A Idéia Do Teatro
A Idéia Do Teatro
A Idéia Do Teatro
In III
No texto 0 autor declara as circunstancias que 0 levaram a pronunciar. esta conferencia em Lisboa e em Madri a 13 de abril e a 4 de maio de 19461. Ortega pensou publica-Ia agregando-lhe alguns anexos que come<;ou a escrever seguidamente. 0 I esta manuscrito como 0 transcrevemos. 0 II procede de uma digressao, eliminada pelo autor do come<;o da conferencia, que julgamas oportuno acolher neste lugar. Os III e IV, a que se alude, apareceram so em notas soltas, que se publicarao ulteriormente. igtportante texto do Anexo por exempl0,. a biografia de Vehizques, a analise da ca<;a -, servem acentuadamente de exemplo do metoda da razao vivente e historica, doutrina essencial de seU pensamento filosofico.
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Nao M para que ter espaventos excepcionak a Ateneo de Madri, que voltou a seu antigo nome, como ao punho volve a falcao, quis inaugurar esta sua nova etapa falando-Ihes de alga. Faz muitos, muitos anos, talvez urn quarto de seculo, que eu nao falava nesta casa onde falei, ou melhor dito, balbuciei por primeira vez, e faz tambem demasiados anos que ando vagando fora de Espanha, tantos anos que, quando parti, podia com certo visa de verdade crer que ainda conservava uma como que retaguarda de juventude, e agora, quando retorno, volto ja velho. Toda uma gerac;ao de moc;os nem me viu nem me ouviu / e este encontro com ela e para mim tao problem'atico que s6 posso' aspirar a que, depois de me ver e me ouvir, sintam 0 desejo de repetir, salvando as distancias, os versos do velho romance que relatam 0 que. 0 povo cantava do Cid - por issoreclamava eu uma ampla salvac;ao de distancias -, 0 que cantava para 0 Cid quandoeste, ap6s longos anos de expatriac;ao em Valencia, terra de mouros naquele tempo, \Toltou a entrar em Castela, e que comec;am assim: Viejo que venis el Cid, viejo venis y florido ... *
Est.e unico erriparelha.mento semidiscrcto que cabe entre a behcosa pessoa do Cld e a minha ta~ padfica - notem. que isto significa fazedora de paz - emparelhamento ,que consiste em uma inquestionavcl vclhice e em uma eventual .refl~rescencia, e uma .Cllld:.'iciadeliberada que me permIt~, e claro, e: como dlzcmos em tauromaquia, a porta galOl~ - que e uma SOrle porlllgllesa -, a fim de que seu vIgor de caricatura simb lizc veementemente o i~pera~ivo de contin,uidadc, de continlla~ao que a todos devla UOIr-n.os, Contllwar nflo C ficar no passado nem sequer enqlllstar-se no prcscnte, mas mobilizar-se ir mais alem, inovar, porcm r nllnciando ao pulo' e ao ;alto e a partir do nada; 11111itoo contnirio, 6 ficar os calcanhaa r~s no,passado, ?espegar-se 5'0 presente, e pari passu, u~ pe apos outro a frente, por-se em marcha, caminhar avan~ar. A continuidade e 0 feeundo contub6mio ou s~ se quer, a coabita~ao do passado com 0 futuro e a unica maneira eficaz de nao ser reaciomirio. 0' hornem e continuidade, .e quand0 descontinua e na medida em' que descontinua e que deixa transitoriamente de ser homem, renuncia a ser ele mesmoe se toma outro - alter' -, e, que ~sta :lterado, que no, pais houve altera~oes. Convem, pOlS, por termo nestas radicalmente e que 0 honem volte a ser ele mesmo, ou como costumo dizer com: u~ estupen.do vocabulo que somen,te nosso idioma:; posSUI,que deIxe de alterar-se e consiga ensimesmar-se.
Por uma vez, apos enormes ang6stias e infortunios, a. Espanha tern sorte. Apesar de certas miudas aparenCIas, de breves nuvens pesadas que nao pass am de anedot,as metere.otOgicas, 0 horizonte historico da Espanha esta desanuviado. Bern entendido: esse horizonte histo-
rico que e hoje mais do que nunca 0 horizonte universal, e superlativamente problematico mas isto significa apenas que esta cheio de tarefas, de coisas que e precise fazer e que e preciso saber fazer. que, enquanto os demais povos, alem destas tarefas universais quc definem a epoca a vista, se acham enfcrmos - loderiamos muito bem diagnosticar a enfermidadc de cada um - 0 nosso, cheio, sem duvida, de defcitos e p6ssimos habitos, pOI casualidade saiu desta etapa turva e turbulenta com uma surpreendente, quase indecente saude. As causas disso, se se quer evitar os nescios lugares-comuns e enunciar a verdade nua, poderiam ser precisadas com todo 0 rigor, mas nao sao para ser ditas agora. Pois 'bern, essa inespefad a saUde historic a - digo historica, nao publica -, ,essa inesperada saude com que nos encontramos, perde-la-emos novamente se nao cuidarmos dela - e para isso e mister que estejamos alerta e que todos, notem a generalidade do voc;ibulo, notem 0 vocabulo generalissimo, todos tenhamos a alegria e a vontade e a justi~a, tanto legal como social, de criar uma nova figura da Espanha, apt a a intemar-se saudavel nas contingencias do mais imprevisto porvir. Para isso e mister que todos demos tratos urn pouco a cabe~a, agucemos 0 sentido para inventar novas formas de vida onde 0 passado desemboque no fu-' turo, que enfrentemos os enormes, novissimos, inauditos problemas que 0 homem tern hoje diante de si, com agilidade, com perspicacia, com originalidade, com gra~a em suma, com aquilo sem 0 qual nao se pode tourear nem se pode fazer verdadeiramente historia, a saber: com garbo. Mas nao vim aqui dissertar sobre tao graves temas, mas simplesmente satisfazer 0 desejo que este Ateneo tern 15
Senhoras, senhol:es: 0 Seculo, a cujo diretor, Senhor Pereira da Rosa, e ao Senhor Eduardo Schwalbach, . nosso presidente, agradcc;o a generosa amabilidade de sua saudac;ao - 0 Seculo quis que inaugurasse esta serie de conferencias dedlcadas a Hist6ria do Teatro com uma em que tento aclarar 0 que e 0 teatro. Mas, ao encontrar-me falando pela primcira vez na casa de 0 Seculo, brota-me na alma urn vecmcntc apetite de fala]' sobre outro tema muito diverso e aincl<:lmais suculento. Qual? Se eu pudesse falar hoje sobre ele, comec;aria minha COI1ferencia assim: Sabem os senhores de 0 Seculo 0 que significa 0 seculo? Nao e que pedantemente me convert.a eu num magister examinador que se proponha a examlnar aos senhores de 0 Seculo sobre 0 titulo de seu peri6dico. 0 tom de pergunta que dei a minhas palavras nao pretende mais que excitar-Ihes a curiosidade, porque, com efeito, se trilta de uma das ideias mais estupendas, de uma das ideias mais profundas que 0 homem teve acerca de sua pr6pria condi<;ao, mas que hoje e insuficientemente conhecida1. Porem, repito, nao posso hoje falar desse tema, poique hoje nao sou livre, porque hoje sou escravo na galera fretada por este querido e terrivel Senhor Acurcio Pereira e nao tenho outro remedio senao empunhar 0 remo e vogar a proa para a rota por ele marcada. D6cil, pois, a meu compromisso, entro sem mais a cumpri-Io.
1. (Ver
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o que e essa coisa chamacla Teatro? A_coisa .cha~ada ' Teatro, como a coisa chamacla h mem, sac mmtas, lDUmeniveis coisas diferentes entre si qu' nascem e morrem, que variam, que se transformam H ponto de, a primeira vista uma forma nao parecer-se em nacla com a outra. Horr:ens eram aquelas criaturas reais que serviam de modelo aos anoes de Velazques homem era Alexandre Magno, que foi 0 magno pessega?2 cle tocla a Hi~toria. Pelo fato 'mesmo cle que uma eOlsa e sempre mmtas e' divergentes coisas, nos int ressa averiguar s~ por en.tre e em toda essa varicdacle de 1'00'masnao SubSlste, malS ou menos latente, uma estrutura que nos permite chamar a inumeraveis e cliferentes individuos de "homem", a muitas e clivergentes' manifesta<;6es de "teatro". Essa estrutura que debaixo de suas modifica<;6es concretas e visiveis permanece identica e 0 ser da coisa. Portanto, 0 ser I de uma coisa. esta sempre~entro da coisa' condeta e singular, esta coberto por esta, oculto, latente. Dai necessitarmos des-oculta-Io, descobri-Io e tornar patente 0 latente.Em grego estar coberto, oculto, diz-se lathein, com a mesma raiz de nosso latente e latir. Dizemos do cora<;ao que ele late nao porque pulse e se mova, mas porque e uma viscera, porque e o oculto ou latente dentro do corpo. Quando logramos trazer claramente a luz 0 ser oculto da coisa dizemos que averiguamos sua verdade. Pelo visto, averiguar significa certificar, tornar manifesto algo oculto, e 0 vocabulo com que os gregos diziam "verdade" - altheia vem a significar 0 mesmo: a equivale a des; portanto, aletheia e des-ocultar, des-cobrir, des-Iatentizar. Perguntarmo-nos pelo ser do Teatro equivale, em consequencia, a pergun2. . Expressio coloquial.
