A história segundo Cristina Kirchner
History According to Cristina Kirchner
Renata Dal Sasso FREITAS *
Obra resenhada:
PEROCHENA, Camila. Cristina y la historia: El kirchnerismo y sus
batallas por el pasado. Buenos Aires: Crítica, 2022.
Apesar de a coligação que levou o peronismo de volta à presidência da
Argentina em 2019 se ter fragmentado durante o mandato de Alberto
Fernández, sua vice, Cristina Fernández de Kirchner, segue sendo a
figura mais forte no espectro progressista do país. Além de ter sido
personagem-chave nos governos de esquerda que marcaram o continente sul-americano nas primeiras décadas deste século, incluindo o
momento em que Chile, Brasil e Argentina tiveram simultaneamente
presidentas, o chamado kirchnerismo também se tornou incontornável
dentro do próprio movimento peronista.
As formas com que Kirchner se colocou nessa posição e consolidou sua vertente dentro do Partido Justicialista passaram pela costura
de um discurso sobre o passado, com o fomento a uma nova historiografia, através de um lugar institucional próprio, o Instituto Nacional
de Revisionismo Histórico Manuel Dorrego, criado em 2011 e extinto
* https://orcid.org/0000-0002-1543-2274
Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Curso de História
Rua Conselheiro Diana, s/n, 96300-000, Jaguarão, RS, Brasil
[email protected]
Varia Historia, Belo Horizonte, v. 39, n. 80, e23219, maio/ago. 2023
http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752023000200019
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em 2015, durante o governo de Mauricio Macri. Esse processo se deu
não sem tensões com o campo historiográfico acadêmico e com veículos
tradicionais de imprensa. Tais intervenções, em seus diferentes matizes,
foram objeto de estudo de Camila Perochena em Cristina y la historia:
El kirchnerismo y sus batallas por el pasado, publicado em 2022.
Perochena é historiadora, professora da Universidad Torcuato
di Tella, e realiza trabalhos de divulgação na mídia argentina. O livro
é resultado de sua tese de doutorado, defendida pela Universidad de
Buenos Aires, que compara os usos do passado de Kirchner com os
de Felipe Calderón, no México. Sua atuação está, portanto, inserida
nesse contexto em que historiadores buscam colocar-se num espaço
público marcado pela erosão da credibilidade de instituições tradicionais frente à crise da democracia liberal das últimas décadas, com a
intensificação de discursos negacionistas. O livro também responde à
necessidade de interrogar a relação com o passado e com a história na
contemporaneidade dentro dos marcos das mudanças em nossas experiências de tempo, que François Hartog (2013) denominou “regime de
historicidade”, e com o conceito de “usos do passado”, que encontramos
desenvolvido por intelectuais como Enzo Traverso (2007). O trabalho de
Perochena (2022) insere-se sobretudo na produção recente a respeito do
boom de releituras sobre o passado argentino produzidos desde dentro
e fora do ambiente acadêmico, principalmente no marco do bicentenário da Independência argentina em 2010 e além. Dentre eles, saliento
os trabalhos de Pablo Ortenberg (2016), Ezequiel Adamovsky (2012)
e Fabio Wasserman (2021), esse último sobre os usos do passado pelo
discurso vinculado a Mauricio Macri.
Trata-se, portanto, de uma excelente contribuição para pensarmos as formas como a história, a historiografia e o passado foram mobilizados no Sul Global nos últimos anos por um governo que buscou
atender, inclusive nesse âmbito, às demandas de minorias e das classes
populares e se colocar contra aqueles setores que tomava por hegemônicos, na forma do grande empresariado e da imprensa. Ao mesmo
tempo, Kirchner também se colocou à frente de um dos movimentos
políticos de massa mais importantes do século XX, o peronismo. Ainda
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que deixe suas considerações de fundo mais teórico para o epílogo,
Perochena (2022) aponta para essas preocupações em todo o texto, inclusive demarcando as tensões entre os usos do passado de Kirchner e
a historiografia produzida no âmbito institucional acadêmico, que não
foram poucas.
