Família e Patrimônio Na Antiga Mesopotâmia

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Copyright by Marcelo Rede, 2007

Direitos desta edio reservados MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5 andar Lapa Rio de Janeiro RJ CEP: 20241-110 Tel.: (21) 3479.7422 Fax: (21) 3479.7400 www.mauad.com.br

Projeto Grfico: Ncleo de Arte/Mauad Editora

Capa: Criada sobre o mapa de Martin Sauvage (EPHE, Paris) Na 4 capa: foto da zigurat de Kish: J. Quillien

CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

R249f Rede, Marcelo Famlia e patrimnio na antiga Mesopotmia / Marcelo Rede ; [prefcio Ciro Flamarion Cardoso]. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2007. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7478- 213-3 1. Famlia - Mesopotmia - Histria. 2. Propriedade privada - Mesopotmia Histria. 3. Herana e sucesso - Mesopotmia - Histria. 4. Transmisso (Direito) - Mesopotmia - Histria. 5. Mesopotmia - Histria. I. Ttulo. 07-0892. CDD: 306.850935 CDU: 316.356.2(358)

Aos meus pais, Neusa e Orlando. s minhas meninas, Clia e Maria.

NDICE

Apresentao Prefcio Ciro Flamarion Cardoso Captulo 1: Problemas, mtodos e fontes 1. Problemtica: famlia, grupo domstico e apropriao do espao 1.1. Os sistemas de apropriao domstica 2. O debate historiogrfico: economias antigas e vises modernas 3. Questes metodolgicas: fazer histria a partir dos arquivos familiares 4. O stio de Tell Senkereh e sua documentao: um breve histrico 4.1. Os contratos de Larsa: origem e estado atual 4.2. Os arquivos da famlia Sanum 5. A genealogia da famlia Sanum: as evidncias documentais 6. Questes cronolgicas 6.1. A cronologia absoluta 6.2. A cronologia relativa I TRANSMISSES PATRIMONIAIS Captulo 2: Famlia e transmisso do patrimnio 1.Descendncia bilateral e devoluo divergente 1.1.Mulheres de Larsa: casamento e destino dos bens 1.2.Posio sucessria da filha: notas sobre um debate 1.3.Herana, dote e prestaes matrimoniais 1.4.Filiao e devoluo 1.5.Mesopotmia e Eursia: notas para uma sistematizao Captulo 3: Hierarquias sucessrias e preservao do patrimnio 1. O primeiro filtro: o sexo e a terra 2. Primogenitura: os vivos e os mortos Concluso Parte I: Famlia e grupo domstico, ambigidades e tenses estruturais

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II TRANSAES PATRIMONIAIS Captulo 4: Cartografia da circulao 1. Circulao da terra... mas qual terra? 1.1. Filologia do espao 2. Aspectos cronolgicos Captulo 5: As prticas de aquisio 1. Parentela e aquisio imobiliria 2. Contigidade: expanso contnua da base territorial 3. Aquisio imobiliria 3.1. Aquisies urbanas e consumo ostentatrio 3.2. Aquisies rurais e reforo da produo agrcola Captulo 6: Os agentes sociais 1. Os compradores 1.1. Atividades econmicas e origem dos recursos 2. Os vendedores Concluso Parte II: As transaes imobilirias e a economia poltica de Larsa III TENSES PATRIMONIAIS Captulo 7: As intervenes palacianas e a apropriao domstica 1. Os dados de Larsa 2. Babilnia e Larsa: a consolidao de um modelo comparativo 3. Bens protegidos versus bens de livre circulao? 4. Dvidas, vendas imobilirias e compensaes: articulaes e limites 5. Crise econmica e justia social? 6. Circulao de terrenos e interveno palaciana: por uma nova articulao CONCLUSO NOTAS BIBLIOGRAFIA

93 93 94 94 99 101 101 109 120 121 129 133 133 142 152 166 173 173 175 177 178 182 186 190 193 197 261

APRESENTAO

Os textos que o leitor encontrar neste livro so o resultado de um longo interesse sobre as formas de apropriao social do espao na antiga Mesopotmia, em particular no mbito do grupo familiar. Este foi o tema de uma tese de doutorado que preparei na Universidade de Paris Sorbonne, sob o ttulo Lappropriation de lespace domestique Larsa: la trajectoire de la famille Sanum. Alguns dos captulos permaneceram, at agora, inditos em portugus, outros apareceram sob forma de artigos em revistas especializadas. Aqui, todos foram refundidos e, quando necessrio, atualizados. Muito da forma e do contedo originais foi conservado; outro tanto foi suprimido ou adaptado. Por um lado, procurei desbastar o texto de todo aquele arsenal muito prprio de uma tese acadmica, que s tem sentido para uma avaliao de jri de especialistas. Em particular, todo um extenso segundo volume, dedicado publicao epigrfica e filolgica das fontes cuneiformes do Museu do Louvre, que serviram de base documental ao trabalho, foi deixado de lado aqui. Por outro lado, no hesitei em conservar o substancioso aparato de citaes: pareceu-me que, como entre ns h pouca tradio de pesquisa em histria do antigo Oriente Prximo, as referncias bibliogrficas seriam teis para orientar o leitor que queira aprofundar-se. O resultado destas opes foi a manuteno da unidade dos captulos: o leitor notar que, do incio ao fim, as interpretaes propostas derivam do estudo de um mesmo caso monogrfico o da famlia Sanum, que viveu no reino de Larsa, no sul babilnico, entre os sculos XIX e XVIII a.C. , embora eu tenha sempre procurado estabelecer os patamares para uma viso mais ampla, e muitas vezes renovada, da histria econmica e social da antiga Mesopotmia. Ao mesmo tempo, o novo arranjo proporciona que cada captulo seja considerado uma unidade e que as problemticas nele tratadas sejam compreensveis por si mesmas. Fez-se, portanto, um esforo de redao para que cada captulo pudesse ser lido individualmente. Evidentemente, para uma viso articulada dos vrios e complexos processos tratados da transmisso do patrimnio entre as geraes aquisio e venda de imveis, passando pelas questes de parentesco e casamento , uma leitura completa do volume seria o mais recomendvel. *** A escritura de um livro um percurso ao longo do qual acumulamos muitas dvidas de reconhecimento. Meus primeiros pensamentos vo a todos os mestres que me permitiram superar as dificuldades da escrita cuneiforme e das lnguas acadiana e sumria: o saudoso prof. Emanuel Bouzon (PUC-RJ); Dominique Charpin, meu orientador, Brigitte Lion e Pierre Villard (na Sorbonne); Jean-Marie Durand (Collge de France e EPHE); Francis Joanns (EPHE) e Bertrand Lafont (cole du Louvre e EPHE). Tambm devo muito aos ensinamentos de Sophie Lafont (EPHE) sobre direito cuneiforme e aos cursos de arqueologia oriental de Jean-Claude Margueron (EPHE). Entre meus professores, tambm no poderia deixar de citar aqueles que sempre me apoiaram na difcil fase inicial de estudos em histria antiga, em um meio em que quase tudo parecia
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desencorajar o debutante: Marlene Suano e Ulpiano Bezerra de Meneses (USP) e Ciro Flamarion Cardoso (UFF). Vrios pesquisadores leram meu projeto de pesquisa ou partes de meu texto, contribuindo com suas crticas: J. Renger (Freie Universitt, Berlin); M. Liverani (Universit La Sapienza, Roma), J.-J. Glassner (CNRS-Paris); S. Lafont (EPHE). Jean Bottro, com sua infindvel amabilidade, foi o primeiro a me encorajar a fazer o doutorado em Paris. Sou-lhe grato por esta boa idia. Nely Kozyreva (So Petersburgo) enviou-me gentilmente sua tese sobre Larsa. Do mesmo modo, Mariapaola Pers (Roma) permitiu-me um acesso sem restries sua grande base de dados sobre a onomstica de Larsa. Com Yves Calvet, um dos escavadores do stio de Tell Senkereh e grande conhecedor das estruturas residenciais de Larsa, eu pude discutir proveitosamente acerca dos elementos da arquitetura domstica. Vrios autores mantiveram-me informado de suas pesquisas e me anteciparam materiais inditos; que sua gentileza seja reconhecida: Lucile Barberon; Jean-Jacques Glassner; Brigitte Lion; Ccile Michel; Piotr Steinkeller. Eu gostaria tambm de agradecer s instituies e bibliotecas que me acolheram nos quatro anos passados em Paris, oferecendo-me as melhores condies de trabalho, em particular as bibliotecas do Gabinete de Assiriologia e do Laboratrio de Antropologia Social do Collge de France, bem como da EHESS. Mas tambm as bibliotecas do Centro Glotz e do Centro de Arqueologia Oriental, na Sorbonne, e do Instituto Catlico de Paris. O Laboratrio HAROCCNRS, de Nanterre, tambm foi generoso ao disponibilizar seus meios tcnicos e acervos. Um agradecimento especial deve ser dirigido ao Departamento de Antiguidades Orientais do Museu do Louvre, que me permitiu o acesso aos tabletes cuneiformes de Larsa e concedeu autorizao para publicar os documentos inditos da famlia Sanum. com grande prazer que agradeo a Batrice Andr-Salvini, curadora dos tabletes, e Norbeil Aouici, que se ocupou de mim em minhas longas e numerosas permanncias nas reservas do Museu, entre 1999 e 2002. O jri da defesa de tese fez consideraes relevantes que, na medida do possvel, foram integradas aqui. Agradeo a seus membros pela leitura atenta: Dominique Charpin (Sorbonne); Francis Joanns (EPHE); Jean-Marie Durand (Collge de France) e Alain Testart (CNRS). Vrios amigos contriburam para a correo de meus manuscritos franceses: Lucile Barberon, Magali Fuss, Brigitte Lion, Ccile Michel, Franoise Rougemont. Eu devo agradecer particularmente a Aline Tenu, que leu e corrigiu todo o trabalho e debateu comigo vrios de seus aspectos. As tradues de Macha Kouzmina e Lieve Behiels permitiram-me acesso a textos russos e holandeses, respectivamente. A lista de amigos que me acolheram em Paris, com uma estima a que serei sempre grato, mais vasta do que o espao desta pgina. Que todos e cada um encontrem aqui um grande obrigado sob os nomes destes amigos inesquecveis: Annie Attia, Aline Tenu, Jacques Levy e Jacques Quillien. Last but not least, devo agradecer minha dvida para com o Departamento de Histria da UFF, que me concedeu uma longa licena remunerada para a realizao do doutorado, e ao CNPq, do qual fui bolsista durante os quatro anos em Paris.

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A PRESENTAO

PREFCIO

Ciro Flamarion Cardoso (CEIA-UFF) Professor Titular de Histria Antiga (UFF)

Em 1968 assisti pela primeira vez a uma defesa de tese na Frana. Na banca estava Fernand Braudel. O tema era a economia da cidade de Crdoba (atualmente na Argentina) no perodo colonial. Em sua argio, Braudel elogiou o trabalho mas tambm disse: senti a falta dos acordes de violo nas noites de Crdoba. Tratava-se, claro, de uma boutade, de um bon mot. Mas as frases de efeito de Fernand Braudel nunca eram ociosas. Neste caso, creio que estava criticando um tipo de Histria Econmica to desencarnada e formalizada que poderia levar os fundadores dos Annales a perguntar, como fizeram em mais de uma ocasio: E os seres humanos nisso tudo? Uma pergunta assim tambm poderia ser formulada, com alguma freqncia, no que diz respeito Histria da antiga Mesopotmia; curiosamente, at mesmo quanto a certos trabalhos cujas fontes principais eram arquivos privados. E formul-la no decorreria s de uma atitude humanista, ou tendo esta como razo principal. Em termos precpuos de uma Histria Econmica, poder-se-ia argumentar que, ao ser o assunto da pesquisa a economia de unidades domsticas mediante a anlise da sucesso hereditria e das compras e vendas de lotes de terra urbanos e rurais, o exame das estratgias concretas e especficas das pessoas envolvidas deveria ser condio sine qua non para entender o que aquelas pessoas que eram membros da elite urbana de uma dada cidade mesopotmica estavam fazendo e por que o faziam. Interessava a Marcelo Rede abordar o seu tema Famlia e patrimnio na Mesopotmia, no Perodo Babilnico Antigo, com nfase na cidade de Larsa a partir da noo de apropriao da natureza (de segmentos do mundo fsico, portanto, do espao), entendendo-a como ao social compreendendo prticas e representaes. Tal ponto de partida permitiria, alis, mais de uma escolha quanto ao ngulo a ser privilegiado no enfoque. Para o marxismo, por exemplo, o ponto de partida a idia de que a propriedade, antes de ser uma forma jurdica de proteo do adquirido, j que cada sistema de produo gera suas prprias instituies e sua modalidade especfica de governo, uma apropriao real, pelos indivduos, no seio e por intermdio de uma forma social dada, das condies naturais da existncia. Pode mesmo acontecer que se tente, por meio de leis, mudar a forma da propriedade: mas estas leis s adquirem significado econmico se estiverem em harmonia com a produo social e as formas de apropriao real no seio desta: se no for assim, elas simplesmente no funcionam e a lgica da produo social se impe apesar das leis. Em outras palavras, a apropriao, considerada no contexto das relaes sociais, tem sem qualquer ambigidade, pace J.

