INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662
O FUZILAMENTO DOS INIMIGOS COM UM VIOLÃO:
hibridação, mediação, tecnologia e violência na música
do Brasil contemporâneo
THE SHOOTING OF ENEMIES WITH A GUITAR:
hybridization, mediation, technology and violence in
contemporary Brazilian Music
Andersonn Henrique Araújo1
UERN: https://orcid.org/0000-0002-2711-0870
DOI: 10.21680/1982-1662.2022v5n33ID28031
Resumo
Este artigo parte da Sociologia da Música para pensar de maneira transdisciplinar a
questão cultural e sua relação com a sociedade brasileira contemporânea. O objetivo
é refletir sobre aspectos que envolvem a violência, as juventudes, as classes sociais e
a relação com as tecnologias na produção musical. Como procedimento metodológico,
analisa-se a versão do challenge da música “Ai Calica” no TikTok e duas imagens que
envolvem o corpo, a música e a sociedade. A primeira figura é retirada da plataforma
do Instagram e a outra está amplamente divulgada nos canais oficiais do Governo
Federal. Como fundamentação, utiliza-se a mediação (ADORNO, 1998; 2011) e
processos de hibridação (CANCLINI, 2019). Busca-se desvelar os sintomas de uma
associação entre a hibridação presente na música, na tecnologia e na violência através
da incorporação e da normatização da imagem e do som do fuzil, observando a
produção artística e musical. As discussões referentes a este trabalho focam nos
processos de hibridação da música e da cultura, enquanto produção social. Dessa
forma, conclui-se que ao reforçar o comum e o ordinário da violência através do
1
E-mail:
[email protected]
1
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agenciamento de culturas, também são intensificados e legitimados os conflitos contra
negros, pobres e moradores de periferias. Advoga-se para a construção de espaços
para se pensar e se fazer uma outra forma de agir e de ser sociedade que não negue o
conflito e a violência, mas que os problematizem também na música.
Palavras-chave: Sociologia da Música. Processos de hibridação. Mediação. Tiktok e
hibridação. Sociologia da Cultura.
Abstract
Through the sociology of music, this paper aims to reflect on culture and its
relationship with contemporary Brazilian society by using a transdisciplinary thinking.
Our goal is to examine aspects that involve violence, youth, social classes, and the
relationship with technologies in music production. As a methodological procedure, we
analyze the song version used in the Ai Calica TikTok challenge as well as two images
that involve body, music, and society. The first image is taken from Instagram while
the other one has been widely spread by the Federal Government official channels. As
a theoretical foundation, we utilize mediation (ADORNO, 1998; 2011) and
hybridization processes (CANCLINI, 2019). We seek to unveil the symptoms of an
association between musical hybridization, technology, and violence through the
incorporation and normalization of the rifle’s image and sound, thus observing artistic
and musical production. Discussions concerning this work focus on the hybridization
processes of music and culture, as a social production. In such manner, we conclude
that by reinforcing common and ordinary aspects of violence through cultural agency,
conflicts against Black population, the poor, and residents of the periphery are also
intensified and legitimized. We advocate for the construction of spaces where it is
possible to think of and make new ways of acting as and being a society that does not
deny conflict and violence, but instead problematizes these topics also in music.
Keywords: Sociology of music. Hybridization processes. Mediation; TikTok and
hybridization. Sociology of culture
2
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Introdução
A cultura e a música são processos sociais, por vezes tensionados, inquietantes
e contraditórios, que agem por complementaridades e conflitos. Elas são do domínio
das produções humanas, as quais mediam e são mediadas pelos processos sociais,
políticos e econômicos. Ao mesmo tempo em que a violência é vista como um fator
negativo nas sociedades, ela também corresponde a uma demanda de reprodução
social baseada nos preconceitos raciais e no conflito de classes (SOUZA, 2019; 2020)
que, em nossa concepção, mediam não apenas as subjetividades, mas também as
relações sociais através dos significados musicais.
O que norteia este artigo não está na questão utilitarista da música (para que
serve a música); pelo contrário, entendemos que a música é um instrumento social e
do artista. Enquanto questão de investigação, pretendemos entender como a música e
seus elementos têm sidos apropriados por grupos que tensionam as formas de violência
a partir da mediação e da hibridação. Como hipótese, entendemos que a violência tem
servido para legitimar a contradição e o tensionamento entre classes, produzindo, ao
mesmo tempo, formas de dominação hierarquizantes em relação à música produzida
pelas camadas mais populares da sociedade brasileira. Esse modo de ser da sociedade
não se reflete na música, mas tem-na como uma de suas manifestações que mediam
esse modo de ser.
Como demonstrado por Bourdieu (1979; 2009) e problematizado, a partir da
sociedade brasileira, por Jessé de Souza (2019; 2020), a classe, nesse trabalho, não é
entendida apenas como relações econômicas. Classe social diz respeito tanto às
formas de transmissão de um determinado capital cultural e escolar que são
incorporados quanto à dominação legitimada historicamente por gostos refinados, pela
educação familiar, pelo nível de escolarização, e pelo acesso a bens culturais,
simbólicos e materiais.
A classe social se transforma, assim entendida, em hierarquias de valores
intelectuais e promovem as (in)aptidões em relação à competição social a partir da
“lógica própria de um sistema que tem por função objetiva conservar os valores que
fundamentam a ordem social” (BOURDIEU, 2020, p.63).
Se por um lado os conceitos de cultura e o de classe possuem historicamente
lógicas hierarquizantes, como em burguesia e proletariado, alta cultura e cultura
ordinária, etc, quando interconectadas, por outro lado, a cultura e a classe não
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apenas se relacionam com a posição social, mas também são mediadoras de
experiências sociais (ADORNO, 1998). Adorno, ao problematizar a relação entre a
música e os extratos de classe em seu “Sociologia da Música” (2011), advertiu que em
uma mesma sociedade é impossível pensar na relação direta de causa-efeito entre a
música e a classe social. Ele entendia que a mediação não se configura uma equação
matemática de razão, de somatória, ou de exclusão.
Para problematizar essa questão, Adorno utilizou a comparação entre Mozart e
Beethoven, que conviveram em um período histórico próximo, compondo músicas em
estilos parecidos, interconectadas por técnicas muito em voga na corte vienense. Cada
compositor, porém, participava das estruturas de classe de maneira diferente e
possuía uma posição social distinta em relação ao outro: Mozart não conseguia
participar das estruturas sociais de forma tão independente quanto Beethoven. O
compositor da “Flauta Mágica”2 era dependente de patronatos; Beethoven, ao
contrário, apesar de ter possuído cargos nas cortes, em face do seu contexto social,
atuou de maneira mais independente, vendendo e publicando suas próprias
composições.