paglia, com .que as mulheres port~guesas designam
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ra-
tarmo-nos por sua verdade. A no<;ao que nos entrega 0 ser" a verdade de uma coisa e sua Ideili. Vamos tentar fazer uma Ideia do Teatro, a Ideia do Teatro. Como a brevidade do tempo com que conto e extrema, isso me obriga a reduzir ao extremo a exposi<;ao da Ideia, a oferecer~lhes apenas uma abreviatura da Ideia do Teatro. E aqui tern voces aclarado 0 titulo desta conferencia: Ideia do Teatro - Uma abreviatura. Estamos de acordo? Que lhes parece se falarmos sobre este tema por um momento, nada mais do que por urn momento? Nada mais do que por urn momento, mas... a serio, completamente a serio. Vamos, pois, a isso. Suponham que a unica vez que viram e falaram a urn homern coincida com urna hora em que este homem sofria uma coHca de estomago ou estava com urn ataque de nervos ou quarenta graus de temperatura. Se alguem depois lh,es perguntasse que opiniao tinharn voces sobre '0 queaquele homem e, considerar-se-iam com direito de definir seu carater e dotes? Evidentemente nao. Voces 0 haviam conhecido quando aquele homem nao era pro~ priamente aquele homem, mas apenas a ruina daquele homem. E condi<;ao de toda realidade passar por estes dois aspectos de si mesma: aquilo que e quando e com plenitude ou em perfei<;ao e aquilo que e quando e ruina. Para usar urn esplendido termo do esporte atual, que teria entusiasmado Platao - claro, pois se vem dele! -; para usar, digo, um termo esportivo, ao ser com plenitude e em perfei<;ao chamaremos "ser em forma" * . E assirn oporemos 0 "ser em forma" ao "ser ruina". Pois assim como voces fariam mal em definir urn , homem segundo a sua aparencia quando 0 viram enfer Em portugues: "estar em forma", expressao que' nao pode ser usada no contexto aClma sem prejulzo para 0 senti do do discurso. (N. do T;)
mo, 0 Teatro e toda a realidade devem ser definidos segl!ndo seu "ser em forma" e nao ern seus modos deficientes e ruinosos. Aquele explica e aclara estes, mas nao ao reyes. Quem nao viu senao mas corridas de touros - e quase todas 0 sac - nao sabe 0 que 6 uma corrida de touros; quem nao teve a sorte de encontrar em sua vida uma mulher genialmente feminina nao sabe 0 que e uma mulher. Ruina! - de ruere -, 0 que veio abaixo, caiu, cadente ou decadente. :f: lamentavel, senhores, que tudo quanto existe no Universo nao exista com plenitude e em perfeic;ao, mas que, pelo contrario, a grac;a e a virtude mais perfeitas lhes sobrevenha inexoravelmente a hora da ruina. Nao ha nada mais melancolico, e por isso os romanticos, ja desde Poussin e Claude Lorrain, que foram os proto-romanhcos, buscam as ruinas, se estaQelecern em meio delas com delfcia e entregam os olhos a voluptuosidade do pranto. Porque os romanticos se embriagam de melancolia e bebem com deleite 0 Porto ou 0 Madeira de suas lagrimas. Gostam de ter a vista essas paisagens onde se levanta, como em urn ultimo esforc;o, 0 arco rompido que mostra ao ceu 0 coto de suas aduelas; onde os ervados abrac;am e afogam os pobies silhares decaidos; onde se veem torres moribundas, colunas decapitadas, aquedutos desvertebrados. Isto e 0 que ja no seculo XVII pintaram Poussin e Claude Lorrain. as romanticos descobriram a grac;a das ruinas. Dizia Emerson que, como cada plant a tern seu parasita, cada coisa no mundo tern seu amante e seu poeta. Ha, com efeito, 0 apaixonado pelas ruin as, e e born que eles existam. E eles tambem tern razao. Porque 0 ruinoso, como ja disse, e urn dos dois modos de ser da realidade. Aquele ho-
mem, ha anos atras tao poderoso, com seus milhares e milhares de contos, hoje 0 vemos arruinado. Sendo joyens fomos aquela cidade e descobrimos uma mulher maravilhosa que parecia feita de pura luz e pura vibrac;ao, com suas maC;asde pele tesa e brilhante, cheias de reflexos como uma joia ceramica. Ao cabo de muitos anoS voltamos a passar por aquela cidade e perguntamos par aquela mulher, e 0 amigo nos responde: "Conchita! Se voce a visse! :f: uma ruina!" 0 que nao quer dizer que essa rulna chamada Conchita nao continue, talvez, sendo uina delicia, so que uma delicia outra. A mulher que ja nao e jovem e, quic;a, a que possui a alma maissaborosa. Lembro haver escrito em minha primeira juventude refiro-me, portanto, a remotas cronologias; 0 paragrafo deve ~ncontrar-se em um de meus primeiroslivros - que prefena na 1?ulher essa hora vindimal do outono, quando a uva, precIsamente porque passaram por ela todas os s6is do estio, conseguiu fazer com eles sua sublime doc;ura. E lembro tambem a impressao que me cau~ou, sendo eu adolescente, ver a famosa atriz Eleonora Duse, uma mulher alta, emaciada, que ja nao era joyem e nunca foi' bela, mas em cujo rosto se achava sempre presente uma alma estremecida - estremecida e de1lcada -, de modo que em seus olhos e em seus labios tremulava sempre urn gesto de aye ferida .com urn clrumbo na asa, urn gesto que so se poderia descrever dizendo que era corno cicatriz de cern feridas causadas pelo tempo e pelos pesares. E como aquela mulher era encantadora! Nos, os rapazes da epoca, saiamos do teatro com 0 conic;aocontraido e sobre ele urn como que breve ardor e uma como que f3fua chama, que e 0 fogo de santeln;lOdo amor adolescente.
Todo- urn lado da realidade,' senhores, e mui especialmente todo urn lado das coisas humanas consiste em ser ruina. Ao come<;o de suas geniais Lif;oes sobre Filosofia da Historia Universal nos diz Hegel:
Quando lans:amos 0 olhar para tnis e contemrplamos a historia do passado humano, a primeira coisa que vemos SaD apenas "ruinas". A hist6ria e ffiudans:a e esta mudans:a tem, a primeira vista, um aspecto negativo que nos produz pena. 0 que nele nos deprime ever como a mais rica crias:ao, a vida mais beta encontra na Hist6ria sempre 0 seu ocaso. A Hist6ria e uma viagem entre as ruinas do egregio. Ela nos arrebata aquelas coisas e seres os mais nobres, os mais belos pelos quais nos haviamos interessado; as paix6es e os sofrimentos os destruiram: eram transit6rios. Tudo parece ser transit6rio, nada permanece. Que viajor nao sentiu esta melancolia? Quem ante as ruinas de Cartago, de Palmira, de Persepolis, e de Roma, nao meditou sobre a caducidade dos imperios e dos homens, quem nao se contristou sobre tal destino do que foi um dia a mais intensa e plemlria vida?
II
coisas podem servir-nos de gas lacrimogeneo, nao podem servir-nos - e e a isto que eu ia - para definir 0 seT destas coisas. Para isto necessitamos, repito, contemplar seu "ser em forma". A advertencia, senhores, importa muito porque hoje, no Ocidente ao menos,- quase nada ha que nao seja ruina e 0 que temos a vista nesta hora negativa, nest a hora de colica de estomago, pode desorientar-nos sobre 0 que as coisas sao. Quase tudo e hoje no Ocidente ruinas, mas, bem entendido, niio devido a guerra. A ruina preexistia, ja estava ai. As ultimas' guerras se produziram precisamente porque 0 Ocidente ja se achava arruinado, como pudemos diagnosticar com todo detalhe faz urn quarto de secul03. Quase tudo esta em ruinas, desde as institui<;oespoHticas ate 0 Teatro, passando por todos os demais generos literarios e todas as demais artes. Esta em ruinas a pintura - seus escombros saD 0 cubismo -; por isso, os quadros de Picasso tern urn aspecto de casa em derrubada ou de rincao do Rastro4 Esta em ruina a musica 0 Stravinski dos ultimos anos e urn exemplo de detritus musical. Esta em ruina a economia - a das na<;oes e a teorica. Enfim, esta em ruina, em grave ruina, ate a feminilidade. Ah, claro que 0 esta! E em grau superlativo! 0 que acontece e que 0 tema a tratar pelo qual me .;omprometi hoje e outro muito diverso; se nao teriamos conversa para uma temporada. Portanto, quando falarmos agora do Teatro procuraremos manter ao fundo e a vista suas gran des epocas: o seculo V de Atenas com seus milhares de tragedias e
3. Ver La rebeli6n 1927, e Espanainvertebrada, 4. Feira da ladra. de [as masas, 1921. publicado em forma de arligos descle
Assim diz Hegel, .que, como voces veem, nao era nada mau escritor e 0 era romantico. Mas a mudan<;a tern outro aspecto, encarada par seu reverso, a ruina: 0 fato de que algumas coisas acabem e condi<;ao para que outras nas<;am. Se os edificios nao caissem em ruinas, se se conservassem imperecedouros nao restaria sobre a face do planeta, a estas horas, espa<;o para nos vivermos, para nos construirmos. Nao podemos, pois, contentar-nos em chorar sobre ruinas; estas saD necessarias. 0 homem, que e 0 grande construtor, e 0 grande destrutore seu destino seria impossivel se nao fosse tambem urn famoso fabricante de ruin as. Esta bem que, de quando em quando, sejamos romanticos e que nos dediquemos ao esporte sentimental de chorar sobre as ruinas das coisas. Mas se as ruinas das