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A. Cahan, prioridade absoluta, histrica e lgica, sobre a sua formalizao jurdica em forma de propriedade, que pode ocorrer ou no. Os direitos de acesso garantidos pelo direito consuetudinrio em suas mltiplas variaes locais, por exemplo, so coisa bem diferente de um direito de propriedade unificado e formalizado. Existem, quanto a tal assunto, mltiplas possibilidades e situaes histricas a considerar-se. Historicamente, a propriedade formalizada como direito unificado e absoluto muito mais a exceo do que a regra. Uma das conseqncias da postura derivada de Marx neste ponto que a propriedade privada plenamente constituda que implica como condio contraposta a no-propriedade uma forma tardia, historicamente delimitada, estando muito longe de ser universal, como pelo contrrio ainda afirmam muitos autores mesmo hoje em dia1. Para exemplificar, no debate sobre um texto de Michael Hudson cujo tema era o processo de privatizao, uma das intervenes defendeu a noo de que mesmo as sociedades mais primitivas (sic) tm algum tipo de propriedade privada da terra: pois, para Cleveland, autor da interveno mencionada, a alocao de parcelas por ancies da tribo s famlias no passaria de uma forma de propriedade privada, embora se trate de uma modalidade limitada, temporria e cujos contornos so mal definidos. A trajetria histrica da propriedade seria sempre, ento, a da propriedade privada, que passa de direitos vagos e inseguros para outros mais definidos, na medida em que a populao cresce e a tecnologia melhora2. Neste modo de ver, eminentemente a-histrico, a propriedade privada uma espcie de dimenso obrigatria do humano; existe em quaisquer sociedades e quaisquer circunstncias (ou, caso se prefira, configura um elemento integrante da prpria natureza humana, uma espcie de birthright dos seres humanos, pelo menos como possibilidade). O enfoque marxista das relaes entre o natural e o social delimita uma possibilidade de enfoque da apropriao do espao. Outra, a que foi escolhida por Marcelo Rede, uma viso antropolgica em que, mais do que encarar a apropriao como resultante de relaes entre a natureza e os homens, considerar-se-ia que decorre de relaes entre pessoas, tendo a natureza como vetor. A apropriao , portanto, composta de dispositivos que regem as relaes entre os agentes sociais em funo de um acesso material e imaterial natureza. Outrossim, o tema da tese ora publicada tem a ver com o papel, no controle do espao, exercido por grupos domsticos. Tratava-se de definir, portanto, um sistema domstico de apropriao do espao. Tambm a, sem negar a importncia das abordagens arquivstica e prosopogrfica dos arquivos privados de Larsa, tratou-se de efetuar o que o autor chamou de cruzamento complementar de abordagens, que, ao enfoque arquivstico e prosopogrfico, associou um ponto de vista antropolgico e uma opo metodolgica pelo tratamento serial e estatstico, na medida do possvel, do material eventualmente quantificvel relativo s transaes imobilirias. Isto foi levado a cabo vinculando o exame dos dados disponveis, a partir dos pontos de partida adotados, com a considerao de diversas lgicas: a das aquisies patrimoniais dos grupos domsticos; a das estratgias destinadas a prevenir, limitar ou adiar a pulverizao do patrimnio desses grupos; a das alianas de casamento (com as prestaes que as acompanhavam obrigatoriamente); e a da transmisso do patrimnio familiar. O autor salienta, com razo, ser de inegvel pertinncia enriquecer o estudo de um tema que no se confunde mas tem muito a ver com o das famlias (famlia e grupo domstico so coisas diferentes mas em ntima ligao) com o arsenal de mtodos bem como de achados j acumulados e a perspectiva comparativa, desenvolvidos pelos antroplogos ao longo de mais de um

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P REFCIO

sculo, em torno das trocas matrimoniais, dos sistemas de parentesco e das modalidades variveis de transmisso do patrimnio entre as geraes. Ao lado da hiptese que postula a associao entre dote, transmisso divergente do patrimnio e filiao bilateral (bilinear ou indiferenciada), um dos pontos interpretativos centrais a que chega a anlise contida na tese, de alta originalidade no relativo aos estudos da antiga Mesopotmia, provavelmente o seguinte: ...bens mveis e mulheres, fundamento de um sistema exgeno, circulam entre os diversos pontos fixos de uma construo formada pela unio indissolvel entre os homens e o territrio. O estudo desemboca tambm em elementos teis para o debate em curso entre formalistas e substantivistas no tocante interpretao das economias antigas. Um dos mais importantes consiste em discernir fatores diferenciais que incidem na formao do preo dos imveis rurais, neste caso, as imposies dos custos de produo tm um efeito homogeneizante sobre as avaliaes dos agentes implicados, resultando em um clculo mais propriamente econmico, se bem que a dimenso econmica do investimento fundirio resida na produo, no na circulao, e urbanos: no caso dos lotes urbanos, as estimativas que conduzem aos preos so mais subjetivas, mais distantes de uma apreciao estritamente econmica, uma vez que incluem apreciaes ligadas ao jogo social, tais como a concorrncia pela ocupao de espaos de prestgio, tendo a ver com o valor ostentatrio da casa. Em tal contexto, as compras de imveis urbanos, mais do que um investimento, devem considerar-se como uma forma de despesa, situando-se num plano que no o do investimento produtivo. A tese de Marcelo Rede tambm permitiu uma reavaliao parcial da lgica poltico-social envolvida nas intervenes do palcio na vida econmica mediante decretos reais (msharum), retocando a perspectiva habitual de interpretao dessas intervenes, ao ressaltar que a natureza do circuito de compra, venda e troca de terrenos em Larsa no era a do mercado. Assim sendo, cabe perguntar, como faz o autor: Quais so as relaes sociais eventualmente deterioradas pela transferncia de terrenos? Onde se situam exatamente as tenses introduzidas na sociedade pela circulao imobiliria? As respostas que d a estas perguntas levam a uma viso original do sentido da msharum no nvel especfico coberto pela tese: A finalidade dos decretos no era, portanto, o reequilbrio social de um mercado institucionalizado, mas a recomposio dos laos de proximidade no interior de grupos sociais delimitados. O palcio estaria tratando, ento, de limitar a corroso nos nveis elementares da organizao da comunidade (parentesco e vizinhana), mas sem alterar significativamente a condio econmica dos atores. Estes elementos selecionados no texto permitem, creio eu, uma percepo parcial da originalidade e pertinncia do trabalho empreendido por Marcelo Rede em sua tese preparada e defendida na Frana. Sendo tal texto o primeiro a ser publicado com a chancela do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antigidade (CEIA-UFF), v-se que o Centro inaugura em forma imelhorvel a srie de trabalhos destinados a vir luz com a sua chancela, j que, alm de se tratar de um livro original de alta qualidade acadmica, tambm configura uma decidida viso interdisciplinar. Num registro mais pessoal, seja-me permitido manifestar a grande satisfao que sinto pela publicao de um trabalho de tal porte por um professor que meu colega no Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, sendo, tambm, um ex-aluno.

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ABREVIAES

Para as referncias bibliogrficas, as citaes in extenso encontram-se na bibliografia ao final do volume. Para os instrumentos prprios do domnio assiriolgico (publicao de documentos cuneiformes, dicionrios, lxicos, repertrios etc.), bem como para os tombos dos museus, foram utilizadas as seguintes abreviaes: AbB: Altbabylonische Briefe (Leiden) AfO: Archiv fr Orientforschung (Viena) AHw: W. Von Soden Akkadisches Handwrterbuch. 3 volumes. Wiesbaden, 1965-1981. AO: Antiquits Orientales (tabletes do Museu do Louvre) AoF: Altorientalische Forschungen (Berlin). ARM: Archives Royales de Mari (Paris). ARMT: Archives Royales de Mari, Textes (Paris) AUCT: Andrews University Cuneiform Texts (Berrien Springs) BE: Babylonian Expedition (Philadelphia) BIN: Babylonian Inscriptions in the Collection of J. B. Nies (New Haven) BM: Tablete do British Museum (Londres) CAD: The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago. Chicago, Oriental Institute, 1964 ss. CDA: J. Black, A. George & N. Postgate A Concise Dictionary of Akkadian. Wiesbaden, Harrassowitz, 2000. CH: Cdigo de Hammu-rabi CT: Cuneiform Texts (British Museum, Londres) DANE: P. Bienkowsky & A. Millard (eds.) Dictionary of the Ancient Near East. London, British Museum Press, 2000. DCM: F. Joanns (ed.) Dictionnaire de la civilisation msopotamienne. Paris, Robert Lafont, 2001. ED: Tablete de Tell ed-Dr F: Face do tablete Ha: Hammu-rabi HG: Hammurapi Gesetz HE: Tablete da cole Pratique des Hautes tudes (Paris) IM: Tablete do Museu do Iraque (Bagdad). JCS: Journal of Cuneiform Studies (Boston) LE: Leis de Eshnunna

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A BREVIAES ,

PESOS E MEDIDAS

Limet: H. Limet Amurru-shemi, propritaire foncier Larsa In: Akkadica, Supplementum, 6, 1989 (99-111). MAD: Materials for the Assyrian Dictionary (Chicago) MSL: Materialen zum Sumerischen Lexikon (Roma) NBC: Tablete da Nies Babylonian Collection (New Haven) ND: nome de divindade Ni: Tablete de Nippur Museu de Istambul NP: nome de pessoa OECT: Oxford Editions of Cuneiform Texts (Oxford) PSBA: Proceedings of the Society of Biblical Archaeology (Londres) PSD: The Sumerian Dictionary of the University Museum of the University of Pennsylvania, Philadelphia R: Reverso do tablete RA: Revue dAssyriologie et dArchologie Orientale (Paris) RGTC: Rpertoire Gographique des Textes Cuniformes (Tbingen) Riftin: A. P. Riftin Starovavilonskie Juridiceskie i Administrativnie Dokumenti v Sobranijach SSSR. Moskau/Leningrad, 1937 (tambm abreviado SVJAD) RlA: Reallexikon de Assyriologie und vorderasiatischen Archologie (Berlin, New York) RS: Rm-Sn SAOC: Studies in Ancient Oriental Civilization (Chicago) Si: Samsu-iluna Siq: Sn-iqisham SL: Sumerische Lexikon Sm: Sn-muballit sum.: sumrio TCL: Textes Cuniformes du Louvre (Paris) TEBA: Textes de lpoque Babylonienne Ancienne (cf. M. Anbar na bibliografia) TIM: Texts in the Iraqi Museum (Wiesbaden) TLB: Tabulae Cuneiformes a F. M. Th. de Liagre Bhl Collectae (Leiden). TS: Textos de Tell Sifr (Kutalla) UET: Ur Excavation Texts (London, Philadelphia) VS: Vorderasiatische Schriftdenkmler (Berlin) WS: Warad-Sn YBC: Tablete da Yale Babylonian Collection (New Haven) YOS: Yale Oriental Series (New Haven)

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PESOS E MEDIDAS

1. Medidas de superfcie she = 1/180 de gn gn = 1/60 sar = 0,6 m2 sar = 1/100 gn = 36 m2 gn = 1/6 esh = 3600 m2 esh = 1/3 br = 2,16 ha br = 6,48 ha 2. Medidas de peso she (gro) = 1/180 gn = 0,05 g gn (siclo) = 1/60 ma-na = 8,33 g ma-na (mina) = 500 g

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A BREVIAES ,

PESOS E MEDIDAS

CAPTULO 1

PROBLEMAS, MTODOS E FONTES

As abordagens filolgica, humanstica e antropolgica () so irredutveis, no sentido de que no podem ser derivadas uma da outra. Elas servem a propsitos diferentes e, portanto, devem ser perseguidas com igual energia a fim de obter um quadro mais completo e um entendimento mais profundo das culturas que formam o objeto de nosso estudo. G. Buccellati (1973: 19)

1. Problemtica: famlia, grupo domstico e apropriao do espao Que a interao entre o homem e a natureza seja uma dimenso fundamental da realidade social uma evidncia bastante clara e bem aceita, ao menos na maior parte do tempo, pelos historiadores. Entretanto, ainda h todo um caminho a ser feito para compreender como tais relaes se estabelecem historicamente, em cada sociedade e em cada poca, a fim de descortinar a especificidade dos diversos modos de relao entre os agentes sociais e o ambiente fsico que os cerca. A complexidade reside no fato de que esta relao no se constri entre um ator ativo e um quadro fsico pacfico, estabelecido previamente. Ao contrrio, trata-se de relao construda culturalmente. Deste ponto de vista, a natureza no existe como um conjunto de traos prvios sociedade. a sociedade que, apropriando-se da natureza, acaba por modelar uma natureza, historicamente delimitada no espao e no tempo, segundo critrios especficos, em um processo que s pode ser entendido a partir de componentes prprios prpria sociedade. Isto equivale a dizer que no existe um modelo universal ou transhistrico. Com efeito, a idia de uma relao entre os homens e a natureza quase inexata: para ser mais preciso, dever-se-ia falar, antes, de relaes sociais entre as pessoas, tendo como vetor a natureza3. Esta preciso tem, a meu ver, uma dupla vantagem. A primeira que ela enfatiza as relaes entretidas pelos homens no processo social: a apropriao de segmentos da natureza aparece, assim, como um fenmeno social entre outros, suscetvel de ser influenciado pelas demais esferas e tambm de influencilas; deste modo, a apropriao caracteriza-se pela durao, pela tendncia formalizao e pela busca de continuidade, mas tambm pelas mudanas, pelas crises e pela possibilidade de desaparecer. A segunda vantagem que ela permite no ver a natureza como um elemento passivo da equao, mas como suporte e condutor material por meio do qual as relaes sociais operam.
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-Apropriao Se podemos falar de apropriao como uma dimenso, porque ela no se confunde com a totalidade das relaes entre a sociedade e a natureza. Tal como a entendo aqui, a noo de apropriao corresponde ao conjunto de mecanismos que permitem o controle de um segmento da realidade fsica. A apropriao , portanto, composta de dispositivos que regem as relaes entre os agentes sociais em funo de um acesso, material e imaterial, natureza. Entre estes dispositivos encontram-se todas as prticas e regras de aquisio, todos os meios de impor uma forma fsica aos vrios segmentos da realidade, toda sorte de empregos que conferem um uso social, todos os dispositivos de manuteno e defesa da relao, que servem para definir as incluses e excluses de acesso, todos os mecanismos de disposio, como a alienao e a transmisso, todas as operaes que conferem um sentido imaginrio coisa apropriada. Assim definida, a noo de apropriao aproxima-se do conceito de propriedade tal como ele definido por certos antroplogos (mas que no se confunde com uma definio estritamente jurdica, como veremos). Assim, em um longo artigo sobre a apropriao da natureza, M. Godelier escreve: Designa-se por propriedade um conjunto de regras abstratas que determinam o acesso, o controle, o uso, a transferncia e a transmisso de qualquer realidade que possa ser objeto de um interesse e acrescenta que o conceito pode aplicar-se a qualquer realidade tangvel ou intangvel4. A exemplo de todas as aes sociais, a apropriao composta de prticas e representaes. Uma mentalidade apropriativa , portanto, uma dimenso indispensvel do processo de apropriao. No se trata, porm, de concepes mais ou menos formalizadas que resultam da prtica apropriativa como um reflexo mecnico, mas, ao contrrio, de um conjunto de atitudes mentais, de natureza coletiva, que orienta e faz parte intrinsecamente das aes de controle dos segmentos da natureza. A apropriao deve ser definida, ento, como uma ao que impe uma forma fsica ao mundo, que estabelece as funes dos objetos apropriados em uma estrutura social e que, enfim, cria sentidos para as coisas materiais em um sistema cultural5. A primeira destas trs dimenses remete morfologia e o domnio privilegiado da arqueologia, que pode, evidentemente, ter muito a dizer sobre as demais dimenses. Por outro lado, se, nos limites deste trabalho, foram enfocadas prioritariamente as prticas apropriativas, no se pode deixar de reconhecer que uma abordagem do fenmeno s ser completa com um estudo da mentalidade apropriativa mesopotmica6. A noo de apropriao no somente mais larga do que a de propriedade, no sentido jurdico, como tambm permite evitar algumas aporias resultantes da aplicao desta ltima s sociedades que se situam margem da tradio do direito romano. Para se limitar ao essencial, as dificuldades de utilizao de uma noo jurdica de propriedade no caso mesopotmico so duplas. Primeiramente, a tendncia predominante entre os juristas confere uma importncia excessiva formalizao: a formulao de um conceito abstrato e coerente de propriedade, que defina os direitos de acesso, acaba por ser mais importante que o prprio processo de apropriao. Esta conceitualizao formal, quando existe em dada sociedade, um fenmeno importante e, sem dvida, deve ser levado em considerao pelo historiador. Entretanto, do ponto de vista da natureza da apropriao, ela secundria: historicamente, os modos de acesso ao universo material no tiveram necessidade de uma formalizao para se constiturem enquanto sistemas institucionalizados, socialmente reconhecidos e eficazes na definio de condutas de controle7. A segunda dificuldade reside no fato de que uma noo unificada de propriedade no

