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Revista de Letras
Ano XIV
v. 14, n. 2
jul./dez. 2022
ISSN 2176-4182
Estudos Literários & Comparados
ESTRANHAS HARMONIAS:
A VIDA, A MORTE E O TEMPO NA LINGUAGEM DRAMATÚRGICA
DE FRANTZ FANON
Deivison Faustino*
Nicolau Gayão**
RESUMO: Este artigo tece uma análise dos escritos dramatúrgicos de Frantz Fanon (1925-1961) – as peças
Mãos paralelas e O olho se afoga – dentro do conjunto geral de sua obra e a partir do seu contexto de produção,
focando nos temas da vida, morte e tempo. Nosso argumento é de que as suas temáticas e estética oferecem
novas chaves para a compreensão do pensamento fanoniano e para a interrogação de questões humanas tão
universais quanto contemporâneas em sua urgência sociopolítica. Pretendemos fomentar a discussão sobre
esses textos, ainda pouco lidos e discutidos dentro das pesquisas sobre Fanon, mas plenos de possibilidades
para outros realinhamentos de sua crítica. As leituras intencionalmente fragmentárias realizadas aqui se intencionam servir como um ponto de partida para a mobilização da obra fanoniana como um instrumento vital
para a compreensão e enfrentamento das realidades coloniais e racistas atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Frantz Fanon; Vida; Morte; Tempo.
A linguagem que fere
Frantz Omar Fanon (1925-1961), ao justificar à seu editor o estilo hermético de alguns
trechos de Pele negra, máscaras brancas (1952), faz o seguinte comentário: “As palavras possuem
um fardo para mim. Sinto-me incapaz de escapar da mordida de uma palavra, da vertigem
de um ponto de interrogação” (Fanon, apud Jeanson, 1952, p. 12). É exatamente esse espírito
que encontramos, reinando estrondosamente, nas peças teatrais de Fanon.
Num estilo enérgico de escrita que marcará todo o seu trabalho ao longo da vida, temas
como a morte, a vida, o amor, o tempo, a esperança e o futuro, são temperados por uma
prosa e verso que parecem gingar astutamente entre o sonho surrealista calibanizado por
Césaire e a livre associação psicanalítica a respeito do que foi sonhado, desejado ou temido.
Há a evocação incessante por uma “linguagem que fere” os sentidos e convoca o corpo ao
ato1; o clamor por uma palavra que “deve ser movimento de penetração e emergência” e
*
Doutor em Sociologia (PPGS) pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor Adjunto da
Universidade Federal de São Paulo (USP).
**
Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Como escreve em fragmentos abandonados, apresentados por seu irmão Joby Fanon (2004): “Palavras possuem presas e devem ferir. Palavras doces e flexíveis devem desaparecer desse inferno” (2004, p. 141).
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“movimento sustentado pelo movimento” (FANON, 2004, p. 141). Assim como o vibrato
do bebop, a dissonância agonizante do hard bop de Charles Mingus ou as quebradas surpreendentes do free jazz de Ornette Coleman, a estética de Fanon - argumenta Lewis R. Gordon
(2015) faz dele um “filósofo do jazz”.
Em Mãos paralelas, que provavelmente fora escrita em 1949 durante a formação em
psiquiatria, quando Fanon tinha 24 anos (GEISMAR, 1974), encontramos os elementos de
uma orquestra poética cuja improvisação e o swing impõe um ritmo não linear de narrativa,
catarse e autorreflexão. Ao escutarmos a sua escrita, sentimos na pele o contratempo melódico e dissonante: “comovidos e vermelhos de sangue, os sinos palpitam” enquanto “coros
de crianças irresponsáveis se debruçam em direção ao sol. Os sinos desesperados lamentam”... um ritmo catártico e frenético que [nos] revelam [como] “homens [que] gritam decepados pelas lâminas do Sol” sob “os coros de criança agressivas [que] cortam pedaços de
pântanos”. O estilo literário de Fanon, aqui já indicado por ele mesmo, é como “uma trombeta [que] afronta os clarões de sol” enquanto “uma orquestra atravessada de gritos enquadra
a cena”. Sentimos a vibração no corpo, enquanto lemos, a síncope de “sinos e orquestras
[que] tentam se infiltrar na cena” (FANON, 2015, p. 162, 189, 195, 201, 216, 231, 232).
Já em O olho se afoga, escrito no mesmo período, a presença de uma voz sem corpo que
lança invocações crípticas sobre uma outra realidade parece atuar como um maestro instintivo que todos ignoram, mas que acentua o encadeamento de vozes que se modulam, erguem
e calam em diálogos que mais parecem batalhas ou improvisações conjuntas, com cada protagonista num tom e cadência próprios. Dissonantemente harmônico. Ler as peças de Fanon
é sentir o vibrato das notas sujas e quentes, outrora evitados pela melodia supostamente
clássica e se deixar levar à suspensão teleológica de uma sedução intelectual; um quase transe,
provocado por ritmos sincopados e microtonais que permeiam contratempos repicados e
desafiam a escala diatônica gregoriana.
Com esse tom apocalíptico, em sentido duplo – fim do mundo e revelação, a visão
para além do que está visível –, o teatro filosófico do jovem martinicano anuncia a sua ruptura
com a separação disciplinar e positivista entre a política, a psicologia, a filosofia, a psicanálise,
a sociologia, a psiquiatria e a antropologia. Essa fragmentação do real e do pensamento, que
Lewis Gordon (2014) nomeou como “decadência disciplinar”, é sistematicamente confrontada por uma perspectiva política, estética e teórica de encruzilhada (Faustino, 2022) que viabiliza o
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desvelamento sensível de algumas das determinações reflexivas que atravessam a experiência
vivida moderna2.
Curioso observar que a sua aposta nas dimensões políticas e estéticas da linguagem é,
ao mesmo tempo, uma denúncia de seus limites. Essa posição, talvez mais dialética do que
ambígua, revela que Fanon, definitivamente, não é um autor da virada linguística, embora
não ignore as suas contribuições e premissas, como podemos ler no grito de Lucien, em O
olho se afoga: “quando as palavras arrancam os olhos umas das outras, o único recurso restante
é a ação” (FANON, 2015, p. 74). Sentimos que a sua pancada estética tem a intenção de
deslocar violentamente o espectador de seu lugar, pois, na sua própria perspectiva, a palavra
só pode ser o preâmbulo da ação (FANON, 2004).
Talvez a abordagem necessária seja justamente cair na tentação sempre gratificante de
nunca ler os escritos mais insólitos de Fanon enquanto metáfora ou figura de linguagem, para
procurar na realidade concreta o que é aquilo que seus textos indicam. Como escreve posteriormente, em mais um dos raros momentos de explicação de sua própria escrita: “Eu te
ofereço esse dossiê para que ninguém morra, nem os mortos de ontem nem os ressuscitados
de hoje. Quero minha voz brutal, não a quero bela, não a quero pura, eu não a quero com
todas as dimensões. Eu a quero rasgada de cabo a rabo” (FANON, 2011, p. 731).
É essa voz que escutamos nas peças, e isso nos convida a retomar uma velha questão:
quem é Fanon, e o que o perturba? Há respostas sempre crescentes, e é possível, agora, fazer
um exercício de descriptografá-las a partir também de suas peças, hoje disponíveis – textos
que, se nos orientarmos pela percepção do próprio Fanon, são apócrifos de algo que não
deveria vir à tona. A partir de um cânone fanoniano cuja represa ainda está se rompendo
definitivamente, para além de um antigo e desigual sobre Pele negra, máscaras brancas e Os Condenados da Terra dentro do conjunto total de sua obra, o seu legado político e teórico tem sido
objeto de um notável interesse nas ciências sociais e humanas contemporâneas (GUIMARÃES, 2008; MEDEIROS DA SILVA, 2013; NASCIMENTO, 2019; FAUSTINO, 2022).
Entre os temas mormente abordados destacam-se a sua atuação política como intelectual
orgânico das lutas de libertação africana, as suas premissas teóricas e epistêmicas e, mais
2A
noção de determinações reflexivas (Reflexionsbestimmungen) é pensada aqui como a articulação recíproca entre
diferentes – e às vezes até contraditórias – instâncias da realidade concreta. Inspirando pela dialética hegeliana
(HEGEL, [1913] 2018) – mas se distanciando ontologicamente de seu logicismo inerente – Marx ([1957] 2003)
resgatará essa noção, em termos materialistas, para problematizar a relação recíproca e complexa entre diferentes componentes da sociedade civil burguesa (bürgerliche Gesellschaft) e a sociabilidade nela existente. Embora essa
relação não seja, necessariamente, linear, simétrica e nem mecânica, como argumenta G. Lukács, o seu desvelamento permite a apreensão da “articulação recíproca de categorias aparentemente estanques, mas na realidade
indissoluvelmente condicionadas umas pelas outras” (LUKÁCS, 1979, p. 82). A realidade social esboçada por
Fanon é síntese de múltiplas determinações que se articulam, se negam e se influenciam mutuamente.
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recentemente, as implicações subjetivas e clínicas de sua teoria. Ainda que esses estudos orientem cada vez mais o debate no campo artístico e cultural em geral, chama a atenção a
pouca existência de estudos sobre os trabalhos teatrais escritos por Fanon: as peças L’Œil se
noie e Les Mains parallèles, escritas quando Fanon era estudante de psiquiatria.
