A narratividade bíblica
e os imaginários religiosos
Anderson de Oliveira Lima*
Resumo
Este artigo sugere um olhar literário para os discursos religiosos por meio de uma hipótese
sobre a presença da narratividade bíblica nos imaginários religiosos fundamentalistas.
Estudando os padrões mais marcantes das narrativas bíblicas e defendendo a presença
dessa literatura (em formas e conteúdos) na cultura ocidental contemporânea, dir-se-á que
a cosmovisão dos grupos cristãos fundamentalistas é construída narrativamente, seguindo
os moldes definidos pelos narradores bíblicos. Os procedimentos analíticos usados para
chegar aos resultados esperados são a Análise literária que destaca os traços característicos
da narratividade bíblica e a Análise do discurso que volta-se ao nível narrativo da comunicação
religiosa para apontar a imposição da ficcionalidade bíblica sobre o modo fundamentalista
de criar ordem e sentido para a existência.
Palavras-chave: Narratividade bíblica; Imaginários religiosos; Fundamentalismo; Análise
literária; Análise do discurso.
Biblical Narrativity and the Religious Imaginary
Abstract
This article suggests a literary way to look at religious discourses through a hypothesis
about the presence of biblical narrativity in fundamentalist religious imaginaries. Studying
the most remarkable patterns of biblical narratives and defending their presence of
this literature (both in form and content) in contemporary Western culture, we will be
said that the worldview of fundamentalist Christian groups is constructed narratively,
following the shapes defined by biblical narrators. The analytical apparatus used to
reach the expected results are Literary Analysis, which highlights the features of biblical
narrativity, and Discourse Analysis, which focuses on the narrative level of religious
communication to show the imposition of biblical fiction on the fundamentalist way
of creating order and meaning for our existence.
Keywords: Biblical Narrativity; Religious Imaginary Fundamentalism; Literary Analysis;
Discourse Analysis.
*
Doutor em Ciências da Religião (UMESP) e doutor em Letras (UPM), possui pósdoutorado em Ciências da Religião pela PUC-Capinas e, atualmente, é pesquisador no pósdoutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua-Portuguesa pela Universidade
de São Paulo (USP).
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La narratividad bíblica y los imaginarios religiosos
Resumen
Este artículo propone una mirada literaria a los discursos religiosos a través de una
hipótesis sobre la presencia de la narratividad bíblica en los imaginarios religiosos
fundamentalistas. Estudiando los modelos más llamativos de las narraciones bíblicas
y defendiendo la presencia de esta literatura (en formas y contenidos) en la cultura
occidental contemporánea, se dirá que la cosmovisión de los grupos fundamentalistas
cristianos se construye narrativamente, siguiendo los moldes definidos por los narradores
bíblicos. Los procedimientos analíticos utilizados para llegar a los resultados esperados
son el Análisis Literario, que destaca los rasgos característicos de la narratividad bíblica,
y el Análisis del Discurso, que recurre al nivel narrativo de la comunicación religiosa para
señalar la imposición de la ficción bíblica a la forma fundamentalista de crear orden y
significado para la existencia.
Palabras clave: Narratividad bíblica; Imaginarios religiosos; Fundamentalismo; Análisis
literario; Análisis del discurso.
Introdução
Este artigo surgiu com a finalidade de levar adiante um trabalho
desenvolvido entre os anos de 2014 e 2015 que resultou na publicação de
um artigo científico experimental na época (LIMA, 2015). Voltamos aos
pontos centrais daquele trabalho com a intenção de dar seguimento à defesa
de uma hipótese que mostrava-se digna de desenvolvimentos, capaz de gerar
interesse e ótimos resultados no meio acadêmico com o qual dialogamos.
Em suma, o que queria-se demonstrar é que os imaginários religiosos (em
especial, os do segmento cristão fundamentalista) pautam-se nos padrões
narrativos herdados das páginas bíblicas ou, com outras palavras, que os
textos bíblicos ofereceram os padrões narrativos sobre os quais muitos de nós
têm dado sentido e ordem à vida até os dias de hoje. Assim, o que temos para
apresentar é um segundo momento de um projeto de pesquisas amplo, um
vir à tona quase espontâneo de um tema que não esgotou-se. Nessas novas
páginas, procuraremos aprofundar nossos conhecimentos, demonstrar com
mais detalhes as especificidades das relações de dependência entre as páginas
bíblicas e os discursos fundamentalistas e argumentar a favor da relevância
desse modo literário de olhar para os imaginários religiosos contemporâneos.
Estamos operando com duas grandes áreas de pesquisas que lidam
de maneiras complementares com os fenômenos religiosos e suas práticas
discursivas: primeiro, faremos uso da Análise literária como instrumento
por meio do qual voltamo-nos para os textos, a fim de identificar os mais
marcantes padrões narrativos da literatura bíblica, pressupondo a irradiação
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desses padrões por intermédio do tempo e da cultura ocidental. Depois,
voltando nossos olhos à recepção, partimos à identificação desses mesmos
padrões narrativos em discursos posteriores, mais especificamente, passaremos
a estudar os imaginários religiosos dos grupos cristãos fundamentalistas da
contemporaneidade. Essa segunda linha de trabalho pode envolver recursos
metodológicos bem distintos e, nós, por afinidade, adotamos a Semiótica
greimasiana (ou Análise do discurso), esperando que seus recursos ajudem a
lançar luz sobre a presença e a influência daqueles padrões narrativos sobre
os produtos discursivos que colocaremos em análise.
