Academia.eduAcademia.edu

Um céu Violeta para quem não tem mundo

2022, Rebeca

Este artigo pretende verificar como, em Violeta se fue a los cielos (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011), de Andrés Wood, a preocupação com o efeito da cidadã Violeta é, pelo menos, tão importante quanto o legado musical deladiferentemente do que costuma acontecer na maioria das cinebiografias musicais feitas na América Latina, mais focadas na construção das carreiras e das capacidades artísticas das personalidades. Em diálogo com ideias de Marisol De La Cadena, Ariella Azoulay e Saidiya Hartman, o artigo se propõe a identificar e analisar os instantes em que o destaque está menos na cantorafenômeno do que nas palavras, agenciadas por imagens, de quem defende o "pobre (que) dice no".

Um céu Violeta para quem não tem mundo ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 Leandro Afonso1 1 Leandro Afonso é professor, pesquisador e realizador. Diretor de, entre outros curtas, Argentina, Me Desculpe (2015) e Toda Sombra Parece Viva (2019). É doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA), com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Email: [email protected] 259 Resumo Este artigo pretende verificar como, em Violeta se fue a los cielos (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011), de Andrés Wood, a preocupação com o efeito da cidadã Violeta é, pelo menos, tão importante quanto o legado musical dela – diferentemente do que costuma acontecer na maioria das cinebiografias musicais feitas na América Latina, mais focadas na construção das carreiras e das capacidades artísticas das personalidades. Em diálogo com ideias de Marisol De La Cadena, Ariella Azoulay e Saidiya Hartman, o artigo se propõe a identificar e analisar os instantes em que o destaque está menos na cantorafenômeno do que nas palavras, agenciadas por imagens, de quem defende o “pobre (que) dice no”. Abstract This article intends to verify how, in Violeta went to heaven (2011, Andrés Wood), the concern about the effect of the citizen Violeta is, at least, as important as her musical legacy – differently from what happens in most of the musical biopics made on Latin America, more focused on representing careers and artistic capabilities of the personalities. In a dialogue with Marisol De La Cadena, Ariella Azoulay and Saidiya Hartman, the article proposes to identify and analyze, in Violeta went to heaven, the moments in which the emphasis is less on singer-phenomenon than in the words, image-mediated, by someone who defends the "poor (who) says no”. Keywords: Biopic; Latin-American Cinema; Violeta Parra; Human Rights. ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 Palavras-chave: Cinebiografia; Cinema latino-americano; Violeta Parra; Direitos Humanos. 260 o país em que vivemos carregados de opressão e embora sejamos apenas um povo, somos mais de uma nação chega de nos matar, de nos reprimir com balas não queremos mais milicos, nem tiros nas salas mais de um milhão de pessoas disseram na alameda não temos mais medo / do Paco ou de quem quer que seja a arma da nossa música está carregada de esperança e com isso, que fique sabendo, não se brinca, não se negocia2 Introdução O Chile volta a ter um presidente de esquerda em 2022, quando aparecem muitas lembranças dos 90 anos do nascimento de Víctor Jara (1932-73) e dos 55 da morte de Violeta Parra (1917-67). Pensar nela é pensar, também, no filme Violeta se fue a los cielos (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011), e reconhecer que a transposição para as telas de parte da vida da cantora, mais de uma década depois, segue rara, por razões a serem listadas no decorrer deste artigo, quando pensamos em cinebiografias musicais dentro da América Latina.4 O longa começa e termina com os olhos da personagem. Deduzimos na cena subsequente que esse olhar na abertura estava em uma floresta, onde notamos uma galinha, ave que será, junto ao gavião, chave para uma das possibilidades interpretativas do filme. Dessa floresta somos levados ao fio narrativo (WOLF, 2012) 5 da ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 OjoxOjo - Nano Stern3 obra, à entrevista que, mediada por um jornalista argentino, nos apresenta Violeta com 2 Tradução nossa. No original: el país en que vivimos cargoseados de opresión y aunque somos sólo un pueblo, somos más de una nación ya basta de asesinarnos, de reprimirnos con balas no queremos más milicos ni balazos en las salas / más de un millón de personas dijeron en la alameda ya no le tenemos miedo, al paco ni al toque ‘e queda el arma de nuestro canto va cargada de esperanza y con eso, que se sepa, no se juega no se tranza 3 Com participação do rapper mapuche Waikil, a música é uma composição de Nano Stern, que começa com “Ojo por ojo, diente por diente / La gente tiene rabia y en la calle se siente / Ojo por ojo, diente por diente / Las balas se devuelven, señor Presidente”. A canção é uma reposta ao Estallido social, as diversas manifestações entre outubro de 2019 e março de 2020 no Chile. Em uma das oportunidades em que divulgou a música no Facebook, Nano Stern fez questão de dizer que a canção estava “Disponible en Spotify, YouTube y otros males necesarios. NO disponible en radios comerciales por razones obvias” (STERN, 2020). 4 Entendemos cinebiografia como a tradução mais precisa para biopics, “filmes de ficção enfocados em personagens cuja existência histórica está documentada” (VIDAL, 2014: 3) 5 Wolf considera fio narrativo a estrutura que liga as situações dramáticas que seguem uma mesma entidade (ambiente, personagem), em torno de uma mesma situação ao longo de uma obra – aqui, este fio é a entrevista. 261 suas múltiplas possibilidades artísticas: “poeta, cantora e autora, compositora, tecelã, tapeceira, artista plástica. Aqui vamos apresentar a vocês a chilena Violeta Parra” (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011).6 Ainda antes de seu primeiro número musical no longa, e neste mesmo espaço, a artista é questionada pelo repórter: “sem querer ofender: você é índia, não?”