segunda-feira, 30 de maio de 2011

O desejo de um novo 1968 (Valor econômico)

Renato Janine Ribeiro

30/05/2011

Nesta sexta-feira de manhã, fui do aeroporto ao centro de Barcelona, para falar no encontro da Academia da Latinidade sobre o imaginário democrático. Quando chegava, outra participante, a tunisiana Hélé Beji, dava uma entrevista à televisão espanhola sobre a revolução em seu país. De repente, ouvimos os helicópteros da polícia catalã que começavam a tarefa, que terminou sangrenta, de retirar as pessoas que ocupavam a Plaça de Catalunya pedindo uma política melhor e diferente. Com o ruído, ficou impossível ela gravar. "Igualzinho ao que aconteceu na Tunísia", comentou.

Mais tarde, pelas 20h, estive na praça. Mais de cem pessoas tinham sido feridas ao meio-dia; ao entardecer, havia jovens e gente madura: muitos com flores nos cabelos, ou cartazes escritos a mão, geralmente com frases de Gandhi. A calma era absoluta. Eu imaginaria, se fosse no Brasil, um clima de pós-devastação, mas não foi o caso. Não era um ambiente de ressaca ou fim de festa. As coisas estavam sóbrias, mas não tristes.

O Mediterrâneo está passando de uma primavera a outra. Primeiro, foi a primavera árabe, que na verdade começou no inverno mas, enfim, a imagem que pegou é a da primavera, a primeira estação, a inaugural, a das flores, da vida e da beleza. Lá se rompeu um paradigma idiota, o do conflito das civilizações, caro a Huntington e aos conservadores. Está-se mostrando possível unir democracia e cultura islâmica como, por sinal, há tempos propõe Tariq Ramadan, outro pensador que frequenta as reuniões da Academia da Latinidade. Mas, agora, está sendo a primavera ibérica, que é bem diferente.

Utopia: uma energia que a política não sabe como absorver

Por que a diferença? Porque a questão é a de uma nova política. Ou deveríamos falar em duas novas políticas. A fusão do islamismo com a democracia é muito importante. Curiosamente, desde que se provou que o Iraque não tinha armas de destruição maciça e que o pretexto de Bush para invadir aquele país rico em petróleo era falso, a direita norte-americana assumiu o discurso da mudança de regime - isto é, da implantação da democracia no mundo islâmico, a começar pelos países ocupados, Iraque e Afganistão. Mas foi uma democracia não-preparada, com colaboracionistas locais de pouca credibilidade e desrespeito por culturas que os ocupantes desconheciam. O que ora sucede na margem sul do Mediterrâneo são movimentos autônomos, que incomodam as potências ocidentais por questões geopolíticas, mas têm raízes nas suas próprias sociedades. Se derem certo, o que não está garantido, mudará a política mundial.

Já na Espanha e em Portugal se quer outra coisa. Na verdade, a palavra certa não é o que se quer: é o que se deseja. Há a convicção de que se esgotou a maneira usual de fazer política usual. Por isso, muitos dos que vão às praças ibéricas não se importam com as eleições que houve na Espanha e haverá em Portugal. O resultado delas pode beneficiar os políticos conservadores. Mas os manifestantes não se batem por uma política menos ruim, com redução de danos, menos opressiva. Lutam por outra coisa.

Penso que as gerações que não tiveram, como a minha, a oportunidade de ser jovens em 1968 acabaram mitificando - mas com razão - aquele ano. Vejam: desde que entramos na era das revoluções, timidamente com a inglesa de 1688, decididamente com a americana de 1776 e a francesa de 1789, elas têm duas características. Primeiro, são imprevisíveis. Mas, segunda, depois de acontecerem, são explicáveis. Dá para encontrar suas causas, usualmente econômicas, talvez sociais. Dá para mostrar que era impossível continuar o sistema colonial, ou feudal, ou o atraso russo.

A grande exceção foi 1968. Não há explicação para a enorme explosão que tomou conta do mundo. Sua causa mais provável pode ter sido, simplesmente, o tédio. Uma semana antes de começar, com a invasão do dormitório feminino de Nanterre pelos rapazes, um jornalista francês, Pierre Viansson-Ponté, publicava um artigo com o título "A França está entediada". Não havia uma crise econômica notável, desemprego significativo, guerra colonial, nada disso. Mas as pessoas não aguentavam mais alguma coisa vaga, porém insuportável.

