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Escola bilíngue: e agora

Capítulo 1 Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? Capítulo 2 O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? Capítulo 3 Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? Capítulo 4 Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? Capítulo 5 Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? Capítulo 6 Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade? Capítulo 7 Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? Capítulo 8 Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues?

Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Antonieta Megale Michele El Kadri © 2023 Fundação Santillana. FUNDAÇÃO SANTILLANA Diretor-Executivo Luciano Monteiro Diretor de Políticas Públicas André Lázaro Diretora Acadêmica Solange N. C. Petrosino Gerente de Projetos Karyne Alencar Castro RICHMOND Diretoria de Produto Sandra Possas Gerente de Conteúdo Izaura Valverde Autoras Antonieta Megale Michele El Kadri PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação e edição Ana Luisa Astiz/AA Studio Preparação Marcia Menin Revisão Juliana Caldas e Diogo Santos Capa Sandra Homma/SH Design Projeto gráfico e produção gráfica Sandra Homma/SH Design Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Megale, Antonieta Escola bilíngue [livro eletrônico] : (trans)formando saberes na educação de professores / Antonieta Megale, Michele El Kadri. -- 1. ed. -- São Paulo : Fundação Santillana, 2023. PDF Bibliografia. ISBN 978-85-63489-58-6 1. Educação bilíngue 2. Prática de ensino 3. Prática pedagógica 4. Professores Formação I. Kadri, Michele El. II. Título. 23-142413 CDD-370.1175 Índices para catálogo sistemático: 1. Ensino bilíngue 370.1175 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380 Notas Por concisão, em geral adotamos nos textos deste livro o gênero masculino, mas sempre nos referimos a professoras e professores e alunas e alunos. Todos os links foram checados em janeiro de 2023. Fevereiro de 2023. Distribuição gratuita. Sumário Prefácio Fernanda Coelho Liberali 5 Introdução Antonieta Megale e Michele El Kadri 9 Capítulo 1 Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 15 Capítulo 2 O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 33 Capítulo 3 Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 49 Capítulo 4 Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 67 Capítulo 5 Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 83 Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade? 99 Capítulo 6 Capítulo 7 Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 117 Capítulo 8 Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 135 Fundação Santillana e Richmond 152 Prefácio Prefácio A professora, formada em letras português-inglês em uma das melhores universidades do país, é contratada como docente polivalente em uma escola denominada bilíngue, onde viu uma oportunidade de aumentar sua carga horária, ampliar sua atuação na formação dos alunos e valorizar a diversidade de modos de participação deles nas aulas. Seu entusiasmo, contudo, começa a arrefecer quando recebe as primeiras demandas em seu novo trabalho. Ela se questiona, entre outros aspectos: y O que é essa tal Educação Bilíngue? y Qual a diferença entre Educação Bilíngue e o ensino de língua adicional/estrangeira? y Será que promover práticas interculturais é o mesmo que preparar festas e discutir a cultura de outra língua? y De que forma fazer a integração entre o que e como ensinar na língua adicional e na língua de nascimento da comunidade? y Como lidar com as línguas em circulação e com os modos de participação dos estudantes? y Como organizar uma sequência para ensinar tantos conteúdos distintos em outra língua? Este livro, Escola Bilíngue: e agora? – (Trans)Formando saberes na Educação de professores, destina-se a docentes, formadores, coordenadores, diretores e outros interessados na temática bilíngue, que, como a profissional descrita, confrontam-se diariamente com dúvidas e questionamentos sobre esse universo. Nos últimos tempos, motivadas pelo interesse socioeconômico e pelo Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), têm surgido no Brasil várias proposições sobre o que seriam propostas bilíngues e como realizá-las. Entretanto, poucas concretizam de fato para os praticantes o que essa abordagem significa, de modo a expandir e aprofundar o entendimento acerca do processo e também a reflexão e a criação de práticas de Educação Bilíngue. Prefácio 5 Muitos acreditam em uma formação de educadores pautada na racionalidade técnica (DINIZ-PEREIRA, 2014), que oferte certos modos de agir considerados como os mais adequados. Nessa perspectiva, o foco seria garantir a aplicação de conhecimentos teóricos ou técnicos às ações. Outros pensam que bastaria apresentar várias experiências e soluções práticas. Essa partilha pragmática sem a compreensão mais aprofundada dos significados das ações e de suas implicações para o processo político-educativo que se realizam no fazer pedagógico, no entanto, não permite que o educador construa as próprias compreensões e amplie sua potência criativa. Ao contrário, ambas as posturas limitam seu fazer a uma simples reprodução de teorias e/ou práticas bem-sucedidas. Por outro lado, este livro oferece uma dinâmica de leitura engajada mediante um processo de imersão e de emersão na realidade de escolas bilíngues e cria um chamado à inserção criativa de seus leitores em práticas mais informadas e críticas. Conforme aponta Freire (1970), é preciso imergir na realidade escolar para compreender em profundidade o contexto. Quando tomamos consciência das práticas nas quais estamos envolvidos e realizamos uma análise consciente e crítica de seus significados históricos, podemos então pensar em novas possibilidades criativas de vida para todos. Em cada capítulo desta obra, Megale e El Kadri oferecem aos leitores uma conexão inicial com a realidade do dia a dia nos corredores da escola, por meio de histórias que conectam a temática a ser abordada com experiências conhecidas dos educadores. Essas correlações permitem, em seguida, o levantamento de questões que buscam expandir o patrimônio vivencial desses sujeitos. Essa emersão da consciência da realidade, objetivando-a, problematizando-a, compreendendo-a como um projeto humano com múltiplos significados oferece uma forma de libertação do senso comum e a potencialidade de crítica e de transformação do fazer. Os relatos oferecidos para a imersão na prática da Educação Bilíngue são expandidos por meio de discussões teóricas sobre tópicos extremamente relevantes aos contextos em foco. Então, com base nessas referências centrais, os leitores têm a oportunidade de traçar novos caminhos para pensar sobre suas ações, para finalmente, retomar as histórias e correlacioná-las à discussão teórica, tornando ainda mais coeso o exercício reflexivo proposto. 6 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores No entanto, o livro não fica apenas na compreensão dos processos: ele desafia os leitores a novas práticas, ampliando o movimento de inserção na realidade. Como explica Freire (1981), os educadores, como seres históricos, aprendem a se mover no mundo, capazes que são de optar, de decidir, de valorar. Para que isso seja possível, o livro oferece diferentes atividades para que seus leitores recuperem situações de suas práticas, analisem e avaliem seus significados, reflitam sobre alternativas e construam novas histórias. Aprender (em) outra língua sempre serviu a múltiplos interesses e, muitas vezes, os educadores ficam reféns de projetos que nem ao menos compreendem. Há muitas e variadas maneiras de conceber Educação Bilíngue (MEGALE; LIBERALI, 2021). Uma perspectiva que focalize o desenvolvimento multidimensional dos sujeitos, com a promoção de saberes entre as línguas e a valorização de práticas translíngues como forma de construção da compreensão de mundo (GARCÍA; WEI, 2014), mostra-se um desafio bastante relevante que este livro promove. Ousar propor, ousar desafiar os educadores a seguir por esse caminho já é, por si, envolvente. Este livro, no entanto, oferece mais. Ele desafia seus leitores a realizar uma leitura engajada, no sentido proposto por Hooks (2020, p. 14), que focaliza a “importância de reconhecer na educação um espaço de ação política e de prática da liberdade”. Que cada leitor possa assumir sua maneira de pronunciar (FREIRE, 1970) as práticas de Educação Bilíngue de modos críticos e inovadores a partir da leitura engajada deste livro. Fernanda Coelho Liberali Pesquisadora e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no Departamento de Ciências da Linguagem e Filosofia, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Formação de Formadores. São Paulo, janeiro de 2023. Prefácio 7 Referências bibliográficas DINIZ-PEREIRA, J. E. Da racionalidade técnica à racionalidade crítica: formação docente e transformação social. Perspectivas em Diálogo: Revista Educação e Sociedade, v. 1, n. 1, p. 34-42, jan./jun. 2014. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/persdia/article/view/15. FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism, and education. London: Palgrave Macmillan, 2014. HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020. MEGALE, A.; LIBERALI, F. C. Como implementar a multiculturalidade. In: MEGALE, A. (org.). Educação Bilíngue: como fazer? São Paulo: Fundação Santillana, 2021. p. 13-27. 8 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Introdução Demos a este livro o título de Escola bilíngue: e agora? – (Trans)Formando saberes na Educação de professores com a intenção de transformar a Educação de professores para contextos bi/multilíngues em um espaço (trans)formador que permita o processo dialógico, crítico, criativo e revelador das agências de educadores e, consequentemente, de seus educandos. Portanto, nosso objetivo é que esta obra promova oportunidades de discussão e reflexão sobre questões teórico-práticas da área de Educação Bi/Multilíngue fundamentais para sua atuação profissional. Entendemos que a função da Educação Bi/Multilíngue é fomentar aprendizagens que propiciem novas formas de engajamento e participação dos estudantes em um mundo cada vez mais plural e globalizado. Assim, muito mais do que conduzi-los no aprendizado de uma língua adicional para fins instrumentais, desejamos que eles consigam, ao mesmo tempo, forjar novos modos de participação em uma sociedade global. Megale (2009) já afirmava que, apesar de considerar o desenvolvimento de práticas linguísticas complexas como questão central, a Educação Bi/Multilíngue deve, necessariamente, confrontar os estudantes com outras narrativas e possibilidades de compreender discursos diversos, produzindo outras subjetividades, com posicionamentos menos coloniais e diferentes oportunidades de ação no mundo. Para tanto, coadunamos com Liberali (2019) na proposta de que precisamos formar educadores capazes de construir um currículo da Educação Bi/Multilíngue que se baseie em atividades e práticas sociais que permitam aos estudantes expandir seu repertório e suas formas de participação na sociedade. Em outras palavras, acreditamos na necessidade de elaboração de uma proposta bi/multilíngue que adote uma perspectiva de formação agentiva, busque construir um conjunto de iniciativas de intervenção na vida que ainda não foram realizadas e tenha o potencial e a Introdução 9 possibilidade de criar inéditos viáveis1 (LIBERALI, 2019). Este livro é apenas um passo, uma proposta, que se pretende somar às outras existentes na Educação de professores para esse contexto. Para García e Wei (2014), professores precisam conhecer e compreender a realidade dos estudantes e suas famílias, ser conscientes da diversidade linguística e perceber seus alunos como sujeitos, e não números, além de ter consciência glotopolítica das línguas que ensinam. Em nossa experiência trabalhando com professores de contextos bi/multilíngues no país, nos setores público e privado, apontamos que nosso maior desafio para pensarmos em uma Educação crítica de professores está em conseguirmos desafiar a concepção monolíngue e monoglóssica de linguagem que tem nos orientado historicamente e, assim, desenvolver uma mudança de concepção que nos permita compreender a linguagem pela perspectiva da ideologia heteroglóssica e, consequentemente, de suas implicações pedagógicas. Em outras palavras, a educação de professores precisa atuar segundo a ideologia heteroglóssica para que a Educação Bi/ Multilíngue seja transformadora e desafie as amarras coloniais às quais estamos subjugados. Não é possível transformação sem atualização de concepções que nos permitam compreender quem é o sujeito bilíngue e quais são as implicações políticas das línguas utilizadas como meio de instrução, uma vez que elas impactam diretamente as práticas escolares. Assim, precisamos construir currículo e pedagogia apropriados a nosso contexto de Educação e de Educação de professores, a fim de promover consciência político-crítica das línguas que ensinamos e dos discursos atrelados a elas. Nesse sentido, uma formação que não desafie as concepções de sujeito, a ideologia monolíngue que impera em nosso país e os processos neoliberais de comodificação das línguas que ensinamos prestará um desserviço à Educação Bi/ Multilíngue, pois continuará a reforçar identidades coloniais e, consequentemente, subalternas. 1 Freire (1992) explica que frente a situações-limite, há duas possibilidades para os sujeitos: os que se beneficiam e se adaptam a elas e que servem, portanto, direta ou indiretamente, aos dominantes, e os que se recusam a vivê-las, pois compreendem os temas desafiadores que estão encobertos por elas e se sentem compelidos a agir, descobrindo, dessa forma, o inédito viável, que pode ser compreendido pela percepção para além da situação-limite. O inédito viável é, portanto, algo ainda não vivido ou conhecido que se abre no campo das possibilidades para a superação da situação-limite. Ele se configura como possibilidade a favor do que há de mais humano em nós e tem como objetivo a libertação da opressão e a transformação da sociedade de modo que se torne mais equânime e justa. 10 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Ao considerarmos as questões aqui citadas, ousamos, neste livro, propor roteiros pedagógicos para formadores de professores, professores em formação inicial e professores em serviço em contextos bi/multilíngues. A obra foi concebida para ser uma fonte de estudo para pedagogos, profissionais da área de linguagens e de outras licenciaturas que trabalham em contexto bi/multilíngue e pode, portanto, ser utilizada em cursos de formação inicial e continuada que almejam formar educadores com conhecimentos específicos para a Educação Bi/Multilíngue. Para nós, uma Educação de professores só é (trans)formadora quando possibilita a revisão de crenças, a desestabilização das ideologias, o questionamento das próprias certezas e a compreensão aprofundada dos conhecimentos teórico-metodológicos do campo de saber específico que permite uma prática cada vez mais informada. Com isso em mente, cada capítulo deste livro parte de uma questão problematizadora. Escolhemos cada uma por julgarmos ter grande potencial para transformar a Educação Bi/Multilíngue e ser de relevância para a Educação de professores. Desse modo, este livro se organiza por meio dos seguintes questionamentos: 1. Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 2. O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 3. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 4. Como promover práticas interculturais na escola bilíngue? 5. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 6. Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade? 7. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 8. Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? Iniciamos cada capítulo compartilhando uma história, um caso ou uma experiência relacionada à questão problematizadora. Em seguida, apresentamos os objetivos do capítulo e discutimos questões teórico-metodológicas que nos ajudam a construir novas lentes para a análise do relato inicial. Depois, retornamos a ele e propomos Introdução 11 uma discussão com base no referencial teórico apresentado, na tentativa de articular saberes experienciais e teóricos para uma prática informada. Com a seção seguinte, intitulada “Construindo novas histórias”, temos como objetivo desenvolver novos olhares e práticas para a Educação Bi/Multilíngue. Nela, propomos um novo modo de ver a questão problematizadora por meio de um breve referencial seguido de atividades práticas, para que os professores pensem, repensem, reflitam, analisem, argumentem e mobilizem os conceitos discutidos em prol de novos modos de agir em sua área de atuação. Por fim, apresentamos a síntese do capítulo e oferecemos sugestões de aprofundamento, que em geral estão disponíveis em sites de fácil acesso e que dialogam diretamente com o conteúdo discutido no capítulo. Ousamos aqui propor uma pequena contribuição para a Educação crítica de professores para contextos bi/multilíngue a fim de promovermos uma Educação Bi/Multilíngue comprometida com a justiça, a equidade social e a produção de sujeitos conscientes, criativos e dotados de agência transformadora. Antonieta Megale Doutora em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizou estágio doutoral na Universidade de Viadrina (Alemanha). Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), fez mestrado em linguística aplicada e graduação em comunicação social e pedagogia. É professora no programa de pós-graduação em letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Michele El Kadri Doutora em estudos da linguagem pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), realizou estágio doutoral na Universidade Griffith (Austrália) e estágio de pós-doutorado em educação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e em linguística aplicada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É mestre em estudos da linguagem e graduada em letras – inglês pela UEL. Professora no programa de pós-graduação em estudos da linguagem e em educação da UEL, é cocoordenadora da implementação da primeira escola bilíngue pública do Paraná. 12 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Referências bibliográficas FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism, and education. London: Palgrave Macmillan, 2014. LIBERALI, F. A BNCC e a elaboração de currículos para Educação Bilíngue. In: MEGALE, A. H. (org.). Educação Bilíngue no Brasil. São Paulo: Fundação Santillana, 2019. p. 29-42. MEGALE, A. H. Duas línguas, duas culturas?: a construção da identidade cultural de indivíduos bilíngues. Veredas – Revista de Estudos Linguísticos, p. 90-102, jan. 2009. Disponível em: https://www.ufjf.br/revistaveredas/ files/2009/12/artigo062.pdf. Introdução 13 Capítulo 1 Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? “Há um forte mito do monolinguismo no Brasil, que nos leva a assumir, equivocadamente, que todo brasileiro é monolíngue e falante de português. Desconhecemos toda a nossa riqueza linguística e cultural.” Capítulo 1 Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 1. Uma história para compartilhar O Brasil apresenta uma extensa região de fronteira – 15.179 quilômetros – com outros dez países sul-americanos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), são, na parte brasileira, 588 municípios com aproximadamente 10 milhões de habitantes. Essas localidades caracterizam-se por um intenso contato entre línguas e culturas diferentes que promovem grandes desafios para as cerca de 9 mil escolas ali instaladas, em que estão matriculados 3.012.742 estudantes (BRASIL, 2011). Para dar conta de toda essa complexidade linguística e cultural, foi criado, em 2011, o Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF). Em 2016, o OBEDF realizou uma pesquisa em escolas de três estados brasileiros – Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre1 – com o objetivo de investigar o papel das diferentes línguas de nascimento2 dos estudantes no período de alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Morello (2016) explica que, 1 A pesquisa realizada está brevemente sintetizada neste capítulo. Para descrição aprofundada, ver: Morello (2016). 2 Optamos pela nomenclatura “língua de nascimento” em detrimento do termo “língua materna” por duas principais razões: (i) em uma época de feminismo militante, os homens “também reivindicam o direito sobre a primeira língua de seus filhos” (FERREIRO; TERUGGI, 2013, p. 40-41); ii) esse termo não atende às necessidades do multilinguismo (SKUTNABB-KANGAS, 1981; ROMAINE, 1989; KAPLAN; BALDAUF, 1997; BAKER; PRYS JONES, 1998; BAETENS BEARDSMORE, 1998; GARCÍA, 2009; FERREIRO; TERUGGI, 2013), uma vez que a primeira língua de socialização da criança pode não ser a língua da mãe, e a competência, a função e a identificação com as línguas podem se alterar ao longo da vida do sujeito. Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 17 inicialmente, os pesquisadores identificaram o perfil linguístico dos estudantes, docentes e funcionários das escolas para verificar a relação entre fazer uso de outras línguas e processos de ensino e aprendizagem. Em seguida, assistiram às aulas e as analisaram a fim de desenvolver “estratégias de sensibilização linguística, de diagnósticos sociolinguísticos e de planejamento de ações de natureza político-linguística voltadas ao ensino plurilíngue” (MORELLO, 2016, p. 24-25). Como primeira etapa, em um levantamento realizado pelo OBEDF em cinco escolas, constatou-se que os estudantes não falavam outras línguas além do português em suas interações cotidianas. Após essa pesquisa inicial, em conversa com estudantes e professores, descobriu-se que a realidade era muito diferente do que as escolas tinham como registro. Verificou-se que em todas havia estudantes falantes de espanhol e de línguas indígenas, principalmente o guarani, e que em uma delas apenas 15% dos estudantes declararam falar apenas português. Quanto aos professores, constatou-se que, além do português, eram também falantes de espanhol e/ou guarani (MORELLO, 2016). Os dados levantados na pesquisa forneceram muitas informações sobre o multilinguismo de toda a comunidade escolar e seu completo apagamento nos processos educativos. A realidade das escolas era multilíngue, mas a prática pedagógica privilegiava somente o português. Havia, na verdade, total desconhecimento por parte das escolas a respeito do multilinguismo dos estudantes e dos docentes. Essa evidência fez com que os professores compreendessem, de acordo com seus depoimentos (MORELLO, 2016, p. 33), que alguns estudantes que eles julgavam ter “algum tipo de retardo ou limitação intelectual” só não os entendiam porque não falavam português. Nos depoimentos dos docentes, constatou-se que mesmo aqueles que eram falantes de espanhol e/ou guarani não utilizavam essas línguas por não saberem que havia, em suas salas de aula, estudantes falantes dessas línguas (MORELLO, 2016). Inicialmente, essa descoberta gerou angústia entre os professores, que não sabiam como enfrentar essa situação a fim de auxiliar os estudantes falantes de outras línguas na aprendizagem de conteúdos ministrados, até então, em português. No entanto, é apenas por meio do reconhecimento do repertório linguístico dos 18 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores estudantes e dos docentes que se torna possível pensar em políticas linguísticas que favoreçam as aprendizagens de toda a comunidade escolar. Com base nesse relato de pesquisa, algumas questões podem ser levantadas: y Por que as escolas não tinham registro do multilinguismo da comunidade escolar e de seus estudantes? y Como conhecer e valorizar seu repertório linguístico? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Reconhecer o contexto sociolinguístico brasileiro. y Desconstruir o mito do monolinguismo no Brasil. 3. Para entender melhor essa história Sabemos que o Brasil é constituído por grande diversidade cultural e linguística (OLIVEIRA, 2009; MORELLO, 2012; MAHER, 2013; PREUSS; ÁLVARES, 2014). No entanto, parece estar consolidado no imaginário de nossa sociedade que nosso país é monolíngue, uma nação onde se fala única e exclusivamente o português. De fato, podemos afirmar que há o imaginário de que o Brasil é um país linguística e culturalmente uniforme. De acordo com o Censo 2010, em nosso território há 274 línguas indígenas e, segundo Oliveira (2009), 30 línguas nas comunidades de descendentes de imigrantes, as línguas de sinais, com destaque para a língua brasileira de sinais (Libras), e as línguas afro-brasileiras usadas nos quase mil quilombos oficialmente reconhecidos. Contudo, convivemos com o apagamento do caráter multilíngue do país, conhecido como “mito do monolinguismo”, ideologia cristalizada fortemente em nossa sociedade (CAVALCANTI, 1999; OLIVEIRA, 2009). Segundo Cavalcanti (1999), essa crença sobre o monolinguismo se deve a dois principais fatores: o apagamento das línguas minoritárias, que são utilizadas por membros de Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 19 povos indígenas, comunidades surdas e migrantes, e a não legitimação de falantes de variedades desprestigiadas do português. Para Oliveira (2009), o mito do monolinguismo no Brasil é fruto de um discurso construído para satisfazer demandas nacionais por meio de políticas de repressão linguística implementadas ao longo da história, ou seja, produzimos o mito de que aqui só se fala português para criar “o consenso da maioria para as políticas de repressão de outras línguas” (OLIVEIRA, 2009, p. 20). Assim, os pesquisadores concordam que nossa história é marcada por políticas linguísticas homogeneizadoras que pretendiam consolidar o aparente caráter monolíngue do país (PREUSS; ÁLVARES, 2014). A esse respeito, Oliveira (2009) explica que o mito do monolinguismo no Brasil é resultado do preconceito, do desconhecimento da realidade brasileira e de um projeto político intencional de construir uma nação monolíngue. A história de nosso país demonstra que as políticas linguísticas culminaram em sucessivos glotocídios, isto é, em assassinatos das línguas por meio de deslocamentos linguísticos (OLIVEIRA, 2009) marcados: i) pela extinção das línguas minoritárias em favor da língua portuguesa; ii) pelo aparente consenso de que aqui se fala somente português; e iii) pelo desconhecimento de muitas das outras línguas que coexistem no Brasil. Segundo Oliveira (2009), se olharmos para nosso passado, constatamos que fomos, durante a maior parte do tempo, multilíngues. Contudo, a construção do mito do monolinguismo remonta ao período da colonização. Aos 5 milhões de membros dos povos indígenas que habitavam o Brasil em 1500, somaram-se os 5 milhões de europeus que imigraram para o país com o objetivo de colonizá-lo e, mais tarde, os 6 milhões de africanos – com línguas e identificações étnicas variadas – que por estes foram escravizados. Nessa época, cerca de 1.300 línguas indígenas já coexistiam no Brasil (RODRIGUES, 2002). Uma das primeiras políticas linguísticas da Coroa portuguesa para lidar com a diversidade linguística implicou o incentivo à expansão de uma língua indígena, conhecida como nheengatu, por ser uma língua interétnica, que servia de elo de comunicação entre negros, indígenas e europeus (FREIRE, 2008). Assim, naquele momento, essa era a língua que funcionava para o projeto colonial, o que ainda não acontecia com o português. Nesse cenário, iniciou-se o processo de extinção das 20 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores demais línguas indígenas, já que seus falantes passaram a ser pressionados a utilizar exclusivamente o nheengatu nas comunicações diárias (FREIRE, 2008). O processo de silenciamento das línguas indígenas continuou no país com a política linguística instaurada pelo marquês de Pombal em 1758, quando se estabeleceu na Colônia o português como língua oficial (OLIVEIRA, 2009) e se proibiu qualquer manifestação que não fosse nessa língua, como forma de lutar contra o nheengatu (PREUSS; ÁLVARES, 2014). Durante o Estado Novo (1937-1945), sob o regime de Getúlio Vargas, comunidades de imigrantes tornaram-se alvo de políticas linguísticas excludentes no período que ficou conhecido como “nacionalização do ensino”. Nessa época, comunidades de imigrantes – principalmente de alemães, japoneses e italianos – que haviam se instalado no Sul e no Sudeste do país foram alvo de repressão: o governo impôs a formação de colônias mistas de imigrantes para que a convivência das diferentes línguas forçasse o uso do português e o abrasileiramento de topônimos das línguas de imigração para o português (ALTENHOFEN, 2004), ocupou escolas comunitárias, fechou fábricas que publicavam jornais e livros didáticos em outras línguas, e perseguiu os imigrantes, a ponto de incentivar as crianças a denunciar os pais que falassem uma língua estrangeira em casa (OLIVEIRA, 2009). Nesse período, os imigrantes passaram por “violenta repressão linguística e cultural”, o que incluía prisão por falarem uma língua estrangeira, o chamado “crime idiomático” (OLIVEIRA, 2009, p. 22). Essa repressão resultou no silenciamento de diversas línguas, como o alemão e o italiano.3 Assim, o mito do monolinguismo consolidou-se no Brasil por meio de políticas de interdição linguística a fim de reafirmar a condição de Estado-nação, período em que se tinha como lema “unidade é igual à uniformidade” (MAHER, 2006, p. 31). Entendia-se que, “para se ter um Estado, uma unidade política, seria preciso garantir a uniformidade linguística e cultural no interior de seu território” (MAHER, 2006, p. 31). Para Maher (2006), é assim que a aversão à diversidade linguística foi se construindo na história e permeando o imaginário da sociedade brasileira de tal modo que o mito do 3 “644.458 pessoas, em sua maioria absoluta cidadãos brasileiros, nascidos aqui, falavam alemão cotidianamente no lar, numa população nacional total estimada em 50 milhões de habitantes, e 458.054 falavam italiano (Mortara, 1950)” (OLIVEIRA, 2009, p. 22). Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 21 monolinguismo permanecesse cristalizado e quase inquestionado. De fato, ao longo de nossa história, políticas linguísticas têm elegido o monolinguismo como padrão da normalidade com o intuito de valorizar e garantir a hegemonia de certas línguas e de certos grupos sociais e étnicos. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, contudo, apresenta avanços em direção ao plurilinguismo brasileiro, pois, pela primeira vez, o Estado reconhece aos povos indígenas o direito a suas línguas, culturas e processos de educação (MORELLO, 2012), embora silencie sobre todas as demais línguas nacionais (de imigrantes, de surdos, de populações fronteiriças). Oliveira (2009) aponta que esse fato possibilitou, nas décadas seguintes, o estabelecimento de políticas municipais de cooficialização4 de algumas das línguas minoritárias brasileiras. No âmbito nacional, a Libras passou também a ser oficial em 2002, e a lei foi regulamentada em 2005. Contudo, percebe-se que, ainda hoje, a essência do caráter multilíngue e pluricultural do país não foi reconhecida (PREUSS; ÁLVARES, 2014). Preuss e Álvares (2014, p. 408) afirmam que, “atualmente, as políticas linguísticas homogeneizadoras são mais sutis e já é possível perceber, ainda que de forma bastante incipiente, alguma flexibilidade em relação a outras línguas”. Segundo as autoras, notam-se alguns progressos no âmbito das propostas de políticas linguísticas, mas é longo o caminho a percorrer em sua implementação para que todos os brasileiros tenham sua realidade linguística plenamente atendida nas áreas educacional e social. 4. Retomando a história No relato do início deste capítulo, as escolas não tinham registro do multilinguismo de seus estudantes e professores e o identificaram apenas por meio da pesquisa realizada pelo OBEDF. Mas por que as escolas não tinham registro inicial do multilinguismo de seus estudantes? 4 Cooficializar uma língua significa que, além do português, todos os órgãos da prefeitura e da iniciativa privada devem oferecer serviços também nas outras línguas oficiais (OLIVEIRA, 2015). De 2002 a agosto de 2022, por exemplo, foram cooficializadas 22 línguas em 48 municípios brasileiros, 13 delas autóctones, isto é, indígenas, e 9 alóctones, ou seja, faladas por descendentes de imigrantes. Há uma lista dos municípios brasileiros que passaram pelo processo de cooficialização de línguas e hoje são oficialmente bi/multilíngues no site do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol): http://ipol.org.br/ lista-de-linguas-cooficiais-em-municipios-brasileiros. 22 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Como aprendemos na seção anterior, há um forte mito do monolinguismo no Brasil, que nos leva a assumir, equivocadamente, que todo brasileiro é monolíngue e falante de português. Desconhecemos toda a nossa riqueza linguística e cultural. A esse respeito, Oliveira (2009, p. 19-20) explica: Não é por casualidade que se conhecem algumas coisas e se desconhecem outras: conhecimento e desconhecimento são produzidos ativamente, a partir de óticas ideológicas determinadas, construídas historicamente. No nosso caso, produziu-se o “conhecimento” de que no Brasil se fala o português, e o “desconhecimento” de que muitas outras línguas foram e são igualmente faladas. O fato de que as pessoas aceitem, sem discutir, como se fosse um fato natural, que o português é a língua do Brasil foi e é fundamental para obter consenso das maiorias para as políticas de repressão às outras línguas, hoje minoritárias. A produção intencional e planejada desse desconhecimento faz com que, assim como as escolas, invisibilizemos as línguas que compõem nosso país e, dessa forma, muitos brasileiros têm sua participação na sociedade deslegitimada e desencorajada. E como conhecer e valorizar os repertórios linguísticos de toda a comunidade escolar? Primeiro, é preciso identificar os repertórios da comunidade. É sempre importante entender a relação que os alunos estabelecem com a(s) língua(s) que os constitui(em). Para tanto, pode-se promover uma roda de conversa sobre a origem dos estudantes e a(s) língua(s) pela(s) qual(is) interagem. Há também a possibilidade de promover atividades com o objetivo de mapear e compreender os repertórios linguísticos dos alunos. Uma delas é o desenho do retrato linguístico5 e seu posterior relato. Essa atividade consiste em pedir aos estudantes que desenhem sua silhueta e posicionem a(s) língua(s) que utilizam em seu corpo. Após fazer o desenho, eles devem explicá-lo por meio de um relato oral gravado ou por escrito. Com isso, é possível entender o que pensam e sentem sobre a(s) língua(s) pela(s) qual(is) interagem com o mundo. 5 O retrato linguístico é uma abordagem narrativa multimodal desenvolvida por Busch (2012) que visa revelar os repertórios linguísticos dos sujeitos. Para saber mais, ver: Busch (2012, 2015) e Megale (2017, 2018a). Há também outras abordagens para o reconhecimento das relações que os sujeitos estabelecem com seus repertórios linguísticos; ver, por exemplo: Melo-Pfeifer e Simões (2017). Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 23 No entanto, não basta reconhecer os repertórios multilíngues dos estudantes; é preciso identificar se suas línguas e culturas são valorizadas no contexto escolar e se há estudantes que têm dificuldade em compreender a(s) língua(s) utilizada(s) como meio de instrução ou que se sentem constrangidos em se comunicar por meio delas – caso isso ocorra, é necessário pensar em estratégias para apoiá-los. Uma prática muito relevante é a promoção de uma ecologia multilíngue na instituição escolar com a criação de espaços que valorizem toda a gama de práticas de linguagem dos estudantes que os frequentam. A criação de uma ecologia multilíngue robusta ajuda todos os alunos e suas famílias a entender que suas línguas são bem-vindas na escola. Isso vale, por exemplo, tanto para aquele único estudante boliviano ou coreano como para famílias que não falam inglês e têm seus filhos em escolas bilíngues. Já o português deve estar presente para que os alunos aprendam a valorizá-lo e se orgulhem de serem falantes dessa língua. Aspectos regionais e outras linguagens também têm de ser evidenciados. É preciso que os estudantes e suas famílias se reconheçam e se conectem com a escola. Como está inserida em um território, a instituição escolar deve espelhar a cultura local dentro das salas de aula. Assim, para criar uma ecologia multilíngue, recomenda-se que todas as práticas linguísticas dos alunos estejam presentes e visíveis nesse ambiente de aprendizagem. Para isso, os professores podem, por exemplo: y Fazer uso de pôsteres e sinalizações bi/multilíngues. y Exibir, nos murais, tarefas ou trabalhos dos estudantes na(s) língua(s) de instrução e na(s) da comunidade escolar. y Criar murais bi/multilíngues e de palavras cognatas. y Escrever bilhetes ou mensagens para as famílias na(s) língua(s) de instrução da escola e na(s) língua(s) da comunidade (por exemplo, inglês e português). y Incluir na biblioteca livros, revistas, jornais e outros materiais impressos que representem toda a variedade linguística da comunidade escolar e a(s) língua(s) de instrução da escola. 24 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Dar aos alunos a oportunidade de utilizar dicionários bilíngues impressos e digitais e outros recursos tecnológicos que facilitem sua compreensão e apreensão dos conteúdos. y Encorajar as famílias e membros da comunidade a participar da escola e contar sobre suas histórias, suas línguas e o que os trouxeram até ali (GARCÍA; JOHNSON; SETLZER, 2017). Tornar as línguas da comunidade visíveis e audíveis emite uma mensagem clara de que elas são valorizadas e importantes no processo de aprendizagem. Contudo, não basta ter essas línguas presentes nos murais e colocar dicionários bilíngues nas prateleiras das estantes. Criar uma ecologia multilíngue significa utilizar esses recursos para potencializar e apoiar as aprendizagens dos estudantes por meio do uso de todo o seu repertório linguístico. 5. Construindo novas histórias Tudo o que discutimos até aqui nos interessa, como educadores, porque a presença de indivíduos bi/multilíngues em salas de aula é uma constante em inúmeras escolas públicas e privadas brasileiras (BERGER, 2016). Como professores, temos agência e poder para atuar em direção à desnaturalização do mito do monolinguismo e agir em prol de princípios e ações necessários à gestão de diferentes línguas nos espaços educativos, de modo a acolher as diversas identidades linguísticas e culturais dos alunos bi/multilíngues e “propiciar condições para que desenvolvam e valorizem seus idiomas concomitantemente à aprendizagem da língua majoritária do país” (BERGER, 2016, p. 194). Para tanto, precisamos compreender a diversidade linguística não só do ponto de vista variacional em torno dos usos da língua portuguesa, mas também sob o aspecto da coexistência de línguas distintas. Isso é possível por meio da investigação das paisagens linguísticas, como a realizada por Megale (2018b) na cidade de São Paulo. A seguir, exemplificamos a paisagem linguística da Praça Kantuta,6 capturada pela autora. 6 A Praça Kantuta fica no bairro do Pari, em São Paulo. Kantuta é uma flor típica do altiplano andino. Esse nome foi escolhido devido à grande presença da comunidade boliviana na região. O local funciona como um centro de resistência da cultura boliviana e conta com a presença de uma associação formal responsável pela feira de artesanato, culinária e cultura que ocorre na praça todos os domingos. Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 25 Exemplos da paisagem linguística da Praça Kantuta, bairro do Pari, São Paulo (SP). 26 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Essas imagens revelam, por meio de práticas translíngues e transculturais, as diferentes culturas, línguas e identidades que coexistem nesse espaço. Elas são significativas porque “os recursos linguísticos visuais inseridos em um meio ambiente relacionam-se diretamente às pessoas, uma vez que são elas que os produzem e escolhem como usá-los” (SHOHAMY; GORTER, 2009, p. 1). Assim, a realidade sociolinguística de uma comunidade pode ser compreendida também pelo local, pois ele é “uma parte constitutiva” da prática de linguagem (PENNYCOOK, 2010, p. 9), sendo dinamicamente (re)construído na e pela linguagem, imprimindo mensagens sobre as sociedades, os indivíduos, a política, a economia, as identidades, as formas de representação (SOARES; SALGADO, 2015). Desse modo, as paisagens linguísticas são vistas como espaços de transformação, agência e poder (BURDICK, 2012), que revelam experiências, vivências, histórias, motivações, objetivos e redes sociais locais e translocais. A seguir, propomos duas atividades a fim de mobilizarmos os conceitos discutidos para a compreensão de nossa realidade multilíngue. Atividade 1 Tendo em mente a pertinência da paisagem linguística para o conhecimento da realidade sociolinguística de nosso país, realize registros fotográficos de paisagens linguísticas de sua cidade ou região. Traga para a sala de aula, compartilhe com os colegas e, juntos, analisem as imagens pensando na seguinte pergunta: “Como as paisagens linguísticas revelam a inseparável dinâmica entre língua, linguagem e lugar e as complexas geografias dos acontecimentos linguísticos?”. Atividade 2 Quais marcas evidenciam a ecologia multilíngue de sua escola? Quais línguas podem ser identificadas na paisagem linguística da instituição? A paisagem linguística da escola se relaciona com os repertórios dos estudantes? Se não existir uma ecologia multilíngue na instituição, pense sobre o que poderia ser feito para isso, levando em conta os sujeitos que fazem parte da comunidade escolar. Vamos conhecer o cenário sociolinguístico brasileiro? 27 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, objetivamos desconstruir o mito do monolinguismo no Brasil e reconhecer o contexto sociolinguístico brasileiro. Assim, conhecemos o caso da pesquisa do OBEDF, que demonstrou como a realidade das escolas investigadas era multilíngue, e discutimos pesquisas que nos ajudam a entender o mito do monolinguismo e a realidade sociolinguística do Brasil, analisando a história inicial com o olhar de estudos sobre políticas linguísticas. Propomos a construção de uma nova história – uma história de conhecimento de nossa realidade sociolinguística – por meio do registro de paisagens linguísticas. Finalizamos o capítulo pensando sobre a possibilidade de criar ecologias multilíngues na escola, como forma de desnaturalizar o mito do monolinguismo e de valorizar as realidades sociolinguísticas nos ambientes escolares. A seguir, sugerimos aprofundamentos no tema. 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece a Enciclopédia das Línguas do Brasil (ELB)? A ELB tem o objetivo de produzir, reunir e divulgar as línguas faladas em nosso país. Nela, as línguas estão organizadas em: português; línguas indígenas; línguas africanas; línguas de imigração americana; línguas de imigração europeia; línguas de imigração asiática; e Libras. Disponível em: https://www.labeurb. unicamp.br/elb2/pages/artigos/lerArtigo.lab?id=1 Você já visitou o site do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol)? O Ipol é uma instituição sem fins lucrativos, de caráter cultural e educacional, fundada em 1999. Sua missão é desenvolver “projetos de apoio técnico às comunidades de falantes de línguas e variedades linguísticas minoritárias do Brasil e do Mercosul, no sentido de manutenção e promoção da diversidade linguística brasileira”. 28 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Nesse site, há a divulgação de cursos, livros, pesquisas e notícias variadas sobre o multilinguismo brasileiro. Disponível em: http://ipol.org.br/sobre-o-ipol/. Referências bibliográficas ALTENHOFEN, C. V. Política linguística, mitos e concepções linguísticas em áreas bilíngues de imigrantes (alemães) no Brasil. Revista Internacional de Linguística Iberoamericana, v. 1, n. 3, p. 83-93, 2004. BAETENS BEARDSMORE, H. Language shift and cultural implications in Singapore. In: S. GOPINATHAN, S. et al. (ed.). Language, education and society in Singapore: issues and trends. Singapore: Times Academic Press, 1998. p. 85-98. BAKER, C.; PRYS JONES, S. Encyclopedia of bilingualism and bilingual education. Bangor: Multilingual Matters, 1998. BERGER, I. R. Princípios para a gestão do plurilinguismo na escola: questões para reflexão e proposição de ações. In: MORELLO, R.; MARTINS, M. (org.). Observatório da Educação na Fronteira: política linguística em contextos plurilíngues – desafios e perspectivas para a escola. Florianópolis: Ipol; Garapuvu, 2016. p. 193-202. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. 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A família argumenta que, com o aprendizado da língua inglesa, poderá viajar para o exterior sem preocupação e que seu filho terá melhores oportunidades no mercado de trabalho e, consequentemente, maior ascensão social. A família espera que a escola trabalhe com conteúdos que possibilitem a seu filho ingressar em uma boa instituição de ensino superior. Para tanto, procura uma escola que se dedique ao ensino dos conteúdos tradicionais valorizados pela comunidade acadêmica e voltados ao desenvolvimento de competências que facilitem o ingresso e o sucesso no mundo profissional. Ao visitar escolas, contudo, a família se sente insegura para escolher: a escola A oferece uma aula de inglês por semana; a escola B, três aulas de inglês no contraturno; a escola C tem uma hora de inglês por dia na grade curricular; e a escola D, além das aulas de língua inglesa, oferece algumas disciplinas ministradas em inglês e outras em português. Três delas divulgam que o filho sairá da escola “falando como um nativo”, “parecendo um americano” e que as pessoas “nem perceberão que ele é brasileiro”. A família fica feliz, pois não deseja nenhum tipo de “sotaque”, mas ainda está indecisa. Se quer uma Educação Bi/Multilíngue, qual escola deve escolher? O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 35 Com base nesse caso, algumas questões podem ser levantadas: y Quais são as motivações dessa família para a escolha da escola? y Todas as escolas apresentadas no caso são bilíngues? y Quais são as diferenças entre Educação Bi/Multilíngue e programas de ensino de línguas? y Quais as características de cada abordagem? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Apresentar o conceito de Educação Bi/Multilíngue e suas características. y Compreender as ideologias linguísticas monoglóssica e heteroglóssica e seus respectivos programas. y Reconhecer os objetivos da Educação Bi/Multilíngue por uma visão heteroglóssica, intercultural e crítica. y Discutir a Educação Bi/Multilíngue comprometida com a justiça social. 3. Para entender melhor essa história O que é, afinal, Educação Bi/Multilíngue? De modo simplório, a Educação Bi/Multilíngue é caracterizada pelo uso de duas ou mais línguas como meio de instrução, ou seja, essas línguas são utilizadas para ministrar componentes curriculares e, portanto, são línguas “para ensinar e aprender” (WRIGHT; BOUN; GARCÍA, 2015, p. 1). Dessa maneira, diferencia-se de programas de ensino de línguas, nos quais a língua é ensinada como conteúdo. Assim, o aprendizado da língua adicional não é o único objetivo. Pretende-se, na perspectiva de Educação Bi/Multilíngue defendida neste livro, a ampliação do repertório dos estudantes que, por meio da língua adicional, podem acessar bens culturais e fontes de conhecimento aos quais não teriam acesso apenas por meio de sua língua de nascimento. Nessa linha, defendemos uma Educação Bi/Multilíngue intercultural (MOREIRA; CANDAU, 36 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 2008; WALSH, 2015; SCHNORR, 2015), comprometida com a equidade social, que tem como finalidade desvelar o daltonismo cultural (STOER; CORTESÃO, 1999) presente nas instituições de ensino a fim de superar o caráter monocromático da cultura escolar. De acordo com Stoer e Cortesão (1999), o processo de escolarização, por meio do exercício da narrativa da padronização e da normalização, contribui para a produção de sujeitos que, de acordo com os autores, são incapazes de perceber as tonalidades que compõem o arco-íris de culturas (SANTOS, 1995) que constituem o mundo. Por conta do daltonismo cultural, não reconhecemos as diferenças que compõem nossas escolas e não refletimos sobre as relações de poder que as perpassam, sejam elas de gênero, étnicas, regionais ou mesmo relativas à aprendizagem. Somando-se a isso, partimos, na ideologia intercultural, da compreensão da prática pedagógica como um processo de negociação cultural (MOREIRA; CANDAU, 2008). A Educação Bi/ Multilíngue se torna, portanto, uma possibilidade para desvendar o eurocentrismo presente em nossos currículos, o que nos obriga a repensar nossas escolhas pedagógicas a fim de fazer com que outros discursos e outras narrativas circulem em nosso ambiente escolar. Em termos de organização, a Educação Bi/Multilíngue se estrutura em dois grandes domínios: i) Educação Bilíngue para estudantes cuja língua de nascimento ou língua da comunidade difere da língua oficial e hegemônica utilizada naquele território e ii) Educação Bi/Multilíngue para estudantes que buscam um enriquecimento linguístico e cultural. No Brasil, como discutido no capítulo 1 deste livro, há grupos que fazem uso de outras línguas e mesmo grupos que originalmente utilizavam outras línguas, mas que, com a hegemonia e imposição do português, foram deixando ou sendo proibidos de usá-las. Devido a essa pluralidade linguística e cultural que, de modo tímido, começou a ser apontada na Constituição de 1988, desenharam-se algumas propostas que contemplam as necessidades de grupos multilíngues. Essas propostas são, em sua grande maioria, fruto de lutas políticas por autonomia e autodeterminação e servem como ferramenta de empoderamento da comunidade (FLORES; BAETENS BEARDMORE, 2015). São elas: y Educação Escolar Indígena – É respaldada também pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394/1996) e pelo Plano Nacional de Educação (Lei no 10.172/2001). O direito O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 37 a uma Educação Escolar Indígena é “caracterizado pela afirmação das identidades étnicas, pela recuperação das memórias históricas, pela valorização das línguas e dos conhecimentos dos povos indígenas e pela revitalizada associação entre escola/sociedade/identidade” (BRASIL, 2007, p. 9). y Educação Bilíngue para Surdos – É assegurada por lei desde 2002 (Lei no 10.436/2002) e regulamentada pelo Decreto no 5.626/2005. Esse modelo educativo parte do princípio de que os sujeitos surdos precisam ter a possibilidade de optar por uma educação na qual a instrução ocorra por meio da Língua brasileira de sinais (Libras) e a língua portuguesa seja ensinada como segunda língua (SILVA; FAVORITO, 2009). y Educação Bilíngue em Contextos de Imigração – Responde às especificidades que caracterizam cada contexto e se vinculam às diversas línguas de imigração que compõem o cenário nacional (ver, por exemplo: PINHEIRO, 2008; FRITZEN, 2011; SEMECHECHEM, 2016). Essas escolas rompem com a lógica da homogeneidade linguística brasileira e utilizam também a língua de seu grupo no processo de escolarização. y Educação Bilíngue de Fronteira – Responde à complexidade linguística e cultural de nossa extensa fronteira: 588 municípios com aproximadamente 10 milhões de habitantes ao longo de 15.179 quilômetros. Vários programas já foram criados a fim de atender os cerca de 3 milhões de estudantes localizados nessa região: em 2005, o Projeto Escola Intercultural Bilíngue de Fronteira (PEIBF); em 2010, o PEIBF foi remodelado pelo governo brasileiro e passou a se chamar Programa das Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF); e, em 2011, criou-se o Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF). A Educação Bi/Multilíngue para estudantes que buscam um enriquecimento linguístico serve, na maioria das vezes, como veículo para manter a posição privilegiada daqueles que aderem a essa possibilidade educativa, por meio do desenvolvimento de línguas valorizadas em nossa sociedade e de habilidades prezadas pelo mercado de trabalho. No Brasil, infelizmente, ainda são poucas as escolas bilíngues de línguas de prestígio1 no setor público e/ou disponíveis para estudantes oriundos de famílias de baixa renda. 1 Denominamos de “línguas de prestígio” as línguas valorizadas em nossa sociedade atualmente. Essas línguas são eurocêntricas e serviram, quase em sua totalidade, para a dominação das colônias. 38 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores As escolas bilíngues podem ser, portanto, ferramentas para reforçar o privilégio das camadas mais favorecidas de nossa sociedade ou, por outro lado, ferramentas que buscam a emancipação de grupos não privilegiados. A estrutura adotada por essas escolas pode reforçar ou desafiar as relações de poder. De acordo com Flores e Baetens Beardmore (2015): Essas estruturas de programas incluem a população estudantil que está sendo atendida, a alocação das línguas de instrução, a maneira como os alunos são agrupados e como o conhecimento cultural é abordado na sala de aula. Essas decisões informam e são informadas por entendimentos sociais mais amplos de língua e aprendizagem de línguas (p. 205, tradução nossa).2 Os entendimentos sociais aos quais esses autores se referem derivam de duas distintas ideologias de linguagem: a monoglóssica e a heteroglóssica. A ideologia monoglóssica assume como práticas linguísticas legítimas aquelas praticadas por monolíngues (GARCÍA, 2009). Dessa visão de linguagem resultam dois programas de Educação Bilíngue: i) o subtrativo, que promove o aprendizado da língua de prestígio em detrimento da língua de nascimento dos estudantes, ou seja, seu objetivo final é o monolinguismo na língua de prestígio (GARCÍA, 2009), e ii) o aditivo, que, embora rejeite explicitamente o monolinguismo e tenha como objetivo adicionar outra língua ao repertório dos estudantes, defende a produção de bi/multilíngues balanceados. Programas aditivos partem, portanto, da concepção de que os estudantes devem desenvolver competências linguísticas equivalentes em suas duas línguas de modo semelhante àquelas apresentadas por falantes nativos. Teríamos, aqui, a problemática da competência ideal do falante nativo como baliza para mensurar o controle ou conhecimento das línguas pelos falantes bi/multilíngues (MEGALE, 2019). A ideologia heteroglóssica, por sua vez, sustenta que as línguas não são entidades separáveis e contáveis associadas aos Estados-nação. Essa visão de linguagem faz do bilinguismo a norma e 2 “These program structures include the student population that is being served, the allocation of the languages in instruction, the ways that students are grouped, and the ways that cultural knowledge is addressed in the classroom. These program­level decisions are both informed by and inform larger societal understandings of language and language learning”. (FLORES; BAETENS BEARDMORE, 2015, p. 205). O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 39 reconhece as práticas linguísticas fluidas dos falantes multilíngues em toda a sua complexidade (FLORES; BAETENS BEARDMORE, 2015). Os programas heteroglóssicos podem ser recursivos ou dinâmicos. Os programas recursivos têm como foco o resgate de línguas ancestrais, e os dinâmicos são programas nos quais há o desenvolvimento de uma língua adicional à língua da comunidade de origem. O desenvolvimento da língua adicional parte do princípio de que “o uso de línguas no século 21 requer habilidades diferenciadas” e é múltiplo, uma vez que “os cidadãos cruzam fronteiras físicas ou virtuais” (GARCÍA, 2009, p. 54). De acordo com Busch (2014), uma ideologia heteroglóssica implica não apenas o reconhecimento da presença de diferentes línguas como um recurso para a construção de significados, mas também um compromisso com a multidiscursividade e com a multiplicidade de vozes na comunidade escolar. Multidiscursividade, para a autora, significa que os estudantes podem trazer para a sala de aula suas preocupações e temas de interesse, participando da construção de um currículo dinâmico. A multiplicidade de vozes se relaciona com o fato de que, nessa perspectiva, a aprendizagem e o ensino ocorrem de maneira dialógica e multidirecional; logo, os papéis não são fixos, mas sim negociados situacionalmente (BUSCH, 2014). Segundo Busch (2014), rejeitam-se a orientação monolíngue e suas abordagens que rotulam algumas práticas linguísticas como deficiências. A ideologia heteroglóssica reconhece e aprecia todos os tipos de práticas de linguagem multimodais como meios legítimos de construção de significado (BUSCH, 2014). 4. Retomando a história O caso que apresentamos no início deste capítulo, sobre a família que deseja matricular seu filho em uma escola bilíngue, é um exemplo vivenciado por muitas famílias brasileiras na busca por uma escola bilíngue. As motivações para essa procura estão associadas às ampliações de atuação no mercado de trabalho e possíveis viagens, ou seja, a discursos vinculados à ideologia do inglês como commodity, isto é, como um recurso que possui valor de troca (HELLER, 2010). No Brasil, há tempos, a língua inglesa tem sido um produto lucrativo, de desejo e sonho, com promessas de um futuro melhor, razão pela qual o ramo das “escolas bilíngues” tornou-se tão atrativo: 40 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores muitos pais desejam associar um ensino de qualidade com as vantagens econômicas trazidas por essa língua (MARCELINO, 2009). Essa visão tem permeado as crenças da sociedade sobre os propósitos da Educação Bi/Multilíngue, em geral confundidos com os de programas tradicionais para o ensino de línguas. Como discutido anteriormente, as escolas que possuem programas de aprendizagem linguística se diferenciam das bi/multilíngues porque nestas são usadas duas línguas de instrução, enquanto nos programas de educação linguística tradicionais a língua é explicitamente ensinada como conteúdo (GARCÍA; WOODLEY, 2015). As escolas também se distinguem na abordagem de ensino e no modo de entender as práticas linguísticas e culturais: enquanto a maioria dos programas de educação linguística tem como foco o sistema de estrutura da língua em si, pelo qual os estudantes desenvolvem as quatro habilidades – ouvir, falar, ler e escrever –, as escolas bi/multilíngues visam o “desenvolvimento de práticas linguísticas, isto é, o linguajar dos estudantes[...], que é um produto de ação social e consiste em recursos fluidos e flexíveis por meio dos quais os alunos dão sentido ao que estão aprendendo”3 (GARCÍA; WOODLEY, 2015, p. 132). Assim, é importante compreender que a Educação Bi/Multilíngue tem como propósitos o desenvolvimento linguístico de ambas as línguas de instrução, a aprendizagem e articulação de conteúdos diversos, o desenvolvimento de habilidades e competências que ampliam a atuação do estudante no mundo e o desenvolvimento de competências interculturais. Na história que apresentamos, a família parece não ter clareza do que é uma escola bi/multilíngue. De fato, Mello (2010, p. 118-119) adverte que nem sempre os pais e até mesmo o corpo docente da escola “têm clareza sobre o que vem a ser Educação Bilíngue de fato, sobre seus objetivos e orientações, modelos e tipos de programas adequados às diferentes populações de alunos e, principalmente, sobre sua eficácia”. Então, se a família realmente deseja uma Educação Bi/Multilíngue, qual é a melhor opção entre as escolas? As três primeiras escolas descritas (A, B e C) não são bilíngues, embora a família acredite que sim. Fica nítida a confusão entre aulas de língua inglesa e ensino bi/multilíngue, sem considerar os propósitos e objetivos específicos das escolas: elas oferecem programa de 3 “[...] development of language practices; that is, on the languaging of students (Becker 1995; Maturana and Varela 1998 [1973]), which is a product of social action and consists of fluid and flexible resources through which students make meaning of what they are learning”. (GARCÍA; WOODLEY, 2015, p. 132). O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 41 ensino de línguas,4 cujo foco é o desenvolvimento dessa língua – a língua é a matéria em si, diferentemente das escolas bi/multilíngues, cujos conteúdos são ministrados em duas línguas. Conforme discutido na seção anterior, as escolas bi/multilíngues focam a integração entre língua e conteúdo, enquanto os programas de ensino de línguas enfatizam o ensino da língua propriamente dita. De fato, é exatamente essa explicitação de conteúdos e habilidades acadêmicas desenvolvidas por meio da língua de instrução que caracteriza uma escola bi/multilíngue (GARCÍA; WOODLEY, 2015). Assim, a única escola que poderia ser considerada bilíngue pela definição que apresentamos é a D, pelo fato de ministrar disciplinas em duas línguas de instrução. Outra questão importante evidenciada na história que compartilhamos é a preocupação da família em evitar o “sotaque” e da escola em garantir e enfatizar que o estudante sairá da escola “falando como um nativo”, discursos esses vinculados à ideologia do falante nativo. Novamente, o objetivo da educação linguística parece estar marcado por um viés instrumental e colonial, orientado pelo mercado da indústria do inglês, que colaborou para a naturalização do mito do falante nativo e para a perpetuação da ideologia monoglóssica nas escolas. Ainda permeia na sociedade, conforme apontamos na seção anterior, a ideia de bi/multilíngues balanceados, ou seja, de que os estudantes devem desenvolver competências linguísticas equivalentes em suas duas línguas de modo semelhante àquelas apresentadas por falantes nativos, o que continua reforçando a problemática da competência ideal do falante nativo como norma para mensurar o conhecimento de falantes bi/multilíngues (MEGALE, 2019). Essa visão se distancia da perspectiva heteroglóssica que apresentamos na seção anterior, em que todo o repertório linguístico do sujeito é valorizado e utilizado como recurso para a aprendizagem. Nesse sentido, Blommaert (2008) explica que o repertório linguístico dos falantes não é definido a partir de seu local de nascimento e da(s) língua(s) oficial(is) vinculada(s) a esse espaço-nação. O repertório é consequência das trajetórias e dos percursos biográficos dos falantes. Assim, a partir de uma perspectiva heteroglóssica – que compreende o bilinguismo como dinâmico –, não faz sentido vincularmos uma Educação Bilíngue de qualidade à presença de professores que são falantes nativos das línguas por meio das quais lecionam. 