. Violeta responde apenas depois de provocar com outra pergunta: “E por que me ofenderia se você me chamasse de índia? Sou índia, mas não totalmente. Sempre estive aborrecida com minha mãe”. O entrevistador se interessa pelo que está por trás do comentário e a resposta de Violeta é enfática: “Porque não se O perceptível no corpo de Violeta não é uma divisão igualitária entre os genes de seu pai e de sua mãe: o que está visível nela são traços fenotípicos de sua ancestralidade indígena8, que a artista faz questão de abraçar, em ações e discurso. Essa postura é relevante especialmente quando pensamos no que será chamado por De La Cadena (2004: 23) de “desindianização”. “A desindianização é o processo pelo qual o povo operário de Cusco reproduziu o racismo, ao mesmo tempo em que o enfrentou (...). Concebida deste modo, a desindianização não significa livrar-se da cultura indígena. (...) Tampouco significa 'assimilar' e, portanto, desaparecer em termos culturais (...). Ao contrário, é por meio de uma desindianização ativa que os cusquenhos subalternos redefiniram noções essencialistas de cultura, substituindo ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 casou com um índio” (ibid.).7 crenças regionais em identidades fixas por graus infinitos de 'indianidades' ou 'mesticidades' fluidas” (DE LA CADENA, 2004: 23).9 No original: “poeta, cantante y autora, compositora, tejedora, recopiladora, artista plástica. Aquí les presentaremos a la chilena Violeta Parra”. 7 No original: “- Sin ánimo de ofender, ¿usted es india, no? - ¿Y por qué me iba a ofender si me dice india? Soy india pero no totalmente. Yo siempre estuve enojada con mi madre. (…) Porque no se casó con un indio”. 8 "A palavra 'indígena' diz muito mais a nosso respeito do que a palavra 'índio'. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros", esclarece Daniel Munduruku (ROSSI, 2019). Vale também trazer De La Cadena (2004: 16), que explica que “por el momento, los movimientos indígenas en América Latina utilizan esa etiqueta (indio) con poca frecuencia y prefieren reivindicar la indigeneidad usando nombres de identidades colectivas locales: aymara, quechua, ashaninka, maya, nahua, por nombrar unos pocos”. Quando dito no filme, por ela ou por personagens ligados a uma Violeta que falece em 1967, respeitamos o termo falado. Quando usado no artigo, considerando a crítica de Munduruku, usamos indígena. 9 No original: “la desindianización es el proceso mediante el cual los cusqueños de la clase trabajadora han reproducido el racismo, al mismo tiempo que lo han enfrentado. (…) Concebida de este modo, la desindianización no implica deshacerse de la cultura indígena (...). Tampoco significa ‘asimilarse’ y, por tanto, desaparecer en términos culturales (…). Por el contrario, es a través de una activa desindianización como los cusqueños subalternos han redefinido las nociones esencialistas de cultura, al sustituir las creencias regionales en identidades fijas por grados infinitos de fluidas 'indianidades' o 'mesticidades'”. 6 262 Embora seu foco seja na região de Cusco, o termo é abraçado por outros autores, como Stavenhagen (2010), para abordar a consolidação do termo “índio” como pejorativo e, sobretudo, ligado a práticas racistas, que tornam os indígenas não só vítimas, como também agentes de preconceito – uns com os outros. Essa desindianização, não custa lembrar, é fruto sobretudo das ações praticadas contra os povos originários, que foram: (em ordem estritamente alfabética, não temporal nem exaustiva) agredidos, atacados, catalogados, civilizados, demonizados, despojados, discriminados, evangelizados, excluídos, descritos, desumanizados, escravizados, explorados, estudados, extinguidos, imaginados, incompreendidos, marginados, massacrados, nomeados, perseguidos, satanizados, submetidos, subordinados... (STAVENHAGEN, 2010: 171).10 Antes de Violeta ser apresentada como cantora e compositora no filme, ela tem exaltado um currículo artístico que extrapola a música e, principalmente, cultiva uma relação com os agredidos, atacados, discriminados, escravizados, massacrados, etc. Esse trecho introdutório é essencial também pelo que vemos enquanto Violeta frisa sua identidade e orgulho indígena: a imagem que precede a declaração celebratória, agora com um filtro monocromático, é dos olhos da artista. O plano é distinto do usado na abertura, mas repete a ênfase no olhar. O enquadramento seguinte à mirada de Violeta, que ocorre ainda enquanto acompanhamos o diálogo mencionado, é de quem supomos ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 convertidos, ser sua mãe e seu pai. A suposição se confirma no desenrolar das cenas seguintes, quando ela fala sobre o maior legado deixado por ele, que tudo perdeu em uma mesa de pôquer – quase tudo, aliás: a Violeta seu pai deixou o violão. Com a opção de lamentar a jogatina do senhor Nicanor, ela prioriza reconhecer a dimensão do instrumento que herdou dele. A ocupação da Araucanía, episódio de maior importância na história nacional do século XIX, não ocupa sequer três linhas dessas histórias gerais. O massacre de índios que levou ao avanço do exército chileno para além de Bio-Bio confrontava o mito da origem de nossa nacionalidade. Era como No original: “(en orden estrictamente alfabético, no temporal ni exhaustivo) agredidos, atacados, catalogados, civilizados, convertidos, demonizados, descritos, deshumanizados, despojados, discriminados, esclavizados, estudiados, evangelizados, excluidos, explotados, extinguidos, imaginados, incomprendidos, marginados, masacrados, nombrados, perseguidos, satanizados, sometidos, subordinados…”. 10 263 assassinar o ancestral. Passado glorioso e presente silenciado têm sido as características do tratamento contemporâneo da questão indígena, originada no mesmo momento em que ocorre a Independência do Chile (BENGOA, 1985:149).11 Convoca-se Bengoa a essa altura por duas razões: a primeira é elucidar que o Chile não foge à regra do continente no que diz respeito ao massacre de povos originários. A segunda é pelo autor mencionar aí duas das 16 regiões que subdividem a Ñuble, onde nasceu e passou a infância Violeta Parra, região por onde inevitavelmente se passa para chegar até a – ou vindo da – capital Santiago. Para ser mais específico, a obra de Bengoa menciona ainda “Batallón Ñuble” (ibid.: 280) e “batallón movilizado Ñuble” (ibid.: 299) – ligados inclusive a Gregorio Urrutia, “o Colonizador da Araucanía”, mencionado na Memória do Comandante em Chefe do Exército do Sul, sobre o último levante de indígenas (ibid.).12 Em outras palavras, a Ñuble de Violeta esteve longe de ser um lugar incólume à matança sofrida pelos indígenas.13 Gracias a la vida14 (que “no es una fiesta”) Uma especificidade do longa-metragem de Andrés Wood é não se basear apenas em uma obra literária, neste caso a escrita por Ángel Parra, filho da cantora e assessor artístico do filme (VILCHES, 2013: 64). 15 Do que já vimos até agora em cinebiografias musicais latino-americanas mais ou menos contemporâneas a esta, como No original: “La ocupación de la Araucanía, episodio de la mayor trascendencia en la historia nacional del siglo XIX, no ocupa ni tres líneas de estas historias generales. La matanza de indios que implicó el avance del ejército chileno más allá del Bio-Bio, se enfrentaba al mito de origen de nuestra nacionalidad. Era como asesinar al ancestro. Pasado glorioso y presente silenciado, ha sido la característica del tratamiento contemporáneo de la cuestión indígena, originado en el mismo momento en que se produce la Independencia de Chile”. 