Nem os revoltosos do maio francês sabiam o que estavam fazendo. Muitos usavam os slogans marxistas e acreditavam fazer uma revolução bolchevista, com as adaptações requeridas por ocorrer num país desenvolvido, culto e com forte sociedade civil. O que chamamos de "maio de 1968" só nasceu uns dois anos depois, à medida que foi sendo evocado - depois que o Partido Comunista deixou claro que não faria a revolução. Prevaleceu então a lembrança anárquica, criativa, sobre a crônica do que realmente sucedera. Foi um caso excepcional de invenção da memória, com toda a riqueza que essa pode trazer.

Desde então ressurge, cada poucos anos, um anseio por um 1968 - claro, pelo 68 mítico. É um desejo de utopia. Surge sem causa ou, se há causas, não são suficientes para explicar a consequência. A primavera ibérica pode dar em nada. Mas mostra, pelo menos, que o melhor da energia da sociedade, pelo menos de tempos em tempos, anseia por algo que seja político, mas completamente diferente de "tudo o que está aí". No Brasil o PT soube, por um tempo, captar essa energia. Isso terminou. Mas continua havendo, mundo afora, esse desejo, que nem os ecologistas conseguem absorver. Descartá-lo como "utópico", no mau sentido, é esquecer que só ele pode renovar a política. Acreditar que possa ser tomado pelos partidos existentes é uma ilusão. O fato é que, até hoje, essa energia trouxe resultados aquém dos esperados, mas além dos previstos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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terça-feira, 24 de maio de 2011

O PT vai encarar a corrupção?

O PT vai encarar a corrupção?

Renato Janine Ribeiro
23/05/2011

Podemos resumir assim a questão do ministro Antonio Palocci: se, nos últimos anos, ele usou o conhecimento intelectual que obteve como ministro para aconselhar empresas, não cometeu falha legal nem, provavelmente, ética. Nossa lei não impõe quarentena após o exercício de cargos públicos. Mas, se ele empregou conhecimentos (ou relações) no governo para favorecer tais empresas, está errado moralmente e talvez também do ponto de vista legal. Como está errado se o que recebeu estes anos foi em recompensa por benefícios eventualmente concedidos a empresas.

O problema é descobrir em qual hipótese está Palocci. Ele se recusa a abrir o nome de seus clientes. Isso deixa a questão em aberto. Se ele é honesto, publicar a relação de seus clientes viola um princípio básico da relação empresarial - o do sigilo entre as partes. Nenhuma empresa ou indivíduo é obrigado, em condições normais, a revelar com quem tem negócios ou amizade. Só o fisco tem direito a saber que clientes a consultoria Projeto teve. Essa informação não pode ser repassada a ninguém.

Mas a grande dúvida está aí. Sem conhecer seus clientes e os serviços que lhes prestou, não sabemos se Palocci agiu bem ou não. É um círculo vicioso. Se ele divulgar a clientela, violará um preceito fundamental de confiança nos negócios, publicando um assunto privado. Mas, se não divulgar, não saberemos se o assunto era mesmo privado - ou se entrou em jogo o meu, o seu, o nosso dinheiro. O que fazer?

O casamento do PT com a ética está em crise faz tempo

Tenho uma proposta. Por que não confiar essas informações, hoje sigilosas, a uma comissão de pessoas que conheçam bem o mundo dos negócios e mereçam nosso pleno respeito ético? Não é impossível encontrar três notáveis, em cuja palavra possamos confiar, e que prometam guardar total segredo sobre o assunto - a não ser, claro, que concluam pela culpa do ministro. Porque, hoje, a situação é ruim. O ministro e o governo, não fornecendo detalhes sobre o caso, expõem-se à suspeita. O interesse do ministro, e sobretudo do governo, deveria estar em eliminar as desconfianças. Até agora, não conseguiram. Dizer que foi a empresa que enriqueceu, e não o dono de 99% dela, ou lembrar que seus antecessores no ministério também lucraram depois de sair do governo, não convence os desconfiados de que Palocci tenha agido corretamente. Por isso, sugiro: busquem-se três pessoas dignas, sem compromisso com a oposição nem o governo, que possam examinar o caso.