Ao longo dos sete capítulos de Cristina y la historia, Perochena
(2022) demonstra como os usos do passado argentino por Kirchner
alteraram a paisagem cívica do país sob vários aspectos, reservando
um lugar de destaque também para o governo de seu marido. Levado à
presidência do país no rescaldo da crise de 2001 – que, além de econômica, também foi de representação política e do próprio peronismo –,
Néstor Kirchner famosamente rompeu com as políticas conciliatórias
de seus antecessores em relação à ditadura civil-militar. Para além de
salientar os crimes cometidos pelos seus agentes, os Kirchner inscreveram a ditadura mais recente na história argentina (1976-1983) como
sendo a origem da crise na qual o país mergulhou no início dos anos
2000, atribuída ao processo de abertura do país a políticas neoliberais.
Consequentemente, um dos pilares de sua política foi a ênfase
na causa dos direitos humanos, com apoio a movimentos sociais a ela
vinculados, eminentemente as Abuelas e as Madres da Plaza de Mayo,
atuantes também em defesa de pautas vinculadas à justiça social. No
que tange ao passado, isso se traduziu, durante o governo de Cristina,
na quebra com a narrativa vigente de que o período foi marcado por
uma guerra entre “dois demônios” e pela consolidação de uma política
memorial, cuja ponta de lança foi a transformação de centros de detenção clandestinos em espaços de memória, o principal deles sendo
a sede da Escuela Superior de Mecánica de la Armada (ESMA). Essa
mesma abordagem foi dada ao que Perochena (2022) chama de “memória incômoda” da Guerra das Malvinas, com foco nas reivindicações de
seus ex-combatentes por uma “causa justa” e nacionalista e na fundação
de um museu em espaço contíguo à antiga ESMA, objeto de intenso
debate público.
A intervenção do kichnerismo no passado não se limita, no entanto, à história recente da Argentina. Os primeiros capítulos de Cristina
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y la historia apresentam a tese de que Kirchner o mobilizou para empreender uma “batalha cultural” pela história argentina em si mesma.
O passado foi empregado em seus discursos como forma de estabelecer
fronteiras entre um “nós” e um “eles” deslocados em diversas instâncias temporais para conformar identidades e, consequentemente, sua
agenda política.
De acordo com Perochena (2022), Kirchner lançou mão da história para demonstrar as recorrências dessas disputas, marcando tanto seu
governo, quanto o de seu marido como quebra com “200 anos de fracassos e divisões” caracterizados pelas crises do liberalismo, por rupturas
constitucionais e pela mais recente “década neoliberal”. Suas remissões
ao passado, portanto, passam pela história argentina desde o período
da formação do Estado nacional. Perochena salienta que esses usos são
caracterizados também pela elisão das contradições inconvenientes a
essa narrativa. Como o livro almeja demonstrar, nas celebrações do Bicentenário em maio de 2010, com a atuação de historiadores vinculados
ao revisionismo no espaço público e a fundação de um museu, esses
usos do passado encontraram suas maiores expressões.
Um dos recursos retóricos empregados para tanto foi a afirmação
da existência de uma “história verdadeira”, ocultada pela “historiografia
liberal” – cujo principal expoente foi Bartolomé Mitre. Essa narrativa
coincidiria com as posturas da imprensa, para a qual Kirchner deslocou parte de seu antagonismo em seu mandato. Mesmo que esforços
revisionistas da historiografia liberal datem dos anos 1930, Kirchner
inscreveu novos personagens no panteão nacional, como Juan Manuel
de Rosas, recuperado por revisionistas ao longo do século XX, mas
mobilizado aqui como forma de demonstrar que a chamada “história
oficial” havia promovido falsificações do passado, tratando como algozes quem havia defendido o país dos interesses estrangeiros e agido em
prol das classes populares.
