O conto retrata a amizade entre Ricardo e Marina desde a infância, mas que é interrompida quando crescem devido ao preconceito racial. Ricardo tenta falar com Marina à noite, mas é perseguido pela polícia e acaba morrendo ao atravessar a rua.
O conto retrata a amizade entre Ricardo e Marina desde a infância, mas que é interrompida quando crescem devido ao preconceito racial. Ricardo tenta falar com Marina à noite, mas é perseguido pela polícia e acaba morrendo ao atravessar a rua.
O conto retrata a amizade entre Ricardo e Marina desde a infância, mas que é interrompida quando crescem devido ao preconceito racial. Ricardo tenta falar com Marina à noite, mas é perseguido pela polícia e acaba morrendo ao atravessar a rua.
O conto retrata a amizade entre Ricardo e Marina desde a infância, mas que é interrompida quando crescem devido ao preconceito racial. Ricardo tenta falar com Marina à noite, mas é perseguido pela polícia e acaba morrendo ao atravessar a rua.
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A fronteira do asfalto
José Luandino Vieira
A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão. … – Combinado? – Combinado – Disse ele. Riram os dois e continuaram a andar, pisando as flores violeta que caiam das árvores. – Neve cor de violeta – disse ele. – Mas tu nunca viste neve… – Pois não, mas creio que cai assim… – É branca, muito branca… – Como tu! e um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele. – Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta escura. – Lembra-te da nossa combinação. Não mais… – Sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou primeiro fostes tu. Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo caminho. A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos. – Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela. Olhou-a nos olhos. A menina baixou olhar para a biqueira dos sapatos pretos e disse: – Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas a volta do bairro? – Sim lembro-me… A pergunta que o persegue há meses saiu, finalmente. – e tu achas que esta tudo como então? Como quando brincávamos a barra do lenço ou as escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no dizer da tua mãe? Achas…
E com as próprias palavras ia-se excitando. Os olhos
brilhavam e o cérebro ficava vazio, porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras. -… que eu posso continuar a ser teu amigo… – Ricardo! – que a minha presença na tua casa…no quintal da tua casa, poucas vezes dentro dela! não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações… Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel. O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente. – Desculpa – disse por fim. Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique a sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e arcos de barril. – Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu disseste isso para quê? Alguma vez te disse que não era tua amiga? Alguma vez que se te abandonei? Nem os comentários das minhas colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem a família que se tem voltado contra mim… – Está bem. Desculpa. sabes, isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura. E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda não havia a fronteira de asfalto. – Bons tempos – encontrou-se a dizer. – A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço a menina Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te chamavam? – Gritou ele. Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente fechadas e as flores violeta caindo-lhe na carapinha negra. Depois, com passos decididos, atravessou a rua, pisando com raiva a areia vermelha e sumiu no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão. Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira que distraía a menina Nina. Depois a escola. ambos na mesma escola, na mesma classe. A grande amizade a nascer. Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em volta o aspecto luminoso, sorridente, o ar feliz, o calor suave das paredes cor-de-rosa. E lá estava sobre a mesa de estudo «… Marina e Ricardo – amigos para sempre». Os pedaços da fotografia voaram e estenderam- se pelo chão. Atirou-se para cima da cama e ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se cobriu de névoa. Ricardo brincava com ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente ficou a pensar no mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a-pique onde viviam famílias numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro irmãos de Ricardo… Porquê? Porque é que ela não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Porque é que agora era diferente? – Marina, preciso falar-te. A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha. – Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse… teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora … um preto é um preto… As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei…bem sabes que não é por mim! – Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só. O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento. – Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele… – Está bem mãe. E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios arrogantemente apertados. – Está bem, está bem, ouviu? – gritou ela. Depois mergulhando a cara na colcha chorou. Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra do lenço. Os carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela. Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum. Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha uma cor crua em tudo. Luz na janela. saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo dos seus pés. O “Toni” rosnou na casota. Avançou devagar até a varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado. – Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada. – Ricardo! – Ricardo? Que queres? – Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa. – Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. amanhã na paragem do maximbombo. Vou mais cedo… – Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já. De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro. Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente o facho da lanterna do polícia caqui bateu- lhe na cara. – Alto aí! O qu’ é que estás a fazer? Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal. As folhas secas cederam e ele escorregou. O “Toni” ladrou. Ricardo levantou-se e correu para o muro. O polícia correu também. Ricardo saltou. – Pára, pára! – gritou o polícia. Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com a violência abafada pelos sapatos de borracha. Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu violentamente de encontro a aresta do passeio. Luzes acenderam-se em todas as janelas. O “Toni” ladrava. Na noite ficou o grito loiro da menina de tranças. Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo, estendido do lado de cá da fronteira, sobre as flores violeta das árvores do passeio. Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra retorcida na sua direcção.”
VIEIRA, Luandino. A fronteira do asfalto. In: VIEIRA, Luandino. A cidade e a infância. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.