Políptico do Arco da Calheta (Mestre de Abrantes)
Retábulo do Arco da Calheta Reconstituição conjectural[1] | |
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Autor | Mestre de Abrantes |
Data | c. 1550-60 |
Técnica | pintura a óleo sobre madeira |
Localização | Igreja de S. Brás, Arco da Calheta |
O Políptico do Arco da Calheta é um conjunto de seis pinturas a óleo sobre madeira pintadas cerca de 1550-60 presumivelmente pelo pintor português do período do Maneirismo designado por Mestre de Abrantes que se destinou à Igreja de São Brás do Arco da Calheta, na Ilha da Madeira, onde ainda permanecem.
O Políptico do Arco da Calheta é constituido pelas pinturas Apresentação do Menino no Templo, Descida da Cruz, Ressurreição, S. Tiago Maior, Santa Catarina e S. Brás e os Doadores.[2] A pintura S. Brás e os Doadores inclui os retratos imaginados dos fundadores da capela, Brás Ferreira e Mécia Vaz, capela que deu origem mais tarde à Igreja de S. Brás.[3]
Embora próximas estilisticamente, não parece haver unidade iconográfica entre as pinturas do Políptico de modo a terem constituído um único retábulo. Se a Apresentação do Menino no Templo, a Descida da Cruz e a Ressurreição estão claramente relacionadas com a vida de Jesus, e S. Brás e os doadores está relacionada com a invocação da igreja, não se conhece a relação de Santa Catarina e S. Tiago com as demais. Pelas medidas, as pinturas podem ter pertencido a um conjunto, ou podem ter sido adaptadas a um conjunto, pois têm sensivelmente as mesmas dimensões, sendo a Apresentação do Menino no Templo e S. Brás e os doadores mais largas, pelo que poderiam estar colocadas no centro, uma sobre a outra, ladeadas pelas restantes, duas de cada lado, ficando o Retábulo constituído por uma fiada de temas cristológicos e outra de temas de santos.[2]:174
A proveniência destas pinturas não está claramente documentada, sendo o registo mais antigo conhecido o de 1577 relativo a um Retábulo oferecido pela Coroa à igreja matriz do Arco da Calheta, que não é esclarecedor pois se julga que as obras são de data anterior.[2]:173-174[4] Na década de 1540, na Madeira, continuava-se a recorrer ao mercado flamengo, mas as pinturas religiosas começam a ser encomendadas preferentemente às oficinas de Lisboa. Uma das obras que marca esta mudança é o Retábulo da Matriz de Santa Cruz, atribuível a uma parceria lisboeta, e depois a oficina de Diogo de Contreiras terá realizado os quadros da Igreja Matriz de Machico, o Políptico da Igreja de S. Brás do Campanário e o Políptico da Capela da Madre de Deus do Caniço. O Retábulo da Matriz da Ponta do Sol, que se enquadra na obra do Mestre de Arruda dos Vinhos, e o Políptico do Arco da Calheta, atribuível ao Mestre de Abrantes, comprovam a predominância da escolha dos pintores portugueses mais destacados desta época.[2]:118-119
História
[editar | editar código-fonte]A freguesia do Arco da Calheta foi desmembrada da Calheta, em 1472, ficando com sede na capela de S. Brás e tido como primeiro vigário o padre Pedro Delgado.[5]
Depois, pelo alvará régio de 1572, no Arco da Calheta, onde já existia um capelão, foi criada uma paróquia. A pequena ermida foi transformada em capela-mor e foi acrescentada um novo corpo que ficou sendo a igreja paroquial.[6]
Relativamente à Calheta, Gaspar Frutuoso, em cerca de 1584, refere a existência de uma "grossa fazenda" de Gonçalo Fernandes «com engenho de açúcar e muitas terras de canas, e grandes aposentos de casas e igreja com seu capelão», condizentes com a capacidade financeira para a encomenda de uma obra da envergadura do Político do Arco da Calheta.[7]
Sobre pinturas há também o registo da ajuda real para o frete e coisas necessárias para o Retábulo oferecido pelo Fazenda Real para a igreja de S. Brás do Arco da Calheta em 1577-78.[2]:67 O pagamento desta despesa do tempo de D. Sebastião não é esclarecedor porque as pinturas do Políptico parece terem sido executadas em data anterior e porque não é evidente a unidade temática entre elas para terem constituído um retábulo. Há ainda a referência ao conserto do Retábulo e Tabernáculo da capela-mor da Calheta em 1592.[2]:72-73
Em meados do século XVIII iniciaram-se os trabalhos de construção duma nova igreja, que é a actual, tendo sido benzida solenemente no dia 1 de Janeiro de 1755.[6]
