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O lugar onde a estrutura se descontrola

2004

Deslocamentos e próteses de leitura Em artigo intitulado lendo de ouvido, publicado na The Atlantic Monthly, James Fallows, leitor contumaz, adepto da cultura visual, relata a sua descoberta da palavra sonora, e se confessa alarmado.

Texto Digital Ano 1, n 1 O lugar onde a estrutura se descontrola Rogério Lima “Coisas novas requerem palavras novas. Mas as coisas novas tam bém m odifi cam palavras velhas que têm significados com profundas raízes.” Neil Postman1 A respeito da realidade do virtual Deleuze escreve: A realidade do virtual consiste nos elementos e relações diferenciais e nos pontos singulares que lhes correspondem. A estrutura é a realidade do virtual. Aos elementos e às relações que formam uma estrutura devemos evitar, ao mesmo tempo, atribuir uma atualidade que eles não têm e retirar a realidade que eles têm. Vimos que um duplo processo de determinação recíproca e de determinação completa definia essa realidade: em vez de ser indeterminado, o virtual é completamente determinado. Quando a obra de arte se reclama de uma virtualidade na qual mergulha, ela não invoca qualquer determinação confusa, mas a estrutura completamente determinada, formada por seus elementos diferenciais genéticos, elementos tornados virtuais, tornados embrionários. Os elementos, as variedades de relações, os pontos singulares coexistem na obra ou no objeto, na parte virtual da obra ou do objeto, sem que se possa assinalar um ponto de vista privilegiado sobre os outros, um centro que seria unificador de outros centros.2 Desde a sua origem o texto tem se configurado como um objeto de caráter virtual, abstrato que tem a sua existência garantida independente do suporte que o contenha. O texto enquanto entidade virtual é passível de atualização sob muitas formas, versões, exemplares, traduções, edições e cópias. Ao estabelecer sentido para o texto no aqui e agora o leitor põe em funcionamento todo esse complexo de atualização textual. A questão da atualização aqui está relacionada especificamente à leitura, pois no que diz respeito à realização esta se concretizaria no âmbito da seleção entre possíveis. O texto é formado por um conjunto de estímulos, coerções e tensões que são propostos ao leitor e que serão atualizados durante o ato da leitura. Caberá à leitura solucionar de maneira criativa e sempre singular questões relativas à con strução de sentido no texto. É prerrogativa do leitor, usando de sua inteligência, firmar uma cartografia da deriva da atualização na “paisagem semântica móvel e acidentada”3 que o texto lhe apresenta. 108 Texto Digital Ano 1, n 1 Pierre Lévy analisa o trabalho de atualização con struído por meio da leitura e levanta algumas questões acerca do relacionamento do leitor com o texto: Lemos ou escutamos um texto. O que ocorre? Em primeiro lugar, o texto é esburacado, riscado, semeado de brancos. São as palavras, os membros de frases que não captamos (no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto que não compreendemos, que não conseguimos juntar, que não reunimos aos outros, que negligenciamos. De modo que, paradoxalmente, ler, escutar, é começar a negligenciar, a desler ou desligar o texto. Ao mesmo tempo (em) que o rasgamos pela leitura ou pela escuta, am arrotam os o texto. Dobramo-lo sobre si mesmo. Relacionamos uma à outra as passagens que se correspondem. Os membros esparsos, expostos, dispersos, na superfície das páginas ou na linearidade do discurso, costuramo-los juntos: ler um texto é reencontrar os gestos textuais que lhe deram seu nome.4 A topografia textual acidentada identificada por Lévy, as dobras impostas pela leitura, os saltos e esquecimentos provenientes dessa mesma leitura são decorrentes da pluralidade que o texto apresenta nas múltiplas situações em que ele se apresenta para o leitor. Esse é o texto escrevível de que fala Barthes5, o texto que faz do leitor não mais um con sumidor, mas um produtor de texto. Não há, talvez nada a dizer sobre os textos escrevíveis. Em primeiro lugar, onde encontrá-los? Na leitura, certamente não (ou, pelo menos, muito pouco: por acaso, fugidia e obliquamente, em algumas obras limites): o texto escrevível não é uma coisa, dificilmente será encontrado em livraria. Além disso, sendo seu modelo produtivo (e não representativo), ele suprime toda crítica, que, produzida, confundir-se-ia com ele: o re-escrever só poderia consistir em disseminar o texto, dispersá-lo no campo da diferença infinita. O texto escrevível é um presente perpétuo, no qual não se vem inscrevendo nenhuma palavra conseqüente (que, fatalmente, o transformaria em passado); o texto escrevível é a mão escrevendo, antes que o jogo infinito do mundo (o mundo como um jogo) seja cruzado, cortado, interrompido, plastificado por algum sistema singular (Ideologia, Gênero, Crítica) que venha impedir, na pluralidade dos acessos, a abertura das redes, o infinito da linguagens. O escrevível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.6 O escrevível é o virtual e a virtualidade na sua plena realização. É o texto desterritorializado, inserido na deriva e no nomadismo do hipertexto. É o texto no qual o leitor desobedece todas as orientações de balizamento da leitura, corta caminho por transversais, produzindo dobras interditas, estabelece redes secretas, fazendo emergir outras geografias e cartografias semânticas. Deslocamentos e próteses de leitura Em artigo intitulado lendo de ouvido, publicado na The Atlantic Monthly, James Fallows, leitor contumaz, adepto da cultura visual, relata a sua descoberta da palavra sonora, e se confessa alarmado. 