As Origens Da Psicanálise de Criança No Brasil

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ARTIGOS

AS ORIGENS DA PSICANLISE DE CRIANAS NO BRASIL: ENTRE A EDUCAO E A MEDICINA


Jorge Lus Ferreira Abro
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RESUMO. O presente artigo tem por objetivo investigar a forma como as primeiras informaes relativas psicanlise de crianas foram introduzidas no Brasil, bem como delinear como estas idias foram apropriadas pelos tericos nacionais e incorporadas nas prticas de assistncia criana desenvolvidas no Pas nas primeiras dcadas do sculo XX. Para isto foi desenvolvida uma pesquisa histrica de natureza qualitativa, mediante a realizao de um levantamento bibliogrfico que buscou identificar a produo de autores nacionais sobre psicanlise de crianas entre as dcadas de 1920 a 1950. Os resultados indicam que a insero da psicanlise de crianas no pas ocorreu por duas vias: primeiramente atravs da educao, mediante a utilizao deste referencial terico com o intuito de melhor gerir a educao das crianas e solucionar seus problemas escolares; e, posteriormente, por intermdio da medicina, mediante o desenvolvimento de uma prtica psicoterpica destinada ao tratamento de crianas com transtornos emocionais.
Palavras-chave: Psicanlise, criana, Brasil.

THE ORIGINS OF THE PSYCHOANALYSIS OF CHILDREN IN BRAZIL: BETWEEN EDUCATION AND THE MEDICINE
ABSTRACT. O presente artigo tem por objetivo investigar a forma como as primeiras informaes relativas psicanlise de crianas foram introduzidas no Brasil, bem como delinear como estas idias foram apropriadas pelos tericos nacionais e incorporadas nas prticas de assistncia criana desenvolvidas no Pas nas primeiras dcadas do sculo XX. Para isto foi desenvolvida uma pesquisa histrica de natureza qualitativa, mediante a realizao de um levantamento bibliogrfico que buscou identificar a produo de autores nacionais sobre psicanlise de crianas entre as dcadas de 1920 a 1950. Os resultados indicam que a insero da psicanlise de crianas no pas ocorreu por duas vias: primeiramente atravs da educao, mediante a utilizao deste referencial terico com o intuito de melhor gerir a educao das crianas e solucionar seus problemas escolares; e, posteriormente, por intermdio da medicina, mediante o desenvolvimento de uma prtica psicoterpica destinada ao tratamento de crianas com transtornos emocionais.
Key words: Psychoanalysis, child, Brazil.

LOS ORGENES DE PSICOANLISIS DE NIOS EN BRASIL: ENTRE LA EDUCACIN Y LA MEDICINA


RESUMEN. El artculo presente tiene el objetivo de investigar la forma como las primeras informaciones relativas a los psicoanlisis de nios que se introdujo en Brasil, as como para delinear cmo estas ideas fueran adecuadas por las personas tericas nacionales e, incorporado en las prcticas de ayuda al nio, desarrollado al pas en las primeras dcadas del siglo XX. Para tal una investigacin histrica de naturaleza cualitativa se desarroll, por el logro de un levantamiento bibliogrfico que busc identificar la produccin de los autores nacionales en psicoanlisis de nios entre las dcadas de 1920 a 1950. Los resultados indican que la insercin del psicoanlisis de los nios en el pas pas por dos caminos: primeramente a travs de la educacin, por el uso de esta referencia terica con la intencin de mejor manejar la educacin del los nios y resolver sus problemas escolares, y, despus, a travs de la medicina, a travs del desarrollo de una prctica psicoteraputica destinada al tratamiento de los nios con los problemas emocionales.
Palabras-clave: Psicoanlisis, nios, Brasil.

Doutor, Professor Assistente do Departamento de Psicologia Clnica e do Programa de Ps-Graduao em Psicologia e Sociedade da Faculdade de Cincias e Letras de AssisUNESP.

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As primeiras referncias teoria psicanaltica surgidas no Brasil, segundo a psicanalista e pesquisadora da histria da psicanlise Marialzira Perestrello (1986), datam do final do sculo XIX, ou mais especificamente, do ano de 1899, ocasio em que o eminente psiquiatra Juliano Moreira, em sua ctedra de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Bahia ministrou aulas fazendo referncia a Freud e suas formulaes tericas relativas neurose. Ainda que as idias psicanalticas tenham comeado a circular no pas em data to remota, foi somente a partir da dcada de 1920 que a disciplina freudiana encontrou maior ressonncia no meio intelectual e cientfico brasileiro. Em exaustivo levantamento bibliogrfico, destinado a identificar a produo psicanaltica desenvolvida no Brasil durante a primeira metade do sculo XX, Elisabete Mokrejes, pesquisadora da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, afirma, na obra intitulada A Psicanlise no Brasil: as origens do pensamento psicanaltico, que A partir dos anos vinte destacaram-se vrios nomes das cincias mdicas especialmente psiquiatras, j versados nos temas freudianos (Mokrejes, 1993, p. 15). Analisando o contexto em que as idias freudianas foram introduzidas no Brasil, verificamos a ocorrncia de duas esferas de insero da psicanlise. Uma delas toma a teoria como um instrumento teraputico capaz de subsidiar as prticas de ateno aos pacientes psiquitricos (Rocha, 1989) e a outra destaca a apropriao da psicanlise no meio cultural, de tal forma que as ideias freudianas foram tomadas como um construto terico que pode ser aplicado a diferentes reas do conhecimento, como a literatura e a educao (Oliveira, 2006). No mesmo perodo em que a psicanlise comeou a ser difundida no Brasil, as primeiras formulaes tericas concernentes psicanlise de crianas comeavam a tomar forma por intermdio dos trabalhos pioneiros de Melanie Klein e Anna Freud. Na conjugao destes dois fatores nos defrontamos cm o fato de que a insero da psicanlise no Brasil veio, a partir de meados da dcada de 1920, a influenciar as prticas dedicadas ao cuidado da criana existentes no pas, tanto no mbito da sade quanto no da educao. Com o intuito de investigar a forma como as primeiras informaes relativas psicanlise de crianas foram introduzidas no Brasil, bem como

