Considerações sobre a mimetologia: sapatos e
sapatarias
Antônio Leandro Gomes de Souza Barros
Doutorando em História
UNICAMP/FAPESP
[email protected]
RESUMO: Daquelas que foram consideradas as mais excelentes pinturas na antiguidade, a
História da Arte ainda hoje não encontrou qualquer registro visual capaz de assegurar a
representação dos originais – perdidos praticamente desde sempre. Portanto, a recepção dessa
riquíssima tradição pictórica tem dependido desde então de seus desdobramentos literários, em
particular as anedotas do Livro 35, de Plínio, o Velho (séc. I). Tendo sido organizado
retoricamente como um tipo de museu imaginário, configurando o cânone da pintura antiga, o
Livro 35 é uma fonte fundamental sobre o legado pictórico clássico. Para a historiografia moderna
o livro está composto de pinturas ideativas, invisíveis, e nunca averiguadas empírica, crítica e
historicamente. Contudo, justamente por essa característica textual, a historiografia pliniana tem
permitido, ao longo dos séculos, variadas revisões e reinterpretações por parte de artistas, bem
como de críticos e de historiadores da arte. Dentre outras influências, teve grande repercussão
particularmente entre os pintores renascentistas, e serviu de agon à história da arte de Giorgio
Vasari.
Contudo, propomos um estudo de caso de uma relação até agora insuspeita, posto que indireta.
Trata-se do encontro das questões de arte que residem nas pinturas de sapatos de Van Gogh e
das ditas pinturas de sapatarias de Pireico (segundo Plínio, um dos grandes nomes da
antiguidade). O que interessa à comunicação é, através desse caso, propiciar um pensar da própria
ideia de mimese e de suas consequências desde as lições platônicas. Assim, é possível enriquecer a
fortuna crítica mínima de Pireico, mas também, através dele, acrescentar novos elementos aos
sapatos pintados de Van Gogh – que por si só geraram acalorado debate teórico no século
passado (em Heidegger, Schapiro, e Derrida). Portanto, reavaliando a noção de tradição, trata-se
muito mais de uma proposta de encontro acerca de uma questão artística, isto é, relação em que
um afeta o outro e vice-versa, do que como vínculos objetivos, cadeias historiográficas causais de
intenções e influências.
PALAVRAS-CHAVE: Van Gogh; Pireico; Plínio; Sapato; Sapataria.
Entre os anos de 1886 e 1889, Van Gogh pintou uma verdadeira coleção de pares de
sapatos em sete quadros.9 Somando-se os seus últimos meses de vida em 1890, esses foram os
anos decisivos de sua pesquisa plástica. Esse conjunto de sapatos é tão impactante para a
abordagem artística de Van Gogh quanto outros conjuntos temáticos recorrentes em sua
produção. É notória, por exemplo, a controvérsia acerca do tema dos seus “sapatos” e
9Número
de quadros descobertos durante a pesquisa, não excluindo a possibilidade de haverem outros mais.
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desenvolvida entre nomes de peso para os estudos de arte em geral: Heidegger, Schapiro e
Derrida10. Contudo, essa comunicação não se pretende a deflagrar posição na querela e nem
mesmo retomá-la em seu âmbito. Aqui trataremos apenas de considerar as forças criativas
envolvidas nesses quadros em um estudo de caso com as forças criativas de outro pintor. Mas
sem nos anteciparmos às devidas questões de arte, retomemos a apresentação das obras de Van
Gogh envolvidas nessa consideração.
Assim como grande parte da obra de Van Gogh, os referidos quadros apresentam um
tema/objeto com um interesse quase obsessivo e absoluto: em tela figura apenas e simplesmente
um ou mais pares de sapatos. Nada mais. E são vistos em diferentes ângulos e perspectivas, em
variadas posições, até mesmo em diferentes construções colorísticas. Contudo, tais os sapatos são
iconograficamente muito próximos, não apenas pela temática, mas em particular pela maneira
intimista e tensa de retratá-los.