Será por esses meios que nosso trabalho procurará demonstrar como a
cosmovisão dos grupos cristãos fundamentalistas configura-se narrativamente,
fazendo com que os tais interpretem cada aspecto da existência como um
evento literário comparável com aqueles que as páginas bíblicas consagraram.
A hipótese da narrativização da vida
Há alguns anos, Paulo Augusto de Souza Nogueira refletia sobre as
relações entre religião e linguagem e sugeria que “a linguagem estrutura
a religião” (NOGUEIRA, 2016, p. 243), sinalizando a importância dos
estudos da linguagem para as pesquisas em Ciências da Religião. Nogueira
estava abordando em sua área apontamentos de consequências amplas que
conhecíamos, por exemplo, por meio de pensadores como George Steiner
(2005), para quem a linguagem não é apenas um veículo do pensamento,
mas o seu fator determinante. Em Steiner lemos que “O pensamento é
a linguagem internalizada; e nós pensamos e sentimos conforme nossa
língua particular nos impele e nos permite fazer” (STEINER, 2005, p.
101). Nosso trabalho, evidentemente, concorda com Nogueira e Steiner e
propõe-se a colocar suas asserções à prova sob circunstâncias específicas
nos estudos das religiões. Defenderemos que uma religião é feita a partir das
potencialidades desenvolvidas da linguagem de um povo e que quando ela
torna-se determinante na cultura, de efeito da linguagem a religião passa a ser
causa, começa a exercer sua força criativa sobre os rumos da mesma linguagem
que outrora a moldou. É nesse processo último que nossa pesquisa encontra
seu exato lugar, pois procura demonstrar como as tradições do cristianismo e
seu texto sagrado agora ditam as regras no desenvolvimento dos imaginários
religiosos cristãos fundamentalistas em suas múltiplas expressões.
Nosso interesse pelo tema foi impulsionado de maneira mais expressiva
quando tivemos contato com algumas intuições de Umberto Eco que, no livro
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Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), sugeriu que os humanos, procurando
dar sentido à própria vida, ficcionalizam-na:
Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo
que o mundo de Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos
ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos
descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos séculos
a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez
mais de um [...]. Sempre s0e procurou Deus como Narrador [...] procuraram
Deus como Autor-Modelo – quer dizer, Deus como a Regra do Jogo, como
a Lei que torna ou um dia tornará compreensível o labirinto do mundo. A
Divindade nesse caso é algo que precisamos descobrir ao mesmo tempo que
descobrimos por que estamos no labirinto e qual é o caminho que nos cabe
percorrer. (ECO, 1994, p. 121).
Entende-se que os humanos não só criam narrativas ficcionais a partir
da vida como também tomam algumas das suas narrativas, em especial,
aquelas que tornaram-se textos fundamentais ao longo da história dos seus usos
(PUCHNER, 2019), como fontes para que, usando a imaginação, ficcionalizem
a própria vida, dando a ela uma aceitável aparência de sentido e ordem.
Às colocações gerais de Umberto Eco (1994) temos somado, por nossa
conta, a ideia de que essa ficcionalização da existência que confunde o mundo
real com o mundo dos textos, no caso dos grupos cristãos fundamentalistas,
toma como principal modelo ordenador as páginas bíblicas, um dos mais
fundamentais textos em operação nesse grande sistema de intercâmbios
discursivos que é a cultura ocidental. É dessa grandiosa antologia textual
que saíram os padrões narrativos que definem o lugar de Deus e dos demais
personagens dessa versão ficcionalizada da vida, é a partir dela que dá-se
sentido ao mal e à morte, que desenvolvem-se esperanças, que elaboram-se
os rótulos que definem os homens e seus lugares sociais, que explicam-se as
convulsões imprevistas no transcorrer dos dias, que estabelecem-se valores,
definem-se comportamentos etc.
Não negamos que, ao trabalhar sobre essas irradiações dos motivos
bíblicos pela cultura ocidental, nosso trabalho deve muito às importantes
contribuições de Erich Auerbach (2011). Em Mimesis: a representação da
realidade na literatura ocidental (2011), o crítico literário alemão defendeu que
toda a literatura ocidental havia sido construída sobre dois grandes pilares:
a Ilíada e a Bíblia. Auerbach (2011) comparou os dois grandes clássicos e,
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de maneira magistral, identificou algumas características das duas literaturas
com o objetivo de demonstrar, depois, como seus padrões estilísticos
condicionaram toda a evolução da ficcionalidade literária ocidental. Em
nossa proposta, inegavelmente influenciada pela obra de Auerbach (2011),
ousamos a tentativa de ampliar seus achados. Temos buscado, condicionados
por nossas preferências, idiossincrasias e limitações, reelaborar a lista dos
padrões narrativos destacados por Auerbach em sua leitura da Bíblia e aplicar
os resultados de maneira mais aberta ao nosso próprio lugar e momento
históricos. Ou seja, além de confirmar a hipótese de Auerbach quanto aos
impactos decisivos da tradição bíblica na literatura posterior, queremos
também demonstrar, por meio de análises de discursos religiosos atuais, que
essas irradiações vão muito mais longe do que a leitura dos clássicos da nossa
literatura poderia nos dizer.