Adorno (2011, p. 140) tinha o entendimento de que a posição social em que um
indivíduo se encontra não é, “em absoluto, direta e ininterruptamente transposta para
a linguagem musical”. Contudo, ao fazer a análise da trajetória de compositores
ligados à produção musical da música de concerto, vinculada a um fazer burguês
(Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Strauss, Brahms), Adorno incorre no reducionismo
em achar que toda a produção musical europeia é vinculada a um fazer musical
burguês. “Em geral, os compositores eram oriundos ou da classe média pequenoburquesa ou da própria corporação dos músicos” (ADORNO, 2011, p. 141). Nesse
sentido, uma amostra pequena que representa os compositores do cânone musical
europeu, tal qual a escolhida por Adorno, não representa em sua totalidade a
produção musical europeia.
Ao tentar compreender a relação entre sociedade e produção musical, Adorno
(2011) aprofundou-se na questão dos extratos sociais pela própria amostra reduzida
dentre um universo de compositores, sem considerar os compositores europeus, que
não estavam diretamente ligados à tradição musical escrita voltada para o consumo da
2
Singpiel composto por Mozart, que estreou em 1791 no teatro popular vienense Theater auf der
Wieden. A obra possui importantes características com a Revolução Francesa, como no diálogo no qual
Sarastro fala para Tamanino: mais que um príncipe, [és] uma pessoa.
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corte e/ou da burguesia. Se por um lado, Adorno e sua reduzida amostra de
compositores limitam-no em sua análise da música, por outro lado, ele percebe que,
mesmo entre esse número limitado, a conexão entre extrato social e a produção
musical não pode ser considerada uma relação matemática de razão de causa/efeito,
reflexo ou de um simples espelhamento.
A concepção de mediação compreende o contraditório na relação entre música
e extratos sociais, pois ela é capaz de racionalizar e, ao mesmo tempo, tornar
inconscientes os aspectos do cotidiano. Nesse contexto, há a necessidade “de fazer a
mediação de tais experiências com os fatos concretos musicalmente imanentes”
(ADORNO, 2011, p. 149).
Se a sociedade e a cultura mediam as experiências musicais, a tecnologia
empregada na música também é um fator presente nesse campo. O desenvolvimento
tecnológico já era estudado por Weber (1864-1920) a partir das transformações na
utilização de materiais empregados na construção do piano e do violino. A utilização
de novas ferramentas tecnológicas possibilitou também o desenvolvimento das
relações harmônicas, melódicas e de acústica dos instrumentos musicais (WEBER,
1994). Nesse sentido, entendemos que a tecnologia é um dos agentes de mediação na
relação sociedade-música.
Na atualidade, a tecnologia tem permitido com que a produção musical não se
restrinja as grandes indústrias e aos centros culturais. Por um lado, é através dessas
mesmas ferramentas tecnológicas que são incorporadas às coreografias dos fuzis nos
videoclipes e nos challenges3; e do outro lado, com o fuzil real4 é que braço armado
do Estado ceifa vidas seletivamente.
Este trabalho analisa a música “Ai Calica” em duas versões: a primeira do Mc
Cyclope em funk carioca5, e a segunda versão do Mc Kevin do Recife e da Mc Dricka
em bregafunk recifense6. Ambas as versões estão presentes no YouTube, e ambas
originaram o challenges e coreografias compartilhadas no TikTok.
O funk carioca é pensado enquanto um gênero de música eletrônica dançante
nascida no final dos anos de 1980. Sua circulação ocorre livremente na internet, na
troca de CDs e DVDs piratas (PALOMBINI, 2014), e mais recentemente nos sites de
3
Os challenges podem ser coreografias ou desafios que são compartilhados não apenas no TikTok, mas
também em outras plataformas como Instagram e Facebook.
4
Não cenográfico, mas ainda sim real e simbólico.
5
Videoclipe disponível em: < https://youtu.be/42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 01 fev. 2022.
6
Videoclipe disponível em: <https://youtu.be/53H0sTim0gQ.>. Acesso em: 01 fev. 2022.
5
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produção e divulgação musical como o Soundcloud e YouTube. A música é construída
por meio dos DJs, enquanto fornecedores e produtores de materiais sonoros, e dos MCs
nas performances ao vivo repletas de improvisação e interação com o público
(PALOMBINI, 2014; FACINA; GOMES; PALOMBINI, 2016).
A música “Ai Calica” foi escolhida dentro desse universo por atender aos
seguintes critérios: 01 – A grande circulação que a música possui nas mídias digitais,
que tem como um dos seus reflexos a quantidade de visualizações. Na versão
escolhida, publicada em 18 de maio de 2021 7, a música possui mais de três milhões e
trezentas mil visualizações. Em uma versão publicada em 09 de março de 2021, do Mc
Cyclope e FP do Trem Bala, a música possui um milhão e duzentas mil visualizações;
02 – A grande quantidade de versões dessa música, como as versões em arrocha, em
bregafunk, funk rasteirinha, em 150 BPM, etc.; 03 – A proposta do do it yourself no
TikTok, que reconfiguram elementos sociais e musicais: com isso, a versão em
bregafunk tornou-se um challenge popular entre os jovens que utilizam o aplicativo. A
hastag #aícalica na rede social TikTok possui um total de 231.8 Milhões de
visualizações, já a hastag #aicalicachalleng possui 195.9 milhões de visualizações 8.
Além da música “Ai Calica”, esse artigo aborda duas imagens recentes que
também envolvem a utilização de armas de fogo e fazem parte da mediação entre
cultura e sociedade. A primeira fotografia refere-se a uma publicação do projeto
social Favelagrafia, que retratou jovens da favela de Turano, no Rio de Janeiro, em
2016. A segunda é datada de 28 de agosto de 2021 e refere-se ao atual presidente da
república brasileira, Jair Messias Bolsonaro segurando, como se fosse um fuzil, um
violão autografado por artistas conhecidos do grande público brasileiro.
As imagens são de momentos distintos, mas fazem parte de uma mesma
sociedade que se reproduz com base no conflito. Apesar de retratarem atores
disferentes, as imagens foram escolhidas por dialogarem com a música no sentido de
possuírem elementos que fazem parte da arte, do conflito de classes, da relação dos
jovens com a música, e da institucionalização social da violência como reprodução
simbólica e real.
7
Videoclipe disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=ARxvUOq-ef8.>. Acesso em: 04 mar.
2022.
8
Dados disponíveis em: <https://www.tiktok.com/discover/aicalica-challenge?lang=pt-BR>. Acesso em:
17 dez. 2021.
6
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Hibridações e mediações
A relação entre música e sociedade, enquanto campo de análise e objeto de
estudo, compreende não apenas as trocas de bens simbólicos, mas também a
mediação entre as organizações e as instituições que se vinculam tanto com a música
quanto com a sociedade. Nesse sentido, não há sociedade sem música (NETTL, 2015)
e, também, não há música sem a interação com/entre as esferas sociais, educativas,
econômicas, hierárquicas, culturais, etc. É nesse contexto que nas sociedades
capitalistas ocidentais não há música sem condições sociais objetivas, como o
desenvolvimento tecnológico, os sistemas de produção, distribuição e de consumo.
