, portanto, são recebidas fora de contexto”.32
A escrita como tecnologia virtualizante
O surgimento da escrita levou à aceleração do processo de artificialização,
de exteriorização, e de virtualização da memória que, conforme Lévy, teve
início com a hominização. Entidade problematizadora (virtualizante) e não
mera extensão; “ou seja, separação de um corpo vivo, colocação em comum,
heterogênese”. Não é possível restringir a escrita a um mero assentamento da
fala. “Em contrapartida, ao nos fazer conceber a lembrança como um registro,
ela transformou o rosto de Mnemósine”.33
A escrita é uma tecnologia intelectual que, por sua vez, confere objetividade,
virtualiza um exercício cognitivo, uma ação mental. Neste processo a escrita
promove a organização de uma ecologia intelectual em sua totalidade e em
troca imprime um novo modo de ser à função cognitiva que ela, supostamente,
deveria apenas auxiliar ou reforçar. Neil Postman e Jacques Derrida34 lembram
a história de Thamus, rei de uma cidade do alto Egito, e seu encontro com o
deus Theuth, deus inventor da escrita. A história, contada por Sócrates a seu
amigo Fedro, narra a apresentação a Thamus de uma invenção revolucionária:
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“Aqui está uma realização, meu senhor rei, que irá
aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios.
Eu descobri uma receita segura para a memória e para a
sabedoria”. Com isso, Thamus replicou: “Theuth, meu
exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o
melhor juiz para avaliar o bem ou dano que ela causará
naqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é o pai da
escrita, por afeição a seu rebento, atribui-lhe o oposto de
sua verdadeira função. Aqueles que a adquirirem vão parar
de exercitar a memória e se tornarão esquecidos; confiarão
na escrita para trazer coisas à sua lembrança por sinais
externos, em vez de fazê-lo por meio de seus próprios
recursos internos. O que você descobriu é a receita para a
recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus
discípulos terão a reputação dela sem a realidade, vão receber
uma quantidade de informação sem a instrução adequada,
e, como conseqüência, serão vistos como muito instruídos,
quando na maior parte serão bastante ignorantes. E como
estarão supridos com o conceito de sabedoria, e não com a
sabedoria verdadeira, serão um fardo para a sociedade”.35
É importante voltarmos nossa atenção para o fato de Thamus fazer um
juízo de valor equivocado a respeito da escrita. O seu erro não advém da afirmação
de que a ela irá causar transtorno à memória e gerar uma sabedoria falaciosa.
Esse efeito gerado pela escrita é fato demonstrável. O equivoco de Thamus reside
na crença de que a escrita será um fardo para a sociedade, nada além disso.
Ainda que seja um sábio, ele fracassa ao não intuir quais seriam os reais benefícios
da escrita. É possível tiramos deste episódio a seguinte lição: é um grande equívoco
presumir que toda e qualquer inovação tecnológica tem um efeito unilateral
sobre as coisas. Toda tecnologia pode se configurar sob dois aspectos: pode ser
lida e interpretada tanto como um fardo como uma benção; não uma coisa ou
outra, mas sim isto e aquilo.36 É imprescindível que cada cultura estabeleça uma
negociação com a tecnologia fazendo-o de forma inteligente ou não. “Chega-se
a um acordo no qual a tecnologia dá e toma”.37
As formas de conhecimento teórico e hermenêuticos garantiram posição
privilegiada em relação aos saberes narrativos e práticas consagradas das
sociedades orais com o advento da escrita, juntamente com novas tecnologias
intelectuais: o alfabeto e a imprensa. A instância de uma verdade universal,
objetiva e crítica só foi possível se impor numa economia cognitiva amplamente
estabelecida sobre uma base sustentada pela escrita sobre um suporte fixo.38
Com a desterritorialização do texto contemporâneo do seu antigo suporte
estático e sua conseqüente migração para o ciberespaço, onde passou a
alimentar correspondências on line e conferências eletrônicas, correndo em
redes, fluído, ele, texto, tornou-se dinâmico e passou a reconstituir, mas de
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outra maneira e numa escala infinitamente superior, “a copresença (sic) da
mensagem e de seu contexto vivo que caracteriza a comunicação oral.”39 Novos
protocolos de leitura são estabelecidos, os critérios mudam. Voltam a se reaproximar
do diálogo ou da conversação: “pertinência em função do momento, dos leitores
e dos lugares virtuais; brevidade, graças à possibilidade de apontar imediatamente
as referências; eficiência, pois prestar serviço ao leitor (e em particular ajudá-lo a
navegar) é o melhor meio de ser reconhecido sob o dilúvio informacional”.40 Todo
esse conjunto de elementos que é inserido na comunicação realizada no ciberespaço
introduz um novo conceito: o tempo real. O tempo real instaura a instantaneidade
da leitura e a volatilidade do texto em con stante transformação, agora desprovido
da fixidez que o leitor estava acostumado encontrar nos jornais matinais.
