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Fuzilamento Dos Inimigos Com Um Violão

Revista Inter-Legere

Resumo: o campo de pesquisa deste artigo é a Sociologia da Música a partir da problematização da questão cultural e sua relação com a sociedade brasileira contemporânea. Para isso, foi analisada a versão do challenge da música “Aí Calica” no TikTok e de duas imagens, a primeira publicada na plataforma do Instagram e a outra nos canais oficiais do Governo Federal. Buscamos desvelar os sintomas de uma associação entre a hibridação presente na música, na tecnologia e na violência através da incorporação e da normatização da imagem e do som do fuzil. Dessa forma, ao reforçar o comum e o ordinário da violência através do agenciamento de culturas, também são intensificados e legitimados os conflitos contra negros, pobres e moradores de periferias. Pode-se também através da cultura, construir um dos espaços para se pensar e se fazer uma outra forma de agir e de ser sociedade que não negue o conflito e a violência, mas que os problematizem também na música.

INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 O FUZILAMENTO DOS INIMIGOS COM UM VIOLÃO: hibridação, mediação, tecnologia e violência na música do Brasil contemporâneo THE SHOOTING OF ENEMIES WITH A GUITAR: hybridization, mediation, technology and violence in contemporary Brazilian Music Andersonn Henrique Araújo1 UERN: https://orcid.org/0000-0002-2711-0870 DOI: 10.21680/1982-1662.2022v5n33ID28031 Resumo Este artigo parte da Sociologia da Música para pensar de maneira transdisciplinar a questão cultural e sua relação com a sociedade brasileira contemporânea. O objetivo é refletir sobre aspectos que envolvem a violência, as juventudes, as classes sociais e a relação com as tecnologias na produção musical. Como procedimento metodológico, analisa-se a versão do challenge da música “Ai Calica” no TikTok e duas imagens que envolvem o corpo, a música e a sociedade. A primeira figura é retirada da plataforma do Instagram e a outra está amplamente divulgada nos canais oficiais do Governo Federal. Como fundamentação, utiliza-se a mediação (ADORNO, 1998; 2011) e processos de hibridação (CANCLINI, 2019). Busca-se desvelar os sintomas de uma associação entre a hibridação presente na música, na tecnologia e na violência através da incorporação e da normatização da imagem e do som do fuzil, observando a produção artística e musical. As discussões referentes a este trabalho focam nos processos de hibridação da música e da cultura, enquanto produção social. Dessa forma, conclui-se que ao reforçar o comum e o ordinário da violência através do 1 E-mail: [email protected] 1 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 agenciamento de culturas, também são intensificados e legitimados os conflitos contra negros, pobres e moradores de periferias. Advoga-se para a construção de espaços para se pensar e se fazer uma outra forma de agir e de ser sociedade que não negue o conflito e a violência, mas que os problematizem também na música. Palavras-chave: Sociologia da Música. Processos de hibridação. Mediação. Tiktok e hibridação. Sociologia da Cultura. Abstract Through the sociology of music, this paper aims to reflect on culture and its relationship with contemporary Brazilian society by using a transdisciplinary thinking. Our goal is to examine aspects that involve violence, youth, social classes, and the relationship with technologies in music production. As a methodological procedure, we analyze the song version used in the Ai Calica TikTok challenge as well as two images that involve body, music, and society. The first image is taken from Instagram while the other one has been widely spread by the Federal Government official channels. As a theoretical foundation, we utilize mediation (ADORNO, 1998; 2011) and hybridization processes (CANCLINI, 2019). We seek to unveil the symptoms of an association between musical hybridization, technology, and violence through the incorporation and normalization of the rifle’s image and sound, thus observing artistic and musical production. Discussions concerning this work focus on the hybridization processes of music and culture, as a social production. In such manner, we conclude that by reinforcing common and ordinary aspects of violence through cultural agency, conflicts against Black population, the poor, and residents of the periphery are also intensified and legitimized. We advocate for the construction of spaces where it is possible to think of and make new ways of acting as and being a society that does not deny conflict and violence, but instead problematizes these topics also in music. Keywords: Sociology of music. Hybridization processes. Mediation; TikTok and hybridization. Sociology of culture 2 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 Introdução A cultura e a música são processos sociais, por vezes tensionados, inquietantes e contraditórios, que agem por complementaridades e conflitos. Elas são do domínio das produções humanas, as quais mediam e são mediadas pelos processos sociais, políticos e econômicos. Ao mesmo tempo em que a violência é vista como um fator negativo nas sociedades, ela também corresponde a uma demanda de reprodução social baseada nos preconceitos raciais e no conflito de classes (SOUZA, 2019; 2020) que, em nossa concepção, mediam não apenas as subjetividades, mas também as relações sociais através dos significados musicais. O que norteia este artigo não está na questão utilitarista da música (para que serve a música); pelo contrário, entendemos que a música é um instrumento social e do artista. Enquanto questão de investigação, pretendemos entender como a música e seus elementos têm sidos apropriados por grupos que tensionam as formas de violência a partir da mediação e da hibridação. Como hipótese, entendemos que a violência tem servido para legitimar a contradição e o tensionamento entre classes, produzindo, ao mesmo tempo, formas de dominação hierarquizantes em relação à música produzida pelas camadas mais populares da sociedade brasileira. Esse modo de ser da sociedade não se reflete na música, mas tem-na como uma de suas manifestações que mediam esse modo de ser. Como demonstrado por Bourdieu (1979; 2009) e problematizado, a partir da sociedade brasileira, por Jessé de Souza (2019; 2020), a classe, nesse trabalho, não é entendida apenas como relações econômicas. Classe social diz respeito tanto às formas de transmissão de um determinado capital cultural e escolar que são incorporados quanto à dominação legitimada historicamente por gostos refinados, pela educação familiar, pelo nível de escolarização, e pelo acesso a bens culturais, simbólicos e materiais. A classe social se transforma, assim entendida, em hierarquias de valores intelectuais e promovem as (in)aptidões em relação à competição social a partir da “lógica própria de um sistema que tem por função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem social” (BOURDIEU, 2020, p.63). Se por um lado os conceitos de cultura e o de classe possuem historicamente lógicas hierarquizantes, como em burguesia e proletariado, alta cultura e cultura ordinária, etc, quando interconectadas, por outro lado, a cultura e a classe não 3 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 apenas se relacionam com a posição social, mas também são mediadoras de experiências sociais (ADORNO, 1998). Adorno, ao