109 Texto Digital Ano 1, n 1 Sinto como se tivesse passado a maior parte do meu tempo de vigília lendo, desde os seis anos de idade, razão porque uma descoberta que fiz no ano passado me alarmou. Estava caçando uma estação no rádio do carro quando ouvi a leitura dramática de um trecho de um romance. Era “Independence Day”, de Richard Ford, que eu já havia lido, por isso continuei a busca, pensando: “já sei como isso acaba”. Mas sem encontrar nada melhor voltei a ela e me surpreendi. A história era melhor do que eu recordava. Ou melhor, era diferente. Personagens que mal havia notado tinham falas completas. As descrições dos relatos eram mais vivas — eu conseguia imaginar as casas as cenas de rua como não fizera antes. Quando a leitura terminou tive a sensação de ter escutado uma história completamente nova.7 Típico participante da cultura visual de massa, Fallows coloca para si a questão da excessiva valorização da visão em detrimento da audição, de fatura extremamente baixa na economia de armazenamento de produtos culturais na memória humana. Como a maioria dos participantes das sociedades hightech apreciava a visão e tomava para si a idéia de que a audição era uma espécie de backup analógico de baixa velocidade. Homero e Chaucer que fiquem com suas tradições orais — eu tinha um livro de 300 páginas para percorrer até a hora de dormir. Pouco me importava se podia ou não compreender o que um tagarela parisiense dizia, contando que pudesse ler seus jornais. Mesmo as partes da leitura envolvendo algo além da visão me pareciam retrógradas.8 A conclusão a que Fallows chega é a de que é possível captar os acontecimentos muito mais rapidamente com o olhar, porém eles parecem mais propensos a serem retidos pela memória se penetrarem no cérebro pela via auditiva. Isso talvez seja uma decorrência dos sinais aurais que parecem provocar estímulos mais variados em regiões do cérebro que a visão de coisas impressas. Afinal, uma passagem de três segundos de qualquer peça musical familiar evoca instantaneamente não só o resto da música, mas também as visões, cheiros e emoções de acontecimentos associados a ela. É difícil imaginar um parágrafo escrito com o mesmo poder geral.9 Porém é possível que a diferença esteja na velocidade com que o acontecimento é percebido e recebido. Após todo um ano de audição de diversos livros gravados, de Lolita, de Nabokov, a Pastoral Americana, de Philip Roth, enquanto dirigia, Fallows elaborou a seguinte hipótese em relação à leitura acerca da existência de uma lei de conservação da memória: “o valor de atenção de uma hora vai produzir um valor de idéias e imagens retidas de uma hora, venham elas de um capítulo lido, em voz alta, ou de quatro capítulos vistos na página e relembrados, em média na proporção de um quarto”.10 Na sua busca por títulos gravados Fallows usou de todos os recursos disponíveis desde o aluguel de fitas áudio a textos disponíveis em portais na Internet para serem copiados pelo processo de ftp, protocolo de transferência de arquivos digitais11. Foram copiados romances e biografias gravadas para 110 Texto Digital Ano 1, n 1 serem reproduzidas em aparelho de áudio digital do tipo walkman com fones de ouvido. É importante notar a quantidade de máquinas e próteses que intermedeiam a leitura de Fallows. Primeiramente, ocorrer uma desmaterialização do texto, a sua desaparição da página impressa, e, conseqüentemente, a sua desterritorialização do livro, sendo este transformado em fantasmagorias. Essas fantasmagorias se presentificam nas gravações eletromagnéticas, dispostas numa fita de áudio e em gravações digitais disponíveis na nos portais de literatura na Internet. Uma das máquinas que entram na mediação da leitura é o automóvel. O automóvel coloca o corpo em deslocamento, inserindo no ato da leitura sensações que ao corpo imóvel do leitor proustiano, no gabinete de leitura, não foi possível vivenciar. Para esse corpo a experiência da leitura configurou-se em outra ordem, ainda que ele viesse a perceber que havia uma grande volatilidade e mutabilidade do espaço. A leitura em deslocamento vivenciada por Fallows leva ao questionamento das relações que podem ser estabelecidas entre as categorias espaço, movimento e leitura. Quais seriam as interferências do primeiro sobre o segundo? Há uma nova sensibilidade da leitura mediada por esses dois primeiros elementos? Cremos que sim, pois essa relação se dará também no âmbito da Internet que se configurou como um novo espaço de leitura e de ressurgimento do texto. Outra máquina que participa da nova leitura é o walkman, prótese auditiva, que possibilita a audição em deslocamento tanto mediado pelo automóvel como pelo movimento do próprio corpo. As máquinas-prótese auditivas liberam o olhar para outras tarefas: captação de dados, placas de orientação rápida, lista de e-mails e outros. Enquanto o corpo imerge nos livros gravados e numa infinidade de sons. Fallows pensava conhecer muitos livros que ouviu, porém a intensidade do processo de reintrodução da leitura auditiva o fez duvidar de que já os houvesse lido. Uma das grandes descobertas da imersão em livros gravados é memorável. Qualquer coisa que entre pelos ouvidos tem chance de se fixar, mas algumas combinações de voz e palavra são tão eficazes que, como a música, é praticamente impossível esquecê-las. Talvez Philip Roth não