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necessariamente operacional em todas as sociedades antigas. O direito romano, de fato, procedeu a uma tal unificao: o jus utendi fruendi et abutendi supe uma associao, na mesma noo, entre dimenses muito diversas do processo de apropriao. Em muitas sociedades, porm, as capacidades de usar, gozar e dispor de um determinado bem no so forosamente cumulativas e, sobretudo, no foram fundidas em uma mesma categoria jurdica. E isto ocorre, muito simplesmente, porque, na realidade social, elas podiam corresponder a direitos divergentes, que no pertenciam mesma pessoa ou ao mesmo grupo8. Se tomarmos o caso mesopotmico, perceberemos, justamente, que uma leitura legalista e teleolgica do problema acabou por considerar a ausncia de uma noo abstrata de propriedade, formalizada e unificada, como a caracterstica de um sistema jurdico imperfeito, forjado a partir de um nvel demasiado fraco de conscincia dos fenmenos jurdicos, em uma perspectiva evolucionista em que o direito romano aparecia como a referncia ideal por excelncia9. -Espao Os objetos implicados nas relaes de apropriao so mltiplos: os recursos naturais, os instrumentos, os artefatos, a produo, mas igualmente os privilgios e posies, os papis mgicos e religiosos, o mando e autoridade. Portanto, coisas materiais e imateriais. Neste quadro, pode-se dizer que o espao um elemento privilegiado, pois todo processo de apropriao desenrola-se a partir de uma referncia espacial. De modo ainda mais geral, o prprio processo social que se ancora no espao: mobilidade ou fixao territorial, habitao, produo, limites geogrficos da identidade do grupo, extenso do poder poltico, vnculo de origem com os ancestrais... cada um destes fenmenos e muitos outros igualmente fundamentais constituem-se a partir de uma definio de sua espacialidade10. Como as estratgias de apropriao podem mudar consideravelmente de acordo com os objetos implicados, necessrio definir claramente o campo relativo nossa pesquisa. A tarefa parece-me ainda mais importante devido a uma grande falta de especificidade que predomina nos estudos sobre a propriedade fundiria na Mesopotmia, um domnio que j conta com longa tradio. As expresses propriedade fundiria e propriedade da terra so, com efeito, demasiadamente vagas e, ao mesmo tempo, convidam, ao menos em princpio, a pensar principalmente nos espaos que so objeto de uma apropriao produtiva, como os campos agrcolas e os pomares. No entanto, a problemtica da apropriao do espao no se reduz ao acesso aos meios de produo elementares da economia agrria. Esta ltima questo , sem dvida, de enorme importncia, mas, ainda que todos os espaos tenham normalmente um valor econmico, sua insero social no se define sempre a partir de critrios prioritariamente econmicos, e menos ainda a partir de sua integrao no circuito de produo de riquezas. A arqueologia, por sua vez, enfatizou um outro tipo de espao, a habitao. Por sua prpria natureza, concentrada nas antigas zonas urbanas, a atividade de escavao centrou-se durante muito tempo nas grandes estruturas dos palcios e templos, assim como nos contextos funerrios11. Os ltimos decnios viram, porm, uma valorizao dos espaos domsticos12, e a arqueologia de Larsa ocupou um lugar de destaque neste movimento13. A habitao no , sobretudo no contexto mesopotmico, desprovida de aspectos produtivos, mas sua natureza determinada por ser um espao de interao social e simblica do grupo domstico. A abordagem arqueolgica contribuiu bastante para a compreenso dos diversos aspectos da funo das residncias, para a formao de uma tipologia arquitetnica, para o estudo da articulao entre as casas e o tecido urbano e mesmo para o entendimento das implicaes simblicas da presena das caves
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funerrias nos subsolos das casas14. No entanto, no que diz respeito ao estabelecimento, manuteno e ruptura das relaes de apropriao, os dados arqueolgicos so apenas complementares e o essencial da enquete deve ser feito a partir da documentao escrita15. Famlia e grupo domstico O grupo domstico no se confunde com a famlia, mesmo se esta sua espinha dorsal. Se comeamos por tentar caracterizar a famlia na poca babilnica antiga, ns somos confrontados com uma dupla dificuldade. A famlia pode ser definida, em sentido amplo, como o grupo de pessoas relacionadas pelos laos de parentesco, ou seja, pela filiao e pelas alianas de casamento (ou laos de afinidade). Esta definio sempre poder ser mais complexa: por exemplo, a filiao legtima pode ser real ou fictcia (por adoo) etc. Por outro lado, este grupo pode assumir formas muito variveis, por exemplo, por causa da articulao com os padres de residncia. Infelizmente, a situao na Mesopotmia dos incios do segundo milnio no totalmente clara e objeto de disputa entre os especialistas. No principal debate sobre o assunto, trata-se de saber se a famlia tinha uma estrutura nuclear ou alargada. A famlia nuclear (ou conjugal, restrita, elementar) , normalmente, composta pelo casal e seus filhos celibatrios, enquanto que a famlia alargada (extended family, na terminologia inglesa) constituda de membros de trs ou mais geraes, sendo que os filhos casados habitam geralmente com seus pais. As realidades podem ser muito mais nuanadas ou complexas: por exemplo, a famlia nuclear pode admitir a incorporao de um outro membro (um parente vivo, um irmo ou uma irm celibatrios) sem que isto altere profundamente sua estrutura bsica16. Por vezes, um dos filhos (em geral, o primognito) permanece no lar paterno mesmo aps o casamento, em coabitao (stem family)17. Certos autores, notadamente os marxistas, defenderam a existncia de uma estrutura familiar alargada na Mesopotmia do terceiro milnio a.C., mas tambm durante o milnio seguinte, em que, contudo, ela apareceria de modo alterado ou residual18. Reconhecendo as dificuldades documentais, Diakonoff (1985: 52 e 1996: 58) props que a famlia alargada fosse ainda presente no reino de Larsa durante a poca babilnica antiga. Uma opinio diametralmente oposta foi expressa por W. F. Leemans (1986), para quem no h traos de tal estrutura familiar nessa poca19. Certamente, a passagem do terceiro para o segundo milnio conheceu uma atomizao da organizao familiar, mas uma evoluo unvoca por etapas, indo do grupo alargado para a unidade nuclear, difcil de ser demonstrada. Alguns autores alertaram, com efeito, para a complexidade do problema. J.-J. Glassner (1986: 111 s.), por exemplo, sustenta que, na Babilnia, a forma clssica era aparentemente a famlia nuclear, mas reconhece igualmente a existncia de formas alargadas, em particular a famlia ramificada. No mesmo sentido, I. J. Gelb (1979: 56 ss. e 75 ss.) prope uma coexistncia entre as formas nucleares e as formas alargadas (com variantes como as famlias ramificadas e os grupos formados por irmos e seus respectivos grupos nucleares: fraternal ou joint family). Em um trabalho recente, fundado em dados arqueolgicos relativos s casas, no estudo de arquivos familiares e na comparao etnogrfica, P. Brusasco (1999/2000) defendeu que, na cidade de Ur, os dois modelos, nuclear e alargado, conviveram20. Em Larsa, a impresso que se depreende da observao das transaes imobilirias, dos registros de casamento e das partilhas de herana de predomnio de um modelo nuclear de organizao familiar (ver D. Charpin, 1996a: 225). Tem-se a mesma impresso analisando os

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cdigos de leis da poca: as realidades que transparecem por trs dos pargrafos das leis de Eshnunna ( 16-18; 25-30; 38 e 59) e do cdigo de Hammu-rabi ( 128-195) so mais compatveis com uma estrutura familiar nuclear. Por exemplo, a permisso dada mulher de um marido ausente, em situao de penria, de tomar um segundo esposo (CH 134 s.; ver tambm LE 29) sugere a inexistncia de mecanismos eficazes de solidariedade prprios aos grupos alargados. Por vezes, certos elementos sugerem formas mais alargadas, sobretudo com a incluso de um parente secundrio ou a presena de filhos de uma segunda esposa. A famlia Sanum apresenta-se como uma estrutura dividida em dois ramos nucleares, cada qual formando o centro de um grupo domstico independente, com suas respectivas residncias e patrimnios. A referncia genealgica a um ancestral comum no parece suficiente para falar de uma estrutura alargada e as transaes imobilirias entre os dois grupos reforam a imagem de autonomia recproca21. No se poderia, no entanto, descartar completamente a existncia de grupos alargados, sobretudo porque tais formaes no so realidades fixas e imveis: bem provvel que a composio familiar tenha variado ao longo do tempo na trajetria de um mesmo grupo, passando de alargada a nuclear e vice-versa. No mais, tambm possvel que, por razes documentais, as estruturas nucleares sejam mais visveis do que as estruturas alargadas, falseando a observao do historiador22. igualmente difcil estabelecer o padro residencial predominante, mas eu me inclinaria por uma preponderncia da habitao neolocal, com os filhos partindo do lar paterno para constituir uma casa independente, mesmo se as relaes com a casa-me possam permanecer muito fortes do ponto de vista econmico, simblico etc. Outros autores, como J. -J. Glassner (1986: 115), penderam para uma forma patrilocal. verdade que se nota uma tendncia de o filho recuperar a casa paterna, comprando as parcelas dos co-herdeiros, mas difcil saber se ele havia ficado na casa paterna aps o casamento (formando, ento, uma famlia ramificada patrilocal) ou se partira por ocasio do casamento, retornando posteriormente. Em todo caso, os demais irmos teriam constitudo novas residncias com suas esposas23. As situaes de coabitao e indiviso real do patrimnio entre os irmos aps a morte dos pais poderiam indicar uma tendncia patrilocal, mas, em geral, no sabemos se se tratava de filhos casados ou celibatrios. A nica coisa que parece segura que, normalmente, a filha deixa a casa de seus pais para casar-se24. O fenmeno da apropriao est intimamente ligado s realidades familiares, mas tambm existncia, na sociedade mesopotmica, de uma instituio que incorpora e supera a famlia. O grupo domstico , sem dvida, ancorado nas relaes de parentesco que vinculam um certo nmero de seus membros, aqueles que formam seu ncleo duro, mas ele integra igualmente pessoas ligadas por outras formas de relao, por exemplo, os dependentes ou escravos. Ele fundado sobre a unidade familiar, mas tambm um empreendimento material mais vasto, articulando um conjunto patrimonial, meios de produo, instrumentos, mo-de-obra etc. E, sobretudo, o grupo domstico configura-se como uma entidade com uma lgica prpria, autnoma, que nem sempre se confunde com a lgica familiar e, por vezes, est em contradio com ela. No domnio antropolgico, a nomenclatura relativa a esta entidade freqentemente instvel. O que entendo, aqui, por grupo domstico aproxima-se da noo de household da tradio anglo-saxnica, que os franceses traduzem corriqueiramente por mnage 25. Na Frana, na esteira dos trabalhos de Lvi-Strauss, que falava de socits maison, encontraremos maisonne ou simplesmente maison 26. Em um recente esforo para estabelecer o vocabulrio relativo ao parentesco, o glossrio publicado pela revista LHomme definia maison como

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uma pessoa moral detentora de um domnio composto de bens materiais e imateriais e que se perpetua pela transmisso de seu nome, de seus bens e ttulos em linha real ou fictcia. O mesmo glossrio d uma outra definio para groupe domestique: unidade social que tem fundamentos residenciais, econmicos, rituais etc.. As duas definies parecem-me complementares face realidade social que quero exprimir aqui27. A distino entre famlia e grupo domstico nem sempre evidente e a tarefa no facilitada pela terminologia utilizada pelas prprias sociedades estudadas28. exatamente o caso da antiga Mesopotmia. Se podemos reivindicar uma oposio de base entre kimtum, famlia (im-ri-a em sumrio) e btum, casa ou grupo domstico (sumrio: ), o uso dos termos e a interveno de outros vocbulos (nishum, nishtum, emtum etc.) tornam as coisas mais opacas29. No se trata, a meu ver, de um fenmeno de falta de preciso ou de ambivalncia semntica: preciso considerlo, antes, como o reflexo de uma ambigidade estrutural da sociedade mesopotmica, partilhada entre as realidades do parentesco e do grupo domstico. 1.1. Os sistemas de apropriao domstica Para bem isolar e situar as realidades aqui estudadas, preciso fazer uma distino preliminar. O sistema de apropriao domstico no um bloco monoltico, feito de uma s relao de controle do espao. Bem ao contrrio, h um acmulo dos modos de acesso, de origem e natureza diversas, nos quais o grupo domstico participa a diferentes ttulos. Trs deles so encontrados freqentemente em toda a Mesopotmia, embora com variantes locais mais ou menos importantes: A primeira fonte de acesso domstico ao espao o pertencimento comunidade. Nos incios do segundo milnio, este era apenas um sistema residual, mas que ainda exercia influncia sobre a distribuio de parte dos campos cerealferos s famlias. Neste caso, as regras de transmisso entre as geraes so mal conhecidas, mas muito provvel que a manuteno dos laos com a comunidade constitua condio indispensvel para a continuidade da ocupao. Certas famlias, das quais um ou mais membros faziam parte da administrao palaciana, controlavam tambm terrenos ou imveis concedidos em troca da prestao de servios, a ttulo de remunerao. A substituio parcial do sistema de raes pela concesso de campos de subsistncia foi uma caracterstica da transio do III para o II milnio e, sem dvida, foi intensificada em Larsa aps a conquista de Hammu-rabi. Parece que este sistema foi freqentemente fonte de conflito por causa do estatuto incerto da ocupao (sobretudo se o servidor estava ausente) e de confuso com os campos cultivados diretamente pelo palcio. Em todo caso, a transmisso gerao seguinte era limitada por restries mais ou menos eficazes por parte do palcio e dependia fundamentalmente da continuidade do exerccio da funo pelo filho do beneficirio. Neste caso, a herana (transmisso de bens) confundia-se com a sucesso (transmisso de funes e status). A apropriao propriamente familiar, no sentido de que fundada sobre relaes de parentesco, forma um terceiro modo de controle. Este sistema delimita uma categoria de bens de que a famlia pode dispor mais livremente (da a possibilidade de alienao), permanecendo, porm, submetida s limitaes das relaes de parentesco: estas servem de vetor do movimento dos bens; por exemplo, a transmisso intergeracional seguia a filiao, ao mesmo tempo que era influenciada pelas alianas de casamento.

