Marcos Santos/USP imagens
A seca e a crise hídrica
de 2014-2015 em São Paulo
José A. Marengo, Carlos Afonso Nobre,
Marcelo Enrique Seluchi, Adriana Cuartas,
Lincoln Muniz Alves, Eduardo Mario Mendiondo,
Guillermo Obregón, Gilvan Sampaio
dossiê crise hídrica
resumo
abstract
A maior parte da estação chuvosa de
2014 transcorreu com valores de chuva
inferiores à média histórica sobre a
porção sudeste do país, incluindo o
Sistema Cantareira. A causa principal
para a grande falta de chuva foi a atuação
de um intenso, persistente e anômalo
sistema de alta pressão atmosférica que
prejudicou o transporte de umidade
da Amazônia, assim como a passagem/
desenvolvimento dos principais sistemas
causadores de chuva, como a Zona de
Convergência do Atlântico Sul e as
frentes frias. Esse sistema, denominado
de bloqueio atmosférico, teve uma
duração de 45 dias, fato que resulta
extremamente raro. A combinação dos
baixos índices pluviométricos, o grande
crescimento da demanda de água e o
ineficiente gerenciamento desse recurso
têm gerado uma “crise hídrica” durante
os anos 2014 e 2015.
During most of the rainy season in 2014,
the Southeast of Brazil – including the
Cantareira reservoir system – received
below-normal rainfall. The main cause
leading to that heavy lack of rain was an
intense, persistent and anomalous highpressure system blocking moisture flow
from the Amazon and the development
and passage of cold front systems and the
South Atlantic Convergence Zone, which
are responsible for rainfall in this region
during summer. This blocking system
lasted for 45 days, which is extremely
rare. Low rainfall amounts coupled with
an increased demand for water and an
inefficient water management system led
to the so-called “water crisis” during 2014,
which extended into 2015.
Marcos Santos/USP imagens
Palavras-chave: seca; crise hídrica; São
Paulo; Cantareira; chuva.
32
Revista USP • São Paulo • n. 106 • p. 31-44 • julho/agosto/setembro 2015
Keywords: drought; water crisis; São
Paulo; Cantareira reservoir system;
rainfall.
H
á mais de duas décadas, os
cientistas e ambientalistas
têm alertado para o fato de
a água doce ser um recurso
escasso em nosso planeta.
Desde o começo de 2014, o
Sudeste do Brasil adquiriu
uma clara percepção dessa
realidade em função da seca
que o assola. Outras regiões
ou estados do Brasil, como o
Nordeste, já vivenciaram e
vivenciam até hoje esse fenômeno, e até o Amazonas e o Pantanal têm sofrido, esporadicamente, com estiagens prolongadas. Além da questão climática, os especialistas
apontam outros responsáveis para o problema da
falta de água, como as políticas não adequadas
de gestão dos recursos hídricos e a falta de educação ambiental dos cidadãos, que se traduz em
alta poluição e desperdício de água.
A Região Sudeste do Brasil já experimentou
secas sazonais intensas, como em 1953, 1971 e
2001. Na atualidade, a Região Metropolitana de
São Paulo (RMSP) está vivenciando uma das
maiores secas da sua história. A combinação de
baixos índices pluviométricos, principalmente
durante os verões de 2013-2014 e 2014-2015,
o grande crescimento da demanda de água, a
ausência de planejamento adequado para o gerenciamento do recurso hídrico e a ausência de
consciência coletiva dos consumidores brasileiros para o uso racional da água têm gerado a
denominada “crise hídrica”. Pode-se dizer que
esta era uma “crise anunciada” em função da
demanda crescente e do histórico de situações
hídricas semelhantes (por exemplo, durante a
“crise do apagão”, em 2001-2002). Os baixos
acumulados pluviométricos sobre a maior parte
do estado de São Paulo e, em particular, sobre
a região do Sistema Cantareira, localizado na
divisa entre os estados de São Paulo e Minas
Este estudo representa uma contribuição da Rede Clima e
do INCT-Mudanças Climáticas, através dos projetos CNPq
573797/2008-0 e Fapesp 57719-9.
JOSÉ A. MARENGO é pesquisador sênior do Centro
Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais – Cemaden.
CARLOS AFONSO NOBRE é presidente da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior – Capes .