Para qualificar esse tipo de relação, Adorno (1998; 2011) trabalha o conceito de
mediação. A mediação não é o reflexo, ou seja, a música não é o espelho da
sociedade, pois a ideia física de reflexo, enquanto refração invertida, diz tão pouco
sobre uma determinada sociedade tanto quanto encobre processos sociais e artísticos
que produzem-na. O sentido de reflexo esconde muito mais do que revela.
Para Adorno,
na medida em que a música não é uma manifestação [Erscheinung] da
verdade, mas efetivamente ideologia, quer dizer na medida em que, na
forma em que é experimentada pelas populações, a música lhes
encobre a realidade social, coloca-se necessariamente a pergunta de
sua relação com as classes sociais (ADORNO, 2011, p. 137).
A música experimentada, produzida e vivenciada no cotidiano torna-se,
portanto, enredada no conflito social, dentro das estruturas de sociedade. Enquanto
da ordem simbólica, ela media formas de relacionar-se, agregar-se, unindo e, ao
mesmo tempo, distinguindo percepções de apreender o mundo. Esse aspecto é
apresentado por Zuza Homem de Mello (2003), em seu livro sobre os Festivais da
Música Brasileira entre os anos 1960 e 1972.
A música vinculada a esses festivais era produzida dentro da lógica da indústria
cultural, ao mesmo tempo em que congregava pessoas entorno de significados sociais
vivenciados. Nesse sentido, “é proibido proibir” não é apenas uma citação de um
trecho de uma música cantada por Caetano Veloso e utilizada como elemento sonoro
pelos Mutantes na música “Caminhante Noturno” no Festival de 1968. Justamente
pelos seus significados, o qual através de processos de hibridação adquire novos
sentidos que remetem ao conflito social, é que “é proibido proibir” foi utilizada pelos
7
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Mutantes em 1968. Ainda hoje “é proibido proibir” é cantada e reinterpretada através
de processos de hibridações.
Em 2019, Daniela Mercury e Caetano Veloso lançam a música “Proibido o
Carnaval”9, em clara referência à música de 1968, mas atualizada aos acontecimentos
sociais brasileiros contemporâneos. Trechos da letra de “Proibido o Carnaval” como
“Tá proibido carnaval”, “tá proibido proibir” e “vai de rosa ou vai de azul” são
referências às posições do governo Bolsonaro, em específico a atual Ministra da
Cidadania, Damares Alves.
Entendemos que o processo de hibridação presente em “Proibido o Carnaval”
media as estruturas sociais e faz emergir questões políticas vinculadas ao momento
social contemporâneo. Contudo, o processo de hibridação pode ser de modo não
planejado ou “resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de
intercâmbio econômico ou comunicacional” (CANCLINI, 2019, p. 22). Ao estudar os
processos de hibridação em cultura, como processos dinâmicos, em movimento e
nunca finalizados, Nestor Canclini afirma que
frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e
coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no
desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio
(uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e
técnicas) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado
(CANCLINI, 2019, p. 22).
Assim, as músicas que são remixadas, retrabalhadas e fazem referências a
processos sociais e artísticos podem surgir de processos perceptíveis ou não
perceptíveis, intencionais ou não intencionais. No caso das adaptações das músicas
para os challenges do TikTok, é necessário que a música possua um apelo rítmico ao
movimento corporal e que seja lançado o desafio ou a coreografia a ser, ao mesmo
tempo, imitada e inovada. Cada coreografia é uma releitura híbrida de processos
intencionais e não intencionais e obedecem a uma estrutura pré-estabelecida que, por
vezes, é tensionada.
Nesse processo, no qual a música é reorganizada, reorientada, aproximando e
ao mesmo tempo distanciando, a música original “sofre” transformações adaptativas.
O funk passa por processos constantes de trocas com os contextos sociais locais, como
9
Videoclipe disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=73Dp_gGsWOw.>. Acesso em: 27 jan.
2022.
8
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no caso da versão em bregafunk recifense, do Mc Kevin do Recife, ou como no caso de
“É proibido proibir”, de Caetano Veloso, de 1968, e “Proibido Carnaval”, de Daniela
Mercury e Caetano Veloso, de 2019. Essas músicas são “processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam
para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2019, p. 19).
Facina, Gomes e Palombini (2016) realizam um trabalho comparativo da
natureza contramétrica, que são utilizadas como bases e/ou loops do Volt Mix, do
Tamborzão e do Beat Box. Os autores afirmam que tal comparação indica que parece
haver
um trabalho de seleção, por uma cultura afro-brasileira, a do funk
carioca, a do electro de Los Angeles, reelaborado por meio de
processos complexos de convergência e divergência em relação às
culturas locais do samba, das macumbas, da capoeira e do axé, cujo
resultado é uma sonoridade afro-brasileira com raízes e reverberações
transnacionais (FACINA; GOMES; PALOMBINI, 2016, p. 78).
É importante salientar que mais do que classificar determinadas músicas como
sendo híbridas, promover a busca pela genealogia musical (FACINA; GOMES;
PALOMBINI, 2016), ou a identificação dos “pais” de determinada manifestação cultural
(RICÓN, 2016), os processos de hibridação ajudam a compreender quais os conflitos,
os consensos e demais aspectos musicais e sociais que estão envolvidos, latentes, ou
silenciados na cultura.
Nesse sentido, há uma contribuição política no estudo dos processos de
hibridações, pois ele “não é sinônimo de fusão sem contradições, mas sim, que pode
ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na interculturalidade
recente em meio à decadência de projetos nacionais de modernização na América
Latina” (CANCLINI, 2019, p. 18).
Omar Ricón (2016) problematiza os estudos dos processos de hibridação e da
produção popular ao trazer os processos de interculturalidade ou de diálogo e
confrontação entre os diferentes. O autor afirma que as culturas populares são
“bastardas [pois] dão conta do sujo, do impuro, do promíscuo porque não tem pai
reconhecido; por isso são herança de muitos pais e imitam de todas as partes para
tentar ter uma identidade ou, ao menos, um estilo próprio” (RINCÓN, 2016, p. 32).
O autor advogada para o abandono do pensamento (moderno/pré-moderno),
essencialista, multicultural (a soma das partes misturadas) e do massivo-midiático
9
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(imperialismo), na direção da assunção de “espaços, intermédios e de mescla, sendo o
mais potente, o ambíguo da interculturalidade e o mais problemático o do massivopopular” (RINCÓN, 2016, p. 33).
Nesse sentido, a assunção e o reconhecimento da bastardia das culturas
populares é o passo para entender e reconhecer a mãe-cultural como o local e o
próprio, e o pai como muitos possíveis e de pouca consciência. O popular é tido como
sujeito subalterno, dominado, excluído ou colonizado, mas ao mesmo tempo que é
baseado nas novas sensibilidades, novas formas de existir coletivas (RINCÓN, 2016).