12 No original: “El Colonizador de la Araucanía”, mencionado na "Memoria del Comandante en Jefe del Ejército del Sur, sobre el último alzamiento de indígenas” 13 “No Censo de 2017 o percentual de pessoas que se declarava pertencente a algum povo originário chileno foi de 12,8%, mais de 2,1 milhões de pessoas. Destes, 79%, ou mais de 1,7 milhão, se considera de origem mapuche” (AZEVEDO, 2018). O artigo não pretende fazer um levantamento das etnias indígenas presentes no Chile, mas sim, entendendo a relevância mapuche, e entendendo a proximidade da etnia majoritária presente no país com (a) a região onde Violeta cresceu (Ñuble) e (b) a capital Santiago, trazer um mínimo de contexto histórico por trás da biografada e da relação dela com os indígenas chilenos. 14 Gracias a la Vida é uma das músicas mais populares de Violeta Parra, inclusive a mais reproduzida da cantora no Spotify, com mais do dobro de reproduções (14.079.951 x 6.653.137) da segunda, Volver a los diecisiete. Mesmo com essa popularidade, a canção só vai aparecer nos créditos finais. Em uma das versões do filme que circula em torrents na internet, sem os créditos finais, ela nem aparece. 15 Algo mais ou menos parecido dentro desta pesquisa (cinebiografias musicais do século XXI), com um filme se baseando em uma obra literária escrita por alguém da família, se dá em Cazuza – O Tempo não para (2004, Sandra Werneck), baseado no livro escrito por Lucinha Araújo, mãe do cantor. Na prática, porém, a abordagem política de Violeta se fue a los cielos parece, a esta análise, muito mais incisiva. ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 nação, as vizinhas Araucanía e Bio-Bio: elas estão geograficamente logo abaixo de 11 264 as de Tim Maia (Tim Maia, 2014), Elis Regina (Elis, 2016), e especialmente as de Gilda (Gilda – No me Arrepiento de Este Amor, 2016) e Rodrigo (El Porto – Lo Mejor del Amor, 2018), há um destaque especial à performance dos atores nos shows, diferentemente do que a narrativa e a encenação privilegiam aqui. O longa sobre Gloria Trevi (Gloria, 2014) trilha outro caminho, mas é pelo viés criminal. Se formos para aquelas cinebiografias musicais que antecederam Violeta se fue a los cielos, o padrão do qual o longa chileno foge também se repete, em doses razoáveis, em Luca Vive (2002), Cazuza – O Tempo não Para (2004) e mesmo em 2 Filhos de Francisco (2005).16 deste artigo, mesmo uma década depois: Violeta é ovacionada no seu primeiro momento como cantora, mas é em um parêntese no meio desta cena – que acontece após o início e antes do fim da canção – que está a chave para conhecer o arco narrativo e o foco principal da obra. A protagonista diz querer seguir carreira solo, o que leva sua irmã, Hilda Parra, à dúvida sobre o poder das músicas antigas que estão no repertório, músicas que, ainda de acordo com a irmã, que a chama carinhosamente de Viola, não animam a festa. Paira no ar um clima fraterno, mas este não impede uma firme resposta de Violeta: “a vida não é uma festa” (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011).17 Importante frisar ainda os versos que ela canta imediatamente após esta fala: “eu voltei para Santiago / sem compreender a cor / com que pintam a notícia, quando o pobre diz não”18. O “pobre (que) diz não” está na segunda canção do filme cantada por Francisca Gavilán, encarnando uma Violeta que se mostra também atriz: 19 é essencial perceber texto e subtexto dessa peça atuada e cantada, que sintetiza muito do que a ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 Um exemplo que contribui para ilustrar a diferenciação que persiste na obra foco obra quer dizer através das palavras da irmã, Hilda Parra. “Na cruz está pregado o povo e todos levamos uma coroa de espinhos (...). Cristo, por favor, te imploramos, volta à terra, a defender o perseguido, a mulher indefesa. Castiga os poderosos com o flagelo de Deus”20. As palavras são seguidas por um silêncio e uma criança, que carrega uma placa escrita “fin”. Na apresentação do filme, primeiro vem a artista e cidadã indígena; depois aparece a cantora que defende os menos favorecidos. Quando Violeta encena, a 16 Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado, iniciada há pouco mais de um ano, que tem como objeto de estudo as cinebiografias musicais latino-americanas no século XXI. 17 No original: “la vida no es una fiesta”. 18 No original: “me volví para Santiago / sin comprender el color /con que pintan la noticia, cuando el pobre dice no”. O trecho é parte da canção Y arriba quemando el sol, interpretada em uma tenda de operários da mineração, em clara crítica ao sistema que os deixa sob condições precárias e um sol escaldante. 19 A referência aqui é à Familia Parra (1945-54), “caravana itinerante que percorria o Chile com apresentações musicais e cênicas, apegado a temáticas que sempre valorizavam a cultura, religião e o folclore de seu país” (SOUZA, Leandro de; LEÓN, Ítalo, 2021). 20 No original: “En la cruz está clavado el pueblo y todos llevamos una corona de espinas (…). Cristo, por favor, te lo imploramos, vuelve a la tierra, a defender al perseguido, a la mujer indefensa. Castiga los poderosos con el azote de Dios”. 265 coerência é mantida: o desejo da peça é o retorno de um Cristo que volta para castigar, com o “flagelo de Deus”, os poderosos. Ao ser indagada sobre sua ciência a respeito do comunismo na Polônia, ela responde que aceitou o convite para tocar lá precisamente por isso. “Você é comunista?”, é a fala que vem do entrevistador, que escuta de Violeta: “não, de jeito nenhum. Quem te disse isso? Olhe, eu sou tão comunista que, se eu tomasse um tiro, meu sangue sairia vermelho”. O sarcasmo ambíguo é retribuído pelo entrevistador com um “o meu também”, e finalizado com um aperto de mãos, proposto por ela: “que bom, comunista é uma questão de humanidade. Essa visão, todavia, não é dominante: há um enorme descompasso entre o que Violeta deseja e o que ela recebe do mundo. Quando vai a Paris, em teoria, não faltam razões para celebrar: vai se apresentar em um lugar que é sinônimo de cultura e vizinho ao país de onde vem seu parceiro, o suíço Gilbert, com quem ela divide os palcos e a vida. Na França, contudo, a teoria não se materializa em realidade. Enquanto canta, muitas pessoas pouco prestam atenção a ela, que tem de lidar com uma galinha transitando incômoda entre o público, que interage mais com a ave que com Violeta. A cantora então intervém, sublinhando que eles pagaram por um espetáculo, que devem respeitar os artistas e fazer silêncio enquanto