Finalmente publicadas no compêndio Écrits sur l’aliénation et la liberté: Œuvres II (2015)3
e traduzidas no Brasil pela editora Segundo Selo sob o título O olho se afoga/Mãos paralelas:
teatro filosófico (2020a), estas peças permaneceram (quase que absolutamente) não-lidas também por desígnio de Fanon. Ainda que tenha enviado uma delas para Jean-Louis Barrault,
um conhecido ator e diretor francês que nunca o respondeu (MACEY, 2012, p. 126), o próprio Fanon se desapegou destes textos ao direcionar seu interesse para outros temas que lhe
pareciam mais urgentes (GEISMAR, 1972, p. 56). Como que seguindo a sentença do próprio
autor, o seu terceiro trabalho dramatúrgico intitulado La Conspiration se perde no tempo e as
duas peças que chegam até nós são marcadas por capítulos ausentes. Porque, então, insistimos na sua leitura?
Porque a sua natureza fragmentar e a sua dissonância – em seus próprios textos e no
contexto geral da obra fanoniana – demandam justamente uma maior atenção nossa, e trazem elementos novos para pensar questões filosóficas (e estéticas e políticas) ainda em aberto
e por vezes obscuras em seus livros. Elas constituem, também, um precioso registro do desenvolvimento filosófico e estilístico de Frantz Fanon, já que muito da sua notável poética,
como movimento de autorreflexão filosófica (HENRY, 2000), é experimentado nesses textos de modo ainda mais livre de como seria em grande parte de seus textos posteriores. Não
se trata, assim, de extrair de seus versos respostas definitivas, mas de colocar em cena e
amplificar a complexidade dos conflitos no subsolo dessas destas questões, seja na época de
Fanon ou na nossa, a partir da riqueza polifônica e indeterminada de seu texto. De certo
modo, a leitura proposta aqui se dá sob o signo do “quase-fantasmático” e da “guerra de
ondas sonoras” descritas por Fanon durante a Guerra da Argélia: quando, contra o embaralhamento das frequências de rádio pelo exército francês visando ocultar o avanço da luta
argelina, a população argelina se reunia para ouvir e decifrar atentamente “o ruído
Esse tomo completa a publicação integral de seus escritos em livro, na língua francesa. Junto de Œuvres (2011),
a obra completa de Fanon saiu pela editora La Découverte, antiga François Maspero, que havia originalmente
publicado a maior parte de seus livros. Œuvres reúne em um só volume os já conhecidos Peau noire, masques blancs
(Seuil, 1952), L’An V de la Révolution Algérienne (François Maspero, 1959), Les Damnés de la Terre (François Maspero, 1961) e Pour la Révolution Africaine (écrits politiques) (François Maspero, 1964). Œuvres II contém ainda uma
série de artigos políticos e clínicos de Fanon, até então inacessíveis, reunidos por Jean Khalfa e Robert J. C.
Young em um volume de mais de oitocentas páginas.
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excruciante, perfurante da interferência. Atrás de cada modulação, de cada crepitar, o argelino
imaginava não só palavras, mas batalhas concretas” (2011, p. 322).
O que buscamos neste artigo, portanto, é meramente sinalizar alguns temas e linhas
possíveis de articulação e problematização entre esses textos e o desenvolvimento do pensamento de Fanon, considerando tanto as diferenças e possíveis rupturas entre o teatro e a
obra conhecida do autor, quanto as continuidades de algumas preocupações, estilo e temática. Não pretendemos fazer uma análise “completa” de tais temas, ou mesmo sintetizar as
suas narrativas, mas desdobrar alguns fragmentos e fomentar, assim, suas leituras e interpretações – tanto mais pelo fato de que a confissão de Fanon a respeito de passagens mais
obscuras de Pele negra se aplica a muito de sua escrita dramatúrgica, frequentemente densa,
obscura e fragmentada: “Eu não posso explicar essa sentença. Quando eu escrevo essas coisas, eu estou tentando tocar afetivamente o meu leitor, ou em outras palavras irracionalmente, quase sensualmente” (MACEY, 2012, p. 157). Simplesmente queremos mostrar que
ler as peças é ouvir acordes primordiais que ecoam por toda sua obra, na forma de questões
tão atuais quanto indigestas: como ousar viver em um mundo de morte? Como abolir esse
tempo morto em que vivemos? Como sequer falar da realidade vivida desses pesadelos concretos?
Pois seguindo os passos de seu surrealismo, inspirado em Césaire, o sonho aparece
nesses textos como a voz do inconsciente. Frequentemente, são os sonhos que delineiam
aquilo que está difuso no mundo desperto, que orienta as ações quase incompreensíveis ou
neuroticamente justificadas pelos protagonistas; e é a noite que se apresenta como o período
e lugar de tranquilidade, enquanto a luz do dia destrói e ilumina aquilo que é incompreensível
de tão inassimilável. Em termos simples: a verdade está na noite, ainda que a “realidade” esteja
sendo determinada sob outros domínios, e que essa verdade não seja necessariamente aquilo
que aparenta ser. Muito pode ser dito sobre a proximidade desta formulação com a estética
da Negritude ou mesmo com as críticas epistemológicas de Fanon em seus escritos posteriores, mas por ora nós permanecemos em sua estranheza: na existência que não pode ser, na
órbita elíptica e perpétua de seus protagonistas em torno da morte.
Entre a morte, o sonho e a vida
François quer morrer e não há como contornar o fato. Ele fala da transcendência em
uma dimensão não-humana de entes desarraigados e liberdade absoluta – ali onde “as flores
não precisam de nada, nem mesmo da árvore que as carrega” – mas é visível que “é a morte
que habita François. É a morte que o guia” (FANON, 2015, p. 76, 71). O relutante
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personagem central de O Olho se Afoga, que sequer tem certeza da própria existência (ou da
possibilidade de que qualquer pessoa possa a ter) e nutre o desejo de ser cego para enfim ver
como as coisas realmente são, se lança num silêncio obstinado por boa parte da peça. Sobre
a razão deste ímpeto em direção àquilo que não é (não há, não se vê, não está), incompreendido por aqueles que o amam, François oferece apenas sonhos misturados a memórias:
Eu via os adultos com suas grandes mãos de estranguladores em liberdade e eu
tinha medo, muito medo! Minuto a minuto, sempre tenso, cansado, eu lutei contra
aqueles que queriam me fazer crer no ódio, no sangue, nas lágrimas. [...] Sabe você o que é lutar
contra o homem? Havia uma espécie de homem que me propuseram. Esse homem
me metia medo… Ó, essas lutas sustentadas contra a alegria dos outros, contra a miséria dos
outros, contra a indiferença dos outros. [...] E então eles me sacudiam como eles sacodem
as bestas no dia de sua primeira comunhão. Eles me disseram que havia os livros, as
emoções, a luta, o papel a desempenhar, a vida a disputar [...]. (FANON, 2015, p. 67-8)
Os sonhos foram objetos de grande interesse para o surrealismo e a negritude que
tanto marcaram a formação do jovem estudante de psiquiatria, neste período de escrita das
peças, mas também, para a psicanálise que conquistava cada vez mais o seu interesse (FAUSTINO, 2018). Para essas epistemes, o sonho é um poderoso portal para o inconsciente e,
por vezes, revelador daquilo que pode escapar às formulações mais objetivas. Mas como
argumentará posteriormente o próprio Fanon, em sua crítica à análise psicologizante de Octave Mannoni sobre os sonhos dos Malgaches: “sim, o inconsciente, eis que chegamos a ele.
Mas não devemos abusar” (FANON, 2011, p. 141). Os Malgaches sonhavam ser perseguidos
por touros negros e soldados senegaleses portanto gigantes armas engatilhadas, ao que Mannoni interpretou psicanaliticamente como uma expressão fálica e mal resolvida do dilema
edípico, ao que Fanon contestou:
O touro negro furioso não é o phallus. Os dois homens negros, não são os dois pais
– um representando o pai real, outro o ancestral. [...] O fuzil do soldado senegalês
não é um pênis, na verdade é um fuzil Lebel 1916. O touro negro e o bandido não
são lolos, “almas substanciais”, mas verdadeiramente uma irrupção, durante o sono,
de imaginações reais. (FANON, 2011, p. 147)
Como lembra ironicamente o filósofo jamaicano Lewis Gordon, “às vezes, uma arma
é apenas uma arma” (GORDON, 2015, p. 59). Neste sentido, guardada o reconhecimento
da dimensão escorregadia dos signos, não é heresia onírica nos perguntarmos quem é esse
homem que sonha, sua experiência singular objetiva e, sobretudo, os atravessamentos sociais,
políticos e históricos que encontra em sua trajetória. Usando Fanon contra Fanon, poderíamos responder afirmando que “é preciso colocar esse sonho em seu tempo” (2011, p. 145).
Contextualizamos, pois, seu contexto e, sobretudo, seu autor: Nascido em 20 de julho de
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1925, no seio de uma família de classe média, em Fort-de-France, Martinica, Fanon foi participante e protagonista de importantes acontecimentos sociais, políticos e teóricos de sua
época na África, Europa e Caribe4. A região que assistiu aos seus primeiros passos nesta
encruzilhada ainda hoje é considerada um departamento ultramarino insular francês no Caribe, e os seus habitantes – a grande maioria composta por descendentes de africanos que
não se reconheciam como negros – entendiam-se como franceses e aprendiam nas escolas
assimiladas que os “pais” de sua pátria eram “os gauleses” (FANON, 2011, p. 184).
A maioria da população – uma imensa massa de trabalhadores pauperizados – não
tinha acesso à escolarização, muito menos à língua francesa, tomada como um importante
marcador social de diferença em uma ilha onde a maioria da população marginalizada falava
apenas o crioulo. No entanto, a condição de classe de Fanon lhe garantiu acesso à educação
formal e, sobretudo, à língua francesa (FAUSTINO, 2018). Mais do que isso, em sua adolescência, o jovem martinicano foi assíduo frequentador de bibliotecas públicas onde teve contato com a literatura francesa e mundial como Dante Alighieri, Alexandre Dumas, William
Shakespeare, Aimé Césaire, Jacques Romain, entre outros que variam do teatro grego ao
teatro clássico francês (GEISMAR, 1972; MACEY, 2000). Fato que permitiu à Fanon, assim
como no sonho de François, conhecer os grandes homens do cânone literário ocidental: “E
então eu conheci homens. Os verdadeiros, os duros, os fortes!” (FANON, 2015, p. 67-8).