A volatilidade produzida pelo virtual é fenômeno que provoca todo o
ceticismo de Baudrillard em relação ao próprio virtual. Segundo ele, o virtual
aboliu a imaginação do artifício, “não há mais pensamento do artifício num
mundo em que o próprio pensamento, a inteligência, torna-se artificial”.41 Por
esta avaliação até mesmo o prazer teria sido capturado pelo virtual e,
conseqüentemente, esvaziado de todo e qualquer sentido. Não haveria nenhuma
possibilidade de prazer no virtual, nem na virtualidade da leitura. Porém, sem
ausentar-se do gabinete de leitura proustiano, Barthes procura mapear uma
tipologia do prazer de ler. A sua inquietação sobre a possibilidade de existência
de prazeres diferentes de leitura leva-o a afirmar a existência de pelo menos três
caminhos pelos quais a imagem de leitura pode capturar o sujeito-leitor.
No primeiro modo, encontra-se um leitor que estabelece com o texto
lido uma relação fetichista: extrai prazer das palavras, de determinadas palavras,
certas construções frasais; o texto constitui-se como lugar onde o sujeitoleitor se abisma, se perde: instaura-se entre o leitor e o texto uma relação
mediatizada pelo erotismo da palavra.
No segundo, que se encontra totalmente oposto ao primeiro, o leitor é
arrebatado ao longo do livro por uma força que está sempre, em maior ou menor
grau, dissimulada, “da ordem do suspense”. O prazer, o gozo, resulta de um
desgaste impaciente e arrebatador que o livro sofre. Trata-se, principalmente,
“do prazer metonímico de toda narração, sem esquecer que o próprio saber ou
a idéia podem ser contados, submetidos a um movimento de suspense”.42
Há, finalmente, o que Barthes chama uma terceira aventura da leitura.
O que ele nomeia como aventura é a forma pela qual o prazer chega ao leitor.
Essa aventura da leitura é a Escritura. A leitura apresenta-se como condutora
do Desejo de escrever. Não que isso signifique escrever tal e qual o autor cuja
leitura nos contenta e satisfaz. O que desejamos é o desejo que o escritor teve
de escrever, o desejo do autor pelo leitor, desejamos o ame-me, que é possível
detectar em toda escritura. Citando Roger Laport, Barthes ressalta que uma
leitura que não chame uma outra escritura é algo de incompreensível.
Tomando a leitura por esta perspectiva, ela passa a ser entendida como
produção, não mais de imagens interiores, de projeções, de fantasias, mas de
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trabalho. O produto consumido (texto) é recolocado no circuito econômico da
leitura sob a forma de produção, possibilitando o desenrolar-se da cadeia dos
desejos. Cada leitura passa a valer pela escritura que produz, até o infinito. É lícito
lembrarmos o fato de que nossa sociedade não é uma sociedade de produção, mas
uma sociedade do ler, do ouvir e do ver, e não sociedade do escrever, do olhar e do
escutar. Tudo está estruturado de forma que interponha um bloqueio à resposta.
Wim Wenders, já há algum tempo, tem se posicionado contra esse bloqueio
à resposta apontado por Barthes. Wenders tem se insurgido contra o que ele
classifica como o vício das im agens. Em seu filme A té o fim do m undo (Until the
end of the World), Wenders43 tece uma dura crítica à valorização indiscriminada
da imagem, simbolizada por pequenas máquinas que tornam possível que as
pessoas vejam, depois de gravados por um processo especial, os seus próprios
sonhos. As pequenas máquinas de ver os sonhos, do filme de Wenders, são
uma metáfora da vulgarização das imagens pela televisão e dos efeitos
produzidos por esta nos espectadores.
Em Até o fim do mundo, caberá à palavra o papel de salvar a personagem
principal do vício no qual ela se encontra mergulhada. Clair Torneur44 vive
num mundo completamente apartado, o mundo da imagem. Um mundo de
fascínio que lhe arrebata o poder de atribuir um sentido aos fatos e coisas que
a cercam. Clair abandona a sua natureza “sensível”, abandona o mundo,
retirando-se para aquém do mundo. Mergulha num abismo de luz em cujo
fundo encontra-se um espelho que reflete a sua infância. A infância é o próprio
momento da fascinação, ela está imersa numa luz esplêndida. Para Blanchot
essa luz é estranha à revelação, pois nada existe para revelar, não é mais que o
brilho de uma imagem.45 O fascínio é o olhar da solidão, o olhar do incessante
e do interminável. O que se tem nesse sentido é uma visão que já não é
possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver: um olhar morto,
convertido no fantasma de uma visão eterna.
A única maneira de trazer Clair para o mundo das possibilidades de
significações é através da leitura. Utilizando esse artifício, Eugene46, ex-namorado,
escritor e também narrador do filme, isola Clair em uma espécie de prisão ao ar
livre, com o objetivo de livrá-la da doença das imagens. Para ajudá-la em sua
recuperação, Ele oferece a Clair o romance que acabara de reescrever em uma
velha máquina Royal. Pois, o seu texto original se perdeu da memória do seu
computador após um acidente com um satélite nuclear indiano que explode na
órbita do planeta. A explo são gera uma pane eletromagnética que afeta todos os
equipamentos eletroeletrônicos impedindo-os de funcionar e faz com que todas
as memórias dos computadores sejam apagadas.