estivesse pensando na voz do ator Ron Silver quando escreveu Pastoral Americana, mas o casamento é tão perfeito que é como se tivesse escrito. Ao recordar a performance de Silver consigo recitar episódios inteiros com o personagem central do livro, Swede Levov — o diálogo é tão fácil de lembrar quanto a letra de uma canção. Quem tiver lido Lolita sabe que Nabokov era um escritor engenhoso. Quem tiver ouvido a leitura que Jeremy Irons — muito mais poderosa que a versão cinematográfica por ele estrelada, pois não há nada para distrair a atenção das nuances de sua voz — sentirá mais imperiosamente do que seria possível usando também a visão, que cada uma das palavras exóticas e cuidadosamente escolhidas pelo autor era a palavra inevitável. Assim, tento inspirar e melhorar a voz em minha cabeça. Menos soporífera que a de um político; com mais verve e rispidez, como um Irons sem britanismo. Se houver uma voz em sua cabeça enunciando essas palavras, espero que seja sonora e evocativa.12 111 Texto Digital Ano 1, n 1 A introdução de máquinas-prótese no processo de leitura, velocidade e do deslocamento tendem a levar a uma nova percepção da leitura. Não mais à leitura feita por um leitor apenas para um ouvinte impedido de ler seja por doença, seja por incapacidade física, ou para atender a um desejo erótico de um determinado ouvinte, mas a uma leitura mediada por uma nova sensibilidade que integra novas formas de organização do tempo e da vida cotidiana nos grandes centros urbanos, que termina por guiar o leitor para uma redescoberta da leitura. Paul Zumthor chama a atenção para a importância e a concretude da voz e de somente a sua escuta nos fazer tocar as coisas, ao falar da oralidade característica da poesia medieval aponta esse gênero como locus dramaticus privilegiado13. Com o advento de novas tecnologias de comunicação e conseqüentemente a diminuição do tempo livre das pessoas, diminuição essa gerada por essas mesmas transformações tecnologias, levar a voz humana a longas distâncias no final do século XX e início do XXI, fazer com que as pessoas falem e ouçam produtos de áudio, tornou-se um grande negócio. Pierre Lévy escreve: Escutar, olhar, ler equivale finalmente a construir-se. Na abertura ao esforço de significação que vem do outro, trabalhando, esburacando, amarrotando, recortando o texto, incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental. Confiamos às vezes alguns fragmentos do texto aos povos de signos que nomadizam dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas contribuem para criar, recriar e reatualizar o mundo de significações que somos.14 A leitura como esquecimento e deriva do hipertextual na busca dos sentidos “Uma leitura bem levada nos salva de tudo inclusive de nós mesmos”.15 O gesto da leitura pode configurar-se também, conforme veremos mais adiante, na liberdade de não ler. Barthes, em sua obra S/Z16, relata a vontade de escritura provocada pela sua leitura da novela Sarrasine, de Balzac. Em S/Z o leitor experimenta a leitura como condutora do Desejo de escrever. O desejo da virtualização é o desejo do escritor pelo escrevível, o desejo do autor pela entidade virtual que é o leitor17. Desejamos a virtualidade do texto que se presentifica no ame-me, que é possível detectar em toda escritura. Quanto ao texto escolhido (por quais razões? Tudo que sei é que há muito tempo eu desejava analisar um texto curto em sua totalidade, e que a novela de Balzac despertou minha atenção por causa de um estudo de Jean Reboul 112 Texto Digital Ano 1, n 1 [“Sarrasine ou la castracion personifiée”, in Cahiers pour l´Analyse, março-abril 1967]; o autor dizia que sua escolha fora motivada por uma citação de Georges Bataille; vi-me, desta maneira, envolvido nesse transporte cuja extensão me seria revelada pelo próprio texto), esse texto é Sarrasine, de Balzac.18 Outra forma de con figuração da leitura pode ser a da sua presentificação como esquecimento. Barthes contesta a afirmação Eu leio o texto, pois essa afirmação nem sempre se apresenta como portadora de veracidade. Quanto mais possibilidade de leitura apresenta um texto menos está escrito antes que seja lido. O leitor não o submeterá a uma leitura, operação predicativa conseqüente com seu ser. Outra questão levantada por Barthes se refere ao eu. Esse “eu” que não é um sujeito imaculado, antecedente ao texto e que o utilizaria, em seguida, como a um objeto cuja finalidade seria demonstrar um lugar onde investir. O “eu” que se acerca do texto já é em si uma pluralidade de textos anteriores, que carrega consigo uma história de gestos de leituras “de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (cuja origem se perde)”.19 Barthes contesta as categorias objetividade e subjetividade como portadoras de uma afinidade com o texto, embora reconheça que estas sejam forças que podem apoderar-se dele. A subjetividade é uma imagem plena, que obstrui o texto, mas cuja plenitude, truncada, nada mais é do que esteira de todos os códigos que me compõem, de tal sorte que minha subjetividade tem, no fundo, a própria generalidade dos estereótipos. A objetividade exerce o mesmo princípio: é um sistema imaginário como os outros (com a diferença que, nela, o gesto castrador é mais forte), uma imagem que melhor me serve para nomear, melhor me conhecer, melhor me desconhecer. A leitura não comporta riscos de objetividade ou de subjetividade (ambas são imaginárias) até que se defina o texto como um objeto expressivo (oferecido à nossa expressão), sublimado por