Em uma mão, o fuzil e na outra, o smartphone
Como ferramenta de utilização de interação social, de criação e de
reconhecimento musical pelos jovens, as plataformas digitais detém um grande
alcance na sociedade contemporânea. Segundo estimativa disponibilizada pelo próprio
TikTok, o aplicativo atingiu a marca de 1 bilhão de usuários ativos no mês de setembro
de 202110. Grande parte dos seus usuários é composto por crianças e adolescentes que
se viram isolados através do distanciamento social imposto a partir da pandemia de
Covid-19.
O TikTok possibilitou interações regidas também pelas regras do algoritmo. É
possível gravar, manusear, editar, samplear, colocar a própria produção musical no
aplicativo. A concepção do do it yourself, vinculada ao consumo rápido, aos likes e
aos compartilhamentos aliados à produção em massa dos produtos mais desoladores da
indústria de hits musicais fugazes (ADORNO, 1998) possibilitou congregar pessoas e
realizar trocas musicais rápidas e efêmeras no distanciamento social.
A efemeridade, a rapidez do consumo e a imposição da indústria cultural nos
esquemas de um comportamento social foram estudados por Adorno (1998) ao analisar
o jazz enquanto produto de consumo em massa. Já com o TikTok, esses aspectos são
retomados, mas entram em jogo nesse campo de disputa três elementos: a. a
intensificação da individualização baseada na concepção do it yourself, através de um
equipamento tecnológico básico é possível criar e remixar músicas, produzir clipes,
etc.; b. de um lado, a produção musical que é descentralizada e permite, por isso
mesmo, a produção de hits não vinculados a gravadoras, e do outro lado, os meios de
10
Dados disponíveis em:< https://newsroom.tiktok.com/pt-br/um-bilhao-de-pessoas-no-tiktok>. Acesso
em: 13 nov. 2021.
10
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divulgação são centralizado nas plataformas e streamings, como o Instagram, TikTok,
o Soundcloud e o YouTube; e c. um último elemento que entra no campo de
mediações é a violência que os jovens brasileiros vivenciam no cotidiano devido ao
distanciamento social causado pela pandemia de Covid-19. O distanciamento social
não significou, no Brasil, a diminuição da violência11.
A experiência de produção musical no TikTok, envolvendo ao mesmo tempo o
corpo e a recriação sonora, é relacionada as chamadas cidadanias celebrities,
estudada por Omar Rincón (2016, p. 41). Para o autor, as cidadanias celebrities
desenvolvem a vontade de estar nas “telas da autoestima pública (meios e redes),
com voz, rosto, história e estética própria”. Apesar de não ter se referindo ao TikTok,
é presente tanto na ideia do do it yourself do aplicativo, quando, nas análises de
Rincón, os seguintes aspectos como condição para a autoestima do sujeito: ser
reconhecido, produzir, ter voz e estar nas telas.
Aliadas às questões de reconhecimento trazida por Ricon (2016) e a do
distanciamento social causado pela Covid-19, no Brasil multiplicam-se as coreografias
no TikTok, nas quais crianças e adolescentes são estimulados a realizarem os
challenges. Dentre os desafios de coreografias que recentemente nos chamou a
atenção e que está relacionado ao tema em discussão é a versão bregafunk de “Ai
Calica” do Mc Kevin do Recife e da Mc Dricka12, composta originalmente pelo Mc
Cyclope em funk13.
Na versão do Mc Kevin do Recife e Mc Dricka há referências à música “De 38
carregado” da Mc Dricka e, indiretamente, a “Anota a Placa” do Tz da Coronel, além
do uso da célula rítmica em loop do bregafunk. Os elementos rítmicos, melódicos e
sociais servem para recriar a composição enquanto processos inacabados de
hibridação.
O bregafunk, ritmo que ganhou projeção com Mc Loma e as Gemeas Lacração, é
intimamente interligado à dança, à música e à coreografia pré-estabelecida nos
challenges produzidos no TikTok. As relações corpo-música, challenges-desafios e a
possibilidade de recriação sonora são intimamente articuladas pelo uso de tecnologia
11
Como por exemplo, a violência policial. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimasnoticias/rfi/2021/04/06/anistia-internacional-denuncia-alta-da-violencia-policial-no-brasil-em-meio-apandemia-de-covid-19.htm.>. Acesso em: 27 jan. 2022.
E a violência contra a mulher. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/violencia-contramulheres-cresce-durante-a-pandemia>. Acesso em: 27 jan. de 2022.
12
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=53H0sTim0gQ.> Acesso em: 13 nov. 2021.
13
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 13 nov. 2021.
11
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e do distanciamento social promovido pela pandemia de Covid-19. Estes são aspectos
que ajudam a pensar na grande quantidade de visualizações e de envolvimento dos
jovens com essas plataformas.
Há processos hibridação (CANCLINI, 2019) e de recriação entre os elementos
que são inseridos cada vez em que a música “Ai Calica” é remixada. A figura abaixo
representa a transcrição de uma célula rítmica utilizada como loop em “Ai Calica” do
Mc Cyclope.
Figura 1: Loop de “Ai Calica” do Mc Cyclope
Fonte: elaboração própria (2022).
Na versão elaborada pelo Mc Kevin do Recife, há a inserção de elementos do
bregafunk e de outras músicas como “de 38 carregado” de Mc Dricka, a mixagem de
timbres de um pente de arma de fogo sendo recarregado e tiros sampleados que
ajudam a compor, ao mesmo tempo, um elemento rítmico, sonoro, melódico e
timbrístico, dialogando não apenas com a letra, mas também com os corpos, os quais
possibilitam a inserção de coreografias. Enquanto que no início da versão do Mc Kevin
do Recife há uma mensagem de incentivo a relação da música com o corpocoreografia, vinculada ao do it yourself, celebrities (RINCÓN, 2016) e a utilização das
plataformas digitais: “lançou o TikTok, fez a camisa de toca. Lança teu passinho,
que’eu reposto o teu arroba” (22s). A célula rítmica que é utilizada como loop em “Ai
Calica” do Mc Kevin do Recife é transcrita abaixo.
Figura 2: Loop de “Ai Calica” do Mc Cyclope e Mc Kevin do Recife
Fonte: elaboração própria (2022).
12
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O terceiro e o quarto tempos do compasso acima remete, ao mesmo tempo, ao
ritmo do bregafunk, como o desenvolvido pela Mc Loma e as Gêmeas Lacração em
“Envolvimento”, lançado em 2018. Já o primeiro e o segundo tempos se apresentam
como variações do primeiro tempo do loop presente em “Ai Calica” do Mc Cyclope,
figura 1. Esses elementos hibridizam-se e são transformados com samples de tiros de
arma de fogo e da música de “38 Carregado”.
É importante salientar que as imagens 1 e 2 são tentativas de transcrição em
partitura ocidental de um dos diversos loops presentes nas músicas completas. Essas
músicas não são vinculadas a essa tradição de escrita, de forma que: a) as células
rítmicas escritas na partitura são uma aproximação da execução de uma tradição
musical que não se restringe ou se limita a tradição escrita, e; b) na própria execução
musical há transformações rítmicas, timbrísticas, melódicas, que ajudam a compor
diálogos sobre os elementos escritos nas figuras 1 e 2.