A Bíblia está presente (para o bem ou para o mal) de modo indelével
na cultura ocidental. Mas, para que possamos vê-la como matriz absoluta de
imaginários religiosos modernos, convém considerar (ainda que brevemente)
o modo como a Bíblia foi adotada, desde a Reforma, como o principal
fundamento das religiosidades cristãs de linha protestante, passando a ocupar
uma posição privilegiada como sua grande hierofania (ELIADE, 2012). A
Bíblia, nesse universo religioso, não é mais um mero livro, mas o principal
veículo da revelação da Palavra de Deus. Por conseguinte, como reação ao
avanço da crítica moderna aplicada à Bíblia na virada dos séculos XIX e XX,
grupos cristãos conservadores viram-se impelidos a combater o pensamento
erudito da época que, do seu ponto de vista, ameaçava a sacralidade dos seus
textos (AFONSO; CAMPOS, 2021; PANASIEWICZ, 2008; ARMSTRONG,
2001). Combatendo as teses acadêmicas, negaram com veemência a presença
de qualquer traço ficcional nessa literatura e sustentaram, a despeito do
avanço dos conhecimentos acumulados pelas ciências bíblicas, a crença na
Bíblia como obra totalmente coesa, inspirada e inerrante (FITZMYER, 1997).
Dessa resistência conservadora, os textos bíblicos (e suas interpretações
oficiais) saíram com privilégios ainda maiores, ganharam força como matrizes
culturais, passando a ser o instrumento principal pelo qual os fundamentalistas
explicam o mundo e estabelecem o que aceitam como verdade.
No mesmo livro que deu início às nossas reflexões, Umberto Eco
(1994) escreveu palavras importantes sobre o ato da leitura:
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A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor
precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de
‘suspensão da descrença’. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado
é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está
contando mentiras [...] o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos
o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO,
1994, p. 81).
Não há nada a corrigir nas linhas escritas por Umberto Eco e nós
as queremos na superfície da memória, no entanto, elas não dão conta do
processo singular que dá-se no encontro de um leitor fundamentalista com
uma Bíblia sagrada. Ocorre que o leitor fundamentalista rejeita a mencionada
“norma” por resistir à ideia de que a Bíblia possa ser, em qualquer sentido,
uma obra de ficção, de modo que ele entra por suas páginas assinando
outra espécie de acordo. Para ele, o narrador bíblico jamais finge dizer a
verdade. Afinal, se ele julga ter em mãos a Palavra de Deus terá que assumir
que o autor/narrador é o próprio Deus ou alguém que fala em seu nome,
e para tal leitor, como sabemos, Deus não finge, não mente, não engana-se,
não troça… Colocando a crença acima da literatura e suas regras, o leitor
fundamentalista lida com a ficção, julgando-a mal, levando-a demasiadamente
a sério, tomando-a ao pé da letra e, tendo encontrado nela um mundo melhor
do que o seu, recusa-se a deixar o mundo do texto, impondo na realidade as
leis maravilhosas da literatura.
Em sua relação com a ficcionalidade bíblica, o leitor fundamentalista
age como um místico que recusa-se a abandonar o estado de transe extático,
comporta-se como alguém que, tendo visto algo sublime durante seus
estados de consciência alterada, já não pode encontrar plena satisfação no
que é ordinário. Essa fuga de uma realidade potencialmente entristecedora
por meio da ficcionalização faz lembrar o Dom Quixote, personagem de
Cervantes que, obcecado por romances de cavalaria, viveu “acreditando
menos na realidade do mundo do que na realidade do texto que descreve o
mundo” (ONFRAY, 2015, p. 9-10). “Já que não viveu a vida que imaginava,
Dom Quixote imaginou a vida que viveu” (ONFRAY, 2015, p. 37, 123). Mas,
se Dom Quixote foi tratado como louco por sobrepor uma ficção literária
sobre a realidade e viver de acordo com as leis do mundo do texto, por que
ele não diz-se leitor cristão fundamentalista? Dom Quixote evidentemente
desprezava o mencionado acordo ficcional descrito por Umberto Eco (1994),
mas diríamos que seu modo de ler e viver a literatura é rejeitado, antes de
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mais nada, porque ele imaginou sozinho, fora de uma cultura, às margens de
qualquer sistema. Ou seja, o fundamentalismo institucionalizado dá suporte à
aventura quixotesca do leitor cristão de hoje, o qual não luta sozinho contra
seus moinhos e demônios. Entretanto, para sermos justos nessa comparação,
temos que levar em conta que há peculiaridades na ficcionalidade bíblica que,
de certo modo, justificam a reação do leitor cristão, peculiaridades essas que
estarão no foco das nossas atenções nas páginas abaixo.
Assim, começamos a compreender melhor porque o controle divino
sobre o destino humano é, para o leitor fundamentalista, mais do que uma
hipótese, é um pressuposto. O mundo em que habita é, como era com
os povos arcaicos, um mundo encantado, povoado por seres invisíveis,
influenciado por palavras mágicas, determinado pelo embate entre poderes
sobrenaturais que representam o bem e o mal e por um enredo que tem início
e fim bem delimitados. Estamos propondo que esse é um imaginário que
constrói-se pela narrativização da vida, e essa narrativização está fortemente
condicionada pelos padrões das narrativas bíblicas. Para tornar nossa hipótese
de trabalho mais palpável e facilitar a futura aplicação da nossa proposta à
prática analítica, dedicaremos a próxima seção à apresentação de algumas
observações prévias sobre os traços gerais da narratividade bíblica que, como
temos defendido, estruturam os imaginários religiosos fundamentalistas.
Introdução ao estudo dos imaginários religiosos
biblicamente narrativizados
Dizemos que o sujeito religioso narrativiza sua vida porque ele age,
enquanto procura dar significado à própria existência, como se sua vida fosse
o resultado da atividade criativa de um típico contador de histórias. Quando
pensa na vida, é ele quem encadeia os eventos que selecionou da sua biografia
e estabelece as relações de causa e efeito entre esses eventos que, como se
fossem capítulos que sucedem-se, devem conduzir a história até o clímax de
um enredo lógico, progressivo e bem concebido.