Sobre a autoria
[editar | editar código-fonte]A referência crítica a este núcleo de pinturas é escassa. Cayola Zagallo, em 1937, assinala-as pela primeira vez nos tempos modernos, descrevendo e indicando as medidas aproximadas de Descida da Cruz, Circuncisão (que é uma Apresentação no Templo), S. Brás e os Doadores e Ascensão (que é uma Ressurreição), integrando-as numa escola quinhentista portuguesa.[8] As falhas na identificação iconográfica foram posteriormente por ele corrigidas e, baseado em Reynaldo dos Santos,[9] adianta a hipótese de atribuição ao Mestre do Retábulo de Abrantes da Descida da Cruz, atribuindo S. Brás e os Doadores e Apresentação do Menino no Templo a uma escola portuguesa do 2º quartel do século XVI.[10]
Eduardo Pereira realça a qualidade de algumas peças e acrescenta, sem precisar a fonte, que «Há quem filie a Apresentação, S. Brás e Ressurreição na Renascença italiana e Descida da Cruz na escola portuguesa de Grão Vasco». Assinala também a existência das tábuas de Santa Catarina e S. Tiago, que não foram até então objecto de estudo.[11]
Mais recentemente as tábuas de Descida da Cruz, S. Bras e os doadores e Apresentação do Menino no Templo foram incluídas por Joaquim Oliveira Caetano na lista das obras atribuíveis ao Mestre de Abrantes.[12]
Na análise de Descida da Cruz, Joaquim Oliveira Caetano considera que o Mestre de Abrantes faz uma síntese do flamengo Maarten van Heemskerck com os modelos de Gregório Lopes, e, atendendo à cronologia das obras, considera provável que o seu autor seja Cristóvão de Utreque, documentado entre 1534 e 1564, assim como se aproxima da fase mais recuada de Francisco de Campos.[2]:175-176
Para Isabel Santa Clara, a influência de Heemskerck não parece ir além da intensidade dramática e da preferência pela concentração de elementos, não permitindo os dados disponíveis identificar o Mestre de Abrantes com Cristóvão de Utreque. Antes se inclina para a hipótese de se tratar de Cristóvão Lopes, sobretudo pela proximidade deste com os modelos do pai dele, Gregório Lopes. A hipótese de o Mestre de Abrantes poder ser Cristóvão Lopes foi levantada por Vítor Serrão,[13] no que é acompanhado por José A. Seabra de Carvalho.[2]:175-176[14]
Descrição
[editar | editar código-fonte]Apresentação de Jesus no Templo
[editar | editar código-fonte]Apresentação de Jesus no Templo é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 140 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa obviamente o homónimo episódio bíblico.[2]:178-179
A Apresentação do Menino no Templo segue a narração de Lucas 2:22–38, no momento em que Simeão levanta Jesus nos braços, com as mãos respeitosamente encobertas por um pano. Ocupando o centro da pintura, Ana, a profetisa, segura uma vela e aponta para o Menino Jesus dirigindo o olhar para Maria. É com este gesto premonitório que aparece em várias pinturas da época sobre o mesmo tema, ora apontando para a Virgem, ora para o Menino. A Virgem Maria numa atitude desenvolta ocupa o primeiro plano da metade esquerda da pintura tendo S. José a seu lado numa atitude de humildade e deferência. Por detrás de Maria vê-se um grupo de mulheres com velas acesas, associando assim a pintura o rito da Apresentação ao da festa da Candelária. Pelo tipo de indumentária, estas figuras femininas aproximam-se das que estão em segundo plano na Apresentação do Políptico da Capela do Salvador.[2]:178-179
Simeão está representado como um sacerdote tendo a mitra a forma de crescente lunar para simbolizar o povo hebreu. A sua fisionomia assemelha-se à do Sacerdote da Circuncisão do mesmo Mestre de Abrantes (MNAA). A decoração do sebasto da sua capa tem evidentes afinidades com peças equivalentes de pinturas de Gregório Lopes. A figura representada no sebasto é a de Moisés segurando as Tábuas da Lei, o que era corrente nas pinturas sobre os rituais da lei judaica da Circuncisão e da Apresentação. Por detrás de Simeão surgem ainda duas figuras masculinas, uma semi-oculta pela cortina e outra que segura um bordão.[2]:178-179
Sobre a mesa/altar circular estão duas rolas, ou pombas, um candelabro com uma vela acesa, e um livro aberto. O candelabro segue um modelo simples já usado por Gregório Lopes na Anunciação de Retábulo de Santos-o-Novo e na Circuncisão do próprio Mestre de Abrantes.
