3 - Fronteira de Asfalto

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A fronteira do asfalto

José Luandino Vieira


A menina das tranças loiras olhou para
ele, sorriu e estendeu a mão.
… – Combinado?
– Combinado – Disse ele.
Riram os dois e continuaram a andar,
pisando as flores violeta que caiam das
árvores.
– Neve cor de violeta – disse ele.
– Mas tu nunca viste neve…
– Pois não, mas creio que cai assim…
– É branca, muito branca…
– Como tu! e um sorriso triste aflorou
medrosamente aos lábios dele.
– Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta
escura.
– Lembra-te da nossa combinação. Não mais…
– Sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou
primeiro fostes tu.
Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram
meia volta e vieram pelo mesmo caminho.
A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.
– Marina, lembras-te da nossa infância? – e
voltou-se subitamente para ela.
Olhou-a nos olhos. A menina baixou olhar para a
biqueira dos sapatos pretos e disse:
– Quando tu fazias carros com rodas de patins e
me empurravas a volta do bairro?
– Sim lembro-me…
A pergunta que o persegue há meses saiu, finalmente.
– e tu achas que esta tudo como então? Como
quando brincávamos a barra do lenço ou as
escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um
pretinho muito limpo e educado, no dizer da tua mãe?
Achas…

E com as próprias palavras ia-se excitando. Os olhos


brilhavam e o cérebro ficava vazio, porque tudo o que
acumulara saía numa torrente de palavras.
-… que eu posso continuar a ser teu amigo…
– Ricardo!
– que a minha presença na tua casa…no quintal
da tua casa, poucas vezes dentro dela! não
estragará os planos da tua família a respeito das
tuas relações…
Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não
lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel.
O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se
subitamente.
– Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado
da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores
de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras.
Casas de pau-a-pique a sombra de mulembas. As
ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue nuvem
de poeira que o vento levantava cobria tudo. A
casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde
estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um
cercado de aduelas e arcos de barril.
– Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu
disseste isso para quê? Alguma vez te disse que não era
tua amiga? Alguma vez que se te abandonei? Nem os
comentários das minhas colegas, nem os conselhos
velados dos professores, nem a família que se tem
voltado contra mim…
– Está bem. Desculpa. sabes, isto fica dentro de nós. Tem
de sair em qualquer altura.
E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas,
respostas, explicações. Quando ainda não havia a
fronteira de asfalto.
– Bons tempos – encontrou-se a dizer.
– A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o
filho da lavadeira. Servia de palhaço a
menina Nina. A menina Nina dos caracóis
loiros. Não era assim que te chamavam? –
Gritou ele.
Marina fugiu para casa. Ele ficou com os
olhos marejados, as mãos ferozmente
fechadas e as flores violeta caindo-lhe na
carapinha negra.
Depois, com passos decididos,
atravessou a rua, pisando com
raiva a areia vermelha e sumiu
no emaranhado do seu mundo.
Para trás ficava a ilusão.
Marina viu-o afastar-se. Amigos desde
pequenos. Ele era o filho da lavadeira que
distraía a menina Nina. Depois a escola.
ambos na mesma escola, na mesma classe. A
grande amizade a nascer.
Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em
volta o aspecto luminoso, sorridente, o ar
feliz, o calor suave das paredes cor-de-rosa.
E lá estava sobre a mesa de estudo «…
Marina e Ricardo – amigos para sempre».
Os pedaços da fotografia voaram e estenderam-
se pelo chão. Atirou-se para cima da cama e
ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o
mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os
desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados.
E tudo se cobriu de névoa. Ricardo brincava com
ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os
caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns
olhos grandes.
E subitamente ficou a pensar no mundo para lá
da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a-pique
onde viviam famílias numerosas.
Num quarto como o dela dormiam os quatro
irmãos de Ricardo…
Porquê?
Porque é que ela não podia continuar a ser
amiga dele, como fora em criança?
Porque é que agora era diferente?
– Marina, preciso falar-te.
A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da
filha.
– Marina, já não és nenhuma criança para que
não compreendas que a tua amizade por esse…
teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é
muito bonito em criança. Duas crianças. Mas
agora … um preto é um preto…
As minhas amigas todas falam da minha
negligência na tua educação. Que te
deixei…bem sabes que não é por mim!
– Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas
agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que
uma recordação longínqua.
Uma recordação ligada a uns pedaços de fotografia
que voavam pelo pavimento.
– Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do
liceu, de estudares com ele…
– Está bem mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a
mancha escura das casas de zinco e das mulembas. Isso
trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente
para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios
arrogantemente apertados.
– Está bem, está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois mergulhando a cara na colcha chorou.
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da
mulemba, recordava. Os giroflés e a barra
do lenço. Os carros de patins. E sentiu
necessidade imperiosa de falar-lhe.
Acostumara-se demasiado a ela. Todos
aqueles anos de camaradagem, de estudo
em comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha
rangiam no asfalto. A lua punha uma cor crua em tudo. Luz
na janela. saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram
debaixo dos seus pés. O “Toni” rosnou na casota. Avançou
devagar até a varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado.
– Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e
assustada.
– Ricardo!
– Ricardo? Que queres?
– Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa.
– Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. amanhã na
paragem do maximbombo. Vou mais cedo…
– Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber
tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina.
A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro.
Ricardo voltou-se lentamente. Passou as
mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente
o facho da lanterna do polícia caqui bateu-
lhe na cara.
– Alto aí! O qu’ é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do
negro pelo polícia. Dum salto atingiu
o quintal.
As folhas secas cederam e ele
escorregou. O “Toni” ladrou.
Ricardo levantou-se e correu para o muro.
O polícia correu também. Ricardo saltou.
– Pára, pára! – gritou o polícia.
Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu
no passeio com a violência abafada pelos
sapatos de borracha.
Mas os pés escorregaram quando fazia o
salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça
bateu violentamente de encontro a aresta
do passeio.
Luzes acenderam-se em todas as janelas.
O “Toni” ladrava. Na noite ficou o grito
loiro da menina de tranças.
Estava um luar azul de aço. A lua cruel
mostrava-se bem. De pé o polícia caqui
desnudava com a luz da lanterna o corpo
caído. Ricardo, estendido do lado de cá da
fronteira, sobre as flores violeta das árvores
do passeio.
Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de
pau-a-pique estendem a sombra retorcida na
sua direcção.”
 
VIEIRA, Luandino. A fronteira do asfalto. In: VIEIRA, Luandino. A cidade e a infância. São Paulo.
Companhia das Letras, 2007.

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