o show acontece. O convívio de Violeta com o seu entorno, a relação entre dar e receber, entre satisfações e decepções, começam a ficar mais desequilibrados – o descompasso vai aumentando. A primeira imagem depois desse show, bem ilustrativa, é de um gavião. A cena ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 companheiro!”21. Pode-se interpretar como subtexto da postura irônica de Violeta: ser posterior ao voo desse predador é uma discussão da protagonista com Gilbert, com quem a relação começa a desandar. A música que começamos a escutar depois disso é El Gavilán, especificamente o trecho em que ela diz “Minha vida, minha vida, eu te amei”22. A música fala da vida já no passado: “eu te amei” – portanto, é natural pensar, não te amo mais. O amor que Violeta tem pela vida vai se esvaindo na metrópole europeia, onde ela canta El Gavilán, o pássaro caçador que aparece logo após o show onde Violeta fala de dinheiro com o público. O gavião e a cidade rica, como veremos adiante, para ela representam muito bem o capitalismo. Em Volver a los diecisiete, a seguir, temos situações muito simbólicas. Já se escutam os primeiros acordes da música quando Violeta é questionada, como artista No original: “- ¿Usted es comunista? - No, para nada. ¿Quién le dijo eso? Mire, yo soy tan comunista que, si me pegara un balazo, me saldría la sangre roja. - A mí también. - ¡Qué bueno, compañero!”. 22 No original: “Mi vida, mi vida, yo te quise”. 21 266 multifacetada, qual forma de expressão escolheria, se tivesse que selecionar apenas uma: “Eu escolheria ficar com o povo, é o povo que me motiva a fazer todas essas coisas”23. Ainda em Volver a los diecisiete, vemos sua interpretação em dois palcos: o primeiro, montando e cantando em uma tenda que se assemelha a um circo, um ambiente sem grandes luxos; o segundo, contrastando com a outra locação, Santiago, com uma atmosfera luxuosa e frequentada pela classe mais abastada. A frase, "nossas esposas, que excepcionalmente vieram hoje"24, que está na fala do mestre de cerimônias, traz um indício da visão de mundo daquela Santiago: embora lembre, de início, a importância para o Louvre de duas pessoas – Leonardo da Vinci e Violeta Parra –, o ambiente não disfarça o machismo. Após o show de Violeta, o apresentador agradece e diz que, se ela quiser comer algo, pode ir à cozinha. “Quem você acha que está mandando para a cozinha?”, rebate a cantora, que depois sai pelo público, homens e mulheres com trajes elegantes e pomposos a escutarem dela, várias vezes, “surdo!”25. Esse show é simbólico por ser um padrão do filme: suas apresentações, no longa, são cheias de percalços (Santiago, Paris), ou são para poucas pessoas (na tenda). O maior público acontece na Polônia – à época, um país, na visão do entrevistador e de Violeta, comunista. Paris e Santiago, distantes do comunismo, dão sinais: o caminho da protagonista é o de alguém que cansou. Sua vida e seus shows vão acumulando desencaixes, desajustes, feridas, cicatrizes, traumas. Sua energia e sua paciência vão perecendo – mesmo sendo ela alguém que reconhece, como dito anteriormente: “a vida não é uma festa”. Ela cansou, inclusive, de tentar um mundo mais próximo daquele que o show na Polônia (do filme) propõe: uma plateia cheia, com centenas de pessoas, respeitosas com um espetáculo de uma mulher que ali “representa um país distante que se chama Chile”26. Já próxima de seus últimos dias, em emblemática cena com o prefeito de La Reina (Fernando Castillo Velasco, interpretado por Marcial Tagle), Violeta aceita um carro, uma casa, um poema, qualquer coisa pela pintura que ela fez: só não aceita dinheiro. Ele pergunta, algumas vezes, se ela já comeu, como quem desconfia da saúde da artista, como quem desconfia que a ela falta o básico. A pergunta reiterada faz Violeta irritar-se e pegar um caldeirão cheio de comida, oferecendo um pouco a ele. Como quem No original: “yo elegiría quedarme con la gente”, “es la gente es la que me motiva a hacer todas estas cosas”. Essas palavras, como acontecem, no longa reproduzem o que Violeta disse para a televisão suíça, em 1964 (VILCHES, 2013: 68). 24 No original: “Nuestras esposas, que excepcionalmente vinieron hoy”. 25 No original: “¿A quién cree que está mandando a la cocina? (…) ¡Sordo!”. 26 No original: “representa un país muy lejano que se llama Chile”. Violeta Parra, bom frisar, não é a primeira mulher chilena a ter um reconhecimento mundial e pouca generosidade interna – Gabriela Mistral (1889-1957), escritora, educadora, diplomata e feminista, venceu o Nobel de Literatura em 1945 e, de acordo com Vilches (2013: 64), assim como Violeta, foi “apreciada desdeñosamente por el Estado Chileno”. 23 267 é incapaz de entender a lógica daquela personagem, o prefeito pega a carteira, esboça pegar um dinheiro, mas escuta dela: “não, guarde seu dinheiro”27. O mundo que Violeta deseja entra, novamente, em forte colisão com a realidade que ela encontra no seu Chile, um país colonizado, outrora parte da coroa espanhola, ligado a um Império. Azoulay faz questão de se referir a “direitos imperiais” e “declarações imperiais” quando trata do contexto em que surgem e se aplicam os direitos humanos – e parece ser também essa lógica que Violeta confronta na cena. Essas declarações imperiais [de direitos humanos] ocultam a embora não exclusivamente) em colônias longínquas, reduzindo a ideia de direitos à proteção das necessidades e da existência das pessoas à forma de uma necessidade econômica. À medida que as pessoas foram desenraizadas e seus mundos arruinados, uma universalidade abstrata de direitos originou-se desse estado de quase ausência de mundo. As declarações existentes de direitos humanos são a materialização dos direitos imperiais. Eles podem fornecer às pessoas alguns direitos apenas porque aqueles que gozam de direitos imperiais foram capazes de primeiro privar essas pessoas dos direitos de que gozavam e, em segundo lugar, porque essas pessoas que foram forçadas a migrar para novos lugares também tiveram o acesso negado aos ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 destruição que seus autores perpetraram (mais brutalmente, direitos de outras naquelas comunidades (2019: 426).28 Aquele político, homem branco de terno, é a personificação do direito imperial, que na prática funciona como privilégio. Ele é o capital financeiro, “europeizado”, adaptado à realidade que foi imposta, sem o consentimento prévio do originário – daquele que esteve ali antes dos outros, antes dos que são como aquele político. Já Violeta, especialmente mas não só nessa cena, é a tentativa de resistência de quem teve seu mundo destruído – não em um sentido literal, mas que vive a “privação do direito de experimentar o mundo como um lugar inquestionável, já que mesmo o mais No original: “no, guarde su plata”. No original: “These imperial declarations conceal the destruction that their authors perpetrated (more brutally, though not exclusively) in faraway colonies, reducing the idea of rights to protection of people’s needs and their existence to the form of an economic necessity. As people were uprooted and their worlds ruined, an abstract universality of rights originated from this state of near-worldlessness. Existing declarations of human rights are the materialization of imperial rights. They can provide people with some rights only because those who enjoy imperial rights were able to first deprive these people of rights they enjoyed, and second, as these people who were forced to migrate to new places were also denied access to the rights of others in those communities”. 