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seus milhares de comedias, com f:squilo, Sofocles e Aristofanes; os fins do seculo XVI e inicios do XVII com 0 teatro ingles e 0 espanhol, com Ben Johnson e Shakespeare, com Lope de Vega e Calder6n, e logo, em seu termo, com a tragedia francesa, com Corneille, com Racine e a comedia de Marivaux; com 0 teatro alemao de Goethe e Schiller, com 0 teatro veneziano de Goldoni e a Commedia dell'Arte napolitana; enfiI1l, tenhamos a vista todo 0 seculo XIX, que foi uma das grandes centurias teatrais. D,issemos que necessitamos manter a vista, como urn fundo, tudo isto porque isso foi 0 Teatro em forma, mas, ademais, porque e precisamente do que nao vamos falar. Tudo isso saD as formas particulares concretas e divergentes do melhor Teatro; melhor, nao porque nost por exemplo eu, me sinta comprometido a estimular muito tudo isso; mas, qualquer que seja mi~ha ou nossa aprecia<;ao pessoal, tudo isso foi na realidade da Hist6ria humana a realidade mais ef'iciente do Teatro. Claro que, sobre esse fundo ilustre e objetivamente exemplar, nao devemos esquecer todas as outras form as menos ilustres do Teatro, menDS consagradas, de algumas das quais talvez renas<;a amanha 0 Teatro sobre suas presentes ruinas. Mas, repito, falar de tudo isso e 0 tema dos conferencistas que .virao depois e contarao a voces a Historia do Teatro. Vma ultima advertepcia preliminar: quando dissemos que devemos ter a vista 0 Teatro de Esquilo, de Shakespeare, de Calderon, etc., nao pens em voces nem por urn momenta que com esse titulo me refiro so exc1usivamente a obra poetica de EsquilQ, de Shakespeare, de Calderon, as obrasdramaticas que estes poetas compuseram. Naofaltava mais nada! Isso seria uma injusti<;a que, como comumente acontece com a injusti<;a, serve para que
nela se esconda uma estupidez. A tolice, para fazer-se respeitar, inventou a injusti<;a. Porque ser injusto nao e, sequer, ser algo. Nao foram aqueles genios poeticos que sozinhos e por si - ao menos na medida em que for am exc1usivamente poetas - puseram ou mantiver~m em forma 0 Teatro. Isso seria uma torpe abstra<;ao. Pelo Teatro de Esquilo, de Shakespeare, de Calderon entenda-se, ademais e inseparavclmente, junto com suas obras poeticas, os atores que as representaram, 0 palco em que foram executadas e 0 publico que as presenciou. Nao estou disposto a renunciar a nada disso, porque eu vim "aqui chamado pelo Se/lhor Acurcio Pereira, para esc1arecer a voces 0 que e 0 Teatro e, se materialmente nada mo impede, nao vou sair daqui sem have-Io conseguido. Pois bern, .para tal finalidade necessito de todos esses ingredientes. Teatro! Nao ha talvez uma so palavra na Hngua que nao tenha varias significa<;6es; quase sempretem muitas. Entre essas significa<;6es multiplas os lingliistas costumam distinguir uma que chamam de significa<;ao ou sentido forte da palavra. Este sentido forte e sempre 0 mais preciso, 0 mais concreto, diriamos 0 mais tangivel. Vamos falar do Teatro. Pois bern, partamos do sentido forte desta palavra, segundo 0 qual 0 Teatro e antes de tudo, nem mais .nem menos, urn edificio - urn edificio de estrutura determinada, por exemplo, vosso beHssimo Teatro de Sao Carlos que 0 bairro Alto de Lisboa parece levar debaixo do bra<;o. No entanto, a destina<;ao atual desse teatro, onde se dao .concertos e SaD cantadas operas, descaracteriza a Ideia pura do Teatro. 0 grego
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tinha para urn edificio desta destinac;ao outro nome: chamava-o odeion, odeon, auditorio. Em troca, se eu estivesse agora falando a voces frente ao cemirio do Teatro de Dona Maria, poderia plenamente e sem reservas comec;ar uma resposta a pergunta: Que e 0 Teatro?, apenas levantando 0 brac;o e estendendo 0 indicador - 0 que equivale a dizer: "Senhores, isto que veem e 0 Teatro". Mas como nao estamos lii, procurei que 0 desenhista Senhor Segurado me delineasse esse esquema do interior do Teatro de Dona Maria para que eu possa dizer-lhes, sem mais reservas exceto a de que se trata de um esquema: AI tem voces 0 que e 0 Teatro. Por uma coincidencia tao feliz como involuntaria acontece celebrar-se hoje 0 centenario deste Teatro de Dona Maria, 0 mais tradicional e eminente de Lisboa. Nao saltemos desdenhosamente este sentido, 0 mais humilde da palavra, 0 mais usado no falar das gentes e 0 mais efetivo na vida de cada urn de nos. Se soltassemos esta primeira significac;ao de Teatro - repito, a mais simples, a mais trivial, a que esta mais a mao, a saber: que 0 Teatro e urn edificio -, correriamos 0 risco de saltar toda a restante realidade teatral, a mais sublime, a mais profunda, a mais substantiva. Partindo, pois, deste esquema arquitetonico do Teatro de Dona Maria, vamos ver se fazemos nosso pensamento marchar em rigoroso itinerario dialetico. "Pensar dialeticamente" quer dizer que cada passo mental que damos nos obriga a dar novo passo; nao urn qualquer, nao assim ao capricho do acaso, mas outro passo determinado, porque 0 que foi visto por nos no primeiro passo da realidade que nos ocupa - e agora e a realidade
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"Teatro" - nos descobre, queiramos ou nao, outro e novo lado ou componente dela quc antcs oao haviamos percebido. E, pois, a coisa mesma, a I'calidade mesma Teatro que vai guiar nossos passos mcnt'ais, que- ,,Ii ser nosS? l~z~rilho*5. Aproveitando estc lcma, que nao parece fIlosoflco, quero dar urn exemplo do mais rigoroso metodo dialetico - e 10 mesmo tC1111 fenomeoologico 0 aos jovens intelectuais de Lisboa, sc por acaso alguns se encontram aqui e nao estao toclos na Brasileira6
o Teatro e U111 edificio. Urn edificio e urn espac;o demarcado, isto e, separado clo resto do espac;o que permanece fora. A missao da arquitetura e construir, frente 10"fora" do grande espa<;o planetario, urn "dentro". Ao demarcar 0 espa<;o se da a este uma forma interior e esta forma espacial interior que informa, que organiza os materiais do edificio, numa finalidade. Portanto, na forma interior do edificio descobrimos qual e em cada caso a sua finalidade. Por isso a forma interior de uma catedral e diferente da forma interior de uma estac;ao ferroviaria e ambas da forma interior de uma morada. Em cada caso os componentes da forma sao assim e nao de outro modo porque servem a essa determinada finalidade. Sao meio~ para isto ou aquilo. Os elementos da forma especial sig* POlleo - usado mas cujo sentido de menino-guia de lazaro DaO tern Qutro correspondente em portugues. (N. do T.) 5-. : A famosa diale.tica original. de Hegel e, em verdade, miseravel. Nela o. <:mov.lmen~odo concel~o pr.ocede l?ecanicamente de contradi<;ao em contrad~;a?,. lSta e, 0 pensar e movldo por urn cego formalismo 16gico. 0 pensar dlaletIco que emprego como modo intelectual e ao qual 0 texto se refere e movimentado por uma diaU~ica- real, em ~ue. a. coisa mesma e que vai empurrando 0 pensamento e obngando-o a cOlnclclu com ela. Em que consiste com? e possIve! e por q\1e e necessario este novo metodo SaD mate-rias qu~ o ICltor encontrara expostas em meu livro proximo a ser publicado: El origen de la Filoso/fa e plenamente desenvolvidas em outra obra, Epilogo ... , que es~ pero que veja a luz em fins deste ano. (Veja-se Obras Com.pletas tomo IX Origen y epilogo de la filosofia). " 6. Cafe de tertulias litenirias em Lisboa.
nificam, pois, instrumentos, orgaos. feitos para funcionar em vista daquele fim, e sua func;ao nos interpreta a forma do edificio. Como diziam os antigos biologos, a fun<;ao faz 0 orgao .. Deveriam dizer que tambemo explica. Inversamente, a ideia do eclificio, que os construtores, portanto, 0 Estado ou os particulares, juntos como arquiteto, tiveram, atua como U111alma sobre os materiais inera tes e amorfos - pedra, cimento, ferro - e faz com que estes se organizem em c1cterminada figura arquitetonica. Na ideia do Teatro - cdificio - voces tern urn born exemplo do que Arist6teles chamava alma ou entelequia. Pois bern, basta contemplar urn instante este esquema do Teatro de Dona Maria para que salte a vista, como o mais caracteristico de sua fonna interior, que 0 espa<;o demarcado, 0 "dentro" que e um teatro, esta, por sua vez, dividido em dois espa<;os: a sala, onde vai estar 0 publico, e 0 cenado, onde vao estar os atores. 0 espa,<o teatral e, pois, uma dualidade, e urn corpo organico composto de dois orgaos que funcionam urn em rela<;ao com o outro: a gala e a cena. A sala esta cheia de assentos: as poltronas e os camarotes. Isto indica que 0 espa<;o "sala" esta disposto para que alguns seres humanos - os que integram 0 PlIblico - estejam sentados e, portanto, sem fazer mais nada senao ver. Em troca, a cena e urn espac;o vazio, elevado a urn nivel mais alto que a sala, a fim de que nela: se movam outros seres humanos que nao permanecem quietos como 0 publico, mas sim ativos, tao ativos que por isso se cham am atores. Porem 0 curiosa e que tudo o que os atores fazem em cena 0 fazem diante do publico e quando 0 publico se vai eles tambem se vao - quer dizer, tudo 0 que fazem 0 fazem para qu~ 0 publico 0 veja.