delinear como estas ideias foram sendo apropriadas pelos tericos nacionais e, por conseguinte, incorporadas nas prticas de assistncia criana desenvolvidas no pas nas primeiras dcadas do sculo XX, realizamos uma pesquisa qualitativa de carter histrico, na qual foram investigados todos os textos de autores nacionais que difundiram informaes relativas s teorias psicanalticas dedicadas a compreender o universo infantil ou a subsidiar o tratamento psicolgico de crianas entre os anos de 1920 a 1950. Tomando-se como referncia o critrio enunciado acima, foram identificados, em ordem cronolgica, publicaes dos seguintes autores: Deodato de Moraes, autor do livro A Psicanlise na Educao (1927); Jlio Pires Porto-Carrero, com os artigos: O Carter do Escolar Segundo a Psicanlise (1927); Instruo e educao sexuais (1928a), Leitura para crianas: ensaio sob o ponto de vista psicanaltico (1928b), A arte de perverter: aplicao psicanaltica formao moral da criana (1929a), Educao sexual (1929b) e O que esperamos dos nossos filhos (1930). Arthur Ramos contribuiu com os livros: Educao e Psicanlise (1934a) e A Criana Problema (1939), alm dos seguintes artigos: A tcnica da psicanlise infantil (1933), Os furtos escolares (1934b), A mentira infantil (1937), A dinmica afetiva do filho mimado (1938a) e O problema psicossociolgico do filho nico (1938b). Encontramos ainda Hosannah de Oliveira, com os artigos O Complexo de dipo em Pediatria (1932) e A higiene mental do lactente (1933); Gasto Pereira da Silva, com os livros: Educao Sexual da Criana (1934) e Como se Deve Evitar o Drama Sexual de Nossos Filhos (1939) e Pedro de Alcntara, com o artigo Objees da Psicanlise ao Uso da Chupeta: Anlise e Crtica (1936). Na dcada de 1940, encontramos os seguintes trabalhos de Durval Marcondes: A higiene mental escolar por meio da clnica de orientao infantil (1941a), Contribuio para o problema do estudo dos repetentes da escola primria: condies fsicas, psquicas e sociais (1941b) e Clnica de orientao infantil: suas finalidades e linhas gerais de sua organizao (1946b ); os seguintes artigos de Virgnia Bicudo: A visitadora social psiquitrica e seu papel na higiene mental da criana (1941), Funes da visitadora psiquitrica na clnica de orientao infantil e

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noes de higiene mental da criana (1946a) e Papel do lar na higiene mental da criana (1946b), as publicaes de Lygia Alcntara do Amaral. A apatia e o retraimento dos escolares como problema de higiene mental (1941) e Lar substituto e seu papel na higiene mental da criana (1946). Finalmente na dcada de 1950 destacamos o artigo de Maria Manhes Assistncia psiquitrica infantil (1957). Ao compulsarmos o conjunto destes trabalhos e estabelecermos as conexes com o momento histrico e o contexto social em que surgiram, foi possvel delimitar duas formas de apropriao, distintas porm complementares, que caracterizaram a insero da psicanlise de crianas no pas, quais sejam: a utilizao destas idias no contexto educacional, com o intuito de melhor gerir a educao das crianas e solucionar seus problemas escolares, e o emprego deste modelo terico como elemento complementar no tratamento de crianas com problemas emocionais atendidas em instituies dedicadas promoo da sade mental infantil, em sua maioria vinculadas ao meio psiquitrico.
A ESCOLA NOVA E A INSERO DA PSICANLISE NO MEIO EDUCACIONAL BRASILEIRO