MARCELO ENRIQUE SELUCHI é chefe da Divisão
de Operações do Cemaden.
ADRIANA CUARTAS é pesquisadora do Cemaden.
LINCOLN MUNIZ ALVES é perquisador do Centro
de Ciência do Sistema Terrestre – CCST do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe.
EDUARDO MARIO MENDIONDO é coordenadorgeral do Cemaden.
GUILLERMO OBREGÓN é pesquisador do CCST/Inpe.
GILVAN SAMPAIO é pesquisador do CCST/Inpe.
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dossiê crise hídrica
Gerais, afetaram significativamente a disponibilidade hídrica dos reservatórios.
O complexo de represas do Cantareira,
considerado um dos maiores sistemas de abastecimento de água potável do mundo, produz
33 mil litros de água por segundo para o abastecimento de cerca de 8,8 milhões de pessoas
residentes na RMSP e de cidades nas bacias
hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e
Jundiaí (ANA, 2014). Em função das chuvas
muito inferiores à média histórica e das temperaturas máximas extremas, a vazão dos rios
que alimentam os reservatórios dos sistemas
de abastecimento e das usinas hidrelétricas
das regiões Sudeste e Centro-Oeste, de maior
consumo de energia, atingiu a menor marca
da história.
Muitas são as especulações sobre as causas
dessa seca histórica: variação natural do clima,
desmatamento da Amazônia, mudanças climáticas globais, entre outras. Em geral, pode-se
dizer que a crise hídrica é gerada por uma conjunção de fatores que incluem a falta de gerenciamento dos recursos hídricos e a escassez de
chuva, como observado em 2001 e agora nos
verões de 2013-2014 e 2014-2015.
Embora seja prematuro e difícil estabelecer
uma relação direta de causa e efeito entre os fatores climáticos e a crise hídrica na Região Sudeste,
ou uma atribuição de causa dessa seca (variabilidade natural e/ou influência humana), neste artigo se apresenta uma discussão sobre as causas
meteorológicas que provocaram a seca dos verões
de 2013-2014 e 2014-2015, e a atual situação hidrológica e seus impactos na RMSP.
Com essa finalidade, foram analisados a
circulação atmosférica regional, os totais pluviométricos e as correspondentes anomalias
(diferenças entre os valores observados e a
média histórica) nos meses característicos da
estação chuvosa, outubro a março, com ênfase
nos meses de dezembro de 2013 a fevereiro de
2014, sobre a região do Sistema Cantareira. Foram também utilizados indicadores de volume
e vazão armazenada no sistema e sua evolução
até 2015, a fim de se classificar de forma objetiva a qualidade da estação chuvosa passada
e os seus impactos nas vazões de entrada e do
volume armazenado no Cantareira.
34
SITUAÇÃO METEOROLÓGICA NO
SUDESTE DO BRASIL DURANTE
O VERÃO DE 2013-2014
Climatologicamente as precipitações sobre
a Região Sudeste do Brasil apresentam um ciclo
anual bem definido, com volumes máximos nos
meses de dezembro a fevereiro (verão) e valores
mínimos durante o período junho-agosto (inverno).
Os sistemas meteorológicos atuantes na Região
Sudeste são diversos, com origens e influências
também diversas, o que dificulta identificar uma
causa direta para a seca do verão de 2013-2014.
Em geral, o regime de chuvas nessa região é
influenciado pela atuação da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), pela passagem de
frentes frias e pelas condições de forte instabilidade termodinâmica, muitas vezes incrementada
pela atuação do Jato de Baixos Níveis (JBN) que
transporta umidade da Amazônia para o Sul e o
Sudeste do Brasil.
Chuva e circulação atmosférica
Cabe destacar que na região do Sistema Cantareira a estação chuvosa começa, em média, no
final do mês de setembro e se encerra no mês
de março. Os meses de novembro a março são
responsáveis, em média, por 72% da precipitação
total anual. Já a estação chuvosa (dezembro a fevereiro) representa 47% do total anual esperado
na Região Sudeste.