4 Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue (BRASIL, 2020), essas escolas são conhecidas como Escolas com Carga Horária Estendida. 42 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores De fato, para García e Woodley (2015), na Educação Bi/Multilíngue, as duas ou mais línguas são usadas para construir conteúdo significativo ao mesmo tempo que preconizam diversidade e multiplicidade de discursos. Essa multiplicidade de vozes, de discursos presentes na comunidade, como um dos objetivos da Educação Bi/Multilíngue pela ideologia heteroglóssica também é evidenciada por Busch (2014), que reforça esse objetivo para além do uso de diferentes línguas como recurso de construção de significados. E isso nos leva à última questão a ser discutida na história que contamos: a motivação da família está associada exclusivamente ao desenvolvimento de competências e conhecimentos voltados ao mundo do trabalho. Entendemos que a Educação Bi/Multilíngue deve contemplar e problematizar os conhecimentos valorizados socialmente e também abrir espaço para o acesso a outras narrativas e modos de ser e agir no mundo para além da narrativa eurocêntrica contemplada em nossos currículos. Por essa perspectiva, a Educação Bi/Multilíngue tem as funções de expandir o repertório e as formas de participação (LIBERALI, 2019), adotar uma perspectiva de uma formação que tem como foco o desenvolvimento da agência dos estudantes (LIBERALI, 2019) e ampliar as possibilidades de entender e se familiarizar com outros discursos (MEGALE, 2019) de modo a promover aprendizados que propiciem inserção, participação social e outros modos de agir no mundo (EL KADRI, no prelo). Isso significa que a Educação Bi/Multilíngue teria também a função de possibilitar a circulação de narrativas que geralmente não perpassam o currículo escolar. A família da história que contamos, ao não se opor ao discurso do “tradicional”, demonstra não estar interessada em processos de negociação cultural (MOREIRA; CANDAU, 2008), como ressaltamos na seção anterior. As oportunidades de evidenciar o eurocentrismo, repensar as práticas pedagógicas e fazer com que outros discursos circulem no espaço escolar seriam cruciais para uma Educação Bi/Multilíngue intercultural e crítica, o que parece, infelizmente, não ser o desejo da família de nossa história. 5. Construindo novas histórias Na atualidade, as escolas bilíngues são muito distintas e apresentam propostas e estruturas bastante diferentes. Em 2020, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 43 Plurilíngue. Essas Diretrizes, que até janeiro de 2023 ainda não haviam sido homologadas, parecem tentar padronizar o funcionamento e a formação de docentes que atuam em escolas bi/multilíngues. A esse respeito, o documento argumenta que, “com o crescimento exponencial de instituições de ensino bilíngues, o CNE passou a receber solicitações sobre a necessidade de normatização” (BRASIL, 2020, p. 1).5 Embora existam nas Diretrizes vários pontos relativos à concepção de Educação Bi/Multilíngue que merecem ser problematizados,6 é importante que educadores que atuam nesse contexto as conheçam e se posicionem criticamente em relação a elas. Atividade 1 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue (BRASIL, 2020) são compostas pelo relatório e pelo projeto de resolução. No relatório, estão contidas a justificativa da existência deste documento regulador e as bases teórico-metodológicas que sustentam suas resoluções. No projeto de resolução, há normativas referentes ao funcionamento das escolas bilíngues. Leia essa seção e tome notas das seguintes prescrições: y Definição de escola bilíngue. y Cargas horárias máxima e mínima exigidas para cada segmento. y Formação de professores exigida para cada segmento. y Avaliação da proficiência linguística dos estudantes. Após esse primeiro exercício, reflita sobre como essas Diretrizes afetam o funcionamento da escola na qual você trabalha ou das escolas de sua região. Atividade 2 Você conhece as escolas bilíngues de sua cidade? Pesquise na internet e tenha uma visão geral de quantas escolas você pode localizar nessa busca. Selecione três delas, leia todas as informações disponibilizadas e compare-as em relação a: 5 Importante ressaltar que o crescimento exponencial ao qual o documento se refere se concentra na rede privada de ensino. 6 Ver: LIBERALI, F. C.; MEGALE, A.; VIEIRA, D. A. (org.). Por uma educação bi/multilíngue insurgente. Campinas: Pontes, 2022. v. 1. 130 p. 44 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Visão de linguagem: as escolas parecem adotar uma ideologia monoglóssica ou heteroglóssica de linguagem? y Carga horária defendida: quantas horas são destinadas para a instrução em língua adicional? y Objetivos educacionais destacados no site da escola: há menção a uma formação intercultural ou o destaque recai apenas no aprendizado da língua adicional? Por fim, reflita também sobre qual escola mais se aproxima dos preceitos e ideias apresentados neste capítulo. 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, objetivamos discutir o conceito e as características da Educação Bi/Multilíngue pelas ideologias monoglóssica e heteroglóssica como maneira de informar professores e pais sobre o que distingue uma Educação Bi/Multilíngue intercultural e crítica. Partimos de um caso comum vivenciado por muitas famílias que desejam os benefícios de uma Educação Bi/Multilíngue para seus filhos. Perpassamos pelos referenciais teóricos das ideologias monoglóssica e heteroglóssica, diferenciamos Educação Bi/Multilíngue de aulas de línguas e discutimos a visão intercultural dessa modalidade de educação. Propusemos a construção de novas histórias com base na reflexão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue e na análise de sites de escolas bilíngues de nossas cidades. A seguir, sugerimos um aprofundamento nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena e de Fronteira. 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica? Nessa página do Ministério da Educação, é possível localizar todo o histórico dos documentos oficiais relativos à Educação Escolar Indígena desde 1999. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ pet/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados82187207/18692-educacao-indigena. O que entendemos por Educação Bi/Multilíngue? 45 Você já visitou o site do Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF)? O OBEDF é um projeto criado e implantado para promover pesquisas sobre o Ensino Fundamental em contextos plurilíngues e multiculturais, como o da fronteira, e a qualificação de seu corpo docente. Nesse site, as ações, eventos e publicações da iniciativa estão disponíveis para consulta pública. Disponível em: http:// obedf2010.blogspot.com/p/o-observatorio.html. Referências bibliográficas BLOMMAERT, J. Language, asylum, and the national order. Urban Language & Literacies, v. 50, n. 4, p. 415-444, 2008. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer CNE/CEB no 2/2020, aprovado em 9 de julho de 2020 – Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue. Brasília: MEC, 2020. 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(Trans)Formando saberes na Educação de professores Capítulo 3 Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? “Por meio de uma língua adicional (e também da língua de nascimento dos estudantes), podemos construir oportunidades para que eles confrontem visões de mundo distintas das que circulam em suas comunidades imediatas. Assim, eles têm a possibilidade de ampliar seu repertório e decidir quais desses novos saberes e representações importam para sua vida.” Capítulo 3 Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 1. Uma história para compartilhar Atualmente, no Brasil vivemos a abertura de muitas escolas bilíngues e a implementação dos denominados programas bilíngues em instituições de ensino já em funcionamento. Embora todas essas instituições estejam alocadas sob a égide do termo “bilíngue”, elas diferem muito entre si em relação ao entendimento conceitual do que é Educação Bi/Multilíngue, à estruturação do currículo e ao modelo de Educação Bi/Multilíngue adotado. Somado a isso, há também o fato de que o fenômeno da Educação Bi/Multilíngue de línguas de prestígio no Brasil é pouco investigado. Dessa forma, nos restam muitas dúvidas sobre o perfil dos estudantes egressos dessas escolas. Alguns questionamentos nos assolam: como é e qual é o conhecimento de língua adicional desses estudantes? Quais discursos os constituem? Esses estudantes são, de fato, multiculturais? Se são, quais possibilidades de ação essa condição lhes oferece? Mesmo em meio a tantas dúvidas e incertezas a respeito de uma modalidade educativa que ainda não formou uma quantidade de estudantes significativa que estiveram imersos durante todo o processo educativo em uma escolarização bi/multilíngue, essas instituições se tornaram uma possibilidade atrativa para professores que possuem conhecimentos linguísticos e didáticos para lecionar em uma língua adicional e até mesmo para aqueles que trabalham com o português. Diante dessa realidade, uma professora de inglês, que se dedicava ao trabalho em instituições nas quais a língua inglesa era ensinada Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 51 como uma disciplina, se aventurou a conhecer as escolas bilíngues de sua cidade a fim de verificar se havia ali uma oportunidade interessante de trabalho. Fez, então, uma pesquisa nos sites dessas escolas e algo que lhe chamou a atenção foram as características recorrentes atribuídas aos estudantes que essas instituições tinham o objetivo de formar: “nova geração de líderes capazes de fazer a diferença”, “proficientes no segundo idioma”, “capazes de contribuir para um mundo melhor”, “interculturalmente competentes”, “apreciadores das diferenças”, “aptos a superar os desafios do mundo globalizado” e “competentes para atuar em uma ou duas línguas em contexto acadêmico, social e cultural”, entre outras características encontradas. Com base nesse caso, algumas questões podem ser levantadas: y As diversas escolas bilíngues possuem os objetivos idênticos de formação de sujeito mesmo atuando de maneiras tão distintas? y Como é possível traçar diferenciações entre essas propostas? O que é preciso observar para, de fato, compreender as propostas de formação de estudantes de cada escola? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Compreender que sujeitos podemos formar em uma Educação Bi/Multilíngue pautada pela ideologia heteroglóssica. y Relacionar a concepção de sujeito bi/multilíngue com base em uma ideologia heteroglóssica a objetivos e práticas curriculares. y Compreender os conceitos de stance, design e shift na composição de uma pedagogia translíngue. y Compreender as bases de uma Educação Bi/Multilíngue intercultural. 3. Para entender melhor essa história Já discutimos no capítulo 1 que o sujeito bilíngue não é aquele que tem habilidades equivalentes em ambas as línguas nem aquele que possui o desempenho de falantes nativos nessas línguas. Desse 52 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores modo, entendemos que o sujeito bi/multilíngue não é um duplo monolíngue. Mas quem é, afinal, o sujeito bilíngue? O conceito de repertório linguístico é uma noção importante para responder a essa pergunta. De uma perspectiva heteroglóssica, vários especialistas, entre eles Busch (2006; 2012; 2014; 2015), vêm, mais recentemente, enfatizando que as pesquisas da área de bi/multilinguismo devem focalizar o exame das práticas linguísticas dos indivíduos bi/multilíngues, e não o sistema linguístico em toda a sua abstração. Busch (2012) e outros autores que se baseiam em uma ideologia heteroglóssica de linguagem defendem a noção de repertório linguístico em detrimento da divisão clássica em primeira e segunda línguas. Blommaert e Backus (2013) entendem o repertório linguístico como uma miscelânea de recursos, habilidades e competências aprendidas por um indivíduo que, ao longo de sua trajetória de vida, depara com situações de aprendizado formais e encontros informais com a língua. Os autores defendem a ideia de que o repertório linguístico reflete a vida do sujeito, ocorre em um espaço real sociocultural, histórico e político e não remete apenas a seu local de nascimento. Nessa direção, Busch (2015) inclui duas dimensões para compreendermos a noção de repertório linguístico: as ideologias linguísticas e o que a autora denomina de experiência vivida da língua. No tocante às ideologias linguísticas, Busch (2015) explica que atitudes pessoais em relação à língua são amplamente determinadas pelo valor atribuído a ela ou a uma variedade dela em um espaço social. No caso de repertórios linguísticos, essa ideia está associada ao poder restritivo ou de exclusão das categorizações linguísticas, como quando falantes de uma língua ou de um modo de falar específico não são reconhecidos ou não se percebem como falantes legítimos dessa língua. Isso pode acontecer não só quando se adentra um espaço social no qual as práticas linguísticas e suas regras não são familiares, mas também quando espaços que eram familiares são reconfigurados e, como resultado, políticas linguísticas são modificadas em um curto espaço de tempo. O conceito de experiência vivida da língua possibilita focalizar a dimensão biográfica do repertório linguístico a fim de reconstruir como este se desenvolve e se modifica ao longo da vida do sujeito (BUSCH, 2015). Nesse sentido, Busch (2015, p. 11) reivindica que é possível entender o repertório, em sua dimensão biográfica, “como uma estrutura que carrega traços de experiências passadas Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 53 de interações situadas e de práticas linguísticas cotidianas derivadas dessas experiências”. A autora explica também que o repertório linguístico pode ser entendido como um “domínio heteroglóssico de limites e potencialidades” (BUSCH, 2015, p. 14). Nele, diferentes línguas e modos de falar se revezam, interferem uns nos outros e se entrelaçam para formar algo novo, mas, de uma forma ou de outra, eles estão sempre lá. Nessa perspectiva, as práticas discursivas de sujeitos bi/multilíngues, com o propósito de construir sentidos, compreender e expressar seus mundos bi/multilíngues, são denominadas de translinguagem (GARCÍA; WEI, 2014). Como essa noção tem recebido cada vez mais atenção de estudiosos em campos do conhecimento diversos, Canagarajah (2011) fez um levantamento das diferentes denominações que o fenômeno recebe em áreas distintas, como codemeshing, translingual writing, fluid lects e polylingual languaging. O autor explica esse conceito ao afirmar que, para um indivíduo bi/multilíngue, suas línguas fazem parte de um repertório que é acessado para propósitos comunicativos. Segundo ele, as línguas formam um sistema integrado e, dessa forma, a competência bi/multilíngue emerge de práticas locais nas quais as línguas são negociadas na interação. Nessa direção, Blackledge e Creese (2017), ao explorarem as diversas dimensões dos repertórios semióticos no processo de construção de sentido, apresentam a seguinte reflexão sobre a translinguagem: A translinguagem refere-se a práticas comunicativas nas quais as pessoas se engajam conforme elas colocam em contato diferentes biografias, histórias e experiências linguísticas. A translinguagem tem o potencial de ser transformativa e criativa, uma vez que ela transcende a diferença aparente, permitindo que as pessoas se comuniquem com quaisquer recursos disponíveis a elas, em vez de restringi-las a limites prescritos. A translinguagem, portanto, possui uma dimensão espacial, na medida em que ela se realiza em um “espaço translíngue” (Wei, 2011) ou em uma “zona translíngue” (Blackledge, Creese & Hu, 2016). A translinguagem também apresenta uma dimensão ideológica, na medida em que ela se mostra contingente em meio a atitudes locais e a crenças perante a prática comunicativa. (BLACKLEDGE E CREESE, 2017, p. 250). Se o sujeito bi/multilíngue, deve ser, de uma perspectiva heteroglóssica, compreendido desde seu repertório linguístico e se suas 54 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores práticas comunicativas devem ser observadas com lentes que têm a translinguagem como norma e não como desvio, quais práticas pedagógicas apoiam essa visão? Como vimos no capítulo 2 desta obra, Busch (2014) explica que uma abordagem heteroglóssica implica não apenas o reconhecimento da diversidade linguística como um recurso para a construção de significados, mas também um compromisso com a multidiscursividade e com a multiplicidade de vozes presentes na comunidade escolar. Nesse sentido, é importante pensarmos em práticas que estejam relacionadas com a realidade dos estudantes, como o uso de livros culturalmente relevantes para a comunidade escolar e que transgridam posições fixas, entre elas a do professor como detentor de todo o conhecimento e a do estudantes como alguém que passivamente aprende por meio da ação do professor (BUSCH, 2014). Em relação à diversidade de línguas, é preciso conceber uma práxis pedagógica que compreenda que o sujeito bi/multilíngue utiliza todo o seu repertório linguístico para a construção de conhecimentos e que parta do princípio de que as práticas comunicativas do bi/multilíngue se materializam por meio da translinguagem. Nessa direção, a translinguagem passa a ser vista como ferramenta pedagógica. De acordo com García, Johnson e Setlzer (2017), os componentes de uma pedagogia translíngue são três: stance, design e shift. Stance se refere à postura, às crenças e às concepções do professor em relação a o que é bi/multilinguismo e quem é um estudante bi/multilíngue (GARCÍA; JOHNSON; SETLZER, 2017). As autoras salientam que, se o professor não tem uma postura crítica sobre práticas escolares que têm o monolinguismo como norma, nas quais o estudante é proibido de se expressar de acordo com seus recursos em dada situação, ele não será capaz de se colocar no lugar de alguém que tem muito a aprender com os estudantes sobre suas práticas linguísticas e culturais. Dessa maneira, esse professor não possui recursos para tirar proveito da translanguaging corriente1 que ocorre em sua aula nem possibilidade, consequentemente, de criar espaços planejados para que os estudantes aprendam por meio de suas práticas translíngues e fazendo uso de todo o seu repertório linguístico. 1 A metáfora translanguaging corriente se refere ao fluxo ou à corrente de bilinguismo dinâmico dos estudantes que observamos nas escolas e salas de aula bilíngues (GARCÍA; JOHNSON; SETLZER, 2017). Estudantes bi/multilíngues fazem uso de uma translanguaging corrien­ te de diversas maneiras para aprender conteúdo e língua na escola e para construir sentidos, negociando e produzindo significados ao articular seus recursos linguísticos. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 55 É essencial para o desenvolvimento de práticas pedagógicas heteroglóssicas que os professores valorizem o multilinguismo de seus estudantes e compreendam as possibilidades de construção e desenvolvimento com base nos múltiplos recursos que eles possuem. Para além da postura (stance), são necessários, segundo García, Johnson e Setlzer (2017), planejamento e estratégias intencionais e sistemáticas para a criação de espaços translíngues que gerem aprendizagens e desenvolvimento. O professor deve também desenvolver um design para que as práticas translíngues emerjam e sejam valorizadas, o que inclui: material multilíngue apropriado para que os estudantes aprendam, configuração da sala de aula como um espaço multilíngue e agrupamentos também levando em consideração, de acordo com a tarefa proposta, suas línguas de nascimento ou conhecimento da língua-alvo para que os estudantes possam se ajudar e aprofundar o sentido da aprendizagem. Isso também envolve planejar aulas com objetivos que circulam entre objetivos linguísticos, de conteúdo e de translinguagem. Finalmente, shift se refere à preparação dos professores para as alterações no planejamento de suas aulas que podem ser necessárias para responder às práticas linguísticas dos estudantes que emergem ao longo do planejamento pedagógico (GARCÍA; JOHNSON; SETLZER, 2017). Isso significa que professores que fazem uso de uma pedagogia translíngue devem observar atentamente os estudantes para que saibam quando o percurso das aulas deve ser alterado de modo a potencializar as suas aprendizagens. O objetivo do professor, nessa perspectiva, é que todos os estudantes, com conhecimentos linguísticos diversos, tenham oportunidades de aprender e se desenvolver. Para isso, precisamos de um professor atento às necessidades, dificuldades e potencialidades de seu grupo e apto a (re)planejar suas intervenções com base em suas observações. Algumas das alterações que podem ser promovidas de acordo com a necessidade dos estudantes, segundo García, Johnson e Setlzer (2017), incluem: y Auxiliar alguns estudantes na compreensão de vocabulário novo por meio de traduções, paráfrases e uso de sinônimos ou cognatos. y Ajudar estudantes a entender um novo conteúdo utilizando figuras de linguagem e/ou histórias culturalmente relevantes. 56 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Encorajar os estudantes a falar uns com os outros sobre um novo conceito ou vocabulário trabalhado em sala de aula a fim de proporcionar outras possibilidades de compreensão, caso algum estudante ainda não tenha entendido o conteúdo proposto. y Utilizar dicionários ou ferramentas eletrônicas em situações de dificuldade de compreensão e ajudar os estudantes a recorrer a esses recursos de maneira autônoma. y Encorajar os estudantes a relacionar o novo conteúdo com suas experiências por meio de histórias e outras possíveis conexões. Além dos aspectos relativos à diversidade linguística, à multidiscursividade e às múltiplas vozes já aqui explicitados, a promoção de uma Educação Bi/Multilíngue intercultural também é, na perspectiva de Educação Bi/Multilíngue que defendemos, fundamental para a formação de estudantes comprometidos com a construção de uma sociedade mais equânime. A promoção de uma Educação Bi/Multilíngue intercultural se baseia no reconhecimento e no direito às diferenças (SANTOS; NUNES, 2003). Outro ponto importante é que, em uma perspectiva intercultural (WALSH, 2009), propomos o questionamento dessas diferenças e das desigualdades historicamente tecidas em nossa sociedade no que tange às relações socioculturais, étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual, entre outras. Nesse sentido, defendemos que a Educação tem como objetivos principais a construção de sociedades em que as diferenças são o eixo central da democracia e a produção de sujeitos capazes de estabelecer relações equânimes e mais justas (MEGALE; LIBERALI, 2021). Para tanto, é necessária a elaboração de currículos que questionem as ideologias hegemônicas e valorizem outras formas de ser e estar no mundo. Para a promoção de uma Educação Bi/Multilíngue intercultural, partimos, portanto, do princípio de que, por meio de uma língua adicional (e também da língua de nascimento dos estudantes), podemos construir oportunidades para que eles confrontem visões de mundo distintas das que circulam em suas comunidades imediatas. Assim, eles têm a possibilidade de ampliar seu repertório e decidir quais desses novos saberes e representações importam para sua vida. Ao lidarem com textos orais e escritos na língua adicional e em sua língua de nascimento e ao se valerem delas para agir, os estudantes podem se conhecer cada vez mais e, desse modo, formar uma visão própria mais atuante e informada acerca dos discursos que orientam as ações em sua comunidade. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 57 4. Retomando a história Voltemos, agora, para o caso de nossa colega professora que busca compreender mais sobre a realidade e o propósito de formação de sujeitos das escolas bilíngues de sua cidade. É importante aqui retomarmos que a educadora de nossa história deparou com uma grande recorrência de competências e habilidades objetivadas por essas escolas no que tange à formação de seus estudantes. Diante dessa realidade, levantamos as seguintes perguntas: y As diversas escolas bilíngues possuem os objetivos idênticos de formação de sujeito mesmo atuando de maneiras tão distintas? y Como é possível traçar diferenciações entre essas propostas? O que é preciso observar para, de fato, compreender as propostas de formação de estudantes de cada escola? Para respondermos a esses questionamentos, mobilizaremos os conceitos explicitados na seção teórica deste capítulo: heteroglossia, repertório linguístico, diversidade linguística, eixos para uma prática translíngue – stance, design e shift – e interculturalidade. Para tanto, assumimos que você, nosso leitor, comunga de princípios semelhantes aos nossos para a compreensão de uma Educação Bi/Multilíngue que visa a formação de sujeitos críticos, comprometidos com a equidade social e dotados de sensibilidade intercultural. Para começar, vale lembrar que, embora o site da escola nos ajude a conhecer um pouco a identidade da instituição, ele é, na maioria das vezes, uma mídia que objetiva a divulgação da escola para as famílias. Dessa forma, é importante, como educadores, fazermos uso de outros instrumentos que nos permitam decifrar suas propostas. Sugerimos que essa ação investigativa centre-se em dois documentos escolares: o projeto político-pedagógico (doravante PPP) e o currículo. O PPP da escola deve contemplar, segundo Santiago (1995, p. 164), dois eixos básicos: “a intencionalidade política que articula a ação educativa a um projeto histórico definindo fins e objetivos para a educação escolar” e “o paradigma epistêmico-conceitual que, ao definir a concepção de conhecimento e a teoria de aprendizagem que orientarão as práticas pedagógicas, confere coerência interna à proposta, articulando prática e teoria”. Por meio do PPP, deve ser possível compreender, mesmo que teoricamente, se as 58 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores práticas pedagógicas desenvolvidas na escola se pautam em uma visão heteroglóssica de linguagem ou são compartimentalizadas e fragmentadas. Além disso, deve ser perceptível, entre outros pontos, qual visão de sujeito bi/multilíngue sustenta a proposta, se ela se baseia no ideal do falante nativo ou se se concentra na produção de um repertório linguístico bi/multilíngue. Na análise do currículo escolar, é importante o educador perceber se ele é integrado, o que evidencia uma visão de linguagem heteroglóssica, ou se há dois currículos: um na língua de nascimento dos estudantes e outro na língua adicional. Outro ponto que merece ser observado no currículo escolar é se há espaço para que o estudante utilize todo o seu repertório para a construção de conhecimento, ou seja, se os objetivos linguísticos contemplam objetivos de translinguagem também. Somando-se a isso, deve-se analisar se há objetivos claros e sistemáticos que progridem coerentemente de um ano ao outro no que tange à promoção de sensibilidade intercultural por parte dos estudantes. Nesse ponto, é preciso investigar a concepção de cultura em que a escola se apoia e também se o trabalho com cultura se restringe às características denominadas discretas, como alimentação, vestimentas e datas comemorativas de um povo que vive em determinado país. Por fim, é sempre interessante avaliar se há a possibilidade de conversar com professores que já atuam na instituição e de observar algumas aulas. Assim, será possível verificar qual a postura deles em relação ao multilinguismo de seus estudantes (stance), como planejam suas aulas (design) e como agem diante da translanguaging corriente de seus estudantes (shift), se de modo repressor, impondo uma ideologia monolíngue, ou de maneira a encorajar o emprego dos múltiplos recursos que constituem seus estudantes multilíngues para a construção de conhecimento. Apresentamos, nesta seção, algumas formas de conhecer melhor a proposta pedagógica de escolas bilíngues, uma vez que há um discurso convergente e padronizador para atrair novos estudantes que pode levar a acreditar que todas as escolas bilíngues apresentam proposta e funcionamento semelhantes. Enfatizamos também a importância de verificar quais princípios e concepções regem a ação educativa nessas escolas a fim de você se certificar se estão em consonância com suas crenças como educador. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 59 5. Construindo novas histórias A formação de sujeitos bi/multilíngues em uma perspectiva heteroglóssica, conforme discutido nas seções anteriores, perpassa diretamente pelas escolhas curriculares que se materializam em práticas pedagógicas que vão, ao longo do tempo, forjando representações (modos de representar), ações (modos de agir) e identidades (modos de ser) no mundo. Assim, a desestabilização da colonialidade do ser, do saber e do poder implica reconhecer a multidiscursividade e a heteroglossia em nossas práticas curriculares. De fato, se entendermos que o texto que constitui o currículo não é simplesmente um texto, mas sim um texto de poder que se configura como um “documento de identidade” (SILVA, 2010, p. 150), trabalhar com recursos que possibilitam um ensino culturalmente sensível se torna crucial para um currículo que pretenda formar sujeitos interculturalmente críticos. A perspectiva de culturally responsive teaching, ou ensino culturalmente responsivo, valoriza os recursos linguísticos e culturais dos estudantes e vê esse conhecimento como possibilidade para as conexões instrucionais a fim de facilitar o aprendizado e o desenvolvimento. Assim, professores que se utilizam dessa perspectiva usam recursos, estratégias e modos de interagir que dão suporte às experiências raciais, linguísticas e culturais dos estudantes (NIETO et al., 2008). Pensando nisso, realize as atividades sugeridas a seguir. Atividade 1 Analise as histórias listadas a seguir por meio dos read­alouds2 disponíveis no YouTube. Com base nos conceitos discutidos até aqui, como você entende o potencial formativo da utilização dessas histórias? Quais elementos poderiam ser mobilizados para que os estudantes revisitem e ampliem suas representações sobre o outro? 