Academia.eduAcademia.edu

A narratividade bíblica e os imaginários religiosos

2023, ESTUDOS DE RELIGIÃO - UMEMSP

Este artigo sugere um olhar literário para os discursos religiosos por meio de uma hipótese sobre a presença da narratividade bíblica nos imaginários religiosos fundamentalistas. Estudando os padrões mais marcantes das narrativas bíblicas e defendendo a presença dessa literatura (em formas e conteúdos) na cultura ocidental contemporânea, dir-se-á que a cosmovisão dos grupos cristãos fundamentalistas é construída narrativamente, seguindo os moldes definidos pelos narradores bíblicos. Os procedimentos analíticos usados para chegar aos resultados esperados são a Análise literária que destaca os traços característicos da narratividade bíblica e a Análise do discurso que volta-se ao nível narrativo da comunicação religiosa para apontar a imposição da ficcionalidade bíblica sobre o modo fundamentalista de criar ordem e sentido para a existência.

A narratividade bíblica e os imaginários religiosos Anderson de Oliveira Lima* Resumo Este artigo sugere um olhar literário para os discursos religiosos por meio de uma hipótese sobre a presença da narratividade bíblica nos imaginários religiosos fundamentalistas. Estudando os padrões mais marcantes das narrativas bíblicas e defendendo a presença dessa literatura (em formas e conteúdos) na cultura ocidental contemporânea, dir-se-á que a cosmovisão dos grupos cristãos fundamentalistas é construída narrativamente, seguindo os moldes definidos pelos narradores bíblicos. Os procedimentos analíticos usados para chegar aos resultados esperados são a Análise literária que destaca os traços característicos da narratividade bíblica e a Análise do discurso que volta-se ao nível narrativo da comunicação religiosa para apontar a imposição da ficcionalidade bíblica sobre o modo fundamentalista de criar ordem e sentido para a existência. Palavras-chave: Narratividade bíblica; Imaginários religiosos; Fundamentalismo; Análise literária; Análise do discurso. Biblical Narrativity and the Religious Imaginary Abstract This article suggests a literary way to look at religious discourses through a hypothesis about the presence of biblical narrativity in fundamentalist religious imaginaries. Studying the most remarkable patterns of biblical narratives and defending their presence of this literature (both in form and content) in contemporary Western culture, we will be said that the worldview of fundamentalist Christian groups is constructed narratively, following the shapes defined by biblical narrators. The analytical apparatus used to reach the expected results are Literary Analysis, which highlights the features of biblical narrativity, and Discourse Analysis, which focuses on the narrative level of religious communication to show the imposition of biblical fiction on the fundamentalist way of creating order and meaning for our existence. Keywords: Biblical Narrativity; Religious Imaginary Fundamentalism; Literary Analysis; Discourse Analysis. * Doutor em Ciências da Religião (UMESP) e doutor em Letras (UPM), possui pósdoutorado em Ciências da Religião pela PUC-Capinas e, atualmente, é pesquisador no pósdoutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua-Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). 238 Anderson de Oliveira Lima La narratividad bíblica y los imaginarios religiosos Resumen Este artículo propone una mirada literaria a los discursos religiosos a través de una hipótesis sobre la presencia de la narratividad bíblica en los imaginarios religiosos fundamentalistas. Estudiando los modelos más llamativos de las narraciones bíblicas y defendiendo la presencia de esta literatura (en formas y contenidos) en la cultura occidental contemporánea, se dirá que la cosmovisión de los grupos fundamentalistas cristianos se construye narrativamente, siguiendo los moldes definidos por los narradores bíblicos. Los procedimientos analíticos utilizados para llegar a los resultados esperados son el Análisis Literario, que destaca los rasgos característicos de la narratividad bíblica, y el Análisis del Discurso, que recurre al nivel narrativo de la comunicación religiosa para señalar la imposición de la ficción bíblica a la forma fundamentalista de crear orden y significado para la existencia. Palabras clave: Narratividad bíblica; Imaginarios religiosos; Fundamentalismo; Análisis literario; Análisis del discurso. Introdução Este artigo surgiu com a finalidade de levar adiante um trabalho desenvolvido entre os anos de 2014 e 2015 que resultou na publicação de um artigo científico experimental na época (LIMA, 2015). Voltamos aos pontos centrais daquele trabalho com a intenção de dar seguimento à defesa de uma hipótese que mostrava-se digna de desenvolvimentos, capaz de gerar interesse e ótimos resultados no meio acadêmico com o qual dialogamos. Em suma, o que queria-se demonstrar é que os imaginários religiosos (em especial, os do segmento cristão fundamentalista) pautam-se nos padrões narrativos herdados das páginas bíblicas ou, com outras palavras, que os textos bíblicos ofereceram os padrões narrativos sobre os quais muitos de nós têm dado sentido e ordem à vida até os dias de hoje. Assim, o que temos para apresentar é um segundo momento de um projeto de pesquisas amplo, um vir à tona quase espontâneo de um tema que não esgotou-se. Nessas novas páginas, procuraremos aprofundar nossos conhecimentos, demonstrar com mais detalhes as especificidades das relações de dependência entre as páginas bíblicas e os discursos fundamentalistas e argumentar a favor da relevância desse modo literário de olhar para os imaginários religiosos contemporâneos. Estamos operando com duas grandes áreas de pesquisas que lidam de maneiras complementares com os fenômenos religiosos e suas práticas discursivas: primeiro, faremos uso da Análise literária como instrumento por meio do qual voltamo-nos para os textos, a fim de identificar os mais marcantes padrões narrativos da literatura bíblica, pressupondo a irradiação Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 239 desses padrões por intermédio do tempo e da cultura ocidental. Depois, voltando