Joaquim Oliveira Caetano sintetiza referindo que «as figuras organizam-se a toda a altura do painel, rodeando a mesa circular, num entrechocar de panos quebrados. Os rostos, em cujos modelos ainda se reconhecem alguns tipos de [Gregório] Lopes, são marcados por um expressionismo acentuado e um desenho muito caracterizado».[2]:178-179[15] Para Isabel Santa Clara, a ocupação de todo o painel pelas figuras num interior sem enquadramento arquitectónico não era prática nem de Gregório Lopes, nem dos Mestres de Ferreirim, nem do Mestre de Abrantes. Por este facto e porque a mitra de Simeão está cortada e falta espaço para definir o interior do templo, de que se veem apenas fustes das colunas e a base de duas janelas ao fundo, pode-se deduzir que a pintura foi em tempos truncada na parte superior.[2]:178-179
Descida da Cruz
[editar | editar código-fonte]Descida da Cruz é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 85 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa o homónimo episódio bíblico.[2]:175-176
O corpo inanimado de Cristo amparado por São João e José de Arimateia revela através da contorção dos dedos de mãos e pés do rigor mortis um intenso sofrimento, recurso expressivo também presente na Deposição no Túmulo (c. 1540) do MNAA, atribuída a Gregório Lopes, e na Deposição no Túmulo da Misericórdia de Abrantes. Nicodemos com fisionomia semelhante à do S. José da Natividade do Museu de Évora debruça-se, num movimento acentuado, para desprender Cristo, sendo notória a semelhança, na fisionomia e na posição da cabeça, com o soldado do canto direito da Ressurreição.[2]:175-176
As Santas mulheres encontram-se dos dois lados da cena. A Virgem está por terra e segura a mão do filho e encosta-a ao rosto numa derradeira despedida. O manto estende-se à frente dela ocupando grande parte do primeiro plano, solução também utilizada a Natividade do Políptico de Abrantes. Madalena está à direita vestida de rosa (de novo afinidade com o Calvário da Misericórdia de Abrantes), e as restantes do outro lado, representadas com maior sobriedade cromática.[2]:175-176
Os braços da cruz estão colocados paralelamente ao cimo do painel, como no Calvário da Misericórdia de Abrantes, o que, aliado à aglomeração de figuras, diminui a possibilidade de definição perspéctica. Do horizonte apenas se vê, entre a escada e a cruz, uma vista sobre a cidade com árvores e edifícios presentes também na Ressurreição, num fundo obscurecido.[2]:175-176
Para Joaquim Oliveira Caetano, nesta Descida da Cruz «é evidente a complexificação compositiva desta fase do pintor, com as figuras a ocuparem quase por completo o painel, numa movimentação desordenada, onde o ritmo constante das linhas quebradas e ondulantes dos panos criam fortes sequências rítmicas, que, no entanto, se não traduzem em linhas gerais de composição, o que dá a ideia geral de uma certa turbulência organizativa da cena». Para Isabel Santa Clara, a agitação da cena não elimina uma nítida diagonal de composição definida pelo corpo de Cristo que polariza a atenção do observador.[2]:176
Ressurreição
[editar | editar código-fonte]Ressurreição é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 85 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa obviamente o episódio bíblico central da fé cristã da Ressurreição de Cristo.