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Evidentemente, nem todas as famlias tomavam parte dos trs sistemas ao mesmo tempo ou com a mesma intensidade. Havia diferenas em funo do status social e tambm entre o meio urbano e rural: a elite urbana que participava da estrutura palaciana podia receber mais freqentemente possesses funcionais, enquanto que a populao alde dependia mais diretamente das terras providas pela comunidade, por exemplo. Em todo caso, o que chamamos de apropriao domstica era o resultado, varivel e no necessrio, dessas trs formas elementares de controle30. No entanto, limitando-se a este esquema, poder-se-ia ter a impresso de que os trs sistemas eram independentes e que o parentesco exercia influncia apenas sobre o ltimo. Nada menos certo. Uma vez geridos pela famlia, todos os bens imobilirios terminavam por serem associados s teias da parentela. Por exemplo, no que diz respeito aos terrenos propriamente familiares, diramos que o parentesco define uma fronteira alm da qual certos membros do grupo domstico so excludos das decises de controle; este , manifestamente, o caso dos escravos e de todas as pessoas que, embora ligadas ao empreendimento econmico do grupo, no pertencem a ele por filiao ou aliana de casamento. Ora, esta mesma fronteira se far impor para a gesto dos espaos ocupados a ttulo funcional ou daqueles provenientes da comunidade. Contudo, se os limites entre os trs modos de acesso so, por vezes, pouco claros (seja para o historiador, seja para os prprios mesopotmios), as diferenas no se apagam completamente, e se os laos de parentesco so essenciais para o terceiro, so apenas secundrios para os dois primeiros. Ao lado da alienao, a herana aparece, justamente, como o domnio em que tais distines podem ser observadas de modo mais preciso. Como bem notou M. Liverani (1984: 3 9 s.), mesmo se, na base, as relaes de consanginidade so prprias esfera familiar enquanto que os critrios funcionais so caractersticos do setor palaciano, possvel haver influncias de um sistema sobre o outro. Por exemplo, a existncia de laos de parentesco pode alterar as regras de transmisso dos bens palacianos detidos pelos familiares, sobretudo no caso de uma remunerao atravs de alocao de campos, nos casos em que a sucesso do pai ao filho termina por se impor, pois as competncias tcnicas so freqentemente transmitidas no interior da famlia31. Uma segunda fonte de confuso vem do fato de que uma das caractersticas do sistema administrativo palaciano na Mesopotmia a apropriao pelos servidores dos meios da administrao32: os terrenos no escapam a esta lgica e podemos constatar a existncia de ocupaes tipicamente familiares em terras palacianas33. Uma outra preciso parece importante: quanto s diversas partes do territrio, do espao socialmente ocupado, os trs modos de acesso no coincidiam totalmente. Em Larsa, os campos destinados cultura de cereais faziam parte dos circuitos de apropriao palaciana e comunal e eram, nos dois casos, distribudos s famlias para a explorao individual, enquanto que os mecanismos de controle familiar concentravam-se mais nos espaos urbanos e nos pomares, por exemplo. Esta constatao tem implicaes importantes e ser objeto de considerao posteriormente. Por ltimo, cada um dos sistemas tinha seus prprios modos de formalizao, pois suas respectivas operaes (sobretudo as que visavam o reconhecimento social da ocupao) no passavam pelos mesmos canais. A apropriao familiar stricto sensu repousava sobre procedimentos contratuais institucionalizados. O contrato com seu formulrio bastante rgido, suas expresses fixadas em um sumrio que praticamente desaparecera como lngua falada, seus dispositivos de legitimao pelo testemunho e pela utilizao das impresses dos selos impese como o instrumento formal habitual das transaes imobilirias na famlia e entre as famlias. Por outro lado, a apropriao funcional baseava-se em mecanismos administrativos de controle
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do espao e, por decorrncia, acaba aflorando na documentao escrita do palcio, especialmente na correspondncia entre os funcionrios ou entre o rei e seus servidores. J a apropriao comunal apoiava-se em atos que, na maior parte do tempo, eram do domnio da oralidade, das relaes face a face entre os membros das comunidades locais. Do ponto de vista do historiador, esta forma de apropriao constitui um verdadeiro buraco negro, pois se manifesta apenas, e de modo muito dissimulado, na documentao contratual e, sobretudo, nas cartas oficiais. 2. O debate historiogrfico: economias antigas e vises modernas A problemtica da apropriao do espao encontra-se no cruzamento de dois importantes debates historiogrficos com grandes implicaes tericas e metodolgicas. O primeiro desses debates mais especfico aos estudos assiriolgicos e diz respeito aos modos de acesso aos bens fundirios na Mesopotmia. Trata-se, especialmente, de saber quais eram as instncias que controlavam a terra agrcola. Como a discusso sobre a situao nos incios do segundo milnio bastante ligada quela acerca da economia sumria no terceiro milnio, no ser intil fornecer alguns elementos gerais para entender a trajetria da historiografia econmica mesopotmica. Por muito tempo, as idias formuladas por A. Deimel (1931) e A. Schneider (1920) sobre a estrutura da sociedade sumria durante os trs primeiros quartos do III milnio a.C. dominaram o horizonte dos estudos. Elaboradas nos anos 1920 e 1930, as teorias do Tempelstadt e da Templewirtschaft formularam a hiptese segundo a qual o templo-Estado uma instituio central complexa, de natureza simultaneamente religiosa, poltica e econmica exercia um controle absoluto dos recursos produtivos naturais (em particular, a terra, mas tambm os recursos hdricos), da mo-de-obra (agrcola ou no), das atividades agrrias, artesanais e mercantis (locais, mas sobretudo o comrcio de longa distncia). Os templos exerceriam, igualmente, uma grande influncia poltica e religiosa sobre o conjunto da sociedade. Com algumas adaptaes, a mesma idia geral, agora sob o nome de Cidade-Templo, foi retomada por A. Falkenstein (1954)34. Por vezes, estes mesmos postulados de uma economia altamente centralizada foram aplicados para as explicaes referentes situao dos ltimos sculos do III milnio, ou seja, para a terceira dinastia de Ur (Ur-III) e, em menor grau, para o perodo sargnico, que a precedeu. A diferena residia no fato de que, nestes casos, os templos sumrios haviam cedido lugar a uma estrutura palaciana fortemente centralizada. Mas, tambm aqui, o argumento fundamental foi o considervel controle das terras pelo Estado, impondo um papel apenas residual, ou mesmo inexistente, a outras formas de acesso fundirio. Assim, para diversos autores, a formao socioeconmica de Ur-III seria uma recomposio, adaptada s novas circunstncias, dos princpios de monoplio centralizado da poca dos Templos-Estados sumrios anteriores. Este modelo explicativo exerceu uma grande influncia entre historiadores de tendncias diversas e mesmo francamente opostas35. A partir dos finais doa anos 1950, entretanto, esta viso foi vigorosamente contestada. As novas abordagens seguiram, basicamente, duas vias, mais concorrentes que complementares. Uma primeira contestao da teoria do templo-Estado surgiu nos trabalhos da chamada escola de Leningrado, reunida em torno de I. M. Diakonoff. Os historiadores soviticos questionaram o monoplio das terras pelas organizaes complexas (templos e palcios), ao mesmo tempo que sugeriam a existncia de um setor comunal (ou privadocomunitrio) atuando no controle dos recursos fundirios e na organizao da produo agrcola36. Por outro lado, um segundo questionamento, representado em um primeiro momento pelos

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estudos inovadores de I. J. Gelb (1969), enfatizava as formas de apropriao privada do solo durante o III milnio37. No se trata, aqui, de detalhar o debate sobre a economia sumria38, mas de insistir sobre o fato de que os estudos acerca da economia babilnica, nos incios do II milnio foram, de certo modo, influenciados por esta reao s teorias de natureza estatizantes. Em outros termos, a historiografia econmica do perodo babilnico antigo nasceu sob o signo do predomnio da economia privada. Se W. F. Leemans no foi o primeiro a valorizar esta perspectiva privatista, foi, certamente, um dos seus representantes mais enfticos. Em seu estudo sobre os mercadores babilnicos, datado de 1950, ele j anunciava uma abordagem que iria orientar todos os seus futuros trabalhos. Em particular, o controle das terras pelos mercadores aparecia, na viso de Leemans, como um elemento essencial da ascenso de uma camada de agentes comerciais privados nos incios do II milnio, quando o sistema econmico centralizado que vigorava durante a terceira dinastia de Ur foi substitudo por uma nova configurao, na qual o papel econmico dos palcios, nos novos reinos semitas que se formam ento, enfraquecido em benefcio do empreendimento individual. Individual, e no familiar ou domstico. Leemans, alis, procurou negar vivamente qualquer papel da famlia na via econmica babilnica (Leemans, 1986) e combateu, com o mesmo vigor, a existncia das comunidades rurais (Leemans, 1983). Os estudos de arquivos privados, desenvolvidos, sobretudo, a partir dos anos 1980, foram, em grande parte, tributrios desta orientao terica. Se os arquivos eram manifestamente familiares, os fenmenos econmicos que eles revelavam foram considerados como a manifestao da ao de agentes econmicos individuais. Uma das tarefas para a compreenso da apropriao do espao ser, justamente, a de inserir estes atos aparentemente individuais no contexto mais amplo das estratgias materiais do grupo domstico. O segundo debate diz respeito s maneiras de conceituar a natureza da economia mesopotmica e de definir os instrumentos tericos e metodolgicos mais adequados para abord-la. Correndo o risco de ser excessivamente esquemtico, pois h nuances considerveis em cada partido implicado no debate, a primeira posio rene os autores que, grosso modo, consideram que as economias antigas partilham da mesma natureza das economias modernas e que seu funcionamento , fundamentalmente, semelhante, fundado sobre os mesmos mecanismos de um mercado constitudo pela oferta e demanda. Assim, para nos limitarmos ao que nos interessa aqui, a circulao imobiliria nas economias pr-capitalistas seguiria os mesmos princpios que governam o mercado de imveis em uma economia de mercado, as diferenas sendo mais uma questo de grau. Conseqentemente, os instrumentos analticos para compreender estes fenmenos seriam os mesmos previstos pela teoria econmica clssica. Em oposio, encontram-se aqueles que reconhecem uma especificidade histrica nas formaes econmicas da Antigidade e a impossibilidade de operar a sua anlise com as ferramentas e os conceitos tradicionais. Nesta perspectiva, a economia de mercado aparece como o resultado de um processo histrico recente, alheio s sociedades antigas e que no concerne nem mesmo a todas as sociedades atuais. Nestes casos, a chave da articulao dos fenmenos econmicos no seria o mecanismo de oferta e demanda, mas, segundo o caso, fatores ligados ao universo do parentesco, relaes de poder etc. Em outros termos, a circulao dos bens se d no interior de uma rede de relaes sociais ou polticas e o universo do econmico no provido de uma autonomia, nem prtica nem conceitual. A economia seria, assim, incrustada no social, ao contrrio do que ocorre sob regime capitalista, em que ela imporia sua lgica s demais dimenses da vida.

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Embora essa polarizao terica j seja encontrada no domnio das cincias humanas desde os finais do sculo XIX, a partir de meados do sculo XX que a obra de Karl Polanyi sistematizou de modo mais decisivo as formulaes da segunda tendncia e terminou por ser a referncia incontornvel do debate39. A oposio entre modernistas e primitivistas ou, ainda, entre formalistas e substantivistas operou, com efeito, uma secesso em diversos domnios de estudo relativos s economias no-capitalistas ou pr-modernas. Foi, sem dvida, na antropologia que o debate atingiu seu nvel mais elevado de complexidade e ramificao. Trata-se, sobretudo, de uma divergncia profunda a propsito de mtodos e abordagens das economias no-capitalistas, na qual se confrontam formalistas, como M. Herskovits (1952), E. E. LeClair (1962), R. Burling (1962), R. Firth (1965 e 1967), e S. Cook (1966, 1969 e 1973), e, de outro lado, Polanyi e seus discpulos, em particular G. Dalton (1961 e 1969) e P. Bohannan (1962, com G. Dalton e 1968, com L. Bohannan), alm de D. Kaplan (1968). Mas houve, igualmente, uma incidncia sobre o debate acerca da chamada economia primitiva, no qual as proposies substantivistas de M. Sahlins um discpulo de Polanyi, mas fortemente influenciado pelo marxismo (Sahlins, 1960 e 1972) foram severamente atacadas, por exemplo, por autores como S. Cook (1974 e R. G. Cooper, 1978). Na sociologia econmica, mais voltada para as sociedades contemporneas, a aplicao das teorias polanyianas revela um desenvolvimento interessante e um tanto inesperado: a idia inicial de Polanyi foi construir conceitos gerais para explicar a alocao dos bens nas sociedades em que um mercado capitalista no existia e foi este impulso que gerou a formulao das noes de reciprocidade ou redistribuio, por exemplo, como mecanismos de integrao diferentes da oferta e demanda em mercado aberto. Ora, o que se v recentemente na sociologia uma espcie de inverso, mas sempre em nome dos postulados polanyianos, que visa identificar os elementos no mercantis no interior das prprias economias capitalistas contemporneas. O resultado considerar estas ltimas como sendo, tambm elas, incrustadas nas relaes sociais, exatamente como Polanyi considerava as economias no-capitalistas. A clivagem polanyiana entre dois tipos de economias, com ou sem mercado, v-se superada ou, ao menos, enfraquecida (sobre as conseqncias tericas desta situao, ver J. I. Prattis, 1987: 18 s.). Assim, por exemplo, a noo de reciprocidade utilizada para demonstrar a que ponto a compreenso das relaes econmicas modernas depende da considerao das redes de parentesco e solidariedade, das prestaes desinteressadas, das relaes interpessoais etc. Na sociologia econmica americana, esta tendncia bem representada pelos trabalhos originais de Mark Granovetter (2000). Na Frana, o grupo reunido em torno de Alain Caill e da Revista MAUSS segue um caminho semelhante, procurando desvendar os princpios da construo social do mercado moderno (A. Caill, 1989, 1994 e 2000; J. T. Godbout & A. Caill, 1992; ver, ainda, os artigos reunidos por A. Jacob e H. Vrin, 1995). A influncia de Polanyi igualmente marcante nas discusses do grupo interdisciplinar do Centre Walras de Lyon, do qual alguns autores procuram avaliar de modo crtico o potencial das teorias substantivistas para o estudo das economias do antigo Oriente-Prximo e Egito (J. Maucourant, 1996, 2000). Entre os esforos para descortinar as estruturas sociais da economia, um livro recente de Pierre Bourdieu merece meno, pois o autor analisa, justamente, como os elementos sociais e polticos constroem o mercado imobilirio em que os grupos domsticos constituem seu patrimnio e demonstra que este mercado no decorre de modo automtico dos mecanismos de oferta e demanda, mas, ao contrrio, uma instituio estabelecida culturalmente, mesmo sob regime capitalista (P. Bourdieu, 2000a).