nossos olhos à recepção, partimos à identificação desses mesmos padrões narrativos em discursos posteriores, mais especificamente, passaremos a estudar os imaginários religiosos dos grupos cristãos fundamentalistas da contemporaneidade. Essa segunda linha de trabalho pode envolver recursos metodológicos bem distintos e, nós, por afinidade, adotamos a Semiótica greimasiana (ou Análise do discurso), esperando que seus recursos ajudem a lançar luz sobre a presença e a influência daqueles padrões narrativos sobre os produtos discursivos que colocaremos em análise. Será por esses meios que nosso trabalho procurará demonstrar como a cosmovisão dos grupos cristãos fundamentalistas configura-se narrativamente, fazendo com que os tais interpretem cada aspecto da existência como um evento literário comparável com aqueles que as páginas bíblicas consagraram. A hipótese da narrativização da vida Há alguns anos, Paulo Augusto de Souza Nogueira refletia sobre as relações entre religião e linguagem e sugeria que “a linguagem estrutura a religião” (NOGUEIRA, 2016, p. 243), sinalizando a importância dos estudos da linguagem para as pesquisas em Ciências da Religião. Nogueira estava abordando em sua área apontamentos de consequências amplas que conhecíamos, por exemplo, por meio de pensadores como George Steiner (2005), para quem a linguagem não é apenas um veículo do pensamento, mas o seu fator determinante. Em Steiner lemos que “O pensamento é a linguagem internalizada; e nós pensamos e sentimos conforme nossa língua particular nos impele e nos permite fazer” (STEINER, 2005, p. 101). Nosso trabalho, evidentemente, concorda com Nogueira e Steiner e propõe-se a colocar suas asserções à prova sob circunstâncias específicas nos estudos das religiões. Defenderemos que uma religião é feita a partir das potencialidades desenvolvidas da linguagem de um povo e que quando ela torna-se determinante na cultura, de efeito da linguagem a religião passa a ser causa, começa a exercer sua força criativa sobre os rumos da mesma linguagem que outrora a moldou. É nesse processo último que nossa pesquisa encontra seu exato lugar, pois procura demonstrar como as tradições do cristianismo e seu texto sagrado agora ditam as regras no desenvolvimento dos imaginários religiosos cristãos fundamentalistas em suas múltiplas expressões. Nosso interesse pelo tema foi impulsionado de maneira mais expressiva quando tivemos contato com algumas intuições de Umberto Eco que, no livro Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 240 Anderson de Oliveira Lima Seis passeios pelos bosques da ficção (1994), sugeriu que os humanos, procurando dar sentido à própria vida, ficcionalizam-na: Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo de Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um [...]. Sempre s0e procurou Deus como Narrador [...] procuraram Deus como Autor-Modelo – quer dizer, Deus como a Regra do Jogo, como a Lei que torna ou um dia tornará compreensível o labirinto do mundo. A Divindade nesse caso é algo que precisamos descobrir ao mesmo tempo que descobrimos por que estamos no labirinto e qual é o caminho que nos cabe percorrer. (ECO, 1994, p. 121). Entende-se que os humanos não só criam narrativas ficcionais a partir da vida como também tomam algumas das suas narrativas, em especial, aquelas que tornaram-se textos fundamentais ao longo da história dos seus usos (PUCHNER, 2019), como fontes para que, usando a imaginação, ficcionalizem a própria vida, dando a ela uma aceitável aparência de sentido e ordem. Às colocações gerais de Umberto Eco (1994) temos somado, por nossa conta, a ideia de que essa ficcionalização da existência que confunde o mundo real com o mundo dos textos, no caso dos grupos cristãos fundamentalistas, toma como principal modelo ordenador as páginas bíblicas, um dos mais fundamentais textos em operação nesse grande sistema de intercâmbios discursivos que é a cultura ocidental. É dessa grandiosa antologia textual que saíram os padrões narrativos que definem o lugar de Deus e dos demais personagens dessa versão ficcionalizada da vida, é a partir dela que dá-se sentido ao mal e à morte, que desenvolvem-se esperanças, que elaboram-se os rótulos que definem os homens e seus lugares sociais, que explicam-se as convulsões imprevistas no transcorrer dos dias, que estabelecem-se valores, definem-se comportamentos etc. Não negamos que, ao trabalhar sobre essas irradiações dos motivos bíblicos pela cultura ocidental, nosso trabalho deve muito às importantes contribuições de Erich Auerbach (2011). Em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (2011), o crítico literário alemão defendeu que toda a literatura ocidental havia sido construída sobre dois grandes pilares: a Ilíada e a Bíblia. Auerbach (2011) comparou os dois grandes clássicos e, Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 241 de maneira magistral, identificou algumas características das duas literaturas com o objetivo de demonstrar, depois, como seus padrões estilísticos condicionaram toda a evolução da ficcionalidade literária ocidental. Em nossa proposta, inegavelmente influenciada pela obra de Auerbach (2011), ousamos a tentativa de ampliar seus achados. Temos buscado, condicionados por nossas preferências, idiossincrasias e limitações, reelaborar a lista dos padrões narrativos destacados por Auerbach em sua leitura da Bíblia e aplicar os resultados de maneira mais aberta ao nosso próprio lugar e momento históricos. Ou seja, além de confirmar a hipótese de Auerbach quanto aos impactos decisivos da tradição bíblica na literatura posterior, queremos também demonstrar, por meio de análises de discursos religiosos atuais, que essas irradiações vão muito mais longe do que a leitura dos clássicos da nossa literatura poderia nos dizer. A Bíblia está presente (para o bem ou para o mal) de modo indelével na cultura ocidental. Mas, para que possamos vê-la como matriz absoluta de imaginários religiosos modernos, convém considerar (ainda que brevemente) o modo como a Bíblia foi adotada, desde a Reforma, como o principal fundamento das religiosidades cristãs de linha protestante, passando a ocupar uma posição privilegiada