problematizar a relação entre a música e os extratos de classe em seu “Sociologia da Música” (2011), advertiu que em uma mesma sociedade é impossível pensar na relação direta de causa-efeito entre a música e a classe social. Ele entendia que a mediação não se configura uma equação matemática de razão, de somatória, ou de exclusão. Para problematizar essa questão, Adorno utilizou a comparação entre Mozart e Beethoven, que conviveram em um período histórico próximo, compondo músicas em estilos parecidos, interconectadas por técnicas muito em voga na corte vienense. Cada compositor, porém, participava das estruturas de classe de maneira diferente e possuía uma posição social distinta em relação ao outro: Mozart não conseguia participar das estruturas sociais de forma tão independente quanto Beethoven. O compositor da “Flauta Mágica”2 era dependente de patronatos; Beethoven, ao contrário, apesar de ter possuído cargos nas cortes, em face do seu contexto social, atuou de maneira mais independente, vendendo e publicando suas próprias composições. Adorno (2011, p. 140) tinha o entendimento de que a posição social em que um indivíduo se encontra não é, “em absoluto, direta e ininterruptamente transposta para a linguagem musical”. Contudo, ao fazer a análise da trajetória de compositores ligados à produção musical da música de concerto, vinculada a um fazer burguês (Bach, Mozart, Beethoven, Brahms, Strauss, Brahms), Adorno incorre no reducionismo em achar que toda a produção musical europeia é vinculada a um fazer musical burguês. “Em geral, os compositores eram oriundos ou da classe média pequenoburquesa ou da própria corporação dos músicos” (ADORNO, 2011, p. 141). Nesse sentido, uma amostra pequena que representa os compositores do cânone musical europeu, tal qual a escolhida por Adorno, não representa em sua totalidade a produção musical europeia. Ao tentar compreender a relação entre sociedade e produção musical, Adorno (2011) aprofundou-se na questão dos extratos sociais pela própria amostra reduzida dentre um universo de compositores, sem considerar os compositores europeus, que não estavam diretamente ligados à tradição musical escrita voltada para o consumo da 2 Singpiel composto por Mozart, que estreou em 1791 no teatro popular vienense Theater auf der Wieden. A obra possui importantes características com a Revolução Francesa, como no diálogo no qual Sarastro fala para Tamanino: mais que um príncipe, [és] uma pessoa. 4 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 corte e/ou da burguesia. Se por um lado, Adorno e sua reduzida amostra de compositores limitam-no em sua análise da música, por outro lado, ele percebe que, mesmo entre esse número limitado, a conexão entre extrato social e a produção musical não pode ser considerada uma relação matemática de razão de causa/efeito, reflexo ou de um simples espelhamento. A concepção de mediação compreende o contraditório na relação entre música e extratos sociais, pois ela é capaz de racionalizar e, ao mesmo tempo, tornar inconscientes os aspectos do cotidiano. Nesse contexto, há a necessidade “de fazer a mediação de tais experiências com os fatos concretos musicalmente imanentes” (ADORNO, 2011, p. 149). Se a sociedade e a cultura mediam as experiências musicais, a tecnologia empregada na música também é um fator presente nesse campo. O desenvolvimento tecnológico já era estudado por Weber (1864-1920) a partir das transformações na utilização de materiais empregados na construção do piano e do violino. A utilização de novas ferramentas tecnológicas possibilitou também o desenvolvimento das relações harmônicas, melódicas e de acústica dos instrumentos musicais (WEBER, 1994). Nesse sentido, entendemos que a tecnologia é um dos agentes de mediação na relação sociedade-música. Na atualidade, a tecnologia tem permitido com que a produção musical não se restrinja as grandes indústrias e aos centros culturais. Por um lado, é através dessas mesmas ferramentas tecnológicas que são incorporadas às coreografias dos fuzis nos videoclipes e nos challenges3; e do outro lado, com o fuzil real4 é que braço armado do Estado ceifa vidas seletivamente. Este trabalho analisa a música “Ai Calica” em duas versões: a primeira do Mc Cyclope em funk carioca5, e a segunda versão do Mc Kevin do Recife e da Mc Dricka em bregafunk recifense6. Ambas as versões estão presentes no YouTube, e ambas originaram o challenges e coreografias compartilhadas no TikTok. O funk carioca é pensado enquanto um gênero de música eletrônica dançante nascida no final dos anos de 1980. Sua circulação ocorre livremente na internet, na troca de CDs e DVDs piratas (PALOMBINI, 2014), e mais recentemente nos sites de 3 Os challenges podem ser coreografias ou desafios que são compartilhados não apenas no TikTok, mas também em outras plataformas como Instagram e Facebook. 4 Não cenográfico, mas ainda sim real e simbólico. 5 Videoclipe disponível em: < https://youtu.be/42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 01 fev. 2022. 6 Videoclipe disponível em: <https://youtu.be/53H0sTim0gQ.>. Acesso em: 01 fev. 2022. 5 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 produção e divulgação musical como o Soundcloud e YouTube. A música é construída por meio dos DJs, enquanto fornecedores e produtores de materiais sonoros, e dos MCs nas performances ao vivo repletas de improvisação e interação com o público (PALOMBINI, 2014; FACINA; GOMES; PALOMBINI, 2016). A música “Ai Calica” foi escolhida dentro desse universo por atender aos seguintes critérios: 01 – A grande circulação que a música possui nas mídias digitais, que tem como um dos seus reflexos a quantidade de visualizações. Na versão escolhida, publicada em 18 de maio de 2021 7, a música possui mais de três milhões e trezentas mil visualizações. Em uma versão publicada em 09 de março de 2021, do Mc Cyclope e FP do Trem Bala, a música possui um milhão e duzentas mil visualizações; 02 – A grande quantidade de versões dessa música, como as versões em arrocha, em bregafunk, funk rasteirinha, em 150 BPM, etc.; 03 – A proposta do do it yourself no TikTok, que reconfiguram elementos sociais e musicais: com isso, a versão em bregafunk tornou-se um challenge popular entre os jovens que utilizam o aplicativo. A hastag #aícalica na rede social TikTok possui um total de 231.8 Milhões de visualizações, já a hastag #aicalicachalleng possui 195.9 milhões de visualizações 8. Além da música “Ai Calica”, esse artigo aborda duas imagens recentes que também envolvem a utilização de armas de fogo e fazem parte da mediação entre cultura e sociedade. A primeira fotografia refere-se a uma publicação do projeto social Favelagrafia, que retratou jovens da favela de Turano, no Rio de Janeiro, em 2016. A segunda é datada de 28 de agosto de 2021 e refere-se ao atual presidente da república brasileira, Jair Messias Bolsonaro segurando, como se fosse um fuzil, um violão autografado por artistas conhecidos do grande público brasileiro. As imagens são de momentos distintos, mas fazem parte de uma mesma sociedade que se reproduz com base no conflito. Apesar de retratarem atores disferentes, as imagens foram escolhidas por dialogarem com a música no sentido de possuírem elementos que fazem parte da arte, do conflito de classes, da relação dos jovens com a música, e da institucionalização social da violência como reprodução simbólica e real. 7 Videoclipe disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=ARxvUOq-ef8.