O início da estação chuvosa (a partir do 1o de
novembro) apresentou um período com predomínio de valores deficitários de chuva (anomalias
negativas) até aproximadamente o dia 20, seguido
de um curto período com acumulados aproximadamente normais. No mês de dezembro de 2013,
um episódio de ZCAS muito intenso e prolongado, alimentado por um fluxo de umidade desde
a Amazônia com forte convergência nos baixos
níveis, gerou as enchentes mais severas das últimas décadas na bacia do Rio Doce (Marengo
et al., 2014). As chuvas foram favorecidas pela
forte convergência de umidade sobre o Espírito
Santo e a Zona da Mata Mineira, que foi compensada por divergência de umidade ao norte e,
Revista USP • São Paulo • n. 106 • p. 31-44 • julho/agosto/setembro 2015
FIGURA 1
Anomalias de chuva observadas (em mm) para o período
dezembro de 2013 (a), janeiro e fevereiro de 2014 (b, c)
5N
5N
EQ
EQ
5S
5S
10S
10S
15S
15S
20S
20S
25S
25S
a
b
dezembro/2013
30S
janeiro/2014
30S
75W
70W
65W
60W
55W
50W
45W
40W
35W
75W
70W
65W
60W
55W
50W
45W
40W
35W
5N
250
EQ
mm
200
150
5S
100
10S
50
25
15S
-25
-50
20S
-100
-150
25S
c
-200
fevereiro/2014
30S
75W
70W
65W
60W
55W
50W
45W
40W
-250
35W
Escala de cores à direita. Anomalias dizem respeito à média climatológica de longo termo 1961-90. Os tons de azul indicam ocorrência de chuvas superior
à média climatológica, e os tons avermelhados indicam valores inferiores à média climatológica (escala na parte direita da figura).
Fonte: CPTEC/Inpe, INMET, Cemaden, Sabesp
especialmente, ao sul da ZCAS, iniciando assim o
período de estiagem sobre São Paulo. O episódio
de final de dezembro de 2013 foi sucedido pelo
mês (janeiro de 2014) mais seco dos últimos 52
anos na região do Sistema Cantareira (Figura 1ac). A causa para a grande escassez de chuva foi
a atuação de uma anômala, intensa e persistente
área de alta pressão atmosférica nos níveis baixos e médios da atmosfera (Figura 2 a-c), que se
estabeleceu nos primeiros dias desse mês sobre
o Oceano Atlântico subtropical, influenciando a
circulação atmosférica sobre a Região Sudeste.
O anticiclone anômalo teve uma duração de
aproximadamente 45 dias, desde início de janeiro
até meados de fevereiro de 2014, provocando índices de chuva sobre a região do Cantareira muito
inferiores à média histórica (Nobre et al., 2015). A
tendência descendente do ar no âmbito do sistema
de alta pressão transportou ar muito seco dos níveis mais altos da atmosfera para as proximidades
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dossiê crise hídrica
FIGURA 2
Campo médio de altura geopotencial e anomalias correspondentes
20N
20N
a) 10 -15 janeiro 2014
b) 16-31 janeiro 2014
10N
10N
EQ
EQ
10S
10S
20S
20S
30S
30S
40S
40S
50S
50S
60S
60S
70S
70S
80S
120W 110W 100W 90W
80W
70W
60W 50W
40W
30W
20W
10W
0
80S
120W 110W 100W 90W
80W
70W
60W
50W
40W
30W
20W
10W
0
20N
0
c) 1 -15 fevereiro 2014
10N
100
EQ
80
10S
60
20S
40
20
30S
-20
40S
-40
50S
-60
60S
-80
70S
-100
80S
120W 110W 100W 90W
80W
70W
60W
50W
40W
30W
20W
10W
0
Nível de 500 hPa (semelhante à pressão atmosférica a aproximadamente 6.000 m de altura)
Fonte: CPTEC/Inpe
da superfície, inibindo o levantamento do ar úmido
necessário para a formação das chuvas.
Em outras palavras, a região de alta pressão
deixou o ar mais seco e estável, inibiu a formação
das pancadas de chuva típicas da estação e, ainda,
“bloqueou” a passagem de sistemas frontais, assim
como o desenvolvimento da ZCAS, e do fluxo de
umidade da Amazônia. Por essa razão, esse tipo de
sistema é tecnicamente conhecido como “sistema
de bloqueio atmosférico”. O bloqueio atmosférico
permaneceu até meados do mês de fevereiro de
2014, quando uma frente fria relativamente inten-
36
sa conseguiu deslocar o sistema de alta pressão e
afastá-lo do continente. As precipitações do mês
de fevereiro (Figura 1a-c) também foram altamente deficitárias na maior parte da Região Sudeste,
especialmente no centro-sul de Minas Gerais e no
centro-leste do estado de São Paulo, justamente na
região de captação do Sistema Cantareira. De fato,
a umidade transportada pelo JBN da Amazônia
não penetrou no Sudeste do Brasil e foi desviada
para o oeste da Amazônia, gerando as chuvas intensas e enchentes nos estados de Acre e Rondônia
no verão de 2014 (Espinoza et al., 2014).