como sua grande hierofania (ELIADE, 2012). A Bíblia, nesse universo religioso, não é mais um mero livro, mas o principal veículo da revelação da Palavra de Deus. Por conseguinte, como reação ao avanço da crítica moderna aplicada à Bíblia na virada dos séculos XIX e XX, grupos cristãos conservadores viram-se impelidos a combater o pensamento erudito da época que, do seu ponto de vista, ameaçava a sacralidade dos seus textos (AFONSO; CAMPOS, 2021; PANASIEWICZ, 2008; ARMSTRONG, 2001). Combatendo as teses acadêmicas, negaram com veemência a presença de qualquer traço ficcional nessa literatura e sustentaram, a despeito do avanço dos conhecimentos acumulados pelas ciências bíblicas, a crença na Bíblia como obra totalmente coesa, inspirada e inerrante (FITZMYER, 1997). Dessa resistência conservadora, os textos bíblicos (e suas interpretações oficiais) saíram com privilégios ainda maiores, ganharam força como matrizes culturais, passando a ser o instrumento principal pelo qual os fundamentalistas explicam o mundo e estabelecem o que aceitam como verdade. No mesmo livro que deu início às nossas reflexões, Umberto Eco (1994) escreveu palavras importantes sobre o ato da leitura: Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 242 Anderson de Oliveira Lima A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras [...] o autor simplesmente finge dizer a verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, p. 81). Não há nada a corrigir nas linhas escritas por Umberto Eco e nós as queremos na superfície da memória, no entanto, elas não dão conta do processo singular que dá-se no encontro de um leitor fundamentalista com uma Bíblia sagrada. Ocorre que o leitor fundamentalista rejeita a mencionada “norma” por resistir à ideia de que a Bíblia possa ser, em qualquer sentido, uma obra de ficção, de modo que ele entra por suas páginas assinando outra espécie de acordo. Para ele, o narrador bíblico jamais finge dizer a verdade. Afinal, se ele julga ter em mãos a Palavra de Deus terá que assumir que o autor/narrador é o próprio Deus ou alguém que fala em seu nome, e para tal leitor, como sabemos, Deus não finge, não mente, não engana-se, não troça… Colocando a crença acima da literatura e suas regras, o leitor fundamentalista lida com a ficção, julgando-a mal, levando-a demasiadamente a sério, tomando-a ao pé da letra e, tendo encontrado nela um mundo melhor do que o seu, recusa-se a deixar o mundo do texto, impondo na realidade as leis maravilhosas da literatura. Em sua relação com a ficcionalidade bíblica, o leitor fundamentalista age como um místico que recusa-se a abandonar o estado de transe extático, comporta-se como alguém que, tendo visto algo sublime durante seus estados de consciência alterada, já não pode encontrar plena satisfação no que é ordinário. Essa fuga de uma realidade potencialmente entristecedora por meio da ficcionalização faz lembrar o Dom Quixote, personagem de Cervantes que, obcecado por romances de cavalaria, viveu “acreditando menos na realidade do mundo do que na realidade do texto que descreve o mundo” (ONFRAY, 2015, p. 9-10). “Já que não viveu a vida que imaginava, Dom Quixote imaginou a vida que viveu” (ONFRAY, 2015, p. 37, 123). Mas, se Dom Quixote foi tratado como louco por sobrepor uma ficção literária sobre a realidade e viver de acordo com as leis do mundo do texto, por que ele não diz-se leitor cristão fundamentalista? Dom Quixote evidentemente desprezava o mencionado acordo ficcional descrito por Umberto Eco (1994), mas diríamos que seu modo de ler e viver a literatura é rejeitado, antes de Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 243 mais nada, porque ele imaginou sozinho, fora de uma cultura, às margens de qualquer sistema. Ou seja, o fundamentalismo institucionalizado dá suporte à aventura quixotesca do leitor cristão de hoje, o qual não luta sozinho contra seus moinhos e demônios. Entretanto, para sermos justos nessa comparação, temos que levar em conta que há peculiaridades na ficcionalidade bíblica que, de certo modo, justificam a reação do leitor cristão, peculiaridades essas que estarão no foco das nossas atenções nas páginas abaixo. Assim, começamos a compreender melhor porque o controle divino sobre o destino humano é, para o leitor fundamentalista, mais do que uma hipótese, é um pressuposto. O mundo em que habita é, como era com os povos arcaicos, um mundo encantado, povoado por seres invisíveis, influenciado por palavras mágicas, determinado pelo embate entre poderes sobrenaturais que representam o bem e o mal e por um enredo que tem início e fim bem delimitados. Estamos propondo que esse é um imaginário que constrói-se pela narrativização da vida, e essa narrativização está fortemente condicionada pelos padrões das narrativas bíblicas. Para tornar nossa hipótese de trabalho mais palpável e facilitar a futura aplicação da nossa proposta à prática analítica, dedicaremos a próxima seção à apresentação de algumas observações prévias sobre os traços gerais da narratividade bíblica que, como temos defendido, estruturam os imaginários religiosos fundamentalistas. Introdução ao estudo dos imaginários religiosos biblicamente narrativizados Dizemos que o sujeito religioso narrativiza sua vida porque ele age, enquanto procura dar significado à própria existência, como se sua vida fosse o resultado da atividade criativa de um típico contador de histórias. Quando pensa na vida, é ele quem encadeia os eventos que selecionou da sua biografia e estabelece as relações de causa e efeito entre esses eventos que, como se fossem capítulos que sucedem-se, devem conduzir a história até o clímax de um enredo lógico, progressivo e bem concebido. Claro que essa maneira de produzir significado para a vida por meio de um subjetivo encadeamento causal de eventos não é exclusividade dos fundamentalistas religiosos, mas há fatores exclusivos que tornam o estudo desse processo especialmente curioso entre os fundamentalistas. Por exemplo, é fácil constatar que, segundo o imaginário religioso fundamentalista, na história de vida de um cristão há um prefácio e um posfácio provenientes de antigas crenças e ficções representadas pela literatura