>. Acesso em: 04 mar. 2022. 8 Dados disponíveis em: <https://www.tiktok.com/discover/aicalica-challenge?lang=pt-BR>. Acesso em: 17 dez. 2021. 6 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 Hibridações e mediações A relação entre música e sociedade, enquanto campo de análise e objeto de estudo, compreende não apenas as trocas de bens simbólicos, mas também a mediação entre as organizações e as instituições que se vinculam tanto com a música quanto com a sociedade. Nesse sentido, não há sociedade sem música (NETTL, 2015) e, também, não há música sem a interação com/entre as esferas sociais, educativas, econômicas, hierárquicas, culturais, etc. É nesse contexto que nas sociedades capitalistas ocidentais não há música sem condições sociais objetivas, como o desenvolvimento tecnológico, os sistemas de produção, distribuição e de consumo. Para qualificar esse tipo de relação, Adorno (1998; 2011) trabalha o conceito de mediação. A mediação não é o reflexo, ou seja, a música não é o espelho da sociedade, pois a ideia física de reflexo, enquanto refração invertida, diz tão pouco sobre uma determinada sociedade tanto quanto encobre processos sociais e artísticos que produzem-na. O sentido de reflexo esconde muito mais do que revela. Para Adorno, na medida em que a música não é uma manifestação [Erscheinung] da verdade, mas efetivamente ideologia, quer dizer na medida em que, na forma em que é experimentada pelas populações, a música lhes encobre a realidade social, coloca-se necessariamente a pergunta de sua relação com as classes sociais (ADORNO, 2011, p. 137). A música experimentada, produzida e vivenciada no cotidiano torna-se, portanto, enredada no conflito social, dentro das estruturas de sociedade. Enquanto da ordem simbólica, ela media formas de relacionar-se, agregar-se, unindo e, ao mesmo tempo, distinguindo percepções de apreender o mundo. Esse aspecto é apresentado por Zuza Homem de Mello (2003), em seu livro sobre os Festivais da Música Brasileira entre os anos 1960 e 1972. A música vinculada a esses festivais era produzida dentro da lógica da indústria cultural, ao mesmo tempo em que congregava pessoas entorno de significados sociais vivenciados. Nesse sentido, “é proibido proibir” não é apenas uma citação de um trecho de uma música cantada por Caetano Veloso e utilizada como elemento sonoro pelos Mutantes na música “Caminhante Noturno” no Festival de 1968. Justamente pelos seus significados, o qual através de processos de hibridação adquire novos sentidos que remetem ao conflito social, é que “é proibido proibir” foi utilizada pelos 7 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 Mutantes em 1968. Ainda hoje “é proibido proibir” é cantada e reinterpretada através de processos de hibridações. Em 2019, Daniela Mercury e Caetano Veloso lançam a música “Proibido o Carnaval”9, em clara referência à música de 1968, mas atualizada aos acontecimentos sociais brasileiros contemporâneos. Trechos da letra de “Proibido o Carnaval” como “Tá proibido carnaval”, “tá proibido proibir” e “vai de rosa ou vai de azul” são referências às posições do governo Bolsonaro, em específico a atual Ministra da Cidadania, Damares Alves. Entendemos que o processo de hibridação presente em “Proibido o Carnaval” media as estruturas sociais e faz emergir questões políticas vinculadas ao momento social contemporâneo. Contudo, o processo de hibridação pode ser de modo não planejado ou “resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional” (CANCLINI, 2019, p. 22). Ao estudar os processos de hibridação em cultura, como processos dinâmicos, em movimento e nunca finalizados, Nestor Canclini afirma que frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva. Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado (CANCLINI, 2019, p. 22). Assim, as músicas que são remixadas, retrabalhadas e fazem referências a processos sociais e artísticos podem surgir de processos perceptíveis ou não perceptíveis, intencionais ou não intencionais. No caso das adaptações das músicas para os challenges do TikTok, é necessário que a música possua um apelo rítmico ao movimento corporal e que seja lançado o desafio ou a coreografia a ser, ao mesmo tempo, imitada e inovada. Cada coreografia é uma releitura híbrida de processos intencionais e não intencionais e obedecem a uma estrutura pré-estabelecida que, por vezes, é tensionada. Nesse processo, no qual a música é reorganizada, reorientada, aproximando e ao mesmo tempo distanciando, a música original “sofre” transformações adaptativas. O funk passa por processos constantes de trocas com os contextos sociais locais, como 9 Videoclipe disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=73Dp_gGsWOw.>. Acesso em: 27 jan. 2022. 8 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 no caso da versão em bregafunk recifense, do Mc Kevin do Recife, ou como no caso de “É proibido proibir”, de Caetano Veloso, de 1968, e “Proibido Carnaval”, de Daniela Mercury e Caetano Veloso, de 2019. Essas músicas são “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2019, p. 19). Facina, Gomes e Palombini (2016) realizam um trabalho comparativo da natureza contramétrica, que são utilizadas como bases e/ou loops do Volt Mix, do Tamborzão e do Beat Box. Os autores afirmam que tal comparação indica que parece haver um trabalho de seleção, por uma cultura afro-brasileira, a do funk carioca, a do electro de Los Angeles, reelaborado por meio de processos complexos de convergência e divergência em relação às culturas locais do samba, das macumbas, da capoeira e do axé, cujo resultado é uma sonoridade afro-brasileira com raízes e reverberações transnacionais (FACINA; GOMES; PALOMBINI, 2016, p. 78). É importante salientar que mais do que classificar determinadas músicas como sendo híbridas, promover a busca pela genealogia musical (FACINA; GOMES; PALOMBINI, 2016), ou a identificação dos “pais” de determinada manifestação cultural (RICÓN, 2016), os processos de hibridação ajudam a compreender quais os conflitos, os consensos e demais aspectos musicais e sociais que estão envolvidos, latentes, ou silenciados na cultura. Nesse sentido, há uma contribuição política no estudo dos processos de hibridações, pois ele “não é sinônimo de fusão sem contradições, mas sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na interculturalidade recente em meio à decadência de projetos nacionais de modernização na América Latina” (CANCLINI, 2019, p. 18). Omar Ricón (2016) problematiza os estudos dos processos de hibridação e da produção popular ao trazer os processos de interculturalidade ou de diálogo e confrontação entre os diferentes. O autor afirma que as culturas populares são “bastardas [pois] dão conta do sujo, do impuro, do promíscuo porque não tem pai reconhecido; por isso são herança de muitos pais e imitam de todas as partes para tentar ter uma identidade ou, ao menos, um estilo próprio” (RINCÓN, 2016, p. 32). O autor advogada para o abandono do pensamento (moderno/pré-moderno), essencialista, multicultural (a soma das partes misturadas) e do massivo-midiático 9 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 (imperialismo), na direção da assunção de “espaços, intermédios e de mescla, sendo o mais potente, o ambíguo da interculturalidade e o mais problemático o do massivopopular” (RINCÓN, 2016, p. 33). Nesse sentido, a assunção e o reconhecimento da bastardia das