I
Foram apenas três números – o terceiro chegou a ser impresso, embora não
tenha sido distribuído –, mas que mudaram a história da Literatura Portuguesa
no século XX. Trata-se da revista Orpheu,
que, lançada ao final de março de 1915, completa neste ano um século de seu
aparecimento, marco do pensamento estético-literário do movimento lançado por
Luís de Montalvor (1891-1947), Fernando Pessoa (1888-1935), Mário de
Sá-Carneiro (1890-1916), Almada Negreiros (1893-1970), Augusto de Santa Rita (1888-1956),
o Santa Rita Pintor, e outros integrantes de um grupo que à época escandalizou
a bem-comportada burguesia lisboeta.
Para marcar o centenário dessa publicação, o professor, poeta e crítico
literário Carlos Felipe Moisés (1942) organizou, prefaciou e escreveu notas
para o livro Orpheu 1915-2015 – Textos
doutrinários e fortuna crítica (antologia), lançado em dezembro de 2014
pela Editora Unicamp. Na primeira parte do livro, o autor colocou os
textos-gêneses do movimento, que expõem a estrutura teórica do modernismo
português e constam dos três números da revista.
Já a segunda parte traz textos mais recentes, que discutem a influência
do movimento nas artes, assinados por José Régio (1901-1969), João Gaspar
Simões (1903-1987), Jacinto Prado Coelho (1920-1984), Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972), Jorge de Sena (1919-1978), José Gomes Ferreira (1900-1985),
Eduardo Lourenço (1923), Maria Aliete Galhoz (1929), Eugênio Lisboa (1930), Arnaldo
Saraiva (1939), Nuno Júdice (1949) e Luís Adriano Carlos (1959), além do norte-americano
Richard Zenith (1956), pesquisador radicado em Lisboa, e do brasileiro Massaud
Moisés (1928), professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP).
II
Não se pode dizer que o movimento do Orpheu
mudou também a Literatura Brasileira, embora tenha antecipado em sete anos
o frenesi da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. Contou ,
porém, com a participação de dois personagens que, influenciados pelo simbolismo
que se praticava no Brasil à época, muito contribuíram para o surgimento da
revista: um foi o diplomata brasileiro Ronald de Carvalho (1893-1935), que
mandou sua colaboração em versos do Rio de Janeiro, e outro o português Luís da
Silva Ramos, o Luís de Montalvor, que, assessor do embaixador de Portugal no
Rio de Janeiro, voltava a Lisboa impregnado por um gosto mallarmeano de fazer poesia que era a origem do simbolismo. Teriam
idealizado a revista em conversas no bairro de Copacabana.
Um no Rio de Janeiro e outro em Lisboa, eles aparecem como diretores do
primeiro número da revista Orpheu,
que trazia também o drama estático O
Marinheiro, de um poeta de 27 anos de idade, pouco conhecido à época, mas
que seria o mais famoso de seus colaboradores, Fernando Pessoa. Segundo Adolfo
Casais Monteiro, Ronald de Carvalho e Luís de Montalvor seguiam uma linha
simbolista ou decadentista ou ainda seriam adeptos do aristocratismo
mallarmeano, que pouco tinha a ver com o “futurismo” de Pessoa, Almada
Negreiros e Sá-Carneiro.
Que o aparecimento da revista foi um escândalo não há duvida. Tanto que
uma nota publicada no jornal A Capital,
de Lisboa, de 28 de junho de 1915, reproduzida por Carlos Felipe Moisés no
prefácio, dizia que os “poetas e prosadores do Orpheu sofrem quase todos da cabeça”, chamando-os de “artistas de
Rilhafoles”, nome pelo qual era conhecido o Hospital Miguel Bombarda, primeiro
manicômio da cidade, instalado no antigo Convento de Rilhafoles e desativado só
em 2011. Segundo Almada Negreiros, à época, chegou-se a pedir em Lisboa “camisa
de forças para Fernando Pessoa”, como se lê em texto de João Gaspar Simões.