27 28 268 despossuído nunca parou de se envolver com o mundo, labutando e improvisando para criar um lugar para se viver” (AZOULAY, 2019: 432)29. No caso de Violeta, e no caso de centenas de milhares de pessoas cujas formas e lógicas de existência foram raptadas, pode-se estar em um lugar, ter-se uma terra, mas a prática cotidiana é de ilusão – seu cosmos ya no existe. “Yo no tengo dónde estar” A decepção com a impossibilidade de seu mundo, no sentido de cidadã coletiva, uma personagem com força criativa, capacidade de levantar-se contra injustiças, de impor-se diante de preconceitos e não aceitá-los é, simultaneamente, a mesma pessoa que dedica muita atenção a quem não se dedica a ela. Fragiliza-se, humaniza-se aí a personagem no lugar do amor e da carência carnal. A crítica pode mencionar mais uma construção de personagem feminina fragilizada diante de seu parceiro, incapaz de assumir sua potência como sujeito, reflexo de um filme dirigido por um homem baseado em um livro escrito por outro. É oportuno interrogar, ainda, o motivo de tanta atenção a um único homem tendo Violeta a biografia que tem e sendo ela, no próprio filme, alguém que diz ter se casado duas vezes e se apaixonado cinco: cinco milhões de vezes. Uma interpretação mais direcionada pode, inclusive, crer que a saudade de Gilbert é das forças motrizes do desfecho da vida de Violeta. Esta análise reconhece essas interpretações, mas ressalta outra perspectiva, com pistas que o próprio longa dá. Como já frisado, o filme se apresenta a partir do olhar. A essa altura, primeiro o ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 coincide com o sentimento causado pela distância afetiva e física de Gilbert. Violeta, longa retoma os olhos da protagonista, seguidos pelo olhar de uma galinha, que é procedido pelo voo de um gavião – essas são as três imagens que ilustram o raciocínio a seguir: uma interpretação, oferecida pela própria Violeta, da mensagem da música. O gavião é o macho e protagonista desse balé. A galinha representa a mulher, também de primeira ordem, mas essa personagem é sofrida, aquela que resiste às consequências do gavião, com suas garras e maus sentimentos. Que também seria o poder e o capitalismo todo-poderoso. Como você vê, o tema é amor. O amor que nem sempre constrói, No original: “I take Arendt’s idea of worldlessness to mean deprivation of the right to experience the world as one’s unquestioned place, as even the most dispossessed never ceased to engage with the world, toiling and improvising it to create a place to live within”. 29 269 que quase sempre destrói e mata. (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011).30 Esse ponto de vista, em diálogo com o mundo que Violeta defende, soa questionável e talvez até incoerente: afinal de contas, ela reproduz uma analogia que reconhece o masculino como sujeito protagonista, enquanto o feminino é sofrido. A proposta aqui, todavia, salienta outros dois pontos. Primeiro: uma personagem, como qualquer ser humano, pode ter suas incongruências, demonstrar uma postura que vai para o lugar da produção e da transgressão, enquanto, em outros instantes, também Além disso, embora a descrição dela possa ser reducionista, é uma ideia que liga o masculino e o capitalismo à destruição, ao assassinato: não se pode dizer que é uma visão apenas ingênua ou simplista, ela é também crítica – especialmente se pensamos no desfecho do longa. Quando Violeta vem interpretar a música-testamento, El Gavilán, ela justifica que “este balé tem que ser cantado por eu mesma, porque a dor não pode ser cantada por uma voz acadêmica, uma voz de conservatório. Tem que ser uma voz sofrida, como a minha, que venho sofrendo há quarenta anos”31. Ou seja, o filme acentua aí o óbvio que já vinha tentando mostrar: acompanhamos uma história com grandes percalços e, a biografia da estrela nos indica, um fim provavelmente terrível. A depender do desenvolvimento da personagem, o longa poderia se aproximar da tragédia (se sublinhando essas virtudes) ou do melodrama (se destacando também o que há de mundano na biografada)32, de história tão rica na América Latina (cf. OROZ, 1992). Mas, ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 reproduz e perpetua um discurso conservador e um comportamento frágil – é humana. embora a Violeta do filme ofereça possibilidades para os dois caminhos, o desfecho da obra parece querer negar ambos. O encerramento mostra Violeta cantando, tocando e sendo ovacionada. O som, todavia, nos leva a escutar “os trovões soam já / eu não tenho onde estar” e, para finalizar, “gavião, gavião, estou morrendo, gavião”33. Os aplausos coincidem com um No original: “El gavilán es el personaje masculino y principal de ese balé. La gallina representa la mujer, también de primer orden, pero ese personaje es sufrido, el que resiste a las consecuencias del gavilán, con sus garras y malos sentimientos. Que también sería el poder y el capitalismo todo poderoso. Como ve el tema es el amor. El amor que ni siempre construye, que casi siempre destruye y mata”. 31 No original: “Este balé tiene que ser cantado por mí misma, porque el dolor no puede ser cantado por una voz académica, una voz de conservatorio. Tiene que ser una voz sufrida, como la mía, que llevo sufriendo cuarenta años”. 32 Ien Ang (1985) afirma que o melodrama propõe uma estrutura de sentimento trágica adaptada à vida comum, ou seja, não se trata mais de personagens grandiosos como na tragédia, mas utiliza-se da mesma tática que leva o horror e busca a piedade. Essa estrutura, para Williams (2014), pode ser vista como uma tragédia democratizada, isto é, capaz de suscitar compaixão e terror, mas protagonizada por personagens sem grandes traços heroicos, mais mundanos. 33 No original: “Truenos suenan ya / Yo no tengo dónde estar (…) gavilán, gavilán, que me muero, gavilán”. 