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A Figura 3 mostra um esquema conceitual da
circulação de baixos níveis de superfície durante
um verão normal (Figura 3a) e o verão seco de
2014 (Figura 3b). Num verão normal as chuvas
na Região Sudeste são favorecidas pelo fluxo de
umidade proveniente da Amazônia, muitas vezes transportado pelo JBN, que contribui para o
desenvolvimento da ZCAS, a ativação dos sistemas frontais que vêm do Sul (FF) ou bem para
alimentar as típicas pancadas de chuva de final
de tarde. Na estação chuvosa de 2013-2014 a presença do anticiclone de boqueio, indicado pela
letra “A” se estabeleceu durante a maior parte do
verão sobre o Sudeste do Brasil, não permitindo
a entrada do fluxo de umidade da Amazônia nem
o avanço das frentes frias, que ficaram estacionadas sobre o Sul do Brasil e foram desviadas
para o Oceano Atlântico Sul. A ZCAS não se
configurou nesse período, e o fluxo de umidade
da Amazônia foi desviado pela ação do bloqueio
para o sul e oeste da Amazônia, gerando chuvas
intensas e enchentes recordes nessa região. O
JBN levou umidade para o Sul do Brasil, gerando também chuvas intensas.
Cabe ressaltar as fortes quedas na precipitação
observadas na Figura 1 entre os primeiros dias de
janeiro de 2014 e meados de fevereiro, durante os
quais predominou o bloqueio atmosférico aponta-
FIGURA 3
Elementos relevantes ao transporte de umidade na América do Sul a leste dos Andes
pelos Jato de Baixos Níveis (JBN), frentes várias (FF) e transporte de umidade
do Atlântico Sul, assim como a presença da ZCAS, para um verão normal
ou climatológico (A) e para o verão seco de 2014 (B)
Amazônia
Verão normal
JBN
EQ
Fluxo do
Oceano Atlântico
ZCAS SE Brasil
Solo úmido
200S
FF
A
400S
600W
Verão de 2014
Amazônia
JBN
EQ
Fluxo do
Oceano Atlântico
A
SE Brasil
Solo
seco
FF
600W
200S
400S
B
“A” representa o centro da anomalia de alta pressão atmosférica
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dossiê crise hídrica
do anteriormente. Contudo, após um breve período
chuvoso nos dias 17-20 de fevereiro, associado à
frente fria que conseguiu deslocar o sistema de
alta pressão, as precipitações continuaram sendo
deficientes até meados do mês de março, quando
praticamente se encerra a estação chuvosa.
Os anticiclones de bloqueio ocorrem normalmente nas latitudes médias, particularmente sobre
o Oceano Pacífico (Oliveira, 2011), têm uma duração entre 7-8 dias e, em casos muito raros, podem
chegar a até 15 dias (Oliveira et al., 2014). No verão
de 2014, o anticiclone esteve presente por 45 dias
sobre a América do Sul subtropical, um fenômeno
sem precedentes desde 1961.
Essa situação repetiu-se, embora com menor
intensidade e duração, no verão de 2015. Esse
fato, somado ao longo período de estiagem do
ano anterior, provocou o ressecamento progressivo da superfície terrestre, estabelecendo um efeito
de automanutenção da falta de chuva: a escassa
umidade do solo prejudicou o fluxo de umidade
para a atmosfera, provocando a diminuição das
chuvas, o que, por sua vez, não permitiu o aumen-
to da umidade no solo. Esse processo foi intensificado pela presença de outro sistema anômalo de
alta pressão, que, embora de menor intensidade e
persistência que o anterior, contribuiu fortemente
para a redução das chuvas.
