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Dossiê Heidegger –apresentação
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Há cem anos, Martin Heidegger trazia a lume seus primeiros escritos. O volume I
da edição completa de seus escritos contém textos que apareceram de 1912 a 1916. Este
primeiro volume contém, em primeiro lugar, dois ensaios e três recensões publicados de
1912 a 1914. Depois vêm a Dissertação de Doutoramento sobre “A doutrina do juízo no
psicologismo”, defendida em 1913, e o escrito de Habilitação, “A doutrina das categorias e
do significado de Duns Scotus”, apresentado à Faculdade de Filosofia da Universidade de
Freiburg em 1915 e publicado em 1916. Uma apresentação deste texto apareceu na revista
Kant Studien em 1917. O volume I termina com a preleção sobre “O conceito de tempo na
ciência da história”, com a qual Heidegger recebeu a “venia legendi” na mesma
universidade. O primeiro volume da edição completa de Heidegger foi publicado em 1978.
Heidegger falecera em 1976. Em 1972 ele escrevera um prefácio para a primeira edição
destes “Escritos Primeiros”, que continham as primeiras tentativas de seu pensamento, que
ele caracterizou como literalmente, des-amparadas (hilf-losen). É que naquele momento
ele nada sabia daquilo que mais tarde constringiria o seu pensamento: a questão do ser, que
está em íntima conexão com a questão da linguagem.
A edição completa dos escritos de Heidegger, que em 2014 acrescentou a
publicação dos “Schwarze Hefte” (Cadernos Pretos), aproxima-se de uma centena de
volumes. Como ler estes escritos tão numerosos, com toda a sua multiplicidade, de modo a
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encontrar neles provocações para o pensar? No posfácio do primeiro volume são dadas
algumas indicações que podem ser fecundas para o desafio da compreensão e da
interpretação destes textos. Uma primeira indicação vem do mote que Heidegger escolhera
para a edição completa: “Wege, nicht Werke” – Caminhos, não obras. Esta sentença serve
como um fio de Ariadne para quem se dispõe a entrar no domínio da radicalidade deste
pensar. Uma segunda indicação vem de dois textos que elucidam o sentido desta sentença
condutora. O primeiro texto diz que a Edição completa deve apontar de diversos modos
para uma única coisa: “um estar a caminho no caminho do campo do questionar mutável
da polissêmica questão do ser” (GA I, p. 437). Esta indicação significa que, para fazer jus
ao ofício do pensamento, a leitura dos escritos da Edição completa há que ser feita no
mesmo empenho que os fizera nascer, ou seja, o empenho de questionar. Por isso, a Edição
completa existe para guiar o leitor que está interessado no pensamento, a “receber a
pergunta, a questioná-la junto (mitzufragen), e, antes de tudo, a questioná-la de modo
questionador”. O que diz, porém, este “questionar de modo questionador”? Quer dizer:
“realizar o passo para trás”. Para onde? Para o dizer nomeador. Trata-se de despertar uma
confrontação com a questão pela coisa do pensar, aquilo que, no pensar, está em causa (die
Sache des Denkens). Portanto, uma leitura interessada no pensamento e naquilo que
provoca o pensamento a pensar nada tem a ver com um informar-se sobre os pontos de
vista ou opiniões do autor. Tal leitura só tem sentido como um acesso à coisa mesma do
pensamento que, como questionar, se torna radical e essencial. Outra indicação é a de que
o que estes escritos contêm são apenas um fraco eco do princípio, que se retrai cada vez
mais na distância: a contenção que se mantém em si mesma da “Alétheia” (GA I, p. 438).
O dossiê deste número da Pólemos contém um ensaio e quatro artigos que
procuram realizar este “questionar junto” (mitfragen) com aquela questão que é mais digna
de ser questionada pelo pensamento essencial e radical: a questão do ser. Portanto, o ensaio
e os artigos aqui apresentados não têm a intenção de informar ninguém sobre o
pensamento de Heidegger. Têm, pelo contrário, a intenção de realizar, de diversos modos e
por diversos caminhos, pelos modos e caminhos que são dados a cada um dos autores, o
empenho deste “questionar junto”.
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Pólemos, Brasília, vol. 3, n. 6, dez 2014
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O ensaio do professor Emmanuel Carneiro Leão, que foi aluno de Heidegger, e que,
com sua criatividade, vem ajudando a manter desperta e viva a atividade da filosofia e a
filosofia como atividade de aprender e ensinar a pensar, ajuda-nos a considerar, no
pensamento radical, a identidade de fenômeno e fenomenologia, e a despertar a atenção
para o poder como opressão mental e espiritual e o discurso de violência que ele instaura
para exercer a sua dominação. Este poder, que se ergueu exemplarmente no Império
Romano, se transmitiu na Igreja Católica e, de infalibilidade religiosa se transformou em
agenciamento da certeza no conhecimento científico e em processamento ideológico na
sociedade moderna, com suas várias visões de mundo, sejam quais forem os seus
endereços políticos.