Ainda na dcada de 1930, no bojo das reformas educacionais promovidas no pas sob a rubrica do movimento conhecido como Escola Nova, encontramos as condies necessrias para a introduo da psicanlise de criana no pas. Surgida em oposio pedagogia tradicional, a Escola Nova, forjada com base no iderio liberal, funda uma proposta pedaggica inovadora, na qual a criana passa a ser entendida como um ser em desenvolvimento, com caractersticas e necessidades diferenciadas do adulto, de forma que a sua singularidade deve ser considerada durante a elaborao e a execuo das atividades pedaggicas. Com base neste raciocnio, o fracasso escolar e/ou a inadaptao da criana escola deixam de ser vistos pura e simplesmente como uma expresso de anormalidade ou de inaptido da criana e passam a ser considerados a partir de uma nova perspectiva, uma vez que as condies do desenvolvimento intelectual e emocional da criana, que a tornam apta para as atividades

acadmicas, passam a ser contempladas na busca de compreenso e resoluo de suas dificuldades. Com a adoo desta nova filosofia educacional, iremos encontrar a senda a partir da qual a psicanlise de crianas comeou a ser requerida e a ganhar maior expresso no Brasil. Isso porque, ao considerar as dificuldades da criana em aprender ou adaptar-se escola, temos como corolrio a necessidade de recursos tericos e prticos que capacitem os profissionais com vistas compreenso e ao manejo destas dificuldades. Neste sentido, as autoridades educacionais organizaram instituies dedicadas ao atendimento do escolar deficitrio, e como consequncia, tivemos a criao, em 1934, no Rio de Janeiro, da Seo de Ortofrenia e Higiene Mental, sob a direo de Arthur Ramos 1 e, em 1938, na capital paulista, a fundao da Seo de Higiene Mental Escolar, coordenada por Durval Marcondes. As concluses relativas ao trabalho realizado nestas instituies foram apresentadas, no caso do Rio de Janeiro, no livro A Criana Problema, publicado por Arthur Ramos em 1939, e, em So Paulo, no volume Noes Gerais de Higiene Mental da Criana, organizado por Durval Marcondes e lanado no ano de 1946. Pelos levantamentos, descries e concluses apresentados nestes trabalhos, podemos entender a natureza das atividades realizadas com as crianas atendidas e aferir a participao da teoria psicanaltica em sua execuo. Resguardadas as diferenas entre os trabalhos e as singularidades de cada uma das instituies referidas, dada a sua similitude, podemos analislas em conjunto, visto que nosso objetivo no
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De origem alagoana, Arthur Ramos de Arajo Pereira (1903-1949) formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia, onde defendeu, aos 23 anos de idade, sua tese de doutorado intitulada Primitivo e Loucura. Em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde viveu at o fim de seus dias, atuando inicialmente como diretor da Seo de Ortofrenia e Higiene Mental e, pouco depois, como professor da cadeira de Psicologia Social na ento Universidade do Brasil. Teve um interesse intelectual bastante ecltico, dedicando-se aos estudos de criminologia, antropologia, psicologia social e psicanlise. Na condio de precursor da psicanlise de crianas no Brasil, publicou vrios trabalhos, dentre os quais os mais destacados so A tcnica da psicanlise Infantil (1933), Educao e Psicanlise(1934) e A Criana Problema (1939).

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momento to-somente traar as origens da psicanlise de criana no Brasil. O trabalho executado por intermdio de clnicas de orientao infantil2 junto aos escolares reconhecidos pelas escolas como detentores de alguma dificuldade cognitiva ou comportamental estava baseado em dois procedimentos principais: diagnstico e modificaes ambientais. Uma vez admitida nas clnicas de orientao infantil, a criana era submetida a um processo de avaliao conduzido por profissionais de diversas reas, que incluam psiquiatras, pediatras, psiclogos e assistentes sociais. Com base nos procedimentos realizados por estes profissionais, era possvel circunscrever um diagnstico que explicasse as dificuldades apresentadas pela criana e propor estratgias com vistas sua resoluo. Neste ponto, entra em cena a segunda etapa do trabalho realizado no mbito das clnicas de orientao infantil, que consistia, na grande maioria dos casos, em promover modificaes ambientais que favorecessem o desenvolvimento infantil e a adaptao da criana escola, o que era conseguido mediante um trabalho de orientao com pais e professores quanto forma mais adequada de conduzir a educao de seus filhos e alunos e conduta mais indicada a adotar ante as dificuldades manifestadas pela criana. As teorias que sustentavam esta proposta de atendimento estavam fortemente baseadas na psicanlise, como constata em 1946 Virgnia Bicudo, na condio de membro da Clnica de Orientao Infantil da Seo de Higiene Mental Escolar de So Paulo.
A psicanlise, por sua vez, demonstra que a personalidade resulta de um compromisso entre as necessidades biolgicas e psquicas do indivduo e as exigncias sociais. Se, por um lado, a sociedade impe padres de conduta aos indivduos, apresentando-lhes maneiras certas de agir, pensar e sentir, e lhes determina uma posio e um papel dentro do grupo social, por outro lado os indivduos possuem necessidades vitais a serem satisfeitas. Nos distrbios deste processo de ajustamento entre o indivduo e a sociedade encontram-se as condies
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etiolgicas dos problemas de conduta. (Bicudo, 1946, p. 80).

As clnicas de orientao infantil foram instituies criadas pelos servios de higiene mental escolar surgidos no Brasil na dcada de 1930, com a finalidade de dar exeqibilidade aos programas de atendimento ao escolar deficitrio, que foram inspiradas nas child garden clinic americanas.