Segundo Isabel Santa Clara, para a composição deste quadro o Autor inspirou-se claramente em dois painéis da Ressurreição de Gregório Lopes datados da década de 1540, o do Tríptico do Bom Jesus de Valverde e o do Retábulo de Santos-o-Novo.[2]:177-178
Ao centro está a figura de Cristo envolta parcialmente num manto vermelho, em posição e postura idênticas à de Valverde, abençoando com a mão direita e segurando com a esquerda uma cruz estandarte com vara de cristal de rocha e um pendão a esvoaçar ao vento em idêntica ondulação. Neste caso, a figura está bem assente no chão com um volume amplo do torso e do manto que molda visivelmente uma perna e se desprende depois em pregas desenvoltas.[2]:177-178
Três soldados agitam-se em torno de Cristo com torções acentuadas, remetendo as suas vestes e armaria também para as mesmas referências anteriores. A posição do soldado do canto direito segue a de Valverde segurando aqui uma besta; o da esquerda empunha uma lança, dando indicação de como estaria o resto da figura na tábua perdida de Valverde; um terceiro soldado de escudo e espada em riste aproxima-se da posição do soldado da direita de Santos-o-Novo.[2]:177-178
No lado direito está o túmulo fechado que, também segundo Isabel Santa Clara, segue o modelo mais simplificado de Santos-o-Novo, sendo a coluna e base semelhantes às do arco do Encontro de Santa Ana e S. Joaquim (MNAA) presumivelmente do mesmo Autor e proveniente do Convento de Santa Clara de Santarém. Do outro lado, para além de uma zona de arvoredo avista-se uma imponente cidade (Jerusalém) cuja arquitectura lembra as dos fundos do Políptico do Mestre dos Arcos e do S. João Evangelista em Patmos.[2]:177-178
Ainda antes do restauro a que a pintura foi entretanto sujeita, para Isabel Santa Clara adivinhavam-se coloridos vivos e contrastados nas roupagens e zonas iluminadas como a figura de Cristo, a coluna, o soldado em primeiro plano e a cidade em fundo, em contraste com a massa escura do arvoredo e de parte do céu nublado. Na comparação com as correspondentes obras de Gregório Lopes, revela-se neste caso uma maior agitação, uma triangulação da composição e angulosidade das formas, assim como um contraste mais nítido entre a impassibilidade de Cristo e a agitação dos soldados o que é próprio do Mestre de Abrantes.[2]:177-178
São Tiago Maior
[editar | editar código-fonte]São Tiago Maior é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 75 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa o apóstolo, santo e mártir cristão São Tiago Maior.[2]:184
Este quadro, com dimensões idênticas ao anterior, parece provir de um mesmo conjunto. É de todos aquele que apresenta maior dificuldade de observação, por estar colocado a grande altura e longe do coro. O santo (fig. 139), de pé, tem uma capa vermelha ampla com uma gola abotoada que, ao prender, deixa à frente numa abertura triangular semelhante à de S. Roque (série da sacristia de Santa Cruz de Coimbra), e cuja ponta esvoaça em pregas angulosas. Segura na mão direita o bordão e o chapéu de peregrino e a mão esquerda está aberta.
Parece ter como modelo mais próximo o S. Paulo de Gregório Lopes existente na Sé de Évora, com o qual tem afinidades no rosto, nos gestos, na volumetria das vestes e na noção de espaço. Há pormenores em comum que surgem invertidos, como a posição da mão aberta e o tronco de árvore morta junto ao santo, de formas caprichosamente modeladas, que as gravuras de Dürer tornaram familiares. Uma paisagem montanhosa espraia-se até um caminho que serpenteia ao fundo e, mais ao longe, avista-se uma cidade.