uma moral da verdade, aqui laxista, ali ascética. No entanto, ler não é um gesto parasita, o complemento reativo de uma escritura que adornamos com todos os prestígios da criação e da anterioridade. É um trabalho (razão pela qual seria melhor falar de um ato lexiológico — lexiográfico até, já que escrevo minha leitura) cujo método é topológico: não me oculto no texto, simplesmente, nele não me podem localizar: minha tarefa é movimentar, deslocar sistemas cujo percurso não para nem no texto nem no “eu”: os sentidos que encontro são revelados, não pelo “eu” ou por outros, e sim por sua marca sistem ática: a única prova de uma leitura é a qualidade e a resistência de sua sistemática; em outras palavras: seu funcionamento.20 A leitura em Barthes se configura como deriva e problematização. Ler significa inserir-se num nomadismo em busca de sentidos cujo objetivo é nomeá-los. Porém esses sentidos são conduzidos em direção a outros nomes que se atraem mutuamente e são renomeados: “assim passa o texto: é uma nomeação em devenir, uma aproximação incansável, um trabalho metonímico”.21 Essa busca pelos sentidos do texto, que identificamos como 113 Texto Digital Ano 1, n 1 virtualização da leitura, é o que encontramos no hipertexto desterritorializado do ciberespaço. Diante da multiplicidade de leitura que um texto apresenta, o esquecimento de um sentido não pode ser con siderado uma falha ou omissão. Barthes pergunta, esquecer em relação a quê? Qual é a soma do texto? Para ele Alguns sentidos podem ser perfeitamente esquecidos, mas, caso se tenha optado por observar o texto com um olhar singular. No entanto, a leitura não consiste em fazer cessar a cadeia dos sistemas, a fundar uma verdade, uma legalidade do texto e, por conseguinte, em provocar as “faltas” do leitor; consiste em imbricar esses sistemas, não de acordo com sua pluralidade (que é um ser, não uma redução) passo, atravesso, articulo, provoco, não conto. 22 Desta forma, o esquecimento não deve ser visto como omissão ou falha, mas como uma ação afirmativa, uma forma de certificar a “irresponsabilidade do texto”, garantindo assim as possibilidades dos sistemas. Fechar uma cadeia de sentidos leva a constituição de um sentido singular, teológico, encaminha o texto para um conjunto de possíveis. Para manter a pluralidade do texto, garantindo assim a sua virtualidade, é que se deve esquecer o que é lido. O leitor como rizoma de leituras Enquanto leitores, muitas coisas nos unem a começar por essas perguntas comuns que nos fazemos, cada um de seu lugar: O que é ler? Por que ler? Como ler?23 Barthes se confessa desamparado no que diz respeito ao estabelecimento de uma doutrina sobre a leitura. Esse desamparo chega, às vezes, a beirar a dúvida: [...] nem sei se é preciso ter uma doutrina da leitura; não sei se a leitura não é, con stitutivamente um campo plural de práticas dispersas, de efeitos irredutíveis, e se, conseqüentemente, a leitura da leitura, a Metaleitura, não é mais do que um estilhaçar-se de idéias, de temores, de desejos, de gozos, de opressões [...] .24 Barthes não busca reduzir esse desamparo: ao contrário, confessa-se desprovido de meios para tal empreitada. O que procura realizar é “apenas situá-lo, compreender esse transbordamento de que é objeto”,25 nele a noção de leitura. Para iniciar o seu trabalho lança mão do procedimento que possibilitou o avanço da Lingüística: a noção de pertinência. A pertinência é, em Lingüística, o ponto de vista sob o qual se escolhe olhar, interrogar, analisar um conjunto tão heteróclito, díspar, quanto a linguagem. Somente quando Saussure passou a encarar a linguagem sob o ponto de vista do sentido, e só desse ponto de vista, ele parou “de marcar passo” e pôde fundar uma nova Lingüística. Foi aceitando, em detrimento de uma infinidade de considerações possíveis, apenas ver, em centenas de contos populares, situações e papéis estáveis, recorrentes, em suma, formas, que Propp fundou a análise estrutural da narrativa. Conjeturando sobre a decisão por uma pertinência, sob a qual interrogaríamos a leitura, Barthes fala sobre desenvolver passo a passo uma 114 Texto Digital Ano 1, n 1 Análise da Leitura (Anagnosologia, anagnose). É possível detectar, no campo da leitura, a inexistência de uma pertinência de objetos: o verbo ler, “aparentemente muito mais transitivo do que o verbo falar, pode ser saturado, catalisado, com mil objetos diretos”:26 leio textos, figuras, cidades, rostos, gestos, cenas etc. Esses objetos são tão variados que é impossível unificá-los sob alguma categoria substancial, nem mesmo formal; pode-se apenas encontrar neles uma unidade intencional: “o objeto que eu leio é fundado apenas pela minha intenção de ler; ele é simplesmente: para ler, legendum, pertencendo a uma fenomenologia, não a uma semiologia”.27 Barthes acusa também a falta de pertinência de níveis no campo da leitura, segundo ele, o mais grave. Não há possibilidade de descrever em níveis de leitura, porque inexiste a possibilidade de fechar esses níveis de leitura. Ele reconhece que há uma origem da leitura gráfica: é o aprendizado das letras, das palavras escritas. Por um lado, há leituras sem aprendizagem; como exemplo, cita as imagens, que não passam por uma aprendizagem técnica, senão cultural. Outro ponto abordado por Barthes é o recalque. Ele aponta dois tipos de recalque que estão relacionados com a leitura. O primeiro está relacionado com as injunções, sociais ou interiorizadas por diversos processos de substituição que tornam a leitura