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No domnio dos estudos clssicos, a disputa remonta controvrsia que ops a abordagem modernista de Eduard Meyer s anlises primitivistas de Karl Bcher, em fins do sculo XIX. Mais tarde, durante os anos 1920 e 1930, coube a Johannes Hasebroeck, largamente influenciado por Max Weber, o mrito de ter colocado a economia grega, particularmente as transaes comerciais, no quadro das instituies polticas da polis e recusar as idias modernistas de Meyer e seus discpulos (ver M. Austin e P. Vidal-Naquet, 1972; R. Descat, 1994). Foram, todavia, os trabalhos de M. I. Finley que estabeleceram um novo paradigma nos estudos da economia grega e romana, a partir de uma perspectiva tributria das propostas de Polanyi, mas tambm de Weber (Finley, 1973)40. Se Finley influenciou toda uma gerao de historiadores da economia antiga (para a histria romana, ver os trabalhos de P. Garnsey, R. Saller e K. Hopkins), a nova ortodoxia estabelecida por ele no deixou de suscitar vrias crticas, mais ou menos severas, como as contidas nos estudos de A. Bresson (2000) sobre o papel da atividade econmica comercial e do mercado na Grcia ou de J. Andreau (1999) sobre a economia financeira romana. Em egiptologia, foi sobretudo J. J. Janssen que introduziu uma perspectiva francamente substantivista com seus estudos sobre os preos no perodo ramssida (J. J. Janssen, 1975a; em um artigo publicado no mesmo ano, o autor sintetizava vrios aspectos de sua viso: 1975b) ou, ainda, sobre os aspectos no-econmicos da vida material egpcia, em particular nas trocas de dons (Janssen, 1982). A influncia de Polanyi igualmente notvel em R. Mller-Wollermann (1985). Uma crtica severa contra Janssen, acompanhada de uma defesa da metodologia formalista, apareceu no livro de Barry Kemp (1989; para uma avaliao do debate, ver E. Bleiberg, 1995: 1373 ss. e 1996: 3 ss.). interessante notar que no domnio dos estudos da economia egpcia antiga que uma nova frente do debate est se abrindo: os trabalhos de David Warburton, recusando as teorias polanyianas, no procuram simplesmente retornar aos princpios da economia clssica, e sim visam uma aplicao do neoclassicismo de Keynes vida material egpcia. No centro dos argumentos de Warburton encontra-se a idia de que o caso egpcio pode ser considerado como o de uma economia de mercado pr-capitalista, assim como a recusa de uma caracterizao redistributivista, como defendem os primitivistas (Warburton, 1991, 1995, 1997 e 1998)41. Em assiriologia, mesmo se possvel constatar um debate terico por vezes acalorado, como o que ope M. Silver e J. Renger, por exemplo, preciso reconhecer que a maior parte dos estudiosos da economia mesopotmica permaneceu margem de suas implicaes42. A introduo de uma perspectiva substantivista coube sobretudo a J. Renger, cuja interpretao da economia mesopotmica foi orientada, fundamentalmente, pelas formulaes de Karl Polanyi (os trabalhos mais tericos so Renger, 1988b; 1989a; 1990; 1994 e 2004). Renger conferiu grande importncia questo do controle das terras, minimizando o papel da apropriao privada dos campos agrcolas, principalmente no sul, e negando a existncia de um mercado de terras na Mesopotmia (Renger, 1988a e 1995). sintomtico que a principal resposta a Renger tenha vindo de fora dos crculos de assirilogos, na pluma do economista ultraformalista Morris Silver (1983; 1985b e 1985a, retomado em 1995b, e 2004). Este debate suscitou algumas reaes, algumas favorveis a Polanyi e Renger (A. Mayhew, W. C. Neale & D. W. Tandy, 1985; J. F. Robertson, 1993; C. Zaccagnini, 1994b; M. Van De Mieroop, 1999a; J. D. Schloen, 2001: 76 ss.), outras que lhes so hostis, sem se alinharem necessariamente a Silver (J. Gledhill & M. Larsen, 1982, P. Vargyas, 1987 e D. C. Snell, 1991 e 1997)43. Em 2004, um colquio internaci-

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onal reuniu-se, em Nanterre, para avaliar a atualidade da obra de Polanyi, inclusive para a histria econmica mesopotmica, e as intervenes mostram a perseverana das divergncias entre os especialistas 44. A problemtica do controle do espao um dos setores mais sensveis s tomadas de posio no interior desta discusso. Parece-me mesmo impossvel definir a natureza e as caractersticas dos diversos tipos de apropriao domstica, particularmente da domstica, sem conferir uma ateno ao modo como se caracteriza genericamente a vida econmica e social. Eu no creio, no entanto, que seja necessria uma longa exposio antecipada de minhas premissas tericas, quer porque elas ficaro devidamente explcitas ao longo de todo o volume, quer porque, neste momento, ela correria o risco de ser encarada como um conjunto independente de premissas, sem conexo com os eventos concretos e com a documentao. Eu direi, simplesmente, que se as aes econmicas dos mesopotmios so freqentemente tomadas como racionais, isto resulta de uma assimilao com nossas prprias categorias da racionalidade da ao econmica. Isto nos d a confortvel impresso de que nada de estranho existe na realidade observada, que nada escapa ao olhar do historiador, que tudo pode ser explicado por suas noes. Entretanto, esta continuidade entre passado e presente nem sempre confirmada por uma anlise mais aprofundada dos comportamentos dos antigos. Ao longo de minha pesquisa, vrios fenmenos apresentaram-se de um modo que, logo em um primeiro olhar, poderia ser considerado totalmente compreensvel. No entanto, eu resisti tentao de explic-los a partir deste primeiro impulso e busquei propor novas interpretaes. Do ponto de vista historiogrfico, minha inteno foi avaliar o potencial e os limites de certos postulados mais amplos a partir de estudos de casos bem circunstanciados, cujas fontes pudessem ser rigorosamente controladas. A cidade de Larsa, com sua considervel documentao sobre as transferncias de terrenos, teve um papel importante no desenvolvimento de uma viso que eu chamaria de privatista sobre a economia mesopotmica nos incios do segundo milnio a.C. ( o caso da obra de Leemans45), assim como nas reaes a esta interpretao (por exemplo, J. Renger)46. Pareceu-me til, ento, retomar um exame deste caso prestigioso para dar-lhe uma nova leitura. Esta seria, a meu ver, a melhor maneira de fazer uma histria econmica teoricamente orientada e que no seja confundida com uma simples enunciao de princpios preconcebidos, desatrelados da realidade histrica que eles tm a pretenso de explicar. Por outro lado, esta abordagem permite conferir um alcance pouco usual aos estudos de caso, que podem, assim, influenciar decisivamente a construo de uma viso consistente da vida econmica mesopotmica. O debate concentrou-se excessivamente na identificao dos agentes do controle do espao (ou, mais especificamente, da terra), o que explica a importncia em torno da existncia, ou no, da propriedade privada. Por vezes, a disputa limitou-se a uma tomada de posio, favorvel ou contrria, acerca de um postulado bastante abstrato. A meu ver, o verdadeiro problema situa-se alhures. Est fora de questo, no atual estgio de nosso conhecimento, negar que, no perodo babilnico antigo, os grupos domsticos exercessem um papel no controle do espao, mas isto no resolve a questo, longe disso. preciso analisar as diversas prticas de apropriao e as relaes que elas entretm com os demais domnios da vida social; preciso estabelecer os modos de circulao dos terrenos e, caso haja um mercado, preciso definir seus mecanismos; preciso distinguir os elementos da ao apropriativa dos agentes econmicos, seus comportamentos de aquisio e disposio, procurando avaliar at que ponto eles indicam modelos, tendncias, a que ponto eles so representativos de um verdadeiro sistema domstico de apropriao do espao.

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3. Questes metodolgicas: fazer histria a partir dos arquivos familiares No domnio da assiriologia, as monografias sobre arquivos familiares impuseram-se apenas recentemente. Elas so o resultado de uma lenta mudana de perspectivas da histria econmica e social mesopotmica, do reconhecimento de um objeto de estudo e do desenvolvimento de uma metodologia que permitia explor-lo. Da evoluo desta abordagem, eu gostaria de evocar alguns elementos que tm uma repercusso sobre o estudo que proposto aqui e que permitem pr em perspectiva minha prpria linha de anlise. Quando, em 1952, G. Gossens apresentou sua Introduction larchivconomie de lAsie Antrieure, ele pretendeu chamar a ateno dos especialistas sobre o potencial dos arquivos para o estudo da histria do Oriente-Prximo e, em particular, da Mesopotmia. A noo de arquivos opunha-se, aqui, quela de biblioteca: em decorrncia, os documentos ordinrios, relativos s prticas cotidianas, ganhavam destaque ao lado dos grandes textos literrios, dos anais palacianos e das narrativas mitolgicas conservados nas bibliotecas dos reis. A tipologia de Gossens destacava os textos produzidos pelas chancelarias (especialmente a correspondncia) e a contabilidade das organizaes complexas, mas mal falava dos arquivos familiares, mencionados apenas em uma nota (Gossens, 1952: 99, n. 6). J em 1999, ao contrrio, em uma obra de M. Van De Mieroop intitulada Cuneiform Texts and the Writing of History, os arquivos familiares ocupavam um espao equivalente ao conferido a outros tipos de documentos, ombreando com as cartas oficiais, os documentos administrativos, os textos literrios etc. (Van De Mieroop, 1999b: 17 ss.). Entre esses dois momentos, a relao dos historiadores com suas fontes transformou-se consideravelmente. No se trata simplesmente da assimilao de mais um tipo de documento, mas de uma nova classificao do corpus documental, de uma nova maneira de integr-lo operao historiogrfica. Com efeito, os documentos epigrficos encontrados no contexto arqueolgico domstico e cujo contedo remetia aos negcios ditos privados estiveram presentes desde muito cedo no desenvolvimento da disciplina, mesmo se todo o prestgio cabia aos grandes textos literrios ou s inscries reais, uma conseqncia da perspectiva historiogrfica dominante no momento do nascimento da assiriologia no sculo XIX. No entanto, os documentos familiares foram, habitualmente, tratados individualmente, isolados do contexto arquivstico que lhes conferia um sentido. O exemplo precoce representado pelo estudo de J.-E. Gautier (1908) sobre uma famlia de Dilbat uma exceo que confirma a regra. verdade que, desde as primeiras publicaes e estudos, algumas conexes j eram notadas, o que permitia delimitar as famlias, mas, na maior parte do tempo, os conjuntos permaneciam limitados e sem maior repercusso sobre a anlise que se seguia. A partir do fim dos anos 1970, a multiplicao dos estudos sobre os arquivos familiares implicou um tratamento renovado dos documentos, agora reagrupados em arquivos cujo critrio de vinculao era, sobretudo, o lao de parentesco entre os personagens individuais. Este procedimento contribuiu para inserir o documento em uma unidade de anlise mais ampla e coerente, e tambm visualizar de modo mais aprofundado as relaes entre os diversos atores, situando-os em esferas de atividades econmicas, sociais, religiosas etc. Podia-se, assim, superar uma enquete centrada nos indivduos e nos eventos singulares, lanando os fundamentos para uma abordagem centrada sobre os grupos e as cadeias de aes, em uma maior profundidade temporal (cuja cronologia podia ser, alis, controlada de modo mais eficaz).

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Neste esforo, a prosopografia impunha-se como uma ferramenta privilegiada. Identificando e coletando todas as informaes disponveis sobre os personagens da documentao filiao e outras informaes sobre o parentesco, dados relativos s ocupaes profissionais, ttulos religiosos, natureza e freqncia das relaes com os demais personagens etc. tratava-se, primeiramente, de estabelecer a rvore genealgica das famlias, mas tambm de identificar os grupos sociais no interior de uma cidade (o clero, os mercadores, os artesos etc.). Deste modo, os dados provenientes da anlise prosopogrfica constitua a base dos estudos dos arquivos familiares47. De maneira complementar, mas tambm importante, a prosopografia foi essencial no estabelecimento da origem dos documentos, especialmente nos casos em que a provenincia no estava certificada por escavaes oficiais ou quando os lotes tinham sido dispersos ou misturados entre a sada do stio e a entrada no museu48. Por outro lado, a prosopografia foi um instrumento eficaz para compreender o funcionamento dos arquivos familiares na vida social mesopotmica, desde os mecanismos de sua constituio e de sua transmisso entre as geraes at os procedimentos de arquivamento, reciclagem, triagem e descarte49. Se observarmos a trajetria dos estudos sobre Larsa, por exemplo, observaremos que eles foram precocemente influenciados por uma abordagem prosopogrfica que muito contribuiu para apur-los. Com efeito, o quadro bastante genrico da histria da cidade dado por Ch. -F. Jean (1931) fundou-se em uma considerao majoritariamente compartimentada dos documentos; mas, vinte anos depois, os estudos de Lubor Matoush (1949 e 1950) sobre as partilhas e as vendas fundirias basearam-se decisivamente em uma considerao da unidade dos arquivos da famlia Sanum e da estrutura de relaes de parentesco entre seus membros50. Do mesmo modo, foi a anlise prosopogrfica que habilitou W. F. Leemans (1950) a reconhecer as mesmas realidades familiares reveladas por Matoush e a identificar a complexidade da corporao de mercadores da cidade e a vasta rede de relaes pessoais e operaes econmicas que estes entretinham. A abordagem arquivstica, no entanto, tambm apresenta limitaes. A principal delas derivada de uma espcie de confuso metodolgica entre a base heurstica da anlise (os arquivos como conjunto de documentos) e o verdadeiro objeto de estudo (a famlia como conjunto de relaes). Na verdade, os estudos tenderam excessivamente a dar prioridade s relaes entre as fontes em detrimento das relaes sociais. Por outro lado, o arquivo impunha limites, por assim dizer, naturais ao observador: as atividades no interior da famlia e, sobretudo, o ponto de vista de seus membros sobre as prprias atividades apareceram como o enquadramento lgico da pesquisa. Evidentemente, em grande parte, esta perspectiva a partir do interior tendia a impor-se de modo quase inelutvel, pois os prprios arquivos eram o resultado da atividade dos grupos sob observao: se o historiador pode sempre realizar agrupamentos artificiais e pstumos, em funo das necessidades da pesquisa, no menos verdadeiro que os arquivos so o resultado dos hbitos de arquivamento da famlia, refletindo, assim, sua viso sobre os fenmenos em questo. Em todo caso, este problema ou, sobretudo, o desconhecimento de suas implicaes por parte do especialista contribuiu para debilitar o potencial das monografias familiares para o estudo da histria social e econmica da Mesopotmia. A abordagem prosopogrfica e a anlise a partir dos arquivos continuam sendo, todavia, a base indispensvel e mais eficaz das monografias familiares, no havendo razes para deixar de aproveitar seu potencial51. possvel, porm, complet-la atravs de uma abordagem analtica, visando principalmente um alargamento da perspectiva, ao mesmo tempo documental e histri-