Tendência histórica da chuva
no Sistema Cantareira
A média histórica (1983-2014) de precipitação sobre a região do Cantareira durante janeiro (segundo a Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo – Sabesp) é de
268 mm, sendo que durante janeiro de 2014
foi de apenas 87,9 mm (ou perto de 180 mm,
ou 67% abaixo da média histórica). Segundo
a Figura 4, a maior parte da estação chuvosa
(entre início de dezembro de 2013 e meados do
mês de março de 2014) transcorreu com valores
de chuva muito inferiores à média histórica. As
chuvas do verão de 2013-2014 foram as mais
baixas desde 1961 no Cantareira (Figura 4),
FIGURA 4
Séries de tempo de chuva na região do Cantareira,
desde outubro de 2012 até junho de 2015
Verão 2014
300
Verão 2015
Precipitação mensal (mm)
250
200
150
100
50
out/12
nov/12
dez/12
jan/13
fev/13
mar/13
abr/13
mai/13
jun/13
jul/13
ago/13
set/13
out/13
nov/13
dez/13
jan/14
fev/14
mar/14
abr/14
mai/14
jun/14
jul/14
ago/14
set/14
out/14
nov/14
dez/14
jan/15
fev/15
mar/15
abr/15
mai/15
jun/15
0
Média climatológica
Observado out/2012 - jun/2015
Fonte: Cemaden
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sendo o acumulado durante DJF 2014 de 32,8%
da climatologia, e em DJF 2015 esse acumulado
foi de 76% da média climatológica.
Segundo a Agência Nacional de Águas
(ANA, 2014), desde 2012 observa-se uma gradativa e intensa redução nos índices pluviométricos em algumas regiões do país, o que tem prejudicado de forma significativa a oferta de água
para o abastecimento público, especialmente no
semiárido brasileiro e nas regiões metropolitanas mais populosas e com maior demanda hídrica (São Paulo e Rio de Janeiro).
A Figura 5 mostra tendência de diminuição
dos totais pluviométricos anuais, a uma taxa
média anual de, aproximadamente, 3 mm/ano
desde 1990, como já detectado por Obregón et
al. (2014). Embora a pluviometria de 2014 sobre
a bacia hidrográfica do Cantareira indique a severidade da seca desse ano, constata-se que esta
representa mais um episódio de uma tendência
de longo período, verificada em ocorrências
similares no passado, como nos anos de 1971,
1990 e 2001, sendo o ano de 2014 o menos chuvoso de toda a série histórica disponível. Dessa
forma, pode se estabelecer, através dos mapas da
Figura 1 e dos sites de agências climáticas nacionais e internacionais (INMET, Sabesp, CPTEC
Inpe, NOAA) disponíveis publicamente, que a
estação chuvosa 2013-2014 foi a mais seca da
série histórica disponível, desde 1962. A NOAA
(Agência Nacional para o Oceano e a Atmosfera
dos EUA) indica que no período de dezembro
de 2013 a fevereiro de 2014 choveu na região de
abrangência do Sistema Cantareira entre 25% e
50% do valor normal.
A Figura 6 apresenta séries de tempo de anomalias de chuva e de temperatura máxima do ar
na região do Cantareira, onde se pode verificar
que no verão de 2014, além de ser o mais seco
desde 1962, a temperatura do ar chegou a ser até
2,5°C mais baixa que o normal. Juntamente, uma
extensa área de águas aquecidas no Oceano Atlântico Sul se localizou nas imediações do sistema
anômalo de alta pressão. Assim, o acoplamento
das altas pressões com as altas temperaturas no
solo e do mar contribuiu para a permanência do
sistema de bloqueio (caracterizado por apresentar
um núcleo quente) por longo período.