A história encoberta por aqueles que conspiram contra os interesses dos argentinos serviu também de mote para defender a ideia de
que a revolução sob a qual o país teria sido fundado em 1810 foi deixada
inconclusa. Como afirma Perochena (2022), a ideia de revolução, tida
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como a extrapolação das circunstâncias para dar vazão à vontade popular, está no centro da concepção política do kirchnerismo. A revolução
de maio de 1810 foi costurada por Kirchner a outros momentos da
história do país, sobretudo aos movimentos guerrilheiros da década de
1970; e o kirchnerismo, por sua vez, apresentado como o único capaz
de concluir esse processo.
É aí que aparecem, nos discursos de Kirchner, as releituras da
história do próprio peronismo, dentro da chave “eles” e “nós”, e a conformação do “kirchnernismo”. Perochena (2022) aponta que as presidências dos Kirchner se inscreviam na tradição política do peronismo,
mas também buscavam superá-la, o que significou releituras de seu
passado, disputando quem encarnava verdadeiramente suas ideias e
valores. Esses embates se desenrolaram à medida que também mudaram
as relações entre Cristina e os demais setores do Partido Justicialista,
além de sindicatos e outras agremiações, principalmente a partir dos
conflitos com o setor agropecuário iniciados em 2008 e que se intensificaram com o falecimento súbito de Néstor em 2010.
Mais relevante talvez seja como o livro de Perochena (2022)
aborda as particularidades da apropriação da história por uma mandatária progressista em um momento de demanda por sujeitos clivados
por outras identidades que não apenas sua classe social. As trajetórias
de mulheres como Encarnación Ezcurra, Juana Azurduy e María Remédios de Valle foram trazidas à frente por Kirchner. Isso além do estabelecimento do dia 12 de outubro como Dia de Respeito à Diversidade
Cultural, do dia 8 de novembro como Dia Nacional dos Afroargentinos,
e das ressignificações do 17 de outubro entre os peronistas.1
Trata-se, portanto, de uma boa abordagem das figurações do
passado no discurso público e de sua relação com o poder político nas
últimas décadas, marcadas por disputas culturais que se estendem a esse
1 No dia 17 de outubro de 1945, milhares de trabalhadores, principalmente saídos da zona
industrial da Grande Buenos Aires, ao sul da cidade, dirigiram-se à Praça de Maio para
protestar contra a prisão de Juan Domingo Perón, então secretário do Trabalho da ditadura
militar iniciada em 1943. Perón foi libertado poucos dias depois e a data ficou denominada
como “Día de la Lealtad Peronista”.
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reduto tanto no Norte quanto no Sul Global. A forma como o livro está
organizado, culminando com as celebrações do bicentenário em 2010 e
com a fundação do museu dedicado à efeméride, ajuda a compreender
não apenas as relações que kirchnerismo estabeleceu com a história
pátria e com o peronismo, mas também o seu intento de forjar uma
memória de si próprio como elemento de uma teleologia da Argentina
como nação.
Referências
ADAMOVSKY, Ezequiel. El color de la nación argentina: Conflictos y negociaciones por la definición de un ethnos nacional, de la crisis al Bicentenario. Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas-Anuario de Historia
de América Latina, n. 49, p. 343-364, 2012.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências
do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
ORTENBERG, Pablo. Monumentos, memorialización y espacio público:
Reflexiones a propósito de la escultura de Juana Azurduy. Tarea, v. 3,
n. 3, p. 96-125, oct. 2016.
TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso: Historia, memoria, política. Madrid: Marcial Pons, 2007.
WASSERMAN, Fabio. En el barro de la historia: Política y temporalidad en
el discurso macrista. Buenos Aires: Rústica, 2021.
Recebido: 26 abr. 2023 | Revisto pela autora: 9 maio 2023 | Aceito: 23 maio 2023
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