bíblica e amplificadas Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 244 Anderson de Oliveira Lima por uma extensa história de leituras e reescritas, tais como ocorreu no curioso caso do pecado original que, hipoteticamente, tornou todo ser humano pecador desde o ventre da mãe (prefácio) e a subjetiva eternidade que resume uma ideia nublada de existência pós-morte. Esse cristão recebeu tais versões mitológicas de origem e destino por meio da sua vivência em uma cultura que preserva aqueles antigos imaginários religiosos na literatura e noutras fontes e, tendo-os assimilado na própria história sem distinguir realidade e ficção, deixa que essas heranças desempenhem papéis importantes no modo como os fatos são entendidos e avaliados. Esse imaginário faz o transcorrer dos seus dias marcado por uma expectativa permanente de culminância escatológica, e se o cristão acredita que, ao final da sua vida, encontrará um Dia do Juízo que encaminhará-lhe a uma existência feliz (celestial) ou triste (infernal), certamente ele entenderá seus feitos (e os dos demais humanos) como passos que inevitavelmente o aproximam ou afastam do destino desejado. A aventura bíblica sobre a qual o cristão fundamentalista interpreta a existência concebe-se, portanto, pela aceitação de um senso de destino, de missão. Seguindo a proposta tradicional do judeu-cristianismo a aventura de um cristão pode ser descrita como uma busca pela própria salvação, sanção positiva que define-se melhor e ganha em tensão pela aceitação da possibilidade de que chegue-se ao fim da história, ao fracasso definitivo, à danação. Todavia, a destinação de um herói à sua missão (o elemento narrativo que faz com que um enredo desenvolva-se com interesse) não surge pela simples escolha de uma personagem. Há sempre um agente (pessoal ou impessoal), dotado de autoridade, para enviar o herói em sua missão, e é nesse papel que Deus surge como personagem obrigatório. Deus é o destinador da aventura existencial cristã, aquele que define a missão a ser desempenhada, que estabelece as regras do jogo e que julga e sentencia, ao final, os sujeitos, a partir da sua performance em relação ao contrato estabelecido. O Deus sancionador que o cristão deseja encontrar, confiante em suas futuras recompensas e na vida eterna, é também o Deus sentenciador que ele teme quando cogita a possibilidade do erro (pecado) que o levaria às punições de uma (paradoxal) morte eterna (BARROS, 2011a; BARROS, 2011b). Vê-se que Deus, dentro da nossa análise do processo de narrativização, pelo qual o cristão fundamentalista interpreta a existência, não é de fato o autor de uma história de vida, mas um personagem que o próprio indivíduo desenha (partindo da justa oposição às suas mais evidentes limitações) para justificar sua ideia de missão e destino. Sabemos, desde Ludwig Feuerbach Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 245 (2013), que, ao imaginar um deus, o homem não pode criar algo muito diferente daquilo que conhece e, procurando dar a esse deus as melhores formas possíveis, é natural que o desenhe a partir de uma matriz conhecida, amalgamando o real e o imaginário (FEUERBACH, 2013). O Deus do judeucristianismo será, desse modo, um homem que excede os limites do humano, ou seja, será um super-humano. É verdade que na Bíblia, às vezes, seus traços antropomórficos mais frágeis manifestam-se e chegamos a ver, com surpresa, o Criador Todo-Poderoso cansando-se ou arrependendo-se, no entanto, de modo geral, Ele é apresentado como um homem (macho) com poderes ilimitados, com um corpo ilimitado (imaterial e imortal) e como possuidor de sapiência plena. Sem esse Deus, a narrativa que ordena a vida do cristão não subsistiria, pois faltaria-lhe justamente o fundamento sobre o qual as muitas crenças, valores, mandamentos, promessas e ameaças sustentam-se. Embora nesse jogo o cristão que cria sentidos pense ter delegado a Deus (seu personagem) o poder para definir o que é bom e mau, é o cristão (junto aos seus) quem de fato escolhe os valores pelos quais as ações humanas são julgadas. A partir do seu quadro valorativo (que permite-lhe avaliar em nome de Deus), ele hierarquiza os sujeitos e os grupos humanos, elegendo o seu próximo, o irmão (adjuvantes) e deixando que em suas classificações os outros (os gentios, os pagãos, os pecadores, os incrédulos…) sejam personagens secundários, planos, rasos, sujeitos que existem sem uma biografia digna de atenção, sem profundidade psicológica e que, às vezes, são demonizados para que cumpram bem o papel típico dos vilões. Nesse processo, é óbvio que o cristão que hierarquiza o mundo tende a guardar para si o papel de herói: ele coloca-se como o protagonista da própria história, como um representante do bem que faz dos outros, ou alvos do seu proselitismo, ou da sua oposição. Uma crítica que, aqui, encontra bom lugar é a de que, tanto o proselitismo do pregador quanto o belicismo daquele que entende-se envolvido em uma espécie de batalha de motivações espirituais, são manifestações de posturas preconceituosas que podem, em casos extremos, culminar em formas diversas de violência. Afinal, quando alguém procura converter o mundo, transformá-lo, sempre está agindo com a finalidade de moldar o mundo às formas específicas do próprio paraíso, um lugar utópico que, ao eliminar as diferenças, privilegia-o e exalta. No mundo, o cristão fundamentalista sempre assume como certa a existência de um cenário mais amplo do que o que se pode ver. Em seu horizonte utópico figura um reino celestial que expressa-se (apensar da falência Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 246 Anderson de Oliveira Lima do sistema monárquico que gerou a metáfora bíblica) no imaginário religioso como o lugar ideal que, a exemplo do que dissemos do próprio Deus, também desenha-se por oposição ao real e suas mazelas. Por consequência, o imaginário religioso fundamentalista sugere que o mundo da vida seja recebido como terreno ordinário, governado por inimigos, maculado, profano, transitório, destinado à aniquilação. Não é por acaso que hoje, no vocabulário evangélico, o profano tenha por sinônimo o mundano, dando legitimidade à acusação de