um dever em que o próprio ato de ler é determinado por uma lei: o ato de ter lido. Não estão sendo discutidas aqui as leituras instrum entais, que são necessárias à aquisição de um saber, de uma técnica e nas quais o gesto de ler se dilui no ato de aprender. O que está sendo discutido são as chamadas leituras livres, que, no entanto, é necessário terem sido feitas. No nosso caso essa necessidade está fundada na expectativa de que o aluno que venha freqüentar um curso de Letras tenha feito determinadas leituras, que ele tenha tido acesso aos cânones da Literatura. Espera-se que tenha lido os românticos, realistas, modernistas e os pós-modernistas. Esta lei é proveniente de instâncias diversas, fundamentadas cada uma em um valor. A lei de leitura não provém de uma eternidade da cultura, mas de uma instância estranha, ou pelo menos enigmática ainda, situada na fronteira entre a História e a Moda. O que se quer dizer com isso é que existem leis de grupos, microleis, das quais é preciso ter o direito de se livrar. A liberdade de leitura na concepção barthesiana é tam bém a liberdade de não ler, e não importa o preço que se tenha que pagar por isso. O segundo tipo de recalque que Barthes aponta é o da Biblioteca. Não há no seu reconhecimento nenhuma intenção em contestar ou negar o desenvolvimento desse espaço: trata-se de reconhecer apenas e simplesmente a marca de recalque existente nesse traço fundamental e inevitável da Biblioteca pública: a sua facticidade (caráter próprio da con dição humana pelo qual cada homem se encontra, antecipadamente, comprometido com uma situação não escolhida). Segundo Barthes, a facticidade não é em si uma via de recalque; “se a Biblioteca pública se opõe ao Desejo de ler é por duas razões”:28 independente de suas dimensões, a biblioteca está sempre aquém ou além da demanda: a tendência é nunca estar lá o livro desejado, ao passo que outro 115 Texto Digital Ano 1, n 1 livro é proposto. A biblioteca instaura-se como o espaço dos substitutos do desejo. Sempre grande demais ou pequena demais, ela é: fundamentalmente inadequada ao Desejo; para tirar prazer, plenitude, gozo de uma biblioteca, o sujeito tem de renunciar à efusão de seu Imaginário; é preciso que tenha feito seu Édipo ð esse Édipo que não se deve fazer apenas aos quatro anos de idade, mas a cada dia da minha vida que eu desejo. Nesse caso é a profusão mesma dos livros que é a lei, a castração.29 A outra razão que Barthes aponta de oposição ao Desejo é a relação que estabelecemos com a Biblioteca. A Biblioteca é um espaço que se visita, mas não é um espaço que se habita. Ele se ressente da não-existência de uma palavra que distinguisse o livro de biblioteca, livro-objeto de uma dívida, mediado por uma relação burocrática ou magistral e outra para livro-em-casa, livro-objeto de um desejo ou de uma demanda imediata, livre de mediação. O livro-em-casa não se configura como um pedaço de desejo puro; ele, de maneira geral, passou pela mediação do dinheiro; foi necessário comprá-lo. Do ponto de vista barthesiano, o dinheiro funciona como um meio de desrecalque. Tom ar emprestado seguramente não o é; na utopia fourierista os livros quase nada valem, mas passam mesmo assim pela mediação de alguns tostões; são cobertos por um Dispêndio e desde então o Desejo funciona: algo é desbloqueado. Que há de desejo na leitura? O desejo está impossibilitado de nomear-se e até mesmo de dizer-se. Barthes vê como certa a existência de um erotismo na leitura, pois na leitura o desejo está presente junto com o seu objeto, o que é a definição do erotismo. Como forma de exemplificar esse erotismo da leitura Barthes utiliza o episódio de Em busca do tempo perdido, no qual Proust descreve o narrador se fechando no gabinete sanitário de Combray — transformado em espaço de alheamento da realidade — para ler, para fazer o seu rizoma. Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, essa peça, de onde se via durante o dia até o torreão de Roussanville-le-Pin, por muito tempo serviu de refúgio para mim, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar, para todas aquelas de minhas ocupações que exigiam inviolável solidão: a leitura, o cismar, as lágrimas e a volúpia.30 A leitura desejante surge, então, portadora de duas características fundamentais. Ao praticar ato de trancar-se para ler, ao tornar a leitura um gesto absolutamente apartado, clandestino, no qual o mundo inteiro é absorvido, o leitor identifica-se com dois outros sujeitos humanos, extremamente próximos um do outro, cujo estado implica sempre numa separação violenta: o sujeito apaixon ado e o sujeito místico. Teresa de Ávila é o exemplo utilizado para o sujeito místico, pois ela fazia, de forma claramente expressa, da leitura um substituto da oração mental. No que diz respeito ao sujeito apaixonado, esse é caracterizado por uma completa demissão da realidade, por um investimento num mundo totalmente subjetivo, virtualizado. É legítimo reconhecer nesse paralelo entre o sujeito místico e o sujeito amoroso 116 Texto Digital Ano 1, n 1 uma confirmação de que o sujeito-leitor é um sujeito totalmente desterrado sob o registro do imaginário e do virtual. Toda a sua economia de prazer está voltada para a sua relação com o livro “isto é, com a Imagem”, com a virtualidade provocada pela leitura. O que se instaura então é uma relação narcísica entre leitor e livro. O gabinete com perfume de íris onde se tranca o narrador proustiano é a própria clausura do Espelho, a cena onde se realiza a coalescência