Clair se recupera à medida que lê o romance de Eugene. É importante
lembrarmos que essa leitura ocorre num espaço delimitado pela cerca que
impede Clair de se perder na imensidão do deserto australiano. Assim como o
leitor do gabinete sanitário de Combray, Ela necessita, ainda que de uma forma
simbólica, estar apartada do mundo — não-presente — para exercer a sua
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leitura: o seu processo de cura. Clair é o próprio leitor arrebatado, aquele cujo
prazer, o gozo, resulta de um desgaste impaciente e arrebatador que o livro
sofre. Com o fim da leitura, Clair se recupera e Eugene a liberta. Com isso
Wenders reafirma a sua crença na palavra como elemento de redenção da
nossa humanidade. A leitura assume aqui um caráter positivo, estrutura-se
como uma força poderosa e transformadora que está constantemente em
renovação, pois a cada vez que é executada se constitui numa nova leitura,
numa atualização das significações imanentes ao texto.
Para Blanchot, somente o livro não literário se oferece como uma rede
firmemente tecida de significações determinadas, como um conjunto de
afirmações que encontram legitimidade na realidade. O livro não literário passa
por um processo de leitura prévia que lhe garante uma existência sólida, ele
“já foi sempre lido por todos”.47 Porém, o livro que tem a sua origem na arte
não tem sua garantia no mundo. A sua leitura se faz a cada momento em que
é manuseado. Cada vez é a primeira e cada vez a única. É essa impossibilidade
de uniformização da leitura que garante o desbloqueio à resposta. Mas
enquanto esse desbloqueio não ocorrer, de forma efetiva, resta aos amantes
da escritura a dispersão, a clandestinidade e o esmagamento por uma série de
restrições, interiores. É necessário libertarmos a leitura, o que não será possível,
se no mesmo movimento, não libertarmos a escritura.
Notas:
Postman, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à técnica. São Paulo: Nobel,
1994, p. 18.
1
Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi, Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.336.
Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção Trans) p. 35.
Ibidem, p. 35-36.
Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac.
Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 38.
Ibidem, p. 39.
Fallows, James. Apurando os sentidos: lendo de ouvido. Tradução Celso M.
Paciornik. Jornal Valor. Caderno Eu & Fim de Semana. Sexta-feira e fim de
semana, 2, 3, 4 de março de 2001 – Ano I – número 44, p. 21.
Ibidem, p. 21.
Ibid, p. 21.
Ibid. p. 21.
É possível, por exemplo, ouvir James Joyce lendo um trecho de Finnegans
Wake no portal www.2street.com/joyce/gallery/ .
Ibid, p. 21.
Zumthor, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução Amalio
Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 9.
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Texto Digital
Ano 1, n 1
Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção Trans) p. 37.
Pennac, Daniel. Como um romance. Leny Wernek. Rio de Janeiro: Rocco,
1997, p. 81.
Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac.
Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
14
15
16
Assim como Umberto Eco chama a atenção para o Leitor-Modelo em seu
Lector in Fabula, p. 38-41.
17
Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac.
Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 50.
Ibidem, p. 44.
Ibid, p. 44.
Ibid, p. 44.
Ibid, p. 44.
Barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
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21
22
23
Ibidem, p. 43.
Ibid, p. 44.
Ibid., p. 44.
Ibid, p. 44.
Ibid, p. 47.
Ibid, p. 47
Proust, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. Tradução:
Eduardo Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992.
Deleuze, Gilles e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1.
Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1a
Reimpressão, 1996, p. 25.
Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção Trans) p. 38.
Ibidem, p. 38.
Derrida, Jacques. “O pai do logos” in A farm ácia de Platão. Tradução Rogério
da costa. 2a. edição. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 21.
Platão. Dálogos: Menon, Ban quete, Fedro 1. Rio de Janeiro: Ediouro/
Tecnoprint, s/d, p. 96.
Postman, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à técnica. São Paulo: Nobel,
1994, p. 14.
Ibidem, p. 15.
Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,
1996. (Coleção Trans) p. 38.
Ibidem, p. 39.
Ibid, p. 39.
Baudrillard, Jean. “Dupla exterminação” in Tela total. Organização e tradução
Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997, p.75.
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Texto Digital
Ano 1, n 1
Barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 49.
Até o fim do mundo. Majestic Films. Produção: Jonathan Taplin e Anatole
Dauman. Distribuidor: Top Tap Home Vídeo. Willian Hurt - Solveig
Dommartin Sam Neill - Max Von Sydow - Rüdiger Vogler - Ernie Dingo Jean Moreau - Fotografia: Robby Müller. Música: Graeme Revell. Edição: Peter
Przygodda. 1990.
Interpretada pela atriz alemã Solveig Dommartin.
Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987, p. 24.
Interpretado pelo ator norte-americano Sam Neal.
Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987, p.195.
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