III
Fosse como fosse, ainda que Pessoa e Almada Negreiros tenham vibrado com
os comentários desaforados a respeito dos “rapazes do Orpheu” – o diário O Jornal,
de 13 de abril de 1915, chegou a chamá-los de “loucos varridos, seres
degenerados e perigosos, morfinômanos, cocainômanos” –, houve um rompimento no
grupo inicial. Tanto que no segundo número aparecem como diretores Fernando
Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Diz Casais Monteiro que bastou uma atitude mais
escandalosa de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, para afastar
Luís de Montalvor do grupo, preocupado talvez em não prejudicar politicamente
sua carreira no governo.
O segundo número teve igual êxito, mas venderam-se apenas 600 exemplares.
O problema foi pagar a conta da tipografia. O pai de Sá-Carneiro, que já pagara
a edição de Céu em fogo, livro do
filho, relutaria em pagar também a conta da impressão da revista. Em crise
existencial, Sá-Carneiro iria às pressas para Paris, depois de considerar
“irrespirável” o ar que se sentia no café Martinho, de Lisboa, local de
encontro de intelectuais.
Mesmo assim, o Orpheu 3 vai
para a gráfica. Até que uma carta desesperada de Sá-Carneiro vinda de Paris
para Pessoa exige que seja suspensa a edição da revista, depois que o pai do
poeta se recusara a assumir também aquele compromisso. Logo em seguida, veio a
notícia do suicídio de Sá-Carneiro em Paris.
Os textos reproduzidos nos dois primeiros números da revista (ao terceiro
poucos teriam acesso) foram, no entanto, suficientes para derrubar os mitos
culturais herdados do passado e dessacralizar os modelos conceptuais recebidos
de uma tradição tão velha quanto a Idade Média, como assinalou Massaud Moisés.
No dizer de Eduardo Lourenço, a importância extrema de Sá-Carneiro e
Pessoa na poesia portuguesa é precisamente a de terem chegado no fim desse
movimento doloroso e exaltante e terem tido olhos, imagens e vida para tomar
parte num confronto decisivo para o esclarecimento dos limites e poderes da
alma humana. “Um perdeu aí a vida que mal tinha, o outro a que poderia ter
tido. Assim ganharam a que finalmente haviam de ter”.
IV
Carlos Felipe Moisés é mestre e doutor em Letras pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com larga carreira de
pesquisador e crítico literário dedicada à Literatura Portuguesa, em especial à
poesia de Fernando Pessoa. Tem mais de 40 livros entre publicados/organizados
ou edições, entre os quais se destacam O
poema e as máscaras (1981), Mensagem:
roteiro de leitura (1996) e Fernando
Pessoa: almoxarifado de mitos (2005), dedicados ao estudo da obra pessoana.
Colabora em periódicos especializados e grandes jornais, desde os anos
60. Poeta e tradutor, foi professor da USP, de 1966 a 1991, quando se
aposentou, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), de 1966 a 1968, da Faculdade de
Filosofia de São José do Rio Preto-SP, de 1966 a 1967, e da
Universidade Federal da Paraíba (1977). É professor da Universidade São Marcos,
de São Paulo, desde 2000. Passou duas temporadas nos Estados Unidos, ensinando
na Universidade da Califórnia, em Berkeley (1978-1983) e na Universidade do
Novo México (1986). Desde 1990, coordena oficinas de criação literária no Museu
da Literatura, em São
Paulo.
Seus livros de poesia são: Carta de
marear (1966) Poemas reunidos (1974),
Círculo imperfeito (1978), Subsolo (1989), Lição de Casa & poemas anteriores (1998) e Noite nula (2008), o mais recente. Sua obra ensaística inclui
ainda, entre outros títulos: O
desconcerto do mundo (2001), Poesia e
utopia (2007) e Tradição e ruptura
(2012);
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Orpheu 1915:2015 – textos
doutrinários e fortuna crítica (antologia), de Carlos Felipe Moisés,
organização, prefácio e notas. Campinas-SP: Editora Unicamp, 301, págs., R$ 54,00,
2014. E-mail: [email protected] Site: www.editora.unicamp.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na
área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada,
1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage
– o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: [email protected]