edênica entre o sujeito e a Imagem - “do livro”. Um leitor é um rizoma de leituras. Ele é o representante substantivado de uma multiplicidade de textos e leituras, o corpo de uma multiplicidade rizomórfica num só corpo. “Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos.” 31 Na leitura, todas as emoções do corpo estão presentes e embaralhadas, e essa é a segunda característica da leitura desejante: o deslumbramento, a vagância, a dor, a volúpia. A leitura é o lugar da produção do corpo transtornado, mas não despedaçado. A leitura seria o lugar onde a estrutura se descontrola, pois ler não é um ato desprovido de intenção, é um ato doloroso, dramático, que exige do leitor paciência e obstinação, a fim de que ele possa superar o intenso conflito entre ele e o texto, conflito esse representado por uma imensa vontade de compreender, de concordar, de discordar - enfim, aquele que lê não capta no texto somente aquilo que o texto propõe, mas transmite ao texto lido as cargas de sua experiência humano-existencial, daí o seu caráter virtualizante, que advém de uma ressincronização e relocalização da escrita que tradicionalmente se encontra dessincronizada e deslocalizada no texto. “Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza. Ela fez surgir um dispositivo de comunicação no qual as mensagens muito freqüentes estão separadas no tempo e no espaço de suas fontes de emissão, e, portanto, são recebidas fora de contexto”.32 A escrita como tecnologia virtualizante O surgimento da escrita levou à aceleração do processo de artificialização, de exteriorização, e de virtualização da memória que, conforme Lévy, teve início com a hominização. Entidade problematizadora (virtualizante) e não mera extensão; “ou seja, separação de um corpo vivo, colocação em comum, heterogênese”. Não é possível restringir a escrita a um mero assentamento da fala. “Em contrapartida, ao nos fazer conceber a lembrança como um registro, ela transformou o rosto de Mnemósine”.33 A escrita é uma tecnologia intelectual que, por sua vez, confere objetividade, virtualiza um exercício cognitivo, uma ação mental. Neste processo a escrita promove a organização de uma ecologia intelectual em sua totalidade e em troca imprime um novo modo de ser à função cognitiva que ela, supostamente, deveria apenas auxiliar ou reforçar. Neil Postman e Jacques Derrida34 lembram a história de Thamus, rei de uma cidade do alto Egito, e seu encontro com o deus Theuth, deus inventor da escrita. A história, contada por Sócrates a seu amigo Fedro, narra a apresentação a Thamus de uma invenção revolucionária: 117 Texto Digital Ano 1, n 1 “Aqui está uma realização, meu senhor rei, que irá aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios. Eu descobri uma receita segura para a memória e para a sabedoria”. Com isso, Thamus replicou: “Theuth, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor juiz para avaliar o bem ou dano que ela causará naqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é o pai da escrita, por afeição a seu rebento, atribui-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a adquirirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus próprios recursos internos. O que você descobriu é a receita para a recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus discípulos terão a reputação dela sem a realidade, vão receber uma quantidade de informação sem a instrução adequada, e, como conseqüência, serão vistos como muito instruídos, quando na maior parte serão bastante ignorantes. E como estarão supridos com o conceito de sabedoria, e não com a sabedoria verdadeira, serão um fardo para a sociedade”.35 É importante voltarmos nossa atenção para o fato de Thamus fazer um juízo de valor equivocado a respeito da escrita. O seu erro não advém da afirmação de que a ela irá causar transtorno à memória e gerar uma sabedoria falaciosa. Esse efeito gerado pela escrita é fato demonstrável. O equivoco de Thamus reside na crença de que a escrita será um fardo para a sociedade, nada além disso. Ainda que seja um sábio, ele fracassa ao não intuir quais seriam os reais benefícios da escrita. É possível tiramos deste episódio a seguinte lição: é um grande equívoco presumir que toda e qualquer inovação tecnológica tem um efeito unilateral sobre as coisas. Toda tecnologia pode se configurar sob dois aspectos: pode ser lida e interpretada tanto como um fardo como uma benção; não uma coisa ou outra, mas sim isto e aquilo.36 É imprescindível que cada cultura estabeleça uma negociação com a tecnologia fazendo-o de forma inteligente ou não. “Chega-se a um acordo no qual a tecnologia dá e toma”.37 As formas de conhecimento teórico e hermenêuticos garantiram posição privilegiada em relação aos saberes narrativos e práticas consagradas das sociedades orais com o advento da escrita, juntamente com novas tecnologias intelectuais: o alfabeto e a imprensa. A instância de uma verdade universal, objetiva e crítica só foi possível se impor numa economia cognitiva amplamente estabelecida sobre uma base sustentada pela escrita sobre um suporte fixo.38 Com a desterritorialização do texto contemporâneo do seu antigo suporte estático e sua conseqüente migração para o ciberespaço, onde passou a alimentar correspondências on line e conferências eletrônicas, correndo em redes, fluído, ele, texto, tornou-se dinâmico e passou a reconstituir, mas de 118 Texto Digital Ano 1, n 1 outra maneira e numa escala infinitamente superior, “a copresença (sic) da mensagem e de seu contexto