culturas populares é o passo para entender e reconhecer a mãe-cultural como o local e o próprio, e o pai como muitos possíveis e de pouca consciência. O popular é tido como sujeito subalterno, dominado, excluído ou colonizado, mas ao mesmo tempo que é baseado nas novas sensibilidades, novas formas de existir coletivas (RINCÓN, 2016). Em uma mão, o fuzil e na outra, o smartphone Como ferramenta de utilização de interação social, de criação e de reconhecimento musical pelos jovens, as plataformas digitais detém um grande alcance na sociedade contemporânea. Segundo estimativa disponibilizada pelo próprio TikTok, o aplicativo atingiu a marca de 1 bilhão de usuários ativos no mês de setembro de 202110. Grande parte dos seus usuários é composto por crianças e adolescentes que se viram isolados através do distanciamento social imposto a partir da pandemia de Covid-19. O TikTok possibilitou interações regidas também pelas regras do algoritmo. É possível gravar, manusear, editar, samplear, colocar a própria produção musical no aplicativo. A concepção do do it yourself, vinculada ao consumo rápido, aos likes e aos compartilhamentos aliados à produção em massa dos produtos mais desoladores da indústria de hits musicais fugazes (ADORNO, 1998) possibilitou congregar pessoas e realizar trocas musicais rápidas e efêmeras no distanciamento social. A efemeridade, a rapidez do consumo e a imposição da indústria cultural nos esquemas de um comportamento social foram estudados por Adorno (1998) ao analisar o jazz enquanto produto de consumo em massa. Já com o TikTok, esses aspectos são retomados, mas entram em jogo nesse campo de disputa três elementos: a. a intensificação da individualização baseada na concepção do it yourself, através de um equipamento tecnológico básico é possível criar e remixar músicas, produzir clipes, etc.; b. de um lado, a produção musical que é descentralizada e permite, por isso mesmo, a produção de hits não vinculados a gravadoras, e do outro lado, os meios de 10 Dados disponíveis em:< https://newsroom.tiktok.com/pt-br/um-bilhao-de-pessoas-no-tiktok>. Acesso em: 13 nov. 2021. 10 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 divulgação são centralizado nas plataformas e streamings, como o Instagram, TikTok, o Soundcloud e o YouTube; e c. um último elemento que entra no campo de mediações é a violência que os jovens brasileiros vivenciam no cotidiano devido ao distanciamento social causado pela pandemia de Covid-19. O distanciamento social não significou, no Brasil, a diminuição da violência11. A experiência de produção musical no TikTok, envolvendo ao mesmo tempo o corpo e a recriação sonora, é relacionada as chamadas cidadanias celebrities, estudada por Omar Rincón (2016, p. 41). Para o autor, as cidadanias celebrities desenvolvem a vontade de estar nas “telas da autoestima pública (meios e redes), com voz, rosto, história e estética própria”. Apesar de não ter se referindo ao TikTok, é presente tanto na ideia do do it yourself do aplicativo, quando, nas análises de Rincón, os seguintes aspectos como condição para a autoestima do sujeito: ser reconhecido, produzir, ter voz e estar nas telas. Aliadas às questões de reconhecimento trazida por Ricon (2016) e a do distanciamento social causado pela Covid-19, no Brasil multiplicam-se as coreografias no TikTok, nas quais crianças e adolescentes são estimulados a realizarem os challenges. Dentre os desafios de coreografias que recentemente nos chamou a atenção e que está relacionado ao tema em discussão é a versão bregafunk de “Ai Calica” do Mc Kevin do Recife e da Mc Dricka12, composta originalmente pelo Mc Cyclope em funk13. Na versão do Mc Kevin do Recife e Mc Dricka há referências à música “De 38 carregado” da Mc Dricka e, indiretamente, a “Anota a Placa” do Tz da Coronel, além do uso da célula rítmica em loop do bregafunk. Os elementos rítmicos, melódicos e sociais servem para recriar a composição enquanto processos inacabados de hibridação. O bregafunk, ritmo que ganhou projeção com Mc Loma e as Gemeas Lacração, é intimamente interligado à dança, à música e à coreografia pré-estabelecida nos challenges produzidos no TikTok. As relações corpo-música, challenges-desafios e a possibilidade de recriação sonora são intimamente articuladas pelo uso de tecnologia 11 Como por exemplo, a violência policial. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimasnoticias/rfi/2021/04/06/anistia-internacional-denuncia-alta-da-violencia-policial-no-brasil-em-meio-apandemia-de-covid-19.htm.>. Acesso em: 27 jan. 2022. E a violência contra a mulher. Disponível em: <https://ufmg.br/comunicacao/noticias/violencia-contramulheres-cresce-durante-a-pandemia>. Acesso em: 27 jan. de 2022. 12 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=53H0sTim0gQ.> Acesso em: 13 nov. 2021. 13 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 13 nov. 2021. 11 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 e do distanciamento social promovido pela pandemia de Covid-19. Estes são aspectos que ajudam a pensar na grande quantidade de visualizações e de envolvimento dos jovens com essas plataformas. Há processos hibridação (CANCLINI, 2019) e de recriação entre os elementos que são inseridos cada vez em que a música “Ai Calica” é remixada. A figura abaixo representa a transcrição de uma célula rítmica utilizada como loop em “Ai Calica” do Mc Cyclope. Figura 1: Loop de “Ai Calica” do Mc Cyclope Fonte: elaboração própria (2022). Na versão elaborada pelo Mc Kevin do Recife, há a inserção de elementos do bregafunk e de outras músicas como “de 38 carregado” de Mc Dricka, a mixagem de timbres de um pente de arma de fogo sendo recarregado e tiros sampleados que ajudam a compor, ao mesmo tempo, um elemento rítmico, sonoro, melódico e timbrístico, dialogando não apenas com a letra, mas também com os corpos, os quais possibilitam a inserção de coreografias. Enquanto que no início da versão do Mc Kevin do Recife há uma mensagem de incentivo a relação da música com o corpocoreografia, vinculada ao do it yourself, celebrities (RINCÓN, 2016) e a utilização das plataformas digitais: “lançou o TikTok, fez a camisa de toca. Lança teu passinho, que’eu reposto o teu arroba” (22s). A célula rítmica que é utilizada como loop em “Ai Calica” do Mc Kevin do Recife é transcrita abaixo. Figura 2: Loop de “Ai Calica” do Mc Cyclope e Mc Kevin do Recife Fonte: elaboração própria (2022). 