E foi em defesa dessa verdade, já que “era preciso fazer alguma coisa” (idem), que
Fanon se alistou à Resistência Francesa para lutar por sua pátria contra o nazismo, em 1944,
quando parte da França foi tomada pela Alemanha. O jovem Frantz quis se juntar aos verdadeiros, duros e fortes rebeldes em defesa da liberdade humana. Mas no front de guerra, junto aos
franceses brancos metropolitanos e imigrantes oriundo das colônias em outros continentes,
percebeu amargamente que a sua cor o impedia de ser visto por seus supostos “compatriotas” como um filho legítimo da pátria. Por mais que pensasse, sentisse ou desejasse o contrário, em face do branco seria no máximo um filho bastardo, ou seja, era visto e tratado
apenas como um preto sujo [sale nègre], e não como um francês (FAUSTINO, 2013). Como
afirmaria posteriormente em suas análises, o antilhano que classificava o senegalês como
preto – mas não a si – só descobria que também o era quando deixava a sua terra natal em
direção à Europa. Na metrópole, “quando falarem de negros, ele saberá que se trata dele
tanto quanto do senegalês” (FANON, 2011, p. 184).
4
Para mais detalhes da biografia de Frantz Fanon, ver Faustino (2018).
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A percepção sensível dessa morte social – ou, se preferirmos, das barreiras racializadas
que interditam a possibilidade de um reconhecimento recíproco das diferenças humanas, tal
como previsto por Hegel (FAUSTINO, 2018; 2021b) – foi, pouco a pouco, se convertendo
em objeto de preocupação política e teórica. Nesse momento em que arriscava a própria vida
lutando contra o nazismo na França, a experiência do racismo lhe trouxe grandes frustrações.
Ainda assim, ao comentar o fato em carta a um amigo de infância e receber deste o conselho
de mandar os franceses “para o inferno”, ele responde com a célebre frase que depois seria
retomada na conclusão de Pele negra, máscaras brancas, seu primeiro e mais influente livro:
“Cada vez que um homem fez triunfar a dignidade do espírito, cada vez que um homem
disse não a uma tentativa de escravizar seu semelhante, eu me solidarizei com seu ato” (FANON, 2011, p. 247).
Pouco antes de terminar a guerra, o nosso bastardo herói foi ferido gravemente em
batalha. Sobreviveu e ao regressar à ilha caribenha foi condecorado por bravura pelo Exército
Francês, tal como no já mencionado sonho de François, recebendo uma medalha de honra
ao mérito:
“E então eu conheci homens. Os verdadeiros, os duros, os fortes! [...] Aqueles que
me feriram porque me amavam, aqueles que me feriram porque me odiavam. Aqueles que me
feriram pois, diziam eles, era preciso fazer alguma coisa. [...] Você não sabe o que
é não compreender. Não compreender o que te acontece! Você está na sua grande
cama branca, leve como um sonho de vôo, batem na sua porta, homens entram.
Você mal os vê, pouco vê. Eles falam, você mal entende, pouco entende e então
eles começam a te golpear e te linchar violentamente e você sente dor, muita dor.
Eles vão embora e você não entendeu nada e você sente o peso dos golpes. Depois
eles voltam, você se levanta, você quer falar com eles e você acredita que vai entender. Então lhe dizem que você também é um homem duro e eles te deixam
sozinho com uma medalha e você sente o peso dos golpes. (FANON, 2015, p. 678)
Sonho ou não, o que se sabe é que o status de “veterano”, obtido com a medalha,
conferiu facilidades para a inserção de Frantz no sistema universitário metropolitano. Agora
que o filho bastardo provou que também pode ser duro, pode seguir o seu caminho para
quem sabe, ser reconhecido também como verdadeiro. Assim, em 1946, decidiu cursar odontologia em Paris, mas acabou abandonando o curso, provavelmente por não ter suportado a
hostilidade da cidade à imigrantes negros (GEISMAR, 1972). Assim, decidiu, então, estudar
medicina psiquiátrica na Faculté Mixte de Médecine et de Pharmacie da Universidade de Lyon, uma
cidade de forte tradição operária localizada no Leste francês. Nesse período, participou de
diversos seminários e debates universitários, entrando em contato com a obra de renomados
pensadores debatidos na França à época, como Sartre, Nietzsche, Jaspers, Lacan, Freud,
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Marx, Hegel, Nietzsche, Kierkegaard, Bachelard, Bergson, Levinas, Wahl, entre outros o qual
se destaca Merleau-Ponty que lecionou na Faculdade de Lyon quando Fanon era estudante5.
Os anos de 1946 a 1951 foram intensos para o jovem Frantz: uma gravidez não planejada, o envolvimento com o movimento estudantil e a participação ativa nos acontecimentos
políticos da época.6 Esses eventos, no entanto, não o impediram de frequentar assiduamente
o teatro local e escrever as já mencionadas peças teatrais. Acredita-se que elas foram escritas
no ano de 1949, pouco tempo antes de Fanon iniciar a pesquisa e a escrita do que seria
posteriormente o Pele negra, máscaras brancas (YOUNG, 2020). Em sua apresentação à coletânea publicada pela editora La Découverte, o crítico cultural britânico Robert J. C. Young lista
todas obras apresentadas no teatro Célestins, da cidade de Lyon, no período em que Fanon lá
estudou. Somente de Sartre, cujas novelas impressionaram fortemente Fanon e despertam
seu interesse pelo teatro nesta época, temos:
Morts sans sépulture, fevereiro de 1947; Les Mains sales, maio de 1949; Huis Clos,
outubro de 1948, abril de 1950, maio de 1951; La Putain respectueuse, fevereiro de
1947, outubro de 1949, abril de 1951. Fanon cita esta última peça em Pele negra,
máscaras brancas (Young, 2020).
Para além dessas, destacam-se Calígula, de Camus, em fevereiro de 1950, e Partage de
Midi, de Paul Claudel, Feita por Jean-Louis Barrault, em fevereiro de 1949, o mesmo diretor
para o qual Fanon enviara, sem resposta, um de seus manuscritos. Fato é que o aos 24 anos,
o jovem estudante de psiquiatria tinha a seu dispor uma tradição que procurava colocar o
teatro à disposição dos grandes debates filosóficos de seu tempo. Ao que parece Fanon foi
um receptor dessa tradição, mas tal como Caliban, a personagem monstruosa de The Tempest,
escrito por Shakespeare no início do século XVII, apropria-se da linguagem e significados
ocidentais para devolvê-los subversivamente como ofensa política aos paradigmas canônicos.
Nessa investida, a influência múltipla do existencialismo, do surrealismo, do impressionismo
e, sobretudo, da proposta estética do movimento de Negritude é mobilizada na forma de
uma experimentação linguística em torno de um “obscuro” não-articulado (ou mesmo não
articulável) no âmbito das experiências humanas.
5
Todos esses autores contavam com livros presentes na biblioteca de Fanon, catalogada por Khalfa (FANON,
2011).
6 Além disso, o jovem estudante participava de uma organização da União dos Estudantes dos Territórios
Ultramarinos da França e fundou com outros colegas o periódico Tam-Tam. Seu primeiro ensaio publicado (em
1951) portava um título que poderia ser traduzido como “A queixa negra: a experiência vivida do negro” (La
plainte de Noir: L’expérience vécu du Noir). Nele já se observa o tom científico-poético que seria futuramente utilizado em Pele negra, máscaras brancas, mas, sobretudo, a preocupação em cruzar saberes psicológicos, psiquiátricos,
psicanalíticos, filosóficos e sociológicos.
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As peças de Fanon surpreendem os desavisados que esperam em seu teatro filosófico
um mero panfleto político focado na denúncia de uma ou outra dada contradição social.
Talvez, reflitam um momento limítrofe em que Fanon ainda esperava ser possível transcender a racialização no interior da ordem social que estava posta, algo que sabemos a posteriori,
não ter se sustentado7. Mas neste momento, o foco de sua proposta estética parece ser o de
explicitar e extremar os estranhamentos e interrogações dos indivíduos diante das mediações
sociais concretas com que se deparam; explicitando, assim, diferentes – mas sempre culturalmente e subjetivamente situadas – possibilidades de lidar com dilemas humano-genéricos
como o amor, a vida, a morte. Observa-se uma tensa, magnética e dialética relação entre
palavra (mot) e a morte (mort), mas também, da vida como espécie de suprassunção que deriva
desta tensão, como vemos no diálogo de Lucien com Ginette, na cena 3 de O olho se afoga:
Lucien: Veja você, refleti bastante sobre tudo isso: acredito que definitivamente, um
homem terá sempre que escolher entre a vida e a morte [mort]. Dizem que o homem
é grande porque aceita morrer. Mas morrer não é nada. A grandeza do homem está,
talvez, em sua aceitação da vida. A vida, com seus duros golpes, suas vergonhas a
enxugar, os golpes recebidos sob a mesa sem dizer nada, suas covardias, seus comprometimentos, especialmente seus comprometimentos. Um homem talvez não
seja nada além de um compromisso entre a vida [vie] e a morte [mort]. Mas mesmo
que ele não seja nada além disso, ele deve persistir. Deve viver, por nada, porque
ele está aqui; deve agarrar a vida com as unhas e dentes, de frente, como um gladiador. Deve ser um insulto constante ao destino.
Ginette: São apenas palavras [mots], Lucien. Ele [François] tem razão.