O processo de hibridação, portanto, envolve elementos sonoros com a inserção
de armas, mas também, simbólicos, regionais e midiáticos para dialogar com os
elementos sociais na atualidade. A versão da música “Ai Calica” de Mc Kevin do Recife
é mais uma das possibilidades inacabadas de interações, pois ela é um processo de
hibridação que se relaciona com a sociedade através de mediações e da incorporação,
na música, de elementos presentes não apenas nos conflitos sociais, mas também nas
formas das juventudes (inter)agir com a música, utilizando as ferramentas
tecnológicas.
Outra questão em que o conflito demostra a sua face hierarquizante em relação
às classes sociais e a sua produção musical, diz respeito à advertência que inicia o
clipe de “Ai Calica” do Mc Cyclope: “toda a história apresentada nas imagens a seguir
são apenas uma representação em forma de arte, nada é real! Todos os adereços e
personagens são fictícios”
14.
Nesse sentido, o videoclipe se apresenta, através de uma advertência, como
uma mediação da realidade e não a realidade em si; ou seja, nas palavras de Williams
(2015), a arte não reproduz a realidade, mas dialoga com ela. Mas por que em algumas
produções musicais é necessário se inscrever uma advertência e em outras não? Não há
nenhuma advertência para que ninguém realize assaltos nos primeiros segundos de
14
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 17 dez. 2021
13
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“Meu Guri” de Chico Buarque15, ou um alerta contra assassinatos no tenso diálogo na
ária “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen” do singspiel “A Flauta Mágica” de
Mozart16.
Se de um lado, temos a música de uma determinada classe social sendo, por
vezes, proibida com o discurso de apologia ao crime, e nesse sentido há uma
necessidade de deixar claro, no início dos videoclipes, que a música é uma música,
que a arte é fantasia, e que os personagens são fictícios. Do outro lado, não é dada
tanta importância para que tipo de experiências cotidianas essas pessoas vivenciam
para que produzam essa música e para que criem “esses personagens”, e não outros.
Com isso, não estamos afirmando que não há processos de violência que
envolvem a música, que a música pode ser utilizada com um viés destrutivo, colonial,
repressor, incitador de violências, e isso está vinculado apenas as camadas mais
subalternas da sociedade. Pelo contrário, Adorno (2011, p. 150), ao estudar o trabalho
motívico, “o triunfo da compulsão à repetição”, e a cadência sonora do compositor
Richard Wagner, afirma que esses elementos se tornam “patente a tendência social, a
denegar o trabalho e o esforço da própria razão em prol de uma violência impactante
e convincente, bem como a revogar a liberdade, situando-a no interior da
irrecuperável monotonia”.
Ao estudar a relação do funk enquanto culturas de sobrevivência, Facina,
Gomes e Palombini (2016) relatam que as balas atiradas contra as populações das
periferias das grandes cidades são respondidas com os sons de tiros tornados percussão
eletrônica. Esses tiros sampleados, transformados em loops e em bases ajudam na
construção das narrativas, as quais contam pontos de vista do cotidiano que não
aparecem nos jornais.
A violência impactante e convincente não são exclusividades de um
determinado gênero musical, época ou classe social. Chico Buarque e Caetano Veloso,
já mencionados neste artigo, sofreram violências institucionalizadas por parte do
Estado com a censura ditatorial que se instaurou no Brasil a partir do ano de 1964.
Assim, afirmamos que são em determinadas músicas, nos quais esses processos de
violência e de opressão, por parte de um grupo social sobre um outro subalternizado,
15
É importante salientar que a cultura é um processo dinâmico e nunca acabadas. O próprio Mozart e o
Chico Buarque passaram por processos de perseguições e vetos a sua obra por parte do Estado
institucionalizado.
16
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=r37l5eNJOR0.>. Acesso em: 17 dez. 2021.
14
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são tão explícitos que é preciso tarjar a música como música, ou seja, como arte
ficcional, como se houvesse alguma música que em certo ponto não seja arte
ficcional.
Pressupõem-se, portanto, um preconceito cognitivo, que o pobre, o negro e o
morador de favela não são capazes de pensar abstratamente. Eles apenas reproduzem
o cotidiano. São pré-modernos, irracionais, voltados para os trabalhos manuais e
inaptos ao pensamento abstrato e reflexivo. Assim, “Construiu-se toda uma percepção
negativa dos escravos e de seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes,
perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e
piadas preconceituosas” (SOUZA, 2019, p. 180).
É ponto fundamental dessa discussão que a produção musical é entendida como
mediada por relações de classe. A mãe colocar um punhal na mão da sua própria filha
e ordenar um assassinato17, ou o assalto incentivado pela própria mãe não fariam
parte das tramas reais das classes sociais que consomem a música de Mozart e Chico
Buarque. É dada, para algumas produções musicais e compositores, a possibilidade de
a música ser do domínio da imaginação, mas também de tratar de temas cotidianos,
de conflitos políticos, da ordem do dia, de a música ser contestação, de revolta, de
contar o real e/ou o imaginário. Para outros, é pré-determinada a única possibilidade
de não ser ficcional, ou seja, de ser do real e do braçal.
A ordem vigente e o poder absolutista real são contestados por meio dos ideais
revolucionários franceses no singspiel fantástico em Mozart. Em Chico Buarque, o eulírico se transforma em uma mãe caridosa e ingênua, que acalenta e até certo ponto
incentiva o filho a cometer crimes. Mas em “Ai Calica”, a possibilidade da fantasia é
proveniente não da narrativa musical em si, mas dessa advertência que, se
transformando em elemento musical, faz emergir a questão de como é vista a
(in)capacidade de pensamento abstrato e reflexivo de uma determinada classe social
que produz e consome essa música.
Concordamos com Adorno (2011) ao afirmar que as questões estéticas, técnicas
e sociológicas da música se acham indissolúveis e constitutivamente mescladas entre
si, tanto no fazer musical quanto na recepção dela mesma. No Brasil, ela se apresenta
como um pré-conceito cognitivo de classe sobre a (im)possibilidade artística que limita
Da Ópera “A flauta mágica”. Ária da Rainha da Noite. Letra original: “Fühlt nicht durch dich Sarastro
Todesschmerzen, So bist du meine Tochter nimmermehr”. Tradução “Se Sarastro não sentir as dores da
morte por você/Então nunca mais você será minha filha”.
17
15
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a capacidade de ser, de produzir abstrações e ficções a partir da mediação com a
realidade.
Mediações, arte e a realidade
Criado em 2016, o projeto Favelagrafia lançou um conjunto de imagens visando
um recriar do olhar da cidade sobre a favela. Nesse sentido, o projeto capacitou
moradores e distribuiu telefones celulares para que eles pudessem fotografar o
cotidiano. Uma das fotos, captada por Anderson Valentim e divulgada no perfil
@favelagrafia no Instagram, conseguiu repercussão na mídia nacional e internacional.