Embora se possa supor que algumas crianas encaminhadas para as clnicas de orientao infantil necessitassem de atendimento psicoterpico ou algum outro procedimento equivalente, a amplitude do trabalho realizado no contemplava tal necessidade. O emprego da teoria psicanaltica, que se fazia presente durante a avaliao das crianas e as orientaes de pais e professores, no era estendido ao trabalho psicoterpico, haja vista que a psicoterapia infantil de base psicanaltica era entendida como um procedimento bastante complexo, para o qual no se dispunha, na ocasio, de profissionais com formao adequada. Em sntese, podemos considerar que o emprego da teoria psicanaltica na prtica de assistncia s crianas nas clnicas de orientao infantil teve um carter muito mais profiltico que teraputico, ou seja, a utilizao do referencial psicanaltico na avaliao da criana e na orientao de pais para compreender e resolver as manifestaes sintomticas surgidas na infncia tinha por finalidade ltima promover a higiene mental - ou a sade mental, para empregarmos uma terminologia mais atual -, o que supostamente garantiria o desenvolvimento de uma personalidade saudvel, com menores possibilidades de apresentar distrbios neurticos na vida adulta. Tomando esta configurao a partir de outro vrtice de observao, que se afasta do mbito de atuao das clnicas de orientao infantil em direo ao um campo mais abrangente, buscando compreender a insero da psicanlise no meio cientfico e social da poca, veremos que nesse momento histrico a psicanlise era entendida muito mais como um sistema conceitual possvel de ser aplicado a diferentes reas do domnio cientfico - por exemplo, a educao, a psiquiatria, a pediatria e a medicina legal - do que como uma rea de atuao profissional dotada de independncia. As referncias ao trabalho de Melanie Klein na fase introdutria da psicanlise de crianas no Brasil, nas dcadas de 1930 e 1940, apesar de bastante escassas, no foram inexistentes. J no ano de 1933 encontramos aluses, feitas por Arthur Ramos, ao trabalho que essa autora vinha desenvolvendo por intermdio da tcnica da anlise de crianas atravs do brincar. Ao compor o artigo A Tcnica da Psicanlise Infantil, no qual

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imprime forte peso ao carter educativo da psicanlise, o mdico alagoano desfia um squito de autores que se dedicaram psicanlise de crianas nas primeiras dcadas do sculo XX, entre eles Melanie Klein. Citando a edio alem do livro A Psicanlise de Crianas, publicado em 1932, Arthur Ramos d particular ateno tcnica do brincar:
Mme. Melanie Klein quem tem feito as mais interessantes aplicaes dessa tcnica do jogo. Partindo da ideia que a ao mais fcil do que a palavra, na criana ela provoca o seu comportamento nos brinquedos, pondo disposio do pequeno analisando um verdadeiro mundo em miniatura, tudo aquilo que constitui o objeto mais comum dos brinquedos infantis. Ento ela analisa o comportamento da criana. (...) Melanie Klein observa dessa maneira as vrias inclinaes da criana, porque, nos seus brinquedos, ela pode executar atos que na vida real seriam inibidos por causa do poderio das pessoas que a rodeiam. Na criana, os detalhes do jogo valem, para a anlise, como as associaes de ideias dos adultos; ela substitui a palavra pela ao. (Ramos, 1933, pp. 198-199).

Esta citao de Arthur Ramos merece particular destaque por dois aspectos principais: o pioneirismo que representa, uma vez que se trata, a nosso ver, da primeira apresentao sistemtica feita no Brasil de um conceito da obra kleiniana; e a apurada compreenso dos conceitos apresentados (no caso, a tcnica do brincar), demonstrando tratar-se de uma exposio lcida pautada em um interesse constante pelo tema, que levou o autor brasileiro a se manter constantemente atualizado, aproximando-se dos trabalhos mais recentes na rea da psicanlise de crianas. Alguns anos depois - em 1939, para sermos mais precisos -, quando j contava com alguma experincia no trabalho com crianas, adquirida na Clnica de Orientao Infantil da Seo de Ortofrenia e Higiene Mental, Arthur Ramos torna a citar Melanie Klein no livro A Criana Problema. Desta feita, suas referncias criadora da anlise de criana atravs do brincar no ficaram restritas ao campo da retrica, j que salienta nesse livro o emprego das ideias kleinianas no trabalho da clnica de orientao infantil por ele coordenado. Comenta ele: No fazemos anlises diretas,