Com isso temos urn novo componcnte do Teatro. A primeira dualidade, que a simples forma espacial do edificio nos revelava - sala e cemirio -, agrega-se agora outra dualidade que nao e espacial, mas humana: na salaesta o publico; na cena, 0S atores. A coisa come<;a a complicar-sc um pouco e saborosamente quando, como acabo de dizer, percebemos que esses homens e mulheres que sc lllovem e falam no palco nao sao criaturas quaisqucr, mas sao esses hornens e muIheres que chamamos atores e atrizes; isto e, que se caracterizam por uma atividade especialmente intensa. Ao passo que os homens e mulheres de que 0 publico se compoe, enquanto sao publico, caracterizam-se por uma especiallssima passividade. Com efeito, em comparac;ao com o que fazemos 0 resto do dia, quando estamos no teatro e nos convertemos em publico nao fazemos nada ou pouco mais; deixamos que os atores nos fa9am - por exemplo, que nos fa9am chorar, que nos fa9am rir. Ao que parece, 0 Teatro consiste numa combina<;ao de hiperativos e hiperpassivos. Somos, como publico, hiperpassivos porque a unica coisa que fazemos e 0 minimo fazer que cabe imaginar: ver e, para come<;ar, nada mais. Certamente, no Teatro tambem ouvimos, mas, segundo vamos em seguida perceber, 0 que ouvimos no Teatro 0 ouvimos como que dito por aquilo que vemos. 0 ver e, pois, nosso primario e minimo fazer no Teatro. Com 0 que as duas dualidades anteriores - a espacial de sala e cena, a humana de publico e atores - temos de acrescentar uma terceira: 0 publico esta na sala para ver e os atores no palco para serem vistos. Com essa terceira dualidade, chegamos a algo puramente funcional: 0 ver e 0 ser visto. Agora podemos dar uma segunda defini<;ao do Teatro,
uma migalha mais completa que a primeira e dizer: 0 Teatro e urn edificio que tern uma forma interior organica constituida por dois orgaos - sala e cenario - dispostos para servir a duas func;oes opostas mas COl)exas: over e 0 fazer ver. Sempre voces ouviram dizer, desde a escola, que 0 Teatro e urn genero litera rio, urn dos tres grandes generos literarios que a Preceptiva* costuma distinguir: Epica, Urica e Drama 011 Dramaturgia, a obra teatral. Se repararem urn pOllco, se sc libertarem por urn instante do habito mental que essa formula tao repetida produz em nos e, atendendo a realidacle que contemplam diante de voces quando pensam "Teatro", essa inveterada no<;ao de Teatro como genero literario, assim, sem mais, nao os c1eixa estupefatos? Porque 0 literario se compoe so de palavras e prosa ou verso e nada mais. Mas 0 Teatro nao e apenas prosa ou verso. Prosa e verso ha fora do Teatro - no livro, no discurso, na conversa<;ao, no recital de poesia - e nada disso e 0 Teatro. 0 Teatro nao e uma realidade que, como a pura palavra, chega a nos pela pura audi<;ao. No Teatro nao so ouvimos, como tambem, mais ainda e antes que ouvir, vemos. Vemos os .atores moverem-se, gesticularem, vemos seus disfarces, vemos as decorac;oes que constituem a cena. Desse fundo de visoes, emergindo dele, nos chega a palavra como que dita com urn determinado gesto, com urn preciso disfarce e a partir de urn lugar pintado que pretende ser urn salaD do seculo XVII ou 0 Foro de Roma ou urn beco da Mouraria7
* Designa a disciplina e os tratados normativos de poHica e retorica. (N. do T.) 7. Ruelas sem saida do bairro mais popular de Lisboa, onde na verdade va!eria a pena ouvir can tar um fado a genial c belissima fadista Amalia Rodngues.
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A paIavra tem no teatro uma func;ao constituinte, mas .muito determinada; quero di~er que e secundaria a "representac;ao" ou ao espetaculo. Teatro e por essencia presenc;a e potencia de visiio - espetaculo -, e enqu~nto publico, somos antes de tudo cspectadores, e a palavra grega 6eC1'tpov, teatro, nao significa senao isso: miradouro, mirador. Tinhamo~, pois, razao quando, ao refletir urn instante sobre 0 inveterado dito segundo 0 qual 0 Teatro e um genero literario, ficavamos estupefatos. A estup'-efac;ao e 0 efeito que produz 0 estup-efaciente e 0 estup-efaciente mais grave e, por desgrac;a, 0 mais habitual e a estup-idez. A Dramaturgia e apenas secundaria e parcialmente um genero literario e, portanto, mesmo isso que, em verdade, ela tem de literaturanao pode ser con tempi ado de forma isolada daquilo que a obra teatral tem de espetaculo. 0 Teatro - literatura - podemos Ie-Io em nossa casa, a noite; de chinelas, junto a lareira8 Pois bern, po~ de ocorrer que, olhando bem sua realidade, nos parec;a, como 0 mais essencial do Teatro, ser precise sair de casa e ir a ele. Se 0 primeiro sentido forte e vulgar, fecundissimamente ingenue da palavra Teatro, e significar um edificio, 0 segundo sentido, tambem forte e vulgar, seria. este: Teatro e um local aonde se vai. Enos perguntamos com freqiiencia uns aos outros: "Ira esta naite vossa e~-. celencia ao teatro?" 0 Teatro e, comefeito, 0 contrario de nossa casa: e um local aonde e preciso ir. E este ir a, que implica urn sair de nossa casa. e, como vamos em seguida averiguar, a propria raiz dinamica dessa magnifica realidade humana que chamamos Teatro.
o Teatro, por conseguinte, mais que um genero liten'irio e um genero visionario ou espetacular. Logo descobriremos em que energico e superlativo sentido 0 e. o Teatro nao acontece dentro de nos, como sucede com outros generos liten'irios - poema, romance, ensaio -, mas sucede fora de nos, temos que sair de nos e de nossa casa e ir ve-lo. Tambem 0 Circo, tambem a corrida de touros sao espetaculos, sao coisas que se tem de ir ver. Nao obstante, vamos aprencler muito depress a no que estes dois outros espetaculos se cliferenciam do espetaculo teatral. Certamente, 0 Circa e a Tourada, a titulo de espetaculo, pertencem a mesma e divertida familia do Teatro. 0 Circo e os Touros, digamos, sac primos do Teatro: 0 Circo seria seu primo vesgo, a Tourada seu primo atroz, seu primo torto.
Mas 0 que e que vemos no palco? POI' exemplo, vemos a sala de urn castelo - palacio medieval no norte cia Europa, que se abre largamente sobre urn parque, precisamente 0 parque de Eisinor; vemos a margem de urn ria que desliza em fluxo lento e triste, arvores que sobre suas aguas se inclinam com vago pesar -, betulas, alamos e urn salgueiro chorao que deixa cair seus ramos. Nao e certo, senhores, que 0 salgueiro e uma arvore que parece estar cansada de ser arvore? Vemos uma moc;a tremula que traz flores e ervas nos cabelos, no traje, nas maos e avanc;a vacilante, palida, 0 olhar fixo em urn ponto da grande distancia, como que olhando sobre 0 horizonte, onde nao ha nenhuma estrela; nao obstante, ha uma estrela, a mais linda estrela, a estrela nenhuma. :E Ofelia - Ofelia demente, coitada!, que vai baixar ao rio. "Baixar ao rio" e urn eufemismo com que na Hngua chinesa se diz que alguem morre. Isto e, senhores, 0 que vemos.
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Mas nao, nao vemo isso! Sera que por urn instante padecemos de uma ilusflo de 6ptica? Porque 0 que de fato vemos san somente tcll.ls ou cartoes pintados; 0 rio nao e rio, e pintura; as arvorcs nao sao arvores, sao manchas de cor. Ofelia nao e Ofelia; e ... Marianinha Rey Colac;o!l. N~ q.ue ficamos? Vemos um ou outro? 0 que e que propna e verdadelramente achamos al no cenario diante de nos? Nao ha duvida: af diante de' nos achama~ as duas coisas: Marianinha e Ofelia. Mas nao as achamos - ista e 0 curioso! ~, nao. as achamos como se fossem duas coisas, mas como sendo uma so. "Apresenta"-se-nos Marianinha, que "re-presenta" Ofelia. Quer dizer, as coisas e as pessoas no palco se nos apresentam sob 0 aspecto ou com a virtude de representar outras que nao san elas. Isto e formidavel, senhores. Este fato triviallssimo que acontece cotidianamente em todos os teatros do mundo e talvez a mais estranha, a mais extraordinaria aventura que acontece ao homem. Nao e estranho, nao e extraordinario, nao e literal mente magico que 0 horn em e a mulher lisboetas possam estar hoje, em 1946, sentados em suas poltronas e camarotes do Teatro de Dona Maria e ao mesmo tempo estejam seis au sete seculos atras, na brumosa Dinamarca, junto ao rio do parque que rodeia 0 palacio do rei e vendo caminhar com seu passo sem peso esta fiammetta llvida que e Ofelia? Se isto nao e extraordinario e magico, eu nao sei que outra coisa no mundo esta mais proximo de se-lo.
9. Filha da ilustre primeira atriz do Teatro de Dona Maria, Senhora Amelia Rey Colac;o de Robles Monteiro. Marianinha vai estrear na cena pOlleos dias depois da data em que esta conferencia roi pronuneiada.
Precisemos urn pOUCO mais: al esta Marianinha cruzando as cegas 0 palco; mas 0 supreendente e que esta sem estar - esta para desaparecer a cada instante, como s~ escamoteass~ a si mesma, e para eonseguir que no vaZ10 . de sua pnmoro~a corporeidade se aloje Ofelia. A realidade ?e .uma a~nz, enquanto atriz, consiste em negar a sua propna reahdade e substitui-Ia pela personagern que r~presenta. Isto e re-presentar: que a presenc;a do ator SlIva nao para ele presentar-se* a si rnesmo,rnas para presentar outro ser distinto dele. Marianinha desa'parece con:~ certa Marianinha porque fica coberta, tapa.,. da por Ofelia. E do mesmo modo as decorac;6es fieam tapadas, _co?ertas po~ um parque e urn rio. De sorte que o que nao e real, 0 lrreal - Ofelia, 0 parque do palacio -, tern a forc;a, a virtu de magica de fazer desaparecer 0 que e real. . Se em uma ocaS130 destas refletirem sobre 0 que lhes acontece e tentarem descreve-Io para responder a . per~unta ~nterior s~bre 0 que se nos depara no palco, terao de dlzer-se aSSlm: deparamo-nos primeiro e a frente com. O~elia e urn parque; atras e como em segundo plano, ~anamnha ~umas telas pinturiladas. Dir-se-ia que a reah?ade s~ rehrou para 0 fundo a fim de deixar passar atra..: yes de SI, c?mo ~ contraluz de si, 0 irreal. No palco encontramos, pOlS,COlsas- as decorac;oes - e pessoas - os atores - que tern 0 dom da transparencia. Atraves delas, como atraves do cristal, transparecem outras coisas. Agora podemos generalizar 0 percebido e dizer: ha no mundo realidades que tern a condiC;ao de apresentar~
.* Para dar 0 sentido plcno de ac;ao do ator, nos tcnnos do original recorn a esta forma POll eo usada, mas existente em portugues em lugar de ~pre. scnlan,. (N. do T.)