Lucien: Pois então a morte [mort] tem razão contra a vida [vie]. Que os corações
parem de bater. Que a primavera interrompa sua marcha nupcial. Então o sorrir
deve desertar e dar lugar à horrenda crispação da angústia e da morte [mort]. Apenas
palavras [mots], você diz? Mas palavras cor de carne trepidante. Palavras cor de
montanhas ardentes. De cidades em chamas. De mortos ressuscitados. Palavras
[mots], sim, mas palavras estandartes. Palavras [mots] cortantes. O amor que te faz
viver a segunda potência. Uma palavra [mot] / mas uma palavra [mot] estrangulada
pela vida / eriçada de vida. Uma palavra [mot] que tem sede, / que tem fome, / que
grita / chora / chama / se absorve / e se / perde. (FANON, 2015, p. 77-8)
É nessa tensão que, partindo de duas próprias experiências, Fanon enquadra o desejo
de morte (e da cegueira, da noite) por François: não como escolha, mas gravidade na qual já
se vê imerso pelo mundo que habita, incapaz de traduzir propriamente o que lhe acontecia.
Ainda durante a Segunda Guerra, em 1945, Frantz escreve numa carta para Joby: “Eu duvido
de tudo, até de mim. Se eu não retornar, se você ficar sabendo da minha morte, console-se,
mas jamais diga ‘ele morreu por uma boa causa’. Eu parto amanhã para uma missão perigosa.
Eu sei que eu não voltarei” (FANON, 2004, p. 136). A vida, conforme expressa posteriormente nas palavras de Lucien, não é de modo algum garantida e é sempre um enfrentamento
Como ele confessa, em Pele negra, máscaras brancas, antes de desmoronar subjetivamente e chorar: “Cheguei
no mundo, preocupado em descobrir um sentido nas coisas, minha alma plena do desejo de estar na origem do
mundo, e eis que me descubro um objeto em meio a outros objetos” (FANON, 2011, p. 153).
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– até mesmo para ser compreendida e expressa em todas as suas dimensões e implicações,
até mesmo por aqueles que a afirmam ou a negam efusivamente.
Em Mão paralelas – que como indica Young faz menção à As mãos sujas, de Sartre – o
enredo da trama é o assassinato do rei Polyxos por Épithalos8. Ato anunciado ao primeiro
em um sonho onde “Épithalos, impiedoso, me ausentou desta terra”. Longe de ser um crime
comum, o assassinto de seu pai na peça, tal como na peça citada de Sartre, sugere Young, diz
respeito à “escolha de um jovem guerreiro sobre cometer um assassinato político (o do seu
pai), em vez de se submeter ao casamento no dito dia, um ato que implicaria a submissão de
Épithalos a uma vida convencional” (2020, pp. 54-5). Embora a conflagração apocalíptica
que se segue, resultando em muitas mortes, não alcance o êxito esperado e o guerreiro acabe
por se submeter à ordem social posta, sua subversão, insiste Young – ao comparar a peça
com a crítica à sociedade burguesa, presente em Pele negra, máscaras brancas –, demarca que a
diferença entre a vida e a morte está na negação revolucionária da passividade:
Aqui, Épithalos enuncia sua vontade de transformar o mundo horizontal, ossificado, pelo seu ato “vertiginoso”, um mundo concebido como passivamente movido pela causalidade estrutural, em vez de agir sob a influência da vontade [...]. a
ênfase nas mãos [das mãos paralelas que nomeiam a peça] está claramente ligada
ao labor da ação revolucionária que se opõe à contemplação passiva [...] (YOUNG,
2020, p. 56).
Podemos aumentar o escopo e sentir as ondas dessa conflagração em toda sua amplitude. Épithalos, afinal, o herói que reivindicou dias de fogo e “dunas do sol para abrigar a
minha alma de pedra” (FANON, 2015, p. 107) falha ao tentar se erguer enquanto não apenas
um sujeito, mas o Sujeito-criador externo à história. O seu retorno forçado para o reino dos
mortais do qual ele faz parte irremediavelmente — uma revelação terrível, para ele — antecipa a visão de Fanon segundo a qual nem a crítica revolucionária da economia política e
nem o mais íntimo dos dramas individuais escapam das mais banais relações humanas. Ninguém passa incólume ou imaculado por um processo revolucionário, como insiste em Condenados – “Não há mãos puras, não há inocentes, não há espectadores” (FANON, 2011, p.
581) – e a realização de si enquanto pessoa humana jamais se encerra ou mesmo se inicia em
si mesma, como já havia insistido em Pele negra: “uma outra solução é possível. Ela implica
Para Young, o nome do herói Épithalos, pode ser inspirado em epithalamus, “o segmento dorsal do diencéfalo,
um nome bastante apropriado para um herói que representa o intelecto aspirante, ou a referência ao epitalâmio,
um poema lírico composto para os casamentos em Grego clássico, e cantado por um coro” (2020, p. 45). O
epitálamo é, ainda, uma das partes do cérebro responsáveis por regular o sono. Como logo veremos, a sina e o
papel de Épithalos, para o seu desgosto, estavam determinados desde muito antes de seu nascimento e já inscritos em seu nome, sua própria invocação a fixação de sua missão: “Épithalos assombra a cena. Ele queima
para aparecer” (FANON, 2015, p. 92).
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UMa reestruturação do mundo” (FANON, 2011, p. 125). Sob essas luzes, o desfecho aparentemente contra-revolucionário da peça, pode ser lido, na verdade, como uma denúncia
das falsas mudanças, daquilo que toma o mundo presente como dado e inalterável e se conforma com a mudança de elementos aparentes como meio solucionar o todo – seja por uma
outra perspectiva existencial subjetiva, seja por um outro ocupante do trono.
Chama a atenção, nesse sentido, a ausência explícita e já conhecida ao racismo e ao
colonialismo nesses dramas9. Essa postura foi interpretada por Young (2020) como uma recusa do jovem estudante ao enquadramento racial. Uma tentativa de reivindicar para si a
universalidade do gênero humano e se permitir problematizar, como tal, os seus sabores,
saberes e dissabores. Mas podemos nos perguntar: até que ponto é possível escapar à racialização em uma sociedade racista? Se houve uma pretensão universalista nas peças ela foi
frustrada desde a raiz pela experiência concreta de Fanon na França metropolitana, e Pele
negra expressa a constatação dolorosa dessa frustração. Ao mesmo tempo, a descrição da
experiência do mundo por François, em Olho se afoga, não poderia ser um relato mais fanonianamente autobiográfico; repleto de violência, contado em forma de sonho, relutante a (se)
expor mais do que o minimamente necessário sobre esse mundo em que é ensinado a odiar,
golpeado, linchado, condecorado com medalhas, feridos de maneiras incompreensíveis por
aqueles que o amam e aqueles que o ferem – o “círculo infernal”, discutido em Pele negra
(FANON, 2011, p. 238).
Se o racismo está invisível nas peças, é conforme aquela invisibilidade por saturação
absoluta descrita em Racismo e Cultura, pela qual não se enxerga em lugar nenhum desse
mundo pessoas e dilemas humanos que não sejam constituídos pela racialização, pois: “Ele
não é um elemento escondido, dissimulado. Não são necessários esforços sobre-humanos
para colocá-lo em evidência. O racismo crava os olhos pois precisamente ele entra num conjunto caracterizado: o da exploração descarada de um grupo de homens por outro” (FANON, 2011, p. 721). Tendo em mente esses códigos simbólicos-teóricos inscritos nas entrelinhas, podemos nos perguntar também se a opção pela noite, ao invés do dia, como metáfora
de conforto, sonho e criação é apenas uma herança estética de Césaire ou expressão cifrada
de uma crítica ao esclarecimento iluminista ou mesmo à “brancura branca”, citada em Pele
Com a exceção notável de “Audaline, a branca” em Mãos Paralelas. Ela existe nessa encruzilhada de medo,
amor, desejo (do outro e de poder), relações sobrepostas e sobredeterminadas, e a (consciência da) morte descrita em Pele negra (especialmente no capítulo 3, “O homem de cor e a branca”), e, assim, na posição ambígua
de ser ao mesmo tempo a mulher-prêmio prometida pelo poder vigente — que Épithalos recusa para almejar
um poder absoluto e imediato — e aquela que denuncia e morre por efeito das ações de seu noivo que, ela bem
sabe mas ele se recusa a ouvir, reproduzem as estruturas políticas e leis históricas que ele busca quebrar.
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negra (2008, p. 69). Essa imagem é nítida em O Olho se afoga, vide a predileção e sintonia natural
de François: “É noite e o reino de François chegou” (FANON, 2015, p. 81). Mas também o
reinado de Mãos paralelas, sitiado por perspectivas opostas, apresenta esse resguardo contra
uma luz esmagadora:
Ó, Polyxos, foi sábio no dia em que por tua ordem as luzes foram apagadas. Fixado
neste não-espetáculo, o homem adormecido fala e se esquece [...] Durma, cidade
que me é propícia. Bendita seja a Escuridão. Pois a luz é terrível. As franjas dos
dias sombrios desapareceram e o mundo recupera sua contingência original. Através das categorias abusivas, a consciência repousa, feliz, em sua negra densidade. A
luz, fonte dissolvente, cede o seu lugar à palavra. Bendita seja a Escuridão / Pois a
palavra não se altera por nenhuma visão (FANON, 2015, p. 92).
Mesmo Épithalos, que inicialmente se opõe a esse reino da noite – “Dois mil anos e o
mundo dorme / Dois mil anos em que os Homens se esquecem no seio de uma Vida em
suspensão! / Dois mil anos e os dias escravizam a consciência” (FANON, 2015, p. 126) –,
implora que o sol se apague e a noite retorne, após ver às claras a tragédia que provocou:
Astros hemorrágicos que me condenam / Cessem! / Oh! Não mais ver / Não mais
ver a mudez branca / Não mais ver a morte / Coisas permanentes agarram meu
olhar / desenfreado / O Vazio / O fim / [...] / Noite germinação que legitima o
sono dos homens / Venha / Limitar a perspectiva do mundo… / Não mais ver.