que a religião aguarda ansiosa pela destruição do mundo (HITCHENS, 2016). Se é assim, naturalmente esse cristão terá que enxergarse no mundo como uma espécie de peregrino. Desse modo, reconhecemos que a analogia popularizada pela ficção cristã de John Bunyan (autor do clássico protestante O peregrino, de 1678) representa de maneira apropriada a maneira como qualquer cristão deve colocar-se no mundo e na sociedade: com desconforto (BUNYAN, 2013). Outra consequência significativa da imposição de um mundo ficcional que tem leis próprias sobre o mundo real é que isso leva o cristão fundamentalista a normalizar o pensamento mágico. Ele aceita uma realidade suprassensível específica que autoriza milagres e incentiva a expectativa por soluções sobrenaturais para os problemas cotidianos. Graças às possíveis intromissões daquele universo perfeito e transcendente sobre esse reduzido mundo imperfeito e imanente (quiçá motivadas pelos seus ritos e palavras mágicas), poder-se-á encontrar, mesmo nesse cenário maculado, lugares especiais que foram selecionados (separados, santificados, canonizados) pela tradição. Os exemplos mais óbvios são os endereços marcados na história do cristianismo por experiências místicas fundantes, os sítios hipoteticamente pisados por santos ou personagens bíblicos e os próprios templos que as instituições sacralizaram. Mas pensemos também, para tratar de um tema mais novo, na estranha devoção dos evangélicos brasileiros ao moderno Estado de Israel e sua bandeira: de onde teria vindo essa reverência (que movimenta o turismo internacional) se não das leituras que fazem das suas Bíblias e da subsequente ficcionalização da realidade? Há um exemplo curioso que merece reflexões dentro dos padrões críticos aqui sugeridos: consideremos a prática (quase teatral) do profetismo evangélico pentecostal uma espécie de misticismo em que os cristãos, baseados nas memórias dos antigos videntes e profetas que atuam nas páginas do Antigo Testamento, elegem novos mediadores e comunicam-se com instâncias transcendentes, vislumbram o mundo invisível e recebem Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 247 mensagens da parte de Deus, dos anjos, do Espírito Santo etc. É deveras interessante o modo como ainda hoje, preservando esse tipo de ritual tão antigo e tão popular em diferentes formas de religiosidade, esse tipo de cristianismo concede um generoso espaço para os seus novos videntes e profetas que supostamente anunciam o futuro, revelam segredos pessoais, aconselham os neófitos baseados nas coisas que lhes são reveladas por Deus, interpretam teologicamente os acontecimentos do tempo presente etc. Para entender esse fenômeno social e religioso (que mostra-se tão comum quanto exótico) que estamos sugerindo que os cristianismos fundamentalistas sejam vistos como espaços discursivos, cujos gestos, palavras e conteúdos dão lugar à reencenação de uma tradição profética estereotipada que usa a literatura bíblica para encontrar legitimidade e forma. Como a voz do narrador torna-se a voz de Deus Faremos, a seguir, um apanhado dos resultados dos estudos literários dedicados à Bíblia, com o intuito de apresentar sumariamente quais são os mais marcantes e recorrentes padrões que caracterizam a arte narrativa dos textos bíblicos. Nossa exposição não deve ser encarada como uma apresentação do chamado estado da arte da crítica narrativa aplicada à Bíblia e que o leitor não esqueça-se que tal apresentação tem objetivos específicos pelo que seleciona, descreve e aplica os padrões narrativos da Bíblia, tendo em vista a defesa da nossa hipótese inicial sobre os imaginários religiosos fundamentalistas. Além disso, tanto os nossos exemplos quanto a bibliografia sobre a qual apoiamo-nos deixarão claro que temos maior intimidade com os traços narrativos que extraem-se da leitura dos evangelhos do Novo Testamento. Portanto, insistimos que não é recomendado tomar nossa análise como se fosse o resultado de um levantamento exaustivo sobre os achados gerais da análise literária aplicada ao estudo da narratividade bíblica. Melhor proveito terá o leitor que receber nossas páginas como um levantamento parcial de traços de literariedade que correspondem, na história da leitura bíblica, aos que puderam enraizar-se de maneira mais profunda no desenvolvimento dos cristianismos fundamentalistas de hoje. Para começar, é necessário lembrar que, “Tradicionalmente, o narrador bíblico se esconde atrás de suas palavras” (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 21). Quer dizer: na Bíblia, temos quase sempre narradores anônimos e oniscientes que transmitem suas histórias em terceira pessoa (LEONEL, 2021; KINGSBURY, 1988). Na maioria das vezes, eles não têm nome Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 248 Anderson de Oliveira Lima nem participação direta como personagens das histórias que contam, são narradores não dramatizados (ANDERSON, 1994). A voz que ouvimos quando lemos uma história bíblica costuma ser anônima e, ademais, nos casos em que um narrador bíblico tem nome é muito provável que esteja assumindo uma identidade ficcional, recorrendo à pseudonímia (GABEL; WHEELER, 2003). A identificação da voz narrativa, portanto, é mais um recurso da retórica dos antigos autores (que tomam emprestado a autoridade culturalmente vinculada a uma personagem) do que uma referência relevante do ponto de vista histórico e biográfico. O uso da narração não dramatizada que predomina nas dezenas de livros bíblicos é relevante nessa discussão sobre a narratividade bíblica e os leitores fundamentalistas porque esse modo de narrar é característico do contador de histórias que não quer confessar um envolvimento pessoal com os eventos que está a narrar, fazendo-se passar por um narrador mais confiável. Ou seja, ao escrever sempre sobre outro que agiu lá e no passado o autor induz o leitor a acreditar que esse narrador, não tendo participação direta na história, mantémse como mediador autônomo, emocionalmente mais isento para registrar os acontecimentos e julgar (à distância) a participação das personagens (BARROS, 2011b; FIORIN, 2011; FERREIRA, 2006). Na prática, isso produz sobre o leitor uma