30 270 canto que reconhece não ter onde estar e que, em conversa com o gavião, morre. Outras imagens da plateia em êxtase se mesclam a imagens de irmãos, do pai e da mãe, sentados, sem alegria. Deles, sem entusiasmo, voltamos aos aplausos que seguem acontecendo em uma tenda pequena, com um público feliz, onde está Gilbert. A partir dessa última descrição, mencionamos que, na hora da morte, o seu ex-parceiro é apenas mais um fã a quem ela agradou: ele não aparece como família, ou com um enquadramento apenas para ele, diante de Violeta. Outro ponto é o contraste – o contentamento do povo que a ovaciona coexiste com o desânimo dos seus familiares, A complexidade da cena vai além – pensemos em outra montagem paralela que o longa nos proporciona: Violeta canta / o gavilán ataca a gallina / Violeta é aplaudida de pé / o predador-macho acaba com a presa-fêmea. São acontecimentos em épocas e lugares diferentes que, sobrepostos, levam a uma ambivalência. A letra dessa música significa para a compositora, também, uma potência destrutiva, mas ela segue tocando, cantando e sendo aplaudida. A junção dessas imagens e sons, mais que buscar uma aderência do público espectador a Violeta, complexifica a personagem a partir da obra e das intenções dela. A escolha estética não é (apenas) narrativa, e sim discursiva. No lugar da montagem invisível, da estética transparente dominante, vem a montagem intelectual. Em vez da catarse fruto da purgação das emoções, ligadas ao terror e à compaixão, prioriza-se a interpretação crítica. Violeta, apesar do reconhecimento, não tem onde estar, não consegue sair das garras do predador. Ela morre de capitalismo e patriarcado – eis outra interpretação possível deste número final.34 ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 daqueles que são mais próximos dela. De acordo com o que o longa propõe, pode-se verificar ali, em algum grau, a tentativa de “tornar visível a produção de vidas descartáveis” (Hartman, 2020: 29) e de, no seu desfecho, frisar a tragédia que pode acometer mesmo uma estrela, se essa estrela é uma personagem cuja ideia de vida está em desajuste com o que ela encontra, se essa estrela não tem acesso ao mundo que ela gostaria de ter, se ela tem demasiadas características em comum com as pessoas cujas vidas tendem ao descarte. Entendese, claro, que as vidas a que a pesquisadora estadunidense se refere são aquelas que foram produzidas como descartáveis no “tráfico atlântico de escravos e também na disciplina da História” (ibid.: 29) e sob nenhuma hipótese este rabisco pretende apagar 34 Patricia Cuevas Estivil (2018: 339), em tese que aborda a obra de Violeta Parra, diz que “o patriarcado, o capitalismo e o colonialismo são o mesmo inimigo” (no original: “el patriarcalismo, el capitalismo y el colonialismo son el mismo enemigo”). Há uma possibilidade de relacionar o gavião e a galinha à cueca, tradicional dança chilena, baseada na ideia de que o homem deve bailar para conquistar uma mulher e que tem, como uma das origens possíveis, a postura do galo diante da galinha. Cuevas Estivil e Violeta Parra, em trechos de entrevistas transcritas para a tese, chegam a fazer uma associação possível – a diferença é que, no filme, estamos diante de um macho diferente: não um galo, e sim um gavião predador. 271 as especificidades das dores, dos preconceitos e das crueldades vividas pelos descendentes de escravizados provenientes da África – especialmente no Brasil. Arriscamos, porém, agregar muitos dos ancestrais indígenas de Violeta Parra a essas “vidas descartáveis” – ancestralidade, vale lembrar, que o longa sinaliza como importante na apresentação da cantora antes, inclusive, de seu primeiro número musical: ancestralidade também ligada a um genocídio (parcialmente) documentado. Dentro das cinebiografias musicais latino-americanas deste século a que tivemos acesso até agora, esta é a aquela que, de longe, mais se dedica a um canto mais abraça a canção a serviço de uma causa não relacionada, prioritariamente, com musicalidade. As palavras cantadas e ditas por Violeta externam sua visão crítica ao capitalismo, que ela trata com sarcasmo no início e como assassino no final. As experiências positivas da cantora são onde o dinheiro menos circula: na Polônia e na sua tenda para poucas pessoas, as apresentações são um sucesso – aí ela se sente bem. A Violeta do filme pode, enfim, ser lida como alguém que canta o já mencionado “pobre (que) diz não”, que fala de “histórias que não podemos conhecer e que nunca serão recuperadas” (ibid.: 30), de uma história que, em alguma medida, também é a dela.35 Ela não tem a pretensão de ser a porta-voz dos desassistidos, pobres e índios que ela menciona na narrativa, não quis cantar pelos pobres, e sim para eles e com eles. Ela deve ser ainda reconhecida em sua potência contextual: na América Latina que já lidava com os anos de chumbo,36 Violeta se orgulha de ser ligada a uma etnia ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 com uma finalidade que transcende o deleite estético, o prazer sonoro. É o filme que discriminada em seu país e se vangloria, em ações e canções, de ser uma comunista. Ao ter a possibilidade de ascender economicamente, esquecer suas origens ou se afastar daqueles que social, cultural e etnicamente estão mais próximos dela, Violeta não quis deixar de ser Viola. Ela confronta a insensibilidade machista dos abastados da capital federal, levanta-se contra o desrespeito dos parisienses, e consegue ser a primeira artista latino-americana (de qualquer gênero) a ter uma exibição solo no museu do Louvre. Importante trazer, inclusive, o subtítulo do livro base para o filme em que essa passagem é mencionada: La batalla del Louvre (PARRA, 2018: 132). Esse é o 35 É tentador, e seria bem compreensível, trazer aqui a expressão que marcou a intérprete de uma das mais famosas versões de Gracias a la Vida, Mercedes Sosa (1935-2009), La Negra, conhecida como “la voz de los sin voz” (LÓPEZ, 2019). Duas razões, porém, levam-nos a evitar o termo. A primeira é que falar por alguém, ser considerada ou autodenominar-se porta-voz, com o passar do tempo, passou a ser uma atitude revista e mais questionada. A segunda, e mais importante, é que, no filme, não há nenhum indício claro de que Violeta tinha a pretensão de ser líder, embaixadora, representante-mor de algum grupo, inexiste um sinal evidente de que ela desejava falar por aqueles que não tinham voz. 36 Violeta Parra morre em 1967. A essa altura, Nicarágua (1936-79), Paraguai (1954-90), e Brasil (196484) já vivem sob ditaduras. Em 1976, menos de dez anos depois, estão também sob ditadura: Argentina (1976-83), Peru (1968-80), Uruguai (1973-85) e o próprio Chile (1973-90). 