Tal como o anterior painel, este São Tiago parece poder ser acrescentado à lista, sujeita a confirmação, das atribuições ao Mestre de Abrantes. Englobadas seguramente na esteira de Gregório Lopes as pinturas da matriz do Arco da Calheta podem contribuir para o alargar as hipóteses de estudo do campo ainda restrito de actividade ao Mestre de Abrantes, ainda que com a limitação de tratar-se de um elenco de obras sem unidade temática, sem indicação de proveniência e desprovidas de apoio documental.[2]:184-185
Santa Catarina
[editar | editar código-fonte]Santa Catarina é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 75 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa a santa e mártir cristã Catarina de Alexandria.[2]:183
Santa Catarina de Alexandria está de pé, ao centro do quadro, de olhos levantados em expressão de êxtase, numa postura serpentinada, havendo agitação e angulosidade das vestes que deixam adivinhar a delineação das pernas. Está ricamente vestida como é usual na sua iconografia pois tratava-se de uma princesa. Usa uma saia ampla e corpete justo de decote em quadrado sobre um blusa de renda, com gola folhada presa com fita. As mangas tufadas são ornamentadas no ombro e punho também é folhado. Um manto sobre o ombro confere amplitude à figura. Tem um cabochão suspenso de uma cadeia de ouro e uma coroa, tendo os usuais atributos da espada, da palma e da roda.[2]:183-184
A Santa tem em volta um chão pedregoso e em fundo há arvoredo e casario com edifícios mais arcaicos que os dos outros quadros do Políptico. A torre à esquerda evoca pelo volume e janelas a do Calvário de Abrantes.[2]:183-184
Segundo Isabel Santa Clara, o tratamento da renda, com um tracejado branco que mantém a transparência do tecido, é semelhante ao de S. Luís de França de Gregório Lopes, ainda que menos apurado. Nos pormenores, o traje evoca os de Santa Margarida e de Santa Catarina das predelas do Políptico do Convento do Paraíso, ou o de Santa Auta do Retábulo de Santa Auta, mas o delinear da figura está mais próxima das da Visitação da Misericória de Abrantes.[2]:183-184
Ainda para Isabel Santa Clara, não tendo sido encontrada documentação sobre a proveniência desta pintura, e ainda que pareça ter pertencido ao mesmo conjunto de S. Tiago e não ser frequente as pinturas transitarem de igreja ou de freguesia, coloca a hipótese de ter vindo de uma extinta capela de Santa Catarina, na Calheta, que havia sido criada por Rodrigo Anes, escudeiro do infante D. Henrique.[2]:183-184
S. Brás e os Doadores
[editar | editar código-fonte]S. Brás e os Doadores é uma pintura a óleo sobre madeira com cerca de 120 cm de altura e 140 cm de largura de cerca de 1550-60, que faz parte do Políptico do Arco da Calheta e representa o Santo a que a Igreja Matriz do Arco da Calheta está dedicada e o casal que deve ter encomendado a obra.[2]:180 São Brás está representado de pé, no centro de um nicho com colunas clássicas assentes em altos socos decorados com grotescos, de luvas vermelhas e usando sobre estas vários anéis, abençoando com a mão direita e com a esquerda segurando um livro aberto e o báculo que tem encostado a si. O livro que segura apresenta o texto marcado por grossas linhas a negro, exceptuando uma a vermelho, com o corte das folhas pintado a dourado e ao centro um fecho metálico. A figura do santo segue a de Santo Ambrósio da série de pinturas existente em Runa.[16]
Os dois doadores encontram-se ajoelhados em cada lado da composição, havendo cortinas do nicho do Santo levantadas de forma não simétrica e situadas entre eles e o Santo. O Doador está sobriamente vestido de escuro com uma gola branca e punhos folhados tendo à sua frente um livro de orações aberto pousado sobre um genuflexório. Com encadernação preta e corte das folhas pintado a ouro, o livro apresenta um “texto” a negro. A letra inicial do fólio direito parece ser «G» e o subtítulo está pintado a vermelho, vendo-se ainda marcadores, um vermelho e três dourados, para assinalar as passagens mais importantes. A Doadora tem a cabeça coberta com uma mantilha e um véutransparente que lhe envolve o rosto e também tem um livro, mas fechado, sobre o genuflexório que está coberto por uma toalha branca, que cai em pregas quebradas, característico do Mestre de Abrantes. Este livro tem uma encadernação de couro, com o corte das folhas pintados a dourado, e com dois fechos metálicos em forma de coroa.[16]
O livro tem um peso cultural e uma carga ideológica caracterizando hábitos e costumes, reflectindo a imagem de quem o lê ou o possui. Nesta pintura, as três figuras surgem retratadas com um livro, mas a forma como este é apresentado indica a hierarquia de cada uma. Primeiro o Santo, depois o Doador, cuja posição é dada pelo livro aberto, com o poder e o conhecimento de ler a palavra sagrada, e finalmente a Doadora com o livro fechado, pois, segundo Maria Helena Carvalho Santos, "as mulheres como primeiras educadoras não deveriam ser ignorantes".[16][17]
