Imagem Manolo Valds.
Sentou para
escrever e respirou fundo. Mas quando ia começar a pôr na telinha o que lhe ia
n’alma – enfim uma chance de usar essa expressão! – o telefone tocou. Era a
Geruza, amiga dos tempos do colegial (colegial era então o nome do ensino
médio), que tinha descoberto seu telefone pela Norma, lembra da Norma?, que
encontrou no supermercado. Ficou tão contente, a Geruza, e ela também, porque
afinal não é todo dia que se recebe uma chamada assim para falar de um pedaço
da vida que se desfrutou junto... Aí o celular chama. Pede licença à crise
saudosista da Geruza e atende. É o bombeiro avisando que o orçamento do
material ficou em seiscentos e oitenta pratas, o que somado à mão-de-obra dá um
total de mil e quinhentas pesetas. Despacha o homem sem fechar nada, que isso
não é coisa pra ser decidida apressadamente, e volta à Geruza, já recuperada e
resgatada da beira das lágrimas (sempre foi tão sentimental, essa minha amiga)
e agora conta novidades quentíssimas sobre a Marly, lembra da Marly? Pois é,
minha filha, deixou o Leo, lembra do Leo?, e agora está sabe com quem? Você não
vai acreditar.
Você – no caso
ela – nem quer acreditar, porque isso não lhe interessa a mínima. Pra cortar o
papo sem empanar muito a alegria da Geruza, diz que está atrasada para a hora
do dentista e marca um encontro pro sábado à tarde no shopping.
Senta de novo
para escrever e respira fundo. Na quarta linha precisa levantar para abrir a
porta pra Rosa, a empregada, que esqueceu a chave. Pede a ela que atenda o
telefone e a porta e anote os recados.
Senta de novo
etc. Pela altura da décima linha chega-lhe aos ouvidos um estardalhaço do que
parece um tiro, gritos e vidro quebrado que a arranca da cadeira de um salto,
achando que chegou sua hora de testemunhar a manchete da seção policial do dia
seguinte. Corre à janela, mas ainda não vai ser dessa vez. Foi só um pneu
estourado, os gritos são de dois motoristas alterados que nem sequer sacaram
armas nem têm mesmo cara de quem vai sacar, e os vidros são lanternas em cacos
sobre o asfalto.
Volta ao
escritório e dessa vez respira fundo antes de sentar, pra ver se dá sorte e
também pra reduzir o nível da adrenalina. Mais serena, senta de novo. Num
relativo e abençoado silência de quinze minutos consegue fechar duas laudas no
monitor, mas aí Rosa chama. É o carteiro, tem que assinar. Podia ser você
mesma, viu? Quando for pra assinar... – ia dizendo, mas Rosa já sumiu da vista.
O carteiro tem pressa e se irrita visivelmente porque ela não trouxe logo a
caneta. O senhor não tem? – ela pergunta, e ele nem responde, se limita a
lançar um olhar de desprezo de quem ouviu uma bobagem dessas que a gente nem
responde. E como Rosa voltou para o tanque e de lá não escuta chamar, ela mesma
vai para dentro pegar a caneta que teoricamente fica sempre no bloquinho junto
ao telefone, no momento desaparecidos ambos. Procura dali e daqui, percebe que
está mais preocupada do que devia com o estresse do carteiro, e resolve não se
apressar mais. Como sói acontecer em tais casos, acha a caneta assim que relaxa
a musculatura espatular e solta as cervicais. Volta à porta, à qual o carteiro
se recostara acintosamente e agora coçava a barriga com aparente volúpia. Pega
a folha amassada que ele lhe estende e assina bem devagar, pra ver a reação
dele, que lhe dá as costas com a brusquidão de quem odeia.
O telefone
toca, e como passava por ele bem na hora, atende. Não devia, porque é tia Malu,
a solitária, que precisa contar a alguém o que de rotineiro lhe aconteceu na
véspera, as gracinhas de sua cadela decrépita e a evolução dos males que
achacam sua vida, o que leva em média quarenta e cinco a sessenta minutos
cravados. Mas o que significa esse tempo, afinal tão curto, pra quem trabalha
em casa, nessa vidinha mansa – uma vantagem que não é pra qualquer um, não é
mesmo? É sim, tia, ela murmura abafando um suspiro. Nada como ter uma sobrinha
tão boa como você, você sempre foi uma pérola, e me conhece tão bem, sabe desta
minha vida, como fico sozinha, você nem imagina. Os filhos são todos muito
egoístas, só pensam em suas famílias, suas ocupações... Têm que ganhar a vida,
tia Malu – mas tia Malu não escuta, toda mergulhada em seus queixumes. Corta a
arenga com um beijo e volta ao computador.
Onde estaria
mesmo? Nem bem reencontra o fio dos pensamentos, ouve a campainha de novo, mas
dessa vez decide ignorar tudo que não seja o texto a sua frente. Três minutos
depois, porém, Rosa lhe aparece com uma cara estranhíssima, seguida de um
sujeito atarracado e armado e de outro, comprido e de touca ninja.