2 Todas as histórias mencionadas estão disponíveis no YouTube em vídeos de read­alouds, que se caracterizam pela leitura em voz alta da obra na íntegra. Aqui, sugerimos a leitura realizada pelos próprios autores como forma de trazer as diferentes variedades linguísticas da língua inglesa. 60 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Sulwe, Lupita Nyong’o, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vujb TOuzg2Q&t=254s. y The proudest blue, Ibtihaj Muhammad, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=0K4kiygDfyw. y Tough guys (have feelings too), Keith Negley, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=ke-eVrIs5HM. y The Name Jar, Yangsook Choi, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= uc16P3ZaDaY. y Mae among the stars, Roda Ahmed, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=3A8IiU62oV4. y Just ask!, Sonia Sotomayor, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=q4sGcaA6bFk y We are water protectors, Carole Lindstrom, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=2YHaRmj9wLU. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 61 Atividade 2 Liste práticas e estratégias que pertencem a uma sala de aula com uma orientação monolíngue e contraponha a aspectos e práticas que pertencem a uma sala de aula translíngue. Sala de aula tradicional Sala de aula translíngue Para conhecer mais práticas e estratégias, acesse o guia produzido pelos pesquisadores da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) que contém estratégias concretas para a experimentação de práticas translíngues em sala de aula. Disponível em: https://www.cuny-nysieb.org/ wp-content/uploads/2016/04/TranslanguagingGuide-March-2013.pdf. 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, objetivamos compreender que sujeitos pretendemos formar em uma Educação Bi/Multilíngue pautada pela ideologia heteroglóssica. Para tanto, apresentamos o caso de uma professora que precisa compreender a proposta pedagógica das escolas bilíngues de sua cidade. Perpassamos pelos referenciais teóricos que guiam nossa compreensão da perspectiva heteroglóssica, pelo conceito de repertório linguístico e pela translinguagem como ferramenta pedagógica. Discutimos os componentes de uma pedagogia translíngue (stance, design e shift) para, então, propormos a construção de novas histórias por meio da análise de uma proposta construída para Educação Infantil Bilíngue baseada no conceito de culturally responsive teaching e pela comparação de práticas pedagógicas entre uma orientação monolíngue e uma translíngue. A seguir, sugerimos um aprofundamento nas questões e conceitos aqui trabalhados. 62 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece o trabalho da pesquisadora Brigitta Busch que utilizamos como base neste capítulo? Busch é uma pesquisadora da Universidade de Viena que tem se dedicado à compreensão do multilinguismo de uma perspectiva heteroglóssica que focaliza o repertório linguístico dos sujeitos e suas práticas linguísticas. Suas pesquisas estão reunidas no site heteroglossia.net. Vale a pena conferir! Disponível em: http://heteroglossia.net/ Publications.35.0.html. Você conhece o trabalho desenvolvido pelos pesquisadores da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY)? Os pesquisadores e estudantes da CUNY fundaram a NYSIEB (Iniciativa do Estado de Nova York para Bilíngues Emergentes), com o objetivo de melhorar a educação de estudantes bilíngues emergentes em todo o estado de Nova York. Essa organização desenvolveu um site com muitos recursos para educadores, entre eles sugestões de livros culturalmente relevantes. Disponível em: https://www.cuny-nysieb.org/translanguaging-resources/ culturally-relevant-books-and-resources/. Referências bibliográficas BLACKLEDGE, A.; CREESE, A. Translanguaging and the body. International Journal of Multilingualism, v. 14, n. 3, p. 250-268, 2017. BLOMMAERT, J.; BACKUS, A. Superdiverse repertoires and the individual. In: SAINT-GEORGES, I.; WEBER, J.-J. (ed.). Multilingualism and multimodality: current challenges for educational studies. Rotterdam: Sense Publishers, 2013. BUSCH, B. Building on heteroglossia and heterogeneity: the experience of a multilingual classroom. In: BLACKLEDGE, A.; CREESE, A. Heteroglossia as practice and pedagogy. London: Springer, 2014. p. 21-40. Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 63 BUSCH, B. Language biographies: approaches to multilingualism in education and linguistic research. In: BUSCH, B.; JARDINE, A.; TJOUTUKU, A. Language biographies for multilingual learning. Cape Town: PREAESA, 2006. (PREAESA Occasional Papers, 24). BUSCH, B. Linguistic repertoire and Spracherleben, the lived experience of language. Working Papers in Urban Language & Literacies, paper 148, 2015. BUSCH, B. School language profiles: valorizing linguistic resources in heteroglossic situations in South Africa. Language and Education, v. 24, n. 4, p. 283-295, 2010. BUSCH, B. The linguistic repertoire revisited. Applied Linguistics, v. 33, n. 5, p. 503-523, 2012. CANAGARAJAH, S. 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Qual sujeito pretendemos formar por meio da Educação Bi/Multilíngue? 65 Capítulo 4 Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? “Educação Bi/Multilíngue intercultural se vale das duas línguas de instrução para o acesso a outras perspectivas que nos permitem conceber outras possibilidades de existência e, assim, analisar nossos posicionamentos e nossas atitudes a fim de problematizar as desigualdades e as opressões que estruturam nossa sociedade.” Capítulo 4 Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 1. Uma história para compartilhar Todo ano, a escola bilíngue privada Across Seas, localizada no interior do estado de São Paulo, promove uma festa que é muito popular na comunidade escolar e entre os próprios moradores da cidade: a Festa das Nações. Nessa celebração, mais de dez países são representados por comidas típicas e há danças com vestimentas características de diversos locais do mundo. As barracas preparadas pelos estudantes e seus professores, trajados a caráter, oferecem as mais diversas especialidades gastronômicas. A da Argentina serve alfajor e torta de limão; a da Espanha, paella e tapas diversos; a da Itália tem muito macarrão; e a da Alemanha, carne de porco, salsichas e batatas. Há algum tempo, a diretora da escola, dona Oneida, está incomodada, pois avalia que a festa, embora seja importante para a comunidade, não explora todo seu potencial em termos educativos. Ela entende a ênfase nas comidas, danças e vestimentas, mas considera que, ano após ano, o evento fica restrito a aspectos discretos das culturas envolvidas e, muitas vezes, tende aos estereótipos. Para resolver o incômodo, dona Oneida procura especialistas em Educação Bi/Multilíngue e cultura para que a assessorem no planejamento da Festa das Nações. Ela não deseja modificar totalmente o caráter da celebração, uma vez que a comunidade está bastante satisfeita e sempre espera ansiosamente pela data. Porém, Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 69 quer abordar a noção de cultura de outra perspectiva, para que a comunidade aprenda algo na e com a festa para além de elementos discretos da cultura dos países representados. Com base nesse caso, algumas questões podem ser levantadas: y Qual concepção de cultura se revela a partir da festa realizada pela escola? y Como esse evento pode ser repensado e replanejado para promover aprendizagens para além dos elementos discretos como alimentos, danças e trajes típicos? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Compreender o conceito de cultura de uma perspectiva discursiva. y Diferenciar as abordagens de multiculturalismo assimilacionista, diferencialista e intercultural. y Planejar atividades, projetos e sequências que tenham como objetivo desenvolver a sensibilidade intercultural. 3. Para entender melhor essa história Maher (2007) e Candau (2008) trazem reflexões importantes para compreendermos o conceito de cultura. Segundo Maher (2007), a crescente heterogeneidade das sociedades ocorre devido à intensificação das imigrações e das interações interétnicas e interculturais. Ao considerarmos esse cenário, já não nos é possível entender as culturas como monolíticas e estáticas nem continuar trabalhando com noções de identidades culturais mumificadas. Contudo, o que geralmente presenciamos nas escolas é essa concepção de cultura, que entende o currículo como espaço para apresentação, “de forma geralmente bastante fetichizada, de aspectos da cultura material dos alunos (expressões artísticas, preferências gastronômicas, etc.)” (MAHER, 2007, p. 83). 70 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Candau (2008) coaduna com Maher (2007) ao apontar que a cultura escolar dominante em nossas escolas ainda é construída fundamentalmente com base na matriz político-social e epistemológica da modernidade, priorizando o que é comum, uniforme e homogêneo como elementos constitutivos do universal. A argumentação das autoras nos leva a perceber que amostras episódicas de manifestações culturais já não são suficientes para garantir o respeito ao plurilinguismo cultural na escola (MAHER, 2007). Contudo, é essa concepção que tem fomentado a ideia de uma cultura nacional e que encontra espaço em nossos currículos. Sobre essa questão, Maher (2007, p. 10) aponta: Daí ser impossível falarmos em uma “cultura nacional”, pois, se a cultura não é uniforme, se ela é sempre alvo de disputas, quem falaria em nome de todos? O que seria tomado como padrão dessa totalidade que é heterogênea? E assim sendo, também, nada justifica considerar qualquer indivíduo emblema, encarnação de sua cultura. Partindo dessa crítica, Maher (2007) entende cultura como um sistema compartilhado de valores, de representações e de ação, que, portanto, orienta a forma como vemos e damos inteligibilidade às coisas que nos cercam e como agimos no mundo. A cultura é, assim, uma produção histórica, uma construção discursiva. É a cultura, segundo a autora, que nos permite entender a lógica por detrás de crenças e comportamentos. Logo, ela não é fixa, não é homogênea e não é compartilhada por todos. Para a autora, é esse dissenso no interior das culturas que nos permite entendê-las como uma multiplicidade de discursos sempre em interação e em disputa no âmbito de um sistema complexo de configurações que envolve a produção de políticas culturais. Nesse sentido, culturas são permeáveis e dinâmicas, ou seja, estão sempre em construção (MAHER, 2020). Portanto, a cultura nada mais é do que uma perspectiva, um certo modo de olhar o mundo e agir nele (BRUBAKER, 2002). Nessa mesma direção, Candau (2008) aponta que é necessário explicar o que se entende por multiculturalismo, já que a polissemia do termo nos leva aos inúmeros e diversificados entendimentos sobre o conceito. Para a autora, há duas abordagens fundamentais em relação ao multiculturalismo: a descritiva e a propositiva. Na abordagem descritiva, o multiculturalismo é uma característica Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 71 das sociedades atuais e, assim, nessa concepção, “a ênfase está na descrição e compreensão da construção da configuração multicultural de cada contexto em específico” (CANDAU, 2008, p. 20). Já a perspectiva propositiva “entende o multiculturalismo não como um dado da realidade, mas como um modo de atuar, de intervir, de transformar a realidade social” (CANDAU, 2008, p. 20). Diz a autora sobre a perspectiva propositiva: Trata-se de um projeto político-cultural, de um modo de se trabalhar as relações culturais numa determinada sociedade, de conceber políticas públicas na perspectiva da radicalização da democracia, assim como a de construir estratégias pedagógicas por essa perspectiva. (CANDAU, 2008, p. 20). Contudo, Candau (2008) ressalta que é necessário compreender as diferentes concepções no âmbito dessa perspectiva, que inspira diversas abordagens multiculturais. A autora enfatiza três dessas abordagens: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista (ou monoculturalismo plural) e o multiculturalismo interativo (ou interculturalidade). O multiculturalismo assimilacionista defende que todos podem ser integrados à sociedade e incorporados à cultura hegemônica. Assim, acaba por não ter como foco a transformação da sociedade, pois procura integrar os grupos marginalizados e discriminados à cultura dominante. A autora enfatiza que essa abordagem “procura integrar esses grupos aos valores, mentalidades e conhecimentos socialmente valorizados pela cultura hegemônica” (CANDAU, 2008, p. 21). Também reforça que, ao defender uma “cultura comum”, ou seja, a cultura hegemônica, essa perspectiva acaba deslegitimando valores, crenças, saberes e línguas dos grupos subordinados. O resultado é que a cultura “comum” permanece sendo a cultura hegemônica. Já o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural tem sua ênfase no reconhecimento da diferença. Essa abordagem entende que quando “se enfatiza a assimilação termina-se por negar a diferença ou por silenciá-la” (CANDAU, 2008, p. 21). Assim, propõe a necessidade de garantirmos espaços próprios e específicos para que os diversos grupos socioculturais possam expressar suas diferentes identidades culturais coletivamente e com liberdade. No entanto, segundo Candau (2008, p. 21), a questão com essa perspectiva é que “ela possui uma visão estática e essencialista das 72 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores identidades culturais”, porque, ao mesmo tempo que privilegia o acesso a direitos sociais e econômicos, acaba formando “apartheids culturais” (CANDAU, 2008, p. 21). Para Candau (2008), essas duas vertentes são as mais enfatizadas em nossa sociedade. Contudo, elas não compreendem a pluralidade e a diferença como valores centrais na formação do sujeito (MEGALE, 2022). Elas têm pouco sentido emancipatório (SANTOS; NUNES, 2003) e são, assim, de certa forma, apolíticas (CANDAU, 2008), pois distanciam-se de questões referentes às relações de poder e às desigualdades (MEGALE, 2022). Maher (2007) concorda que foi ao ignorar as questões de poder imbricadas nas diferenças culturais que essas visões de multiculturalismo banalizaram o termo, o que resultou no fato de as diferenças culturais se tornarem trivializadas. Para a autora, essa trivialização resultou na celebração apenas daquilo que está na superfície das culturas (comidas, danças, música), sem conectá-las com a vida real das pessoas e de suas lutas políticas. Assim orientadas, as escolas se apressam em promover verdadeiros “safáris culturais”, nos quais as culturas aparecem engessadas e o diferente é exoticizado. (MAHER, 2007, p. 16). A terceira perspectiva defendida por Candau (2008) é a do multiculturalismo interativo ou interculturalidade. Apoiadas na autora, defendemos a interculturalidade por considerá-la “mais adequada para a construção de sociedades mais democráticas, inclusivas, que articulem políticas de igualdade com políticas de identidade” (CANDAU, 2008, p. 22). Maher (2007) explica que essa perspectiva reconhece o caráter dinâmico, híbrido, não consensual e não hierarquizável das culturas, trazendo para o centro do debate as diferenças. Essa autora aponta que a epistemologia dessa visão está assentada nas premissas de que a realidade é uma construção, as interpretações são subjetivas e construídas discursivamente, os valores são relativos e o conhecimento é um fato político. Candau (2008) aponta algumas características inerentes a essa perspectiva. Para a autora, essa visão é configurada pela promoção deliberada da inter-relação entre diferentes sujeitos e grupos socioculturais presentes em determinada sociedade. Além disso, ela tem potencial para colaborar para o rompimento de visões Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 73 essencialistas das culturas e das identidades culturais, entendendo a cultura como discurso, como não estática, como processo de construção, desestabilização e reconstrução e permeada por relações de poder. A perspectiva intercultural entende que a cultura também é marcada pelo preconceito e pela discriminação de determinados grupos socioculturais e que o diálogo entre diversos saberes e conhecimentos deve ser privilegiado. Assim, considera a existência de diferentes saberes e conhecimentos, além de se opor às tentativas de hierarquizá-los. Portanto, a perspectiva intercultural, para a autora, não desvincula as questões da diferença e da desigualdade de modo particularmente conflitivo, mas assume as tensões e os conflitos que emergem desse debate. Candau (2008), apoiada em Santos (1995) e Stoer e Cortesão (1999), defende a necessidade de desvendarmos o daltonismo cultural presente no cotidiano escolar. Santos (1995) salienta que o mundo é um arco-íris de culturas. Stoer e Cortesão (1999) se baseiam nessa analogia para enfatizar a importância e a necessidade de desvelar o daltonismo cultural: ao não reconhecer todas as cores desse arco-íris, ou seja, ao não reconhecer as diferenças étnicas, de gênero, de diversas origens regionais, entre outras, esse daltonismo acaba por favorecer o caráter monocultural da escola. Candau (2008) reflete sobre os impactos do não desvelamento do daltonismo cultural para a prática pedagógica: excessiva distância das experiências socioculturais do estudante em relação às oferecidas pela escola, baixa autoestima, evasão, altos índices de fracasso escolar e aumento do mal-estar e desconforto no ambiente escolar. A autora acredita, portanto, que ter presente o arco-íris cultural na escola exige um processo de desconstrução de práticas enraizadas e naturalizadas no trabalho docente. Para Maher (2007), um bom começo para trabalhar a diferença é o exame da própria cultura. Segundo a autora: Quando o aluno toma consciência de que a nação brasileira é produto de relações interculturais, quando ele se vê confrontado com a mutabilidade, a hibridez, a não univocidade de sua própria matriz cultural, é mais fácil ele perceber que está operando com representações sobre o outro. E que as representações que faz das culturas e dos falares minoritários não são nunca verdades objetivas ou neutras, mas, sim, construções discursivas. (MAHER, 2007, p. 10). 74 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Para Moreira e Candau (2008), essa perspectiva envolve um posicionamento claro a favor da luta contra a opressão e discriminação a que certos grupos minoritários têm, historicamente, sido submetidos por grupos mais poderosos e privilegiados. Isso significa, segundo os autores, aceitar: “a) a inter-relação entre os diferentes grupos sociais, b) a permanente renovação da cultura, c) o processo de hibridização das culturas e d) a vinculação entre questões de diferença e de desigualdade” (MOREIRA; CANDAU, 2008, p. 8). Assim, Candau (2008) propõe quatro elementos que têm potencial, se articulados, de promover a construção de práticas pedagógicas que tenham a interculturalidade como eixo organizador: i) o reconhecimento de nossas identidades culturais; ii) o desvendamento do daltonismo cultural presente no cotidiano escolar; iii) a identificação de nossas representações dos “outros”; e iv) a compreensão da prática pedagógica como um processo de negociação cultural. A Educação Bi/Multilíngue intercultural defendida neste capítulo não trata, portanto, a interculturalidade simplesmente como um contato com outras culturas. De outra feita, a Educação Bi/Multilíngue intercultural se vale das duas línguas de instrução para o acesso a outras perspectivas que nos permitem conceber outras possibilidades de existência e, assim, analisar nossos posicionamentos e nossas atitudes a fim de problematizar as desigualdades e as opressões que estruturam nossa sociedade. 4. Retomando a história A Festa das Nações proposta pela escola bilíngue Across Seas revela uma concepção de cultura monolítica e estática que representa cada país de maneira bastante fetichizada como um todo homogêneo e com base em elementos discretos da cultura, como alimentação, danças, vestuário e músicas típicas. A perspectiva de multiculturalismo adotada é descritiva, ou seja, conforme explicitado na seção anterior, enfatiza como ponto central a descrição da configuração multicultural do Brasil. Como esse evento pode ser repensado para promover aprendizagens para além de elementos discretos da cultura provavelmente já conhecidos pelos estudantes? Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 75 O primeiro passo é uma discussão ampla com a comunidade escolar sobre o conceito de cultura. Como estudantes e educadores compreendem o que é cultura? Em seguida, é necessário discutir os objetivos pedagógicos do evento e decidir com a comunidade escolar as aprendizagens desejadas e quais são os impactos dessas aprendizagens na realidade da escola e da comunidade. A partir dessa delimitação, uma possibilidade é formar um grupo de trabalho que pode ser formado por educadores, estudantes e famílias para a elaboração de um plano de trabalho. Feito o planejamento, os estudantes devem ser envolvidos na produção do evento. Também pode ser interessante a participação de sujeitos que pertencem às nações que serão representadas na festa em rodas de conversa com os estudantes e educadores, gerando contato e aprendizagens com outros discursos e perspectivas. Outro ponto que pode enriquecer o planejamento da festa é a definição de um aspecto que permita aprofundamento e seja a linha condutora do evento. Esse aspecto deve fazer com que a comunidade escolar aprenda sobre outras realidades e, com isso, reexamine a sua. Também é possível inserir na festa países e/ou regiões não hegemônicos que dificilmente se veem representados nessas comemorações. O mais importante é promover aprendizagens que permitam a toda a comunidade escolar ampliar suas possibilidades de atuação na sociedade. Para isso, todos precisam estar envolvidos não só no planejamento e na realização da festa, mas também em reflexões promovidas após sua realização. 5. Construindo novas histórias Algumas propostas em contexto brasileiro têm tentado desenvolver a sensibilidade cultural em escolas bi/multilíngues pela perspectiva de interculturalidade que discutimos neste capítulo. Megale (2022, p. 71), por exemplo, apresenta uma possibilidade de proposta pela perspectiva intercultural, por meio de algumas perguntas organizadoras: 1. Como as múltiplas realidades e identidades de meu grupo de estudantes foram consideradas para o desenvolvimento da proposta? 2. Como a temática que se deseja discutir foi problematizada a partir de duas ou mais perspectivas? 76 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 3. Como vozes e discursos de comunidades não hegemônicas foram contemplados em minha proposta? 4. Quais recursos de circulação social real foram utilizados para que os estudantes tenham contato com essas diferentes vozes? 5. Ao longo de minha proposta, quais são as representações do Outro que tenho a intenção de discutir, desestabilizar e ampliar? 6. Como a proposta se relaciona com as problemáticas enfrentadas pelos estudantes em seus próprios territórios? 7. Como a discussão proposta pode transformar o agir da comunidade escolar em relação à problemática discutida? El Kadri, Saviolli e Molinari (2002), por sua vez, apresentam possibilidades de trabalho com a interculturalidade na Educação Infantil por meio de unidades didáticas da coleção Global Kids (EL KADRI; SAVIOLLI, 2022). As autoras exemplificam discursos e narrativas empoderadoras sobre as identidades femininas e masculinas organizadas pelas histórias Tough guys have feelings too, de Keith Negley, e Mae among the stars, de Roda Ahmed. Por meio do referencial de interculturalidade crítica que discutimos na seção anterior, elas abordam a importância da inclusão dessas narrativas no currículo da Educação Infantil Bi/Multilíngue de línguas de prestígio na busca pela promoção de uma educação decolonial e intercultural com potencial de promover o acesso a outras narrativas e outros discursos para a formação de sujeitos agentivos, responsivos e mais solidários (MEGALE; EL KADRI; SAVIOLLI, no prelo). Na mesma direção, Megale, El Kadri e Saviolli (no prelo), amparadas no conceito de inédito viável (FREIRE, 1987; 1992) e na noção de interculturalidade, analisam as atividades temáticas do material Global Kids focando as obras The name jar, de Yangsook Choi, e The proudest blue, de Ibtihaj Muhammad. Nessa pesquisa, as autoras demonstram como o trabalho por meio de histórias e atividades que apresentam narrativas e discursos de chineses e muçulmanos em processos de negociação de suas identidades culturais torna possível incluir discursos identitários transformadores e novos modos de ser e agir geralmente não contemplados em Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 77 materiais destinados às escolas bilíngues (MEGALE; EL KADRI; SAVIOLLI, no prelo). Do mesmo modo, mas com foco na inserção de discursos antirracistas, El Kadri, Santos e Saviolli (2022) também analisam unidades temáticas do Global Kids. As autoras, utilizando os exemplos de algumas atividades inspiradas nas temáticas das obras Sulwe, de Lupita Nyong’o, e Lara’s Black Dolls, de Aparecida Jesus Ferreira, demonstram que, partindo da intencionalidade na escolha de histórias que representam positivamente protagonistas negras e de um trabalho baseado no letramento racial crítico e na interculturalidade crítica, é possível promover uma Educação Bi/Multilíngue pautada em práticas que quebrem discursos e ideologias racistas desde a Educação Infantil. Esses quatro trabalhos, entre outros, exemplificam modos de promover práticas interculturais na escola. A seguir, propomos outras possibilidades. Atividade 1 As escolas públicas de São Paulo têm recebido cada vez mais imigrantes. Estima-se que, de cada dez estudantes matriculados, dois são migrantes. Leia a seguir um trecho da reportagem do jornal Folha de S.Paulo sobre o tema. É cada vez mais comum ouvir palavras em espanhol, francês e árabe em meio à agitação nos corredores das escolas públicas de São Paulo. Nos colégios da prefeitura, por exemplo, os estrangeiros dobraram nos últimos cinco anos e já são 4.747. Somando-se aos estudantes de unidades estaduais, eles já ultrapassam 10 mil na cidade. São alunos oriundos de mais de 80 países e que desembarcaram na cidade por questões que vão desde a falta de oportunidades à perseguição política e guerras. Metade dos estrangeiros são bolivianos. Haitianos e angolanos estão entre as nacionalidades que mais crescem. Agora, as escolas em bairros nos quais vivem essas comunidades tentam se adaptar a essas realidades, muitas vezes em 78 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores iniciativas dos professores e até dos alunos. Na escola de ensino fundamental Infante Dom Henrique, no Canindé, na zona norte, dois em cada dez estudantes são estrangeiros. O diretor Cláudio Marques Neto, 49, diz ter encontrado uma escola mergulhada em violência e intolerância quando chegou, em 2011. Os brasileiros cobravam até pedágio de colegas de outros países, sob ameaça de agressão.1 Com base na discussão que tecemos neste capítulo, imagine quais ações pedagógicas seriam possíveis com vistas à promoção de um diálogo intercultural para integrar esses estudantes imigrantes no cotidiano da escola. Atividade 2 Selecione o planejamento de uma atividade, sequência ou projeto que você elaborou, relacionado a qualquer componente curricular. Analise esse planejamento com base nas questões propostas por Megale (2022) apresentadas na seção anterior. Depois, reflita sobre os aspectos presentes e as lacunas existentes em seu trabalho. Por fim, reelabore o planejamento a fim de inserir os aspectos levantados pelas questões propostas. 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, objetivamos discutir, por meio da história que compartilhamos, o conceito de cultura e as abordagens de multiculturalismo assimilacionista, diferencialista e intercultural com o intuito de pensarmos como promover práticas interculturais na escola. Apresentamos alguns exemplos de como temos tentado valorizar a perspectiva intercultural em contexto bi/multilíngue e propusemos o planejamento de atividades que tenham o objetivo de desenvolver a sensibilidade intercultural. A seguir, sugerimos um aprofundamento no tema. 1 RODRIGUES, A. ‘Onda estrangeira’ força adaptação de escolas da rede municipal de SP. Folha de S.Paulo, 16 ago. 2017. Como promover práticas interculturais na Educação Bi/Multilíngue? 79 7. Sugestões de aprofundamento Você quer saber mais sobre a relação entre interculturalidade e ensino crítico de línguas? Assista à aula magna “Interculturalidade e o ensino crítico de línguas e de suas literaturas”, ministrada pela professora doutora Terezinha de Jesus Maher, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=aEoaRorAPCQ. Vamos conhecer mais sobre as possibilidades de um trabalho multicultural na escola? O livro Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagó­ gicas, com organização de Antonio Flavio Moreira e Vera Candau (Petrópolis: Vozes, 2008), aborda princípios centrais sobre a temática a fim de discutir as possibilidades de um trabalho intercultural nas escolas. Referências bibliográficas BRUBAKER, R. Ethnicity without groups. European Journal of Sociology/Archives Européennes de Sociologie, v. 43, n. 2, 2002, p. 163-189. CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. (org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13-37. EL KADRI, M. S.; SAVIOLLI, V. B. Global Kids: portfólio bilíngue. Campinas: Pontes Editores, 2022. EL KADRI, M. S.; SAVIOLLI, V. B.; MOLINARI, A. “Tough guys have feelings too” e “Mae among the stars”: recriando identidades de gênero na Educação Infantil Bi/Multilíngue por meio de um material didático para a escola bilíngue pública. In: EL KADRI, 80 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores M. S.; SAVIOLLI, V. B; MOLINARI, A. (org.). Educação de pro­ fessores para o contexto bi/multilíngue: perspectivas e práticas. Campinas: Pontes Editores, 2022. p. 155-178. EL KADRI, M. S.; SAVIOLLI, V. B.; SANTOS, C. G. Rumo a uma educação antirracista na Educação Bilíngue: a proposta do “Global Kids”. Entretextos, v.21, n.1, 2021. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da esperança: um reencontro com pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. MAHER, T. J. M. 