Usuário:DanielTom
“ | Não, eu não posso negar-vos, meu amado Ático, que considerados em si mesmos não sejam bens os que chamamos bens da fortuna – honras, postos, comandos, riquezas, servos, palácios – porque todos podem contribuir para nosso prazer e comodidade; mas é preciso advertir, que o maior preço e valia que têm estes bens, lhes são dados por nossa opinião e imaginação ou fantasia. Sem estes bens tão pomposos e esplêndidos pode cada um de nós ser feliz na terra – isto é, gozar daquela tranquilidade d'alma, que é a verdadeira ventura compatível com a mortalidade. É rematada loucura afligir-se a gente e amargurar-se tanto com a privação destes bens. Isto vos parecerá um lugar comum em filosofia; mas assim mesmo é a mais importante lição em moral. Não é menos lastimosa loucura nutrir no coração fogosos mas inúteis desejos de os conseguir. Com uma pequena dose de siso que vos haja tocado em sorte, conhecereis, que nós não devemos fabricar a desventura quando dizemos que buscamos e inquirimos a felicidade. Entre as máximas do estoicismo que eu tanto prezo, sempre dei grande valor àquela que tantas vezes repito: que a Natureza se contenta com pouco. Serei sempre rico, se com muito pouco me contentar. Com efeito, não é preciso muito para saciar a nossa fome e sede: tudo o mais é supérfluo, tudo o mais é filho da opinião. Vós conhecereis esta verdade até no seio da grandeza em que nascestes. Um vestido competente que nos cubra, e nos defenda das injúrias das estações, basta ao homem; o mais é opinião, e vaidade. O grão-pensionário da Holanda, visitando o filósofo Espinoza, se admirou da simplicidade e talvez pobreza de seus vestidos, a que judiciosamente respondeu este singular engenho, que a caducidade do edifício humano não necessitava de mais ricas armações e tapeçarias. E na mesma Holanda o filósofo Descartes nunca quis trajar mais que um simples lemiste. Vergonha é para o sábio ver a filosofia empenhada em lhe persuadir esta verdade, que a todas as horas se escuta na boca do homem rústico e iliterato: dentro da mais pobre e apertada choça se pode achar alvergue, guarida, e repouso; não há necessidade de grandes palácios. É verdade que a vista de grande fazenda, o aparato dos comandos, a elevação dos postos, encantam, fascinam, e prendem a fantasia, e o sempre vaidoso espírito humano. O que os não possui, emprega todos seus desejos, e se atormenta e crucifica para os possuir, e o que os possui não se suspende, deseja ainda coisas maiores. Muita impressão faz em nossa fantasia a pompa que acompanha os ricos e os constituídos em dignidade! Julgamos que os que a este ponto têm chegado nada precisam, que tudo lhes sobra, e que a alegria e o prazer habitam unicamente na casa dos potentados; este prazer vive excluído e desterrado da morada do pobre: mas é preciso usar aqui de balanças mais fiéis. Primeiramente, o sábio conhece que sempre devem existir pobres no mundo, e que isto convém à boa ordem do mesmo mundo: o sábio se acomoda ou amolda a esta ordem com deferência e fortaleza. Não existiriam muitas artes se não existisse a pobreza. Quem desterrasse do mundo a necessidade, veria todo o género humano num contínuo espasmo. Com a mais ligeira atenção podeis conhecer quantas fadigas e sobresaltos são precisos para ajuntar riquezas; quantos cuidados para as conservar, e quantos desastres trazem consigo os importunos pleitos, de que elas são princípio e poderosa causa. É verdade que nos palácios dos ricos não tem entrada a miséria; mas talvez que permaneça em seus corações, se a riqueza não anda acompanhada da virtude. Será belo todo o exterior, prazer, magnificência, alegria, mas se pudéssemos penetrar o âmago, veriamos o contrário. Desejos contínuos, ambição sempre descontente e nunca farta; temores, despiedados remorsos, e cruéis arrependimentos; e aquelas tão invejadas dignidades e luminosos cargos, atravessados de impaciências, d'espinhos, mais penetrantes e pungentes ainda do que se nos representam os dos pobres. Observai bem, e vereis que nunca têm repouso servos do monarca, servos do público; perderam a liberdade, e sofrem mais penitências e fadigas mais penosas que as dos mais rígidos cenobitas: temem sempre os eclipses e os precipícios, e ainda que conheçam os cómodos e a paz da vida privada, para eles seria uma intolerável desgraça o descer, (e que frequente é esta peripécia!) e decair do que entre tantos sobresaltos têm gozado. Nem destas vicissitudes e duras pensões estão isentos os mesmos tronos dos reinantes. Quantos e quão funestos exemplos vos oferece o presente século! Quanto mais o miserável é elevado, quanto mais alto existe, tanto maior e mais insofrível se lhe torna qualquer contratempo ou infortúnio, porque é maior a delicadeza de seu ânimo. Porém, tal é a condição ou feitio das nossas cabeças: ainda que a prática do mundo e uma séria reflexão nos façam tocar com as mãos as verdades que vos digo, poucos consideram com olhos judiciosos as riquezas e as dignidades. Apenas existirá um homem que não despenda muitas vezes algum desejo e o encaminhe a estas magníficas aparências da grandeza humana e lisonjas da fortuna. Quantos há, pelo contrário, que apetecem tudo isto, ainda que acompanhado de suas molestas pensões.