Claro que essa maneira de produzir significado para a vida por meio
de um subjetivo encadeamento causal de eventos não é exclusividade dos
fundamentalistas religiosos, mas há fatores exclusivos que tornam o estudo
desse processo especialmente curioso entre os fundamentalistas. Por exemplo,
é fácil constatar que, segundo o imaginário religioso fundamentalista, na
história de vida de um cristão há um prefácio e um posfácio provenientes de
antigas crenças e ficções representadas pela literatura bíblica e amplificadas
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por uma extensa história de leituras e reescritas, tais como ocorreu no
curioso caso do pecado original que, hipoteticamente, tornou todo ser humano
pecador desde o ventre da mãe (prefácio) e a subjetiva eternidade que resume
uma ideia nublada de existência pós-morte. Esse cristão recebeu tais versões
mitológicas de origem e destino por meio da sua vivência em uma cultura que
preserva aqueles antigos imaginários religiosos na literatura e noutras fontes
e, tendo-os assimilado na própria história sem distinguir realidade e ficção,
deixa que essas heranças desempenhem papéis importantes no modo como os
fatos são entendidos e avaliados. Esse imaginário faz o transcorrer dos seus
dias marcado por uma expectativa permanente de culminância escatológica,
e se o cristão acredita que, ao final da sua vida, encontrará um Dia do Juízo
que encaminhará-lhe a uma existência feliz (celestial) ou triste (infernal),
certamente ele entenderá seus feitos (e os dos demais humanos) como passos
que inevitavelmente o aproximam ou afastam do destino desejado.
A aventura bíblica sobre a qual o cristão fundamentalista interpreta a
existência concebe-se, portanto, pela aceitação de um senso de destino, de
missão. Seguindo a proposta tradicional do judeu-cristianismo a aventura
de um cristão pode ser descrita como uma busca pela própria salvação,
sanção positiva que define-se melhor e ganha em tensão pela aceitação da
possibilidade de que chegue-se ao fim da história, ao fracasso definitivo,
à danação. Todavia, a destinação de um herói à sua missão (o elemento
narrativo que faz com que um enredo desenvolva-se com interesse) não
surge pela simples escolha de uma personagem. Há sempre um agente
(pessoal ou impessoal), dotado de autoridade, para enviar o herói em sua
missão, e é nesse papel que Deus surge como personagem obrigatório. Deus
é o destinador da aventura existencial cristã, aquele que define a missão a ser
desempenhada, que estabelece as regras do jogo e que julga e sentencia, ao
final, os sujeitos, a partir da sua performance em relação ao contrato estabelecido.
O Deus sancionador que o cristão deseja encontrar, confiante em suas futuras
recompensas e na vida eterna, é também o Deus sentenciador que ele teme
quando cogita a possibilidade do erro (pecado) que o levaria às punições de
uma (paradoxal) morte eterna (BARROS, 2011a; BARROS, 2011b).
Vê-se que Deus, dentro da nossa análise do processo de narrativização,
pelo qual o cristão fundamentalista interpreta a existência, não é de fato o
autor de uma história de vida, mas um personagem que o próprio indivíduo
desenha (partindo da justa oposição às suas mais evidentes limitações) para
justificar sua ideia de missão e destino. Sabemos, desde Ludwig Feuerbach
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(2013), que, ao imaginar um deus, o homem não pode criar algo muito
diferente daquilo que conhece e, procurando dar a esse deus as melhores
formas possíveis, é natural que o desenhe a partir de uma matriz conhecida,
amalgamando o real e o imaginário (FEUERBACH, 2013). O Deus do judeucristianismo será, desse modo, um homem que excede os limites do humano,
ou seja, será um super-humano. É verdade que na Bíblia, às vezes, seus traços
antropomórficos mais frágeis manifestam-se e chegamos a ver, com surpresa,
o Criador Todo-Poderoso cansando-se ou arrependendo-se, no entanto, de
modo geral, Ele é apresentado como um homem (macho) com poderes
ilimitados, com um corpo ilimitado (imaterial e imortal) e como possuidor
de sapiência plena. Sem esse Deus, a narrativa que ordena a vida do cristão
não subsistiria, pois faltaria-lhe justamente o fundamento sobre o qual as
muitas crenças, valores, mandamentos, promessas e ameaças sustentam-se.
Embora nesse jogo o cristão que cria sentidos pense ter delegado
a Deus (seu personagem) o poder para definir o que é bom e mau, é o
cristão (junto aos seus) quem de fato escolhe os valores pelos quais as ações
humanas são julgadas. A partir do seu quadro valorativo (que permite-lhe
avaliar em nome de Deus), ele hierarquiza os sujeitos e os grupos humanos,
elegendo o seu próximo, o irmão (adjuvantes) e deixando que em suas
classificações os outros (os gentios, os pagãos, os pecadores, os incrédulos…)
sejam personagens secundários, planos, rasos, sujeitos que existem sem uma
biografia digna de atenção, sem profundidade psicológica e que, às vezes,
são demonizados para que cumpram bem o papel típico dos vilões. Nesse
processo, é óbvio que o cristão que hierarquiza o mundo tende a guardar
para si o papel de herói: ele coloca-se como o protagonista da própria
história, como um representante do bem que faz dos outros, ou alvos do seu
proselitismo, ou da sua oposição. Uma crítica que, aqui, encontra bom lugar
é a de que, tanto o proselitismo do pregador quanto o belicismo daquele que
entende-se envolvido em uma espécie de batalha de motivações espirituais, são
manifestações de posturas preconceituosas que podem, em casos extremos,
culminar em formas diversas de violência. Afinal, quando alguém procura
converter o mundo, transformá-lo, sempre está agindo com a finalidade de
moldar o mundo às formas específicas do próprio paraíso, um lugar utópico
que, ao eliminar as diferenças, privilegia-o e exalta.