Na verdade, e aqui mudo completamente de patamar, há muita preocupação de gente que simpatizou com o PT ou mesmo o ajudou a fundar, com a leniência do partido com a corrupção. Deixo claro que não saberia julgar o caso Palocci - nem a culpa ou inocência de Delúbio Soares. Mas conto uma história. Em 2010, durante a campanha eleitoral, encontrei um amigo. Ele estava irritadíssimo com o que chamou a corrupção no PT. Quando alguém lhe disse que os demais partidos agiam do mesmo modo, ele respondeu: "Mas o que PMDB, PSDB e DEM fazem ou fizeram não me importa! Não votei neles. Nunca tive esperança nenhuma neles. Agora, do PT, esperei que fosse um partido honesto. Não me decepciono com os outros. Com ele, sim".

Já ouvi comentários dessa ordem. Quando fui diretor da Capes, alguns de meus colaboradores, servidores do Estado e não do governo, inclusive detentores de cargos de confiança, me diziam: "Sempre votei no PT mas, desde 2003, me desapontei; não voto mais nele". O estranho é que, na discussão política atual, essa voz "do meio" é pouco mencionada. Há pessoas que, porque o governo Lula introduziu definitivamente em nossa agenda política a questão social, relevam a complacência com a corrupção. E há quem, para condenar o governo petista, usa qualquer argumento, mesmo a mentira e o absurdo. Vemos defesa e ataque incondicionais. O que menos aparece são os matizes da decepção, de quem reconhece os ganhos sociais, mas lamenta o declínio moral.

Porque o PT, durante vinte anos, foi o partido que unia ética e justiça social. Promover a justiça social era um imperativo ético. Ganhar eleições era secundário, o fundamental era mudar o país, a sociedade, acabar com a miséria e com a corrupção. Um bordão como o da oposição em 2006 - "Por um país decente, Alckmin para presidente"-, opondo a ética ao PT, seria impensável meros três anos antes.

Esta não é a opinião apenas de inimigos do PT. Foi o que levou um dos ativos morais petistas, Helio Bicudo, a deixar o partido. Mesmo quem faz uma avaliação muito positiva do governo Lula, como Candido Mendes em seu Mudança e subcultura - por que me envergonho do meu país, afirma que houve corrupção. Mesmo quem avalia de maneira razoavelmente positiva as ações de Lula, como Perry Anderson, uma das referências da esquerda mundial, diz que houve corrupção. E não é porque o PT, desde 2002, ganhou votos entre os pobres que devem ser desdenhados seus antigos eleitores que se decepcionaram com ele no governo. Essas questões precisam ser tratadas a sério, sem se reduzir ao jogo político entre governismo e oposição.

Concluo, dado que falei em Delúbio Soares, pela questão do "mensalão". Sabemos que logo prescreverão algumas acusações contra os indiciados. Mas por que o PT não tomou a dianteira e não confiou, a pessoas respeitadas pela gente de bem que há no Brasil, uma apuração independente, ética, do caso? Uma coisa é o que diga a Justiça, na qual há prazos, protelações e formalismos. Outra é o que a consciência ética conclua. É pena, e ouço amigos meus dizerem isso com freqüência, que o casamento que parecia indissolúvel do PT com a ética tenha se tornado uma relação frouxa.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Mais Estados, não: mais Ibama, sim

(Artigo no Valor econômico, 16 de maio de 2011)

Mais Estados, não: mais Ibama, sim

Renato Janine Ribeiro


Duas semanas atrás, tivemos uma surpresa quase inacreditável: o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu plenos direitos aos homossexuais. Algo que eu não imaginava possível e que dificilmente o Congresso teria a coragem de votar, ou o poder executivo de sancionar, após a baixaria que foi a manipulação da questão do aborto, na campanha eleitoral. Mas, no Brasil, é raro uma notícia boa ser servida sem uma guarnição amarga: quase na mesma hora, soubemos que o Congresso aprovara plebiscitos, a realizarem-se ainda este ano, para criar dois novos Estados que seriam desmembrados do Pará.

Se essas consultas tiverem lugar só nos municípios que viriam a constituir as novas unidades da Federação, é quase certo que vença o “sim”. Na verdade, entendo que deveriam ser consultados todos os paraenses, porque seu atual Estado perderá população, território e recursos; ou todos os brasileiros, porque deveremos financiar as eventuais unidades federadas e, além disso, mudará o perfil da Câmara e do Senado.