Como características gerais, é notável que esses sete quadros sejam todos de pequenas
dimensões, que variam entre 30 e 50 cm. A maior parte dos quadros de Van Gogh é de
dimensões reduzidas. Porém, no caso em particular dos quadros dos sapatos esse tamanho
praticamente realça o tamanho natural de um pequeno par de sapatos “reais”, isto é, materiais, o
tamanho de um par de sapatos usado diariamente nos pés de quem quer que seja. São quadros
em que não se esconde o caráter pictórico, suas pinceladas, sua visualidade enquanto pintura, até
mesmo enquanto planaridade. E, no entanto, todos eles, de alguma forma, preservam a noção de
profundidade, situam esses sapatos no “interior plástico” do quadro. Assim, o quadro bem mais
se assemelharia a um guarda-volumes onde se vê apenas sapatos.
A partir da pintura de Van Gogh não podemos sequer estabelecer onde se
encontram estes sapatos. [...] não há nada em que se integrem, a que possam
pertencer, só um espaço indefinido. Nem sequer a eles estão presos torrões de
terra, ou do caminho do campo, algo que pudesse denunciar a sua utilização.11
Segundo Meyer Schapiro, Van Gogh foi essencialmente um pintor de objetos12. Um
artista agarrado à necessidade objetiva das coisas plásticas, desejoso da conquista dos objetos do
mundo. Um desejo que em si mesmo evidencia sua diferença decisiva em relação às primeiras
10Para
o leitor que nutrir interesse pela querela mencionada recomenda-se: a) HEIDEGGER, Martin. A Origem da
Obra de Arte; b) SCHAPIRO, Meyer. The Still Life as a Personal Object: A Note on Heidegger and Van Gogh; c) DERRIDA,
Jacques. Restitutions of the Truth in Pointing.
11HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. São Paulo: Edições 70, 2005, p. 25.
12SCHAPIRO, Meyer. A Arte Moderna. São Paulo: Editora da USP, 2010, p. 140.
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pesquisas plásticas impressionistas (tendo em vista Manet, Monet e Degas). Ademais, essa mesma
necessidade plástica o empurrava a pintar tudo o que encontrasse pela frente. Onde quer que o
pintor chegasse, lá pintava de tudo; em um gesto que não fazia mais do que pintar,
despreocupado com qualquer problematização moral, teórica ou estética a priori.
Mesmo a escolha de Van Gogh por objetos de natureza-morta, embora possam
parecer triviais ou incidentais, dificilmente é indiferente; constitui para ele um
mundo íntimo e necessário. Ele precisa de objetividade, do tipo mais humilde e
óbvio, como outros necessitam de anjos e Deus ou de formas puras; rostos
amigáveis, as coisas não-problemáticas que ele vê nas proximidades, flores,
estradas e campos, seus sapatos, sua cadeira, o chapéu e o cachimbo, os
utensílios pousados sobre a mesa, são objetos pessoais que se adiantam e se
dirigem a ele.13
O próprio Vincent confessa ao irmão Théo, em carta datada de fins de 1889, portanto,
após ter pintado toda a sua série de sapatos, que: em sua opinião, o oportuno e conveniente
enquanto pintor era “trabalhar como alguém que faz sapatos, sem preocupações artísticas”.14 E
Antonin Artaud, corrobora o até aqui apresentado sobre o artista: “é pintor e nada mais”, carrega
o “peso de ser pintor sem saber para quê nem para onde. Este pintor é somente pintor”.15
Vincent Van Gogh pintava tudo, mas pintava uma coisa de cada vez. Seus quadros não
buscam a eloquência, a narratividade histórica, a representação filosófica numa visualidade. São,
em geral, quadros que oferecem simplesmente objetos pintados. Um pintor que não se preocupa
em realizar nada além de pinturas, além do pintar: colecionando objetos visuais para o domínio
da arte. Schapiro inclusive questiona se Van Gogh teria sido o último grande pintor da realidade
e, simultaneamente, o precursor de uma arte antiobjetiva, seu “realismo pessoal”. 16 Portanto, a
partir dessas primeiras observações, é possível considerar essa coleção de sapatos, esse conjunto
de quadros como questionamentos modelares do pintar de Van Gogh.
Nesse sentido, traçamos uma dialética artística entre Van Gogh e um pintor da
antiguidade contado nos relatos feitos por Plínio, o velho, no Livro 35 - um dos últimos volumes
da História Natural, a “enciclopédia do mundo antigo”. Interessa-nos a personalidade pictórica de
Pireico, pintor grego apelidado pelos antigos rhyparographos, algo como “pintor de trivialidades”.
13SCHAPIRO.
A Arte Moderna, p. 144.