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nos em lugar delas mesmas outras, distintas. Realidades dessa condi<;ao sac as que chamamos imagens. Urn quadro, por exemplo, e uma "realidadc imagem". Nao chega a urn metro de comprimento c tcm ainda menos de altura. Nao obstante, nele vemos Limapaisagem de varios quil6metros. Nao e isto magico? Aqllcle peda<;o de terra com suas montanhas e sells rios e sLia cidade esta ali como que enfeiti<;ado - em apcnas um metro deparamos varios quil6metros e em vez de lima tela com manchas de cor encontramos 0 Tejo e Lisboa e Monsanto. A coisa "quadro" pendurada na parede de nossa casa esta constantemente transformando-se no rio Tejo, em Lisboa e em suas alturas. 0 quadro e imagem porque e permanente metamorfose - e metamorfose e 0 Teatro, prodigiosa transfigura<;ao. Quisera que voces conseguissem maravilhar-se, isto e, surpreender-se com este fato tao trivial que nos sucede todos os dias no Teatro. Platao faz constar que 0 conhecimento nasce dessa capacidade para nos surpreendermos, maravilharmos, assombrarmos de que as coisas sejam como sao, precisamente como sao. o que vemos ai, no palco cenico, sac imagens no sentido estrito que acabo de definir: urn mundo imaginario; e todo teatro, por humilde que seja, e sempre urn monte Tabor onde se cumprem transf'igura<;6es. o cenario do Teatro Dona Maria e sempre 0 mesmo. Nao tern muitos metros de comprimento, de altura, de profundidade. Consiste em algumas tabuas, em algumas paredes quaisquer, materia trivia11ssima. No entanto, lembrem voces de todas as inumeraveis coisas que esse breve espa<;o e esse pobre material foram para voces. Foi 36 mosteiro e cabana de pastor, foi palacio, foi jardim, foi
rua de urbe antiga e de cidade modema, foi salao. 0 mesmo acontece com 0 ator. Esse mesmo e tinico ator foi para nos incontaveis seres humanos: foi rei e foi mendigo, foi Hamlet e foi Don Juan. o cenario e 0 ator sac a metafora universal corporificada, e isto eo Teatro: a metafora visivel. Mas repararam voces no que e 0 metaforico? Tomemos como exemplo, para que f'ique mais claro, a metafora mais simples, mais antiga e menos seleta, a que consiste em dizer que a face de uma mo<;a e como uma rosa. Geralmente a palavra "ser" significa a realidade. Se digo que a neve e branca dou a entender que a realidade neve possui realmente essa cor real que chamamos branco. Mas 0 que significa ser quando digo que a face de uma mocinha e uma rosa? Talvez voces record em 0 delicioso conto de Wells que se intitula "0 homem que podia fazer milagres". De noite, numa tabema de Londres, dois homens quaisquer, ja afetados pelos pesados vapores da cerveja, discutem fastidiosamente sobre se ha ou nao milagres. Urn ere neles, 0 outro nao. E em certo instante 0 incredulo exclama: "Isso e como se eu dissesse agora que esta luz se apague e a luz se apagasse!"; e eis que uma vez pronunciadas estas palavras, a luz, efetivamente, se apaga. E desde aquele momenta tudo 0 que aquele homem diz ou ~implesmente pensa, mesmo sern querer dize-Io formalmente, acontece, se realiza. A serie de aventuras e conflitos que este poder, tao magico como involuntario, lhe proporciona constitui a materia do con to. Por fim um agente da Po11cia 0 persegue tao de perto que 0 pobre homem pensa: "Por que nao se vai ao diabo este po11cia!". E, com efeito, 0 po11cia se vai ao diabo. 37
Mas suponham voces que algo parecido acontecesse ao humilde apaixonado cuja imaginaC(aonao chega a mais do que a dizer da face da donzela amada que e uma rosa portanto, que de pronto aquela face se convertesse realmente numa rosa. Que espanto! Nao e certo? 0 infeliz se angustiaria, ele nao havia querido dizer isso, era pura brincadeira - 0 ser rosa a face era apenas metaforico; nao era urn ser no sentido de real, mas urn ser no sentido de irreal. Por isso, a expres 'ao mais usada na metiifora emprega 0 como e diz: a face e como uma rosa. 0 ser como nao e 0 ser real, senao urn como-ser, urn quase-ser: e a irrealidade como tal. Perfeitamente; mas entao, 0 que e que sucede quando sucede uma metiifora? Pois sucede isto: ha a face real e ha a rosa real. Ao metaforizar ou metamorfosear ou transformar a face em rosa e preciso que a face deixe de ser real mente face e que"a rosa deixe de ser realmente rosa. As duas realidades, ao serem identificadas na metafora, chocam-se uma com a outra, se anulam reciprocamente, se neutralizam, se desmaterializam. A metiifora vem a ser a bomba atomic a mental. Os resultados da aniquilac;ao dessas duas realidades sac precisamente essa nova e maravilhosa coisa que e a irrealidade. Fazendo chocarem-se e anularem-se realidades obtemos prodigiosamente figuras que nao existem em nenhum mundo. Por exemplo, para compensar a miseria da velha metafora que me serviu de exemplo recordarei esta outra beHssima de urn recente poeta catalao. Falando de um cipreste direi que "0 cipreste e como 0 espectro de uma chama morta"lO.
10. (Ver do autor Ensayo La Metafora, Obras Completa~, de Estetica, tomo IV.) a manera de pr:ologo, Cap. V
o ser como e a expressao da irrealidade. Mas a Jinguagem tardou muito a conseguir encontrar essa formula. Max MUller fez notar que nos poemas religiosos da India, nos Vedas, que sao, em parte, os textos literarios mais antigos da Bumanidade, a metiifora nao se expressa ainda dizendo que uma coisa e como outra, mas precis amente por meio da negac;ao; 0 que demonstra a razao que tinha quando disse ser preciso que duas realidades mutuamente se neguem, se destruam, para que nasc;a e se ptoduza a irrealidade. Com efeito, Max MUller adverte que quando 0 poeta vedico quer dizer que um homem e forte como um leao diz: fortis non leo, e forte, mas nao e urn leao; ou entao para expressar que urn carater e duro como uma rocha, dira: durus non rupes, e duro, mas nao e uma rocha; e bom como urn pai, diz-se:bonus non pater, e born, mas, bem entendido, nao e um pai. Pais bern, 0 mesmo acontece no teatro, que e 0 "como se" e a metiifora corporificada - portanto, uma realidade ambivalente que consiste em duas realidades a do ator e a da personagem do drama que mutuamente se negam. E precise que 0 ator deixe durante urn momento de ser 0 homem real que conhecemos e e preciso tambem que Hamlet nao seja efetivamente a homem real que foi. E mister que nem urn nem outro sejam reais e que incessantemente se estejam desrealizando, neutral izando para que s6 fique 0 irreal como tal, 0 imagimirio, a pura fantasmagoria. Mas esta duplicidade - 0 ser, ao mesmo tempo, realidade e irrealidade - e urn elemento instavel e sempre corremos 0 risco de ficar com uma s6 das duas coisas. 0 mau ator nos faz sofrer porque nao consegue convencer-nos de que e Hamlet, mas continuamos sem-
pre venda 0 infeliz Perez ou Martinez que the acontece ser. Inversamente, a gente ingenua, popular nao consegue entrar nesse munclo "informal", metaforico e irrea!. Todos nos nos recorclamos quando nossa velha e ingenua criada, de origem camponesa, foi uma vez ao teatro e ao con tar-nos suas impressoes averiguamos que tomara os acontecimentos da cena como se fossem reais e que ela havia pretendido prevenir 0 ator de que, se permanecesse ali, os inimigos iriam mata-lo. A fantasmagoria solidifica-se, precipita em alucinac;:oespor poueo insuivel que seja a alma do espectador. Do mesmo modo que, para ver um objeto a certa distfmcia, os museulos da vista tem que dar 10 globo ocular o que se chama "acomodac;:ao", nossa mente tem de saber acomodar-se para que consigamos ver esse mundo imagimirio do Teatro que e um mundo virtual - que e irrealidade e fantasmagoria. Ha quem por excessiva carencia de educa<;ao, como nossa velha criada, se mostre incapazes disso: mas ha tambem muitas outras causas que podem produzir uma cegueira peculiar para com 0 fantasmag6rico. Recordemos urn caso ilustre. E cerca de 1600; Espanha e Portugal convivem reunidos sob 0 cetro de nosso senhor Filipe III. Esta reuniao nao significava que Portugal estivesse sob 0 dominio da Espanha nem a Espanha sob 0 dominio de Portugal, mas que ambos os povos estavam em uniao mistica e simbolicamente juntos na pessoa de Filipe III e na varinha magica que era 0 seu cetro. A uniao transitoria e fugacissima de Espanha e Portugal
teve nao pouco de metafora, como nao faHa tampouco metafora no atual blaea. Estamos em uma aldeia castelhana, hi pela terra da Mancha, e encontramo-nos na ampla cozinha da estalagem. Ali se congregou quase toda a povoac;:ao porque acaba de chegar 0 titereiro Mestre Pedro, que vai dar uma representac;:ao com seu teatrinho de fantoches. Em urn tenebroso rincao clo vasto recinto seentreve, inverossimil, a figura de D. Quixote, esgrouvinhada, esqualida, desalinhada e, em seus olh.os, uma febre perpetua de heTOismo inoportuno. As figuras do teatrinho representam como 0 cavaleiro frances Dom Gaifeiros, primo de Roldao, vassalo de Carlos Magno, liberta a esposa Melisendra, prisioneira dos mouros em Saragoc;:a ha arios. J a conseguiu sua fuga, ja a leva escarrapachacla na garupa de seu born cavalo, ja galopam felizes para a doce Franc;:a. Mas os mouros 0 percebem e em grande tropel saem em sua perseguic;:ao. E se aproximam, e se aproximam tanto que parece impossivel que se salvem! Entao, Cervantes nos diz:
Vendo e ouvindo, pois, tanta mourisma e tanto estrondo, pareceu a D. Quixote que seria azado prestar ajuda aos que fugiam e pondo-se de pe, disse em voz aha: - Nao posso permitir que em meus dias e em minha presen"a se fa"a aleivosia a tiio famoso cavaleiro e a tao atrevido enamorado como D. Gaifeiros; .detende-vos mal nascida canalha, nao 0 sigais nem persigais; se nao, comigo em batalha estais. - E assim dizendo e fazendo, desembai nhou a espada e de urn pulo se colocou junto ao teatrinho e com acelerada e nunca vista Furia come"ou a lan"ar uma chuva de cutiladas sobre a titereira mourisma, derrubando uns, degolando outros, 'estropiando a este, destro"ando aquele, e entre outras muitas o'utras, descarregou uma tal espadeirada altibaixa que, se Mestre! Pedro nao se abaixa, se encolhe e aca"apa, cortava-lhe a cabe"a ~erce com mais facilidade que se fosse feita de massa de ma"apao.