Mas, para a política tradicional, é um presente dos céus. Haverá mais dois governadores (um para cada Estado novo), seus vices, 48 deputados estaduais, 16 federais, seis senadores, uns vinte ou mais secretários de Estado, outro tanto de desembargadores dos Tribunais de Justiça, membros dos Tribunais de Contas, isso para ficar só no topo das máquinas políticas. Um cálculo do IPEA, mencionado no site do professor Fábio Fonseca de Castro (http://hupomnemata.blogspot.com/2011/05/os-quatro-custos-de-dividir.html), da Universidade Federal do Pará, considera que um eventual Estado do Tapajós gastaria 34% do seu PIB só para manter sua administração. Essa elevada conta não inclui os investimentos que cada Estado deveria realizar, e sem os quais não haveria sentido em criá-los.

Melhor explorar a biodiversidade que criar mais Estados

Aos cidadãos dos possíveis Estados se venderá a ilusão de que sua vida melhorará – e aqui está o problema. A ideia de que, pela criação de novas unidades federadas, as regiões mais pobres se desenvolverão é uma grande falácia. Está presa a um modelo político superado, que supõe que, multiplicando as funções de governo, o Estado fica mais perto das pessoas e eleva os indicadores sociais.

Com a mesma argumentação, por sinal, temos hoje propostas criando um total de dezoito novos Estados. Passaríamos das atuais 27 unidades federadas para 45; o Senado subiria para 135 membros e a Câmara aumentaria em cem deputados ou mais, sem contar pelo menos 300 novos deputados estaduais. Todos esses possíveis Estados, com a exceção talvez de São Paulo do Oeste e do Triângulo Mineiro, precisariam de aportes federais para sua simples subsistência. Também por isso, seriam incapazes de realizar os investimentos sociais e econômicos que deveriam fazer. Na verdade, como o Brasil aumentaria os gastos com administração, teria menos dinheiro para a economia e a sociedade. O poder público despenderia mais com atividades-meio, à custa de suas atividades-fim.

Para sentirmos a dimensão histórica dessas propostas, basta lembrar que, nos 71 anos que foram da proclamação da República até a transferência da capital para Brasília, em 1960, não foi criado nenhum novo Estado – aliás, a conta exata é de 107 anos, desde que o Amazonas se separou do Pará (1850) e o Paraná de São Paulo (1853), só que na época essas unidades se chamavam províncias e não Estados. Já no meio século que vem desde a mudança do Distrito Federal para o Planalto, foram criados seis Estados, aos quais agora se somariam Tapajós e Carajás, a maioria deles com poucos recursos próprios.

E no entanto... Nossos Estados mais pobres, situados em especial na Amazônia, no Centro-Oeste e no Nordeste, e ainda mais suas eventuais subdivisões ora cogitadas, podem conhecer um extraordinário desenvolvimento se sairmos desse modelo de criação de Executivo, Legislativo e Judiciário próprios, para o da exploração científica da biodiversidade. É nessas regiões que se situa o todo ou a maior parte dos distintos biomas que são a Floresta Amazônica, a caatinga, o cerrado e o pantanal, sem contar trechos da Mata Atlântica. Esses complexos são bem diferentes entre si, mas são, todos, ricos. Neles há muito a descobrir, a desenvolver, a utilizar. Iniciativas de nossos cientistas, ou de empresas que utilizam plantas para a produção de cosméticos, mostram um potencial de expansão que é notável.

Além disso, esses Estados entrariam num modelo de desenvolvimento sem os vícios daquele que fez São Paulo, por exemplo, crescer – mas que levou esse Estado, hoje, a uma crise monumental, da qual terá dificuldade para sair. A unidade mais rica da Federação enfrenta problemas de moradia, trânsito, poluição e segurança que será bastante complicado – e caro – resolver. Estados hoje mais pobres, mas que escolham a via do desenvolvimento sustentável, poderão evitar os erros cometidos nas unidades atualmente mais prósperas, escapando a problemas que a cada dia se agravam.

Qual seria, então, o melhor caminho para os brasileiros dessas regiões? Não é a solução já caduca de criar cargos para políticos. É aumentar o Ibama, isso sim. É termos órgãos públicos, estatais ou não, que invistam mais e mais no conhecimento da diversidade das formas de vida, na exploração dessas riquezas pelas populações locais, no uso sustentável delas para uma produção bastante diversificada de bens que terão, além de suas qualidades próprias, a vantagem econômica que um selo verde representa cada vez mais no mercado internacional. Por isso, em vez de aumentar o número de governadores, deputados e senadores, melhor será ampliar o Ibama.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras

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