ortodoxas, na criana, a molde de Anna Freud. Damos preferncia ao mtodo indireto de Melanie Klein nos casos indicados de correo psicanaltica. (Ramos, 1939, p. 387). Para que possamos compreender a amplitude desta citao e precisar o sentido atribudo por Arthur Ramos tcnica de anlise de crianas criada por Melanie Klein, vital tomarmos como ponto de referncia a proposta de atendimento oferecida s chamadas crianas-problema na Clnica de Orientao Infantil do Rio de Janeiro. Como destacamos h pouco, nessa ocasio no se adotava um procedimento psicoterpico como o entendemos hoje: a nfase do trabalho recaa sobre o diagnstico e as orientaes. Assim, podemos concluir que a preferncia conferida tcnica kleiniana deve-se ao fato de que a anlise do brincar, enquanto forma de expresso simblica do contedo inconsciente da criana, um recurso que pode ser empregado com finalidade tanto teraputica quanto diagnstica, condio esta que favoreceu a utilizao da tcnica do brincar no trabalho de avaliao do escolar deficitrio, realizado por essa instituio de assistncia infncia. A relevncia das contribuies de Arthur Ramos como precursor da psicanlise, particularmente para a psicanlise de crianas no Brasil, um fato incomensurvel, dada a dimenso assumida por seu trabalho tanto na divulgao da teoria em nosso meio quanto na aplicao deste conhecimento, de forma que sua atuao teve peso para influenciar uma gerao de profissionais que o sucederam. Quanto difuso do pensamento kleiniano, sua participao sugere o mrito do pioneirismo na apresentao ao pblico brasileiro de alguns temas centrais na obra de Melanie Klein, como a tcnica da anlise de crianas. No entanto, no cabe aloc-lo no rol dos pioneiros do pensamento kleiniano no Brasil, em virtude da abrangncia limitada que a obra kleiniana assumiu no conjunto do seu trabalho. Desta forma, no podemos tomar Arthur Ramos como um kleiniano, mas como um intelectual que, em determinada fase de sua vida profissional, socorreu-se de algumas idias de Melanie Klein para dar conta de determinadas vicissitudes que a prtica lhe impunha.
A PSIQUIATRIA INFANTIL E A PSICANLISE DE CRIANAS: UMA APROXIMAO VIVEL

Outro momento a ser destacado ao longo do desenvolvimento histrico da psicanlise de criana

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no Brasil a passagem de um modelo prtico de aplicao da psicanlise higiene mental da criana para um trabalho especfico de psicoterapia psicanaltica3, que comeou a surgir sobretudo a partir das dcadas de 1940 e 1950, em instituies voltadas ao atendimento da criana. A partir desse momento, a participao da psicanlise em programas de assistncia infncia no mais ficara restrita seara da educao, passando a influenciar propostas de atuao geradas no mbito da medicina, uma vez que a teoria psicanaltica passou a ser considerada como um instrumento para o tratamento dos transtornos emocionais da criana. Entre as instituies que comearam a desenvolver um trabalho especfico de psicoterapia psicanaltica com crianas destacam-se as seguintes: em So Paulo, a prpria Clnica de Orientao Infantil do Servio de Higiene Mental Escolar, que passou a contar com este tipo de atendimento, e no Rio de Janeiro, a Clnica de Orientao Infantil do Departamento Nacional de Sade Mental (DINSAM) do Ministrio da Sade e a Clnica de Orientao Infantil do Instituto de Psiquiatria da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, vinculada ento Universidade do Brasil. O modelo de atendimento preconizado por estas instituies, recm-criadas ou redimensionadas a partir do incio da dcada de 1950, passou a contemplar a psicoterapia psicanaltica em casos em que este procedimento fosse necessrio, particularmente naqueles em que a origem das dificuldades manifestadas pela criana era motivada por algum transtorno neurtico, sendo que a remisso dos sintomas no havia sido atingida por intermdio dos procedimentos habitualmente empregados at ento, como parte dos programas de higiene mental da criana. Dois fatores concorreram para que esta nova proposta de atendimento pudesse tomar mpeto e estruturar-se como uma forma vivel de atendimento criana,
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Ao narrarmos a histria da psicanlise de criana no Brasil (Abro 1999, 2001), empregamos a expresso psicoterapia de orientao psicanaltica para designar uma etapa intermediria entre a higiene mental da criana e a psicanlise de crianas propriamente dita, desenvolvida sob os auspcios das Sociedades de Psicanlise, na qual comea a surgir um modelo de atendimento psicoterpico voltado criana com problemas emocionais, realizado por profissionais informados sobre a psicanlise, mas sem formao psicanaltica conforme os padres recomendados pela IPA.

dos quais um era decorrente da prpria psicanlise e outro, da psiquiatria infantil. A divulgao constante da teoria psicanaltica no meio cientfico brasileiro, que se tornou uma realidade a partir da dcada de 1920, contribuiu para a institucionalizao do movimento psicanaltico, atravs da organizao de sociedades de Psicanlise surgidas a partir de meados da dcada de 1940, nos principais centros culturais do pas. Este fato possibilitou aos profissionais da rea da sade que se interessavam pela disciplina freudiana a disponibilizao das condies necessrias para a consecuo de uma formao psicanaltica em bases slidas. Assim, muitos daqueles profissionais que atuavam nas clnicas de orientao infantil acima referidas e vinham desenvolvendo uma prtica de assistncia criana inspirada na teoria psicanaltica encontraram a possibilidade de conduzir uma formao psicanaltica e de aprimorar sua atuao profissional, criando, desta forma, as condies para que a psicoterapia psicanaltica viesse a se desenvolver nestas instituies. Isto foi possvel porque comearam a surgir profissionais qualificados para tal, alguns j com a formao psicanaltica concluda, atuando como preceptores, e outros que iniciavam sua propedutica. Por outro lado, a psiquiatria infantil brasileira, na tentativa de consolidar-se como uma especialidade autnoma dentro da medicina, comea, a partir dos anos de 1950, a aprimorar suas prticas de atendimento criana que vinham sendo executadas at ento: Desse momento em diante podemos observar uma mudana, com o aparecimento de duas vertentes na Psiquiatria da Infncia: uma derivada de Kanner, com todas as influncias ambientalistas, funcionalistas e de higiene mental; e outra, derivada da Psiquiatria Francesa nosogrfica e classificatria, definindo-se a si prpria como organodinmica e com a maior representao no posterior Tratado de Psiquiatria Infantil de Ajuriaguerra (1977). Essa Psiquiatria infantil de origem francesa extremamente rica e, embora bastante influenciada pela psicanlise, constri todo um corpo terico no qual no se vinculam somente os quadros de retardo mental, que passam a construir um captulo da nova especialidade, mas tambm os quadros psicticos na infncia, trazendo os conceitos de psicoses autsticas, desintegrativas e formas marginais, assim como principalmente os