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co: os arquivos de uma famlia devem ser considerados em conexo com o conjunto dos arquivos familiares contemporneos, mas tambm com os documentos dispersos de igual natureza e que no formam arquivos. Este procedimento o nico capaz de assegurar a representatividade histrica dos fatores identificados pelo historiador a partir do estudo de uma famlia em particular. Em outros termos, ele permite saber se as prticas espaciais de um grupo so um bom ndice do sistema de apropriao em geral ou, ainda, se as relaes de parentesco verificadas so tpicas ou, ao contrrio, uma idiossincrasia face s regras da sociedade. Em uma outra etapa, ser necessrio considerar tambm os arquivos palacianos e dos templos a fim de estabelecer os modos de insero da famlia no ambiente social mais vasto da cidade e do reino, as relaes com as estruturas de poder, as interaes econmicas com o palcio e os templos etc. Estes complementos abordagem prosopogrfica permitiro, ento, superar um tratamento episdico das realidades estudadas e construir uma histria econmica e social fundada nas monografias familiares. Ns conhecemos bem os problemas com que se defrontam todas as tentativas de uma histria serial da Antigidade ou das sociedades ditas pr-estatsticas. Um tratamento serial dos dados , porm, o nico modo de realizar as proposies sugeridas acima. Os especialistas insistem demasiadamente sobre o carter lacunar das fontes mesopotmicas. Sem dvida, trata-se de uma carncia real52. Entretanto, sem querer menosprezar os limites impostos pela documentao limites de qualidade e tambm de quantidade , preciso lembrar que a situao inversa, de superabundncia das fontes, impe dificuldades srias, pois a considerao da totalidade do corpus documental igualmente impossvel (pense-se, por exemplo, em uma histria fiscal ou financeira dos estados modernos!). Neste quadro, creio que, em um tratamento serial, o mais importante definir de modo rigoroso as questes a serem respondidas e proceder seleo dos dados em funo das problemticas, levando em considerao, obviamente, a natureza das fontes. preciso, em todo caso, reconhecer os limites do mtodo: uma srie imperfeita no deve substituir, sob o disfarce de uma exatido matemtica, as lacunas do tratamento clssico, ou seja, no serial. A quantificao no , em si mesma, garantia de maior potencial explicativo. Assim, parece-me que o mais recomendvel no caso mesopotmico seria adotar, com todas as precaues, procedimentos estatsticos bastante moderados, em particular mtodos descritivos, que visam organizar as informaes em conjuntos coerentes e torn-los mesurveis a fim de identificar as caractersticas tendenciais de certos fenmenos. Ao mesmo tempo, conviria evitar a aplicao de clculos de probabilidade com o intuito de preencher as lacunas de informaes ou fazer projees53. Em grande parte, a abordagem serial implica uma transformao na prpria noo de documento: este deixa de ser exclusivamente o texto (contratos, cartas, processos etc.) e seu contedo, para ser, sobretudo, a srie de informaes. As sries so, claro, formadas a partir dos contedos documentais, mas so organizadas em funo de critrios estabelecidos pelas questes colocadas, ou seja, pelo procedimento analtico. Os raciocnios fundados sobre sries quantificveis tm, ao menos, uma tripla vantagem: as sries conferem aos argumentos e s concluses uma representatividade maior do que aquela derivada de um tratamento individual dos documentos; em segundo lugar, elas permitem cruzar dados de modo mais gil e amplo do que uma comparao caso a caso; por fim, oferecem a possibilidade de visualizar certos aspectos dos fenmenos sociais que seriam dificilmente perceptveis de outro modo ( o caso, por exemplo, das variaes dos comportamentos dos agentes econmicos em uma perspectiva diacrnica).

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As abordagens arquivstica e serial so de natureza muito diferente, tm fundamentos distintos e so mais ou menos adaptadas segundo as situaes documentais e os problemas histricos a serem enfrentados. Nem por isso so excludentes; ao contrrio, so prticas complementares de pesquisa. Por exemplo, a primeira ser mais til para o tratamento de questes relativas transmisso intergeracional do patrimnio familiar, enquanto que a segunda mostrar seu maior potencial para a explicao das transaes imobilirias. 4. O stio de Tell Senkereh e sua documentao: um breve histrico O stio de Tell Senkereh, a antiga cidade-reino de Larsa, encontra-se a 270 quilmetros ao sul de Bagd, na regio das plancies meridionais, onde vizinho de Tell Muqqayar (a antiga cidade de Ur, 43 km a sudeste) e de Warka (antiga Uruk, apenas 19 km a oeste). A identificao e as primeiras sondagens arqueolgicas modernas em Senkereh foram realizadas em 1854 pelo escocs William Keneth Loftus, que se encontrava na regio para uma misso de explorao em Uruk, enviado pelo Assyrian Excavation Fund. Este primeiro olhar sobre Larsa foi descrito trs anos mais tarde, em seu Travels and Researches in Chaldaea and Susiana54. Em 1903, o alemo Walter Andrae, escavador de Assur, procedeu igualmente a algumas sondagens sobre o tell e fez os primeiros planos do stio, utilizados mais tarde por Andr Parrot, o primeiro escavador oficial de Larsa. Essas primeiras investigaes permitiram identificar alguns dos maiores edifcios da cidade: o Ebabbar, templo dedicado divindade principal da cidade, Shamash, e a ziggurat. Poucos textos foram encontrados nestas duas primeiras exploraes do stio. Em Tell Senkereh, como em outras escavaes do incio do sculo XX, predominava o interesse pelos grandes monumentos e pelas estruturas palacianas e religiosas, de modo que os quarteires de habitao s foram objeto de estudo nas campanhas mais recentes55. Mais tarde, uma permisso de escavao foi concedida pelo governo iraquiano ao Museu do Louvre e os trabalhos tiveram incio em 1933, sob a direo de Andr Parrot, que, ao mesmo tempo, escavava Telloh, a antiga Girsu. Esta misso, no entanto, no teve seqncia: no mesmo ano, a descoberta de Mari (Tell Hariri), situada 600 km ao norte, atraiu a ateno de Parrot. Os acordos propostos pelo governo da Sria (o stio de Mari encontra-se atualmente a poucos quilmetros da fronteira, em territrio srio), mais generosos quanto partilha dos objetos encontrados, coincidiram, justamente, com o momento em que, aps a independncia face ao domnio ingls, o Iraque institua leis mais restritivas e passava a controlar suas antiguidades nacionais: assim, os antigos acordos que previam uma diviso dos achados entre os escavadores estrangeiros e o pas chegavam ao fim, e todas as peas deveriam ser doravante encaminhadas aos museus iraquianos. Para o Louvre, que financiava as misses de Parrot, esta era uma situao bastante desestimulante. Tais fatores foram decisivos para o abandono de Larsa e a transferncia para Mari, que se tornou, por dcadas, o principal stio mesopotmico para a arqueologia francesa. Foi somente em 1967 que as escavaes voltaram a Larsa, novamente sob a direo do incansvel Parrot. A primeira misso de Parrot tambm dedicou muita ateno s grandes estruturas arquitetnicas do stio, em particular o palcio de Nr-Adad. No entanto, novidade importante, uma quantidade considervel de residncias foi reparada e um grande esforo foi consagrado aos quarteires de habitao da poca babilnica antiga, bem como queles mais tardios, neobabilnicos e selucidas. Em seus escritos posteriores, Parrot conferiu uma ateno especial s tumbas situadas sob estas habitaes56.

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As escavaes de Parrot, em particular das casas, permitiram, desde muito cedo, constatar um fenmeno que foi determinante para o estado da documentao epigrfica de Larsa e que condicionou amplamente os futuros estudos sobre a cidade: o tell havia sido duramente pilhado por escavadores clandestinos. Foram, justamente, estas pilhagens ilegais, retomadas em 1931, que levaram o Departamento de Antiguidades do Iraque a dar autorizao de escavao ao Louvre. O problema era, no entanto, mais antigo, datando do incio do sculo XX: durante suas primeiras dcadas, milhares de tabletes de Larsa chegaram aos antiqurios de Bagd, a partir de onde foram dispersos pelo mundo. Foi nesta poca que as principais colees de tabletes de Larsa foram formadas pelos museus europeus e norte-americanos, atravs de aquisies no mercado de antigidades. As pilhagens foram to extensas que todas as misses francesas desde 1967 acrescentaram muito pouco documentao epigrfica57. Quando as casas do quarteiro residencial nordeste foram escavadas durante as duas ltimas misses, em 1987 e 1989, foram encontrados apenas edifcios esvaziados de seus arquivos, contendo apenas tabletes isolados58. 4.1. Os contratos de Larsa: origem e estado atual A maior parte dos textos de Larsa conhecidos atualmente , portanto, originria de escavaes clandestinas do incio do sculo XX, sendo, assim, completamente desprovida de contexto arqueolgico. Por vezes, os arquivos encontrados em uma residncia foram desmembrados para venda e encontram-se em museus diferentes. Assim, o reagrupamento dos arquivos familiares depende prioritariamente de anlises prosopogrficas do contedo dos textos. Quanto sua tipologia, os textos de Larsa so bastante diversificados, mas dois grupos predominantes devem ser mencionados: Cartas: um primeiro grupo constitudo por cartas reais e entre os funcionrios da administrao palaciana. Muitas delas datam da poca de independncia do reino de Larsa (ver abaixo). No entanto, o lote mais importante vem da poca da dominao babilnica da cidade. A distncia entre as duas cidades, cerca de 200 km, implicava uma constante comunicao por escrito entre a administrao central e seus representantes locais. Muitas das vezes, era o prprio rei que se dirigia a seus servidores. assim que Larsa nos forneceu a quase totalidade do que conhecemos da prestigiosa correspondncia de Hammu-rabi59. O fato ainda mais relevante porque a movimentao do lenol fretico sob o stio de Babilnia impediu, at aqui, qualquer explorao sistemtica dos estratos de poca babilnica antiga; assim, nada dos arquivos palacianos da capital conhecido, a no ser o que foi encontrado na periferia, como as cartas enviadas a Larsa ou Mari60. Um segundo grupo formado por cartas privadas. No entanto, como estas, ao contrrio dos contratos, no trazem frmula de datao ou dados cadastrais, bastante difcil identificar sua origem apenas a partir dos nomes presentes, sobretudo quando se trata de tabletes escavados clandestinamente, como o caso de Larsa61. Contratos: trata-se da documentao por excelncia encontrada nas residncias, formando o grosso dos arquivos familiares. Constitui-se de registros de compra de imveis, emprstimos, partilhas de herana, dotes, casamentos, documentos comerciais de toda sorte etc. Como os tabletes publicados aqui pertencem a esta ltima categoria, uma descrio mais detalhada do estado da documentao me parece til. Nas colees modernas, trs grandes conjuntos de contratos de Larsa da poca babilnica antiga foram formados.
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A Yale Babylonian Collection possui o lote mais importante. Mais de 300 cpias cuneiformes foram publicadas nos volumes 5 (de 1919) e 8 (de 1941) da Yale Oriental Series (YOS), por E. M. Grice (1919) e D. E. Faust (1941), respectivamente62. No entanto, uma quantidade considervel de contratos de Yale aguarda ainda uma publicao63. Os tabletes da coleo de Berlim foram editados em 1914, no volume 13 de Voderasiatische Schriftdenkmler der staatlichen Museen zu Berlin (VS), em cpias de H. H. Figulla (1914)64. Os 250 contratos do Museu do Louvre foram copiados por Ch.-F. Jean na srie Textes Cuniformes du Louvre (TCL) e publicados em 1926. Com algumas poucas excees, a primeira srie (volume TCL,10 = Jean, 1926a) rene os documentos da poca da dinastia de Larsa e a segunda srie (volume TCL,11 = Jean, 1926b), aqueles posteriores conquista da cidade pelo rei babilnico Hammu-rabi. parte esses trs grandes conjuntos, deve-se registrar a existncia de vrios contratos de Larsa dispersos em colees menores, mas tambm importantes. Os 68 tabletes da coleo Liagre Bhl, de Leiden, foram copiados por W. F. Leemans (1954a) no primeiro volume da srie Tabulae Cuneiformes a F. M. Th. de Liagre Bhl Collectae (TLB). O prprio Leemans (1954b) apresentou uma primeira transcrio e traduo destes documentos. Entre os 146 tabletes paleobabilnicos conservados no Museu de Leningrado (hoje, novamente So Petersburgo), vrios so provenientes de Senkereh; o conjunto foi publicado por A. P. Riftin (1937) em Starovavilonskie Juridiceskie i Administrativnie Dokumenti v Sobranijach SSSR. Mais recentemente, H. Limet (1989) publicou 14 tabletes da Universidade de Lige que faziam parte dos arquivos de um s comprador de terrenos de Larsa. Alguns outros contratos encontram-se dispersos pelo mundo: h textos isolados no Ashmolean Museum, no Horn Archaeology Museum da Universidade de Andrews, na cole Pratique des Hautes Etudes, em Paris, e na Totten Collection. Paradoxalmente, o percurso desses textos, desde as escavaes clandestinas at sua entrada nos museus, no foi completamente aleatrio e, de modo freqentemente involuntrio, alguns lotes coerentes foram preservados no processo de negociao no mercado de antigidades. Assim, nota-se que todos os documentos pertencentes famlia Sanum acabaram por integrar a coleo do Museu do Louvre. Do mesmo modo, houve, por exemplo, um reagrupamento quase completo dos arquivos do importante personagem Balmunamhe no Museu da Universidade de Yale65; os contratos de Ubar-Shamash concentram-se em Berlim, enquanto que os arquivos de Amurrum-shemi encontram-se em Lige e os de Warad-Zugal e Ballum, em Leiden. Ns podemos supor que os documentos encontrados pelos escavadores clandestinos em uma residncia antiga eram vendidos em lotes a um mercador de antigidades de Bagd, que, por sua vez, tendia a repass-los, tambm em blocos, aos compradores dos museus. A concentrao dos contratos nos arquivos de algumas poucas famlias facilitou a tarefa de atribuio dos tabletes ao stio de Larsa. A princpio, apenas os mercadores de antigidades garantiam as informaes sobre sua provenincia. As primeiras leituras, no entanto, mostraram que uma grande parte dos contratos pertenceu a certos indivduos e famlias e, uma vez que os dados confirmaram a ligao destes com Larsa, a origem de arquivos inteiros pde ser atribuda com segurana ao stio de Senkereh66. Dentre os grupos familiares que aparecem representados nos contratos, o formado pelos descendentes de Sanum um dos mais importantes, quer por sua representatividade documental, quer por seu alcance econmico. Os arquivos cobrem um perodo de mais de 90 anos: os primeiros documentos so datados dos anos 2 e 3 do rei Sn-iqsham (pouco depois de 1840