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Pass ado 0 momenta de frcnesi Mestre Pedro faz vel' a? born D. Quixote a dano que sua intempestiva heroi-" cldade the causara e the mostra espalhados pelo chao os pedac;os e fragmentos que restam dos bonecos vitimas da alucinac;ao de sua espada. E entao D. Quix~te diz com esse nobre sossego e habitual solenidade que sempre empregaram em seu falar as horn ens impelidos pelo Destino:
Agor~ acabo de crer 0 que muil~s oulras vezes acreditei: queesles mgro~antes que me pcrscgllcm nada mais fazem senao me colocar as flguras como clas SaD diante dos olhos, e logo as mudam e trocam pelas que eles querem. Real e verdadeiramente. vos .dlgo, senhores que me ouvis, que a mim pareceu que tudo que aqlll se passou de falo ~e passava ao pes da letra; que Melisendra era Melisendra; D. Galfelros, D. Gaifeiros; Marsilio, Marsilio e Carlos, Magno, ~arlos ~ag~o; pOr isso me subiu a calera e para ,c~mpnr com mmha obngaao de c~v,aleir? andante, quiS dar ajuda e ~av?r, e com :ste, born propoSlto flz 0 que vistes; se tudo me. sam as avessas nao e .culpa minha, mas dos malvados que me pelseg~em; e com }~do ISto deste meu erro, embora nao tenha pr?cedldo com ma!JCla, qif:ero eu mesma condenar-me nas custas: veJa .Mestre Pedro quanto' quer pelos bonecos estragados que me proponho a pagar-Ihe logo em boa e corrente moeda c~stelhana.
As vezes estacor-
Na pobre cozinha da estalagem castelhana soprou aquela noite 0 vendaval cia fantasmagoria, e 0 mundo imaginario do teatrinho do Mestre Pedro, com seu poder de sucC;ao, absorvcu a alma impondenivel, instavel de D. Quixote, je-Ia passar da sala ao cendrio. Isto quer dizer 'que D. Quixotc dcixou dc scr espectador, publico, e se transformou elc mCsmo cm pcrsonagem da obra teatral, com a que, ao lOtl/a-la como realidade, destruiu sua fantasmagoria. Pais notcm voces que, a seu juizo, a realidade ali, no cen{lrio, cra quc os mouros seguiam, com efeilO, a autentico D. Gaifciros c 'a autentica Melisendra, e foram as nigromanlcs qucm converteram esses seres reais em ridiculos bonccos. E I{l vai clc atnis da magica cauda branca do cavalinho dc papclao onde galopa Melisendra Melisendra e sonho; la vai a alma incandescente de D. Quixote e atras de sua alma vai seu corpa, e com seu corpo seu brac;o, e com seu brac;o 0 heroismo absurdo, mas autentico e talhante, de sua espadal1. Janet e outros psicopatologistas franceses POllCO perspicazes, como, salvas algumas excec;6es - Bergson, par exemplo - 0 fmam os pens adores franceses da se gunda metade do seculo XIX, e cuja influencia pesou penosamente sobre a infortunio intelectual de nossos paises, diziam desta loucura que consistia na perda do sentido do real. 0 que me parece uma perfeita tolice. E bem claro que a verdade e 0 inverso: essas carencias ou anomalias mentais revelam uma perda do sentido do
11. Vcr Meditaciones det Quijote, 1914. Medita~ao primeira, Cap. 9: <,0 tcatrinho de mestre Pedro. (Publicado na cotc~ao Selccla cia Revista de Occidente, com Comentarios de Julian Marias.)
. Aqui vemos,' senhores, funcionando a primeira duahdade de quepartimos - sala e palco cenico, separados pela boca do: cemirio, que e fronteira de dois mundos _ a da sala on de conservamos, ao fim de tudo, a realidade que somos, e 0 mundo imagimirio, fantasmagorico da cena. Este ambiente imagimirio, magico do cenario' onde se cria a irrealidade e uma atmosfera mais tenue que a da sala. Ha diferente densidade e pressao de realidade em urn e outro espac;o e, como acontece na atmosfera efetiva que res pi ramos, essa diferenc;a de pressao produz uma corrente de ar que vai do lugarde maior para 0 de menor pressao. A boca do palco aspira a realidade do
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irreal. como se brincadeira nao fosse tomada como ?rincadeira, mas a serio, e toclos nos conhecemos pessoas lllcapazes dessa agilidadc minima, as quais nao conseguem nunca perceber a brincadeira como brincadeira. Agora aparece a diferenc;a substantiva entre Circo e Conida de touros, de urn lado, e Teatro, de outro. 0 Circo e a Tourada nao sao fantasmagorias, mas realidades. No Circo so ha urn elemento teatral, so ha urn ator: que e, a urn tempo, urn acrobata, 0 divino clown, o prodigioso palhac;o. E e de interesse recordar de soslaio ainda que eu nao queira sequer ro<;ar a Historia do Tea~ tro, que a palhac;ada, em combinac;ao com urn rito religioso (por essas e por outras rawes eu 0 chamei de "palhac;o divino"), foi em todos os povos a origem clo Teatro. Quando a Corrida de touros, e bem claro que nela achamos 0 unico espetaculo que e propriamente espeHiculo e, nao obstante, 0 que nele se ve e realidade propriamente realidade. Nada simboliza melhor este ca~ rater da tauromaquia como a tao conhecida anedota que aconteceu por volta de 1850 entre 0 mais famoso toureiro da epoca, Curro Cuchares, e 0 mais famoso ator que houve na Espa~ha, 0 romantico ator tragic,;>Isidoro Maiquez. Estava Cuchares passando pelo pior momento com ~m touro de diffcil morte, e 0 ator, por tras da barreira, lllsultava, doestava duramente 0 toureiro. Ate que em urn certo' momento, achando-se Cuchares diante do touro e .?aO_l?ng~ da barrei:~ on?e 0 ator 0 doestava, gritou-lhe: Zeno Mlquez 0 zeno Malquez, que aquf no ze muere de mentirijilla como er teatro!"*
.* _Giro coloquial, intra~u.zivel, aqUl I'lao se morre de mcntlnnha
cujo ~entido e: SiC>Miquez ou siB Maiquez, como no teatro! (N. do T.).
Vejam voces de que maneira, usando romo ponto de partida uma simples inspec;ao da estrutura espacial intema do Teatro de Dona Maria, Ollelepercebemos, portanto, a existencia de dois espac;os, de e10is 10blllos ou ambitos em func;ao urn do outro - a sala e a cena -, pudemos tomar manifesto 0 carater essencial de fantasmagoria, de criac;ao de irrealidade que e 0 Teatro. A dualidade de espac;os correspondia a dualidade de pessoas atores e publico -, e esta, por .sua vez, adqlliria seu pleno sentido na terceira dualidade funcional: os espectadores veem e os atores se fazem ver; estes sao hiperativos e aqueles hiperpassivos. Agora vemos claramente no que consiste a hiperativida de do ator e a hiperpassividade do publico. Os atores podem mover-se e clizer nas formas mais variadas tragicas, comicas, intermediarias -, mas sempre com a condic;ao imprescindivel, permanente e essencial de que nada do que fazem e dizem seja "a serio". isso que fazem e dizem; portanto, que seu fazer e dizer e irreal e, em conseqiiencia, e ficc;ao, e "brincadeira", e farsa. Conta Kierkegaard que em urn circo se produziu urn incendio. 0 palhac;o foi encarregado de avisar 0 fato ao publico, mas este acreditou que se tratava de uma palhac;ada e morreu queimado. A atividade do ator fica, pois, bem determinada: e fazer farsa; por isso 0 idiom a 0 chama farsante. Mas correlativamente, nossa passividade de publi~o consiste em recebermos dentro de nos essa farsa como tal, ou talvez dizendo mais adequadamente, em sairmos de nossa vida real e habitual para esse mundo que e farsa. Por isso afirmei ha pouco que e essencial ao Teatro fazer-nos
quer dizer, ir ao irreal. Nao existe na lfngua vodibulo para expressar esta peculiar realidade que somos, quando somos publico, espectadores do Teatro. Nao importa; inventemo-la e digamos: no teatro os atores san farsantes, enos, 0 publico, somos farseados, nos deixamos farsear.
Com isto veio a concentrar-se, a condensar-se na imensa realidade humana, riquissima, multiforme, que e a historia inteira do Teatro num so ponto, como se este fora sua viscera e raiz: a farsa. Antes de nomea-la aprendemos 0 que significava: e aquilo que antes qualifiquei como talvez a mais estranha, a mais extraordimlria aventura, a mais autenticamente magica que possa acontecer ao homein. Com efeito, na farsa 0 homem participa urn mundo irreal, fantasmagorico, ele 0 ve, 0 ouve, vive nele, mas, bem entendido, como tal irrealidade, como tal fantasmagoria.
em certos momentos, "brincadeira", farsa; que par isso Teatro existe e que 0 fato de haver Teatro nao e pura casualidade e eventual acidente. A farsa, viscera do Teatro, vem a ser, vamos em seguida descobri-lo, uma das visceras de que vive nossa vida, e nisso que e como que dimensao radic.al de nossa vida cOllsiste a realidade e a substancia ultima do Teatro, seu scr c sua verdade.
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o tempo, que acaba sempre por ser campeao em todas as corridas ape, venceu-me neste cross-country e nao me deixou, desgrac;adamente, desenvolver com 0 devido decoro esta parte da Ideia do Teatro, que e precisamente a decisiva.