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quadros neurticos reacionais e psicossomticos, todos com uma nfase bastante intensa nas idias desenvolvimentistas. (Assumpo Jr., 1995, p. 63). Ao modernizar-se, a psiquiatria infantil brasileira abre espao para a psicanlise, que passa a ser considerada por uma grande parcela de psiquiatras como um recurso teraputico eficiente no tratamento de vrios distrbios mentais manifestados pela criana, constituindo-se assim em um segundo fator de relevncia para a emergncia da psicoterapia psicanaltica com crianas no Brasil. A Clnica de Orientao Infantil do Instituto de Psiquiatria da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro caracteriza-se como um exemplo singular da ocorrncia dos fatores que acabamos de apontar. Alm disso, essa clnica converteu-se em um importante polo de difuso do pensamento kleiniano, por intermdio da atuao de Dcio Soares de Souza junto instituio. A origem desta instituio data de 1953, quando:
(...) o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil cria uma seo destinada ao estudo dos desajustamentos infantis com o nome de Clnica de Orientao da Infncia. Sua inaugurao contou com a presena do Prof. Georges Heuyer, caracterizando de modo indiscutvel a presena e a influncia da Psiquiatria de lngua francesa na implantao da Psiquiatria da Infncia brasileira. Foi colocado na direo da clnica o Prof. Jos Affonso Netto e como orientadora psicolgica a Dra. Maria Alzira Perestrello. Sua natureza a direcionava ao acompanhamento de casos com indicao de orientao psicopedaggica, com avaliaes neuropsiquitricas, psicomtricas e de provas complementares, caracterizando uma orientao multiprofissional (Affonso Netto, 1953). (Assumpo Jr., 1995, p. 76).

A forma como foi constituda esta clnica e o enfoque conferido ao modelo de atendimento adotado, privilegiando uma psiquiatria dinmica, que contemplava o desenvolvimento infantil e os fatores emocionais na compreenso dos transtornos apresentados pela criana, criaram as condies necessrias para que a psicanlise viesse a vicejar neste meio, tornando-se uma influncia terica e prtica preponderante no trabalho dessa instituio, ao longo dos anos. Uma indicao desta tendncia pode ser encontrada desde a fundao do servio, representada pela participao de Marialzira Perestrello como orientadora psicolgica, dada a sua formao psicanaltica concluda alguns anos antes na Associao Psicanaltica Argentina.

fato que as ideias kleinianas estiveram presentes desde a fundao desta Clnica de Orientao Infantil; no entanto, a forma como elas foram empregadas variou em funo das modificaes ocorridas na poltica de atendimento s crianas, que foram implementadas com o passar dos anos, na medida em que o trabalho ia sendo aperfeioado e ampliado. A avaliao diagnstica empreendida por intermdio da tcnica do brincar de Melanie Klein, que era realizada por Marialzira Perestrello, coloca-nos em contato com uma caracterstica bastante frequente nos primeiros momentos da difuso das ideias kleinianas no Brasil, por intermdio da psicanlise de crianas: a utilizao de um recurso tcnico surgido originalmente com finalidade teraputica, adaptado a um contexto diagnstico. Resguardada a condio diferenciada de Marialzira Perestrello, em decorrncia de sua slida formao psicanaltica, podemos identificar muitas semelhanas entre os procedimentos executados por esta psicanalista, ao realizar diagnsticos de crianas pela tcnica do brincar, e as iniciativas de Arthur Ramos, conduzidas alguns anos antes, nas quais as ideias kleinianas sobre o brincar foram apropriadas de forma equivalente. Dito isto, podemos estabelecer, no plano conceitual, uma continuidade entre ambos os trabalhos, visto que, embora isolados no tempo e sem nenhuma relao entre si, adotaram uma conduta equivalente. A chegada de Dcio de Souza ao Rio de Janeiro e sua admisso como membro da referida Clnica de Orientao Infantil, em 1955, marcam uma nova etapa na difuso do pensamento kleiniano na instituio e, por conseguinte, em toda a antiga Capital Federal, dado o grande prestgio granjeado por este psicanalista. Trazendo em sua bagagem uma experincia clnica em anlise infantil endossada e avalizada pela mstica de ter sido supervisionado por Melanie Klein, este psicanalista reuniu as condies necessrias para promover a difuso das ideias kleinianas em duas direes principais: viabilizou a divulgao deste conjunto de ideias junto ao meio mdico carioca e criou possibilidades para sua aplicao prtica, ao implantar um modelo de atendimento criana baseado na psicoterapia psicanaltica. Sua primeira tentativa de sensibilizar os profissionais da rea de sade mental - mais especificamente os psiquiatras do Rio de Janeiro - quanto s contribuies de Melanie Klein psicanlise e quanto ao valor dessas ideias para a compreenso do psiquismo humano e sua utilidade no tratamento dos transtornos mentais ocorreu pouco aps seu retorno ao Brasil, no ano de 1955, ocasio em que proferiu conferncia perante a Sociedade