GOGH. Letter to Theo van Gogh. Tuesday, 26 november 1889. Captado em: <http://vangoghletters.org>,
Acesso em: 8 jun. 2013.
15ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 75.
16SCHAPIRO. A Arte Moderna, p. 141.
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14VAN
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De acordo com os filosofemas artísticos que Plínio lhe conferiu em sua “história da pintura
antiga”, esse apelido se deveu a preferência do pintor que, ao invés dos grandes temas antigos
como deuses, batalhas e história cívica, “pintou barbearias e sapatarias, bem como burricos,
comidas e coisas do gênero.”17
Tal preferência, de gosto duvidoso e de singular apelo pictórico, colocou Pireico em um
grupo diferenciado da historiografia da pintura pliniana. Porém, apesar da crítica implícita ao
pintor grego, o escritor romano admite a relevância plástica conquistada por suas pinturas. O
Livro 35 preservou o nome de Pireico para a posteridade como o primeiro nome de excelência
dentre os pintores que tiveram suas obras classificadas como “gêneros menores”. Assim, apesar
de criticá-lo pela escolha do emprego dos seus talentos, esses mesmos talentos parecem
confundir a determinação dos juízos do escritor romano: “inferior a poucos em habilidade
artística; não sei se ele se prejudicou pela escolha de seus temas, já que, adotando o não elevado
[humilia], conseguiu alcançar, porém, suma glória no não elevado.”18
Pireico constituía, nesse sentido, um problema crítico próximo ao de Van Gogh,
enquanto personalidade pictórica até aqui apresentado. Exatamente por apenas querer pintar, e
pintar somente elementos da vida ordinária (fossem estabelecimentos “baixos” como barbearias
ou sapatarias, ao invés dos palácios e jardins), Pireico foi o pintor máximo da humilia na
antiguidade. Não buscou a glória para si, mas para as coisas pequenas e sem importância. Assim,
através de pequenos quadros concedia propriamente vida aquilo que melhor exemplificaria as
aparências vis e passageiras (pratos de comida, por exemplo) no sentido platônico, isto é, o
imediatamente absorvido pelo viver. E devido a força artística que esses quadros exibiam, Plínio
(que de várias maneiras revira as proposições filosóficas platônicas) os eternizou em sua história
ideativa da pintura.
Dessarte, em ambos os pintores é exatamente na trivialidade, não só dos temas, mas do
pintar, que reside suas conquistas plásticas. As afirmações feitas para um, poderiam ser feitas para
o outro: suas pinturas elegem o trivial como ponto de partida, mas os resultados não são nada
triviais. É importante ressaltar a sequência interpretativa de Plínio, segundo a qual, os pequenos
quadros de trivialidades de Pireico alcançaram maiores grandezas19 do que as maiores composições
Jacqueline (org.). A pintura – Vol.1. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 84.
A pintura – Vol.1, p. 84.
19Ou também interpretado e traduzido como preços. Trata-se de um termo de dupla conotação, tipicamente pliniano.
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17LICHTENSTEIN,
18______.
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de muitos artistas. Já Van Gogh, segundo Artaud, “é mais pintor que os outros pintores, por ser
aquele em que o material, a pintura, ocupa o primeiro plano”, e “nos faz esquecer que estamos
lidando com pintura”.20 A partir dessas considerações, é propícia a formulação de uma dialética
intrapoética entre modernos e antigos, entre Van Gogh e Pireico, a fim de iniciarmos algumas
reflexões com respeito à mimetologia.
Tendo em vista que os temas mitológicos, cívicos, e heroicos correspondiam na pintura
antiga como seus “gêneros maiores”, é elementar compreender que os tais “gêneros menores”,
descritos por Plínio, seriam exatamente aqueles mais fortemente ligados à pura mimesis, isto é, os
meros copiadores das aparências das coisas. Os gêneros maiores não se restringiam à alta técnica
de representar coisas, mas faziam uso dessas técnicas como uma forma própria de saber: de
conhecer, de interpretar, de criticar e observar os eventos históricos, míticos ou heroicos. Por
isso, mesmo os retratos figuravam, enquanto tema, entre os gêneros maiores da pintura na
antiguidade.