ilusão de distanciamento e imparcialidade, efeito que pode tornar o conteúdo ainda mais convincente ao receptor. Quanto à onisciência, é fácil notar que os narradores bíblicos demonstram ter plena compreensão da história que contam e são capazes de revelar até as intenções subjetivas que escondem-se por trás das ações das suas personagens (RESSEGUIE, 2005). Na explicação de Daniel Marguerat e Yvan Bourquin (2009) lemos que “o narrador não só está em condições de saber tudo, como também não tem de explicar a origem de seu saber” (MARGUERAT, BOURQUIN, 2009, p. 22). Esse tipo de narrador é capaz, por exemplo, de contar com detalhes o que Jesus fazia sozinho e quais palavras usava em sua súplica solitária a Deus (Lucas 22.39s). O problema que levantase é que a onisciência é também um predicado caracterizador do Deus que, na tradição cristã fundamentalista, teria atuado na própria autoria do texto. Assim, ao passo que um crítico literário verá na onisciência dos narradores bíblicos uma clara evidência da ficcionalidade dessas páginas, um leitor fundamentalista poderá facilmente julgar que trata-se de uma narração ainda mais fidedigna dos fatos, com o ponto de vista divino, posto que tais conhecimentos só estariam acessíveis aos autores por meio de um processo místico-revelatório. Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 249 Quando interrompem o fluxo narrativo e intervêm com voz própria, os narradores bíblicos fazem avaliações, acrescentam comentários, revelam detalhes e segredos, mas nunca fazem isso de modo reticente. Eles demonstram plena convicção em seus juízos e não cedem espaço para que o leitor receba suas palavras como mera opinião, interpretação pessoal da história. O leitor-modelo (ou implícito, idealizado pelo próprio texto) será sempre um leitor que confia no narrador. “É sempre assim na narração bíblica: o leitor adere à narrativa do narrador, ao seu sistema de valores” (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 22). No Evangelho de Mateus, há uma cena em que o narrador intervém em favor do personagem José, declarando-o “justo” (Mateus 1.19). Seu objetivo é impedir que o leitor faça um juízo negativo do personagem que planejava abandonar Maria durante sua misteriosa gestação. Estratégia semelhante foi empregada pelo narrador do Evangelho de Marcos que explica ao leitor que Pedro, embora pareça estar fazendo boas propostas (a de que fizessem tendas para Jesus, Moisés e Elias), está dizendo tolices em razão do medo que sentia (Marcos 9.7). O narrador de Lucas, por sua vez, zelando pela coerência da história, interrompe o andamento da história quando pensa que precisa esclarecer que uma pergunta feita por Jesus é apenas um teste para seus discípulos e não uma evidência de ignorância (Lucas 6.6). Por último, também lembramo-nos de uma cena em que o narrador guia o leitor a uma avaliação negativa das ações imprevistas de Judas Iscariotes, ao dizer que “entrou nele Satanás” (João 13.27; Lucas 22.3). Os narradores bíblicos são, portanto, narradores oniscientes que anunciam-se confiáveis como mediadores entre o leitor e as histórias que contam ou, de maneira mais ousada, entre o leitor e a própria Palavra de Deus. Em função disso, o leitor fundamentalista não deve ser visto apenas como receptor ingênuo, mas como leitor que responde de maneira excessivamente positiva aos impulsos de uma estratégia retórica muito bem desempenhada pelos antigos autores. Seguindo, já foi dito que a antologia bíblica, de maneira geral, expressa-se por meio de uma retórica agressiva, sempre com o objetivo explícito de mudar os leitores (VAN OYEN, 2020). Não foi à toa que Erich Auerbach (2011) afirmou que as narrativas bíblicas interpelam os leitores de maneira tirânica: A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 250 Anderson de Oliveira Lima dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo [...]. Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar. (AUERBACH, 2011, p. 11-12). Há mais motivos que levam-nos a essas conclusões sobre o singular poder de persuasão dos textos bíblicos e o perfil do cristão fundamentalista como leitor: temos considerado como o leitor fundamentalista da Bíblia nem sempre está atento ao fato de que, no texto, a voz de Deus é também a voz do narrador, ele raramente leva em conta o fato de que as palavras que compõem um discurso de Jesus também foram escolhidas pelo autor. Desse modo, tal leitor facilmente tomará as palavras dos personagens Deus e Jesus (que em edições modernas da Bíblia aparecerão entre aspas) como se fossem transcrições precisas dos dizeres divinos. Hoje pode parecer ingenuidade o fato de um leitor confiar que algumas palavras atribuídas ao personagem Deus tenham sido pronunciadas pelo próprio Deus, mas esse modo de recepcionar o texto não é o resultado de más leituras, mas a resposta esperada pelo emprego de certos dispositivos retóricos pelo próprio texto. Não foi por acaso que os narradores bíblicos escolheram colocar na boca dos principais personagens os conteúdos mais ricos. Quando eles têm algo importante a dizer, usam justamente a voz de alguém como Jesus, Deus, um profeta, um anjo... E, tomando de empréstimo a autoridade culturalmente atribuída a tais figuras, tornam mais proeminente a mensagem que transmitem. Assim, vale a pena voltar aos textos bíblicos com atenção ao fato de que, quando alguém como Deus fala, temos não apenas uma escolha mais criteriosa de palavras como também uma maior concordância ideológica entre autor/narrador e personagem (ANDERSON, 1994). Os mediadores da leitura bíblica e a resposta do leitor Além das características já mencionadas com a intenção de explicar o funcionamento da arte da narrativa bíblica, é indispensável para os nossos propósitos considerar como algumas forças mediadoras externas operam sobre o leitor religioso da Bíblia e sua maneira de encarar o texto. Tais forças expressam-se na própria materialidade do livro, em seus protocolos de leitura (CHARTIER, 2011) e por meio das práticas de leitura conhecidas, sugeridas e fixadas por instâncias detentoras de autoridade no manuseio da Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 251 Bíblia (CHARTIER, 