(FANON, 2015, p. 132).
É significativo, ainda, que para François e Épithalos, os não-heróis e núcleos controversos de cada uma das peças, a noite represente coisas tão diferentes: sono deformador da
humanidade ou o sonho de uma vida digna do nome, dimensão de existência autônoma ou
aquilo que impossibilita esta. Tal discrepância entre seus protagonistas e a dissonância destes
em meio a seus respectivos mundos dá ainda mais densidade ao fato de que, ainda que essa
questão seja explorada, invertida e tensionada de ponta a ponta, não se produz qualquer
resposta última e definitiva sobre o significado da noite. De modo que seria apressado querer
reduzir a um mero irracionalismo ou uma ruptura pós-heideggeriana com o humanismo essa
expressão em múltiplas vozes, sintetizada insistentemente pelo coro de Mãos Paralelas: “Bendito seja a escuridão, pois a luz é terrível” (FANON, 2015, p. 101). A escuridão não é o
oposto da palavra ou da possibilidade de nomear o mundo, como veremos na proposta lacaniana de Lélia Gonzalez10, mas sim, uma das suas possibilidades. Talvez por isso a relação
com a morte seja tão ambivalente e relativamente distinta daquela proposta por Heidegger –
10
Como podemos supor ao ler a oposição entre consciência e memória, proposto por Lélia Gonzalez em seu
célebre racismo e sexismo na cultura brasileira (Gonzalez, 1984, pp. 223-244)
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e toda a fenomenologia francesa à época de Fanon – onde a morte é a única certeza que se
possa ter:
Lucien: Veja bem, eu pensei muito sobre tudo isso: acho que, em última análise, um
homem sempre terá que escolher entre a vida e a morte. É fácil permanecer imóvel
e repetir sem parar: “a vida é a antecâmara da morte”. [...] Mas é mais difícil acreditar na vida e no amor. É mais exaustivo abrir as mãos e se agarrar à vida, ferozmente, humanamente, quer dizer, terrivelmente. É mais difícil lutar, gritar, uivar
não mais à morte mas à vida! (FANON, 2015, p. 79)
Fanon, ao fim, parece escolher a vida, tal como um gladiador, com todas as suas incertezas e agruras11. Mas é importante ressaltar o papel de Ginette12 em O Olho se Afoga, enquanto
mediadora entre as visões de Lucien e François e, ademais, a primeira articuladora da crítica
sociogênica que Fanon aplicaria em todos os seus estudos, na forma de uma indagação sobre
as razões reais de uma determinada postura diante da morte e da vida:
Você sabe que você não escolheu; que não escolhemos. Queremos viver, mas queremos saber porque ele quer morrer. [...] Não podemos deixá-lo ir, não podemos
mais esquecê-lo, não podemos nos afastar dele. Não te incomoda viver avidamente
ao lado desse morto ainda quente? (FANON, 2015, p. 79).
Essa inquietação ajuda a iluminar as raízes de um caminho sinalizado por Fanon em
Pele negra e tomado de modo subterrâneo em seus textos posteriores: a distensão da categoria
heideggeriana de “ser-para-a-morte” sinalizada por Fanon13. Pois para o “ser” racializado e
colonizado descrito por Fanon, a morte não é tanto a “possibilidade da impossibilidade da
existência” (HEIDEGGER, 2018, p. 339), de momento indeterminado e impossível de ser
experienciada, mas sim um evento dado, determinado e conhecido; ela acontece agora, já
aconteceu. Presente na existência como uma experiência cotidiana – ainda que imperfeita,
enquanto o “aspecto de morte incompleta” (FANON, 2011, p. 361) que cobre a vida – a
morte se dá aqui como a impossibilidade da possibilidade de existir de outro modo.
Como escreve em uma carta no leito de morte: “a morte está sempre conosco e o importante não é saber
como evitá-la, mas garantir que façamos o nosso melhor pelas ideias em que acreditamos” (CHERKI, 2006, p.
165).
12 Junto com as mulheres de Mãos Paralelas, Ginette forma um grupo de vozes críticas concretas (cada uma a
seu modo) aos confrontos altamente filosóficos dos protagonistas homens, e suas falas suspendem inclusive os
significados tão importantes, certos e unidimensionais das “mortes” e “vidas” que estes enfrentam e evocam.
Certamente, um dos trabalhos a ser feito a partir das peças de Fanon é um estudo mais aprofundado sobre
estas personagens, e o que elas representam na formulação da crítica fanoniana – tanto mais quando lembramos
que todos os livros de Fanon foram ditados para mulheres em seu processo de escrita.
13 Numa das edições de Les Temps Modernes presentes na biblioteca de Fanon, o seguinte trecho de um texto de
Francis Jeanson está marcado: “E nós citaremos de cabeça o pensamento spinozista segundo o qual ‘a morte é
a última coisa sobre a qual um homem livre pensa, e sua sabedoria é uma meditação não da morte, mas sobre
a vida [essa última palavra sublinhada com traço duplo]’, pensamento que conviria, evidentemente, opor à toda
a tradução oposta, conduzindo à Heidegger” [Anotação de Fanon: “E seu ‘ser para a morte’”]. (FANON, 2015,
p. 650).
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Assim, não há tanto uma elaboração de projetos que se estendem num futuro finito –
e o ser-para-a-morte “próprio” de Heidegger sabe que sua morte não está num distante aindanão e não a nega, mas a antecipa conscientemente, assumindo e suportando-a como a possibilidade constitutiva de si; aquela possibilidade mais própria, certa, extrema, irremissível, indeterminada e insuperável, que, por isso mesmo, coloca totalmente em jogo o “poder-ser
mais próprio” de alguém – isto é, faz de sua existência e de suas possibilidades algo propriamente seu, e do seu ser-para-a-morte um “ser para a possibilidade” (2018, p. 326, 339)14.
Nem é, também, o caso de seu “ser-para-a-morte impróprio” (2018, p. 336), onde a tentativa
de se tranquilizar e fugir da morte ao transferi-la para “algum dia mais tarde” – pela certeza
empírica e cotidiana de que “morre-se” no impessoal (isto é, não eu) e de que “a morte vem,
mas ainda não” (2018, p. 329) – tende a encobrir o que há de mais próprio na morte, enquanto possibilidade (o fato de que ela é minha e irremissível) e enquanto certeza (o fato de que,
indeterminada em seu quando, ela é possível a todo instante).
Se Fanon demonstra algo de crucialmente ontológico com seus sociodiagnósticos da
existência racializada e colonizada é a já facticidade de sua morte, não tanto numa iminência
que delineia o “todo” de sua existência mas numa realização imperfeita que se alonga num
limbo; imanência à espreita para reduzi-la a nada. Diante dessa outra forma de certeza perpétua da própria morte, a luta contra sua presença concreta e assombrante ocupa e domina
todo o espaço-tempo existencial, isto é, a possibilidade de fazer algo mais da própria vida.
Mesmo o ainda-não – para o qual a morte poderia talvez ser lançada, dando espaço a possibilidades menos impróprias de uma vida digna – deve ser conquistado todo dia. Nem se trata
de encobrir a morte – como se cobre algo atmosférico? – mas de se esquivar e de desviá-la;
no limite, como demonstra Fanon a respeito dos assassinatos resultantes da fome e de todo
tipo de brutalização da existência, a própria morte pode, sim, ser remetida a um outro –
apenas provisoriamente, é óbvio, mas pode; hoje quem morre é o outro, não eu. Diante da
“morte à queima-roupa” (FANON, 2015, p. 361), que não pode ser negada e nem antecipada
14
Eis o argumento de Heidegger, esmagado: o ser-para-a-morte, enquanto a antecipação (contemplativa, não
factual) da própria morte, abre uma pessoa (um ser) para si mesma ao abri-la para a sua “possibilidade mais
extrema” e mais própria (sua morte, que ninguém mais pode morrer) e, com isso, para a possibilidade de compreender e projetar-se para seu “poder-ser mais próprio e mais extremo” (sua existência, que ninguém mais
pode viver); isto é, a “possibilidade de existir em sentido próprio” e “poder ser propriamente ela mesma”,
sempre já em jogo em seu ser e que só ela pode assumir para si. Pois, sem suspender a insuperabilidade da
morte, tal antecipação libera tal pessoa “do perder-se nas possibilidades ocasionais”. Ou seja, lhe permite compreender e escolher “em sentido próprio” suas possibilidades (conscientemente) finitas, antepostas às possibilidades insuperáveis e “superáveis da existência dos outros”, que podem agora ser reconhecidas como tal –
como impessoais e impróprias. Abre-se, desse modo, “como possibilidade mais extrema a tarefa de sua propriedade, rompendo assim todo e qualquer enrijecimento da existência já alcançada” (2018, p. 339-41).
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pois já está aqui, e cujas bordas já penetraram tenebrosamente o seu corpo e a sua mente, o
colonizado empurra a morte com a barriga.