12 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 O terceiro e o quarto tempos do compasso acima remete, ao mesmo tempo, ao ritmo do bregafunk, como o desenvolvido pela Mc Loma e as Gêmeas Lacração em “Envolvimento”, lançado em 2018. Já o primeiro e o segundo tempos se apresentam como variações do primeiro tempo do loop presente em “Ai Calica” do Mc Cyclope, figura 1. Esses elementos hibridizam-se e são transformados com samples de tiros de arma de fogo e da música de “38 Carregado”. É importante salientar que as imagens 1 e 2 são tentativas de transcrição em partitura ocidental de um dos diversos loops presentes nas músicas completas. Essas músicas não são vinculadas a essa tradição de escrita, de forma que: a) as células rítmicas escritas na partitura são uma aproximação da execução de uma tradição musical que não se restringe ou se limita a tradição escrita, e; b) na própria execução musical há transformações rítmicas, timbrísticas, melódicas, que ajudam a compor diálogos sobre os elementos escritos nas figuras 1 e 2. O processo de hibridação, portanto, envolve elementos sonoros com a inserção de armas, mas também, simbólicos, regionais e midiáticos para dialogar com os elementos sociais na atualidade. A versão da música “Ai Calica” de Mc Kevin do Recife é mais uma das possibilidades inacabadas de interações, pois ela é um processo de hibridação que se relaciona com a sociedade através de mediações e da incorporação, na música, de elementos presentes não apenas nos conflitos sociais, mas também nas formas das juventudes (inter)agir com a música, utilizando as ferramentas tecnológicas. Outra questão em que o conflito demostra a sua face hierarquizante em relação às classes sociais e a sua produção musical, diz respeito à advertência que inicia o clipe de “Ai Calica” do Mc Cyclope: “toda a história apresentada nas imagens a seguir são apenas uma representação em forma de arte, nada é real! Todos os adereços e personagens são fictícios” 14. Nesse sentido, o videoclipe se apresenta, através de uma advertência, como uma mediação da realidade e não a realidade em si; ou seja, nas palavras de Williams (2015), a arte não reproduz a realidade, mas dialoga com ela. Mas por que em algumas produções musicais é necessário se inscrever uma advertência e em outras não? Não há nenhuma advertência para que ninguém realize assaltos nos primeiros segundos de 14 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=42uH6fq8RzM.>. Acesso em: 17 dez. 2021 13 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 “Meu Guri” de Chico Buarque15, ou um alerta contra assassinatos no tenso diálogo na ária “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen” do singspiel “A Flauta Mágica” de Mozart16. Se de um lado, temos a música de uma determinada classe social sendo, por vezes, proibida com o discurso de apologia ao crime, e nesse sentido há uma necessidade de deixar claro, no início dos videoclipes, que a música é uma música, que a arte é fantasia, e que os personagens são fictícios. Do outro lado, não é dada tanta importância para que tipo de experiências cotidianas essas pessoas vivenciam para que produzam essa música e para que criem “esses personagens”, e não outros. Com isso, não estamos afirmando que não há processos de violência que envolvem a música, que a música pode ser utilizada com um viés destrutivo, colonial, repressor, incitador de violências, e isso está vinculado apenas as camadas mais subalternas da sociedade. Pelo contrário, Adorno (2011, p. 150), ao estudar o trabalho motívico, “o triunfo da compulsão à repetição”, e a cadência sonora do compositor Richard Wagner, afirma que esses elementos se tornam “patente a tendência social, a denegar o trabalho e o esforço da própria razão em prol de uma violência impactante e convincente, bem como a revogar a liberdade, situando-a no interior da irrecuperável monotonia”. Ao estudar a relação do funk enquanto culturas de sobrevivência, Facina, Gomes e Palombini (2016) relatam que as balas atiradas contra as populações das periferias das grandes cidades são respondidas com os sons de tiros tornados percussão eletrônica. Esses tiros sampleados, transformados em loops e em bases ajudam na construção das narrativas, as quais contam pontos de vista do cotidiano que não aparecem nos jornais. A violência impactante e convincente não são exclusividades de um determinado gênero musical, época ou classe social. Chico Buarque e Caetano Veloso, já mencionados neste artigo, sofreram violências institucionalizadas por parte do Estado com a censura ditatorial que se instaurou no Brasil a partir do ano de 1964. Assim, afirmamos que são em determinadas músicas, nos quais esses processos de violência e de opressão, por parte de um grupo social sobre um outro subalternizado, 15 É importante salientar que a cultura é um processo dinâmico e nunca acabadas. O próprio Mozart e o Chico Buarque passaram por processos de perseguições e vetos a sua obra por parte do Estado institucionalizado. 16 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=r37l5eNJOR0.>. Acesso em: 17 dez. 2021. 14 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 são tão explícitos que é preciso tarjar a música como música, ou seja, como arte ficcional, como se houvesse alguma música que em certo ponto não seja arte ficcional. Pressupõem-se, portanto, um preconceito cognitivo, que o pobre, o negro e o morador de favela não são capazes de pensar abstratamente. Eles apenas reproduzem o cotidiano. São pré-modernos, irracionais, voltados para os trabalhos manuais e inaptos ao pensamento abstrato e reflexivo. Assim, “Construiu-se toda uma percepção negativa dos escravos e de seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas preconceituosas” (SOUZA, 2019, p. 180). É ponto fundamental dessa discussão que a produção musical é entendida como mediada por relações de classe. A mãe colocar um punhal na mão da sua própria filha e ordenar um assassinato17, ou o assalto incentivado pela própria mãe não fariam parte das tramas reais das classes sociais que consomem a música de Mozart e Chico Buarque. É dada, para algumas produções musicais e compositores, a possibilidade de a música ser do domínio da imaginação, mas também de tratar de temas cotidianos, de conflitos políticos, da ordem do dia, de a música ser contestação, de revolta, de contar o real e/ou o imaginário. Para outros, é pré-determinada a única possibilidade de não ser ficcional, ou seja, de ser do real e do braçal. A ordem vigente e o poder absolutista real são contestados por meio dos ideais revolucionários franceses no singspiel fantástico em Mozart. Em Chico Buarque, o eulírico se transforma em uma mãe caridosa e ingênua, que acalenta e até certo ponto incentiva o filho a cometer crimes. Mas em “Ai Calica”, a possibilidade da fantasia é proveniente não da narrativa musical em si, mas dessa advertência que, se transformando em elemento musical, faz emergir a questão de como é vista a (in)capacidade de pensamento abstrato e reflexivo de uma determinada classe social que produz e consome essa música. Concordamos com Adorno (2011) ao afirmar que as questões estéticas, técnicas e sociológicas da música se acham indissolúveis e constitutivamente mescladas entre si, tanto no fazer musical quanto na recepção dela mesma. No Brasil, ela se apresenta como um pré-conceito cognitivo de classe sobre a (im)possibilidade artística que limita Da Ópera “A flauta mágica”. Ária da Rainha da Noite. Letra original: “Fühlt nicht durch dich Sarastro Todesschmerzen, So bist du meine Tochter nimmermehr”. Tradução “Se Sarastro não sentir as dores da morte por você/Então nunca mais você será minha filha”. 17 15 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 a capacidade de ser, de produzir abstrações e ficções a partir da mediação com a realidade. Mediações, arte e a realidade Criado em 2016, o projeto Favelagrafia lançou um conjunto de imagens visando um recriar do olhar da cidade sobre a favela. Nesse sentido, o projeto capacitou moradores e distribuiu telefones celulares para que eles pudessem fotografar o cotidiano. Uma das fotos, captada por Anderson Valentim e divulgada no perfil @favelagrafia no Instagram, conseguiu repercussão na mídia nacional e internacional. A foto foi feita na favela do Turano, Zona Norte do Rio de Janeiro, e retrata cinco jovens que fazem parte de um grupo de jazz com rostos envoltos por camisas, segurando instrumentos musicais como se fossem armas. A legenda da publicação diz: “alguns lutam com outras armas”. É importante ressaltar que todos são músicos experientes e que pela legenda da imagem é possível deduzir que as armas são transformadas em instrumentos musicais. A ideia da abstração pela transformação da violência em música ganhou ampla repercussão nacional e internacional, sendo repostada por diversas celebridades da música, dentre elas o produtor musical e ator norte americano Snoop Dogg. A publicação original é apresentada a seguir: Figura 3: adolescentes na Favela do Turano, RJ Fonte: Favelagrafia (2016). 