Já os gêneros menores são os conformados em representar, em espelhar aparências, são
as pinturas modelares da crítica platônica21. Pintar um objeto, obcessivamente como nesse caso, é
reproduzir uma aparência possível, e é também roubar sua utilidade prática e, dessa forma, afastálo de sua essência ideativa. É o tradicional exemplo da pintura de objetos: uma cama, uma
cadeira, ou uma mesa. Ou pratos de comida, burricos, barbearias e sapatarias – e sapatos. Além
de Pireico, figuram nessa categoria pliniana dos “gêneros menores” o pintor Dionísio, aquele que
só sabia pintar seres humanos, e Estúdio, o pintor de temas amenos como casas de campo,
florestas e praias22.
Contudo, segundo os filosofemas plinianos, as pequenas sapatarias de Pireico, o “não
elevado” pintado em pequenos quadros, ainda assim foram capazes de fazerem-se maiores do
que as maiores composições de sua época como, por exemplo, as obras de Serapião, que sozinhas
cobriam as galerias das Velhas tabernas23. Nesse sentido, as sapatarias de Pireico pareciam realizar
um tipo qualquer de magia que lhes permitia a elevação do “não elevado”, seu erguimento para
20ARTAUD.
Van Gogh: o suicida da sociedade, p. 75.
ressalta-se, para a crítica platônica não havia tal divisão. A metasífica de Platão toma todas as pinturas e
artes imitativas pelo aqui caracterizado como “gêneros menores”.
22LICHTENSTEIN (org.). A pintura – Vol.1, p. 84.
23______. A pintura – Vol.1, p. 84.
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21Embora,
23
tamanhos maiores que o de uma galeria. Esse tipo de magia é precisamente o pavor descrito nas
proposições platônicas do Livro X de A República24.
As sapatarias e os sapatos pintados (por Pireico e Van Gogh, respectivamente) são
literalmente dois polos de um mesmo perigo apontado por Platão: o de que os artistas da mimesis
não apenas imitam os objetos, os sapatos, mas sim o sapateiro25. Dessa forma, esses quadros,
antigos e modernos, seriam encarnações plásticas daquele “espelho ambulante” de que fala
Platão, uma superfície que nada contém e que, entretanto, é capaz de criar:
Efetivamente, esse artífice não só é capaz de executar todos os objetos, como
também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a
si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no
céu e no Hades, debaixo da terra. [...] se quiseres pegar num espelho e andar
com ele por todo o lado. Em breve criarás o sol e os astros no céu, em breve a
terra, em breve a ti mesmo e aos demais seres animados, os utensílios, as
plantas e tudo quanto há pouco se referiu.”26
Assim, a sapataria antiga e os sapatos modernos seriam apenas a pintura de sapataria e de
sapatos, não se querem mais do que isso. Isto é, querem criar-se como sapatarias e como sapatos
propriamente, como instaladores mesmos do que seja sapataria e sapato. Nos termos de Plínio é
a vida digressando do viver, para que em si mesma contemple a si. Nos termos de Heidegger, é o
repousar-em-si-mesmo:
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o
cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está
retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe,
sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro,
está a humildade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do
caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo
calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece a sua inexplicável
recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho
passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma
vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o temor ante a ameaça
da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da
camponesa. É a partir desta abrigada pertença que o próprio produto surge para
o seu repousar-em-si-mesmo.27
24 “é evidente que aqui há toda a espécie de confusão na nossa alma. Aplicando-se a esta enfermidade da nossa natureza é que a pintura
com sombreados não deixa por tentar espécie alguma de magia”. PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 301.
25“o pintor fará o que parece ser um sapateiro, aos olhos dos que percebem tão pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela
cor e pela forma? Precisamente.” PLATÃO. A República, p. 299.
26______. A República, p. 294.
27HEIDEGGER. A Origem da Obra de Arte, p. 25 e 26.
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Imitar, não os sapatos, mas o sapateiro é o perigo mágico obscuro do mimético, que não
é simplesmente copiar, não é duplicar; é, invertendo o processo lógico, assumir a posição do
objeto retratado antes do retrato. É, a partir da força criativa encontrada na pintura dos sapatos
de Van Gogh que os sapatos materiais da camponesa, ou de quem quer que seja, conquistam
relevo estético, isto é, finalmente fundam o seu lugar no mundo da vida. E, portanto, seriam os
sapatos não-pintados, os materiais, que imitam aquilo que o quadro guarda em si: a fossilização
da vida artística, a perspectiva reduzida de sua vida no viver, ou simplesmente a sua utilidade.