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(Trans)Formando saberes na Educação de professores Capítulo 5 Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? “O ensino bi/multilíngue tem sempre um duplo foco: o ensino da língua e a construção de conhecimentos de mundo. Desse modo, compreendemos que as práticas desenvolvidas com os estudantes nos diversos componentes curriculares devem ocorrer respeitando as diferentes práticas sociais de uso da linguagem.” Capítulo 5 Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 1. Uma história para compartilhar Uma das preocupações de educadores atuantes em contextos de escolas bi/multilíngues está relacionada à questão da produção oral e escrita dos estudantes. Muitos sentem que eles compreendem bastante, mas falam pouco. Nesse sentido, pesquisadores da área apontam que, no Brasil, as escolas bilíngues, em sua grande maioria, têm formado falantes e produtores de textos bilíngues passivos, isto é, que compreendem a língua muito bem, mas com pouca produção oral e/ou escrita na língua adicional, ou seja, com poucas habilidades para interagir nessa língua (MARCELINO, 2021; MARCELINO; WEISSHEIMER, 2021; EL KADRI, 2022). Uma das razões para essa questão pode estar associada às práticas curriculares das escolas e ao modo como o ensino de línguas ou em língua adicional tem sido concebido. De fato, durante um curso de formação de professores em uma escola bilíngue, em uma discussão sobre a concepção de língua sugerida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018), uma participante fez o seguinte relato: Esses documentos, como a BNCC, por exemplo, falam tanto de língua como prática social, mas, na prática, não muda nada. Seja em contexto de ensino de língua portuguesa ou língua inglesa como língua de nascimento ou como língua estrangeira ou ainda em contexto bilíngue, ensinar língua é ensinar língua: partimos da gramática, pela ordem correta – verbo to be, present continuous, simple present, simple past – e é isso! Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 85 Outra acrescentou: E o conteúdo é sempre a língua, a gramática e o vocabulário. Não tem outro jeito de fazer! Em seguida, um professor complementou: Isso que a BNCC fala sobre linguagem como prática social é relacionada somente ao ensino de língua... Não tem nada a ver com o contexto bi/multilíngue que foca o ensino em uma língua de instrução. A discussão continuou e outro participante salientou: O fato é que os alunos compreendem muito bem, mas, na maioria das escolas, não falam e não escrevem na língua de instrução que não é o português. Esse episódio nos chamou a atenção porque as preocupações desses educadores são pertinentes e nos revelam a necessidade de pensarmos sobre a seguinte questão: “Que práticas pedagógicas podemos promover para levar o estudante a produções orais e escritas consistentes por meio da língua adicional?”. Com base nesse relato, algumas questões podem ser levantadas: y Como a linguagem como prática social pode ser materializada em propostas didáticas para a sala de aula? y Quais seriam os efeitos/implicações para um estudante em contexto bi/multilíngue que vivenciasse um currículo pautado em práticas sociais? y Como a proposta de sequências didáticas pautadas na linguagem como prática social pode contribuir para currículos integrados nos contextos bi/multilíngues? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y 86 Compreender a concepção de linguagem como prática social e sua importância para o contexto bi/multilíngue. Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Apropriar-se de conceitos que auxiliem na elaboração de sequências didáticas para o contexto bi/multilíngue. y Analisar e criar sequências didáticas como ferramentas que possibilitem a integração curricular em escolas bi/multilíngues. 3. Para entender melhor essa história A BNCC assume uma perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, ou seja, a linguagem, como defendida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) é concebida como “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história” (BRASIL, 1998, p. 20). Essa proposta assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e o relaciona a seus contextos de produção. Desse modo, o ensino da língua deve ocorrer observando seu funcionamento, considerando as diferentes práticas sociais de uso, uma vez que é na trama de relações sociais que novos sentidos são negociados e propostos em contextos que nunca se repetem. O texto é, portanto, considerado “a partir de seu pertencimento a um gênero discursivo que circula em diferentes esferas/campos sociais de atividade/comunicação/uso da linguagem” (BRASIL, 2018, p. 67). O gênero é definido por Bakhtin (2003, p. 262) como “tipos relativamente estáveis de enunciado” gerados nas esferas de atividade humana. Bronckart (2006), por sua vez, explica que o gênero é uma ação de linguagem realizada em modelos pré-construídos legados pelas gerações anteriores e materializada em textos. Tanto os gêneros orais como os escritos possuem estruturas e contextos de uso específicos. Eles são caracterizados por três elementos: conteúdo temático, construção composicional e estilo. Isso significa que eles, embora tenham certa estabilidade: i) explicitam o que é dizível, e o que deve ser dito indica a escolha do gênero (conteúdo temático); ii) apresentam uma estrutura própria e marcam um tipo de relação com outros participantes da interação (construção composicional); e iii) são marcados por escolhas linguísticas específicas que são feitas para a realização da vontade enunciativa (estilo) (SCHNEUWLY, 2004). Assim, fica a cargo do professor ensinar aos estudantes a diferenciar os gêneros e a agir no mundo por meio do uso de textos que pertencem a cada um deles. Nessa perspectiva de ensino, é necessário Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 87 fornecer-lhes possibilidades de manipulação das ferramentas necessárias para que se apropriem dos gêneros a fim de participar de modo cada vez mais legítimo de práticas sociais diversificadas. Por esse motivo, o ensino de línguas por meio de sequências didáticas assume a responsabilidade de desenvolver as diversas capacidades de linguagem para que os estudantes atuem em situações de interação específicas. As capacidades de linguagem, segundo Dolz, Pasquier e Bronckart (1993), são as aptidões requeridas dos aprendizes para a produção de um gênero em determinada situação de interação. Elas podem ser subdivididas em três níveis: i) capacidades de ação, relativas à adaptação das características do contexto e do referente; ii) capacidades discursivas, relacionadas à mobilização de modelos discursivos; e iii) capacidades linguístico-discursivas, associadas ao domínio das operações psicolinguísticas e das unidades linguísticas. De acordo com Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 96), “uma sequência didática é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. Essa organização, segundo os autores, ocorre nas seguintes etapas: apresentação da situação, produção inicial, módulos de aprendizagens e produção final (quadro 1). Quadro 1 ESQUEMA DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO Produção inicial Módulo 1 Módulo 2 Módulo n Produção final Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97). A apresentação da situação se refere à tarefa de construção de uma representação da situação de interação e da atividade de linguagem a ser executada. Nessa parte do processo, o estudante se depara com um exemplo completo do gênero a ser estudado, que também será reproduzido ao final da sequência – produção final. Esse mesmo exemplo tem o papel de auxiliá-lo até o momento da produção final, além de ajudá-lo a moldar o trajeto a ser seguido ao longo dos módulos. 88 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores A produção inicial é o diagnóstico, pelo educador, do conhecimento dos estudantes acerca do gênero. Seu propósito é mapear as capacidades de linguagem que dominam ou não do gênero específico. O restante da sequência didática será planejado utilizando as informações obtidas na produção inicial de cada educando. Isso significa que suas potencialidades também serão evidenciadas, auxiliando o professor a obter um panorama mais completo sobre o conhecimento do grupo acerca do gênero. Nos módulos de aprendizagens, as dificuldades que apareceram na produção inicial são trabalhadas com o objetivo de construir com os estudantes os conhecimentos necessários para superá-las. A produção dos módulos é feita de maneira decomposta. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 103) levantaram algumas questões que auxiliam no planejamento desses módulos: 1. Quais dificuldades da expressão oral ou escrita precisam ser abordadas? 2. Como construir um módulo para trabalhar com uma dificuldade em particular? 3. Como mobilizar as capacidades de linguagem que precisam ser desenvolvidas? Os autores explicam que a formulação de módulos para tratar dificuldades específicas deve ser feita por meio de atividades variadas. Alternar os modos de trabalho ao longo dos módulos contribui para as aprendizagens e permite que o estudante tenha acesso a possibilidades diferentes, ou seja, o mune com recursos para realizar seu trabalho. Eles dividem o conjunto de atividades diversificadas em três categorias (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004): y Atividades de observação e de análise de textos do gênero em foco, que têm como objetivo evidenciar aspectos específicos do funcionamento do texto e são indispensáveis para que o estudante se aproprie do gênero a fim de utilizá-lo em interações diversas. y As tarefas simplificadas de produção de textos são exercícios que têm como foco aspectos específicos para a elaboração de textos. Algumas tarefas são: reorganizar o conteúdo de uma narrativa para um texto explicativo, revisar um texto utilizando critérios predefinidos, elaborar refutações encadeadas ou com base em uma resposta dada etc. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 89 y A elaboração de uma linguagem comum para manusear, comentar e/ou apreciar os próprios textos e os de colegas. Esse tipo de trabalho deve ser feito ao longo de toda a sequência didática, incluindo os momentos de criação dos critérios para a produção do material oral ou escrito. A produção final é o processo final da sequência didática. Nessa etapa, o estudante deve utilizar todo o conhecimento que construiu ao longo dos módulos para a produção do gênero trabalhado. A produção final é avaliativa e, por esse motivo, os critérios que conceituarão esse processo têm de ser definidos ao longo da sequência com a participação do grupo. Nesta seção, nosso objetivo foi o de apresentar uma possibilidade, a sequência didática, para um trabalho que considera a linguagem como prática social. Isso significa que o ensino bi/multilíngue tem sempre um duplo foco: o ensino da língua e a construção de conhecimentos de mundo. Desse modo, compreendemos que as práticas desenvolvidas com os estudantes nos diversos componentes curriculares devem ocorrer respeitando as diferentes práticas sociais de uso da linguagem. 4. Retomando a história Volte agora para nossa história inicial, na tentativa de compreender como os questionamentos e as preocupações dos professores se vinculam ao que discutimos na seção anterior. No episódio que descrevemos, os relatos dos participantes do curso levantam questões referentes à concepção de linguagem. As duas primeiras professoras evidenciam uma concepção de linguagem como estrutura, isto é, uma crença de que, para aprendermos uma língua, precisamos saber exclusivamente seus aspectos linguísticos, sobretudo as categorias gramaticais e o funcionamento de estruturas sintáticas. Essa concepção embasa práticas pedagógicas centradas na unicidade da língua e na qual se enfatiza principalmente uma abordagem puramente gramatical, destinada a dotar os alunos de uma consciência explícita das principais categorias e estruturas do sistema da língua, pensando-se que, com essa base, os alunos desenvolveriam, posteriormente, uma maestria textual, tanto em relação aos aspectos de produção quanto aos de compreensão-interpretação. (BRONCKART, 2003, p. 84). 90 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Isso significa que, provavelmente, as atividades em sala de aula são mais estruturais, focadas na gramática ou no léxico com a finalidade de que o estudante saiba as regras da língua, mas carentes de oportunidades de uso dessa língua que evidenciem a compreensão da linguagem como prática social. Práticas embasadas em uma concepção estrutural geralmente não se centram no estudo das regularidades textuais, das regras sociais de como os textos são produzidos e interpretados, na reflexão sobre para que servem e o que as pessoas fazem com eles no cotidiano das práticas sociais (GONÇALVES; SAITO; NASCIMENTO, 2010). A crença nessa concepção de língua e a vinculação a ela podem ser um dos motivos pelos quais os professores da história que contamos sentem que estudantes “produzem pouco” na língua adicional. Se o foco curricular das práticas escolares recai exclusivamente sobre as regras dessa língua, muito provavelmente eles saberão as regras, mas desenvolverão poucas habilidades comunicativas de uso dessa língua. A questão que se coloca, portanto, é: “Que práticas pedagógicas podemos promover para levar o educando a produções orais e escritas consistentes por meio da língua adicional?”. A nosso ver, é preciso conceber a linguagem como prática social, conforme delineamos na seção anterior. Acreditamos que essa concepção de linguagem materializada em gêneros e com o trabalho por meio de sequências didáticas tem potencial para criar situações de produção significativas nas práticas escolares de contextos bi/multilíngues. Isso porque, ao propiciarmos no currículo oportunidades para que os estudantes se engajem em atividades sociais reais de uso da linguagem e tenham de experimentar, participar e, efetivamente, agir por meio da linguagem, criamos condições para que eles empreguem a língua para atuar no mundo (EL KADRI, 2022), já que o trabalho com os gêneros discursivos, com base em uma concepção de linguagem sociointeracional, permite a elaboração de sequências que desenvolvem capacidades de linguagem para atuação nas mais diversas práticas sociais. Assim, o professor, por meio dos módulos da sequência didática, vai trabalhando de maneira a desenvolver as capacidades linguísticas necessárias daquele gênero discursivo, com o intuito de que o estudante consiga, na produção final, demonstrar a aprendizagem dessas capacidades em uma produção apropriada. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 91 Essa concepção ainda não tem regido materiais e práticas no ensino de línguas nem no ensino bi/multilíngue que se utiliza da língua como meio de instrução. Assim, por essa perspectiva, o conteúdo relativo à linguagem passa a ser o gênero discursivo e, consequentemente, as capacidades de linguagem necessárias para o domínio desse gênero. Nessa direção, podemos, no contexto de educação bi/multilíngue, propor práticas por meio de sequências didáticas que possam ser uma alternativa para a criação de currículos integrados, a fim de propiciar a nossos estudantes possibilidades de agir utilizando a linguagem nas diferentes áreas disciplinares. No ensino de ciências ministrado em língua adicional, por exemplo, é possível trabalhar com diversos tipos de relatórios ao estudar fotossíntese; em Language Arts, pode-se fazer um tutorial ao trabalhar com advérbios de ordem. Em suma, os relatos de professores evidenciaram a necessidade de refletirmos sobre a concepção de linguagem como prática social como um dos desafios a serem enfrentados nesse contexto. Isso porque, para o contexto bi/multilíngue que tem como foco o desenvolvimento de habilidades acadêmicas em duas ou mais línguas de instrução e objetiva forjar novos modos de agir e de ser no mundo, construir sequências didáticas com foco na concepção de linguagem como prática social tem potencial para contribuir significativamente para o desenvolvimento de uso da linguagem atrelado aos diferentes conteúdos disciplinares, fazendo com que os estudantes de fato utilizem a língua para agir em determinada situação. Por meio da proposta de sequência didática delineada na seção anterior, é possível realizar um trabalho mais voltado para o uso da linguagem nas diferentes práticas sociais. 5. Construindo novas histórias Conceber a linguagem como prática social está associado à noção de languaging, entendida como um processo contínuo de nos tornarmos quem somos por meio das práticas sociais, conforme interagimos e criamos significados no mundo (GARCÍA; WEI, 2014). Essa visão enfatiza a agência dos falantes no processo de criação de significados. Por essa concepção, os estudantes precisam interagir por meio da linguagem e, desse modo, atuar na sociedade. 92 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Defendemos a ideia de que o uso de sequências didáticas para o estudante em contexto bi/multilíngue lhe possibilita vivenciar um currículo pautado em práticas sociais, o que tem potencial para torná-lo um falante bi/multilíngue dotado das habilidades e competências necessárias para utilizar a linguagem em situações específicas, pois já teria vivenciado a situação que exige o gênero e desenvolvido as capacidades linguísticas necessárias para essa atuação. Pensando nisso, realize as atividades a seguir. Atividade 1 Analise o planejamento de uma sequência didática para o gênero relato de experiência de viagem apresentado a seguir. Essa sequência foi elaborada para estudantes do 3o ano do Ensino Fundamental. Apresentação da situação O professor relembra ao grupo que farão uma viagem de estudo do meio cujas experiências deverão ser relatadas no site da escola. O gênero relato de experiência é o adequado para essa situação. Em seguida, o professor faz o relato de uma viagem sua. Com apoio de fotos e objetos, conta aos estudantes sua experiência, descreve as pessoas que estavam com ele, menciona os lugares que visitou, revela as atividades que fez etc. Produção inicial Os estudantes são convidados a relatar experiências de viagem. Nesse momento, é esperado que as crianças produzam relatos tanto na língua adicional como na língua de nascimento. Essas produções oferecem informações para que o professor possa planejar os módulos de maneira a potencializar a participação delas em relatos de experiência na língua adicional. É importante refletir sobre quais conhecimentos para a produção do gênero elas já construíram e quais dificuldades apresentaram ao longo da produção inicial e precisam ser trabalhadas ao longo da sequência. Módulos Os módulos serão delimitados com base na produção inicial dos estudantes. Apresentamos aqui apenas algumas possibilidades de trabalho. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 93 Módulo 1 Os estudantes visitam a praça próxima à escola. Para essa visita, há preparação prévia, são feitos combinados sobre o deslocamento e sobre as atividades que farão no local: brincar e tomar lanche. Após a experiência, constroem um relato coletivo e o professor atua como escriba, registrando o relato na lousa. Por meio de perguntas do professor, contam o que fizeram na praça, o que viram, do que brincaram, como foi tomar lanche em um ambiente diferente etc. Esses relatos coletivos podem ser realizados algumas vezes, sobre diferentes experiências que as crianças vivem coletivamente na escola, sempre fazendo intervenções acerca de características do gênero: contexto de uso, layout e aspectos linguísticos, tais como uso da primeira pessoa (singular ou plural), verbos no passado, encadeamento dos acontecimentos e advérbios de tempo passado, entre outros. O professor pode elaborar com o grupo uma lista de palavras-chave para a construção dos relatos. Essa lista fica exposta no mural da sala e é complementada a cada relato feito. No módulo 1, é importante trabalhar com a situação de uso do referido gênero em torno de perguntas como: “Onde utilizamos esse gênero?”; “Com qual intuito?”; “Para quem o relato é escrito?”; “Quem escreve?”; “Quando escreve?”. Essas perguntas devem ser exploradas também em atividades variadas que levem os estudantes a perceber o contexto de uso do gênero. Módulo 2 Os estudantes entram em contato com diferentes relatos de experiência por meio de vídeos e visitas de outros professores e colegas à turma para contar suas experiências. Com base nesses relatos, o professor faz intervenções para destacar principalmente aspectos do layout do gênero relato de experiência. Aqui, o importante é que os estudantes façam atividades variadas que lhes permitam desenvolver conhecimento sobre como o gênero é organizado, ou seja, como é sua estrutura. Para tanto, o professor pode analisar com eles vários textos orais e escritos e compará-los com textos de outros gêneros, pedir-lhes que expliquem por que determinado texto é do gênero relato de experiência ou não, que decomponham a estrutura do gênero e propor a eles atividades de reconstrução. A lista elaborada no módulo 1 deve ser complementada com novos elementos trazidos dos relatos ouvidos pelos estudantes. 94 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Módulo 3 Os estudantes trabalham elementos linguísticos – verbos no passado e advérbios de tempo – recorrentes em relatos de experiência por meio de jogos – mímicas, jogos de adivinhação etc. – e registros individuais de pequenas passagens sobre eventos ocorridos no dia anterior, por exemplo. Esse trabalho deve ser desenvolvido com atividades variadas que objetivem o desenvolvimento das habilidades linguísticas do gênero. Produção final Os estudantes, em pequenos grupos, participam de rodas nas quais são convidados a contar experiências de viagem individuais. Para essa atividade, podem trazer fotos que ilustrem seus relatos. Em seguida, cada um registra sua experiência por escrito. O professor faz uma apreciação sobre cada registro indicando usos inadequados da língua, da estrutura ou, ainda, do contexto da situação, possibilitando que os estudantes revisem suas produções. Essa revisão pode ser feita por meio de uma lista de critérios com as características do gênero, auxiliando-os a compreender o que ainda falta ser desenvolvido. Por fim, eles elaboram a versão final e produzem ilustrações para compor o livro de viagens da turma. A cada semana, um estudante leva o livro para casa para ler com a família e conhecer mais sobre as experiências de viagem dos colegas. Os conhecimentos construídos aqui serão retomados após a viagem de estudo do meio para elaboração de um relato no site da escola, como descrito na apresentação da situação. Reflita sobre os conhecimentos construídos ao longo da sequência. Quais foram as capacidades discursivas, linguístico-discursivas e de ação trabalhadas com os estudantes? Atividade 2 Construa o planejamento de uma sequência didática (conforme a atividade anterior) à luz do procedimento apresentado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Para tanto, decida por um gênero relevante para seus estudantes de acordo com a faixa etária, o conhecimento linguístico-discursivo que eles já construíram e seus interesses e necessidades. Após a elaboração da sequência didática, responda ao checklist a seguir e reflita sobre sua proposta. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 95 y Quais são as capacidades discursivas, linguístico-discursivas e de ação contempladas na sequência? y A proposta para produção inicial possibilita a localização de saberes já construídos pelos estudantes e a identificação de elementos a serem trabalhados e que são centrais para a produção do gênero? y Os módulos contemplam diferentes aspectos do gênero proposto? y Há um ou mais módulos que contemplem aspectos da estrutura composicional do gênero? y Há um (ou mais) módulo(s) que contemple(m) aspectos relacionados à materialidade linguística do texto, como vocabulário e gramática? y A produção final possibilita aos estudantes mobilizar todo o conhecimento construído ao longo da sequência? 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, por meio da história que compartilhamos, objetivamos discutir a apropriação de conceitos que auxiliem na elaboração de sequências didáticas para o contexto bi/multilíngue que possibilitem a integração curricular em escolas bi/multilíngues. Para tanto, discutimos a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem assumida pela BNCC e a sequência didática proposta por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) e revisamos a concepção de linguagem como prática social comparada à concepção de linguagem como estrutura. Propomos a construção de novas histórias – uma história em que os estudantes de contextos bi/multilíngues sejam produtores e capazes de utilizar a linguagem para atuar na sociedade – por meio do uso de sequências didáticas que permitam o desenvolvimento de capacidades linguísticas necessárias para essa produção. Finalizamos o capítulo com atividades de análise e criação de sequências didáticas. A seguir, sugerimos um aprofundamento no tema. 96 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece o trabalho de Joaquim Dolz e Bernard Schneuwly? Eles são pesquisadores da Universidade de Genebra e organizaram o livro Gêneros orais e escritos na escola (Campinas: Mercado de Letras, 2004). A obra reúne textos diversos de Schneuwly, Dolz e colaboradores sobre o ensino escolar de gêneros escritos e orais e apresenta encaminhamentos ou procedimentos possíveis para o ensino de gêneros selecionados pelo projeto da escola ou da série/ciclo. Você conhece o Glossário Ceale? É um glossário on­line produzido pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Por sua função pedagógica, relacionada à atuação do Ceale na formação inicial e continuada de professores, na pesquisa e na documentação, ele foi concebido para ser um apoio aos processos de ensino e aprendizagem da alfabetização, leitura e escrita. Nele, você encontra muitas definições importantes. No link indicado a seguir, há explicações elaboradas pela professora doutora Roxane Rojo sobre muitos dos conceitos discutidos neste capítulo: esferas ou campos de atividade humana, gêneros do discurso e gêneros e tipos textuais. Disponível em: https://www.ceale.fae.ufmg.br/ glossarioceale/apresentacao. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília: MEC/ SEB, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov. br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998. Como elaborar sequências didáticas que concebam a linguagem como prática social? 97 BRONCKART, J.-P. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimen­ to humano. Organização de Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras, 2006. BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2003. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 81-108. DOLZ, J.; PASQUIER, A.; BRONCKART, J.-P. L’acquisition des discours: émergence d’une compétence ou apprentissage de capacités langagières? Études de Linguistique Appliquée, n. 102, p. 23-37, 1993. EL KADRI, M. S. Criando inéditos-viáveis na educação bi/multilíngue: proposta do portfólio Global Kids para a construção de uma educação bi/multilíngue pública e crítica. In: EL KADRI, M. S.; SAVIOLLI, V. B.; MOLINARI, A. C. Conversando sobre Educação Bilíngue: o que sabemos? Campinas: Pontes Editores, 2022. p. 20-37. GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism and education. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014. GONÇALVES, A. S.; SAITO, C. L. N.; NASCIMENTO, E. L. A língua em funcionamento nas práticas discursivas. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 10, n. 4, p. 995-1024, 2010. MARCELINO, M. R. Aquisição de linguagem. Apresentação oral. Curso de Formação em Educação Bi/Multilíngue – Fundação de Amparo a Universidade Estadual de Londrina (Fauel), 2021. MARCELINO, M. R.; WEISSHEIMER, J. Como promover oralidade em aula de L2 na Educação Bilíngue? In: MEGALE, A. (org.). Educação Bilíngue: como fazer? São Paulo: Fundação Santillana, 2021. p. 29-43. SCHNEUWLY, B. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 19-34. 98 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Capítulo 6 Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade? “O projeto de trabalho é especialmente significativo para o contexto de Educação Bi/Multilíngue porque é uma alternativa para a integração não apenas das áreas disciplinares, mas também das duas ou mais línguas de instrução utilizadas pela instituição.” Capítulo 6 Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade? 1. Uma história para compartilhar Andreia ministra aulas em inglês em uma escola bilíngue da cidade de São Paulo. É uma professora inquieta e preocupada com as aprendizagens de seus estudantes. Na reunião de pais de sua turma, alguns responsáveis relataram que as crianças estão desestimuladas com o trabalho realizado na escola. Este ocorre por meio de um sistema apostilado composto por unidades que, de modo linear, apresentam a progressão dos conteúdos a serem desenvolvidos ao longo do ano escolar. A professora sai da reunião desanimada com sua prática e se pergunta o que está fazendo de errado para que seus estudantes estejam desestimulados. Desolada, procura conversar com colegas de profissão e recorre a antigos professores em busca de ajuda. Antônio, seu professor do curso de pedagogia, sugere a Andreia que entre em contato com o conceito de pedagogia ativa por meio da obra de John Dewey. Ao retomar as leituras do autor, a professora relembra algumas das discussões que teve ao longo de sua graduação sobre como a Educação deve ser compreendida como um processo de vida e não como uma preparação para a vida futura. Nesse sentido, começa a se perguntar o quanto o material que utiliza em aula e que tão cuidadosamente segue se relaciona com os interesses e a realidade de seus estudantes. Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 101 Ávida por ressignificar seu modo de atuar com a turma e transformar sua sala de aula em um espaço vivo de interações, aberto aos reais interesses e necessidades de seus estudantes, Andreia decide se aprofundar na perspectiva de projetos de trabalho. Lê diversas obras de John Dewey e Fernando Hernández e passa a pensar em como colocar tudo isso em prática. A próxima unidade que começará a trabalhar com sua turma é sobre insetos. Andreia, então, se questiona: y É possível aproveitar o tema da apostila e propor um projeto para trabalhar com os estudantes? y Como planejar e desenvolver um projeto que coloque o estudante no centro de suas aprendizagens? y Como desenvolver um projeto que integre as duas línguas de instrução da escola em conjunto com Cecília, que ministra aulas em língua portuguesa para sua turma? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Discutir e apropriar-se dos principais conceitos sobre a aprendizagem baseada em projetos. y Refletir sobre o papel do professor e do estudante no projeto de trabalho. y Planejar, estruturar e implementar um projeto que integre as línguas de instrução em um contexto bi/multilíngue. 