16 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 A fotografia é do domínio da arte, e possui um duplo aspecto: é do real e do abstrato. Ela consegue mediar e, ao mesmo tempo, agenciar símbolos, concepções e preconceitos de classe. O cobrir a face com camisas e segurar instrumentos musicais como se fossem armas, remetem à imagética da violência. Ao mesmo tempo em que há um aspecto de territorialização do real, com as escadarias apertadas e na estética das casas, os instrumentos musicais nas mãos desses músicos, remetem, também, a instrumentos de superação, de situações de vulnerabilidade através da música, de profissionalização e da possibilidade de ser músico. Os personagens dessa trama sabem manusear os instrumentos que tocam por isso os instrumentos musicais superam a dicotomia realidade e ficção, mediando à construção de um pensamento duplo: ficção e não ficção. É importante ressaltar que há outras camadas nesse tecido de interpretação. Não há nenhuma advertência no sentido de alertar que a imagem é uma “representação em forma de arte”, como no videoclipe de “Ai Calica” do Mc Cyclope. Os instrumentos musicais nas mãos, juntamente com a informação de se tratar de um grupo de músicos de jazz, podem ajudar na não “necessidade” de advertência de que se trata de uma peça artística. É nessa direção que a mediação se opera a partir dos significados sociais dados, como por exemplo, ser pertencente a um grupo de jazz (e não de funk), ou da legenda da foto, a qual se articula na construção de elementos que remetem à possibilidade de violência e, ao mesmo tempo, de fazer música. A fotografia, enquanto arte(fato) que reproduz agentes culturais, instrumentos musicais e músicos, é um convite para recriar a imagem construída socialmente sobre a arte, a fotografia, a favela e os seus moradores. Segundo o site do projeto Favelagrafia, a ideia do projeto é mostrar que “ela [a favela] não é sinônimo de tráfico, arma e perigo. É potência, talento, arte e criatividade” (FAVELAGRAFIA, 2016). Como potência, ela é, também, a mediação que possibilita a superação da dicotomia ficção-realidade. A próxima figura é mais recente do que a anterior. Trata-se de reprodução jornalística do ano de 2021 e ajuda a pensar que o movimento contrário ao exposto no parágrafo anterior, também, é possível: a arte transformar-se em instrumento de mediação da violência e da repressão. A figura 4 foi capturada pelos diversos jornais brasileiros a partir de um vídeo reproduzido pelas mídias nos canais oficiais do Governo Federal do Brasil. Em um 17 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 evento no estado de Goiás, no mês de agosto de 2021, o presidente Jair Bolsonaro recebeu um violão repleto de autógrafos de personalidades da música sertaneja como Leonardo, Gusttavo Lima, e Amado Batista. O jornalista Zé Barbosa Júnior, em reportagem sobre o ocorrido, fez o seguinte relato: para não surpresa de quase todos, ao receber o instrumento, ao invés de dedilhá-lo (o que seria esperado de qualquer ser humano normal e decente), o candidato a führer brasileiro colocou o violão numa posição de fuzil e fez seu tradicional sinal de ‘fuzilar os inimigos’ (BARBOSA JÚNIOR, 2021,s.p.). A figura a seguir foi retirada da reportagem da Revista Fórum, de 30 de agosto de 2021 (BARBOSA JÚNIOR, 2021). Figura 4: presidente Bolsonaro segura violão autografado como um fuzil Fonte: Revista Fórum (BARBOSA JÚNIOR, 2021). Tanto o relato jornalístico de Barbosa Júnior (2021) quanto a figura 4 têm relação com vários acontecimentos que envolvem o presidente. Bolsonaro, por diversas oportunidades, utilizou-se de meios oficiais para defender a ditadura militar brasileira, ocorrida entre os anos de 1964 e o final dos anos 1980. Além disso, o presidente tem adotado a postura de defender as atrocidades, as torturas, e as mortes de opositores ao regime militar ditatorial, bem como as chacinas decorrentes das operações policiais ocorridas, atualmente, no cotidiano das favelas das grandes cidades brasileiras. O incentivo ao uso de armas de fogo presente no discurso governamental, a facilitação da sua aquisição e de seu porte, e a utilização de fuzis tanto por parte da Polícia Militar quanto do crime organizado ajudam a compreender o estado de guerra, no qual é submetida a população hoje em dia. 18 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 Foi também neste contexto, em data próxima ao evento retratado na figura 4, que o presidente chama de “idiota” quem deseja comprar comida. Ao ser questionado sobre o feijão, que faz parte da dieta cotidiana do brasileiro, o presidente da República diz que é necessário, antes de tudo, comprar um fuzil: Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: Ah, tem que comprar é feijão. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar’, disse Bolsonaro a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada nesta sexta-feira, 27 (GALVANI, s.p., 2021). Este caso é simbólico pelo contexto feijão/fuzil, mas também por estar inscrito no violão, dado ao presidente Bolsonaro, os nomes de artistas da música sertaneja que são extremamente populares entre os jovens brasileiros 18. É nesse sentido que o gesto em instrumento musical autografado com a assinatura de músicos com alta repercussão no cenário cultural nacional se torna simbólico. A ação de segurar o violão como arma é, portanto, uma ação política, mas também tem uma intenção cultural. O presidente da República transforma um violão, com autógrafos de artistas brasileiros, em um fuzil e o aponta na altura da cabeça de uma pessoa. A arma é simbólica, sua munição e seu alvo também são, mas os seus tiros ajudam na eliminação de subjetividades, ao passo em que tentam legitimar os tiros reais que matam os jovens moradores das periferias e das comunidades, como problematizado na próxima seção deste artigo. A cultura e a mediação Entendemos que a cultura é uma ação que age na construção de subjetividades coletivas e individuadas, as quais podem se encontrar em todos os níveis de produção e de consumo. É neste sentido que cultura está relacionada a processos de expressão, mas também a maneiras de produzir bens e relações sociais (GUATTARI; ROLNIK, 1996). Ao transformar os instrumentos musicais em armas, tanto o projeto social Favelagrafia quanto Bolsonaro não apenas agem no fato em si, mas no que está por trás desses tipos de ação. A música e a arte são objetificadas no imagético que estão 18 Como um dos indicativos da popularidade desses artistas entre os jovens brasileiros, o número de seguidores desses três artistas plataforma na Instagram chega a casa dos 60 milhões na data de 22/10/2021. 