Nao e enigmatico, nao e por isso mesmo atraente, apaixonante, este estranhissimo fato de que a farsa resulte ser consubstancial a vida humana, portanto, que, alem de suas outras necessidades ineludiveis, necessite 0 homem ser farseado e para isso ser farsante? Porque, nao ha duvida, esta e a causa de que 0 Teatro exista. Todo 0 resto de nossa vida e 0 que ha de mais contrario a farsa que se possa imaginar - e, con stante, esmagadora "seriedade". Somos vida, nossa vida, cada qual a sua13. Mas isso que somos - a vida - nao fomos nos quem no-la demos, mas ja nos encontramos submersos nela justamente
13. Repito aqui com umas ou outras variantes as f6nnulas que tantas ve zes empreguei para definir, ista e, para jazer veT 0 fenomcno radical em que a vida humana consiste. Estas expressoes DaO sao ocorrencias verbais; sao termos tecnicos com seu ar de empregar as giros mais vulgares, habituais da linguagem coloquial. Que ista seja assim, que seja preciso recorrer ao falar cotidiano e DaO exista na hiswria intcira da filosofia uma terminologia adequada para falar formalmente do fenomeno vital nao e tampouco casualidade, embora seja uma vergonha para 0 passado Iilo90ico. Mas 0 que sena frivolo e querer variar em cada expo3i<;ao desta doutrina fundamental as expressoes, como se se tratasse meramente de emitir figuras ret6ricas.
de
Pois bern, e urn fato que a farsa existe desde que existe 0 homem. Ao que chamamos propriamente teatro precederam, em longos e profundos milenios da primitiva Humanidade, outras form as da farsa que podemos cons iderar como 0 pre-teatro ou a pre-historia do Teatro. Nao podemos nos par agora a descreve-las12. Se aludi a elas e simplesmente para poder sacar esta conseqiiencia:' sendo a farsa urn dos fatos mais permanentes da Historia, isto quer dizer que a farsa e 'uma dimensao constitutiva, essencial da vida humana, que e, nem mais nem menos, urn lado imprescindivel de nossa existencia. Portanto, que a vida humana nao e, nem pode ser "exclusivamente" seriedade, que a vida humana e e tern que ser, por vezes,
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quando nos encontramos cooosco mesmos. Viver e achar-se de repente tendo que ser, que existir em urn orbe imprevisto que e 0 mundo, onde mundo significa sempre "este mundo de agora". Em "este mllndo de agora" podemos com certa dose de liberdade ir e vir, mas nao nos e dado escolher previamente 0 mundo em que vamos viver. Este nos e imposto com sua figura e componentes determinados e inexoraveis, e em vista de como ele e precisamos arranjar-oos para ser, para existir, para viver. Por isso chamei eu em meu primeiro livro (em 1914) a este mundo a circunstancia. Vida e ter que ser, queiramos ou nao, em vista de algumas circunstancias determinadas. Esta vida, como disse, nos foi dada, posto que nao no-la demos nos mesmos, mas que nos encontram05 dentro dela e com ela - assim, de subito, sem saber como nem por que nem para que. Ela nos foi dada, porem oao nos foi dad a ja feita, senao que temos de faze-la, no-la fazer nos mesmos, cada qual a sua. Instante apos instante nos vemos obrigados a fazer algo para subsistir. A vida e algo que niio esta ai sem mais,como uma coisa, mas e sempre algo que e preciso fazer, uma tarefa, urn geruodivo, urn faciendum. E todavia, se nos fosse dado ja resolvido 0 que temos de f<\zer em cada instante, a . tarefa que e viver seria menos peoosa. Mas nao ha tal coisa;em cada instante se abrem diante de nos diversas possibilidades de ac;ao e nao temos outro remedio senao escolher uma, senao decidir neste instante 0 que vamos fazer no instante seguinte sob nossaexclusiva e intransferivel responsabilidade. Ao sair daqui deotro de alguns minutos, a porta de 0 Seculo, cada urn de voces, queira 48 ou nao, tera que decidir por sie perante si a direc;ao em
que danl na rua 0 primeiro passo. Mas como diz 0 vetu5tissimo livro indiano, "onde quer que 0 homem ponha I) pe, pisa sempre cern sendas". Todo ponto do espac;o e todo instante de tempo e para 0 homem encruzilhada, e nao saber bem 0 que fazer. Por isso mesmo, ter que decidir-se e, para tanto, escolher. Mas porque a vida e perplexidade e e ter que escolher nosso fazer, isso nos obriga a compreender, isto e, a tomar de fato & nosso cargo a circunstancia. Dai nascem os saberes todos - a ciencia, a filosofia, a "experiencia de vida", 0 saber vital que costumamos chamar prudencia e sagesse. Estamos consign ados a esta circunstancia, somos prisioneiros dela. A vida e prisao na realidade circunstancial. 0 homem pode privar-se da vida, mas se vive - repito - nao pode escolher 0 mundo em que vive. Este e sempre 0 do aqui e agora. Para sustentar-nos nele temos que estar fazendo sempre algo. Dai provem os inumeraveis fazeres do homem. Porque a vida, senhores, da muito que fazer. E assim 0 hornem faz sua comida, faz seu oficio, faz casas, faz visitas de medico, faz negocios, faz ciencia, faz paciencia, isto e, espera, que e "fazer tempo"; faz politica, faz obras de caridade, faz. .. que faz e se faz ... ilus6es. A vida e urn onimodo fazer. E todo ele em luta com as circunstancias e porque esta prisioneiro em urn mundo que nao p6deescolher. Este carater que tudo quanto nos rodeia tern; 0 de ser-nos imposto, queiramos ou nao, e 0 que chamamos "realidade". Estamos condenados a prisao perpetua na realidade ou mundo. Por isso e a vida tao seria, tao grave, quer dizer, tern peso, nos pesa a responsabilidade inalienavel que, de nosso ser, de nosso fazer, temos constantemente.
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Por isso quando alguem perguntou a Baudelaire onde preferia viver, com um gcsto de dandismo displicente, que era, como e sabido, SU'I religiao, respondeu: "Em qualquer parte, em qualqucr parte, contanto que seja fora do mundo!" Com isso dava Baudelaire a entender 0 impossive!. o Destino tern 0 homem irremediavelmente encadeado a realidade e luta sem tregua com ela. A evasao e impossive!. 0 fato de cada urn ter que fazer sua propria vida e decidir em cada illstante com sua exclusiva responsabilidade 0 que vai fazer e como se tivesse de sustentc'i-la a pulso. Por isso a vida esta cheia de pesares, A uma criatura assim, 0 Homem, cuja condi<;:aoe tarefa, esfor<;:o, seriedade, responsabilidade, fadiga e pesar, e inescusavelmente necessario algum descanso. Descanso de que? Ah, esta claro! De que ha de ser? De viver ou, 0 que e igual, de "estar na realidade", naufrago nela. Isto e 0 que ironicamente Baudelaire queria dizer: que 0 homem necessita de quando em quando evadir-se do mundo da realidade, que necessita escapar. Dissemos que isto e impossivel em urn sentido absoluto. Porem nao sera, em algum sentido menos absoluto, possivel? Mas para ir-se em vida deste mundo seria mister que houvesse outro15. E se esse outro mundo e outra realidade por muito outra que seja, sera realidade, contorno im: posto, circunstancia premente. Para que haja outro mundo ao qual valesse a pena ir-se seria preciso, antes de tudo, que esse outro mundo nao fosse real, que fosse urn mundo irreal. Entao estar nele, ser nele equivaleria para a pessoa a converter-se ela mesma em irrealidade. Isso sim
de
seria efetivamente suspender a vida, deixar par urn momento de viver, descansar do peso da existencia, sentir-se aereo, etereo, sem gravidade, invulneravel, irresponsavel, in-existente. Por isso, senhores, a vida - 0 Homem - se esfor<;:ousempre em acrescentar a todos os faze res impostos pela realidade 0 mais estranho e surpreendellte fazel', urn fazer, uma ocupa<;:aoque consiste precisamente em deixar de fazer tudo 0 mais que fazemos seriamente. Este fazer, esta ocupa<;:ao que nos liberta das demais e .. , jogar. Enquanto jogamos nao fazemos nada - entende-se, nao fazemos nada a serio. 0 jogo e a mais pura invell<;:aodo homem; todas as demais vem, mais ou menos, impostas e preformadas pela realidade. Porem as regras de urn jogo - e nao ha jogo sem regras - criam urn mundo que nao existe. E as regras sac pura inven<;:aohumana. Deus fez 0 mundo, este mundo; bern, mas 0 homem fez 0 xadrez - 0 xadrez e todos os demais jogos. 0 homem fez, faz. " 0 outro mundo, 0 verdadeiramente outro, 0 que nao existe, 0 mundo que e brincadeira e farsa.
o jogo, pois, e a arte ou tecnica que 0 homem possui para suspender virtualmente sua escravidao dentro da realidade, para evadir-se, escapar, trazer-se a si mesmo deste mundo em que vive para outro irreal. Este trazer-se da vida real para uma vida irreal imaginaria, fantasmagorica e dis-trair-se*. 0 jogo e distra<;:ao. 0 homem necessita descansar de seu viver e para isso por-se em contato, voltar-se para ou verter-se em uma ultravida. Esta volta ou versiio de nosso ser para 0 ultravital ou irreal e a diversiio. A distra<;:ao, a diversao e algo con-
15.
preCISO
Dutro Mundo cia religiao nao vem ao caso, porque para ir~se a ant~s de tudo morrer e aqui se trata de transmigrar em vida.