FIGURA 5
Séries de tempo de chuva acumulada na Região Sudeste do Brasil e na região
do Cantareira durante o período de outubro a março desde 1962 até 2014
Chuva acumulada (mm) outubro-março: Sudeste
1.600
1.400
1.200
1.000
800
600
400
200
0
1962 1964 1966 1968 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014
Chuva acumulada (mm) outubro-março: Cantareira
2.000
1.500
1.000
500
0
1962 1964 1966 1968 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014
Fonte: Inpe, Cemaden, Sabesp
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dossiê crise hídrica
FIGURA 6
Séries de tempo de anomalias de chuva e temperatura máxima do ar
para a região do Cantareira durante o verão desde 1962 até 2014
+1,5
50
0
0
-50
-100
-1,5
-150
2014
2012
2010
2008
2006
-2,5
2004
2002
2000
1998
1996
1994
1992
1990
1988
Temperatura máxima
1986
1984
1978
1976
1974
1972
1970
1968
1966
1964
1962
1982
Chuva
-200
1980
Anomalia de chuva (mm/mês)
100
Anomalias de temperatura máxima (0C)
+2,5
150
Fonte: Nobre et al. (2015)
SITUAÇÃO HIDROLÓGICA EM
2014 E 2015: A CRISE HÍDRICA
Nas bacias de contribuição dos principais reservatórios de abastecimento urbano da Região
Sudeste, como o Sistema Cantareira e os sistemas do Paraíba do Sul, contou-se com vazões
afluentes aos reservatórios inferiores à média
histórica, o que impediu que os reservatórios
recebessem o volume de água esperado para
essa época do ano (Figura 7 e Grupo Técnico
de Assessoramento para Gestão do Sistema Cantareira – GTAG-Cantareira, Comunicado no 6,
25/4/2014). Da análise do grau de excepcionalidade desse evento de seca na região, a partir
de tempo de retorno, nota-se que grande parte
das estações registrou seca com período de retorno superior a 100 anos, o que permite rotular
esse evento como raro (ANA, 2014). A redução
nos índices pluviométricos verificada a partir de
2013 e intensificada em 2014 na região onde se
localiza o Sistema Cantareira afetou diretamente
o volume de água armazenado nos reservatórios.
Desde 1961, outros episódios de seca, como
em 1971 e 2001, estão também entre os seis mais
quentes, sendo o verão mais quente e seco o do
ano de 2014. A Tabela 1 mostra que na região
TABELA 1
Classificação de anos secos e quentes na região do Cantareira
desde 1961 durante o verão de dez.-fev. (DJF)
Ordem
1
2
3
4
Ano
2014
1971
2001
2012
Precip. (mm)
94,5
153,4
157,2
161,1
Temp. máx. (oC)
31,4
30,7
30,1
29,7
A climatologia 1961-90 de chuva na estação de DJF é 249 mm, e de temperaturas máximas para a mesma estação é 31,4oC (INMET, CPTEC Inpe)
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do Cantareira o ano de 2014 foi o mais quente e
mais seco desde 1961.
Tradicionalmente, a recarga do Cantareira
ocorre entre outubro e março, na estação chuvosa, para garantir o abastecimento na estação seca.
Contudo, no fim do verão 2013-2014, em 31 de
março, o nível dos reservatórios foi 13,4%, o mais
baixo da série histórica. Segundo Dobrovolski e
Rattis (2015), em fevereiro de 2015 os reservatórios do Sistema Cantareira alcançaram o nível
mais baixo desde 2013. Durante a atual estiagem,
o nível dos reservatórios voltou a subir somente em
fevereiro de 2015 devido às chuvas acima da média
registradas no mês e a uma considerável redução
da extração de água do sistema, passando de aproximadamente 22 m3/s no início de janeiro para 15
m3/s no final de fevereiro, para o abastecimento da
RMSP. Protestos e manifestações aconteceram em
vários bairros de São Paulo, particularmente em
áreas mais pobres, com disponibilidade de água
somente 2-3 dias por semana.
IMPACTOS DA CRISE HÍDRICA
DE 2014 E 2015
A seca de 2014 levou a uma redução significativa dos recursos hídricos, e consequentemente a
uma diminuição do abastecimento de água à população da RMSP, com algumas partes da cidade
sendo forçadas a depender de caminhões-pipa.
A concessionária estatal Sabesp (Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo) tem
respondido à crise reduzindo a extração de água
dos reservatórios em quase um terço e oferecendo
descontos para os clientes que reduzam o seu consumo. Como consequência grave, a população vem
tendo dificuldades no abastecimento de água em
grande parte da RMSP, sendo a escassez hídrica
parte da realidade atual do paulistano. Uma seca
dessa magnitude, que afeta os níveis dos mananciais e acarreta um grave problema social, é precisamente o tipo de fenômeno climático extremo
projetado entre os diversos impactos decorrentes
das mudanças climáticas.