Afinal, o problema geral do Geworfenheit heideggeriano – o “ser-lançado” no mundo, que
implica estar “entregue à responsabilidade de sua morte” enquanto um morrer constantemente durante todo o tempo de vida, sobre o qual já sempre se decidiu, para si, por esse ou
aquele modo de “ser-para-a-morte” (HEIDEGGER, 2018, p. 336) – é, no mundo ou cidade
ou comunidade da pessoa colonizada, negra, indígena, o fato de ser lançado na terra como
um corpo que “não [é] mais do que um corpo” (FANON, 2011, p. 703): o fato de ser lançado
na cela, na cadeira do torturador, na parede de um enquadro, na calçada na frente de sua
casa, no chão de uma rua sem câmeras, num canto onde nunca será encontrado, na trajetória
da bala perdida; no domínio do assassinato onde a morte assume a face de forças policiais,
(para)militares, milicianas, jagunças – ou simplesmente, numa banalidade terrível, do marido,
do vizinho, do conhecido. E mesmo “antes” disso, é ser lançado no consultório sem diagnóstico, na casa sem comida, ao relento pelo incêndio ou reintegração de posse ou despejo
que destrói o lar. É possível multiplicar indefinidamente esses contra-argumentos mórbidos,
mas talvez todos remetam, no fundo, à crítica de que “o Dasein de Heidegger nunca tem
fome” (LÉVINAS, 1980, p. 108). E é tempo, aqui, de retornar ao sonho.
Pois antes de todas essas descrições em seus livros de uma relação em círculo vicioso
com a morte, existe esse ataque-relâmpago de Fanon contra Heidegger e à ontologia15, na
forma de algumas poucas referências implícitas em Pele negra. Porque? O que a motiva, que
angústia se encontra em sua base? Fanon se preocupava profundamente com a possibilidade
de poder ser livremente, isto é, de assumir responsabilidade e decidir sobre sua própria existência (uma questão que, na França nas décadas de 1940 e 1950, dominada intelectualmente
pela fenomenologia e pelo existencialismo, dificilmente poderia ser evocada fora da sombra
de Heidegger). Mas aquilo com que se deparava continuamente, pela sobredeterminação social do exterior e pelo correlato colapso psíquico no interior, era justamente um impossibilitar
de condições essenciais para o “ser para a possibilidade” heideggeriano, fundado no ser-paraa-morte próprio – isto é, de uma relação com a morte onde haja uma decisão sobre e uma
incorporação ativa desta, onde ela não reine absolutamente e impossibilite a possibilidade de
obter e afirmar uma certeza quanto à vida.
15 Fanon afirma que “toda ontologia é feita irrealizável numa sociedade colonizada e civilizada” pois, uma vez
que “deixa de lado a existência, não permite compreender o ser do Negro. Pois o Negro não tem mais de ser
negro, mas sê-lo diante do Branco” (2011, p. 153); Seu alerta sobre este ponto-cego da ontologia é similar à sua
crítica a Sartre por se esquecer que “o preto sofre em seu corpo de outro modo que o Branco” (2011, p. 175).
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A questão de Fanon, nesse sentido, é por que insistir em viver, sonhar, desejar, amar,
quando você é dado como morto – pelo racismo, pela COVID-19, pelo eurocentrismo acadêmico, pela crise estrutural do capital e pela tendente mercadificação da vida que apequena
cada vez mais a experiência humana…? O seu teatro filosófico é a resposta inquietante de
que é preciso justamente fazer esse questionamento com toda força, tocar com as mãos os
limites da própria existência, sentir o peso da ambivalência entre os desejos de afundar indefinidamente na noite ou lançar em chamas o mundo para acordá-lo, ouvir com atenção as
verdades iluminadas por essa escuridão. Afinal, como é possível se ver condenado em um tal
mundo e simplesmente seguir o seu ritmo funesto?
Não por acaso, a nota de rodapé em Pele negra na qual Fanon informa sua intenção
original de realizar “um estudo sobre o ser do preto para-a-morte”, contra a ideia que a pessoa negra não se suicida, é puxada de um parágrafo onde escreve: “em uma luta feroz, aceito
sentir o estremecimento da morte, a dissolução irreversível, mas também a possibilidade da
impossibilidade” (FANON, 2008, p. 182). Pele negra tomou outro rumo (não inteiramente
diferente) e um estudo sobre tal ser para-a-morte nunca chegou a existir, mas vemos suas coordenadas nos preâmbulos de sua não-escrita. Fanon conta em Pele negra que este livro deveria ter sido escrito há três anos, mas na época “as verdades nos queimavam” (2011, p. 64).
Há três anos, em 1949, Fanon terminava de escrever suas peças num cemitério de Dunquerque
– o único lugar onde conseguia se concentrar, como contou ao seu irmão Joby (FANON,
2004). Numa “obra de exorcismo pessoal” (YOUNG, 2018, p. 29), François tomava a forma
e o nome de Frantz – variações francesa e germânica com o mesmo significado de “francês”
e “homem livre”: aquilo que Fanon descobriu não ser. Mergulhado na escuridão e na impossibilidade de se assimilar a um mundo que mal compreende, Fanon talvez tenha enterrado
ali mesmo essa sua outra possibilidade muito própria que o assombrava, um ser para-a-morte
insustentável de continuar sendo carregado dentro de si. François queria morrer e não havia
como contornar o fato.
Na cova do tempo
Épithalos, é claro, toma outro caminho e fracassa terrivelmente. Para além de uma
emulação dos moldes de uma tragédia grega, Mãos Paralelas tensiona a própria estrutura trágica ao prescrever desde o início o seu fim e jogar seus personagens violentamente contra a
sua narrativa, isto é, contra a predeterminação que os condena a uma ruína inescapável, tanto
um passado à espreita quanto uma catástrofe vindoura. Por ironia metalinguística do destino,
ainda, toda a trama dessa tragédia se desenrola em torno de um único “ato” ou “evento” que,
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na ausência de cenas inteiras no manuscrito original, é descrito apenas pelo “horrível presságio” de Polyxos, que vê num sonho sua própria morte nas mãos do filho, e pelas reverberações do cataclisma resultante. A ação que se anuncia como a ação criadora da história sequer
é narrada ou testemunhada: personagens morrem fora e dentro de cena, o panorama geral
retorna a um estado anterior ao inicial (para reconstruir aquilo que se tentou superar), sonhos
de novos horizontes são abandonados. No limite, o saldo vertiginosamente negativo de seu
ato nuclear parece até mesmo anular a história: se houve qualquer dialética aqui, é preciso
procurar a sua ossada em meio aos mortos carbonizados.
Porque, então, tudo isso? O que provoca uma tal devastação em tantas camadas, uma
terra arrasada tão profunda? Uma tentativa de quebrar o tempo. Mais especificamente, como
temos visto, uma tentativa orgulhosamente individual de se libertar do tempo vigente que
domina um mundo, para acordá-lo de sua noite e sono de 2000 anos governados por um
autoproclamado “assassino do dia”: “O povo me dá graças pela imobilidade estreitada na
qual ele se observa. [...] Não aumentem jamais o círculo onde é apanhado o destino do homem [...] Eu descobri o ponto de equilíbrio onde se imobiliza a consciência humana” (FANON, 2015, p. 101, 96). Ao final, a luz do sol que Épithalos faz nascer com o assassinato
que comete revela uma realidade assustadoramente fora de seu controle – como haviam
anunciado as mulheres da peça – e fisicamente impossível de ser encarada a olho nu: “(tal
qual uma carne arrancada por uma rajada de metralhadora): EU VEJO” (FANON, 2015, p. 133).
Mas como insiste para todas ao seu redor até então, Épithalos acredita ser capaz de
abrir o “precipício absoluto onde se forja a dissociação”, pois se enxerga como um agente
alheio às “proliferações temporais dos homens”: contra “os futuros ilusórios”, o seu desejo
é de “que se afoguem as esperanças temporais” (FANON, 2015, p. 110, 108, 126). Num
diálogo com Audaline, ele expressa seu desejo de se realizar por si, em si, de uma só vez:
Um dia, um único dia! / O homem tem um dia para viver / Em um dia sua existência deve terminar / Um dia! / Um único dia e é a morte Audaline, um dia e é
amor / Um dia, um único dia! / […] / Audaline, o que são a História e o Futuro
para mim / A beleza eucarística do passado / Virtudes ancestrais / Elevação futura? / O que importa para mim a proliferação temporal dos seres humanos? / Eu
não quero ter séculos! / No coração da minha existência é onde encontrarei / O
grito de raiva, meu hino de amor! (FANON, 2015, p. 108).
Novamente, mais interessante do que ler aqui um pessimismo em contraste com a
notória postura revolucionária de Fanon, é ler de que modo as suas preocupações temporais
elaboradas em toda sua obra já começam a ser articuladas neste texto. Fanon vai escrever,
em Pele negra e então em Condenados, que é incontornavelmente um homem de seu tempo, e
que cada geração tem a sua tarefa histórica a realizar ou trair. Mas a relativa nebulosidade na
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qual se encontra tal tarefa, assim como a possibilidade de traí-la, não são de modo algum
negligenciáveis. As três mulheres da peça – Audaline, Dhràna e Ménasha – são constantemente jogadas para uma zona secundária por Épithalos, que se acredita o único protagonista
(histórico, cósmico) possível e se perde em monólogos sobre a própria epopeia, mas deste
local o seu ponto de vista é cristalino. Elas carregam a memória da temporalidade do poder,
de como este retorna violentamente a si mesmo, e não podem ignorar o que percebem no
horizonte:
Mas nós mulheres, temos o direito de esquecer? A quais cumes vocês me levarão,
homens insatisfeitos? O que há mais para descobrir senão o que nós lhe damos?
Não pode o cordão umbilical ser cortado, de uma vez por todas? Estou cansada!
Cansada de lutar, de gemer! Homens excessivamente clamorosos, vocês nos fazem
pagar [por] cada uma de suas embriaguezes. Quando, então, desprezando todas as
glórias impossíveis, vocês se suspenderão nos paraísos maternos? Onde encontrar
as palavras? Como fazer o homem entender que os chamados que ele percebe nas
horas decisivas emanam somente de nós? Deuses, para quem nossos rostos devastados se voltam, me inspirem e me deem a força para convencer! Escutem, machos
frenéticos, a fonte não está em lugar algum, senão em nós. Machos orgulhosos,
cessem o impotente edifício de sua agitação. Seus gestos tenebrosos ferem e os
sonhos que os animam, de nulas realizações, esfolam nossos lábios. Estou cansada.