19 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 presentes nos instrumentos musicais através dos valores que damos e aos significados que são atribuídos e compartilhados. É por isso que um instrumento musical autografado tem um valor e um significado diferente de outro instrumento com as mesmas características, mas não autografado. É também pelo compartilhamento de significados de hierarquias entre classes sociais e suas produções musicais, que mesmo as suas letras possuindo menções a crimes, como em Mozart, em Chico Buarque e em Mc Cyclope, somente nesta última há a advertência para que a arte seja considerada ficcional. Isso também está relacionado à construção das mediações entre a sociedade e a cultura. Não é somente preciso que a violência se torne ordinária nos samples, nos timbres, e nos ritmos dos videoclipes de jovens negros e favelados segurando fuzis, na repetição motívica em Wagner ressaltada por Adorno, etc., pois a violência já está nas periferias e é sentida nas peles negras e pobres da sociedade brasileira. É preciso que a violência seja legitimada por significados compartilhados nas cotidianidades e institucionalizados nas instâncias de poder. Nesse aspecto, Williams (2015, p. 05) afirma que “a cultura tem dois aspectos: os significados e direções conhecidos, em que seus integrantes são treinados; e as novas observações e os significados que são apresentados e testados” (WILLIAMS, 2015, p. 05). Testar a transformação em fuzil de um violão simbólico autografado, e transmitir isso em um canal estatal é trazer para o cotidiano da sociedade e, ao mesmo tempo, encobrir a discussão sobre o processo armamentista a partir de valores simbólicos vinculados às classes sociais. O Estado, através do representante do governo federal, assume uma posição enquanto um dos agentes de disputas no campo da arte, da violência, e no uso de armas de alto calibre. Ao refletir sobre a dialética do encobrir-revelar na mediação música e classes, Adorno (2011, p. 137) expõe que “na medida em que a música não é uma manifestação [Erscheinung] da verdade, mas efetivamente ideologia, quer dizer, na medida em que, na forma em que é experimentada pelas populações, a música lhes encobre a realidade social”. As armas de grosso-calibre não são novidades nas diversas instâncias da cultura. Há muito tempo povoam as produções da indústria cultural: nos jogos de videogame como “Counter-Strike” e “Free Fire”, de onde são retirados alguns samples para compor músicas; nos seriados populares entre a juventude como “La casa de Papel”; 20 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 nas telas de cinema, em filmes de guerra como em “Rambo” 19 e nas premiações de Hollywood como em “O Sniper Americano” ou na sequência do premiado “Agente 007”; ou nas produções do cinema nacional como em “Tropa de Elite” e em “Cidade de Deus”. Essa presença não se resume na produção cultural, elas estão também nos clubes de tiro, nas práticas esportivas de caças, nas espetacularizações policialescas, nas apreensões de armas e drogas expostas em horário nobre pelos canais de televisão e compartilhadas nos grupos de WhatsApp, etc. Contudo, ao transformar o violão autografado em arma, em veículo oficial e estatal tenciona-se a mediação, agenciada pelos símbolos de imagens no ordinário do cotidiano social. O presidente não apenas atua com decretos para flexibilizar a aquisição e o uso de armas, ele não apenas ajuda na questão do armamento da população brasileira financiando a pesquisa no setor bélico nacional através de linha de créditos. A questão é que, além dessas ações, ao transformar o violão em arma, ou fazer gesto de arma nas mãos de crianças, Jair Bolsonaro age para que a indústria armamentista também se insira no sentido comum, na ordem do dia e no compartilhado socialmente através desses símbolos. O corpo é elemento mediador da música e este sentido está presente nas coreografias do challenger de “Ai Calica” que retratam uma pessoa recarregando um pente de bala de um fuzil, nos corpos dos músicos segurando seus instrumentos musicais como se fossem armas e no presidente segurando um violão como se fosse um fuzil. Apesar de ser o mesmo instrumento de violência corporificado e mediado pela música, Bolsonaro faz o que nem o funk “Ai Calica” e nem a coreografia do TikTok não fazem pela impossibilidade de serem reais. Rincón (2016, p. 28) afirma que “no simbólico e corporal, o sujeito popular encontra a cartasse, o jogo, a provocação, o humor e o excesso emocional”. Isso vincula-se não apenas na relação das pessoas com as coreografias, mas também nas posições dos corpos na publicação do projeto Favelagrafia. Já no violão autografado e usado como arma apontada para um sujeito imaginário, o corpo do presidente legitima um jogo, uma provocação, um humor e um excesso emocional na direção da morte, do real, das operações policiais nas comunidades. O humor, o corporal e os sentimentos 19 Filme de 1982 ressaltava o herói americano contra os vietcongs. Um de seus posters trazia o ator Sylvester Stallone segurando uma metralhadora automática, no outro, ele segurava uma bazuca lançafoguetes em primeiro plano, enquanto trás do ator, o mundo estava em chamas. 21 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 dialogam com a música não apenas enquanto simbólico, mas como mediador de uma violência que é cotidiana. No videoclipe, o elemento real é cerceado nos primeiros segundos de exibição pela advertência de que é uma “obra de ficção”. A impossibilidade de ser real na fotografia do projeto @favelagrafia se dá pela mediação na posição dos corpos, pela legenda da imagem e pelos simbolismos dos músicos segurando os seus instrumentos musicais. Essa mediação tensiona não apenas os significados, os gestos, os samples, os financiamentos e o acesso à arma de grosso calibre, mas também ressignificam a música, os instrumentos musicais, a violência, a posição dos corpos mediante a produção artística. Portanto, tensiona-se até a própria vida: menos feijão, menos restrições para a aquisição de armas e mais financiamento para a indústria armamentista brasileira, mais fuzis apontados para as cabeças de pessoas negras. A música e a cultura são parte da organização social que são afetadas e afetam pelas/as transitorialidades econômicas, políticas, científicas e sociais. Neste caso, tendem para uma mediação nos processos de hibridação tanto das necessidades de desenvolvimento humano, através da expressão artística (violão), quanto para as necessidades humanas básicas de viver (feijão e não ser morto), em detrimento da apropriação do instrumento de morte (fuzil) e de toda uma produção musical hierarquicamente considerada incapaz de operar na ordem do abstrato. Desta forma, esses elementos vêm legitimar e, ao mesmo tempo, mascarar (ADORNO, 1998; 2011) a violência sofrida no cotidiano das juventudes periféricas brasileira. Há, de uma vez só, uma dupla chacina através desse processo contraditório de tensionamento do conflito social: o assassinato do corpo pobre/negro/favelado e da sua subjetividade/criatividade/cultura. Considerações finais Se é na música em que esses elementos são tensionados, é na própria música que o questionamento a esses elementos encontra um terreno propício ao seu desenvolvimento. Nesse sentido, a problemática da violência que sofrem os jovens, também, deve ser um aspecto a ser pensado pela/na da música. Além da violência simbólica, os músicos também são os sujeitos que sofrem com as balas perdidas que ficam alojadas no violino20, ficam presos por dois meses por engano21, ou são mortos 20 Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/09/15/violino-serviu-de- 