A foto foi feita na favela do Turano, Zona Norte do Rio de Janeiro, e retrata cinco
jovens que fazem parte de um grupo de jazz com rostos envoltos por camisas,
segurando instrumentos musicais como se fossem armas. A legenda da publicação diz:
“alguns lutam com outras armas”.
É importante ressaltar que todos são músicos experientes e que pela legenda da
imagem é possível deduzir que as armas são transformadas em instrumentos musicais.
A ideia da abstração pela transformação da violência em música ganhou ampla
repercussão nacional e internacional, sendo repostada por diversas celebridades da
música, dentre elas o produtor musical e ator norte americano Snoop Dogg. A
publicação original é apresentada a seguir:
Figura 3: adolescentes na Favela do Turano,
RJ
Fonte: Favelagrafia (2016).
16
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A fotografia é do domínio da arte, e possui um duplo aspecto: é do real e do
abstrato. Ela consegue mediar e, ao mesmo tempo, agenciar símbolos, concepções e
preconceitos de classe. O cobrir a face com camisas e segurar instrumentos musicais
como se fossem armas, remetem à imagética da violência. Ao mesmo tempo em que
há um aspecto de territorialização do real, com as escadarias apertadas e na estética
das casas, os instrumentos musicais nas mãos desses músicos, remetem, também, a
instrumentos de superação, de situações de vulnerabilidade através da música, de
profissionalização e da possibilidade de ser músico. Os personagens dessa trama sabem
manusear os instrumentos que tocam por isso os instrumentos musicais superam a
dicotomia realidade e ficção, mediando à construção de um pensamento duplo: ficção
e não ficção.
É importante ressaltar que há outras camadas nesse tecido de interpretação.
Não há nenhuma advertência no sentido de alertar que a imagem é uma
“representação em forma de arte”, como no videoclipe de “Ai Calica” do Mc Cyclope.
Os instrumentos musicais nas mãos, juntamente com a informação de se tratar de um
grupo de músicos de jazz, podem ajudar na não “necessidade” de advertência de que
se trata de uma peça artística. É nessa direção que a mediação se opera a partir dos
significados sociais dados, como por exemplo, ser pertencente a um grupo de jazz (e
não de funk), ou da legenda da foto, a qual se articula na construção de elementos
que remetem à possibilidade de violência e, ao mesmo tempo, de fazer música.
A fotografia, enquanto arte(fato) que reproduz agentes culturais, instrumentos
musicais e músicos, é um convite para recriar a imagem construída socialmente sobre
a arte, a fotografia, a favela e os seus moradores. Segundo o site do projeto
Favelagrafia, a ideia do projeto é mostrar que “ela [a favela] não é sinônimo de
tráfico, arma e perigo. É potência, talento, arte e criatividade” (FAVELAGRAFIA,
2016). Como potência, ela é, também, a mediação que possibilita a superação da
dicotomia ficção-realidade.
A próxima figura é mais recente do que a anterior. Trata-se de reprodução
jornalística do ano de 2021 e ajuda a pensar que o movimento contrário ao exposto no
parágrafo anterior, também, é possível: a arte transformar-se em instrumento de
mediação da violência e da repressão.
A figura 4 foi capturada pelos diversos jornais brasileiros a partir de um vídeo
reproduzido pelas mídias nos canais oficiais do Governo Federal do Brasil. Em um
17
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evento no estado de Goiás, no mês de agosto de 2021, o presidente Jair Bolsonaro
recebeu um violão repleto de autógrafos de personalidades da música sertaneja como
Leonardo, Gusttavo Lima, e Amado Batista. O jornalista Zé Barbosa Júnior, em
reportagem sobre o ocorrido, fez o seguinte relato:
para não surpresa de quase todos, ao receber o instrumento, ao invés
de dedilhá-lo (o que seria esperado de qualquer ser humano normal e
decente), o candidato a führer brasileiro colocou o violão numa posição
de fuzil e fez seu tradicional sinal de ‘fuzilar os inimigos’ (BARBOSA
JÚNIOR, 2021,s.p.).
A figura a seguir foi retirada da reportagem da Revista Fórum, de 30 de agosto
de 2021 (BARBOSA JÚNIOR, 2021).
Figura 4: presidente Bolsonaro segura violão autografado como um fuzil
Fonte: Revista Fórum (BARBOSA JÚNIOR, 2021).
Tanto o relato jornalístico de Barbosa Júnior (2021) quanto a figura 4 têm
relação com vários acontecimentos que envolvem o presidente. Bolsonaro, por
diversas oportunidades, utilizou-se de meios oficiais para defender a ditadura militar
brasileira, ocorrida entre os anos de 1964 e o final dos anos 1980. Além disso, o
presidente tem adotado a postura de defender as atrocidades, as torturas, e as mortes
de opositores ao regime militar ditatorial, bem como as chacinas decorrentes das
operações policiais ocorridas, atualmente, no cotidiano das favelas das grandes
cidades brasileiras.
O incentivo ao uso de armas de fogo presente no discurso governamental, a
facilitação da sua aquisição e de seu porte, e a utilização de fuzis tanto por parte da
Polícia Militar quanto do crime organizado ajudam a compreender o estado de guerra,
no qual é submetida a população hoje em dia.
18
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Foi também neste contexto, em data próxima ao evento retratado na figura 4,
que o presidente chama de “idiota” quem deseja comprar comida. Ao ser questionado
sobre o feijão, que faz parte da dieta cotidiana do brasileiro, o presidente da
República diz que é necessário, antes de tudo, comprar um fuzil:
Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será
escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que
comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o
saco de quem quer comprar’, disse Bolsonaro a apoiadores em frente
ao Palácio da Alvorada nesta sexta-feira, 27 (GALVANI, s.p., 2021).
Este caso é simbólico pelo contexto feijão/fuzil, mas também por estar inscrito
no violão, dado ao presidente Bolsonaro, os nomes de artistas da música sertaneja que
são extremamente populares entre os jovens brasileiros 18. É nesse sentido que o gesto
em instrumento musical autografado com a assinatura de músicos com alta
repercussão no cenário cultural nacional se torna simbólico.
A ação de segurar o violão como arma é, portanto, uma ação política, mas
também tem uma intenção cultural. O presidente da República transforma um violão,
com autógrafos de artistas brasileiros, em um fuzil e o aponta na altura da cabeça de
uma pessoa. A arma é simbólica, sua munição e seu alvo também são, mas os seus
tiros ajudam na eliminação de subjetividades, ao passo em que tentam legitimar os
tiros reais que matam os jovens moradores das periferias e das comunidades, como
problematizado na próxima seção deste artigo.
A cultura e a mediação
Entendemos que a cultura é uma ação que age na construção de subjetividades
coletivas e individuadas, as quais podem se encontrar em todos os níveis de produção
e de consumo. É neste sentido que cultura está relacionada a processos de expressão,
mas também a maneiras de produzir bens e relações sociais (GUATTARI; ROLNIK,
1996).