3. Para entender melhor essa história A proposta de projetos de trabalho surgiu no início do século 20, com base nas ideias desenvolvidas por John Dewey e representantes da chamada “pedagogia ativa”, que defendiam a ideia de que a Educação é um processo de vida e não uma preparação para a vida futura e, por isso, a escola deve representar a vida presente (DEWEY, 1897). Leite (1996, p. 25) posiciona o debate acerca de projetos de trabalho como “uma discussão sobre uma postura pedagógica e não sobre uma técnica de ensino mais atrativa para os alunos”, enfatizando a concepção de que essa perspectiva está atrelada a uma prática que 102 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores visa formar cidadãos participativos, reflexivos e atuantes, em oposição à passividade, submissão ou alienação. Contudo, reforça que as práticas escolares estão distantes de realizar esse objetivo. Assim, pesquisadores têm defendido a proposta de projetos de trabalho como uma das formas de ressignificar o espaço escolar por meio da interação, como uma perspectiva para entendermos o processo de aprendizagem para além da memorização de conteúdos prontos (processo de transmissão), mas sim por meio da valorização do conhecimento construído em estreita relação com o contexto (processo de construção) (LEITE, 1996; HERNÁNDEZ, 1998; HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998; MASETTO, 2003). Desse modo, Leite (1996) argumenta que se aprende participando, por meio das experiências, ao vivenciar sentimentos, ao tomar atitudes e ao escolher procedimentos para atingir os objetivos, ou seja, a aprendizagem está atrelada às experiências proporcionadas, aos problemas criados e às ações que surgem dessa experiência. Essa concepção de ensino-aprendizagem se mostra como mais apropriada para nosso contexto sócio-histórico, marcado por avanços tecnológicos que romperam com as fronteiras de espaço, tempo e comunicação e que, assim, ampliaram os universos socioculturais do estudante devido ao fluxo de informações que ele recebe e com as quais interage diariamente. Desse modo, o trabalho pedagógico com projetos apresenta uma possibilidade de atuação que se aproxima de um conhecimento globalizado, transcendendo os limites determinados pelas áreas e conteúdos curriculares tradicionais (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998). Isso significa que, ao participar de um projeto, o estudante se envolve em uma experiência educativa em que o processo de construção de conhecimento está integrado às práticas vividas, o que lhe permite desenvolver competências como: pesquisar, comparar, observar, organizar, classificar e interpretar dados, fixar metas, pensar criticamente, planejar, trabalhar em equipe, resolver problemas e conflitos, analisar e tomar decisões, entre muitas outras (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998). Assim, essa perspectiva propõe uma mudança no paradigma da relação professor-estudante, tornando-os corresponsáveis por todo o processo. De um lado, estimula nos estudantes uma postura ativa em busca do conhecimento; de outro, conta com um professor mediador, que os coloca no centro da aprendizagem, criando, para isso, espaços de participação, questionamento, discussão e reflexão. Desse modo, a potência do projeto de trabalho não está na Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 103 quantidade de informações coletadas ou de conteúdos apresentados, mas na forma como é conduzido e nas relações estabelecidas entre professor e estudante. Markham, Larmer e Ravitz (2008, p. 7) apontam que o projeto de trabalho exige que os alunos monitorem seu próprio desempenho e suas contribuições ao grupo. Ele força os alunos a confrontar problemas inesperados e descobrir como resolvê-los, além de oferecer aos alunos tempo para se aprofundar em um assunto e ensinar aos outros o que aprenderam. Hernández e Ventura (1998, p. 81) explicam que, na cultura contemporânea, a questão principal para que os estudantes compreendam o mundo em que vivem é que saibam “como ter acesso, analisar e interpretar informações”. Para isso, precisam se conscientizar de seu processo como aprendizes, refletindo sobre essa experiência. Segundo os autores, contudo, para que essa tomada de consciência ocorra, é necessário que aconteça, na sala de aula, o processo interativo, com o professor como mediador e facilitador. Hernández (1998) aponta que, no trabalho com projetos, a aprendizagem e o ensino se caracterizam como um percurso que nunca é fixo, mas que serve de fio condutor para o trabalho do professor. Para Hernández e Ventura (1998, p. 82), esse trabalho contempla os seguintes aspectos: 1. O tema proposto favorece a análise, a interpretação e a crítica como contrastes de pontos de vista. 2. A atitude de cooperação predomina. 3. O percurso procura estabelecer conexões que questionam a ideia de uma versão única da realidade. 4. Cada percurso é singular e mobiliza diferentes tipos de informação. 5. O professor é um aprendiz e não um especialista, pois ajuda os alunos a aprender sobre temas e estudará com eles. 6. O professor ensina os alunos a escutar e que também podem aprender com o que os outros dizem. 7. O professor tem consciência de que há diferentes formas de aprender aquilo que quer ensinar (e não sabe se os alunos aprenderão isso ou outras coisas). 104 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 8. O professor faz uma aproximação atualizada dos problemas das disciplinas e dos saberes. 9. O professor sabe que todos os alunos podem aprender se encontrarem o lugar para isso. 10. O professor não se esquece que a aprendizagem vinculada ao fazer, à atividade manual também é uma forma de aprendizagem. O autores enfatizam que os projetos de trabalho não se apresentam como um método nem como uma pedagogia, mas como uma concepção de Educação que leva em conta: i) a abertura para os conhecimentos e problemas que circulam fora da sala de aula; ii) a importância dos modos como o conhecimento é produzido e disseminado na sociedade atual (por exemplo, importância do lugar de fala, do contraste de pontos de vista, da noção de realidade enquanto representação etc.); iii) o papel do professor como problematizador/facilitador do conhecimento e também como aprendiz; iv) a importância da atitude de escuta, em que o professor seja base para construir com os estudantes experiências substantivas de aprendizagem; v) a função dos registros sobre os diálogos pedagógicos; vi) a organização do currículo não por disciplinas nem com base nos conteúdos como algo fixo e imutável; vii) a autodireção do estudante por meio de atividades como o plano de trabalho individual e o planejamento mensal; e viii) a avaliação como processo que faz parte das experiências substantivas de aprendizagem. Desse modo, podemos perceber que os projetos de trabalho transcendem os limites determinados pelas áreas e pelos conteúdos curriculares tradicionais, favorecendo a transdisciplinaridade e a cooperação entre as disciplinas. Para tanto, Hernández e Ventura (1998) utilizam o conceito de globalização dos conteúdos. Nesse sentido, o conhecimento é concebido como um processo global, estruturado em conexão entre os aspectos cognitivos, emocionais e sociais. Assim, o trabalho se desenvolve em um processo dialógico, no qual estudante e professor articulam ações, dispostos a solucionar um problema. Os autores ressaltam que esse processo tem a participação do estudante no percurso investigativo, apropriando-se do problema principal e formulando as próprias perguntas, hipóteses e investigações sobre ele, participando das decisões e do planejamento do percurso investigativo, de maneira a entender o porquê da exploração e integração das diferentes áreas do conhecimento em cada etapa. Dessa forma, o entendimento de globalização na Educação toma o sentido de que “a Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 105 criança estabeleça relações com muitos aspectos de seus conhecimentos anteriores, enquanto, ao mesmo tempo, vai integrando novos conhecimentos significativos” (HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998, p. 50). Os projetos de trabalho podem ser organizados e desenvolvidos de modo diversificado. Neste capítulo, temos por referência as etapas de planejamento de um projeto sugeridas por Hernández e Ventura (1998) e resumidas por Faria e Puche (2019, p. 32): 1. Escolher um tema do qual derivará a problematização. 2. Estabelecer hipóteses. 3. Especificar o fio condutor. 4. Fazer a primeira previsão de conteúdos e atividades. 5. Estudar as informações presentes e atualizá-las para gerar novos conhecimentos. 6. Criar um ambiente que reforce a consciência de aprender em grupo. 7. Transmitir ao grupo a atualidade e a funcionalidade do projeto. 8. Manter uma atitude avaliativa durante o processo. 9. Recapitular o processo, que poderá servir como ponto de partida para um novo projeto. Cabe enfatizar que a avaliação percorre todas essas etapas e é de suma importância no trabalho com projetos. Por ser um modo de acompanhar as aprendizagens do estudante, ela deve ser processual e constante, com valorização da proposta formativa. O assunto será aprofundado no capítulo 8. O projeto de trabalho é especialmente significativo para o contexto de Educação Bi/Multilíngue porque é uma alternativa para a integração não apenas das áreas disciplinares, mas também das duas ou mais línguas de instrução utilizadas pela instituição. A integração das línguas é fundamental na perspectiva de sujeito bilíngue dinâmico, pois, se sabemos que as duas línguas coexistem e que o que se conhece em uma língua contribui para o que se entende por meio da outra, quanto mais essas línguas estiverem integradas no currículo, maior a possibilidade de potencializar as aprendizagens dos estudantes por meio de conexões entre os conteúdos e os conhecimentos linguísticos desenvolvidos nas duas línguas de instrução. Aranda (2020, p. 36) lança a seguinte questão: “O argumento é que os alunos fazem conexões entre as duas línguas por si, então por que não alimentar essa prática de maneira 106 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores mais estruturada e sistematizada?”, já que, em muitas escolas, a língua adicional e a língua de nascimento ainda são configuradas de maneira compartimentalizada no currículo (FARIA; PUCHE, 2020). Faria e Puche (2020), ao discutirem a elaboração de projetos em contextos bi/multilíngues, que contemplem as duas ou mais línguas de instrução, advogam pela importância de um planejamento linguístico que permeie todo o processo e tenha como focos a ampliação do repertório linguístico dos estudantes e o desenvolvimento de sua consciência metalinguística em ambas as línguas de instrução. As autoras sugerem estratégias como bridge,1 que pode ser um recurso para o trabalho de conexão das línguas de instrução que compõem o projeto. Outra estratégia possível que sugerimos é o que denominamos de cross­linguistic­reference.2 4. Retomando a história Agora, vamos retomar a história que compartilhamos. Segundo o discutido na seção anterior, compreendemos que o desenvolvimento de um projeto possibilitaria a Andreia, que ministra aulas em inglês, realizar um trabalho em conjunto com Cecília, que trabalha em português, o que integraria os conteúdos abordados por meio das diferentes línguas e colocaria os estudantes no centro de suas aprendizagens. Entendemos por meio da história de Andreia que a escola designou uma apostila que deve ser seguida por todos os professores nos diversos componentes curriculares. Sabemos que essa é a realidade de muitas instituições em nosso país. Com isso, depreendemos que os professores têm como parte de seu contrato de trabalho a utilização desse material que, na maioria das vezes, é comprado pelas famílias. Considerando essa realidade, um caminho interessante é a conexão de projetos com alguns dos temas desenvolvidos pelo material apostilado. 1 De acordo com Beeman e Urow (2013, p. 50), bridge é o momento em que os estudantes são ensinados a examinar as similaridades e diferenças entre as línguas de instrução usando análise contrastiva. Para as autoras, “esse exercício pode incluir um estudo dos cognatos e análise de falsos cognatos, assim como convenções e construções específicas de cada língua. O bridge também é utilizado para auxiliar os alunos a distinguir aspectos formais e informais da língua”. 2 Atividades de cross­linguistic­reference são aquelas que promovem a transferência, comparação e contraste entre línguas, que podem acontecer de maneira planejada, como aqui apresentamos, mas também de maneira orgânica. Elas permitem que os estudantes se apoiem na língua nomeada para construir novos significados ou desenvolver consciência metalinguística em ambas as línguas (GARCÍA; WEI, 2014). Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 107 O primeiro passo para a realização do projeto que Andreia vislumbrou como uma oportunidade é uma conversa com Cecília, que é a professora que ministra aulas em língua portuguesa para seu grupo. Algumas questões devem ser discutidas nessa conversa: y Há alguma temática contemplada no material utilizado que possa ser desenvolvida pelas duas professoras em conjunto, levando em consideração os interesses e necessidades dos estudantes? y No que tange ao desenvolvimento linguístico da turma, há algum gênero do discurso que seja possível focar? Após essa conversa, que será essencial ao longo do desenvolvimento do projeto, pode-se iniciar o planejamento. A seguir, apresentamos uma possibilidade de planejamento de projeto e alguns princípios para sua realização. 1. Tema O primeiro passo para a elaboração de um projeto é a definição da temática que será abordada. O assunto deve ser relevante para a turma, revelar um problema significativo e estar relacionado a aspectos curriculares que apresentem elementos importantes para o crescimento intelectual, social e emocional dos estudantes. Isso deve ser feito em conjunto pelos professores envolvidos no projeto e ser relevante para todos os componentes curriculares. 2. Questão orientadora A questão orientadora é o cerne da investigação, pois define o destino ao qual se deseja chegar. O levantamento de perguntas junto aos estudantes é parte intencional do planejamento. Mackenzie e Bathurst-Hunt (2018, p. 84) explicam que as questões orientadoras não são respondidas como uma rápida pesquisa no Google. Questões orientadoras também não podem ser respondidas numa só aula ou em uma discussão com um colega. Elas não têm uma resposta única. Na verdade, a resposta para uma questão orientadora pode mudar ao longo do tempo no decorrer da exploração de diferentes recursos. Assim, elas exigem exercícios de pensamento de ordem complexa como análise, inferências, avaliações e deduções, e, ao longo do tempo, podem gerar novas questões, inspirando futuras investigações. 108 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Markham, Larmer e Ravitz (2018) elencam alguns princípios para a construção de questões orientadoras: i) elas são provocativas e instigantes; ii) são abertas e não conduzem a respostas fáceis; e iii) podem surgir de dilemas da vida real que sejam do interesse da turma. Os professores devem planejar momentos didáticos para que as perguntas dos estudantes emerjam e para que seja possível definir com eles a questão orientadora do projeto. Essa questão pode e deve ser revisitada ao longo de todo o processo e, na maioria dos casos, outras indagações têm de ser anteriormente respondidas para que a pergunta orientadora seja solucionada. 3. Componentes curriculares e áreas envolvidos É imprescindível definir quais são os componentes curriculares e respectivos professores envolvidos no projeto, assim como as línguas de instrução que participarão do processo. Nesse ponto, é importante estabelecer quais conhecimentos serão construídos, aprofundados e praticados em cada uma das línguas. 4. Desenvolvimento de competências e habilidades à luz da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) Como a BNCC é o documento que rege a Educação Básica brasileira, faz-se necessário delimitar, com base nele, as competências e habilidades que se pretende trabalhar ao longo do projeto, de acordo com os componentes curriculares envolvidos. 5. Produto final e público-alvo O produto final pode assumir formas muito variadas e deve responder à questão orientadora, refletindo o trabalho realizado. Para defini-lo, é importante estabelecer quem será o público-alvo ao qual se destina: os colegas de sala, as famílias, os estudantes da escola em geral ou a comunidade do entorno, entre outros. Outro ponto importante a ser definido é qual(is) gênero(s) do discurso será(ão) utilizado(s) no produto final. Nesse sentido, é importante ter clareza de quais são as capacidades de ação, discursivas e linguístico-discursivas que os estudantes precisam desenvolver no projeto. Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 109 6. Objetivos gerais e específicos Levando em consideração as competências e habilidades que se quer desenvolver e o produto final a ser elaborado, é preciso delimitar os objetivos almejados, sempre em conjunto com todos os professores participantes do projeto. Os objetivos gerais delimitam e apresentam os conhecimentos centrais que devem ser construídos ao longo do processo. Os objetivos específicos correspondem a conhecimentos que devem ser mobilizados para atingir os objetivos centrais. Entre eles estão os objetivos linguístico-discursivos que precisam ser cautelosamente planejados de modo a integrar as línguas nas quais o projeto está sendo conduzido, levando em consideração os gêneros que serão trabalhados ao longo do processo. Se o produto final é uma campanha que será desenvolvida com o objetivo de conscientizar a comunidade escolar sobre a importância e os modos de reduzir a produção de lixo, devem-se definir quais gêneros circularão nessa campanha: cartazes para conscientização e fôlderes digitais que apresentam formas de redução de lixo, por exemplo. Uma vez definidos esses gêneros, é necessário determinar se serão produzidos nas duas línguas ou em línguas específicas de acordo com a necessidade da comunidade. A seguir, delimitam-se quais elementos linguístico-discursivos os estudantes precisarão utilizar para a produção desses recursos da campanha, como imperativos, verbos de ação, advérbios de modo, entre outros. 7. Objetos de conhecimento De acordo com os objetivos delimitados, é importante a definição dos objetos de conhecimento que serão abordados pelos diferentes componentes curriculares e/ou áreas envolvidos. 8. Cronograma É preciso definir o tempo que será dedicado ao desenvolvimento do projeto, levando em consideração o currículo que deve ser cumprido ao longo do ano letivo. Nesse momento, é importante também definir o volume de participação de cada componente curricular e/ou área. 110 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 9. Etapas do projeto A definição das etapas do projeto deve ser feita pelos professores com os estudantes. É importante planejar essas fases para conseguir responder à questão orientadora, cumprir com os objetivos delimitados e elaborar o produto final definido para o projeto. 10. Percurso avaliativo Os projetos de trabalho concebem a aprendizagem de modo dinâmico e requerem flexibilidade para reformular objetivos e etapas à medida que seu desenvolvimento evidencie dificuldades ou oportunidades. Dessa forma, o processo de avaliação deve também ser dinâmico, a fim de mensurar de maneira constante as aprendizagens construídas. É preciso optar por um processo formativo que seja planejado ao longo de todo o percurso. O planejamento do processo avaliativo deve derivar da pergunta: “O que você quer que os estudantes saibam e sejam capazes de fazer?” (MARKHAM; LARMER; RAVITZ, 2008). É imprescindível que o processo avaliativo seja compartilhado com a turma, assim como é desejável, em muitos casos, que a construção de critérios para avaliar uma produção específica seja construída com a participação dos estudantes. Essa é uma estratégia para que eles se autorregulem e construam suas produções considerando os critérios preestabelecidos. 5. Construindo novas histórias Até o momento, tratamos das possibilidades de propor projetos de trabalho. Schlatter e Garcez (2018), contudo, sugerem o uso de projetos interdisciplinares como uma das propostas pedagógicas que permitem integrar as línguas de instrução empregadas pela escola, o que se torna significativo para os profissionais que atuam em escolas bi/multilíngues. Esses autores propõem uma organização curricular que tem a língua adicional como eixo integrador e os gêneros do discurso como forma de propiciar engajamento com o tema de maneira ampliada. Eles salientam que a intenção é “criar oportunidades para o desenvolvimento de habilidades para que os alunos possam se situar, se informar, refletir, criar e resolver problemas em projetos de ação imediata ou de preparação para a cidadania” (SCHLATTER; GARCEZ, 2018, p. 67). A proposta dos Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 111 autores, que também desafia a concepção de língua como estrutura, conforme discutimos no capítulo 5, reforça a perspectiva de que os elementos linguísticos são selecionados conforme se apresentam as demandas no âmbito do projeto e os estudantes os veem como recursos necessários para a execução de tarefas. O diagrama 1 exemplifica a proposta de Schlatter e Garcez (2018) para projetos interdisciplinares. As temáticas e campos de atuação humana devem ser selecionados pelos participantes para que, então, os gêneros do discurso necessários como formas de atuação nessas temáticas e campos sejam estudados selecionando os recursos linguísticos que devem ser aprendidos para essa atuação. Diagrama 1 ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DE PROJETOS INTERDISCIPLINARES Temáticas e campos de atuação humana selecionados como relevantes para a comunidade escolar. Gêneros do discurso em que nos engajamos para participar nos campos de atuação (textos construídos por alguém para/com determinados interlocutores com propósitos de participação em determinadas circunstâncias). PROJETOS INTERDISCIPLINARES Recursos linguísticos disponíveis para a construção dos textos (estruturas gramaticais, vocabulário, pronúncia) e outros recursos expressivos que compõem os textos (sinais de paragrafação e pontuação, imagens, gestos etc.). Fonte: Schlatter e Garcez (2018, p. 63). Para os autores, é necessário que os gêneros discursivos que figuram em diferentes campos de atuação sejam os organizadores curriculares no âmbito da proposta de projetos de trabalho. Para 112 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores tanto, sugerem que o eixo temático seja interdisciplinar e o recorte, disciplinar, específico para cada série, organizado pelos gêneros discursivos. Reflita sobre isso e realize as atividades a seguir. Atividade 1 Se pensarmos pela perspectiva de Schlatter e Garcez (2018), nosso trabalho como professores que atuam em escolas bi/multilíngues seria o de pensar quais são os elementos linguístico-discursivos que os estudantes precisam aprender para atuar nos projetos, por meio de gêneros discursivos. Assim, analise o diagrama a seguir. A questão problematizadora do projeto Ambiente/Saneamento foi: “Como sou afetado e de que modo sou responsável pelas condições de saneamento em que vivo?”. Diagrama 2 ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO PROJETO AMBIENTE/SANEAMENTO 7o ano Site da ONU, sinopse, campanha, álbum virtual de fotos, legenda, comentário 6o ano Quadrinhos, convite, cartaz Filme Ilha das flores Documentário e filme de ficção 8o ano Site da ONU, sinopse, campanha, notícia, reportagem, entrevista 9o ano Trailer, sinopse, cartaz, crítica, storyboard, roteiro, documentário, filme de ficção, legendas Fonte: Schlatter e Garcez (2018, p. 73). Os gêneros elencados são maneiras pelas quais os estudantes discursivamente tornarão público o conhecimento construído em uma etapa específica ou ao longo do projeto. Por exemplo, pense sobre o Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 113 gênero convite e quais recursos ele mobiliza: a) a capacidade de ação (quando, como, onde, para quem, por quê); b) a capacidade linguístico-discursiva (questões de layout, estrutura do gênero em si, formato, suporte); e c) a capacidade linguística (aspectos morfológicos, sintáticos, fonológicos, discursivos ou pragmáticos), conforme discutimos no capítulo 5. Tudo isso faz parte do planejamento linguístico do que o estudante precisa aprender para atuar com o referido gênero. Agora, escolha uma série escolar e um dos gêneros listados por Schlatter e Garcez e elabore o planejamento linguístico para um desses gêneros discursivos. Atividade 2 Com base em Hernández e Ventura (1998), compreendemos que a aprendizagem é uma ação processual e concebemos os estudantes como participantes ativos na trajetória investigativa. Nessa perspectiva, a ideia principal do projeto pode surgir do mapeamento das necessidades da comunidade escolar, de tópicos de curiosidade dos estudantes ou ainda de questões presentes no cotidiano (FARIA; PUCHE, 2020; HERNÁNDEZ; VENTURA, 1998). Tendo isso em mente, elabore o planejamento de um projeto para uma escola bi/multilíngue. Pense no tema central, na questão orientadora e no público do projeto. Justifique a escolha do tema e especifique o ciclo escolar, a faixa etária dos estudantes, as línguas de instrução, os objetivos curriculares e linguístico-discursivos e o tempo para o desenvolvimento do projeto. Você pode utilizar o framework apresentado na seção 4 deste capítulo ou outro de sua preferência. 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, com base na história apresentada, objetivamos discutir princípios que auxiliem o professor na elaboração de projetos que visem a integração curricular em escolas bi/multilíngues. Para tanto, discutimos a perspectiva proposta por Hernández e Ventura (1998) e focamos o planejamento linguístico sugerido por Faria e Puche (2020) e Schlatter e Garcez (2018). Propusemos a construção de uma nova história, em que os professores de contextos bi/multilíngues sejam capazes de adotar uma postura pedagógica que tenha como objetivo formar cidadãos participativos, reflexivos e atuantes na sociedade. Incluímos no capítulo atividades de planejamento de projetos. A seguir, sugerimos um aprofundamento no tema. 114 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 7. Sugestões de aprofundamento Você sabe como surge a proposta de projetos de trabalho? A perspectiva de projetos de trabalho surgiu com John Dewey, filósofo e pedagogo estadunidense que viveu de 1859 a 1952. Robert Westbrook, Anísio Teixeira, José Eustáquio Romão e Verone Lane Rodrigues organizaram uma obra muito importante dedicada à vida e ao legado de Dewey. O título do livro é John Dewey e foi lançado pela Editora Massangana em 2010. Disponível em: https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-120035/john-dewey Você conhece a contribuição de Fernando Hernández para a proposta de projetos de trabalho? O educador espanhol é a maior autoridade atual nessa proposta pedagógica. No livro A organização do currículo por projetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio, Hernández e Monserrat Ventura descrevem os fundamentos e as práticas da organização do currículo por meio de projetos de trabalho. Referências bibliográficas ARANDA, M. T. Implementando uma proposta de Educação Bilíngue: e agora? In: MEGALE, A. (org.). Desafios e práticas na Educação Bilíngue. São Paulo: Fundação Santillana, 2020. p. 27-46. BEEMAN, K.; UROW, C. Teaching for biliteracy: strengthening bridges between languages. Philadelphia: Caslon, 2013. DEWEY, J. My pedagogic creed. The School Journal, v. 54, p. 77-80, 1897. Disponível em: http://dewey.pragmatism.org/creed.htm. FARIA, G. L.; PUCHE, I. O planejamento de projetos pedagógicos em contextos bilíngues. In: MEGALE, A. (org.). Desafios e práti­ cas na Educação Bilíngue. São Paulo: Fundação Santillana, 2020. p. 107-121. Como construir projetos que integrem a língua adicional e a língua de nascimento da comunidade 115 GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism and education. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014. HERNÁNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 1998. HERNÁNDEZ, F.; VENTURA, M. A organização do currículo por pro­ jetos de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. LEITE, L. H. A. Pedagogia de projetos: intervenção no presente. Presença Pedagógica, v. 2, n. 8, p. 24-33, 1996. Disponível em: https://sapiencia.digital/?r3d=revista-presenca-pedagogica-8. MACKENZIE, T.; BATHURST-HUNT, R. Inquiry mindset. [S. l.]: Elevate Books Edu, 2018. MASETTO, M. T. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo: Summus, 2003. MARKHAM, T.; LARMER, J.; RAVITZ, J. Aprendizagem baseada em projetos: guia para professores do ensino fundamental e médio. Porto Alegre: Artmed, 2008. SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. M. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Porto Alegre: Edelbra, 2018. 116 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Capítulo 7 Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? “A translinguagem nas escolas está diretamente relacionada ao conceito de justiça social, visto que o objetivo central é proporcionar oportunidades de aprendizagem para todos, independentemente de seu conhecimento linguístico, por meio dos recursos que já possuem, para que, com eles, ampliem seus conhecimentos acerca dos conteúdos e da língua-alvo. [...] Isso deve ser um movimento planejado com objetivos claros.” Capítulo 7 Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 1. Uma história para compartilhar Dois relatos interessantes emergiram de uma conversa com docentes de uma escola bilíngue que tem o inglês e o português como línguas de instrução. O primeiro foi sobre uma estudante nova que chegou ao 7o ano sem ter aprendido inglês antes, ao contrário dos colegas. O professor estava dando uma aula de inglês que tinha dois objetivos: ler um trecho de Brazil­Maru, um livro sobre imigrantes japoneses da nipo-americana Karen Tei Yamashita, e, depois, escrever uma carta em inglês para a autora perguntando sobre suas representações a respeito do Brasil na obra. Ele contou que, ao se dirigir à nova aluna em inglês, ela apenas o olhou, sem expressão; em seguida, quando recebeu o texto para acompanhar a leitura, pegou um papel e começou a rabiscar. O segundo relato foi feito por um professor de uma turma de 1o ano, que tinha acabado de cantar uma música em inglês. Ele pediu aos estudantes, em inglês, que voltassem para seus lugares e levassem os cadernos para realizar a próxima atividade. Quando alguns deles lhe perguntaram “O que vamos fazer?”, ele apontou para o objeto caderno e disse em português: “Para a próxima atividade”. O professor mencionou que, quando parecem confusas em relação a algum enunciado , as crianças optam por falar português e utilizar gestos relacionados ao objeto ou à atividade em questão. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 119 As duas situações nos levam a pensar sobre a tomada de decisão dos docentes nesses momentos. Como você descreveria esses “problemas”? Em que diferem as reações dos dois professores? O que você faria nessas situações? Como eles modificaram (ou não) seus planejamentos para possibilitar a inserção dos estudantes em dificuldade? Com base nesses casos, algumas questões podem ser levantadas: y O que é translinguagem? y O que significa uma abordagem translíngue para o ensino de línguas e para a Educação Bi/Multilíngue? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Compreender como a translinguagem molda nosso entendimento de linguagem e de bi/multilinguismo. y Saber como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica. y Conhecer os propósitos de uma pedagogia que evidencie práticas translíngues e os conceitos de stance, design e shift em sua composição. y Entender como planejar unidades didáticas que priorizem práticas translíngues. 3. Para entender melhor essa história O conceito de translinguagem tem recebido cada vez mais atenção dos estudiosos em áreas diversas. Canagarajah (2011) fez um levantamento dos diferentes nomes que o fenômeno recebe em áreas distintas, como codemeshing, translingual writing, fluid lects e polylingual languaging. O autor explica que, para um indivíduo bi/multilíngue, suas línguas fazem parte de um repertório que é acessado para propósitos comunicativos. Assim, as línguas formam um sistema integrado e, desse modo, a competência bi/multilíngue emerge de práticas locais em que as línguas são negociadas para comunicação. Canagarajah (2011) salienta ainda que, em contexto de bi/multilinguismo, a competência linguística dos sujeitos não 120 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores consiste em competências separadas para cada uma das línguas, mas em uma multicompetência que funciona simbioticamente para as diferentes línguas de seu repertório. Por essas razões, a proficiência de sujeitos bilíngues deve ter como foco a construção de seu repertório e o desenvolvimento de habilidades em funções diferenciadas para cada língua. Nessa perspectiva, o foco não recai no conhecimento total de cada uma das duas línguas. É por isso que, como fenômeno, conforme explica García (2009, p. 45), é coerente a denominação “translinguagem” quando “descrevemos as práticas linguísticas do sujeito bilíngue a partir da perspectiva dos usuários, e não simplesmente descrevemos o uso das línguas ou o contato linguístico a partir da própria língua”. Para a autora, a translinguagem refere-se “às múltiplas práticas discursivas nas quais os bilíngues se engajam para que seu mundo bilíngue faça sentido” (GARCÍA, 2009, p. 45). A autora enfatiza que translinguar vai além da prática de “alternância de código”1 e “do uso híbrido das línguas”, embora eles façam parte desse fenômeno. Ainda de acordo com García (2009), indivíduos bilíngues translinguam não apenas para incluir outros indivíduos em suas interações e para facilitar a comunicação entre eles, mas também para promover maior compreensão e, dessa maneira, significar seu mundo bilíngue. A autora explica que comunidades bilíngues translinguam com muita frequência e dá como exemplo crianças latinas nos Estados Unidos que comumente escolhem o inglês para a leitura porque há mais literatura disponível escrita nessa língua, mas que rezam em espanhol por ser essa a língua em que seus pais as ensinaram a rezar. Dessa forma, García (2009) defende que a translinguagem é, portanto, a norma comunicativa de comunidades bilíngues. Com base no reconhecimento da translinguagem como fenômeno, o conceito tem sido utilizado também como prática pedagógica. García, Johnson e Setlzer (2017) apresentam três componentes de uma pedagogia translíngue da perspectiva do professor: stance, 1 Alternância de código (code switching) e translinguagem podem parecer o mesmo fenômeno na superfície, mas as bases epistemológicas desses conceitos são distintas. A alternância de código parte de uma concepção de linguagem monoglóssica, na qual o sujeito alterna entre seus diferentes códigos, que atuam de maneira independente e compartimentalizada, ao interagir. Translinguagem, por sua vez, remete a uma concepção de linguagem heteroglóssica e tem como princípio que o sujeito acessa seu repertório e seleciona os recursos que podem corresponder a diferentes línguas nomeadas para produzir o efeito de sentido desejado. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 121 design e shift, que foram discutidos no capítulo 3 e que serão brevemente retomados nesta seção. Para as autoras, stance refere-se à postura, às crenças e às concepções do professor em relação ao que é bi/ multilinguismo e a quem é o aluno bi/multilíngue. Segundo elas, caso o professor não adote uma postura crítica sobre as práticas escolares de reducionismos linguísticos, ele não terá recursos para tirar proveito da translanguaging corriente que ocorre em sua aula nem possibilidade, consequentemente, de criar espaços planejados para que os estudantes aprendam por meio de práticas translíngues. Para além da postura, conforme García, Johnson e Setlzer (2017), são necessários planejamento e estratégias intencionais e sistemáticas para a criação de espaços translíngues que gerem aprendizagens e desenvolvimento. Assim, o professor deve também desenvolver um design para as práticas translíngues, o que inclui: material multilíngue apropriado para que os estudantes aprendam, configuração da sala de aula como um espaço multilíngue e agrupamento que leve em consideração, de acordo com a tarefa proposta, as línguas de nascimento ou conhecimento da língua-alvo para que o grupo possa se ajudar e aprofundar o sentido da aprendizagem. Isso também envolve planejar aulas com objetivos que circulam entre objetivos linguísticos, de conteúdo e de translinguagem. Um design translíngue apropriado permite que o professor se dirija aos quatro principais propósitos de uma pedagogia translíngue (GARCÍA; JOHNSON; SETLZER, 2017): auxiliar os estudantes no engajamento e na compreensão de textos e conteúdos complexos; proporcionar oportunidades para que desenvolvam práticas linguísticas em/para contextos acadêmicos; valorizar seu bi/multilinguismo; e apoiar e reconhecer suas identidades e seu desenvolvimento socioemocional. As autoras salientam que, quando são trabalhados em conjunto por docentes que efetivamente fazem uso do bilinguismo para promover aprendizagens, esses quatro propósitos também estão promovendo justiça social. Elas enfatizam ainda que o design deve ser flexível, embora intencionalmente conecte as identidades dos estudantes e suas práticas linguísticas à realidade e ao ambiente escolar para que eles se identifiquem, se reconheçam e se sintam valorizados nesse espaço. Um dos exemplos de design por essa perspectiva foi tratado no capítulo 1, em que propusemos a promoção de uma ecologia multilíngue. Cabe ressaltar, com base em García, Johnson e Setlzer (2017), que os professores devem planejar a instrução a 122 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores partir da translanguaging corriente, estabelecendo os percursos apropriados para as aprendizagens e mobilizando os estudantes ao longo de suas progressões bilíngues dinâmicas. O terceiro componente, shift, se refere, segundo as autoras, à preparação dos docentes para realizar as mudanças no design das aulas que podem ser necessárias em resposta às alterações que as práticas translíngues demandam dos estudantes para que utilizem todo o seu repertório linguístico. Isso significa que professores que fazem uso de uma pedagogia translíngue devem observar profundamente os estudantes para que saibam quando o percurso das aulas deve ser alterado para potencializar as aprendizagens, independentemente do ponto do espectro contínuo bilíngue em que estejam. O objetivo do professor é que todos, com seus conhecimentos linguísticos diversos, tenham a mesma oportunidade de se desenvolverem. García, Johnson e Setlzer (2107) explicam que, para isso, é essencial que o professor esteja atento às necessidades, dificuldades e potencialidades de seus estudantes e apto a (re)planejar suas intervenções com base nas observações que faz das aprendizagens. Para as autoras, é importante que os docentes que adotam práticas translíngues compreendam que os alunos bi/multilíngues só aprendem novas formas de uso da linguagem nas inter-relações com as outras linguagens e línguas a que já possuem acesso. É nesse momento em que os estudantes têm a oportunidade de refletir sobre todas as suas práticas linguísticas que o desenvolvimento da linguagem pode proporcionar. Contudo, também é possível desenvolver unidades didáticas que privilegiem as práticas translíngues. García, Johnson e Setlzer (2017) esclarecem que grande parte dos elementos que compõem esse planejamento também está presente em aulas com instrução monolíngue, como os objetivos relacionados ao conteúdo e à linguagem. No entanto, o planejamento em contexto bi/multilíngue, pela perspectiva heteroglóssica, deve possuir objetivos referentes à translinguagem. As autoras apontam que há seis elementos no planejamento de uma unidade didática que privilegia as práticas translíngues: 1. Questões norteadoras. 2. Relação com os documentos oficiais. 3. Objetivos linguísticos e relativos aos conteúdos. 4. Objetivos referentes à translinguagem. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 123 5. Produtos e atividades avaliativas. 6. Recursos a utilizar. O quadro a seguir sistematiza esses elementos, apresenta sua descrição e fornece exemplos de cada um. Quadro 1 ELEMENTOS DE UMA UNIDADE DIDÁTICA QUE PRIVILEGIA AS PRÁTICAS TRANSLÍNGUES Elementos presentes no planejamento Descrição Exemplos O planejamento se inicia com uma ou mais questões norteadoras. Elas são utilizadas para estimular o pensamento, o raciocínio e o espírito investigativo. Devem ser provocativas e gerar outros questionamentos. Where do we see geometry at work in our lives? How do we know how to measure? Why is it important to understand the geometry of our world? 2. Relação com Cada país (ou, em alguns os documentos casos, regiões) possui documentos oficiais que oficiais orientam o processo educativo. No Brasil, desde 2018, há a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Algumas escolas bilíngues e internacionais em funcionamento aqui utilizam a BNCC em conjunto com normativas produzidas em outros países. Um planejamento que tem a translinguagem como centro faz uso desses documentos, porém parte das práticas linguísticas dos estudantes. Desse modo, os professores auxiliam os estudantes bilíngues na construção de conhecimento e no desenvolvimento linguístico de acordo com os parâmetros encontrados nesses documentos. Essa parte deve ser construída a partir dos documentos oficiais que cada escola utiliza. Exemplo: 1. Questões norteadoras 124 “Compreender as relações entre conceitos e procedimentos dos diferentes campos da Matemática (Aritmética, Álgebra, Geometria, Estatística e Probabilidade) e de outras áreas. (EF05MA19) Resolver e elaborar problemas envolvendo medidas das grandezas comprimento, área, massa, tempo, temperatura e capacidade, recorrendo a transformações entre as unidades mais usuais em contextos socioculturais.” Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Elementos presentes no planejamento 3. Objetivos linguísticos e relativos aos conteúdos Descrição Os objetivos se relacionam com os documentos oficiais, ajudam no planejamento das unidades e das aulas e são sempre organizados em duas esferas: objetivos linguísticos e objetivos relativos aos conteúdos. Os objetivos linguísticos se subdividem em gerais e específicos. Os gerais apontam para o uso de todo o repertório linguístico dos estudantes para que se expressem e façam inferências por meio de seus múltiplos recursos. Os específicos focalizam o uso de linguagem acadêmica, do vocabulário e da gramática na língua-alvo, ou seja, na língua em que as disciplinas são ministradas. Os objetivos relativos aos conteúdos devem ser os mesmos para toda a turma, e os linguísticos devem se diferenciar de acordo com o perfil dos estudantes e seu posicionamento ao longo das progressões dinâmicas translíngues, ou seja, seus recursos na língua-alvo. Exemplos Objetivos linguísticos Gerais: Students will be able to: Summarize solutions to real-world Math problems both orally and in writing. Synthesize their understanding of geometry into stories that are linguistically appropriate for elementary school students. Use nominalizations in English in their summaries. Específicos: Students will be able to: Explain their choices of measurement using appropriate content-area vocabulary in English. Use nominalizations in their summaries and stories. Objetivos relativos aos conteúdos Students will be able to: Use formulas for measuring area, volume, and surface area for different geometric objects. Accurately draw geometric shapes. Connect their mathematical understandings to real-world situations and problems. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 125 Elementos presentes no planejamento Descrição Exemplos Esses objetivos permitem 4. Objetivos que os estudantes se referentes à translinguagem apropriem do conteúdo e da linguagem de forma que não poderiam fazer apenas em inglês ou em qualquer outra língua-alvo. Os objetivos de translinguagem reconhecem práticas linguísticas e a compreensão da cultura local como importantes para as aprendizagens na escola. Students will be able to: Recognize and track Math vocabulary cognates. Work in groups to solve Math problems using both English and their home languages. Use both English and their home languages to write children’s books about Geometry. Explain their language choices in oral presentations (e.g., why certain words or problems were given). Read their books to bilingual children, expanding on their ideas and asking younger students questions in both languages. O produto final é desenvolvido ao longo de toda a unidade. Ele oferece oportunidade para avaliação da compreensão dos conteúdos pelos estudantes e de seu desenvolvimento linguístico, além das práticas de linguagem relacionadas a propósitos acadêmicos. É um componente importante da prática translíngue, porque oferece aos estudantes a possibilidade de utilização de seu bilinguismo para criar algo inovador. O produto final também funciona como uma forma de avaliação personalizada e permite aos estudantes demonstrar o que sabem e podem fazer com o conteúdo e com a linguagem durante sua progressão translíngue dinâmica. Em grupos, os estudantes criam livros infantis bilíngues que explicam conceitos geométricos, utilizando inglês e a língua de nascimento, assim como exemplos e conexões culturalmente relevantes. Apresentam seus livros para os professores e fazem a leitura para os colegas dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Serão avaliados por sua compreensão dos conteúdos matemáticos, por sua criatividade e pelo uso estratégico de suas línguas. 5. Produto final e atividades avaliativas 126 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Elementos presentes no planejamento 5. Produto final e atividades avaliativas Descrição Ao longo de toda a unidade, os professores avaliam o entendimento conceitual dos estudantes, sua curiosidade intelectual e suas práticas linguísticas, com foco em sua capacidade de realizar as tarefas de maneira independente ou com assistência e utilizando todo o seu repertório linguístico (performance linguística geral), assim como características relativas à linguagem específica relacionada ao campo do conhecimento trabalhado. Esse planejamento também inclui uma autoavaliação das aprendizagens. Nela, os estudantes respondem a questões sobre o próprio aprendizado, desenvolvimento linguístico e compreensão conceitual. Exemplos Outras atividades avaliativas Avaliação das estratégias nas práticas translíngues Os estudantes são avaliados por sua compreensão dos conteúdos, curiosidade intelectual e práticas linguísticas. O foco recai na realização das tarefas, de modo independente ou com assistência, utilizando todos os recursos de seu repertório (performance linguística geral) e também as características referentes à linguagem específica associada. Leitura matemática: os estudantes se engajam em uma grande variedade de leituras em jornais, revistas e sites que conectam geometria com a vida real. As leituras são realizadas em inglês e na língua de nascimento, quando possível, e discutidas em grupos que trabalham juntos para resumir, responder a questões de interpretação, formular perguntas e fazer conexões. Escrita matemática: os estudantes elaboram novos problemas que envolvem geometria, utilizando situações culturalmente relevantes e translinguagem. São avaliados por sua criatividade, uso de linguagem, compreensão dos conteúdos matemáticos e também por suas escolhas linguísticas relacionadas aos conteúdos. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 127 Elementos presentes no planejamento Descrição Autoavaliação: ao longo de toda a unidade, os estudantes são convidados a refletir, dar devolutivas e se autoavaliarem por meio de questões sobre o próprio aprendizado, desenvolvimento linguístico e compreensão dos conteúdos. 5. Produto final e atividades avaliativas 6. Recursos a utilizar Exemplos Os recursos que os estudantes leem, a que assistem, que ouvem e em que se engajam são muito importantes para o sucesso da unidade didática. No planejamento, a escolha dos textos deve levar em conta a diversidade de recursos multilíngues e multimodais que oferecem e que apoiam as aprendizagens dos conteúdos e da língua. A escolha dos recursos também envolve procurar aqueles que se relacionam com a vida dos estudantes, para que possam inferir mais facilmente o significado do texto. Textos diversos em termos de linguagem, pontos de vista e modalidade oferecem formas diferenciadas de compreensão e conexão com o novo conteúdo e linguagem. A escolha deve oferecer diversidade de recursos multilíngues e multimodais para potencializar as aprendizagens de todos os estudantes independentemente de seu conhecimento linguístico. Na língua de nascimento dos alunos: leituras sobre geometria em sites, jornais e revistas; livros infantis. Na língua-alvo: o livro didático de matemática; leituras sobre geometria em sites, jornais e revistas; livros infantis. Fonte: adaptado de García, Johnson e Setlzer (2017, p. 62). 4. Retomando a história Os dois relatos que compartilhamos no início do capítulo demandaram dos professores decisões tomadas no momento da ação, com base na reação de seus estudantes. No primeiro, há uma 128 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores nova aluna na sala de aula e ela não consegue compreender as consignas nem ler o texto na língua-alvo porque o conhecimento que tem dela ainda é muito inicial. No segundo, entendendo as expressões de seus estudantes, o professor decide apontar para o objeto e explicar a tarefa em português. Esses dois momentos exemplificam as situações não planejadas nas quais os docentes têm de tomar decisões em resposta à translanguaging corriente de seus grupos. Esses momentos de ações não planejadas são denominados translanguaging shifts. Essas ações não planejadas respondem às necessidades de aprendizagem dos estudantes relacionadas ao conteúdo e à linguagem que não foram endereçadas e/ou antecipadas no planejamento da unidade didática. Elas decorrem de nossos posicionamentos (stance) e de nosso planejamento (design). Nessa perspectiva, o planejamento abre espaço para que os estudantes bilíngues se desempenhem em diferentes tarefas utilizando todo o seu repertório linguístico. O professor do segundo relato parece ter essa compreensão e consegue acompanhar a translanguaging corriente de seus estudantes, mas seu colega da primeira história parece não ter modificado seu planejamento para possibilitar a inserção da estudante que não possui desenvolvimento linguístico semelhante ao dos colegas. Isso pode ter acontecido por diversos fatores. Muitas vezes, quando os professores aprendem sobre a pedagogia translíngue, relatam que já estão fazendo isso há muitos anos, mas não sabiam que essa prática tinha um nome. De fato, é comum sentirem que estão “quebrando as regras”, uma vez que permitem que seus alunos utilizem sua língua de nascimento na sala de aula ou quando eles mesmos utilizam sua língua de nascimento. Os docentes envolvidos nos relatos sabiam que a imposição do uso apenas da língua-alvo em sala de aula não satisfazia nem a eles, nem a suas turmas. Consequentemente, com frequência, “transgrediam”, utilizando o repertório bilíngue do grupo de maneira silenciosa, a portas fechadas. García, Johnson e Setlzer (2017) explicam que com a nomeação dessa prática espera-se que os professores e seus estudantes possam participar de práticas translíngues em voz alta e de modo planejado, com as portas totalmente abertas, para que isso leve a um engajamento cada vez maior dos alunos, potencializando seus resultados acadêmicos e promovendo a melhoria de relações interpessoais. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 129 Infelizmente, a utilização da língua de nascimento como recurso para o aprendizado de conteúdos mais desafiadores e para o trabalho com textos mais complexos ainda é um tabu. Os professores foram formados para trabalhar com estudantes bi/multilíngues de modo monolíngue. Dessa maneira, é muito comum ouvir deles comandos como: “Fale em inglês”, “Não fale em português”, “Pense em inglês”, “Não pense em português”. É claro que precisamos garantir o uso da língua-alvo durante nossas aulas, uma vez que esse pode ser o único momento em que os estudantes, de fato, têm possibilidade de utilizá-la. No entanto, não podemos esquecer que em uma escola bilíngue estamos lidando com o aprendizado da língua e também com o aprendizado de conteúdos diversos. Assim, devemos desenvolver estratégias para que nossos grupos aprendam a língua enquanto aprendem os conteúdos necessários. As escolas, então, têm de construir caminhos que assegurem que todos os estudantes aprendam, não apenas aqueles cujas práticas linguísticas se alinham com as expectativas da instituição. Práticas translíngues permitem que os professores propiciem oportunidades de maneira mais equânime para que todos se engajem com materiais de circulação social real, ou seja, não simplificados ou produzidos única e exclusivamente para o aprendizado da língua. Portanto, flexibilidade é a palavra-chave de uma sala de aula translíngue. Educadores devem ser flexíveis em relação à utilização da língua, mas também em relação à compreensão do conteúdo pelos estudantes. Isso significa que o modo que pensamos que eles aprendem não é necessariamente o modo que, na realidade, eles virão a aprender. Cada grupo traz um conjunto de experiências únicas, assim como personalidades diferentes e desafios diversos. Como professores, precisamos estar disponíveis para que os estudantes construam interpretações e percepções que lhes são próprias em relação tanto ao conteúdo quanto à linguagem. Para isso, o educador deve, como discutido no capítulo 3, de acordo com García, Johnson e Setlzer (2017): y Ajudar estudantes com dificuldade a entender vocabulário novo por meio de traduções, paráfrases e uso de sinônimos ou cognatos. y Auxiliar o grupo na compreensão de um novo conteúdo utilizando metáforas e histórias culturalmente relevantes. 130 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores y Encorajar os estudantes, quando em dificuldade, a falar uns com os outros sobre o novo conceito ou expressão em foco. y Procurar palavras no dicionário ou por meio de ferramentas eletrônicas e ajudar os estudantes a fazer isso de maneira autônoma. y Encorajá-los a relacionar o novo conteúdo com as próprias experiências por meio de histórias e outras possíveis conexões. A translinguagem nas escolas está diretamente relacionada ao conceito de justiça social, visto que o objetivo central é proporcionar oportunidades de aprendizagem para todos, independentemente de seu conhecimento linguístico, por meio dos recursos que já possuem, para que, com eles, ampliem seus conhecimentos acerca dos conteúdos e da língua-alvo. No entanto, para que isso ocorra, não basta permitir aleatoriamente que os estudantes utilizem suas línguas em sala de aula. Isso deve ser um movimento planejado com objetivos claros. 5. Construindo novas histórias Nossa função, ao trabalhar com grupos bi/multilíngues, é planejar intervenções para potencializar as aprendizagens dos estudantes, sejam eles migrantes ou bilíngues emergentes.2 A Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) tem desenvolvido um trabalho bastante amplo com a pedagogia translíngue. Sob a orientação de Ofelia García, foram elaborados seis guias para os educadores nos quais é possível encontrar exemplos práticos, estratégias e fundamentação teórica sobre a pedagogia translíngue. Uma dessas publicações intitula-se Translanguaging: a CUNY­NYSIEB guide for educators3 e fornece caminhos concretos para a experimentação de práticas translíngues em sala de aula. Agora, vamos praticar! 2 Bilíngues emergentes são estudantes que estão em um estágio de desenvolvimento linguístico ainda anterior ao esperado para a etapa que cursam, mas que têm de aprender conteúdos por meio da língua que ainda estão aprendendo. 3 Disponível em: https://www.cuny-nysieb.org/wp-content/uploads/2016/04/TranslanguagingGuide-March-2013.pdf. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 131 Atividade 1 Procure no guia citado na seção anterior estratégias que se encaixem nas categorias listadas a seguir e explique como você poderia usá-las. Lembre-se: é importante fazermos uma tradução para nossa realidade pensando em nossos contextos e nos desafios com os quais deparamos. A primeira categoria está preenchida como exemplo. Preciso de ajuda para Ensinar bilíngues emergentes em minhas aulas de ciências. Estratégia para a prática translíngue Como poderia utilizar essa estratégia? Frayer model (p. 158) Diante de um novo conceito científico, essa estratégia ajudaria os bilíngues emergentes a entendê-lo em níveis diferentes usando sua língua de nascimento e o inglês para aprender. Organizar o trabalho em grupo Ensinar estratégias de leitura Ensinar vocabulário Atividade 2 Agora, vamos pensar em como planejar uma unidade didática que privilegie as práticas translíngues. Tendo como base os seis elementos do planejamento que apresentamos na seção 3 (p. 120) escolha um planejamento que desenvolveu que contenha objetivos linguísticos e relativos aos conteúdos e pense em como poderia incorporar nele objetivos linguísticos referentes à translinguagem. 6. Síntese do capítulo Por meio dos relatos que compartilhamos neste capítulo, relembramos como a translinguagem molda nossa compreensão de bi/multilinguismo e a conceituamos como ferramenta pedagógica. Retomamos também os conceitos de stance, design e shift como eixos centrais das práticas translíngues para, então, compreendermos como planejar unidades didáticas que priorizem práticas translíngues. A seguir, sugerimos materiais para aprofundamento na temática. 132 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece a websérie Teaching Bilinguals? Sara Vogel dialoga com professores que compartilham de uma orientação translíngue na websérie Teaching Bilinguals, no canal da CUNY NYSIEB no YouTube. Há vídeos sobre a importância de práticas translíngues para estudantes multilíngues e de professores que utilizam o bi/multilinguismo de seus alunos como um recurso pedagógico. Disponível em: https:// www.youtube.com/channel/UC5PE-qUgT9LHiYq6yuVJ1fw. Você sabia que há pesquisadores brasileiros estudando e discutindo a translinguagem? Confira em: ROCHA, C.; TANZI NETO, A. (org.). Translinguagens: discurso, políticas e pedagogias. Revista X, v. 15, n. 1, 2020. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/revistax/issue/view/2961 Referências bibliográficas CANAGARAJAH, S. Translanguaging in the classroom: emerging issues for research and pedagogy. Applied Linguistics Review, v. 2, p. 1-28, 2011. GARCÍA, O. Bilingual education in the 21st century: a global perspective. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009. GARCÍA, O.; JOHNSON, S.; SETLZER, K. The translanguaging class­ room: leveraging student bilingualism for learning. Philadelphia: Caslon, 2017. GARCÍA, O.; KLEIFGEN, J. Educating emergent bilinguals: policies, programs and practices for English language learners. New York: Teachers College Press, 2010. GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism, and education. London: Palgrave Macmillan, 2014. Como fazer uso da translinguagem como ferramenta pedagógica? 133 Capítulo 8 Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? “Em se tratando de estudantes que aprendem conteúdos por meio de uma língua adicional, é importante que observemos qual o conhecimento que eles têm dessa língua e se ele é o considerado adequado para essa aprendizagem. [...] precisamos avaliar inicialmente se nossos estudantes bi/multilíngues possuem conhecimentos linguísticos compatíveis com o conteúdo que será trabalhado e como podemos promover esse conhecimento, caso não o tenham.” Capítulo 8 Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 1. Uma história para compartilhar Todos os professores que atuam em uma escola bilíngue pública que tem como línguas de instrução o inglês e o português estão em uma reunião pedagógica denominada pelo município de hora-atividade coletiva. No encontro acontece uma proposta de formação continuada cujo objetivo é promover o desenvolvimento profissional da equipe docente por meio das problematizações diárias da unidade. Nesse dia, reúnem-se, além dos professores, a coordenação pedagógica e membros de uma universidade que tem colaborado com a escola. Na reunião, os professores discutem que receberam um pedido da Secretaria Municipal de Educação para informar sobre como seriam as práticas avaliativas da instituição. Embora estipuladas no projeto político-pedagógico da unidade, a secretaria perguntava especificamente como a concepção explicitada no documento se materializaria no parecer descritivo do estudante realizado por toda a rede municipal. Os docentes, então, apontam como cada dupla de professor regente em língua portuguesa e corregente em língua inglesa lidou com a questão no primeiro semestre: em algumas turmas, o parecer foi feito apenas pelo professor regente de língua portuguesa; em outras, os professores o fizeram juntos, mas avaliando somente os conteúdos ministrados em língua portuguesa; e houve casos em que o parecer foi feito pela dupla, porém a avaliação não englobou as questões de aprendizado de língua nem os conteúdos ministrados Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 137 em língua inglesa. Alguns professores se questionam se escreveram no parecer o que deveria realmente ser registrado. Os que ministram aulas em língua inglesa se indagam se deveriam, de fato, participar dessa elaboração. Outro professor pergunta se o instrumento avaliativo (parecer) – muito utilizado na Educação Infantil – é apropriado para escolas bilíngues. Um grupo relata que utilizou a sugestão do material integrado adotado pela escola. A coordenação relembra que, se a escola segue uma concepção de linguagem heteroglóssica, as práticas avaliativas deveriam estar alinhadas a essa perspectiva. No entanto, a equipe não consegue elencar quais seriam essas práticas. As questões essenciais nessa discussão são: y Quais concepções e princípios podem orientar a avaliação em escolas bilíngues? y Como promover uma avaliação integrada e apropriada a esse contexto? Mantenha essas perguntas em mente ao longo da leitura. Retornaremos a elas no decorrer deste capítulo. 