Logo, os quadros de Van Gogh não são apenas guarda-volumes para sapatos pintados, como
definimos no começo do presente artigo. São, acima de tudo, fundadores ou propositores do ser
dos sapatos, daquilo que todo sapato é. Da sua “solidez”.
Mas tudo isso o vemos possivelmente no apetrecho para calçar que está no
quadro. Pelo contrário, a camponesa, traz pura e simplesmente os sapatos. [...]
O ser-apetrecho do apetrecho reside, sem dúvida, na sua serventia. Mas esta,
por sua vez, repousa na plenitude de um ser essencial do apetrecho.
Denominamo-la a solidez (Verlässlichkeit). É graças a ela que a camponesa por
meio deste apetrecho é confiada ao apelo calado da terra; graças à solidez do
apetrecho, está certa do seu mundo. Mundo e terra estão, para ela e para os que
estão com ela, apenas aí: no apetrecho. Dizemos “apenas” e estamos errados,
porque a solidez do apetrecho é que dá a este mundo tão simples uma
estabilidade e assegura à terra a liberdade do seu afluxo constante. 28
Não são apenas sapatos pintados em quadros pequenos. Nem são sapatos em quadros
pequenos. Os quadros de Van Gogh é que são sapatos, e não apenas onde sugerem o formato de
botinas. Neles, conforme afirmou Argan: “A matéria pictórica adquire uma existência autônoma,
exasperada, quase insuportável; o quadro não representa: é.”29
Essa solidez, alcançada pelos sapatos de Van Gogh é também alcançada pelas obras de
Pireico conforme indica o texto pliniano lembrando que seus quadros de sapatarias embora
materialmente fossem de dimensões diminutas alcançavam “grandezas” maiores do que as
próprias galerias. A sua mágica conquista de grandeza é um fato artístico determinante para o seu
grande apelo ao público e aos críticos mais severos, como o próprio Plínio. Serapião, por
exemplo, o pintor de obras imensas, não é comentado no Livro 35 como um grande nome da
pintura antiga, mesmo entre os gêneros menores. Todavia, parece surgir no texto puramente para
servir de parâmetro às conquistas dos quadros de Pireico. Assim, a considerar o talento singular
28HEIDEGGER.
A Origem da Obra de Arte, p. 26.
A República, p. 125.
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29PLATÃO.
25
desse rhyparographos (o único digno de menção entre aqueles que simplesmente pintavam o
ordinário), ele não copia simplesmente a imagem de sapatarias ao pintar; ele faz sapatarias com
seus quadros. Estar diante dessas obras “pireicas” era estar diante de uma sapataria, e pronto a ir
lá encomendar uma nova sandália, ou ir buscar de volta um calçado em conserto. Não era a mera
representação da fachada ou da forma de uma sapataria. O quadro realizava a dimensão do ser de
uma sapataria, sem a dimensão material da loja.
Dessarte, os sapatos de Van Gogh são sapatos; as pequenas sapatarias de Pireico, o “não
elevado”, elevam-se. Dá-se então o paradoxo plástico formulado por Artaud correspondente à
essa solidez conquistada pelas referidas obras: quanto mais uma pintura se faz pura pintura, quanto
mais interessada em simplesmente ser pintura, tanto mais é apta de nos fazer esquecer que
estamos lidando com pintura. Dos sapatos da pintura moderna às sapatarias da pintura antiga,
uma questão grave da arte da pintura volta à beira da superfície gráfica como questão
mimetológica. Nas telas dos sapatos, de Van Gogh, bem como nas pinturas de sapatarias, de
Pireico, não se encontram apenas representados os objetos sapatos e objetos sapatarias. Não se
discute que as pinturas são pinturas e não sapatos ou sapatarias empíricas, isto é, objetos. Porém,
embora nessas pinturas não se encontre o objeto, encontra-se a força criativa do sapato, nas telas
de Van Gogh, e a força criativa da sapataria, nas pinturas pireicas.