Só está reservado para o verdadeiro filósofo separar em tão majestosos bens o que é substância do que é aparência, o que é verdade, do que é opinião. Não são as riquezas, nem tão-pouco a alta fortuna, quem pode encher de contentamento o coração humano. Só é riquíssimo quem se contenta daquilo que tem, e até do pouco. O modo mais próprio de enriquecer, é diminuir os desejos, e as vontades. O mais rico dos ricos é aquele que conserva o coração vazio de apetites e desejos: e o que dentro do mesmo coração sabe, não só mortificar, mas domar e vencer as amotinadas paixões. Contanto que não falte ao homem o que é necessário à natureza, que consiste em muito pouco, a pobreza e o estado humilde e obscuro não são coisas que o façam desgraçado. A suprema ventura da vida consiste na tranquilidade ou equilíbrio do ânimo. Eu tenho notado mil vezes, que um pobre e ignorado cenobita, que viva, por exemplo, entre os rochedos de S. Pedro das Águias, é mais feliz e bem-aventurado que todos os reis da Terra. Se se lhe desperta no coração um desejo inquieto, pega no bordão de uma sublime filosofia, e o espanca e afugenta. Com as mesmas armas vence e doma o império das insofridas paixões. Nunca julguei que era privativo aos grandes e aos ricos o privilégio de rir e alegrar-se; também a vulgo, e esse a quem a sorberba chama baixa e ínfima plebe, conta suas horas d'alegria, e goza daquele contentamento, que debalde buscam os pecuniosos e os grandes. É verdade que o pobre não tem domínio do campo em que trabalha; porém, no mesmo suor com que o rega acha recursos para a sua subsistência. Esta não falta ao oficial que trabalha no seu mister e no ofício que aprendeu; se não sufoca a indústria com a preguiça, encontra sempre uma boa herdade que o sustente e mantenha: se não tem manjares delicados, tem sempre um bom apetite, que é o melhor cozinheiro, e a mais bem preparada mostrada, ou o mais provocante sainete: e com efeito a fome não tem necessidade de adubos. Mas não passeia, nem desempedra as ruas em carrocins envernizados, não traja panos superfinos, não tem jardins deliciosos, nem palácios, nem móveis sumptuosos, nem estátuas, nem urnas, nem bustos, nem relevos, nem o pior de todos os incómodos: uma turba de criados, ingratos sempre, indóceis e murmuradores; mas o homem de vida frugal, e até pobre, não tem necessidade de pés alheios para andar, não precisa de satélites que o acompanhem por toda a parte e que sejam outros tantos espiões de quantas passadas ele dá. Passeia o pobre oficial, e estende a vista por tão soberbos paquebotes, por tantos vestidos que levam em si tesouros, por tão brilhantes chapadas de pedraria que enfeitam peitos roídos e ralados de inquietações, e diz no seu coração: «Quanto vivo obrigado a estes frenéticos! O que fazem, o que gastam, o que trabalham para me divertirem! Eles andam carregados, e eu sou o que gozo do espetáculo?» O bom ou o profundo Diógenes, quando ia comer um pedaço de pão, escolhia para refeitório o magnífico pórtico do templo de Júpiter, um dos mais pomposos e soberbos edifícios de Atenas, e agredecia muito aos atenienses terem edificado aquele majestoso palácio em que ele pudesse jantar à sua vontade. Este Diógenes foi, sem disputa, o homem grego que teve as mais ajustadas ideias das coisas. «Se eu não fora Alexandre só quereria ser Diógenes», lhe disse um louco. – «Pois sou Diógenes, e não quero ser Alexandre», lhe diria eu de dentro da mesma tina, se a habitasse. A classe daqueles homens que pode retirar-se ao campo e viver comodamente sem aparato e luxo pode, se quiser, não invejar a magnificência dos potentados da corte. As tapeçarias e regalos que lhes subministra a Natureza, nas árvores, nos prados, nos campos, nos armentios, se ele souber pôr freio à cobiça e vãos desejos, mais o satisfazem que todo o tresloucado luxo dos habitantes da imensa capital. Vivem os homens do campo, não se pode negar, na solidão; mas esta é adoçada com um admirável sossego e paz interna não perturbada de murmurações, de contrariedades, de notícias desgostosas, de vícios, desordens e perigos de que abunda uma grossa população. Assim o entendia um dos melhores julgadores que tiveram a Antiguidade e a filosofia, Horácio: assim mesmo o entendem todos aqueles que fazem bom uso do talento que a Natureza lhes dera. O ponto está em ajustarmos bem e termos mão em nossas cabeças, que às vezes com tanta facilidade para todas as partes se volvem. Então não é precisa muita fadiga para conhecer que é ter juízo contentar-se com pouco, privilégio que foi concedido a raros, porque anexamos