22 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 enquanto estão no palco, como no caso do Mc Daleste que foi baleado durante um show realizado em Campinas, SP22. Os casos citados possuem em comum a classe, a cor/raça, o local de moradia, além da música. São pobres e moradores de periferia das grandes cidades brasileiras. O violão autografado por artistas sertanejos foi transformado nas mãos de Bolsonaro em um instrumento de assassinato dessa população e do seu desejo de viver. Para os jovens, que em sua grande maioria aprendem música em projetos sociais, o desejo de viver já é um ato de ruptura com esse ciclo histórico de agenciamentos da violência que impregna nos corpos negros e favelados um modo de ser social, de interagir entre si, e também de relacionar-se com os equipamentos estatais. Nesse sentido, essas relações estão conectadas aos aspectos culturais territoriais, como os presentes nas duas versões da música “Ai Calica”. O desejo de viver já é um ato de ruptura do ciclo histórico, que mediam nos corpos negros e favelados um modo de ser social e de interagir, o qual ditam que sua música é incapaz de ser fictícia, rompida apenas por uma advertência. Nesse sentido, o processo de rompimento do estereótipo do adolescente pobre e favelado, incapaz de pensar abstratamente e de produzir música-ficção, é um movimento que entra diretamente em choque com as armas de imposição, bem como seus modos de agir sobre esses corpos, através do braço armado estatal que, simbolicamente, foi representado pelo presidente ao segurar o violão como um fuzil. Transformado em um elemento de mediação de subjetividades, o fuzil aparece cotidianamente na mão do Estado ou do crime para que o jovem negro baixe a cabeça e sofra os mais diversos tipos de violência. É necessário um mover-se musical no sentido difuso, que propicie a quebra desse ciclo reduzido de possibilidades, tendo a chance de construir com a música um caminho não maniqueísta e que não se resuma a tornar-se bandido e nem ser vítima das ações policialescas estatais. Com isso, propiciar uma possibilidade de ser, de amar, de expressar-se no mundo e de sentir o mundo. Essa maneira de ser não é independente de outras, mas convive em jogos, ao mesmo tempo, de poder, tensão, escudo-e-me-salvou-de-bala-perdida-no-rio.ghtml.>. Acesso em: 13 de março de 2022. 21 Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/dois-meses-apos-ser-preso-por-enganovioloncelista-da-orquestra-de-cordas-da-grota-se-apresenta-em-recital-ainda-me-sinto-preso-rv1-124724736.html>. Acesso em: 13 de março de 2022. 22 Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/musica/noticia/2013/07/videomostra-funkeiro-levando-tiro-em-palco-durante-show.html.>. Acesso em: 13 de março de 2022. 23 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 contradição e complementaridade. Entendemos a música “Ai Calica” e a figura 3 que retrata os músicos na comunidade do Turano, RJ, como possibilidades de ser e, ao mesmo tempo, possibilidades não ser. (Des)territorializando e reterritorializando concepções, pois as possibilidades de ser em comunidades não se resumem a ser bandido ou ser morto pela polícia, como se esses espaços não fossem ocupados por pessoas reais, com irmãos, pais, filhos que compram no supermercado da esquina e ajudam os vizinhos no final de semana, etc. A música como objeto do sentir, do ver, e principalmente, do denunciar e do agir pode congregar a possibilidade de um outro sentido de ver, de agir e, principalmente, de ser no mundo. Longe de uma concepção salvacionista, intervencionista e concentrada em personagens individuais, o que estamos advogando são mediações que promovam a assunção das contradições e dos tensionamentos sociais presentes na música e que não reduzam as possibilidades de ser musical dos sujeitos a essas contradições. Advogamos por um devir que entenda os traços comuns entre os diferentes processos de musicais e que analise a existência da subjetivação mediada pela violência não como um problema de apenas de setores específicos da sociedade. A problematização da existência da violência consiste em um processo de desvelar o preconceito contra a produção cultural e social das classes subalternizadas. Guattari e Rolnik (1996) falam em devir que compreenda um sentir um calor nas relações por determinada maneira de desejar, por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. [...] a relação de um indivíduo com a música ou com a pintura pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade inteiramente novo (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 47). É preciso ir ao lugar das incertezas e dos devires, em que o fazer artístico é um devir a ser. Este lugar, ou não lugar, reside no centro não logocêntrico, mergulhado nos lugares de viver históricos de resistência que tem a potencialidade de desencadear os processos de hibridações, ou seja, de sentir e reinventar o mundo. Esses entrelugares repletos de abastardias (RINCÓN, 2016) não completamente devastados pelas dominações de significações capitalísticas se apresentam nos processos sociais. Por isso, não são lugares fixos, mas potencialidades criativas e 24 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 transformadoras que, apesar de serem subjugadas com a lógica dominante, resistem e hibridam-se. Eles demonstram sua potencialidade de dinâmica criativa no Brasil dos lugares massacrado pelo braço forte do Estado, mas que, ao mesmo tempo, resiste nas formações das intersubjetividades. Assim, está morrendo, renascendo e resistindo às proibições policiais e, simultaneamente, sendo objeto de gozo e felicidades não reacionárias; está no interior do “nós-líricos” coletivo e, ao mesmo tempo, eus maternos e fortes na música Afroameríndia da banda Coisaluz23: Nascemos sem saber quem somos/De onde viemos, pra onde vamos/Determinam até o que gostamos/Quem amamos, admiramos/Mas, retorno aos meus ancestrais/Pra conhecer o que me fez Eu/ Uma história quase que perdida/Apagada, esquecida/ Sem entender porque fui preterida/Vou cantar, ganhar a vida/Traz de volta pra si/Traz todo o poder que sempre foi teu. Assim, esses entrelugares não são um território específico ou uma reconstrução de um passado, mas entrelaçamento de lugares de passados marcados por conflitos de classes e hierarquias sociais, e que mediam as relações sociais com a música. 23 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=uaTc4qJwOgc. >. Acesso em: 17 dez. 2021. 25 INTER-LEGERE | Vol 5, n. 33/2022: c28031 | ISSN 1982-1662 Referências ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia da música: doze preleções teóricas. São Paulo: Unesp, 2011. ______. Primas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. BARBOSA JÚNIOR, Zé. A bíblia e o violão-fuzil de Bolsonaro. Revista Fórum. 30 de agosto de 2021. Disponível em:<https://revistaforum.com.br/rede/biblia-violao-fuzilbolsonaro/>. Acesso em: 06 out. de 2021. BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas sociais. São Paulo: Perspectiva, 1979. ______. A distinção. São Paulo: Edusp, 2009. CANCLINI, Néstor. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2019. FACINA, Adriana; GOMES, Mariana; PALOMBINI, Carlos. Pavana para 20 infantes mortos: 50 falácias que não ressuscitam defunto. Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, v. 13. n. 1, p. 69 – 91, maio, 2016. 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