272 caminho do longa, de uma guerreira. Uma guerreira em desespero, que sucumbe, mas não antes de deixar um enorme legado – que vai de Víctor Jara37 a Nano Stern – que segue vivo. A profecia não está lá? Oporto Valencia (2011: 88) frisa que a estrutura interna da ficção de Andrés Wood se articula a partir de uma canção, e que o filme tem uma forma circular também do ponto de vista sonoro – a música de abertura é a mesma do desfecho: El Gavilán. A vida da artista que não guardam relação com a dimensão profética de El Gavilán, ligada ao prenúncio do fascismo no Chile, e critica também a forma como é apresentada a morte de Rosita – uma filha de Violeta que falece ainda bebê – (ibid.: 99), o que pede um retorno desta análise à Polônia. Naquele país, Violeta canta El Sacristán, que termina com a melodia liderada por ela e entoada pelo público, mas é essencial pontuar que começam a aparecer, nessa canção, imagens de um neném. Esse ser tão vulnerável se mostra sozinho na cama, imediatamente antes de um olho voltar à tela e de, na sequência, Violeta tocar sua segunda música, agora em solo polonês: En los Jardines Humanos. Quando o ritmo dessa canção se acelera, repetindo-se o texto “como uma pomba branca”,38 o menino Ángel Parra corre com o bebê nos braços. As duas velocidades estão em sincronia até que param súbita e simultaneamente: o rosto angustiado de Ángel mira o extracampo e, no mesmo instante, a voz de Violeta cessa – algo aconteceu com o recém-nascido. Quando ela volta a cantar, a imagem logo a ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 autora argumenta que o longa realiza uma série de omissões, reduções e alterações da mostra solitária e aos prantos, escutando de seu filho sobrevivente: “Rosita foi ao céu, como uma pomba branca” (ibid.).39 O que o cristianismo vê como símbolo da paz é, ao mesmo tempo, para a Violeta exposta em En los Jardines Humanos, o símbolo da perda. A própria Violeta poderia perguntar: qual paz é possível sem perda? Ao ser questionada, na entrevista, sobre uma eventual culpa pela morte da filha, a resposta é enfática: culpado é quem rouba, quem humilha, quem mata. Oporto Valencia (2011: 99) acrescenta que Violeta diz “lacônica e friamente, que ficou mais dois anos na Europa, ignorando assim a complexidade de uma situação extremamente dolorosa”, e vai além: 37 Curioso notar como há um artigo de Alejandro Escobar Mundaca (2012: 7) que reconhece um “encuentro con Víctor Jara” na música Volver a los diecisiete. Embora seja um cuidadoso estudo, com identificações precisas inclusive de cada canção, não conseguimos ver Víctor Jara ali – ou em qualquer outro instante do filme. 38 “E se aninha nos portos, como uma pomba branca”. No original: “Y va anidando en los puertos/ como una paloma blanca, como una paloma blanca, como una paloma blanca”. 39 No original: “Rosita se fue a los cielos, igual que paloma blanca”. 273 “o objetivo desse modo de apresentação, seria compreensível concluir, é estabelecer que o custo do sucesso de Violeta foi a morte de sua filha, sem problematizar outros aspectos desse trágico acontecimento, como a responsabilidade de quem deveria estar cuidando de Rosita: Arce, o pai”.40 Este artigo concorda em parte com essas observações. O motivo da discordância está na canção que vem a seguir no longa, com uma imagem que destaca querido anjinho / orar pelos avós, pelos pais e irmãozinhos”.41 Violeta pode até verbalizar que não sente culpa, parecer fria e lacônica, mas segundos depois se manifestam, em canção, a saudade e o desejo do melhor pela filha que não tem mais vida. Violeta canta, na mesma Rin del Angelito, que “quando a carne morre, a alma busca seu centro / no brilho de uma rosa ou de um peixe novo”.42 Não custa lembrar que seu filho, que correu com Rosita tentando salvá-la em vão, termina o texto que recita para Violeta com um “yo te amo mucho, mamá: tu hijo, Ángel”. Nem ele a culpa: pelo contrário, apesar da pouca idade e da dor extrema, oferece compaixão. De acordo com a visão deste texto, não dá para encaixá-la na prateleira caricatural da mãe fria e ausente. Quando retorna a música em torno da qual o filme se estrutura, a melodia traz também novas habilidades de Violeta – pintora e tapeceira. Ao apresentar sua obra a uma espécie de pré-curador do Louvre, ela lembra que sua tapeçaria se chama Contra a Guerra: “no meu país”, diz a artista, em francês, “há muitas desordens políticas, mas ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 apenas Francisca Gavilán interpretando Rin del angelito: “já se vai para o céu aquele não posso protestar. Então, com meu quadro, posso protestar” (VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS, 2011).43 Violeta expõe no Louvre em 1964, nove anos antes do início da ditadura (1973-1990) de Pinochet, mas Oporto Valencia (2011: 116), acredita que diretor e roteiristas “preferiram omitir essa dimensão histórica, profética, social e coletiva encarnada, mutilando assim o alcance da vida e da obra de Violeta e, com isso, fechando No original: “(Violeta) responde lacónica y fríamente, que se quedó dos años más en Europa, desrealizándose así la complejidad de una situación en extremo dolorosa. (...) Casi se diría que el objetivo de este modo de presentación es establecer que el costo del éxito de Violeta fue la muerte de su hija, sin problematizar otros aspectos de este trágico hecho, como la responsabilidad de Arce, a cuyo cuidado había quedado aquélla”. 41 No original: “ya se va para los cielos ese querido angelito / a rogar por sus abuelos, por sus padres y hermanitos”. 42 No original: “cuando se muere la carne, el alma busca su centro / En el brillo de una rosa o de un pececito nuevo”. 43 No original ela fala em francês. Na cópia do filme a que tivemos acesso, a legenda vem embutida em espanhol: “Esta arpillera se intitula Contra la Guerra. En mi país, hay muchos desordenes políticos, pero no puedo protestar. Entonces, con mi cuadro, puedo protestar”. 40 274 a possibilidade de ampliar a compreensão sobre ela, para além do senso comum”. 