No mundo, o cristão fundamentalista sempre assume como certa a
existência de um cenário mais amplo do que o que se pode ver. Em seu
horizonte utópico figura um reino celestial que expressa-se (apensar da falência
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do sistema monárquico que gerou a metáfora bíblica) no imaginário religioso
como o lugar ideal que, a exemplo do que dissemos do próprio Deus,
também desenha-se por oposição ao real e suas mazelas. Por consequência,
o imaginário religioso fundamentalista sugere que o mundo da vida seja
recebido como terreno ordinário, governado por inimigos, maculado, profano,
transitório, destinado à aniquilação. Não é por acaso que hoje, no vocabulário
evangélico, o profano tenha por sinônimo o mundano, dando legitimidade
à acusação de que a religião aguarda ansiosa pela destruição do mundo
(HITCHENS, 2016). Se é assim, naturalmente esse cristão terá que enxergarse no mundo como uma espécie de peregrino. Desse modo, reconhecemos
que a analogia popularizada pela ficção cristã de John Bunyan (autor do
clássico protestante O peregrino, de 1678) representa de maneira apropriada
a maneira como qualquer cristão deve colocar-se no mundo e na sociedade:
com desconforto (BUNYAN, 2013).
Outra consequência significativa da imposição de um mundo
ficcional que tem leis próprias sobre o mundo real é que isso leva o cristão
fundamentalista a normalizar o pensamento mágico. Ele aceita uma realidade
suprassensível específica que autoriza milagres e incentiva a expectativa por
soluções sobrenaturais para os problemas cotidianos. Graças às possíveis
intromissões daquele universo perfeito e transcendente sobre esse reduzido
mundo imperfeito e imanente (quiçá motivadas pelos seus ritos e palavras
mágicas), poder-se-á encontrar, mesmo nesse cenário maculado, lugares
especiais que foram selecionados (separados, santificados, canonizados) pela
tradição. Os exemplos mais óbvios são os endereços marcados na história do
cristianismo por experiências místicas fundantes, os sítios hipoteticamente
pisados por santos ou personagens bíblicos e os próprios templos que as
instituições sacralizaram. Mas pensemos também, para tratar de um tema mais
novo, na estranha devoção dos evangélicos brasileiros ao moderno Estado
de Israel e sua bandeira: de onde teria vindo essa reverência (que movimenta
o turismo internacional) se não das leituras que fazem das suas Bíblias e da
subsequente ficcionalização da realidade?
Há um exemplo curioso que merece reflexões dentro dos padrões
críticos aqui sugeridos: consideremos a prática (quase teatral) do profetismo
evangélico pentecostal uma espécie de misticismo em que os cristãos,
baseados nas memórias dos antigos videntes e profetas que atuam nas
páginas do Antigo Testamento, elegem novos mediadores e comunicam-se
com instâncias transcendentes, vislumbram o mundo invisível e recebem
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mensagens da parte de Deus, dos anjos, do Espírito Santo etc. É deveras
interessante o modo como ainda hoje, preservando esse tipo de ritual tão
antigo e tão popular em diferentes formas de religiosidade, esse tipo de
cristianismo concede um generoso espaço para os seus novos videntes e
profetas que supostamente anunciam o futuro, revelam segredos pessoais,
aconselham os neófitos baseados nas coisas que lhes são reveladas por Deus,
interpretam teologicamente os acontecimentos do tempo presente etc. Para
entender esse fenômeno social e religioso (que mostra-se tão comum quanto
exótico) que estamos sugerindo que os cristianismos fundamentalistas sejam
vistos como espaços discursivos, cujos gestos, palavras e conteúdos dão lugar
à reencenação de uma tradição profética estereotipada que usa a literatura
bíblica para encontrar legitimidade e forma.
Como a voz do narrador torna-se a voz de Deus
Faremos, a seguir, um apanhado dos resultados dos estudos literários
dedicados à Bíblia, com o intuito de apresentar sumariamente quais são
os mais marcantes e recorrentes padrões que caracterizam a arte narrativa
dos textos bíblicos. Nossa exposição não deve ser encarada como uma
apresentação do chamado estado da arte da crítica narrativa aplicada à Bíblia
e que o leitor não esqueça-se que tal apresentação tem objetivos específicos
pelo que seleciona, descreve e aplica os padrões narrativos da Bíblia, tendo
em vista a defesa da nossa hipótese inicial sobre os imaginários religiosos
fundamentalistas. Além disso, tanto os nossos exemplos quanto a bibliografia
sobre a qual apoiamo-nos deixarão claro que temos maior intimidade com
os traços narrativos que extraem-se da leitura dos evangelhos do Novo
Testamento. Portanto, insistimos que não é recomendado tomar nossa
análise como se fosse o resultado de um levantamento exaustivo sobre
os achados gerais da análise literária aplicada ao estudo da narratividade
bíblica. Melhor proveito terá o leitor que receber nossas páginas como um
levantamento parcial de traços de literariedade que correspondem, na história
da leitura bíblica, aos que puderam enraizar-se de maneira mais profunda no
desenvolvimento dos cristianismos fundamentalistas de hoje.