O artigo de Renato Kirchner sobre “Introdução à filosofia enquanto busca pela
essência do homem” ajuda a pensar o movimento de uma introdução à filosofia enquanto
busca pela essência do homem. Indica que tal introdução só se dá no retorno brusco da
existência à sua origem, isto é, acena para o salto do filosofar, que só acontece
propriamente em filosofando, e que nos leva a pôr de modo novo a pergunta “quem é o
homem?”.
Dois artigos se voltam para os escritos dos assim chamados “Schwarze
Hefte” (Cadernos Pretos), editados recentemente, em 2014. Propositalmente à margem do
frenesi da discussão jornalística e acadêmica que se detém no ôntico e no biográfico destes
escritos, os dois artigos procuram encontrar nestes escritos a provocação do pensamento
que se torna a audácia do questionamento radical. O autor desta apresentação procura
considerar o pensamento nos Cadernos Negros e o seu relacionamento com a coisa em
causa deste pensamento, que se dá e se subtrai no cerne destes escritos. Pergunta em que
consiste uma leitura fenomenológica e ontológica, libertadora de toda vinculação
ideológica, e, ao mesmo tempo, vinculadora com a coisa mesma que o pensamento tenta
pensar e dizer em um nomear simples. Sérgio Wrublevski traz à luz, a partir dos mesmos
Cadernos Pretos, provocações para pensar a educação, a formação e a cultura segundo a
história do ser e da verdade no ocidente. Dá indicações de como a educação se originou no
empenho de pensar do povo grego, de como ela se constituiu na regência da metafísica e
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de como, ultimamente, no fim desta regência, ela se transformou em instrumental e tem
como horizonte apenas a utilidade. Ao mesmo tempo, acena com Heidegger para o outro
princípio desta história, no qual, em se preparando o acesso para com os acenos da verdade
na história e na liberdade, a educação e a formação do homem encontram a possibilidade
de ter êxito num modo verdadeiro, inaugural e libertador.
Por fim, o leitor será conduzido ao país do pensamento que se descortina nos
“Beiträge zur Philosophie” (Contributos à filosofia), que contêm escritos que também
foram anotados por Heidegger nos complexos e graves anos trinta do século passado.
Daniel Rodrigues Ramos ajuda-nos a alcançar com Heidegger uma mirada prévia sobre o
todo que é esboçado nos Contributos em suas junções. O pensar da filosofia aparece aqui
como atividade criadora, como realização de um salto, que, constringido pela necessidade
da questão do ser, torna-se principiador do viger inaugural do ser como evento apropriador
e fundador de um espaço-tempo para o ser como evento apropriador no Da-sein, o que
implica em uma transformação no modo de questionar e de compreender a pergunta “quem
somos nós?”.
Assim, por diversos modos e caminhos, cada autor realiza a tentativa de
“questionar junto” a questão que veio à tona desde Ser e Tempo no pensamento essencial e
radical de Martin Heidegger. Isso faz com que todos os textos sejam, no fundo, ensaios, se
não na sua forma literária, pelo menos em sua forma de pensamento. Permanecem, com
efeito, tentativas de um “nomear simples”, como foram os Contributos à filosofia, os
Cadernos Pretos e todos os textos da Edição completa de Heidegger, que, não obstante as
diferenças de estações, permanecem passagens de um único “Caminho do
Campo” (Feldweg) e paragens de um único “Campo do caminho” (Wegfeld): o da questão
do ser, posta no fim da metafísica, à espera do outro princípio. Estas tentativas podem mais
ou menos bem sucedidas e podem mesmo fracassar. Mas mesmo o fracasso se torna, nesta
experiência do pensar com e do pensar através do questionamento do pensador Heidegger,
um acontecimento da existência, no qual, historicamente, o “Caminho do Campo”
continua sendo percorrido, na espera do inesperado, e o “Campo do Caminho” continua
sendo preparado e semeado, à espera de que a semente germine, cresça e medre, dando
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frutos de transformação daquilo que somos. Pois ler não é outra coisa do que, numa
responsabilização, concentrar-se no pensamento e, concentrando-se, corresponder à
convocação do Ser para ser o que somos.
Brasília, 08 de março de 2015.
Marcos Aurélio Fernandes
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