44 Ora, quase uma década antes do golpe de 11 de setembro de 1973, Violeta já fala de desordens políticas e que não pode protestar. Não seria esse um indício fílmico, talvez discreto e rápido, mas também claro e profético, de um regime “sob a égide fascista” (ibid.: 99) que o Chile viveria com Pinochet? A soma das repetições de El Gavilán, aliada à interpretação que Violeta frisa daquela música e à toda a construção da personagem principal, não são elementos suficientes para acreditar em um tom profético da música? Aqui tentou-se mostrar especificidades da cinebiografia Violeta se fue a los cielos (2011), especialmente dentro do contexto audiovisual latino-americano. No filme, embora Violeta convoque ao palco Los Jairas, um grupo musical que “viene de un país hermano, Bolivia”, pouco vemos de monumentos e paisagens que remetam ao seu país natal, e menos ainda testemunhamos de um Chile urbanizado. Pouco se sabe das amizades da cantora, pouco se mostra além da personagem ensimesmada – e, todavia, tanto se mostra do que a leva a ser quem é.45 A aproximação com a tragédia e o melodrama não chega a ser um abraço, mesmo estando nós diante da tragédia de uma (em vários aspectos) virtuosa latino-americana, de um espaço geopolítico tão relacionado ao melodrama. Mais do que sobre a obra musical de Violeta e sua relação com o Chile, o longa é um mergulho nas ideias e complexidades da artista, por vezes transpostas nas canções diegéticas, em outras expostas nas suas conversas. É, no fundo, menos sobre ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 Considerações finais o fenômeno popular no sentido macro (artista latino-americana que conquista o mundo) que sobre o ser humano em outras singularidades. Uma indígena, sim, política e radicalmente à esquerda também, mas não só. Poeta. Tecelã. Artista plástica. Atriz. Percussionista. Não é apenas uma cantora que alcança o estrelato, é também uma cidadã que transcende – e muito – a música. Para dialogar, sugerimos provocações: com que frequência temos uma cinebiografia musical – e uma estrela – que vá para um caminho tão diverso? Quais outras biografias de astros ou estrelas reencenadas levam a sensação de uma luta tão 44 No original: “Wood y los guionistas prefirieron omitir dicha dimensión histórica, profética, social y colectiva encarnada, mutilando así el alcance de la vida y la obra de Violeta, y clausurando con ello la posibilidad de ampliar el entendimiento acerca de ella, más allá del sentido común”. 45 Um dos maiores destaque do filme, locação dos shows mais bem sucedidos, é a tenda, La Carpa de La Reina (La Reina é uma referência a uma das comunas, espécies de subdistritos, de Santiago). Vilches (2013: 64) diz que “um grande número de chilenos nunca soube da existência da tenda” (no original: “Un gran sector de chilenos que nunca supieron de la existencia de la carpa”). Dedicar tanta atenção a um espaço que, no imaginário coletivo, não tinha esse protagonismo, ajuda a entender as escolhas narrativas do longa. 275 frontal (não apenas por uma terra, mas também) por um outro mundo (não apenas musical)? A influência dela vai de Víctor Jara até Nano Stern, além de tantos outros, mas vale questionar: como as ideias de Violeta chegam para o povo e as pessoas que ela tanto defendeu? Seu corpo sucumbe, no ato final em si, por uma violência autoimposta, mas quantas violências aquele corpo sofreu até chegar ali? Quantas violências outros corpos como os de Violeta, mas sem o descomunal talento dela, terminam vítimas de um mundo que lhes foi tomado e agora têm que se contentar com Referências ANG, Ien. Watching Dallas: soap opera and the melodramatic imagination. London: Methuen, 1985. AZEVEDO, Wagner Fernandes. “Chile. Os povos originários entre o reconhecimento e a repressão do Estado”. In: Instituto Humanita Unisinos. 6 jul. 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/580616-chile-duas-propostas-apresentadaspara-a-paz-e-o-reconhecimento-dos-povos-originarios. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. AZOULAY, Ariella. Potential History: Unlearning Imperalism. London: Verso Books, 2019. BENGOA, José. Historia del pueblo mapuche (siglo XIX y XX). Santiago: Ediciones Sur, 1985. CUEVAS ESTIVIL, Patricia Virginia. Imagens poéticas e decolonização na obra de Violeta Parra. 2018. Tese (Doutorado em Letras, em Linguagem e Sociedade) – Programa de Pós-graduação em Letras, em Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus Cascavel, Cascavel. ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 migalhas de “direitos imperiais” disfarçados de direitos humanos? DE LA CADENA, Marisol. Indígenas mestizos: raza y cultura en el Cuzco. Lima: IEP, 2004. ESCOBAR MUNDACA, Alejandro. “Violeta se fue a los cielos: Música en lo Audiovisual”. In: Universitat de Barcelona. Jun. 2012. HARTMAN, Saidiya. “Vênus em dois atos”. Revista ECO-Pós, [S. l.], v. 23, n. 3, 2020, p. 12–33. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. LÓPEZ, Alberto. “Mercedes Sosa, la voz de los derechos humanos y de la vida en Hispanoamérica”. El País, Madrid, 31 jan. 2019. Disponível em: https://elpais.com/cultura/2019/01/31/actualidad/1548920585_609605.html. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992. 276 OPORTO VALENCIA, Lucy. “El ojo muerto de Violeta: el gavilán en 'Violeta se fue a los cielos' (2011), de Andrés Wood”. Neuma (Talca), v. 1, 2012, p. 88–120. Disponível em: https://neuma.utalca.cl/index.php/neuma/article/view/145. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. PARRA, Ángel. Violeta se fue a los cielos. Santiago: Catalonia, 2018. Ebook. SOUZA, Leandro de; LEÓN, Ítalo O. R. “Um estudo comparativo entre as memórias de Violeta se fue a los Cielos, de Ángel Parra, e a versão homônima para o cinema, de Andrés Wood”. Trem de Letras, v. 8, n. 2, 9 nov. 2021, p. 1-21. PARRA, VIOLETA. Spotify. Disponível em: https://open.spotify.com/artist/4ejp2yEDQIIJIy0iFpoI5B?si=u4JynjaTRVuykVknhqhnSQ. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. STAVENHAGEN, Rodolfo. “Las identidades indígenas en la América Latina”. Revista IIDH, v. 52, 2010, p. 171-190. Disponível em: https://www.iidh.ed.cr/iidh/media/1633/revista-iidh52.pdf. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. STERN, Nano. “Más de un millón de personas...”. 11 fev. 2020. Facebook: @ nanosternoficial. Disponível em: https://facebook.com/nanosternoficial/photos/a.405481146930/10156996168976931. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. VIDAL, Belén. “The biopic and its critical contexts”. In: BROWN, Tom; VIDAL, Belén (Orgs.). The Biopic in Contemporary Film Culture. New York: Routledge, 2014. p. 1-32. ANO 11. N. 1 – REBECA 21 | JANEIRO - JUNHO 2022 ROSSI, Amanda. “Dia do Índio é data 'folclórica e preconceituosa', diz escritor indígena Daniel Munduruku”. BBC, São Paulo, 19 abr. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47971962. Acessado em: 11 de fevereiro de 2022. VILCHES, Patricia. “Violeta se fue a los cielos de Andrés Wood: El naufragio de La Carpa de La Reina”. In: Revista Internacional d’Humanitats, v. 29, set-dez. 2013, p. 63-80. VIOLETA SE FUE A LOS CIELOS. Direção: Andrés Wood. Produção de Maíz Producciones, Bossa Nova Films, Wood Producciones. Chile, 2011. Digital (110min), son., cor. WILLIAMS, Linda. On The Wire. Durham and London: Duke University Press, 2014. WOLF, Mark J. P. Building imaginary worlds: the theory and history of subcreation. New York: Routledge, 2012. Submetido em 14 de fevereiro de 2022 / Aceito em 18 de junho de 2022. 277