Para começar, é necessário lembrar que, “Tradicionalmente, o narrador
bíblico se esconde atrás de suas palavras” (MARGUERAT; BOURQUIN,
2009, p. 21). Quer dizer: na Bíblia, temos quase sempre narradores anônimos
e oniscientes que transmitem suas histórias em terceira pessoa (LEONEL,
2021; KINGSBURY, 1988). Na maioria das vezes, eles não têm nome
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nem participação direta como personagens das histórias que contam, são
narradores não dramatizados (ANDERSON, 1994). A voz que ouvimos quando
lemos uma história bíblica costuma ser anônima e, ademais, nos casos em que
um narrador bíblico tem nome é muito provável que esteja assumindo uma
identidade ficcional, recorrendo à pseudonímia (GABEL; WHEELER, 2003).
A identificação da voz narrativa, portanto, é mais um recurso da retórica
dos antigos autores (que tomam emprestado a autoridade culturalmente
vinculada a uma personagem) do que uma referência relevante do ponto de
vista histórico e biográfico.
O uso da narração não dramatizada que predomina nas dezenas de livros
bíblicos é relevante nessa discussão sobre a narratividade bíblica e os leitores
fundamentalistas porque esse modo de narrar é característico do contador de
histórias que não quer confessar um envolvimento pessoal com os eventos
que está a narrar, fazendo-se passar por um narrador mais confiável. Ou seja,
ao escrever sempre sobre outro que agiu lá e no passado o autor induz o leitor a
acreditar que esse narrador, não tendo participação direta na história, mantémse como mediador autônomo, emocionalmente mais isento para registrar os
acontecimentos e julgar (à distância) a participação das personagens (BARROS,
2011b; FIORIN, 2011; FERREIRA, 2006). Na prática, isso produz sobre o
leitor uma ilusão de distanciamento e imparcialidade, efeito que pode tornar
o conteúdo ainda mais convincente ao receptor.
Quanto à onisciência, é fácil notar que os narradores bíblicos
demonstram ter plena compreensão da história que contam e são capazes de
revelar até as intenções subjetivas que escondem-se por trás das ações das
suas personagens (RESSEGUIE, 2005). Na explicação de Daniel Marguerat
e Yvan Bourquin (2009) lemos que “o narrador não só está em condições
de saber tudo, como também não tem de explicar a origem de seu saber”
(MARGUERAT, BOURQUIN, 2009, p. 22). Esse tipo de narrador é capaz,
por exemplo, de contar com detalhes o que Jesus fazia sozinho e quais palavras
usava em sua súplica solitária a Deus (Lucas 22.39s). O problema que levantase é que a onisciência é também um predicado caracterizador do Deus que, na
tradição cristã fundamentalista, teria atuado na própria autoria do texto. Assim,
ao passo que um crítico literário verá na onisciência dos narradores bíblicos
uma clara evidência da ficcionalidade dessas páginas, um leitor fundamentalista
poderá facilmente julgar que trata-se de uma narração ainda mais fidedigna dos
fatos, com o ponto de vista divino, posto que tais conhecimentos só estariam
acessíveis aos autores por meio de um processo místico-revelatório.
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Quando interrompem o fluxo narrativo e intervêm com voz própria,
os narradores bíblicos fazem avaliações, acrescentam comentários, revelam
detalhes e segredos, mas nunca fazem isso de modo reticente. Eles
demonstram plena convicção em seus juízos e não cedem espaço para que
o leitor receba suas palavras como mera opinião, interpretação pessoal da
história. O leitor-modelo (ou implícito, idealizado pelo próprio texto) será
sempre um leitor que confia no narrador. “É sempre assim na narração
bíblica: o leitor adere à narrativa do narrador, ao seu sistema de valores”
(MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 22).
No Evangelho de Mateus, há uma cena em que o narrador intervém em
favor do personagem José, declarando-o “justo” (Mateus 1.19). Seu objetivo
é impedir que o leitor faça um juízo negativo do personagem que planejava
abandonar Maria durante sua misteriosa gestação. Estratégia semelhante foi
empregada pelo narrador do Evangelho de Marcos que explica ao leitor
que Pedro, embora pareça estar fazendo boas propostas (a de que fizessem
tendas para Jesus, Moisés e Elias), está dizendo tolices em razão do medo
que sentia (Marcos 9.7). O narrador de Lucas, por sua vez, zelando pela
coerência da história, interrompe o andamento da história quando pensa que
precisa esclarecer que uma pergunta feita por Jesus é apenas um teste para
seus discípulos e não uma evidência de ignorância (Lucas 6.6). Por último,
também lembramo-nos de uma cena em que o narrador guia o leitor a uma
avaliação negativa das ações imprevistas de Judas Iscariotes, ao dizer que
“entrou nele Satanás” (João 13.27; Lucas 22.3).
Os narradores bíblicos são, portanto, narradores oniscientes que
anunciam-se confiáveis como mediadores entre o leitor e as histórias que
contam ou, de maneira mais ousada, entre o leitor e a própria Palavra de Deus.
Em função disso, o leitor fundamentalista não deve ser visto apenas como
receptor ingênuo, mas como leitor que responde de maneira excessivamente
positiva aos impulsos de uma estratégia retórica muito bem desempenhada
pelos antigos autores.
Seguindo, já foi dito que a antologia bíblica, de maneira geral, expressa-se
por meio de uma retórica agressiva, sempre com o objetivo explícito de mudar
os leitores (VAN OYEN, 2020). Não foi à toa que Erich Auerbach (2011)
afirmou que as narrativas bíblicas interpelam os leitores de maneira tirânica:
A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de
Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo
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dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de
ser uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo
verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo [...]. Os relatos das Sagradas
Escrituras não procuram nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam
para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar. (AUERBACH,
2011, p. 11-12).