Van Gogh não imitou os sapatos, mas, como vaticinou Platão e como ele mesmo insinua
em carta ao irmão, imitou o sapateiro. Aspecto semelhante, presume-se, poder-se-ia comentar das
sapatarias de Pireico. Seus contemporâneos gregos, entre eles o próprio Platão, não viam nos
seus pequenos quadros apenas a imagem, um símbolo ou signo de sapatarias, mas enxergavam
neles o lugar de onde vieram seus próprios sapatos – um lugar que se fazia maior do que as
paredes da galeria ocupada por Serapião. Um lugar, portanto, construído com esforço helênico, e
parte do mundo civilizado de uma importante cidade republicana, fornecedor desse elemento tão
característico da realidade cívica grega. Afinal, os sapatos de maneira geral são, enquanto objetos
plásticos, correspondentes a um princípio de realidade. Platão o sabia tão bem disso que preferiu
retratar Sócrates, o habitante máximo do Mundo das Ideias, como o “filósofo descalço”.
Conforme a delicada descrição de Heidegger sobre a vida da camponesa, são os sapatos,
saídos de qualquer sapataria, que nos condicionam uma maneira de estar no mundo: o nosso
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caminhar, nosso ritmo de avanço e retrocesso, nosso contato com a terra, com a poeira, com a
chuva; são eles os responsáveis por nossa maior ou menor aderência ao solo do mundo. E são
eles que nos lembram, a toda hora, dos vínculos com nossa realidade através de seus cadarços,
nós, na amarração dos pés, através também do distanciamento calculado proporcionado pela sola
com o chão; através do couro do animal curtido, animal esse domesticado, dominado, possuído;
através do uso dos tecidos tecnicamente adquiridos e compostos, e hoje dos materiais sintéticos
providos por nossos avanços científicos ainda mais requintados. Fitas, palminhas, travas, tudo
isso são formas de interação com a realidade do mundo.
Aqueles que, para além do exemplar Sócrates platônico, desde o mundo grego até hoje
ainda escapam do uso de sapatos são quase sempre entendidos como marginais, como habitantes
da periferia de nossa realidade construída: os loucos, os indigentes das ruas, os mendigos. Ou
mesmo as crianças, que não podem ir às escolas descalças – atente-se para o fato de que todo
bebê tradicionalmente ganhe, logo após o seu nascimento, um pequenino par de sapatinhos
mesmo que ele ainda leve meses para tentar os primeiros passinhos, configurando um tipo de
atestado de que agora, depois de nascido, o bebê tomou parte desse mundo. O conto de fadas de
Cinderela ainda é exemplar dessa lógica poética de um princípio de realidade que se confere pelos
pés calçados: ao servir em seu pé o sapatinho de cristal perdido, sua vida se transforma através de
um tropo curioso abandonando a realidade de gata borralheira para a vida de princesa. A
psicologia moderna inclusive identifica uma espécie de síndrome de Cinderela, na qual pessoas
que tiveram uma infância de extrema pobreza se tornam obcecadas por compras de sapatos. É
nessa relação dialética e plástica que permanece o distanciamento platônico com a pintura, que
ele literalmente identifica com a figura do sapateiro – uma escolha em seu diálogo que não deve
ser tomada como aleatória.
Pireico não copiou uma aparência de sapataria, não. Ele imitou sapatarias com tal arte que
fazia com que seus contempladores recebessem sua “realidade”, isto é, seus sapatos, não do
mundo platônico das ideias, nem do mundo dos objetos utilitários, mas do mundo engendrado a
partir de sua pintura. Os sapatos não vinham do ofício do sapateiro, saiam da pintura de Pireico –
havia um sapateiro trabalhando no interior desses quadros antes deles se perderem. Nesse
sentido, finalmente, deveria ser notável que o desaparecimento da “Grécia antiga” como força
física material é contemporâneo, talvez até sincrônico, com o desaparecimento das sapatarias
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pireicas: as fomentadoras de helenicidade, aquelas que colocavam um pouco de arte grega entre
os pés do homem e o mundo.
A elevação do “não-elevado” de tais sapatarias é por si mesmo o gesto máximo da poética,
a saber, o “colocar de pé”.30 Logo, ainda que Platão possa deter todas as razões filosóficas e que
esses quadros dissimulem o mundo real das ideias, ainda assim essas sapatarias devem ter
manifestado na história da arte o seu grau de responsabilidade ao menos na manutenção daquele
mundo das aparências helênicas – colocadas de pé sobre os sapatos saídos de seus interiores
plásticos.
30LACOUE-LABARTHE,
Philippe. A Imitação dos Modernos. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 75.
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