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Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal sobre o tema Desenvolvimento da Psicanlise segundo a Escola Kleiniana. A apresentao destas ideias, tidas na ocasio como vanguardistas, no passou inclume, despertando tanto crticas quanto adeses. Em outra direo, trouxe grande renovao Clnica de Orientao Infantil, ao viabilizar as condies necessrias, tanto estruturais quanto pessoais, para que o modelo de atendimento desenvolvido passasse a contemplar a psicoterapia psicanaltica. Para que tal proposta fosse efetivada, cumpriram-se duas condies: a delimitao da clientela atendida, de forma a priorizar uma demanda de natureza emocional que pudesse ser beneficiada com um atendimento psicanaltico, e a promoo de uma ateno sistemtica formao dos profissionais que ali atuavam, com o intuito de aproximlos e familiariz-los com a psicanlise ou, mais especificamente, com a teoria kleiniana preconizada por Dcio de Souza. Temos, assim, uma configurao tal que fez da Clnica de Orientao Infantil do Instituto de Psiquiatria, durante o perodo em que esteve sob a gide de Dcio de Souza, um reduto formador que serviu como introito para muitos profissionais que se aproximavam da psicanlise, com nfase particular na anlise infantil e na tcnica kleiniana. Tal proposta foi efetivada por uma atuao constante de Dcio de Souza, oferecendo instrues tericas e supervises aos profissionais que ali trabalhavam Desta forma, muitos psiquiatras que iniciaram sua vida profissional nessa clnica foram levados, algum tempo depois, a buscar formao regular em psicanlise junto Sociedade Brasileira de Psicanlise do Rio de Janeiro, o que pode ser exemplificado pelo caso de Mara Salvine de Souza. Um fluxo em sentido contrrio tambm foi evidenciado: alguns candidatos da referida Sociedade, que desejavam aprimorar seu conhecimento da teoria kleiniana colocando-os em prtica por intermdio da anlise infantil, foram encaminhados por Dcio de Souza Clnica de Orientao Infantil, onde encontraram a infraestrutura necessria para praticarem a psicoterapia psicanaltica com criana. Exemplificando esta situao temos, entre outros, o nome de Yara Lansac. Em suma, podemos considerar que, embora as ideias kleinianas no tenham exercido uma influncia hegemnica na fase inicial da psicanlise de criana no Brasil, anterior criao das sociedades de Psicanlise, visto que outros autores - como Freud, Adler e Anna Freud - tambm foram tomados como fonte de referncia, sua presena foi constante, subsidiando prticas de assistncia infncia tanto nos organismos geridos pela educao quanto naqueles dirigidos pela medicina. Esta

constatao, demonstrada empiricamente por intermdio dos fatos arrolados acima, enseja algumas consideraes sobre a natureza da apropriao destas ideias, bem como sobre sua forma de utilizao. Do conjunto da obra kleiniana publicada at esse perodo, que se estende de 1930 a 1950, aproximadamente, os pontos mais enfatizados pelos profissionais brasileiros foram aqueles dedicados dimenso tcnica da psicanlise, especificamente a tcnica do brincar, sendo que as teorias relativas ao desenvolvimento do psiquismo infantil no tiveram grande repercusso. Isso porque a forma como estes servios de assistncia criana foram constitudos trazia uma finalidade eminentemente prtica, centrada sobretudo na promoo da sade, e s mais tarde em aes de cunho teraputico. No se tinha, portanto, a inteno de praticar a psicanlise em seu sentido stricto, ou realizar estudos que tivessem por finalidade alargar a compreenso do desenvolvimento infantil, tema em que a teoria psicanaltica poderia ser de grande utilidade. Assim sendo, os trabalhos dedicados tcnica do brincar eram os que mais se aproximavam das necessidades prticas advindas do trabalho executado nestas clnicas de orientao infantil, que tinham por finalidade principal prestar assistncia criana com transtornos de natureza emocional. Uma vez promovida esta delimitao, uma segunda questo vem tona: qual a apropriao que os profissionais brasileiros fizeram da tcnica do brincar desenvolvida por Melanie Klein, em funo de suas necessidades? Ao que nos parece, a ideia de que o brincar da criana guarda uma relao com sua vida inconsciente, expressando simbolicamente seus conflitos e fantasias, estava assentada para os autores nacionais; porm o emprego deste conceito foi sendo adaptado s necessidades e s condies surgidas a partir do trabalho realizado nas instituies de assistncia infncia existentes na ocasio, fazendo com que a tcnica do brincar, gerada originalmente em um contexto teraputico, fosse adaptada para ser empregada inicialmente em um contexto diagnstico, e s mais tarde integrada a um modelo de psicoterapia psicanaltica. Esta maleabilidade na utilizao da tcnica do brincar, que possibilitou a sua utilizao fora do setting psicanaltico clssico, parece ter sido o principal fator que levou os autores brasileiros a aproximarem-se de Melanie Klein nesse perodo, conciliando o interesse terico com a necessidade prtica. Destarte podemos concluir que, desde os momentos iniciais de expanso da psicanlise de crianas no Brasil, as ideias kleinianas estiveram presentes, circulando com