uma ideia muito grande de ventura à posse de certos bens, os quais não merecem tanto apreço de nossos corações, nem nos devemos amargurar quando deles vivemos privados. Sei que perderia o trabalho se quizera persuadir a não poucos que se contentem com o próprio estado, que não desejem riquezas ainda que com estas se podessem conseguir certos prazeres que se não podem esperar no centro da penúria: mas sempre será verdade que o sábio, ainda que pobre, se souber usar do raciocínio, poderá ter o ânimo tranquilo, e por isto chamar-se a si mesmo não desgraçado, mas venturoso. Eu não vos digo que seja um grande atentado desejar as riquezas; mas sempre insisto que é um grande desvario desejá-las com afinco e inquietação; porque então se torna mais tormentosa e intolerável a pobreza com estes sempre inquietos desejos, que não dão tréguas ao coração do miserável avarento. Não está em nossa mão adquirir riquezas, mas está em nossa mão que estas riquezas que não podemos conseguir nos não roubem o sossego. Em outro desvario damos não poucas vezes: foi para connosco liberal a fortuna, atulhou nossas casas de seus bens, e chegamos com sua posse a nadar num oceano de delícias; mas é tal nossa miséria ou inconstância que as não prezamos ou estimamos por isso mesmo que as possuímos: seu aturado uso diminui em nosso entendimento sua natural impressão. Pelo contrário, nossos olhos, nossas reflexões, e até nossos desejos, correm após os bens que os outros gozam, e só esses nos parecem felizes, só esses nos parecem mimosos da ventura, ou bem olhados da Providência que dirige e que governa o mundo. Pelo contrário, o homem de siso, sem gastar um pensamento após do que outro goza, e ele não pode haver, nem gozar, cuida só no pouco ou no muito que a fortuna lhe há dado; disto goza, e este mesmo pouco lhe parece mais do que se devia a seu merecimento. Os bens alheios são para nós males verdadeiros, quando possuídos pelos outros servem só de nos inquietar. Confrontamo-nos com estes a que chamamos ditosos, e esta confrontação nos faz parecer nosso estado miserável e infeliz. Ajunta-se a toda esta desgraça imaginária a inveja muito real – paixão bem diversa de todas as outras, as quais bem refreadas e governadas podem servir de ministras à virtude. A inveja é de sua natureza sempre maligna, sempre contrária à virtude; é surda, e feroz atormentadora de quem lhe dá entrada no coração. E quanto anda derramada pelo mundo esta mortífera peste! Tanto falar dos que nos são superiores e avantajados e buscar com o microscópio todos seus defeitos, por certo não é este o efeito do bom zelo, é o parto da inveja. Sofremos mal que tantos gozem aquelas faculdades, subam àqueles postos, e tenham aquelas dignidades. Sofremos mal que sejam doutos, bem vistos, e honrados de todos, que os acompanhe o bom nome, que sejam dotados de profundo engenho, de alta prudência, de fina penetração, de áurea eloquência, e de outras semelhantes prerrogativas que provêm, ou da Natureza, ou da indústria, ou das humanas vicissitudes. Faz grande mal a nossos olhos o bem que os outros possuem, e o consideramos como roubado ao nosso mérito. Ajunta-se a soberba à inveja, e não queremos que ninguém nos preceda. Todas as paixões são furiosas, mas a inveja é rematadamente louca, porque aborrece o bem alheio sem proveito próprio: com isto não tiramos felicidade a quem a possui, nem nos fazemos senhores dela se a não temos: cansamos debalde os desejos, e depois de tantas fadigas, não fica à inveja mais que o veneno que a consome e rala. Quem pois quer usar da razão, em vez de perder ou cansar os olhos atrás dos mais felizes, deve antes de ter os olhos sobre tantos pobres e mendigos, sobre tantos aflitos, enfermos, desgraçados e opressos, que a milhares s'oferecem sobre a grande cena do mundo, verdadeira pátria das desventuras, e medir e comparar a própria situação com a situação destes desditosos. Pode aqui, e em tal confrontação carpir-se acaso, ou chorar-se a inveja? Muito cega há-de ser quando se não confessar à vista desta confrontação muito bem tratada pela Providência! Ninguém é miserável, senão comparativamente. O remédio para fazer calar o amor próprio, é obrigá-lo a fitar os olhos sobre tantos que são muito mais desgraçados que nós somos. Quem souber curar suas opiniões, avezando-se a se contentar de pouco, alcançará a verdadeira tranquilidade do ânimo, em que consiste a ventura independente de qualquer estado. |
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— José Agostinho de Macedo, Cartas Filosóficas a Ático (1815), Carta I., pp. 3–18 |