Ao transformar os instrumentos musicais em armas, tanto o projeto social
Favelagrafia quanto Bolsonaro não apenas agem no fato em si, mas no que está por
trás desses tipos de ação. A música e a arte são objetificadas no imagético que estão
18
Como um dos indicativos da popularidade desses artistas entre os jovens brasileiros, o número de
seguidores desses três artistas plataforma na Instagram chega a casa dos 60 milhões na data de
22/10/2021.
19
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presentes nos instrumentos musicais através dos valores que damos e aos significados
que são atribuídos e compartilhados. É por isso que um instrumento musical
autografado tem um valor e um significado diferente de outro instrumento com as
mesmas características, mas não autografado.
É também pelo compartilhamento de significados de hierarquias entre classes
sociais e suas produções musicais, que mesmo as suas letras possuindo menções a
crimes, como em Mozart, em Chico Buarque e em Mc Cyclope, somente nesta última
há a advertência para que a arte seja considerada ficcional.
Isso também está relacionado à construção das mediações entre a sociedade e a
cultura. Não é somente preciso que a violência se torne ordinária nos samples, nos
timbres, e nos ritmos dos videoclipes de jovens negros e favelados segurando fuzis, na
repetição motívica em Wagner ressaltada por Adorno, etc., pois a violência já está nas
periferias e é sentida nas peles negras e pobres da sociedade brasileira. É preciso que
a violência seja legitimada por significados compartilhados nas cotidianidades e
institucionalizados nas instâncias de poder.
Nesse aspecto, Williams (2015, p. 05) afirma que “a cultura tem dois aspectos:
os significados e direções conhecidos, em que seus integrantes são treinados; e as
novas observações e os significados que são apresentados e testados” (WILLIAMS,
2015, p. 05). Testar a transformação em fuzil de um violão simbólico autografado, e
transmitir isso em um canal estatal é trazer para o cotidiano da sociedade e, ao
mesmo tempo, encobrir a discussão sobre o processo armamentista a partir de valores
simbólicos vinculados às classes sociais.
O Estado, através do representante do governo federal, assume uma posição
enquanto um dos agentes de disputas no campo da arte, da violência, e no uso de
armas de alto calibre. Ao refletir sobre a dialética do encobrir-revelar na mediação
música e classes, Adorno (2011, p. 137) expõe que “na medida em que a música não é
uma manifestação [Erscheinung] da verdade, mas efetivamente ideologia, quer dizer,
na medida em que, na forma em que é experimentada pelas populações, a música lhes
encobre a realidade social”.
As armas de grosso-calibre não são novidades nas diversas instâncias da cultura.
Há muito tempo povoam as produções da indústria cultural: nos jogos de videogame
como “Counter-Strike” e “Free Fire”, de onde são retirados alguns samples para
compor músicas; nos seriados populares entre a juventude como “La casa de Papel”;
20
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nas telas de cinema, em filmes de guerra como em “Rambo” 19 e nas premiações de
Hollywood como em “O Sniper Americano” ou na sequência do premiado “Agente
007”; ou nas produções do cinema nacional como em “Tropa de Elite” e em “Cidade
de Deus”.
Essa presença não se resume na produção cultural, elas estão também nos
clubes de tiro, nas práticas esportivas de caças, nas espetacularizações policialescas,
nas apreensões de armas e drogas expostas em horário nobre pelos canais de televisão
e compartilhadas nos grupos de WhatsApp, etc.
Contudo, ao transformar o violão autografado em arma, em veículo oficial e
estatal tenciona-se a mediação, agenciada pelos símbolos de imagens no ordinário do
cotidiano social. O presidente não apenas atua com decretos para flexibilizar a
aquisição e o uso de armas, ele não apenas ajuda na questão do armamento da
população brasileira financiando a pesquisa no setor bélico nacional através de linha
de créditos. A questão é que, além dessas ações, ao transformar o violão em arma, ou
fazer gesto de arma nas mãos de crianças, Jair Bolsonaro age para que a indústria
armamentista também se insira no sentido comum, na ordem do dia e no
compartilhado socialmente através desses símbolos.
O corpo é elemento mediador da música e este sentido está presente nas
coreografias do challenger de “Ai Calica” que retratam uma pessoa recarregando um
pente de bala de um fuzil, nos corpos dos músicos segurando seus instrumentos
musicais como se fossem armas e no presidente segurando um violão como se fosse um
fuzil. Apesar de ser o mesmo instrumento de violência corporificado e mediado pela
música, Bolsonaro faz o que nem o funk “Ai Calica” e nem a coreografia do TikTok não
fazem pela impossibilidade de serem reais.
Rincón (2016, p. 28) afirma que “no simbólico e corporal, o sujeito popular
encontra a cartasse, o jogo, a provocação, o humor e o excesso emocional”. Isso
vincula-se não apenas na relação das pessoas com as coreografias, mas também nas
posições dos corpos na publicação do projeto Favelagrafia. Já no violão autografado e
usado como arma apontada para um sujeito imaginário, o corpo do presidente legitima
um jogo, uma provocação, um humor e um excesso emocional na direção da morte, do
real, das operações policiais nas comunidades. O humor, o corporal e os sentimentos
19
Filme de 1982 ressaltava o herói americano contra os vietcongs. Um de seus posters trazia o ator
Sylvester Stallone segurando uma metralhadora automática, no outro, ele segurava uma bazuca lançafoguetes em primeiro plano, enquanto trás do ator, o mundo estava em chamas.
21
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dialogam com a música não apenas enquanto simbólico, mas como mediador de uma
violência que é cotidiana.
No videoclipe, o elemento real é cerceado nos primeiros segundos de exibição
pela advertência de que é uma “obra de ficção”. A impossibilidade de ser real na
fotografia do projeto @favelagrafia se dá pela mediação na posição dos corpos, pela
legenda da imagem e pelos simbolismos dos músicos segurando os seus instrumentos
musicais. Essa mediação tensiona não apenas os significados, os gestos, os samples, os
financiamentos e o acesso à arma de grosso calibre, mas também ressignificam a
música, os instrumentos musicais, a violência, a posição dos corpos mediante a
produção artística. Portanto, tensiona-se até a própria vida: menos feijão, menos
restrições para a aquisição de armas e mais financiamento para a indústria
armamentista brasileira, mais fuzis apontados para as cabeças de pessoas negras.
A música e a cultura são parte da organização social que são afetadas e afetam
pelas/as transitorialidades econômicas, políticas, científicas e sociais. Neste caso,
tendem para uma mediação nos processos de hibridação tanto das necessidades de
desenvolvimento humano, através da expressão artística (violão), quanto para as
necessidades humanas básicas de viver (feijão e não ser morto), em detrimento da
apropriação do instrumento de morte (fuzil) e de toda uma produção musical
hierarquicamente considerada incapaz de operar na ordem do abstrato.
Desta forma, esses elementos vêm legitimar e, ao mesmo tempo, mascarar
(ADORNO, 1998; 2011) a violência sofrida no cotidiano das juventudes periféricas
brasileira. Há, de uma vez só, uma dupla chacina através desse processo contraditório
de tensionamento do conflito social: o assassinato do corpo pobre/negro/favelado e
da sua subjetividade/criatividade/cultura.