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a.C.), de Larsa, e os ltimos datam do ano 7 de Samsu-iluna, da Babilnia (1743). A atividade do grupo atravessou, portanto, os dois perodos da histria poltica da cidade durante o perodo babilnico antigo: a fase de independncia, em que os dois principais soberanos foram WaradSn (1835-1823) e seu irmo Rm-Sn (1822-1763), e a fase de domnio babilnico, inaugurada por Hammu-rabi (1792-1750), que conquistou a cidade em seu 31 ano de reinado, e continuada por seu filho Samsu-iluna (1749-1712), que termina por perder o controle da cidade e, com ela, do sul mesopotmico por volta de seu 11 ano de reinado. 4.2. Os arquivos da famlia Sanum Do mesmo modo que para o estabelecimento da origem dos tabletes, a reunio dos documentos por arquivos depende, sobretudo, das anlises prosopogrficas. A reconstituio das redes de parentesco , portanto, fundamental para estabelecer que um determinado lote de documentos pertenceu a uma famlia especfica. Em vrios casos, tais arquivos so centrados em um s personagem e suas atividades. Eventualmente, conhecemos alguns de seus parentes, mas eles tm apenas um papel secundrio nos negcios registrados. Esta a situao na maior parte dos arquivos familiares de Larsa, como os de Ubar-Shamash, Amurrum-shmi e mesmo Balmunamhe. Outras vezes, os arquivos mostram as atividades de vrios membros de um grupo, por vrias geraes, como o caso dos tabletes da famlia Sanum. O mais antigo ancestral conhecido, Sanum, no aparece em nenhum contrato conhecido atuando como um agente econmico ativo. Ele , no entanto, citado por documentos posteriores. Na gerao seguinte, vemos ocorrer uma diviso entre os dois ramos da famlia, o de Eshtar-il e o de Sn-shmi. Esta ramificao fundamental para o entendimento dos arquivos que chegaram at ns. Com efeito, o que chamamos, aqui, de arquivos da famlia Sanum corresponde ao conjunto de documentos reunidos por Eshtar-il e seus descendentes. Como existem vrias relaes entre os dois ramos (partilhas, vendas de terrenos, associaes comerciais), Sn-shmi e seus filhos tambm esto presentes, mas sempre em funo das atividades do grupo de seu irmo67. Essa mesma lgica reproduz-se posteriormente. Em cada gerao, um dos filhos, sempre o primognito, concentra ao menos uma grande parte dos arquivos e acrescenta novos documentos, resultantes de suas prprias atividades. Assim, vemos que os arquivos crescem com os tabletes de Iddin-Amurrum, o membro do grupo sobre o qual existem mais informaes relativas aos negcios imobilirios68. Finalmente, o filho primognito de Iddin-Amurrum, IbniAmurrum, parece ter sido o ltimo detentor dos arquivos, juntando a eles um novo lote de documentos. Na verdade, o que nos chegou foram os arquivos de Ibni-Amurrum. Do ponto de vista arqueolgico, o mais provvel que os tabletes tenham sido encontrados em sua casa (ou na casa paterna por ele herdada). Os arquivos da famlia Sanum cobrem um perodo de mais de 90 anos. Os primeiros documentos so datados dos anos 2 e 3 do reinado de Sn-iqsham. Neles, vemos as primeiras transaes imobilirias de Eshtar-il e seu irmo Sn-shmi. Eshtar-il permanece ativo durante todo o reinado de Warad-Sn e no comeo do reinado de Rm-Sn. Durante a primeira dcada do longo perodo governado por este soberano, Eshtar-il substitudo pelo seu filho primognito, IddinAmurrum, cujos documentos datam dos trinta anos seguintes. A chegada dos conquistadores babilnios coincidiu com a transio para a ltima gerao documentada da famlia. IbniAmurrum e seus irmos so atestados entre os incios do reinado de Hammu-rabi na cidade at o ano 7 de seu filho e sucessor, Samsu-iluna.
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O momento exato do fim dos arquivos problemtico. Em _/II/Si 7, os irmos de IbniAmurrum partilharam a parte da herana de dIbni-Amurrum (TCL,11,218). Ns possumos, ainda, um documento datado do mesmo ms, no qual Ibni-Amurrum acerta suas contas com um de seus irmos, Mr-Amurrum (TCL,11,217)69. Parece, ento, que a morte de Ibni-Amurrum deva ter ocorrido em um momento pouco anterior ao segundo ms de Si 7. Esta datao deparase, porm, com duas dificuldades: a) em primeiro lugar, uma partilha colateral entre os irmos de Ibni-Amurrum implica que este morreu sem descendentes; ora, em um recibo de aluguel de um bem pertencente ao templo do deus Shamash, datado de 25/V/Si 4 (TCL,11,204), um certo Ibni-Amurrum citado juntamente com seus filhos. No h meio de saber se este personagem membro da famlia Sanum ou um homnimo. Pode-se tambm pensar que a morte dos filhos, entre 4 e 7 Si, tenha privado Ibni-Amurrum de descendncia; da a partilha pelos irmos; b) uma segunda dificuldade reside em um documento (TCL,11,215) que cita um homem chamado Ibni-Amurrum e datado do ms doze de Si 7, portanto dez meses posterior data de sua suposta morte. O tipo de documento, porm, permite pensar que estamos diante de uma redao post-mortem: Ibni-Amurrum tinha uma dvida de 10 siclos de prata junto a um certo Munawwirum; A dvida havia sido paga, mas o tablete em que a obrigao fora registrada no foi encontrado pelo credor, que deveria t-lo entregue ao devedor como prova de quitao. Ento, Munawwirum redigiu e selou um documento em que a situao era explicada e no qual se engajava a destruir o antigo contrato, caso este aparecesse. provvel que a redao do segundo tablete tenha sido exigida pelos herdeiros de Ibni-Amurrum quando procuravam pr em ordem os negcios e arquivos do irmo morto. Em todo caso, o ano 7 de Samsu-iluna marca o terminus ante quem dos arquivos da famlia Sanum70. Quanto tipologia dos documentos, a maior parte dos tabletes formada por contratos de compra de imveis (29 sobre 63). Em grande parte, os arquivos familiares mesopotmicos so o resultado da atividade arquivstica de compradores de terrenos: os registros de aquisio eram cuidadosamente guardados para assegurar o controle dos terrenos em caso de disputas, de reivindicaes de herdeiros, de contestao das transaes pelos vendedores ou seus parentes. Nos arquivos da famlia Sanum, h outras categorias de documentos particularmente importantes para o estudo da apropriao imobiliria: as partilhas (sete documentos); os pagamentos de compensao aps a compra, resultantes da anulao desta por decreto real (quatro documentos); os documentos judicirios relativos a disputas sobre os terrenos (trs documentos71); enfim, acordos entre as partes regulamentando a ocupao do espao (trs documentos). Os registros das demais atividades econmicas raramente eram conservados por tanto tempo. Normalmente, eram destrudos aps a concretizao das operaes comerciais e os comprovantes de dbito eram entregues aos devedores como prova de quitao. Assim, temos muito poucos registros de dbitos ou documentos similares nos arquivos da famlia. Por outro lado, um conjunto bastante homogneo de nove tabletes relativos comercializao de mercadorias do palcio foi preservado, pois representava os documentos correntes da atividade econmica do ltimo detentor dos arquivos, Ibni-Amurrum72. Os arquivos de uma famlia no eram formados exclusivamente pelos documentos diretamente ligados s suas atividades econmicas. A transferncia de um bem, por herana ou venda, era acompanhada de uma transferncia dos antigos documentos que provavam a trajetria dos terrenos at o momento da ltima alienao. Estes documentos serviam, ento, de ttulo de

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propriedade73. No processo de formao dos arquivos, esta lgica implica que alguns documentos que aparentemente no pertencem famlia faziam, na verdade, parte de seus arquivos. Estes registros remetem a antigas transaes e os nomes dos membros da famlia que adquiriu o imvel em ltimo lugar no so forosamente citados (salvo se, eventualmente, fossem vizinhos do terreno negociado74 ou tivessem servido de testemunhas). Esta constatao obriga a ampliar a noo de arquivo familiar. No que diz respeito aos negcios imobilirios, encontramos nos arquivos das famlias duas categorias de tabletes: em primeiro lugar, os documentos diretamente provenientes das transaes em que os membros do grupo foram agentes ativos (em especial, agindo como compradores); por outro lado, os registros recebidos como ttulos comprobatrios. Para distingui-los, qualificarei esta segunda categoria de arquivos perifricos75. No caso da famlia Sanum, a anlise das transaes imobilirias permite identificar dois contratos que poderiam, segundo este critrio, ter pertencido aos arquivos da famlia76. 5. A genealogia da famlia Sanum: as evidncias documentais Esta a rvore da famlia Sanum, tal qual pode ser estabelecida a partir dos seus arquivos. Segue-se tambm uma justificativa detalhada da reconstituio proposta77.
Figura 1: A famlia Sanum

Sanum, o mais antigo membro da famlia, citado na documentao, seja como pai de Snshmi (TCL,10,129 e envelope de TCL,10,8), seja como ancestral de Iddin-Amurrum (YOS,5,52 e 128) e de Il-turam (TCL,10,129). O fato de que tenha sido pai de Eshtar-il no atestado diretamente (a menos que se considere como uma variante a ocorrncia de TCL,10,14: 14: esh4tr--l dumu sa-a-ni; um tal nome (Sni?) seria, no entanto, um hpax na documentao de Larsa). Os dois filhos de Sanum, Eshtar-il e Sn-shmi, partilham os bens paternos em TCL,10,31, mas o nome do pai no citado. Como a diviso igualitria, no se pode saber quem o primognito.
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Iddin-Amurrum e Iblutam so atestados como filhos de Eshtar-il por dois contratos de partilha: TCL,10,55, em que o nome do pai citado, e TCL,10,141, no qual ele no aparece. Iddin-Amurrum tambm dito filho de Eshtar-il em TCL,10,30, 33, 34, 51 e 105, alm de seu selo, utilizado mais tarde por seu filho Ibni-Amurrum (ver abaixo). Enfim, no selo de Iblutam, l-se igualmente o nome do pai Eshtar-il (TCL,11,200). As linhas em que aparece a quantidade dos bens partilhados em TCL,10,55 esto, infelizmente, muito deterioradas, mas, a partir do nmero de escravos recebidos por cada um dos irmos dez escravos e trs escravas para Iddin-Amurrum contra cinco escravos e uma escrava para Iblutam , pode-se pensar que o primeiro era o primognito, o que confirmado por TCL,11,141, que atesta uma nova diviso, na qual Iddin-Amurrum recebeu 353 sar de pomares, enquanto que seu irmo Iblutam recebeu apenas a metade, 176 sar (o primognito teve de pagar 1 siclo de prata pela pequena diferena recebida a mais). TCL,11,200 fornece os nomes dos cinco filhos de Iddin-Amurrum: Mr-Amurrum, LipitEshtar, Sanum (que tem o mesmo nome de seu bisav), Sn-magir e Ibni-Amurrum. O nome deste ltimo devia certamente figurar no incio do tablete, hoje quebrado, mas ele mencionado, a seguir, como vizinho do terreno recebido por seu irmo Lipit-Eshtar. Os cinco irmos esto igualmente presentes na partilha registrada em TCL,11,174, na qual a maior parcela destinada ao filho primognito, Ibni-Amurrum. Se a restituio da fissura de TCL,11,200 proposta acima correta, Ibni-Amurrum citado em primeiro lugar nos dois documentos, como freqentemente o caso dos primognitos; Lipit-Eshtar vem sempre em ltimo lugar (isto significaria que ele o mais jovem dos irmos?); os demais nomes no esto na mesma ordem nos dois documentos. Dois dos cinco irmos Ibni-Amurrum e Lipit-Eshtar so ainda atestados em TCL,11,218. Sanum e Lipit-Eshtar so citados como filhos de Iddin-Amurrum em TCL,11,198. Um indcio suplementar de que Ibni-Amurrum fosse o filho primognito de Iddin-Amurrum o fato de que ele recebeu o selo paterno, utilizando-o em diversos contratos: TCL,11,172, 193, 195, 199, 200, 208 e 21078. Conhecemos tambm o selo de Mr-Amurrum, em que ele dito filho de Iddin-Amurrum (TCL,11,217). No ramo dos descendentes de Sn-shmi, temos a seguinte situao: Iddin-Nanaya chamado filho de Sn-shmi em TCL,10,33 e 34. Il-turam: em sua primeira tentativa de reconstituio da rvore genealgica da famlia Sanum, Leemans (1950: 54) havia como tambm Matoush e todos os demais autores que trataram a questo depois considerado Il-turam como filho de Sn-shmi. Quase quarenta anos mais tarde, Leemans (1986: 17), seguindo uma nova leitura de TCL,10,129 proposta por F. R. Kraus (1953: 322; n. 16), mudou de idia, situando Il-turam na gerao anterior, como irmo de Sn-shmi e de Eshtar-il. De fato, mesmo se o tablete sofreu uma grande deteriorao desde a cpia de Jean, a colao parece dar razo proposio de leitura de Kraus (Ishtar-ili u Ili-turram dumu! sa!-nu-um), salvo que no h espao para um sinal AM no final do nome. Segundo minha prpria colao do tablete cuneiforme, temos na linha 8: -l-tu-ra dumu* sa*nu-um. O problema saber se, neste caso, deve-se considerar que dumu indica filho de ou descendente de, pertencente famlia de. Preferi optar por esta segunda soluo. Sabemos,

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por exemplo, que Iddin-Amurrum tambm foi chamado de dumu Sanum (YOS,8,52: 13; envelope: l. 5 e YOS,8,128: 23: i-din-dmar-tu dumu sa-nu-um; tambm VS,18,1: l. 7: Ii-din-dmar-tu ki-ud dumu sa-nu-um), mesmo sendo, sem nenhuma dvida, o neto de Sanum. Alis, neste mesmo caso, o prprio Leemans (1950: 58) reconheceu que a apelao parece ser usada como designao da famlia. O segundo argumento de Kraus depende da interpretao da contestao da herana atestada em TCL,10,34. No que concerne aos laos de parentesco, o problema situa-se nas primeiras linhas do documento:
1) I 2)

i-din-na-na-a dumu [d]en-zu-she-mi

h-la -l-tu-ra-am shesh-a-ni i-din-dmar-tu dumu esh4-tr-dingir ib-q-ur-ma

3) I 4)