vivo que caracteriza a comunicação oral.”39 Novos protocolos de leitura são estabelecidos, os critérios mudam. Voltam a se reaproximar do diálogo ou da conversação: “pertinência em função do momento, dos leitores e dos lugares virtuais; brevidade, graças à possibilidade de apontar imediatamente as referências; eficiência, pois prestar serviço ao leitor (e em particular ajudá-lo a navegar) é o melhor meio de ser reconhecido sob o dilúvio informacional”.40 Todo esse conjunto de elementos que é inserido na comunicação realizada no ciberespaço introduz um novo conceito: o tempo real. O tempo real instaura a instantaneidade da leitura e a volatilidade do texto em con stante transformação, agora desprovido da fixidez que o leitor estava acostumado encontrar nos jornais matinais. A volatilidade produzida pelo virtual é fenômeno que provoca todo o ceticismo de Baudrillard em relação ao próprio virtual. Segundo ele, o virtual aboliu a imaginação do artifício, “não há mais pensamento do artifício num mundo em que o próprio pensamento, a inteligência, torna-se artificial”.41 Por esta avaliação até mesmo o prazer teria sido capturado pelo virtual e, conseqüentemente, esvaziado de todo e qualquer sentido. Não haveria nenhuma possibilidade de prazer no virtual, nem na virtualidade da leitura. Porém, sem ausentar-se do gabinete de leitura proustiano, Barthes procura mapear uma tipologia do prazer de ler. A sua inquietação sobre a possibilidade de existência de prazeres diferentes de leitura leva-o a afirmar a existência de pelo menos três caminhos pelos quais a imagem de leitura pode capturar o sujeito-leitor. No primeiro modo, encontra-se um leitor que estabelece com o texto lido uma relação fetichista: extrai prazer das palavras, de determinadas palavras, certas construções frasais; o texto constitui-se como lugar onde o sujeitoleitor se abisma, se perde: instaura-se entre o leitor e o texto uma relação mediatizada pelo erotismo da palavra. No segundo, que se encontra totalmente oposto ao primeiro, o leitor é arrebatado ao longo do livro por uma força que está sempre, em maior ou menor grau, dissimulada, “da ordem do suspense”. O prazer, o gozo, resulta de um desgaste impaciente e arrebatador que o livro sofre. Trata-se, principalmente, “do prazer metonímico de toda narração, sem esquecer que o próprio saber ou a idéia podem ser contados, submetidos a um movimento de suspense”.42 Há, finalmente, o que Barthes chama uma terceira aventura da leitura. O que ele nomeia como aventura é a forma pela qual o prazer chega ao leitor. Essa aventura da leitura é a Escritura. A leitura apresenta-se como condutora do Desejo de escrever. Não que isso signifique escrever tal e qual o autor cuja leitura nos contenta e satisfaz. O que desejamos é o desejo que o escritor teve de escrever, o desejo do autor pelo leitor, desejamos o ame-me, que é possível detectar em toda escritura. Citando Roger Laport, Barthes ressalta que uma leitura que não chame uma outra escritura é algo de incompreensível. Tomando a leitura por esta perspectiva, ela passa a ser entendida como produção, não mais de imagens interiores, de projeções, de fantasias, mas de 119 Texto Digital Ano 1, n 1 trabalho. O produto consumido (texto) é recolocado no circuito econômico da leitura sob a forma de produção, possibilitando o desenrolar-se da cadeia dos desejos. Cada leitura passa a valer pela escritura que produz, até o infinito. É lícito lembrarmos o fato de que nossa sociedade não é uma sociedade de produção, mas uma sociedade do ler, do ouvir e do ver, e não sociedade do escrever, do olhar e do escutar. Tudo está estruturado de forma que interponha um bloqueio à resposta. Wim Wenders, já há algum tempo, tem se posicionado contra esse bloqueio à resposta apontado por Barthes. Wenders tem se insurgido contra o que ele classifica como o vício das im agens. Em seu filme A té o fim do m undo (Until the end of the World), Wenders43 tece uma dura crítica à valorização indiscriminada da imagem, simbolizada por pequenas máquinas que tornam possível que as pessoas vejam, depois de gravados por um processo especial, os seus próprios sonhos. As pequenas máquinas de ver os sonhos, do filme de Wenders, são uma metáfora da vulgarização das imagens pela televisão e dos efeitos produzidos por esta nos espectadores. Em Até o fim do mundo, caberá à palavra o papel de salvar a personagem principal do vício no qual ela se encontra mergulhada. Clair Torneur44 vive num mundo completamente apartado, o mundo da imagem. Um mundo de fascínio que lhe arrebata o poder de atribuir um sentido aos fatos e coisas que a cercam. Clair abandona a sua natureza “sensível”, abandona o mundo, retirando-se para aquém do mundo. Mergulha num abismo de luz em cujo fundo encontra-se um espelho que reflete a sua infância. A infância é o próprio momento da fascinação, ela está imersa numa luz esplêndida. Para Blanchot essa luz é estranha à revelação, pois nada existe para revelar, não é mais que o brilho de uma imagem.45 O fascínio é o olhar da solidão, o olhar do incessante e do interminável. O que se tem nesse sentido é uma visão que já não é possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver: um olhar morto, convertido no fantasma de uma visão eterna. A única maneira de trazer Clair para o mundo das possibilidades de significações é através da leitura. Utilizando esse artifício, Eugene46, ex-namorado, escritor e também narrador do filme, isola Clair em uma espécie de prisão ao ar livre, com o objetivo de