Cansada de viver para os homens. Cansada de esperar, inquieta, pelo esplendor de
suas ações. Homens que mal escutam, tenham piedade de suas companheiras! Piedade! (FANON, 2015, p. 98-9).
Na trama, elas se lembram daquilo que os homens esquecem, pois são elas que sofrem
o peso de suas ações e a quem é imposto o fardo de reverter sua destruição16; e enxergam
que a aparente saída do tempo vigente está presa numa armadilha, construída inconscientemente por homens guiados por poderes superiores que se ocultam. Em seu conjunto, as
críticas de cada uma das mulheres tecem a máxima de Marx de que os homens fazem a história,
mas não como o querem.
Ménasha expõe o que é que impulsiona as ações “autônomas” dos homens – é o Sol
que comanda as ações e se ergue através de Épithalos, e não o contrário; sua filha Audaline
se opõe firmemente à ilusão de uma independência temporal pois, “imperturbáveis, os eventos empurram as consciências particulares” (FANON, 2015, p. 108); e Dràhna vê na “aventura parricida” de seu filho simplesmente a perpetuação dos mesmo ciclos de violência que
Indagada sobre a sede de luz que enxerga nos “olhos banhados de infinito” de seu filho em um sonho,
Dràhna responde: “Saberemos algum dia de que fontes não-traduzidas o homem traz [de volta] as febres tenazes com as quais ele aniquila cidades? Dispersas ao capricho dos suspiros quentes do mundo, as mulheres se
empenham em defender um retalho de raiz. É a partir de nós que os universos se organizam, mas os homens,
irrisórias criaturas arrancadas de nós, chicoteiam nossos rostos com suas mãos homicidas. [...] Ao contato da
minha memória, eu encontro, palpitantes, os desejos que formaram minha particularidade. Mas os homens,
nossos ídolos transparentes, vieram e, outra vez, nos espalharam na cadência de seus gestos” (FANON, 2015,
p. 99, 100).
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fizeram de Polyxos um tirano noturno: “A Tragédia, inserção absoluta / fixa o porvir / Nossa
terra se enluta...” (2015, p. 122). Épithalos, evidentemente, ignora todas elas e não vê a si
mesmo preso nesta repetição daquilo que tenta abolir, mesmo quando a irrupção pela destruição que intencionada – “de uma perda absoluta eu quero ser o promotor” (2015, p. 110)
– é explicitamente denunciada por Dràhna como um evento pré-determinado que “o mundo
já aguarda” – aquilo que “acontecerá na terra dos homens” conforme os “obscuros desígnios” dos quais seu filho se encarrega (2015, p. 101):
Sim de novo a morte / de novo o inferno / de novo o entusiasmo / de novo as
febres […] De novo as velocidades intoleráveis / as expansões irreprimíveis [...] De
novo a MORTE / De novo os aspectos horrendos / De novo as rupturas definitivas / De novo o ilusório ABSOLUTO (FANON, 2015, p. 118, 124).
Novamente, insistimos, seria fácil ler estes alertas como um ceticismo existencialista
eventualmente abandonado com relação a revoluções armadas nas quais Fanon vai se engajar, deixando para trás essas preocupações metafísicas com os deuses por trás da noite perpétua (da consciência, da humanidade) e da incineração do mundo que os homens provocam
e combatem cegamente. Usando Fanon contra Fanon mais uma vez, no entanto: “É fácil
enxergar que Deus nada tem a ver com isso” (2011, p. 134). Pois ainda que Frantz tenha
pedido a Joby que suas peças fossem destruídas, lá está, em seu último livro, inaugurando
sua conclusão, um eco quase perfeito dessa ameaça temporal e tragédia muita concreta que,
num âmbito puramente textual-imaginativo, Fanon se recusou obstinadamente a resolver:
“É preciso sair da grande noite em que fomos mergulhados. O novo dia que já se levanta
deve encontrar-nos firmes, prudentes e resolutos” (FANON, 2013, p. 361).
Épithalos se pronuncia uma última vez, e os colchetes que se formam entre os escritos
iniciais e finais da obra de Fanon tornam nítido que a sua apreensão do tempo rompe com
as tendências afrocentristas da Negritude, e também com qualquer fé religiosa na dialética
hegeliana. Para Fanon, é impossível tanto se ancorar inteiramente no passado quanto tentar
se desligar absolutamente de sua influência, e se o caminhar das coisas deste mundo (mesmo
com suas reviravoltas e lutas) aparece como um curto-circuito de mestres matando escravos
e se entre-matando às custas da vida de todas ao seu redor, é porque há razões nada abstratas
e metafísicas para isso: porque há chacinas sendo cometidas na encruzilhada onde uma autoconsciência encontra outra. Se aquilo que assombra Fanon desde o otimismo cuidadoso
de Ano V até o pessimismo crescente em Condenados é um presente colonial que ameaça se
projetar indefinidamente, Mãos Paralelas é um texto que realinha o centro de gravidade das
preocupações fanonianas com a questão do futuro dos sistemas coloniais.
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Os rastros dessa preocupação atravessam não linearmente toda sua obra. Condenados
afirma que é necessário “interromper o tempo morto introduzido pelo colonialismo, fazer a
História” (2011, p. 477). Pele negra se inicia alertando que é muito cedo ou tarde para um tal
desfecho, que esse rasgo do tempo – a explosão – não era mais ou ainda possível. Num de seus
escritos psiquiátricos, Fanon explica que a existência humana só pode se realizar mediante
um enraizamento social no dinamismo tridimensional do tempo 17. Crucialmente, o perigo
aqui é do “conjunto” ou “configuração colonialista” [ensemble colonialiste] que semeia novas
modalidades e tecnologias coloniais para além do colonialismo clássico. (BARBOSA, 2019;
FAUSTINO, 2021a). Em mais de um sentido, não possuímos aqui o tempo para explorar a
extensão desta crítica. Pois o que ela ilumina é um trabalho de contínua aniquilação de vidas
configuradas enquanto corpos em excesso: objeto a ser retirado de cena e matéria bruta convertida na potencialidade aparentemente infinita com a qual a colonização e seus agentes
sonham incessantemente a própria realidade concreta e extensividade temporal18 (GAYÃO,
2022). Mas o crucial, por ora, é desenterrar e provocar inquietações em torno daquilo que,
relativamente às discussões crescentes sobre Fanon, ainda permanece não-lido, não-dito;
aquilo que entra em cena através desses textos estranhos até mesmo para padrões fanonianos,
e nos chama para interpretar de outros modos algumas questões fanonianas que conhecemos
cada vez mais e a cada vez mais tempo. Nos deparamos, então, com o palco mais obscuro
da dramaturgia de Fanon: A Conspiração.
Fazer a hermenêutica de um nome, dessa palavra sozinha que não aparece nunca mais
na obra de Fanon, é um exercício puramente especulativo. Mas há trilhas possíveis: podemos,
por exemplo, partir dos fortes ecos temáticos entre O Olho se Afoga/Pele Negra (um drama
existencial atravessado por questões de morte e amor) e Mãos Paralelas/Condenados (a tragédia
de uma revolução engolfada por horizontes sombrios) para triangular uma aproximação
“Uma das coisas mais difíceis, seja para uma pessoa ou para um país, é sempre manter presente sob os olhos
os três elementos do tempo: passado, presente e futuro. Manter esses três elementos à vista é reconhecer uma
grande importância na espera, na esperança, no futuro; é saber que nossos atos de ontem podem ter consequências em dez anos, e que nós podemos então ter de justificar esses atos; daí a necessidade da memória, para
realizar essa união do passado, presente e futuro. Contudo, a memória não deve predominar no homem. A
memória é frequentemente a mãe da tradição. Ora, se é bom ter uma tradição, também é agradável ultrapassar
certa tradição para inventar um novo modo de vida. Aquele que considera que o presente é sem valor e que só
o passado deve nos interessar é de certo modo um homem a quem faltam duas dimensões, e com quem não se
pode contar. Aquele que estima que é preciso viver o agora com toda força, e que não devemos nos preocupar
nem com o amanhã nem com o ontem, pode ser perigoso, pois ele crê que cada minuto é cortado dos minutos
vindouros ou dos que o precederam, e que não existe nada além dele sobre essa terra. Aquele que se desvia do
passado e do presente, que sonha com um futuro longínquo, desejável e desejado, é também privado do terreno
contrário cotidiano sobre o qual é preciso agir para realizar o futuro desejado” (FANON, 2015, pp. 235-236).
18 Esta é uma alquimia de pura violência. Segundo Fanon, a “duração [do regime colonial] no tempo é função
da manutenção da violência; uma “violência tridimensional” que, exercida no presente, esvazia o passado “de
toda substância” e fixa um futuro no qual “o regime colonial se dá como devendo ser eterno” (2011, p. 414).
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entre A Conspiração e O Ano V da Revolução Argelina, na qual é possível ouvir notas fantasmas
ressoando. Como vimos, as peças reforçam uma análise fundamental que Fanon vai construir
e refinar por toda sua obra, em várias dimensões: não há transformação do humano sem
transformação do mundo, e vice-versa. Isso é algo que se observa desde o princípio da colonização, como explica Ano V:
Não há ocupação do território de um lado e das pessoas do outro. É o país como
um todo, sua história, sua pulsação diária que é contestada, desfigurada, na esperança de uma destruição final. Sob essas condições, a respiração de um indivíduo é uma
respiração ocupada, uma respiração de combate. (2011, p. 300, ênfase nossa).