Há mais motivos que levam-nos a essas conclusões sobre o singular
poder de persuasão dos textos bíblicos e o perfil do cristão fundamentalista
como leitor: temos considerado como o leitor fundamentalista da Bíblia
nem sempre está atento ao fato de que, no texto, a voz de Deus é também a
voz do narrador, ele raramente leva em conta o fato de que as palavras que
compõem um discurso de Jesus também foram escolhidas pelo autor. Desse
modo, tal leitor facilmente tomará as palavras dos personagens Deus e Jesus
(que em edições modernas da Bíblia aparecerão entre aspas) como se fossem
transcrições precisas dos dizeres divinos.
Hoje pode parecer ingenuidade o fato de um leitor confiar que algumas
palavras atribuídas ao personagem Deus tenham sido pronunciadas pelo
próprio Deus, mas esse modo de recepcionar o texto não é o resultado de más
leituras, mas a resposta esperada pelo emprego de certos dispositivos retóricos
pelo próprio texto. Não foi por acaso que os narradores bíblicos escolheram
colocar na boca dos principais personagens os conteúdos mais ricos. Quando
eles têm algo importante a dizer, usam justamente a voz de alguém como
Jesus, Deus, um profeta, um anjo... E, tomando de empréstimo a autoridade
culturalmente atribuída a tais figuras, tornam mais proeminente a mensagem
que transmitem. Assim, vale a pena voltar aos textos bíblicos com atenção ao
fato de que, quando alguém como Deus fala, temos não apenas uma escolha
mais criteriosa de palavras como também uma maior concordância ideológica
entre autor/narrador e personagem (ANDERSON, 1994).
Os mediadores da leitura bíblica e a resposta do leitor
Além das características já mencionadas com a intenção de explicar o
funcionamento da arte da narrativa bíblica, é indispensável para os nossos
propósitos considerar como algumas forças mediadoras externas operam
sobre o leitor religioso da Bíblia e sua maneira de encarar o texto. Tais
forças expressam-se na própria materialidade do livro, em seus protocolos
de leitura (CHARTIER, 2011) e por meio das práticas de leitura conhecidas,
sugeridas e fixadas por instâncias detentoras de autoridade no manuseio da
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Bíblia (CHARTIER, 2011; CHARTIER, 2014). Conscientes das impositivas
estratégias enunciativas da comunicação bíblica (que estudamos na seção
anterior), ainda convém considerar as forças coercitivas que operam sobre
o leitor a partir do rótulo de livro sagrado que tradicionalmente empregase na designação da coleção bíblica, nas notas de caráter dogmático que
acompanham os textos nas edições produzidas por instituições religiosas,
na produção de conteúdos cristãos sobre a Bíblia que estão disponíveis em
diferentes veículos, no uso carregado de devoção e reverência gestual que
faz-se do livro nas liturgias.
No livro The Rise and Fall of the Bible (2011), Timothy Beal discutiu
longamente o fato, aparentemente paradoxal, de que (considerando
especificamente o cenário norte-americano) a Bíblia continue sendo cada
vez mais reverenciada e vendida enquanto o conhecimento que os leitores
têm sobre o conteúdo bíblico mostre-se cada vez mais parco (BEAL, 2011).
Segundo o autor, o que os leitores cristãos estão comprando não é a Bíblia,
uma coleção de livros a ser lida, mas um ícone, uma ideia de Bíblia que a
apresenta como um objeto mágico que tem respostas para todas as questões
humanas, um livro encantado por meio do qual Deus supostamente pode
falar de modo direto com qualquer leitor a respeito de como ele deve viver a
própria vida (BEAL, 2011). Quando esse leitor procura ler as páginas bíblicas
por conta própria, todavia, suas expectativas são frustradas, o que o leva a
aceitar passivamente o trabalho interpretativo fornecido por mediadores
religiosos que atuam por meio de igrejas, editoras, livros, revistas, redes
sociais, programas de TV etc.
Em suma, tendo aprendido a reverenciar o próprio livro, tendo sido
instruído a crer nessa ideia mágica de Bíblia, estando em contato com
mediadores que falam em nome de Deus e interpretam os textos difíceis
em seu lugar e deparando-se (em suas leituras pessoais) com narradores
anônimos e oniscientes que escrevem/falam como se fossem o próprio Deus,
o leitor cristão fundamentalista contemporâneo terá evidente dificuldade para
reagir negativamente às mensagens que lhe são entregues. Nesse contexto
religioso de leitura, admitir o lado mitológico das páginas bíblicas, questionar
a fiabilidade histórica das suas histórias ou reconhecer seus evidentes traços
ficcionais pode ser o mesmo que atribuir mentiras a Deus ou negar o caráter
sacro das Escrituras (VAN OYEN, 2020). Logo, dizer não aos imperativos dos
narradores bíblicos será, para um leitor fundamentalista, como dizer não
ao próprio Deus, pelo qual não é raro que esse leitor sujeite seus sentidos,
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suas intuições, seus saberes sobre o mundo (incluindo aqueles que foram-lhe
demonstrados pelas ciências) aos valores e às verdades que lhe são transmitidos
pela literatura bíblica e pelas instituições que determinam seus modos de uso.
Assim, somados os traços característicos da narratividade bíblica às forças
mediadoras das tradições e instituições religiosas, o que produz-se são efeitos
poderosos de convencimento que atiram-se sobre os leitores, colocando-os
contra a parede enquanto exigem sua conversão.