A seca também teve impactos socioeconômicos, principalmente nas áreas que exploram o
turismo e lazer às margens de rios e represas, assim como aumentos nos preços dos alimentos e
nas tarifas de energia em residências, indústrias e
comércios. Outro efeito da seca foi o aumento do
número de focos de queimadas.
Segundo Nobre et al. (2015), os totais acumulados de chuva sobre o Sistema Cantareira diminuíram durante as últimas décadas, assim como
a vazão anual de entrada nos reservatórios, cuja
média no período 1930-2013 é 44,1 m3/s. Em 1953,
esse valor foi de 24,6 m3/s enquanto em 2014 chegou a 11,3 m3/s, o menor valor desde 1930 (Figura
7). Nos meses DJF 2014 a vazão média foi de 16,1
m3/s e em DJF 2015 de 22,7 m3/s, o que representa
24,5% e 35,6% da vazão média afluente de DJF
(período 1930-2013), respectivamente.
O uso de água de São Paulo não é apenas para
consumo humano. O fornecimento de energia elétrica da cidade, por exemplo, tem sido seriamente
afetado pela escassez de água. Reservatórios hidrelétricos da região quase secaram no final de 2014, e
em 2015 a situação não melhorou. Como resultado,
a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica
do Brasil aumentou as tarifas de energia elétrica
em até 25% em 2015. Diante da pior crise da história do Sistema Cantareira, a Sabesp lançou desde
2014 uma campanha para que os moradores baixassem em pelo menos 20% o consumo de água
com desconto de 30% na conta.
Não é possível falar em crise hídrica sem pensar também em seus impactos na economia. A
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – Fiesp estima que 60 mil estabelecimentos,
que representam quase 60% do PIB industrial
do estado, sejam afetados pela falta de água.
As indústrias precisaram alterar hábitos e procedimentos, o que afetará sua competitividade,
produtividade e lucro. Enquanto não há estudos
sistemáticos sobre o impacto da seca na economia
regional, alguns indicadores foram fornecidos
por associações de produtores e agências governamentais. O preço de produtos como tomate e
alface aumentou cerca de 30% no auge da seca, e
outras culturas também foram afetadas, como as
de cana-de-açúcar, laranja e feijão.
Os impactos da seca têm sido enormes. A
perda global até o momento foi estimada em
US$ 5 bilhões, de acordo com a Munich Re
(2015), tornando esse fenômeno o quinto desastre natural mais caro do mundo em 2014. Ela
tem prejudicado a indústria, a agricultura e o
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dossiê crise hídrica
FIGURA 7
Vazão mensal afluente (em m3/s) ao sistema Cantareira
(sistema equivalente + Paiva Castro)
Sistema Cantareira
80
Média 1930-2013
Mín. 1930-2013
2014
2015
1953
Vazão afluente mensal (m3/s)
70
60
50
40
30
20
10
0
jan
fev
mar
abr
mai
jun
jul
ago
set
out
nov
dez
A linha em preto corresponde às vazões médias mensais para o período 1930-2013. A linha cinza refere-se aos mínimos absolutos da série histórica
mensal no período 1930-2013. As linhas laranja e vermelha referem-se, respectivamente, à vazão média mensal de 1953 e de 2014; a azul, à vazão
média mensal até junho de 2015
funcionamento das instituições básicas, como
hospitais e escolas. Também o número de incêndios florestais em São Paulo tem aumentado
em 150%, de acordo com o Inpe.
A escassez de água gerou protestos e movimentos sociais em algumas partes da cidade devido ao “rodízio” (intermitência e alternância no
abastecimento entre os diferentes bairros) e ao
aumento no preço pago pelos consumidores, mesmo quando a água não está chegando às torneiras
das suas residências. A fauna nos rios também
foi afetada, e 20 toneladas de peixe morreram
no Rio Piracicaba em fevereiro de 2014. No Rio
de Janeiro, o principal sistema de reservatórios
apresentou os níveis mais baixos da sua história,
aproximadamente 1% (Hanbury, 2014).