Kraus entendeu que a locuo shesh-a-ni (seu irmo) ligava Il-turam a Sn-shmi, cujo nome o mais prximo. Assim, o objeto do processo intentado por Iddin-Nanaya contra IddinAmurrum, seu primo, seria a parte de herana (h-la) do tio de ambos, Il-turam. Pessoalmente, prefiro vincular Il-turam ao autor do processo, Iddin-Nanaya; o conflito diria respeito, ento, parte da herana do irmo de Iddin-Nanaya, transferida, indevidamente segundo este, ao seu primo, Iddin-Amurrum. Assim, alinho-me opinio de Ch.-F. Jean (1931: 149) e, mais recentemente, de J. D. Fortner (1996: 778). Esta hiptese reforada pelo fato de que a mesma estrutura lingstica encontrada nas listas de testemunha: X dumu Y, Z shesh-a-ni, em que se deve compreender que Z o irmo de X, no de Y. Em revanche, mais difcil explicar as razes da transferncia da parte de herana de um ramo da famlia para outro e como as partes chegaram ao processo. Uma tentativa de resposta pode ser a aliana entre Eshtar-il e Il-turam: possvel que, alm das aquisies imobilirias conjuntas que conhecemos (TCL,10,129 e 130), a relao entre ambos tenha tambm motivado uma transferncia dos bens familiares do sobrinho para o tio. Em seguida, estes bens teriam migrado de Eshtar-il para Iddin-Amurrum atravs da partilha sucessria normal; e isto que poderia ter provocado uma contestao da parte de Iddin-Nanaya. Para reforar esta interpretao, preciso acrescentar ainda que, na nica partilha conhecida entre os filhos de Sanum (TCL,10,31), Il-turam no est presente. Considerando, ento, todos estes dados, o mais lgico manter a posio inicial de Il-turam, como filho de Sn-shmi. Urdukuga: em sua reconstituio da famlia, L. Matoush (1949: 148 s.) hesitou inicialmente em considerar Urdukuga como um filho de Sn-shmi, indicando, mesmo assim, seu nome na rvore arqueolgica cautelosamente entre parnteses. Por sua vez, W. F. Leemans (1950: 61) considerou que Urdukuga no podia pertencer mesma gerao dos filhos de Snshmi, pois ele conhecido por ter vendido imveis a Eshtar-il, que pertence gerao anterior. Esta discrepncia seria ainda mais injustificvel, acrescenta Leemans, pelo fato de Sn-shmi ser provavelmente o filho cadete de Sanum. Ora, o documento em que Urdukuga dito explicitamente filho de Sn-shmi (TCL,10,14) datado do final do ano 7 de Warad-Sn. No mais, o negcio entre Eshtar-il e Urdukuga (TCL,10,130) ocorreu no ano 2 de Sn-iqsham. Mesmo se no conhecemos exatamente a durao do reinado deste soberano nem a de seu breve sucessor Silli-Adad, o tempo decorrido entre as duas datas no deve ter sido longo o suficiente para impedir uma sincronia, mesmo parcial, entre a vida dos dois personagens, que seriam, como penso, tio e sobrinho. Alis, ns sabemos que Eshtar-il (sem dvida o filho de Sanum) participou do contrato
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do ano WS 7, como testemunha, justamente ao lado de Urdukuga. Em RS 9, Urdukuga foi novamente testemunha, desta vez no processo de Iddin-Nanaya contra Iddin-Amurrum, relativo aos bens de Il-turam (TCL,10,34), o que demonstra sua contemporaneidade. Enfim, sabemos que Eshtar-il viveu at, pelo menos, RS 16, ano em que ele vendeu um terreno a seu prprio filho Iddin-Amurrum. Assim, uma sincronia entre as atividades da segunda e terceira geraes permitiu vrias trocas entre seus membros. No momento dos primeiros negcios registrados da famlia, somos confrontados com a presena de trs Urdukuga diferentes: 1) o membro da famlia Sanum, cuja posio acabamos de estabelecer; 2) um Urdukuga filho de Mashum, testemunha da compra de imvel realizada conjuntamente por Eshtar-il e Il-turam (TCL,10,129), que deve ser distinguido do vizinho que leva o mesmo nome (certamente o Urdukuga da famlia Sanum); 3) um Urdukuga casado com Ratum, dos quais Sn-shmi compra um terreno (TCL,10,2). Notar-se-, finalmente, a total ausncia de mulheres. Contrariamente a muitas outras famlias ao longo da histria mesopotmica podemos pensar nas famlias de Ea-ilta-bni, Il-bni ou Nanhu de Borsippa, na poca tardia (F. Joanns, 1989) , ignoramos completamente os casamentos da famlia Sanum; nem mesmo os nomes das mulheres que permitiram que o grupo se reproduzisse biolgica e socialmente nos so conhecidos. Do mesmo modo, faltam-nos informaes sobre eventuais adoes, no mais muito comuns, sobretudo no quadro das sucesses. A fim de estabelecer mais exatamente a estrutura do grupo, podemos preencher algumas lacunas com alguma verossimilhana. Por exemplo, parece que uma mesma mulher tenha sido a me de cada grupo de irmos: mesmo se a concubinagem e a sucesso de vrias esposas devido morte ou separao sejam sempre possveis, nada em nossas fontes indica uma maternidade heterognea (freqentemente indicada nos contratos quando os filhos de mes distintas partilham os bens do pai comum). Por outro lado, nada permite tentar uma restituio para a muito provvel existncia de irms nem fixar seu nmero. Em resumo, o quadro dos membros da famlia Sanum reflete unicamente as relaes de filiao entre os membros masculinos, tal como podemos observar, em particular, no momento das transmisses intergeracionais. Esta natureza da documentao impe certos limites, mas oferece tambm alguns desafios interessantes, aos quais procuraremos responder. 6. Questes cronolgicas Os mesopotmios no conheceram um calendrio comum e unificado, aplicvel a todos os reinados e a todas as regies. Na Babilnia, nos incios do segundo milnio, os anos eram nomeados a partir de frmulas contendo um evento notvel ocorrido no ano anterior e, normalmente, associado figura do rei (a chegada ao trono, para o primeiro ano; uma vitria militar; a construo ou reforma de um templo; a abertura ou desobstruo de um canal etc.)79. Por decorrncia, uma grande parte das dificuldades atuais reside em estabelecer a durao de um reinado (quer dizer, a quantidade de frmulas de ano que podem ser atribudas a um soberano), a ordem exata das frmulas no interior de um reinado e, finalmente, a sincronia entre os diferentes sistemas de datao utilizados nas vrias cidades-reinos (sendo que, em nosso caso, o mais importante estabelecer a correspondncia entre os anos de Larsa e de Babilnia). Outro tipo de problema consiste em situar as datas mesopotmicas em uma linha cronolgica absoluta. No que diz respeito cronologia relativa, os dados de Larsa para a poca de Warad-Sn e de Rm-Sn so suficientemente claros, mesmo se alguns problemas de detalhe persistam. Por ou-

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tro lado, a cronologia absoluta , atualmente, objeto de um vivo e complexo debate, que pe em causa o modelo majoritariamente aceito. Nas partes seguintes, resumiremos o estado atual dos problemas, privilegiando aqueles que tm conseqncia direta sobre as questes tratadas neste trabalho, e explicitaremos as solues adotadas. 6.1. A cronologia absoluta Para situar os eventos mesopotmicos em um sistema de cronologia absoluta, seria necessrio p-los em relao com outros fenmenos cuja posio na seqncia temporal seja fixa e estabelecida com rigor (por exemplo, um eclipse). Se, para as pocas mais recentes da histria mesopotmica, no primeiro milnio, a situao pde ser ordenada com grande exatido (em grande parte, graas s notaes astronmicas dos tabletes neobabilnicos), o mesmo no ocorre em relao primeira metade do segundo milnio80. Assim, trs sistemas concorrentes foram propostos e suas diferenas so facilmente perceptveis quando observamos as datas estimadas por cada um para o reinado de Hammu-rabi: -Cronologia longa: 1848 1806 a.C. -Chronologia mdia: 1792 1750 a.C. -Cronologia curta: 1728 1686 a.C. Esses sistemas de datao no foram os nicos na histria da disciplina. Por exemplo, em seu trabalho sobre Larsa, Ch.-F. Jean (1931: XI) adotou uma cronologia ultralonga, situando o reinado de Hammu-rabi entre 1955 e 1913 a.C.. O mesmo ocorreu nos primeiros estudos sobre a cronologia dos reis de Larsa: por exemplo, F. Thureau-Dangin (1918), que situa a poca de Hammu-rabi ainda mais cedo: 2123-2080 a.C. O trabalho de E. M. Grice (1919), que a primeira tentativa de estabelecer uma ordem nas frmulas de anos dos reis de Larsa, no propunha nenhuma cronologia absoluta (a autora tambm no o havia feito na edio de YOS,5). Posteriormente, estas cronologias longas foram abandonadas em favor de uma cronologia mdia que, por sua vez, tornou-se a norma entre os assirilogos. Mais recentemente, entretanto, um movimento sistemtico de um grupo de especialistas, concentrados na Universidade de Gand, tem apresentado argumentos que advogam em favor de uma cronologia muito mais curta, mas que no corresponde completamente cronologia curta tradicional. A fim de marcar a diferena, ela foi chamada de nova cronologia81. Os argumentos favorveis a esta nova proposta so, de incio, de natureza arqueolgica e repousam sobre dataes do material cermico, sendo reforados por dados astronmicos e textuais. Como resultado, os autores sugerem baixar a data da queda final da primeira dinastia da Babilnia (1595 a.C. segundo a cronologia mdia) para uma data compreendida entre 1517 e 1491 a.C., mais provavelmente em 1499 a.C. O reinado de Hammu-rabi estaria situado, assim, entre 1696 e 1654 a.C. O debate est longe do fim: os argumentos favorveis a uma baixa da cronologia geral da Mesopotmia ainda esto em vias de ser avaliados e, por vezes, so duramente criticados82; por outro lado, novas contribuies continuam sendo feitas83. Neste quadro instvel, pareceu-me mais razovel continuar a adotar a cronologia mdia, ainda largamente predominante nos estudos assiriolgicos. Assim, para o perodo sob anlise, as referncias essenciais so as seguintes:

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Quadro 1: Cronologia absoluta

A fim de facilitar a visualizao direta das datas dos fenmenos tratados, a referncia aos anos no interior de um reinado ser feita de forma abreviada: por exemplo, RS 13 corresponde ao dcimo terceiro ano do reinado de Rm-Sn, e assim por diante84. 6.2. A cronologia relativa Em relao cronologia relativa, algumas dvidas menores persistem, sem, no entanto, comprometer a compreenso do conjunto. A anlise dos fenmenos econmicos feita aqui no traz nenhuma contribuio definitiva s questes que permanecem em aberto85. Limitar-me-ei a indicar as mais importantes e a explicitar minha opinio. O primeiro problema diz respeito ao nmero de anos durante os quais Warad-Sn governou Larsa e ordem exata das frmulas de datao conhecidas. Os primeiros trabalhos sobre a cronologia de Larsa retiveram um total de 12 anos para a durao de seu reinado86, soluo adotada igualmente por A. Ungnad no artigo Datenlisten do Reallexikon der Assyriologie, de 193487, e por Ch.-F. Jean (1931: XII). Em 1976, novos dados permitiram a M. Stol (1976: 1 ss.) propor o acrscimo de um dcimo terceiro ano de Warad-Sn. O ponto de partida de Stol foi uma nova lista inscrita em um tablete da Universidade de Chicago em que uma frmula de ano at ento desconhecida aparecia. Esta frmula indita situava-se na quarta posio do total de 13 frmulas88. Alguns anos mais tarde, M. Sigrist (1985: 168) contestou a atribuio desta frmula ao reinado de Warad-Sn, preferindo consider-la como correspondente ao quinto ano de outro rei de Larsa, Sn-iddinam, o que implicava um retorno tradicional hiptese de 12 anos para Warad-Sn89. Constata-se, entretanto, e no sem certa surpresa, que, em sua obra capital sobre as frmulas de anos de Larsa, Sigrist (1990: 31 ss.) reconsiderou sua posio sem oferecer nenhum argumento para tanto e reteve a frmula dita de Malgium como sendo, de fato, a do

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quarto ano de Warad-Sn, cuja durao de reinado via-se, assim, novamente elevada a um total de 13 anos. Ainda mais recentemente, o autor retornou sua posio inicial, conferindo apenas 12 anos a Warad-Sn90. No trabalho mais recente sobre a histria dos reis de Larsa, Madeleine A. Fitzgerald (2002: 4 e 133 ss.) props igualmente 12 anos para a durao do reinado. Uma questo conexa a da ordem das frmulas dos anos de Warad-Sn. A antiga ordem, consagrada por Ungnad no Reallexikon der Assyriologie, deve ser reconsiderada em funo de novos dados. Apresentamos, abaixo, um quadro comparativo entre a ordem proposta por Stol, similar de Sigrist (em Larsa Year Names), a restituio do RlA e a de M. A. Fitzgerald, que, por sua vez, no corresponde completamente a nenhuma das precedentes:

Quadro 2: Frmulas de anos de Warad-Sn

As divergncias situam-se, como se v, no meio da seqncia e as extremidades cronolgicas do reinado no apresentam maiores problemas. Infelizmente, a quantidade de contratos de transmisso imobiliria que datam deste perodo muito pequena, o que ainda mais verdadeiro para os arquivos da famlia Sanum91. Conseqentemente, a anlise interna dos arquivos no permite, a meu ver, oferecer uma resposta definitiva ao problema. Para a datao dos contratos neste trabalho, adotei uma durao de 13 anos para o reinado de Warad-Sn, bem como a seqncia de frmulas proposta por Stol e Sigrist92. O segundo problema refere-se articulao cronolgica entre os reinados de Rm-Sn e Hammu-rabi e, por conseqncia, ao estabelecimento do momento exato da tomada de Larsa pelos babilnios. Os detalhes ainda so objeto de disputas entre os especialistas93 e os documentos de Mari publicados nos ltimos anos trazem uma contribuio mais acurada da data e das circunstncias da derrota de Larsa (ver D. Charpin, 1988: 146 s. e M. Birot, 1993: 34 s.). Uma preciso absoluta no , contudo, possvel e, para nosso propsito aqui, reteremos do debate o seguinte quadro: no seu 61 ano de reinado, durante o qual a frmula de datao celebrava o 31

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ano de sua vitria sobre o reino de Isin, Rm-Sn teve de fazer face aos ataques de seu antigo aliado babilnico: vindo do norte, Hammu-rabi conquistara a segunda capital do reino, Mashkanshapir, ento governada pelo irmo de Rm-Sn, Sn-muballit, e marchou para Larsa. Rm-Sn perdeu definitivamente seu trono antes do fim daquele ano: aps um cerco de alguns meses, a vitria babilnica ocorreu no segundo semestre do ano, com o auxlio das tropas enviadas pelo rei de Mari, Zimr-Lm. Do ponto de vista das frmulas de datao, o ano seguinte, ou seja, o primeiro ano pleno de Hammu-rabi como senhor de Larsa, foi assinalado pela frmula tradicional de subida do soberano ao trono: Hammu-rabi () rei. Um dos documentos da famlia Sanum (TCL,11,141) , justamente, datado deste modo. Depois disto, a cidade de Larsa passou a utilizar as mesmas frmulas da Babilnia. Neste trabalho adotaremos a seguinte sincronia entre as duas cidades94:

Quadro 3: Sincronia cronolgica entre Larsa e Babilnia

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