Conspirar, em sua etimologia, é respiração em conjunto, soprar em uníssono. Como
conclui a última frase de Ano V: “Esse oxigênio que inventa e dispõe uma nova humanidade,
isso também é a revolução argelina” (2011, p. 410). Num campo hipotético, podemos considerar que A Conspiração de fato cairia na triangulação especulada acima, e que seguiria, também, a maior liberdade tomada nas outras peças para explorar as possibilidades mais abissais
de questões exploradas posteriormente – e se a única opção diante de uma realidade inabitável for
um mergulho na noite da morte? E se toda tentativa de transformação desse mundo resultar em mera destruição cíclica? Nesse caso, há certamente uma perda tremenda em não podermos ler esse que
poderia ser o texto-negativo do livro mais otimista de Fanon, da sua investigação mais minuciosa das “mutações terrivelmente radicais” que compõem um processo revolucionário
através de todas as camadas materiais e ideais da vida social.
Contudo, ao invés de colocar o desaparecimento do texto como um problema para a
análise, é possível também ler esta ausência que ilumina. Se quisermos fazer uma destilação
radical de suas peças, afinal, encontramos em seu interior – assim como em toda sua obra –
“somente” articulações e tensionamentos de sofrimentos e lutas reais. Ainda que sua preocupação seja com dilemas humanos universais, antes e para além mesmo das suas configurações pelo racismo e pelo colonialismo, trata-se sempre de uma relação entre o particular, o
individual e o universal concreto, em certos movimentos de síntese e transformação através de
determinados tempos. Em outras palavras, no centro de cada uma de suas categorias, das
mais banais às mais abstratas e obscuras, existe a mesma substância: existência em carne viva.
A hermenêutica a ser feita da Conspiração, assim, é uma hermenêutica radical da carne:
uma leitura daquilo que, aqui e agora, talvez de modo igualmente obscuro mas não perdido
no tempo como esse texto, dá corpo e possibilidade real à proposta política primordial de
Fanon: uma conspiração para acabar como esse mundo, esse tempo. A conspiração, então,
pode ser ampliada e pensada enquanto um universal negativo mesmo em sua opacidade ou
até invisibilidade. É a mesma-respiração que está na base de toda linguagem e todo
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enfrentamento, e a descoberta fundamental da possibilidade de matar o inimigo que é ao
mesmo tempo a descoberta inquietante de sua humanidade, em uma vinculação irreversível
de liberdade e responsabilidade: “O colonizado, assim, descobre que sua vida, sua respiração,
os batimentos de seu coração são os mesmos que os do colono” (FANON, 2011, p. 459). É
a respiração compartilhada com a qual Fanon ditava todos os seus livros de modo a afetar
quem o ouvisse/lesse, e os sopros de uma mesma big band que expandem com o som o que
era pensável – nas palavras de Ornette Coleman, como eu posso transformar emoção em conhecimento?
E é também a não-respiração das “várias razões [pelas quais] tornou-se impossível respirar”
(FANON, 2011, p. 247), e do mergulho em plenos pulmões e da sondagem inevitável (mas
sempre evitada) no fundo do eu negativo, isto é: aquilo que me faz ou me lança contra o
Outro, o não-ser enquanto possibilidade de se recriar e ultrapassar o próprio ser, as formas
sociais (políticas e psíquicas) de desumanização desigualmente mútua que costuram o nosso
mundo – talvez não mais o mesmo tempo de Fanon, de François, de Épithalos, mas certamente a mesma noite.
É possível fazer uma última questão aqui para Fanon, ou melhor, para o seu arauto
solar renegado, mas a verdade é que a última palavra de Épithalos em Condenados é, no fundo,
tão idiossincrática quanto irreconhecível: o plano de fuga para fora da noite está lá, mas agora
é ao mesmo o preparo para combater o dia que avança tão inexorável quanto imprevisivelmente; e o eu ensimesmado desaparece: trata-se do nós. Nós podemos ler nessa transformação
a transfiguração de uma preocupação inicial de Fanon com o heroísmo diante da morte 19, à
época de escrita de suas peças, em uma recusa absoluta da figura do herói articulada em
Condenados: “Não devemos cultivar o excepcional, procurar o herói, outra forma de líder.
Devemos erguer o povo, expandir o cérebro do povo, mobiliá-lo, diferenciá-lo, torná-lo humano” (FANON, 2011, p. 579). A questão, agora, é decididamente a de combater a tragédia
coletiva: esta meta-história que quase não pode ser contada em sua atualidade, dada a dimensão de sua captura temporal precariamente narrada em Mãos paralelas, mas que pode ser vista
de outros modos, se olharmos através da lacuna deixada pela Conspiração.
Existe, talvez, uma história em que Épithalos escuta as vozes ao seu redor; em que
conspira. Mas talvez Épithalos tenha sido enterrado junto com François, deixando pouca coisa
além dos ecos ao longo de sua obra posterior, vide os restos mortais coletados acima – ainda
que uma leitura de Pele negra afinada com a cacofonia de suas peças revele uma sobrevivência
“O que é a morte? Há uma contradição entre o heróico e o trágico, entre os seres que buscam a morte para
manifestar a sua independência paga ao preço mais alto. Na morte, o homem heróico nega a morte, eleva acima
da morte uma parte invencível de si mesmo” (FANON, 2004, p. 138).
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parcial de ambos em Fanon, amplificando desde então o seu enfrentamento contra o mundo
e contra seu próprio ser: há uma defesa forte da “necessidade de se perder na noite, única
condição para chegar à consciência de si” (2008, p. 121), e esse desejo de autorrealização se
alastra para o seu redor:
Nós gostaríamos de aquecer a carcaça do homem e partir. Talvez cheguemos nesse
resultado: o Homem mantendo esse fogo pela autocombustão. O Homem liberado
do trampolim que constitui a resistência de outrem e escavando na própria carne
para encontrar um sentido para si. (FANON, 2011, pp. 64-5)
E nós não sabemos os nomes de quem Fanon enterrou, talvez, sob o signo de uma
conspiração – mas isto nos leva a considerar justamente a possibilidade de que, no subsolo
de sua obra, junto das forças mais elementares da noite e do fogo, haja a operação de uma
força ainda mais obstinada porque sempre faminta, vorazmente negativa enquanto plena
possibilidade, jamais-enterrável por conta mesmo de sua condenação nesta terra em que sua
morte já está dada. Nessas profundezas, não há respostas finais, não há análises definitivas,
não há previsões irreversíveis. O que esse obscuro sem-nome aponta, em companhia das
outras peças de Fanon, é de que é preciso, também, distender, escavar e recompor a sua
própria obra, buscando a potência presente em sua constante multiplicidade de vozes e em
sua linguagem em camadas – e insistimos que as “estranhas harmonias” (FANON, 2018, p.
123) discutidas aqui são apenas algumas das várias possíveis a partir destes textos, e não
esgotam sequer a si mesmas. Pois, se quisermos ser radicalmente fanonianos, não há valor
algum em seus escritos se não funcionam para o nosso presente, diante das novas possibilidades de existência que se formam no agora – ou nas palavras finais de François: “quero te
conduzir às portas ABSOLUTAS / onde a vida se apodera” (FANON, 2015, p. 90).
Talvez reste, ainda, aquela velha questão, vinda de sabe-se lá quando: como identificar
essa força? As cortinas se abrem, a promessa se anuncia, o palco está vazio – onde está a
conspiração? Que escuridão a esconde atualmente, com os outros mundos, tempos, dias, e
respirações que promete? Poderíamos interrogar Fanon, mas uma resposta possível é de que
isso seria começar num passo em falso; procurar um maestro onde este deve desaparecer.
Pois o necessário, talvez, é escutarmos “com a orelha colada no solo” para ouvirmos “bem
distintamente os barulhos de correntes enferrujadas, os gemidos de sofrimento” em seu subsolo (FANON, 2011, p. 861). Não como quem olha os arredores à procura do Momento e
do Sujeito destinados a mudar a História, buscando confirmar uma visão construída no interior de um tempo cujos desfechos já foram definidos. Mas como quem se junta à semprepresença de respirações de combate, às conspirações improvisadas, às mutações terrivelmente radicais, à imprevisibilidade daquilo por vir:
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[A] luta não é mais onde se está mas onde se vai. [...] Nenhuma posição estratégica
é privilegiada. O inimigo se imagina nos perseguindo, mas nós nos arranjamos para
sempre estar nas suas costas, o golpeando no momento mesmo em que ele nos
acreditava aniquilados. A partir de agora, somos nós que o perseguimos. Com toda
sua técnica e seu poder de fogo, o inimigo dá a impressão de cambalear e se atolar.
Nós cantamos, nós cantamos. (FANON, 2011, p. 529, grifo nosso)
STRANGE HARMONIES:
LIFE, DEATH AND TIME IN FRANTZ FANON’S
DRAMATURGIC LANGUAGE
ABSTRACT: This article analyzes the dramaturgical writings of Frantz Fanon (1925-1961) – the plays Mãos
parallels and O Olho se drowne – within the general set of his work and from the context of his production,
focusing on the themes of life, death and time. Our argument is that its themes and aesthetics offer new keys
for understanding Fanonian thought and for interrogating human issues as universal as they are contemporary
in their sociopolitical urgency. We intend to encourage discussion on these texts, still little read and discussed
within Fanon's research, but full of possibilities for other realignments of his critique. The intentionally fragmentary readings carried out here are intended to serve as a starting point for mobilizing Fanon's work as a
vital instrument for understanding and confronting current colonial and racist realities.
KEYWORDS: Frantz Fanon; Life; Death; Time.
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Recebido em: 14/09/2022.
Aprovado em: 02/03/2023.
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