Um impacto importante da seca no Sudeste do
Brasil (Figura 3) foi que a umidade que vem da
Amazônia não chegou para essa região, ficando
concentrada no oeste da Amazônia. O excesso de
chuvas observado no oeste da Amazônia (Figura
3) teve como consequência graves inundações no
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Acre e em Rondônia no verão de 2014. O governo do Acre estima em R$ 203 milhões o prejuízo
causado ao estado pelas cheias que afetam os rios
amazônicos desde o início de fevereiro. A Federação do Comércio do Estado acredita que os efeitos
vão gerar impacto na economia nos próximos três
anos. Em março, houve uma queda de 75% no imposto sobre circulação de mercadorias. Além dos
prejuízos diretos com as enchentes, sobretudo no
Rio Acre, o estado sofre as consequências da interdição da BR-364, única ligação rodoviária com
o restante do país.
CONCLUSÕES
A crise hídrica iniciada em janeiro de 2014
teve sua causa principal determinada pela presença de um sistema de alta pressão anomalamente
intenso e prolongado localizado sobre o Oceano
Atlântico, cuja influência se estendeu sobre a Região Sudeste. Sistemas desse tipo são denominados
normalmente como “bloqueios” já que impedem a
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passagem dos fluxos de umidade e o desenvolvimento de sistemas meteorológicos, causadores de
chuva. No ano de 2014, um bloqueio atmosférico
foi responsável simultaneamente pela crise hídrica
do Sudeste e pelas inundações históricas no sul da
Amazônia. Como os bloqueios atmosféricos são
típicos das latitudes médias e altas e duram em
média 7-8 dias, o sistema que permaneceu durante 45 dias nas latitudes subtropicais no verão de
2014 pode ser considerado como extremamente
raro. Durante 2015, a atuação de um novo sistema
de alta pressão, embora mais fraco e curto, não
permitiu a recuperação da umidade do solo gerando um “círculo vicioso” no ciclo hidrológico (a
falta de chuva gerou falta de umidade no solo, que
provocou falta de chuva).
A crise hídrica se desenvolveu num ambiente
de céu claro e temperaturas máximas extremas,
o que contribui para altas taxas de evaporação
num ambiente já muito seco. Contudo, não se
pode afirmar que as secas estão correlacionadas
ao aumento da temperatura no longo prazo. Na
atualidade não existem estudos detalhados nem
resultados conclusivos sobre o comportamento
dos bloqueios atmosféricos em cenários de aquecimento regional na América do Sul.
Observa-se uma diminuição relativa das chuvas sobre o Cantareira nas últimas décadas (desde
1990) e um aumento das chuvas sobre a cidade de
São Paulo. Hipoteticamente, esse efeito de longo
prazo pode estar relacionado com a ilha urbana
de calor, mas estudos em andamento precisarão
comprovar, ou não, essa hipótese.
Em termos gerais, o presente estudo mostra a
forte conexão entre a seca de 2014 e as condições
atmosféricas regionais únicas que prevaleceram
neste ano, embora não existam evidências de que
essas condições possam ser mais frequentes como
resultado da mudança climática. Entretanto, as evidências mostram que a presença de temperaturas
regionais mais elevadas pode ter contribuído para
a severidade ou persistência da seca em 2014.
A impossibilidade de relacionar diretamente a
mudança climática ou o desmatamento a episódios
específicos de seca não significa, porém, que os
governos não devam se preparar para o aumento de
eventos extremos causados por ela. Considerando
a complexidade das relações entre floresta e chuva
nas regiões a leste dos Andes, uma possível solução para não alterar o ciclo hidrológico da Amazônia seria reduzir o desmatamento e reflorestar
áreas em varias regiões do Brasil. São necessários
estudos com modelos climáticos globais complexos, nos quais se simule o clima com vários níveis
de concentração de gases-estufa e de mudanças no
uso da terra, por exemplo, urbanização ou desmatamento da Amazônia, para detectar impactos no
transporte de umidade fora da bacia amazônica e
nas chuvas nas bacias no Sul e Sudeste do Brasil.
Os problemas no abastecimento de água enfrentados por São Paulo não resultam apenas
das condições climáticas anormais, mas também da falta de eficiência no gerenciamento do
abastecimento do sistema paulista, incluindo a
existência de vazamentos nas tubulações, que
precisam ser consertados.
A “crise hídrica” é certamente um sinal de
alerta, com graves danos e prejuízos socioeconômicos registrados nessa região. Esses impactos são
compatíveis com a significativa falta de preparação
diante do atual quadro de variabilidade climática, que requer maior ênfase na implementação de
medidas de mitigação e adaptação para diminuir
a vulnerabilidade da população atingida por secas.
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dossiê crise hídrica
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