2. Objetivos do capítulo Este capítulo tem como objetivos: y Diferenciar as avaliações somativa, formativa e diagnóstica. y Identificar os propósitos e o uso de uma avaliação para escolher o método e os instrumentos que melhor atendam a esses propósitos. y Distinguir abordagens para a avaliação formativa de língua e de conteúdo e suas interfaces. y Considerar os impactos das práticas translíngues na avaliação de bi/multilíngues emergentes. 3. Para entender melhor essa história Estamos, a todo momento, avaliando nossas ações e atitudes. Avaliamos desde uma conversa com um colega até o quanto gastamos quando chega a fatura do cartão de crédito ao final do mês. 138 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Ponderamos se estamos atuando na direção do que planejamos. Decidimos, assim, se a conversa com o colega deve continuar caso esteja agradável ou se gastamos o que podíamos ao longo do mês. Nesse ponto, a prática escolar não é muito diferente. Schlatter e Garcez (2012) explicam que o objetivo é a aprendizagem de nossos estudantes e que, como educadores que conduzem esse processo, planejamos as expectativas de aprendizagem e observamos se estão ou não sendo atingidas como programado. Se estão, por onde devemos prosseguir? Caso contrário, quais intervenções precisamos fazer? Temos de redesenhar os objetivos anteriormente traçados ou, diante dos resultados, planejar algum tipo de intervenção? Segundo os autores, em nossos processos avaliativos, estamos imersos em um complexo sistema de valores historicamente construídos. Esses valores envolvem “as representações e as influências de participantes diretos e externos sobre o que é avaliar, por que é importante avaliar, qual é o papel da avaliação e da correlação na aprendizagem” (SCHLATTER; GARCEZ, 2012, p. 150). O fato é que, ao exercer determinadas práticas avaliativas, favorecemos a manutenção ou interrompemos, como explicam Schlatter e Garcez (2012), uma cadeia de valores historicamente construídos. Nesse sentido, como educadores, é importante praticarmos uma avaliação que contribua não apenas para as aprendizagens dos estudantes, mas também para a construção de outros discursos sobre avaliação (SCHLATTER; GARCEZ, 2012). Stiggins (1991) define esse conhecimento que precisamos ter sobre avaliação como letramento em avaliação. O autor ressalta que os letrados em avaliação buscam e utilizam avaliações que comuniquem claramente o rendimento esperado dos estudantes. Além disso, se indagam sobre “O que essa avaliação diz aos alunos sobre os resultados de rendimento que valorizamos? E qual é o provável efeito dessa avaliação nos alunos?” (STIGGINS, 1991, p. 535). Faz parte do letramento em avaliação a compreensão, pelos educadores, das diferentes modalidades de avaliação e suas funções para que possam, assim, analisar as contribuições que cada uma delas tem para o processo de aprendizagem dos estudantes. De acordo com Haydt (2008), podemos destacar três funções da avaliação: diagnosticar, controlar e classificar. A avaliação diagnóstica é realizada no começo do processo. Essa modalidade de avaliação possibilita a definição de um ponto inicial Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 139 para o trabalho planejado. Nesse sentido, Bloom et al. (1983) explicam que a avaliação diagnóstica tem a função de verificar o que os estudantes sabem ou quais são suas dificuldades sobre o tema que será estudado. Com base nesse diagnóstico, o professor pode (re) planejar o percurso para que tenham oportunidade de aprender novos conceitos e praticar o que têm dificuldade. A avaliação formativa “tem a função de fornecer um feedback informativo à medida que o aluno evolui ou apresenta dificuldades nas etapas de estudo dos componentes considerados importantes na unidade de aprendizagem” (MIQUELANTE et al., 2017, p. 269). As autoras explicam que, com a avaliação formativa, o professor pode tomar decisões relativas aos recursos didáticos, métodos e atividades que serão empregados para que as metas estipuladas sejam atingidas. Alguns estudiosos de avaliação, como Popham (2008) e Shepard (2001), optaram pela utilização do termo “avaliação para a aprendizagem” em vez de “avaliação formativa”. Isso porque esse tipo de avaliação, além de dar informações para o professor, comunica também ao estudante o ponto em que está em suas aprendizagens e como pode prosseguir para atingir as expectativas de aprendizagem delimitadas. A avaliação só é formativa quando os dados coletados ao longo do processo são interpretados e utilizados pelos alunos, colegas e docentes para fazerem as escolhas sobre o percurso a seguir (ARANDA, 2019). Para atingir seu propósito, Wiliam (2013) explica que há três perguntas fundamentais a fazer: i) “Para onde vou?”; ii) “Como faço para chegar lá?”; e iii) “Onde estou?”. Por fim, a avaliação somativa é, segundo Scriven (1967), uma avaliação final que tem como objetivo verificar a aprendizagem dos estudantes ao término de um percurso. Por meio dela, verificamos “em que grau os objetivos preestabelecidos foram atingidos” (MIQUELANTE et al., 2017, p.271). As avaliações diagnósticas, formativas e somativas, segundo Megale e Magalhães (2021), têm diferentes funções ao longo do percurso pedagógico e devem ser utilizadas de acordo com os objetivos em cada etapa do processo. Em se tratando de estudantes que aprendem conteúdos por meio de uma língua adicional, é importante que observemos qual o conhecimento que eles têm dessa língua e se ele é o considerado adequado para essa aprendizagem. Desse modo, precisamos avaliar inicialmente se nossos estudantes bi/multilíngues possuem conhecimentos linguísticos compatíveis com o conteúdo que será trabalhado 140 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores e como podemos promover esse conhecimento, caso não o tenham. Considerando a complexidade da aprendizagem por meio de uma língua adicional, Mahoney (2017) propõe uma abordagem avaliativa que considera a aprendizagem do bi/multilíngue em um contínuo. Essa abordagem contempla quatro princípios: propósito, uso, método e instrumento (PUMI). Segundo a autora, o propósito e o uso determinarão a escolha do método e dos instrumentos mais apropriados, que levem em consideração o conhecimento que os estudantes já têm e comuniquem sobre os próximos passos do educador e dos estudantes. De acordo com Mahoney (2017), o propósito está relacionado ao motivo pelo qual o educador conduzirá determinada avaliação. A autora afirma que muitas podem ser as razões para a condução de uma avaliação: investigar se as abordagens de ensino estão sendo eficazes ou necessitam de algum tipo de ajuste; mensurar a aprendizagem ao final de um percurso; diagnosticar o conhecimento linguístico de estudantes novos, entre outras. O uso, por sua vez, se conecta, conforme Mahoney (2017), às ações que serão desencadeadas pela avaliação. Alguns exemplos de usos diversificados que a avaliação pode ter são definições sobre programas de diferenciação para estudantes com dificuldades ou com conhecimento já acima do esperado, orientação das próximas etapas que os estudantes deverão seguir ou equilíbrio entre suas diferentes habilidades linguísticas. Em relação ao método, a autora explica que deve ser pensado com base no propósito da avaliação e na maneira mais autêntica de atingi-lo. Por exemplo, se o propósito é conhecer a capacidade de argumentação oral dos estudantes, uma prova de múltipla escolha para seleção de um argumento apropriado não é um método adequado. Alguns exemplos de métodos são portfólio, questões de múltipla escolha, arguição e produção escrita. Por fim, o instrumento se refere às ferramentas disponíveis para a condução da avaliação (MAHONEY, 2017). Os instrumentos podem ser, por exemplo, anotações com base nas observações realizadas pelo educador, rubricas para autoavaliação, avaliação entre pares e pelo professor ou gravações em vídeo ou áudio. Esses quatro princípios podem auxiliar no planejamento de percursos avaliativos em situações nas quais os estudantes aprendam a(s) língua(s) ao mesmo tempo que o conteúdo dos componentes curriculares ensinado por meio dessa(s) língua(s). Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 141 Quando focalizamos as práticas avaliativas em escolas bilíngues de uma perspectiva heteroglóssica, García e Wei (2014), entre outros, defendem que a translinguagem pode levar à promoção de uma compreensão mais profunda de um componente curricular e auxiliar os estudantes a desenvolver sua competência escrita e oral, permitindo deslocamentos dinâmicos de uma língua a outra. Os autores reconhecem que a translinguagem nas práticas avaliativas tem o potencial de “avaliar verdadeiramente o que os alunos conseguem fazer tanto linguisticamente quanto em termos de conteúdo” (GARCÍA; WEI, 2014, p. 134). Educadores entusiastas do uso da translinguagem em avaliações reconhecem e valorizam as múltiplas competências dos alunos bi/multilíngues. No entanto, práticas monoglóssicas em avaliação ainda prevalecem. Como discutido no capítulo 7, é fundamental identificar os objetivos linguísticos e relativos ao conteúdo e planejar instrumentos adequados para avaliá-los ao longo de todo o processo. Essa discussão deve ser realizada institucionalmente, para que as concepções e práticas de avaliação sejam compartilhadas por toda a equipe e aportem equidade para a sala de aula. 4. Retomando a história As dúvidas dos professores em relação à avaliação na história que compartilhamos no início do capítulo são legítimas e estão associadas à crença de que a avaliação deve ocorrer somente ao final do processo, e não como forma de retroalimentar o ensino e a aprendizagem. Como vimos na seção anterior, em uma concepção formativa, cujo objetivo é a aprendizagem dos estudantes (SCHLATTER; GARCEZ, 2012), essa discussão deveria ter acontecido ao longo do processo, e não somente ao final, como pedido pela secretaria. Continuar com práticas avaliativas somente ao final do processo favorece a manutenção de uma cadeia de valores historicamente construídos (SCHLATTER; GARCEZ, 2012) que compreende a avaliação como apenas um ato de checagem e classificação. Assim, na busca por romper com esses valores, vamos pensar como esse grupo de professores poderia praticar uma avaliação que contribua não apenas para as aprendizagens dos estudantes, mas também para reorientar as ações dos docentes (SCHLATTER; GARCEZ, 2012). 142 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Com isso em mente, em escolas bilíngues, o desejável seria que professores de ambas as línguas fossem corresponsáveis pelos processos avaliativos, já que, nessas escolas, o currículo é integrado. Desse modo, a avaliação feita apenas pelo professor regente em língua de nascimento, com pouco ou nenhum envolvimento do professor que ministra aula na língua adicional, não seria uma prática que permitiria verificar a aprendizagem dos estudantes em termos de conteúdo e de língua. Nessa perspectiva, a língua em que o estudante é capaz de atingir determinado descritor avaliativo (por exemplo, descrever a sequência de uma cadeia alimentar) é irrelevante. Em outras palavras, se o currículo é, de fato, integrado, ambas as línguas construíram conhecimentos e habilidades que permitem alcançar esse objetivo. Assim, poderíamos ter descritores linguísticos para atingir determinado conteúdo em ambas as línguas. Desse modo, o grupo poderia, primeiro, realizar o levantamento de conteúdos/habilidades de cada série, atrelados ao conhecimento linguístico necessário para desempenhar as habilidades descritas. A abordagem avaliativa proposta por Mahoney (2017), apresentada na seção anterior, que considera a aprendizagem do bi/multilíngue em um contínuo, poderia colaborar para a definição de propósitos, usos, métodos e instrumentos. Daí, sim, os professores poderiam construir coletivamente os instrumentos que lhes permitiriam avaliar o processo de aprendizagem dos estudantes. No relato que compartilhamos, alguns professores questionam se o parecer é um instrumento apropriado e se o que, de fato, escreviam no parecer era o esperado. Ao se mencionar o parecer como instrumento avaliativo para a Educação Infantil, pode-se perceber que já há uma concepção de avaliação formativa na cultura da escola. O grupo poderia, portanto, criar descritores claros em relação a conteúdos e habilidades, como é o caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quanto à língua. Ainda no relato, a coordenação apresenta outra questão importante, relembrando que a escola é orientada por uma concepção de linguagem heteroglóssica e que, portanto, as práticas avaliativas deveriam estar alinhadas a essa perspectiva. De fato, a avaliação em contexto bi/multilíngue é ainda um desafio para a perspectiva heteroglóssica que defendemos neste livro. Discutindo a avaliação somativa com foco em testes padronizados, García e Wei (2014) apontam que a maioria dos processos avaliativos nas escolas envolve Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 143 somente a avaliação em uma língua e, nos raros casos em que há avaliação somativa multilíngue, os estudantes têm de escrever em apenas uma língua. Isso significa que as práticas avaliativas ainda adotam uma perspectiva monoglóssica. García e Wei (2014) sugerem que, por meio de listas de critérios ou rubricas, é possível elencar descritores e os diferentes níveis que podem ser atingidos pelos estudantes e, com isso, chegar a práticas avaliativas condizentes com a perspectiva heteroglóssica. De fato, as rubricas auxiliam o professor a identificar se objetivos pretendidos foram alcançados e, ao mesmo tempo, tornam o processo de avaliação transparente, permitindo que os estudantes acompanhem seu aprendizado. Quevedo-Camargo et al. (2022) enfatizam que a avaliação pela perspectiva heteroglóssica deve dar conta do conteúdo e da língua, levar em consideração as especificidades culturais e bi/multilíngues, valorizar a língua de nascimento e desenvolver um sistema avaliativo apropriado para a Educação Bi/Multilíngue que dialogue com as exigências do sistema educacional brasileiro. Os autores coadunam com García e Wei (2014) em relação à concepção de que a avaliação deve englobar a translinguagem e se basear no desempenho. Esses são parâmetros que podem ajudar o grupo a pensar no planejamento de percursos avaliativos para o contexto específico. 5. Construindo novas histórias Yip e García (2015) apontam que os parâmetros de avaliação utilizados para crianças monolíngues não deveriam ser os mesmos para avaliar crianças bi/multilíngues, porque as monolíngues têm permissão para usar a maioria das características linguísticas em seu repertório para mostrar o que sabem, enquanto as bi/multilíngues, ao serem informadas de que só podem usar uma língua, ficam limitadas a menos da metade de suas capacidades. Segundo os autores, isso pode ser percebido quando observamos as crianças em sala de aula. Por exemplo, uma criança pode ser falante de português e não ser capaz de realizar certa tarefa, mas é possível que consiga realizar a mesma tarefa se acionar os recursos linguísticos diferentes dos incluídos no português. Assim, a principal recomendação para professores que fazem uso da translinguagem como ferramenta pedagógica é que não confundam a capacidade de usar uma determinada língua socialmente com a capacidade de utilizá-la para tarefas acadêmicas. Para Yin e García (2015), 144 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores é essa informação que permitirá que os educadores sejam honestos e verdadeiros sobre o que uma criança bi/multilíngue pode fazer. Nesse sentido, Ascenzi-Moreno (2018) explica que, quando os professores limitam a avaliação de desempenho da leitura de bi/multilíngues emergentes a uma única língua, eles não conseguem avaliar as habilidades de leitura de seus estudantes na totalidade, o que pode acarretar uma avaliação parcial e imprecisa dessas habilidades. A autora sugere uma série de possibilidades para a avaliação formativa de leitura de bi/multilíngues emergentes, como sistematizado no quadro 1. Quadro 1 POSSIBILIDADES PARA A AVALIAÇÃO FORMATIVA DE LEITURA DE BI/MULTILÍNGUES EMERGENTES Componente Formato tradicional Adaptações responsivas Os professores oferecem uma introdução monolíngue ao texto. Os professores podem fazer conexões culturalmente relevantes com o texto, utilizando a língua adicional e a língua de nascimento dos estudantes. Os professores perguntam aos estudantes, de modo monolíngue, sobre seus conhecimentos prévios. Os professores podem acionar os conhecimentos prévios dos estudantes por meio de sua língua de nascimento, da língua adicional ou de ambas. Documentação da leitura dos estudantes Os professores ouvem e documentam a leitura dos estudantes a fim de avaliar a fluência monolíngue e erros na leitura. Os professores criam categorias para linguagem e pronúncia, além dos erros tradicionais de estudantes monolíngues. Reconto Os professores pedem aos estudantes que recontem o texto utilizando apenas uma língua. Os professores convidam os estudantes a recontar o texto na língua-alvo e na língua de nascimento. Devolutiva Os professores relatam a avaliação da leitura e identificam o nível de leitura dos estudantes. Os professores fornecem devolutivas em relação às habilidades de leitura dos estudantes por meio das línguas e dos recursos linguísticos emergentes. Introdução do texto Fonte: adaptado de Ascenzi-Moreno (2018, p. 358). Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 145 A seguir, nos concentraremos na construção de rubricas/descritores para as práticas avaliativas para a sequência didática e para o projeto que construímos nos capítulos 5 e 6. Não se esqueça de incorporar descritores voltados para a translinguagem. Atividade 1 Miquelante et al. (2017) exemplificam como as etapas de uma sequência didática – que discutimos no capítulo 5 – se coadunam com a avaliação diagnóstica, a avaliação formativa e a avaliação somativa. Apresentação da situação Produção inicial Avaliação diagnóstica Módulo I Módulo II Módulo N Produção final Avaliação formativa Avaliação somativa Etapas da SD e suas relações com as modalidades avaliativas. Fonte: Miquelante et al. (2017, p. 93). Cristovão e Torres (2008) defendem que as próprias características do gênero fornecem os critérios necessários para avaliar a produção dos estudantes e que, quando estes passam a ter consciência e controle sobre tais critérios avaliativos, tornam-se mais críticos de sua produção e aptos a se engajar no processo de revisão que colabore para o desenvolvimento das capacidades linguístico-discursivas nessa avaliação formativa. Miquelante et al. (2017) exemplificam como esses critérios avaliativos estão associados ao desenvolvimento das capacidades de linguagem do gênero (quadro 2). 146 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores Quadro 2 CRITÉRIOS PARA A ANÁLISE DAS CAPACIDADES DE LINGUAGEM Capacidades de linguagem Critérios para análise Capacidades de ação Realizar inferências sobre: quem escreve o texto, a quem se dirige, de qual assunto trata, quando foi produzido, com qual objetivo. Avaliar a adequação de um texto à situação em que se processa a comunicação. Levar em conta propriedades linguageiras em sua relação com aspectos sociais e/ou culturais. Mobilizar conhecimentos de mundo para compreensão e/ou produção de um texto. Capacidades discursivas Reconhecer a organização do texto como: layout, linguagem não verbal (fotos, gráficos, títulos, formato do texto, localização de informação específica nele) etc. Mobilizar mundos discursivos para engendrar o planejamento geral do conteúdo temático. Entender a função da organização do conteúdo naquele texto. Perceber a diferença entre formas de organização diversas dos conteúdos mobilizados. Capacidades linguístico-discursivas Compreender os elementos que operam na construção de textos, parágrafos, orações. Dominar operações que contribuem para a coerência de um texto (organizadores textuais, por exemplo). Dominar operações que colaboram para a coesão nominal de um texto (anáforas, por exemplo). Dominar operações que cooperam para a coesão verbal de um texto (tempo verbal, por exemplo). Expandir o vocabulário para permitir melhor compreensão e produção de textos. Compreender e produzir unidades linguísticas adequadas a sintaxe, morfologia, fonética, fonologia e semântica da língua. Tomar consciência das diferentes vozes que constroem o texto. Perceber as escolhas lexicais para tratar de determinado conteúdo temático. Reconhecer a mobilização (ou não) em um texto. Identificar a relação entre os enunciados, as frases e os parágrafos de um texto, entre outras muitas operações que poderiam ser citadas. Identificar as características do texto que podem fazer o autor parecer mais distante ou mais próximo do leitor. Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 147 Capacidades de linguagem Capacidades de significação Critérios para análise Compreender a relação entre textos e a forma de ser, pensar, agir e sentir de quem os produz. Construir mapas semânticos. Engajar-se em atividades de linguagem. Compreender conjuntos de pré-construídos coletivos. Relacionar os aspectos macro com sua realidade. Compreender as imbricações entre atividades praxiológicas e de linguagem. (Re)conhecer o contexto sócio-histórico do gênero. Posicionar-se sobre relações textos-contextos. Fonte: Miquelente et al. (2017, p. 273-274). O quadro 2 mostra como podemos elencar critérios para análise. Assim, é possível utilizá-lo como guia, adaptando-o e inserindo as características próprias de cada gênero, independentemente de qual seja. Desse modo, levando em conta o que discutimos neste capítulo sobre avaliação e sobre a construção de critérios para a avaliação formativa, retome sua produção do capítulo 5 e elabore uma lista de critérios para a avaliação do gênero que faz parte de sua sequência didática. Utilize o quadro 2 para garantir que sua lista de critérios aborde todos os aspectos do gênero escolhido. Atividade 2 O trabalho com projetos também prioriza uma avaliação processual e, portanto, formativa. Markham, Larmer e Ravitz (2008) defendem que os roteiros de avaliação devem estar disponíveis para os estudantes desde o início do projeto e, dependendo do nível de autonomia, eles podem ajudar a criá-los. Assim, os roteiros funcionam como um guia de pontuação, fornecendo uma descrição dos níveis de desempenho de maneira a orientar os alunos e ajudá-los a atingir “um padrão de desempenho, em vez de classificá-los mediante um processo surpreendente que revela quem conseguiu e quem não conseguiu” (MARKHAM; LARMER; RAVITZ, 2008, p. 65). Pensando nisso, escolha um dos produtos criados ao longo do projeto que você construiu no capítulo 6 para ser avaliado. Crie um roteiro com rubricas que possam guiar os estudantes no processo. Não se esqueça de incluir o que discutimos sobre a translinguagem. 148 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores 6. Síntese do capítulo Neste capítulo, por meio da história que compartilhamos, objetivamos discutir sobre avaliação em contexto bi/multilíngue diferenciando as avaliações somativa, formativa e diagnóstica e distinguindo o propósito e o uso de uma avaliação para escolher o método e os instrumentos que melhor atendam a esse propósito. Também tratamos de abordagens para avaliação formativa de língua e conteúdo e consideramos os impactos das práticas translíngues na avaliação de bi/multilíngues emergentes. Para tanto, discutimos uma abordagem avaliativa que considera a aprendizagem do bi/multilíngue em um contínuo. Propusemos a construção de novas histórias – uma história em que professores produzam avaliações formativas com base em desempenho para o trabalho com sequências didáticas e projetos de trabalho, de acordo com a perspectiva heteroglóssica. Finalizamos o capítulo com atividades de produção de parâmetros avaliativos e a seguir sugerimos materiais para aprofundamento. 7. Sugestões de aprofundamento Você conhece o livro The Assessment of Emergent Bilinguals: Supporting English Language Learners? Nesse livro, Mahoney (2017) discute princípios e práticas para a avaliação de bi/multilíngues emergentes ao longo da Educação Básica. A autora apresenta a estrutura PUMI (propósito, uso, método, instrumento) que permite que o educador tome decisões mais informadas e intencionais e as comunique com clareza a seus estudantes bi/multilíngues. Você quer saber mais sobre o conceito de letramento em avaliação de línguas? No artigo “O conceito de letramento em avaliação de línguas: origem de relevância para o contexto brasileiro”, escrito em 2018, Gladys Quevedo-Camargo e Matilde Scaramucci apresentam o conceito de letramento em avaliação, seu desenvolvimento na área da educação estadunidense, sua ampliação para a área de ensino, aprendizagem e avaliação de línguas estrangeiras e sua relevância para o contexto de ensino de línguas no Brasil. Disponível em: Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 149 https://www.researchgate.net/publication/ 327194920_O_CONCEITO_DE_LETRAMENTO_ EM_AVALIACAO_DE_LINGUAS_ORIGEM_DE _ R E L E VA N C I A _ PA R A _ O _ C O N T E X T O _ BRASILEIRO Referências bibliográficas ARANDA, M. T. Avaliação formativa em contextos de Educação Bilíngue: diálogos possíveis. In: MEGALE, A. (org.). Educação bilíngue no Brasil. São Paulo: Fundação Santillana, 2019. p. 119-133. ASCENZI-MORENO, L. Translanguaging and responsive assessment adaptations. Language Arts, v. 95, n. 6, p. 355-369, 2018. BLOOM, B. et al. Manual de avaliação formativa e somativa do aprendiza­ do escolar. Trad. Lilian Rochlitz Quintão; Maria Cristina Fioratti Florez; Maria Eugênia Vanzolini. São Paulo: Pioneira, 1983. CRISTOVÃO, V. L. L; TORRES, A. C. G. Gênero textual como instrumento para o engajamento do aprendiz no processo de avaliação da produção escrita. In: ORTENZI, D. I. B. G. et al. Roteiros pedagógicos para a prática de ensino de inglês. Londrina: Eduel, 2008. p. 195-210 GARCÍA, O.; WEI, L. Translanguaging: language, bilingualism, and education. London: Palgrave Macmillan, 2014. HAYDT, R. C. Avaliação do processo de ensino­aprendizagem. 6. ed. São Paulo: Ática, 2008. MAHONEY, K. The assessment of emergent bilinguals. Bristol: Multilingual Matters, 2017. MARKHAM, T.; LARMER, J.; RAVITZ, J. Aprendizagem baseada em projetos: guia para professores do ensino fundamental e médio. Porto Alegre: Artmed, 2008. MEGALE, A.; MAGALHÃES, S. A formação em diálogo: língua inglesa – livro do professor. São Paulo: Richmond Educação, 2021. 150 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores MIQUELANTE, M. A. et al. As modalidades de avaliação e as etapas da sequência didática: articulações possíveis. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 1, n. 56, 2017, p. 260-299. POPHAM, J. Transformative assessment. Virginia: Association for Supervision and Curriculum Development, 2008. QUEVEDO-CAMARGO, G. et al. Avaliação na educação bi/multilíngue: algumas reflexões. In: LIBERALI, F.; MEGALE, A.; VIEIRA, D. (org.). Por uma educação bi/multilíngue insurgente. v. 1. Campinas: Pontes, 2022. p. 53-63. SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. M. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Porto Alegre: Edelbra, 2018. SCRIVEN, M. The methodology of evaluation: perspectives on curriculum evaluation. Chicago: Rand Mc-Nally, 1967. (AERA Monograph Series on Curriculum Evaluation, n. 1). SHEPARD, L. A. The role of classroom assessment in teaching and learning. In: RICHARDSON, V. (ed.). The handbook of research on teaching. 4. ed. Washington, DC: American Educational Research Association, 2001. p. 1066-1101. STIGGINS, R. Assessment literacy. Phi Delta Kappan, v. 72, 1991, p. 534-539. WILIAM, D. Assessment: the bridge between teaching and learning. Voices from the Middle, v. 21, n. 2, 2013. YIP, J., GARCIA, O. Translanguaging: practice briefs for educators. Theory, Research and Action in Urban Education, v. 1, 2015. Como avaliar produções de estudantes bi/multilíngues? 151 Fundação Santillana Comprometida com a Educação, a Fundação Santillana, presente no Brasil desde 2008, atua na superação das desigualdades educacionais, com base na certeza de que esse é o motor para o desenvolvimento de um país mais justo, democrático, inclusivo e sustentável. As ações promovidas compreendem a disseminação de conhecimentos para munir gestores de instituições públicas e privadas, professores e a sociedade civil com informações de qualidade em defesa da Educação de excelência para todos. Para tal, caminha ao lado de educadores e pesquisadores que constroem saberes na academia e nas salas de aula, sempre na fronteira do conhecimento. Também se dedica a parcerias com organizações nacionais e internacionais. Além disso, a Fundação Santillana realiza e apoia ações que contribuem para o desenvolvimento da Educação, incentivando a produção e a difusão de conhecimentos sobre temas centrais das políticas educacionais, do ensino e da aprendizagem. Fomenta ainda o debate plural sobre desafios e soluções compartilhados por gestores, professores, alunos e famílias em diferentes instâncias e regiões por meio da divulgação de análises, ideias, indicadores e boas práticas nas políticas públicas, assim como incentiva premiações que valorizam e reconhecem professores e gestores. www.fundacaosantillana.org.br Richmond A Richmond é uma empresa global de Educação especializada em soluções e recursos para o aprendizado eficaz de inglês, incluindo programas educacionais de Educação Bilíngue. Sempre atenta às inovações educacionais, desenvolve conteúdos multiplataforma que aliam tecnologia e interatividade à prática pedagógica para garantir uma experiência de aprendizagem plena e contínua. O foco em excelência resultou em quatro indicações como finalista do Prêmio ELTons concedido pelo British Council a produções de todo o mundo, e um primeiro lugar na categoria Excellence in Course Innovation. A empresa também contribui para o desenvolvimento contínuo do ensino da língua inglesa por meio da oferta de programas de desenvolvimento profissional e recursos para o fomento ao aprendizado contínuo para docentes. Na área de responsabilidade social, disponibiliza conteúdos exclusivos como este volume Escola Bilíngue: e ago­ ra? – (Trans)Formando saberes na Educação de professores. 152 Escola bilíngue: e agora? (Trans)Formando saberes na Educação de professores