Considerações finais
Se é na música em que esses elementos são tensionados, é na própria música
que o questionamento a esses elementos encontra um terreno propício ao seu
desenvolvimento. Nesse sentido, a problemática da violência que sofrem os jovens,
também, deve ser um aspecto a ser pensado pela/na da música. Além da violência
simbólica, os músicos também são os sujeitos que sofrem com as balas perdidas que
ficam alojadas no violino20, ficam presos por dois meses por engano21, ou são mortos
20
Disponível
em:
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/15/violino-serviu-de-
22
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enquanto estão no palco, como no caso do Mc Daleste que foi baleado durante um
show realizado em Campinas, SP22.
Os casos citados possuem em comum a classe, a cor/raça, o local de moradia,
além da música. São pobres e moradores de periferia das grandes cidades brasileiras.
O violão autografado por artistas sertanejos foi transformado nas mãos de Bolsonaro
em um instrumento de assassinato dessa população e do seu desejo de viver.
Para os jovens, que em sua grande maioria aprendem música em projetos
sociais, o desejo de viver já é um ato de ruptura com esse ciclo histórico de
agenciamentos da violência que impregna nos corpos negros e favelados um modo de
ser social, de interagir entre si, e também de relacionar-se com os equipamentos
estatais. Nesse sentido, essas relações estão conectadas aos aspectos culturais
territoriais, como os presentes nas duas versões da música “Ai Calica”.
O desejo de viver já é um ato de ruptura do ciclo histórico, que mediam nos
corpos negros e favelados um modo de ser social e de interagir, o qual ditam que sua
música é incapaz de ser fictícia, rompida apenas por uma advertência. Nesse sentido,
o processo de rompimento do estereótipo do adolescente pobre e favelado, incapaz de
pensar abstratamente e de produzir música-ficção, é um movimento que entra
diretamente em choque com as armas de imposição, bem como seus modos de agir
sobre esses corpos, através do braço armado estatal que, simbolicamente, foi
representado pelo presidente ao segurar o violão como um fuzil. Transformado em um
elemento de mediação de subjetividades, o fuzil aparece cotidianamente na mão do
Estado ou do crime para que o jovem negro baixe a cabeça e sofra os mais diversos
tipos de violência.
É necessário um mover-se musical no sentido difuso, que propicie a quebra
desse ciclo reduzido de possibilidades, tendo a chance de construir com a música um
caminho não maniqueísta e que não se resuma a tornar-se bandido e nem ser vítima
das ações policialescas estatais. Com isso, propiciar uma possibilidade de ser, de
amar, de expressar-se no mundo e de sentir o mundo. Essa maneira de ser não é
independente de outras, mas convive em jogos, ao mesmo tempo, de poder, tensão,
escudo-e-me-salvou-de-bala-perdida-no-rio.ghtml.>. Acesso em: 13 de março de 2022.
21
Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/dois-meses-apos-ser-preso-por-enganovioloncelista-da-orquestra-de-cordas-da-grota-se-apresenta-em-recital-ainda-me-sinto-preso-rv1-124724736.html>. Acesso em: 13 de março de 2022.
22
Disponível
em:
<http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/musica/noticia/2013/07/videomostra-funkeiro-levando-tiro-em-palco-durante-show.html.>. Acesso em: 13 de março de 2022.
23
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contradição e complementaridade.
Entendemos a música “Ai Calica” e a figura 3 que retrata os músicos na
comunidade do Turano, RJ, como possibilidades de ser e, ao mesmo tempo,
possibilidades não ser. (Des)territorializando e reterritorializando concepções, pois as
possibilidades de ser em comunidades não se resumem a ser bandido ou ser morto pela
polícia, como se esses espaços não fossem ocupados por pessoas reais, com irmãos,
pais, filhos que compram no supermercado da esquina e ajudam os vizinhos no final de
semana, etc.
A música como objeto do sentir, do ver, e principalmente, do denunciar e do
agir pode congregar a possibilidade de um outro sentido de ver, de agir e,
principalmente, de ser no mundo. Longe de uma concepção salvacionista,
intervencionista e concentrada em personagens individuais, o que estamos advogando
são mediações que promovam a assunção das contradições e dos tensionamentos
sociais presentes na música e que não reduzam as possibilidades de ser musical dos
sujeitos a essas contradições.
Advogamos por um devir que entenda os traços comuns entre os diferentes
processos de musicais e que analise a existência da subjetivação mediada pela
violência não como um problema de apenas de setores específicos da sociedade.
A problematização da existência da violência consiste em um processo de
desvelar o preconceito contra a produção cultural e social das classes subalternizadas.
Guattari e Rolnik (1996) falam em devir que compreenda um sentir um
calor nas relações por determinada maneira de desejar, por uma
afirmação positiva da criatividade, por uma vontade de amar, por uma
vontade de simplesmente viver ou sobreviver, pela multiplicidade
dessas vontades. [...] a relação de um indivíduo com a música ou com a
pintura pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade
inteiramente novo (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 47).
É preciso ir ao lugar das incertezas e dos devires, em que o fazer artístico é um
devir a ser. Este lugar, ou não lugar, reside no centro não logocêntrico, mergulhado
nos lugares de viver históricos de resistência que tem a potencialidade de desencadear
os processos de hibridações, ou seja, de sentir e reinventar o mundo.
Esses entrelugares repletos de abastardias (RINCÓN, 2016) não completamente
devastados pelas dominações de significações capitalísticas se apresentam nos
processos sociais. Por isso, não são lugares fixos, mas potencialidades criativas e
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transformadoras que, apesar de serem subjugadas com a lógica dominante, resistem e
hibridam-se. Eles demonstram sua potencialidade de dinâmica criativa no Brasil dos
lugares massacrado pelo braço forte do Estado, mas que, ao mesmo tempo, resiste nas
formações das intersubjetividades. Assim, está morrendo, renascendo e resistindo às
proibições policiais e, simultaneamente, sendo objeto de gozo e felicidades não
reacionárias; está no interior do “nós-líricos” coletivo e, ao mesmo tempo, eus
maternos e fortes na música Afroameríndia da banda Coisaluz23:
Nascemos sem saber quem somos/De onde viemos, pra onde
vamos/Determinam
até
o
que
gostamos/Quem
amamos,
admiramos/Mas, retorno aos meus ancestrais/Pra conhecer o que me
fez Eu/ Uma história quase que perdida/Apagada, esquecida/ Sem
entender porque fui preterida/Vou cantar, ganhar a vida/Traz de volta
pra si/Traz todo o poder que sempre foi teu.
Assim, esses entrelugares não são um território específico ou uma reconstrução
de um passado, mas entrelaçamento de lugares de passados marcados por conflitos de
classes e hierarquias sociais, e que mediam as relações sociais com a música.
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Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=uaTc4qJwOgc. >. Acesso em: 17 dez. 2021.
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Recebido: 10 Fev 2022
Aceito: 17 Mar 2022
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