livrá-la da doença das imagens. Para ajudá-la em sua recuperação, Ele oferece a Clair o romance que acabara de reescrever em uma velha máquina Royal. Pois, o seu texto original se perdeu da memória do seu computador após um acidente com um satélite nuclear indiano que explode na órbita do planeta. A explo são gera uma pane eletromagnética que afeta todos os equipamentos eletroeletrônicos impedindo-os de funcionar e faz com que todas as memórias dos computadores sejam apagadas. Clair se recupera à medida que lê o romance de Eugene. É importante lembrarmos que essa leitura ocorre num espaço delimitado pela cerca que impede Clair de se perder na imensidão do deserto australiano. Assim como o leitor do gabinete sanitário de Combray, Ela necessita, ainda que de uma forma simbólica, estar apartada do mundo — não-presente — para exercer a sua 120 Texto Digital Ano 1, n 1 leitura: o seu processo de cura. Clair é o próprio leitor arrebatado, aquele cujo prazer, o gozo, resulta de um desgaste impaciente e arrebatador que o livro sofre. Com o fim da leitura, Clair se recupera e Eugene a liberta. Com isso Wenders reafirma a sua crença na palavra como elemento de redenção da nossa humanidade. A leitura assume aqui um caráter positivo, estrutura-se como uma força poderosa e transformadora que está constantemente em renovação, pois a cada vez que é executada se constitui numa nova leitura, numa atualização das significações imanentes ao texto. Para Blanchot, somente o livro não literário se oferece como uma rede firmemente tecida de significações determinadas, como um conjunto de afirmações que encontram legitimidade na realidade. O livro não literário passa por um processo de leitura prévia que lhe garante uma existência sólida, ele “já foi sempre lido por todos”.47 Porém, o livro que tem a sua origem na arte não tem sua garantia no mundo. A sua leitura se faz a cada momento em que é manuseado. Cada vez é a primeira e cada vez a única. É essa impossibilidade de uniformização da leitura que garante o desbloqueio à resposta. Mas enquanto esse desbloqueio não ocorrer, de forma efetiva, resta aos amantes da escritura a dispersão, a clandestinidade e o esmagamento por uma série de restrições, interiores. É necessário libertarmos a leitura, o que não será possível, se no mesmo movimento, não libertarmos a escritura. Notas: Postman, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à técnica. São Paulo: Nobel, 1994, p. 18. 1 Deleuze, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.336. Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 35. Ibidem, p. 35-36. Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 38. Ibidem, p. 39. Fallows, James. Apurando os sentidos: lendo de ouvido. Tradução Celso M. Paciornik. Jornal Valor. Caderno Eu & Fim de Semana. Sexta-feira e fim de semana, 2, 3, 4 de março de 2001 – Ano I – número 44, p. 21. Ibidem, p. 21. Ibid, p. 21. Ibid. p. 21. É possível, por exemplo, ouvir James Joyce lendo um trecho de Finnegans Wake no portal www.2street.com/joyce/gallery/ . Ibid, p. 21. Zumthor, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 9. 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 121 Texto Digital Ano 1, n 1 Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 37. Pennac, Daniel. Como um romance. Leny Wernek. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 81. Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 14 15 16 Assim como Umberto Eco chama a atenção para o Leitor-Modelo em seu Lector in Fabula, p. 38-41. 17 Barthes, Roland. S/Z: uma análise da novela Sarrasine de Honoré de Balzac. Tradução Lea Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 50. Ibidem, p. 44. Ibid, p. 44. Ibid, p. 44. Ibid, p. 44. Barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. 18 19 20 21 22 23 Ibidem, p. 43. Ibid, p. 44. Ibid., p. 44. Ibid, p. 44. Ibid, p. 47. Ibid, p. 47 Proust, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. Tradução: Eduardo Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 1992. Deleuze, Gilles e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1a Reimpressão, 1996, p. 25. Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 38. Ibidem, p. 38. Derrida, Jacques. “O pai do logos” in A farm ácia de Platão. Tradução Rogério da costa. 2a. edição. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 21. Platão. Dálogos: Menon, Ban quete, Fedro 1. Rio de Janeiro: Ediouro/ Tecnoprint, s/d, p. 96. Postman, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à técnica. São Paulo: Nobel, 1994, p. 14. Ibidem, p. 15. Lévy, Pierre. O que é o virtual. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (Coleção Trans) p. 38. Ibidem, p. 39. Ibid, p. 39. Baudrillard, Jean. “Dupla exterminação” in Tela total. Organização e tradução Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Editora Sulina, 1997, p.75. 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 122 Texto Digital Ano 1, n 1 Barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 49. Até o fim do mundo. Majestic Films. Produção: Jonathan Taplin e Anatole Dauman. Distribuidor: Top Tap Home Vídeo. Willian Hurt - Solveig Dommartin Sam Neill - Max Von Sydow - Rüdiger Vogler - Ernie Dingo Jean Moreau - Fotografia: Robby Müller. Música: Graeme Revell. Edição: Peter Przygodda. 1990. Interpretada pela atriz alemã Solveig Dommartin. Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 24. Interpretado pelo ator norte-americano Sam Neal. Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.195. 42 43 44 45 46 47 123