Já foi sugerido que a resposta do leitor que sujeita-se ao texto bíblico
não tem, a princípio, nada de condenável, trata-se de uma reação desejada,
esperada, preparada pela própria literatura. O fundamentalismo é, enquanto
prática de leitura bíblica, uma resposta coerente à força retórica própria dessa
literatura. O leitor que converte-se e passa a crer em anjos e demônios está
acenando positivamente ao protocolo de leitura, aproximando-se pragmaticamente
do leitor-modelo concebido pelo próprio texto. Por outro lado, quando isso
ocorre de maneira acentuada em pleno século XXI, há também evidências
de certa ingenuidade no trato com a palavra escrita, com a ficção literária
e seus limites como instrumento de representação da realidade. Há uma
má compreensão das estratégias de narração que estudamos, uma confusão
relativa às instâncias enunciativas que coopera para que tais leitores fechem
os olhos aos sinais da realidade empírica e deixem que a ficcionalidade bíblica
formate seu imaginário religioso, sua visão de mundo e, consequentemente,
seus modos de pensar e agir.
Procurando por exemplos que ilustrem como essas forças (estratégias
narrativas e cultura religiosa) puderam conduzir a leituras e comportamentos
extremos, recordemos o famoso caso de Orígenes, pensador e escritor cristão
que, na cidade Alexandria no ano 215, castrou-se por influência de uma
passagem do Evangelho de Mateus (19.12) que exalta o estereótipo do seguidor
de Jesus que faz-se eunuco por causa do reino dos céus (ONFRAY, 2019,
p. 100). Imaginemos, partindo desse extremo, quantos leitores ao longo dos
séculos não optaram pela pobreza voluntária a partir da leitura que fizeram
dos textos bíblicos. Quantos não foram os que doaram seus bens às igrejas
inspirados nas lendas dos primeiros cristianismos? Quantos não evitaram o
matrimônio (ou submeteram-se a ele) tão somente por conta de um conselho
supostamente bíblico? Para tratar de temas socialmente mais sensíveis e atuais,
quanta xenofobia, misoginia ou homofobia não foi patrocinada pela leitura
fundamentalista dos textos bíblicos até os dias de hoje?
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Considerações finais
Encerramos essas páginas com Umberto Eco (1994), autor cujas
considerações a respeito da ficção literária forneceram-nos os insights que,
em dado momento, impulsionaram esse trabalho:
Existe uma regra de ouro em que os criptoanalistas confiam - a saber, que
toda mensagem secreta pode ser decifrada, desde que se saiba que é uma
mensagem. O problema com o mundo real é que, desde o começo dos
tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em
havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os universos ficcionais sabemos
sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás
deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura.
(ECO, 1994, p. 122).
A insatisfação com a realidade e a preferência pela sua ficcionalização
estão na essência das religiões. Das antigas mitologias aos modernos
exorcismos televisionados, as religiões convidam os humanos a verem além,
a transcenderem os limites da materialidade para encontrarem o verdadeiro
sentido da vida (um sentido melhor). De outro ponto de vista, diríamos que
as religiões convidam-nos a elaborarmos uma realidade paralela, chamam-nos
para ficcionalizar a vida com uma boa medida de imaginação para criar uma
versão expandida do mundo que, a despeito da sua intangibilidade, servirá à
nossa profunda necessidade de encontrar sentidos.
Por certo, há um lado positivo nessa capacidade de narrativizar a
existência e, a despeito de todas as mazelas da história que tiveram origem
nas religiões com suas escrituras e interpretações, é provável que não exista
instrumento mais eficaz que a fé nas mãos de quem precisa lidar com as
conhecidas e inevitáveis dores do existir. Representando em nosso fazer
acadêmico a voz do erudito que lê a Bíblia como literatura e estuda os
fenômenos religiosos à distância raramente encontramos oportunidades
para constatar que “É somente quando a Bíblia toca o leitor em sua vida
pessoal que o texto atinge seu pleno significado” (VAN OYEN, 2020, p.
9). Com efeito, nada do que foi exposto acima autoriza-nos a afirmar que
a leitura cristã fundamentalista é uma leitura ruim. Trata-se, isso sim, de
uma leitura diferente, não acadêmica, interessada em respostas concretas e
descomprometida com nossas complexas teorias literárias. O leitor cristão
fundamentalista deixa-se levar, acede (quase sempre) à verdade revelada
pelas páginas bíblicas, segue com confiança as regras do jogo narrativo dos
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autores e esforça-se como ninguém para encontrar coerência e significação
nessa coleção de textos antigos, exóticos e muitas vezes difíceis. O que ele
geralmente não tolera, a despeito da abundância dos conteúdos, da polissemia
dos textos, da multidão de vozes que clamam por atenção nas páginas da
Bíblia, é que toda leitura tem seu lugar. Assim, o que há para criticar não
é o apreço que ele tem por sua literatura (que hipoteticamente revelou-lhe
a verdade), mas a maneira combativa com que defende e tenta impor suas
leituras, negando ao mundo o direito à sua inerente diversidade.
Enfim, o que fizemos aqui foi esboçar uma teoria sobre o processo
de ficcionalização da realidade nos cristianismos fundamentalistas atuais,
defendendo sempre que a literatura bíblica exerce um papel determinante nos
resultados desse fazer interpretativo. A partir daqui, o encontro das nossas
hipóteses à experiência de outros leitores provavelmente levantará problemas
não considerados, limites não reconhecidos, caminhos não explorados… Então,
veremos se nossa ousada teoria mostrará-se suficientemente sólida e útil para
seguirmos com ela nos estudos dos imaginários religiosos contemporâneos.
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Submetido em: 6-6-2022
Aceito em: 28-6-2023
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