Uma filactera com a inscrição "SÃTI BRAZ ORA PRO NOBIS" rodeia o Santo sendo segura nas pontas pelos Doadores. Aos cantos, estão colocadas cartelas maneiristas com elementos entrelaçados e enrolados ao gosto de Antuérpia, dando a impressão de ter sido acrescentadas a posteriori (pois seguem uma linguagem decorativa diferente da utilizada nos grotescos), onde se lêem os nomes: "BRAS FERREIRA"(?) e "M. VAZ".[2]:180-183
Não é consensual a leitura dos nomes inscritos nas cartelas, além de que é possível terem sido colocadas em data posterior à pintura original. O da doadora «M. VAZ» está bem visível, e o primeiro nome do doador, «BRAS», é muito claro, mas o segundo nome é de difícil leitura. De qualquer modo, sabe-se que Brás Ferreira morre em 1493, numa data muito anterior à pintura do quadro pelo que não poderia ter sido ele a encomendá-lo.[2]:180-183
Para Isabel Santa Clara, na pintura portuguesa, são raros os casos de retratos de doadores representados na posição destes, ajoelhados num genuflexório, frente a frente, indiciando o importante estatuto social de donos da "grossa fazenda" referida por Gaspar Frutuoso. Não esclarecendo os documentos conhecidos quem teria encomendado esta pintura, nem quando, sabe-se que Mécia Vaz, em 1520, já viúva e idosa, entregou a administração da capela a um seu cunhado e sobrinho referindo o documento uma disputa que tinha com Felipa de Freitas, viúva do 1º administrador, que por ser «parenta do capitão e pessoa poderosa» a queria desapossar de toda a fazenda da capela. Isabel Santa Clara questiona se esta pintura seria uma espécie de desagravo relativo a esta disputa.[2]:183
Referências
[editar | editar código-fonte]- ↑ Segundo o proposto por Isabel Santa Clara, op. cit., pag. 174. Não respeita a proporção real de cada um das obras.
- ↑ a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z aa ab ac ad ae af ag ah Isabel Santa Clara, Das Coisas visíveis às invisíveis, contributos para o estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira (1540-1620), Vol. I e II, Tese de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna, Universidade da Madeira, 2004, [1]
- ↑ Nota de apresentação da obra na exposição "As ilhas do Ouro Branco Encomenda Artística na Madeira séculos XV-XVI" do Museu Nacional de Arte Antiga, de 16-11-2017 a 18-03-2018.
- ↑ Funchal Notícias
- ↑ Página web da Câmara Municipal da Calheta
- ↑ a b Padre Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal, 1946, p. 151., citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 173.
- ↑ Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, c. 1584, publicado pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968, pp. 112-125, citado por Isabel Santa Clara, op. cit., pag. 61
- ↑ Cayola Zagallo, «Algumas palavras sobre o património artístico da Ilha da Madeira», Arquivo Histórico da Madeira, vol. V, 1937, pp. 134-138., citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 174
- ↑ Reynaldo dos Santos, «O Calvário da Misericórdia de Abrantes» in Boletim da Academia Nacional de Belas Artes, vol. VI, Lisboa, 1940, pp. 42-47.citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 174
- ↑ Cayola Zagallo, A Pintura dos séculos XV e XVI da Ilha da Madeira, 1943, citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 174-175.
- ↑ Padre Eduardo C. N. Nunes Pereira, As Ilhas de Zargo, 3ª ed., Funchal, 1968. citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 174-175.
- ↑ Joaquim Oliveira Caetano, O que Janus via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa. 1535-1570, Tese de Mestrado em História da Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1996, pp. 219-200, citado por Isabel Santa Clara, op. cit. pag. 174-175.
- ↑ Vítor Serrão, «As tábuas do Santuário do Bom Jesus de Valverde: uma encomenda de D. Henrique ao pintor Gregório Lopes» in Estudo da Pintura Portuguesa. Oficina de Gregório Lopes, Lisboa, Instituto José de Figueiredo, 1999, p. 79.
- ↑ Carvalho, José A. Seabra de, Gregório Lopes, Lisboa, Inapa, 1999, p.107.
- ↑ Joaquim Oliveira Caetano, O que Janus via…, p. 219, citado por Isabel Santa Clara, op. cit.
- ↑ a b c Ana Catarina da Silva Graça, O Livro e a Arte: A Iconografia do Livro na Pintura Portuguesa no Tempo do Renascimento (1500-1580), Tese de Mestrado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pag. 73-74, [2]
- ↑ Santos, Maria Helena Carvalho dos, O retrato do livro, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 2000, pp. 131-132, citado por Ana Graça, op. cit.