2011; CHARTIER, 2014). Conscientes das impositivas estratégias enunciativas da comunicação bíblica (que estudamos na seção anterior), ainda convém considerar as forças coercitivas que operam sobre o leitor a partir do rótulo de livro sagrado que tradicionalmente empregase na designação da coleção bíblica, nas notas de caráter dogmático que acompanham os textos nas edições produzidas por instituições religiosas, na produção de conteúdos cristãos sobre a Bíblia que estão disponíveis em diferentes veículos, no uso carregado de devoção e reverência gestual que faz-se do livro nas liturgias. No livro The Rise and Fall of the Bible (2011), Timothy Beal discutiu longamente o fato, aparentemente paradoxal, de que (considerando especificamente o cenário norte-americano) a Bíblia continue sendo cada vez mais reverenciada e vendida enquanto o conhecimento que os leitores têm sobre o conteúdo bíblico mostre-se cada vez mais parco (BEAL, 2011). Segundo o autor, o que os leitores cristãos estão comprando não é a Bíblia, uma coleção de livros a ser lida, mas um ícone, uma ideia de Bíblia que a apresenta como um objeto mágico que tem respostas para todas as questões humanas, um livro encantado por meio do qual Deus supostamente pode falar de modo direto com qualquer leitor a respeito de como ele deve viver a própria vida (BEAL, 2011). Quando esse leitor procura ler as páginas bíblicas por conta própria, todavia, suas expectativas são frustradas, o que o leva a aceitar passivamente o trabalho interpretativo fornecido por mediadores religiosos que atuam por meio de igrejas, editoras, livros, revistas, redes sociais, programas de TV etc. Em suma, tendo aprendido a reverenciar o próprio livro, tendo sido instruído a crer nessa ideia mágica de Bíblia, estando em contato com mediadores que falam em nome de Deus e interpretam os textos difíceis em seu lugar e deparando-se (em suas leituras pessoais) com narradores anônimos e oniscientes que escrevem/falam como se fossem o próprio Deus, o leitor cristão fundamentalista contemporâneo terá evidente dificuldade para reagir negativamente às mensagens que lhe são entregues. Nesse contexto religioso de leitura, admitir o lado mitológico das páginas bíblicas, questionar a fiabilidade histórica das suas histórias ou reconhecer seus evidentes traços ficcionais pode ser o mesmo que atribuir mentiras a Deus ou negar o caráter sacro das Escrituras (VAN OYEN, 2020). Logo, dizer não aos imperativos dos narradores bíblicos será, para um leitor fundamentalista, como dizer não ao próprio Deus, pelo qual não é raro que esse leitor sujeite seus sentidos, Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 252 Anderson de Oliveira Lima suas intuições, seus saberes sobre o mundo (incluindo aqueles que foram-lhe demonstrados pelas ciências) aos valores e às verdades que lhe são transmitidos pela literatura bíblica e pelas instituições que determinam seus modos de uso. Assim, somados os traços característicos da narratividade bíblica às forças mediadoras das tradições e instituições religiosas, o que produz-se são efeitos poderosos de convencimento que atiram-se sobre os leitores, colocando-os contra a parede enquanto exigem sua conversão. Já foi sugerido que a resposta do leitor que sujeita-se ao texto bíblico não tem, a princípio, nada de condenável, trata-se de uma reação desejada, esperada, preparada pela própria literatura. O fundamentalismo é, enquanto prática de leitura bíblica, uma resposta coerente à força retórica própria dessa literatura. O leitor que converte-se e passa a crer em anjos e demônios está acenando positivamente ao protocolo de leitura, aproximando-se pragmaticamente do leitor-modelo concebido pelo próprio texto. Por outro lado, quando isso ocorre de maneira acentuada em pleno século XXI, há também evidências de certa ingenuidade no trato com a palavra escrita, com a ficção literária e seus limites como instrumento de representação da realidade. Há uma má compreensão das estratégias de narração que estudamos, uma confusão relativa às instâncias enunciativas que coopera para que tais leitores fechem os olhos aos sinais da realidade empírica e deixem que a ficcionalidade bíblica formate seu imaginário religioso, sua visão de mundo e, consequentemente, seus modos de pensar e agir. Procurando por exemplos que ilustrem como essas forças (estratégias narrativas e cultura religiosa) puderam conduzir a leituras e comportamentos extremos, recordemos o famoso caso de Orígenes, pensador e escritor cristão que, na cidade Alexandria no ano 215, castrou-se por influência de uma passagem do Evangelho de Mateus (19.12) que exalta o estereótipo do seguidor de Jesus que faz-se eunuco por causa do reino dos céus (ONFRAY, 2019, p. 100). Imaginemos, partindo desse extremo, quantos leitores ao longo dos séculos não optaram pela pobreza voluntária a partir da leitura que fizeram dos textos bíblicos. Quantos não foram os que doaram seus bens às igrejas inspirados nas lendas dos primeiros cristianismos? Quantos não evitaram o matrimônio (ou submeteram-se a ele) tão somente por conta de um conselho supostamente bíblico? Para tratar de temas socialmente mais sensíveis e atuais, quanta xenofobia, misoginia ou homofobia não foi patrocinada pela leitura fundamentalista dos textos bíblicos até os dias de hoje? Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 253 Considerações finais Encerramos essas páginas com Umberto Eco (1994), autor cujas considerações a respeito da ficção literária forneceram-nos os insights que, em dado momento, impulsionaram esse trabalho: Existe uma regra de ouro em que os criptoanalistas confiam - a saber, que toda mensagem secreta pode ser decifrada, desde que se saiba que é uma mensagem. O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os universos ficcionais sabemos sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura. (ECO, 1994, p. 122). A insatisfação com a realidade e a preferência pela sua ficcionalização estão na essência das religiões. Das antigas mitologias aos modernos exorcismos televisionados, as religiões convidam os humanos a verem além, a transcenderem os limites da materialidade para encontrarem o verdadeiro sentido da vida (um sentido melhor). De outro ponto de vista, diríamos que as religiões convidam-nos a elaborarmos uma realidade paralela, chamam-nos para ficcionalizar a vida com uma boa medida de imaginação para criar uma versão expandida do mundo que, a despeito da sua intangibilidade, servirá à nossa profunda necessidade de encontrar sentidos. Por certo, há um lado positivo nessa capacidade de narrativizar a existência e, a despeito de todas as mazelas da história que tiveram origem nas religiões com suas escrituras e interpretações, é provável que não exista instrumento mais eficaz que a fé nas mãos de quem precisa lidar com as conhecidas e inevitáveis dores do existir. Representando em nosso fazer acadêmico a voz do erudito que lê a Bíblia como literatura e estuda os fenômenos religiosos à distância raramente encontramos oportunidades para constatar que “É somente quando a Bíblia toca o leitor em sua vida pessoal que o texto atinge seu pleno significado” (VAN OYEN, 2020, p. 9). Com efeito, nada do que foi exposto acima autoriza-nos a afirmar que a leitura cristã fundamentalista é uma leitura ruim. Trata-se, isso sim, de uma leitura diferente, não acadêmica, interessada em respostas concretas e descomprometida com nossas complexas teorias literárias. O leitor cristão fundamentalista deixa-se levar, acede (quase sempre) à verdade revelada pelas páginas bíblicas, segue com confiança as regras do jogo narrativo dos Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 254 Anderson de Oliveira Lima autores e esforça-se como ninguém para encontrar coerência e significação nessa coleção de textos antigos, exóticos e muitas vezes difíceis. O que ele geralmente não tolera, a despeito da abundância dos conteúdos, da polissemia dos textos, da multidão de vozes que clamam por atenção nas páginas da Bíblia, é que toda leitura tem seu lugar. Assim, o que há para criticar não é o apreço que ele tem por sua literatura (que hipoteticamente revelou-lhe a verdade), mas a maneira combativa com que defende e tenta impor suas leituras, negando ao mundo o direito à sua inerente diversidade. Enfim, o que fizemos aqui foi esboçar uma teoria sobre o processo de ficcionalização da realidade nos cristianismos fundamentalistas atuais, defendendo sempre que a literatura bíblica exerce um papel determinante nos resultados desse fazer interpretativo. A partir daqui, o encontro das nossas hipóteses à experiência de outros leitores provavelmente levantará problemas não considerados, limites não reconhecidos, caminhos não explorados… Então, veremos se nossa ousada teoria mostrará-se suficientemente sólida e útil para seguirmos com ela nos estudos dos imaginários religiosos contemporâneos. Referências AFONSO, Breno Luiz Gomes; CAMPOS, Breno Martins. Da sociedade do controle à sociedade da transparência: novas maneiras de compreender o fundamentalismo religioso. Revista Unitas, v. 9, n. 2, 2021, p. 128-142. ANDERSON, Janice Capel. Matthew’s Narrative Web: Over, and Over, and Over Again. (Journal for the Study of the New Testament Supplement Series, 91) Sheffield: JSOT Press, 1994. ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à linguística (Vol. 2): princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2011, p. 187-219. BEAL, Timothy. The Rise and Fall of the Bible: The Unexpected History of an Accidental Book. Boston/New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2011. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2011b. BÍBLIA, volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico Lourenço – 2 ª edição revista e aumentada. Lisboa: Quetzal, 2018. Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 A narratividade bíblica e os imaginários religiosos 255 BUNYAN, John. O Peregrino. São Paulo: Mundo Cristão, 2013. CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora UNESP, 2014. CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. FERREIRA, João Cesário Leonel. E ele será chamado pelo nome de Emanuel: o narrador e Jesus Cristo no Evangelho de Mateus. Campinas: Universidade Estadual de Campinas (Tese de Doutorado), 2006. FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2013. FIORIN, José Luiz. Pragmática. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à linguística (Vol. 2): princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2011, p. 161-185. FITZMYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997. GABEL, John B.; WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2003. HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. São Paulo: Globo Livros, 2016. KINGSBURY, Jack Dean. Matthew As Story. Philadelphia: Fortress Press, 1988. LEONEL, João. Narrativas bíblicas: formas e sentidos (AT e NT). In: LEONEL, João; CARNEIRO, Marcelo. Para estudar a Bíblia: abordagens e métodos. São Paulo: Editora Recriar, 2021, p. 227-254. LIMA, Anderson de Oliveira. O imaginário religioso fundamentalista e a narratividade bíblica. Perspectiva Teológica, v. 47, n. 133, 2015, p. 399-414. MARGUERAT, Daniel; BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Religião e linguagem: proposta de articulação de um campo complexo. Horizonte, v. 14, n. 42, 2016, p. 240-261. ONFRAY, Michel. Decadência: o declínio do Ocidente. Lisboa: Edições 70, 2019. ONFRAY, Michel. O real nunca existiu - o princípio de Dom Quixote: uma contra-história da literatura. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2015. PANASIEWICZ, Roberlei. Fundamentalismo religioso: história e presença no cristianismo. In: X Simpósio da Associação brasileira da história das religiões: migrações e imigrações das religiões. 2008. Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078 256 Anderson de Oliveira Lima PUCHNER, Martin. O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. RESSEGUIE, James L. Narrative Criticism of the New Testament: An Introduction. Michigan: Baker Academic, 2005. STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Curitiba: Editora da UFPR, 2005. VAN OYEN, Geert. Ler o Evangelho de Marcos como um romance. São Paulo: Loyola, 2020. Submetido em: 6-6-2022 Aceito em: 28-6-2023 Estudos de Religião, v. 37, n. 2 • 237-256 • maio-ago. 2023 • ISSN Eletrônico: 2176-1078