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relativa frequncia no meio institucional e junto aos profissionais que trabalhavam com crianas, fruto da iniciativa de pioneiros que difundiram estas ideias em nosso meio. Seletivamente, o aspecto da obra kleiniana que encontrou maior ressonncia no pas, nesse perodo, foi aquele relativo tcnica da anlise de crianas, em virtude de sua originalidade e da possibilidade de adaptao a outras modalidades de atendimento infantil. Consideraes finais O percurso histrico aqui delineado nos permite concluir que a primeira via de insero da psicanlise de crianas no Brasil ocorreu por intermdio da educao. Quando nos indagamos sobre os motivos que fizeram da educao um veculo eficiente para a difuso da psicanlise de crianas, defrontamo-nos com uma srie de fatores que merecem ser sublinhados. Inicialmente devemos considerar que o trabalho psicanaltico com crianas, tal qual foi formulado por Melanie Klein e Anna Freud, teve origem em prticas que promoviam a aproximao entre psicanlise e educao. A este fator devemos conjugar o fato de que a iniciativa dos autores nacionais de tomar a psicanlise como um recurso auxiliar na discusso das questes educacionais encontrava-se em consonncia com o momento histrico da poca, que se caracterizou pela emergncia de uma nova concepo de criana, que passa a ser vista como um indivduo diferenciado do adulto, com regras prprias de desenvolvimento. Neste sentido, a psicanlise, ao enunciar as especificidades do desenvolvimento infantil, forneceu subsdios que contriburam para sustentar o surgimento de uma nova filosofia educacional. Uma vez promovida a divulgao da teoria psicanaltica no meio educacional brasileiro, formou-se o entendimento de que este modelo terico poderia contribuir no s para promover a melhoria das condies de educao infantil, mas tambm para subsidiar prticas voltadas ao atendimento das crianas com dificuldades escolares. Tal concepo, em nosso entender, resultou na criao das clnicas de orientao infantil, que tinham por finalidade promover o ajustamento do escolar deficitrio por intermdio de avaliao diagnstica e de intervenes ambientais mediante a orientao de pais e professores. Por meio desta proposta evidenciamos uma significativa mudana na concepo de profilaxia presente neste perodo, uma vez que no se trata unicamente de atribuir aos pais e professores a funo precpua de agentes profilticos de futuras manifestaes de doena mental, por intermdio de uma educao infantil guiada por princpios psicanalticos. Embora esta funo pudesse

advir secundariamente, o foco principal para o qual foram direcionados os esforos dos profissionais que atuavam nas clnicas de orientao infantil era o de promover a preveno da doena mental, mediante a compreenso e da assistncia s manifestaes sintomticas da criana em idade escolar. A insero da psicanlise de crianas no campo da medicina comeou a se concretizar no Brasil, sobretudo, a partir da dcada de 1950, como consequncia da associao de dois fatores histricos: a expanso das informaes relativas psicanlise de crianas no meio cientfico - fato que recebeu forte influncia da educao e o surgimento, dentro da psiquiatria, de uma rea de atuao denominada psiquiatria infantil. Desta forma, surgiram instituies vinculadas a servios pblicos de sade que tinham por finalidade prestar atendimento psicoterpico s crianas que manifestavam problemas de ordem emocional, tomando como referncia o modelo terico e tcnico da psicanlise. Esta etapa configura uma mudana significativa na forma de entendimento e utilizao da psicanlise de crianas no Brasil, na medida em que o foco da interveno deslocado da profilaxia para o tratamento das manifestaes sintomticas surgidas na infncia por meio de uma ao direta junto criana. Esta aproximao entre a psicanlise de crianas e a psiquiatria infantil no Brasil enseja tambm outros desenvolvimentos, tais como: a expanso do nmero de profissionais interessados na prtica da psicoterapia psicanaltica com crianas e uma crescente demanda por cursos de formao de psicanlise de crianas para dar conta das demandas surgidas a partir da prtica clnica.
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Recebido em 19/03/08 Aceito em 12/08/08

Endereo para correspondncia :

Jorge Luiz F. Abro. Avenida Rui Barbosa, 1262/91, CEP 19814-000, Assis-SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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