substancial a vida humana, nao e urn acidente, nao e algo de que se possa prescindir. E nao e frfvolo, senhores, aquele que se diverte, senao aquele que 'cre que nab ha que divertir-se. 0 que, corn cfeito, nao tern sentido e querer fazer da vida toda puro divcrtimento e distra<;ao, porque entao nao temos de quc nos divertir, de que nos distrair. Notem voces que a ideia de diversao sup6edois termos: um terminus a quo 'e urn terminus ad quem aquilo de que nos divertirnos e aquilo com que nos' divertirnos16. Eis por que a diversao e uma das grandes dimens6es da cultura. E nao pode surpreender-nos que 0 maior criador e disciplinador de cultura que jamais existiu, Platao ateniense, ate 0 fim de seus dias se tenha entretido fazendo jogos de p,alavras com 0 vocabulo grego que significa cultura "a~oEia (paidefa) e aquele que significa jogb, brincadeira, farsa "alola (paidia) e nos tenha dito, em ironico exagero, nem mais nem menos, que a vida humana e jogo e, literalmente, haja acrescentado "que isso que ela tern de jogo e 0 melhor que tem"17. Nao e de estranhar que os romanos vissem no jogo urn deus a quem chamaram sem mais "Jogo", Lusus, a quem fizeram fiIho de Baco e que consideravam - vejam voces que casualidade! - fundador da ra<;a lusitana.
horas as mulheres de nosso tempo anulam sua feminiliclade - diga-se para c1esonra de n6s, homens. A forma mais perfeita da evasao ao outro mundo sac as belas-artes, e se digo que sac a forma mais perfeita de jogo evasivo nao e por nenhuma homenagem convencional, nao e porque eu sinta 0 que faz muitos anos chamei de "beatice cultural" nem esteja disposto a por-me de joelhos diante das belas-artes por mais artes que sejam ou par mais belas que pare<;am, mas porque conseguem, com efeito, libertar-nos desta vida mais eficazmente que nenhuma outra coisa. Enquanto estamos lendo urn adminl.vel romance podem continuar funcionando os mecanismos de nosso corpo, porem isso que chamamos "nossa vida" fica literal e radicalmente suspenso. Sentimo-nos dis-trafdos de nosso mundo e transplant ados ao mundb imaginarib do romance. Pois bern, 0 que constitui 0 cimo desses metodos de evasao que saoas belas-artes, aquilo quemais completamente permitiu ao Homem escapar de seu penoso destino, foi 0 Teatro em suas epocas de "ser em forma" - quando, por coincidir com sua sensiblHdaci.e,ator, cena e poeta conseguiam ser plenamente arrebatados pela grande fantasmagoria do cenario. Em-"nosso tempo islo nao acontece; nem a cena, nem 0 ator, nem 0 autor se acham a altura de nossos nervos, e a magica metamorfose, a prodigiosa transfigura<;ao nao costumam produzir-sel8. Nosso Teatro atual nao esta a la page de nossa sensibilidade e e a rufna do Teatro. Mas nessas epocas a que no principio me referi, gera<;6es e gera<;6es de homens
o jogo, arte ou tecnica da diversao, ao ser todo urn lade da cultura humana, criou inumeraveis formas de distrair-se e essas form as estao hierarquizadas das menos as mais perfeitas. A forma menos perfeita e 0 jogo de baralho; 0 bridge, por exemplo, onde durante horas e
16.
caza y {os
Ver Prolago a Veinte anos de caza mayor, t01'OSl publicado nesta colet;ao.] [803, 4].
[Incluido
no volume
La
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17.
Leis
lograram durante muitas horas de sua vida, merce ao divino escapismo que 6 a farsa, a suprema aspira<;ao do ser humano: lograram ser felizes. Eis aqui, senhores, como este simples esquema que representa 0 espa<;ointerior do Teatro de Dona Maria nos levou pela mao para descobrir em atroz abreviatura, mas com plena radicalidade, a Id6ia do Teatro; nos permitiu definir essa estranhissima realidade que existe no Universo e que 6 a farsa, ou seja, a realiza<;ao da irrealidade; nos pas na pista para averiguarmos por que 0 homem necessita ser farseado e, por isso, necessita ser farsante. o homem ator se transfigura em Hamlet, 0 homem espectador se metamorfoseia em convivente com Hamlet, assiste a vida deste - ele tamb6m, pois, 0 publico, e urn farsante, sai de seu ser habitual para urn ser excepcional e imagimirio e participa em urn mundoque nao existe, em urn Ultramundo; e nesse sentido nao so a cena, mas tambem a sala e 0 Teatro inteiro resultam ser fantasmagoria, Ultravida. Senhores: em fins do seculo passado havia na Universidade de Madri urn pobre professor de Quimica de quem os estudantes costumavam fazer tro<;a. No alto da mesa de sua ca.tedra preparava experimentos e com ingenua solenidade anunciava, por exemplo, que ao verter sobre urn Hquido certo reagente produzir-se-ia urn precipita do azul. Isto acontecia e entao os alunos, com a crueldade insepanivel da adolescencia, prorrompiam em estrondosos aplausos, como se 0 professor fosse urn toureiro que acabava de matar 0 touro. Porem 0 professor, humildemente, inclinando-se ante os aplausos, dizia aos estu-
dantes:"A gente!"
Similarmente, se a benevolencia habitual dos senhores os convida agora a aplaudir, eu lhes rogo que aplaudam ao esquema, ao esquema!, que e quem propriamente projetou sobre voces esta conferencia demasiado longa.
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Intentemos tomar contato com essa pre-hist6ria do Teatro. Ela nos tornara manifesto em que extrema medida esta radicada no homem a necessidade de sua maravi-. lhosa fantasm agoria. Mas temos que buscar esse contato partindo da origem mesma do Teatro. Situados nessa linha poderemos olhar primeiro para tras, para 0 pre-teatro e de ricochete sobre esse passado profundfssimo, nosso olhar se largara para 0 futuro, dirigini uma instantanea olhadela sobre 0 porvir do Teatro. (No Anexo IV)1. Sucede que, como acontece com tantas outras coisas, 0 mais antigo Teatro, propriamente dito, e 0 teatro grego. Este teatro grego e, note-se bem, todos os teatros que a hist6ria nos da a conhecer se originaram numa cerimonia ou rito religiosos. Mas a religiao grega, nisto semelhante a todas as demais religi6es antigas e mais ou menos primitivas, tem um carater radicalmente distinto, mais ainda, oposto a linha de inspira<;ao frente ao divino que parte de Zoroastro, atravessa 0 mosafsmo e culmina no islamismo e no cristianismo2. A religiao gre(Ver a Nota Preliminar.) Vma terceira linha de inspirac;ao rcligiosa que sc podcria mais apropriadamente denominar para-religiosa C a que a1can<;a sua forma mais perfeita no budismo. 1.
2.
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ga e, em um sentido formal, religiao "popular". Ela 0 e, primeiro, porque se origin a na impessoalidade coletiva dos diferentes "povos" ou "na<;6es" helenicos; segundo, porque seu conteudo tem urn caniter difuso, atmosferico, dirfamos, respirat6rio. Nao e como as outras religi6es masdeu-mosaico-cristas, uma forma de vida ares tad a e definida a parte do resto da vida, nem tolera as precis6es e rigorosas cristaliza<;6es de uma dogmatica teo16gica estabelecida por grupos particulares de sacerdotes. Nao e, pois, teologia, porem mera e ~spontanea religiao que os homens exercitam tal como contra em e dilatam a caixa toracica na opera<;ao de respirar. Penetra toda a vida deles, que nao precis a deixar de ser isso que e quando nao e especialmente "vida religiosa", para se-lo nao obstante; terceiro, porque e declarada e constitutivamente religiao de um "povo" como tal e, portanto, fun<;ao do Estado. Os deuses SaGprimariamente deuses do Estado e da coletividade e s6 atraves destes sao deuses para 0 individuo. Dai que na Grecia um movimento mistico s6 adquire carMer propriamente religioso quando 0 Estado 0 converte em institui<;ao. Assim aconteceu com 0 misticismo dionisiaco, com 0 orfismo e demais misterios; quarto: consistindo a religiao substancialmente em "culto publico", era-lhe conatural ser "festa", "festival". Este tra<;o nao Ihe e peculiar; e comum a todas as religi6es anti gas e mais ou menos primitivas. Nelas 0 ato religioso fundamental nao e a prece individual, privada e intima - a "ora<;ao" - mas a grande cerimonia coletiva de tom festival em que participam todos os membros da coletividade, uns como executantes do rito - dan<;a, canto c procissao -, os demais como assistentes e "espectadores". A esse ato de comunicar-se 0 homem com deus me-
diante a assistencia a um cerimonial coletivo religioso chama ram os gregos theoria - contempla<;ao. A theoria e, pois, 0 simile grego da ora<;ao crista. A religiao grega, portanto, e religiao do "povo", para 0 povo e pelo povo. Dai consistir ela em culto e em culto publico mais substantivamente que as religi6es da outra linha. o teatro grego nasce das dan<;as e cantos corais que se executam no culto a Dionisio, 0 deus da natureza elementar ou se se quer do elementar na natureza e especialmente do vinho.
Conforme passou 0 tempo e foi assumindo uma forma regular dramatica, 0 campo de seus temas foi se estendendo alem dos limites da mitologia baquica ou dionisiaca. Com isso seu sentido religioso foi minguando gradualmente e pouco a pouco foi sendo composto desde urn ponto de vista cada vez mais puramente humano. Mas apesar de todas estas mudanas, sua conexao externa com 0 cuI to de Baco-Dionisio conservou-se intacta durante toda sua historia. Desde 0 comeo ate seu desaparecimento, as representa6es dramaticas permaneceram adstritas as gran des festas dionisiacas. .. Nao foram, pois, nunca uma diversao comum da vida cotidiana. Durante a maior parte do ana tinham os atenienses de contentar-se com outras formas de entretenimento. Unicamente quando voltavam as festas anuais de Dionisio podiam satisfazer sua paixao pela cena. Em tal ocasiao, sua veemencia e entusiasmo cresci am proporcionalmente. A cidade inteira tomava ferias e se entregava ao prazer e ao culto do deus-vivo. Abandonavam-se os negocios, fechavam-se os tribunais, a prisao pOI' dividas era proibida durante os festivais, ate se libertavam dos carceres os presos, a Hm de permitir-Ihes participar na festividade comum. .. Varios dias sucessivos eram dedicados ao drama. Tragedias e comedias seguiam-se uma atras da outra sem interrupao desde a manha ate a noite. Em meio destes deleites, 0 aspecto religioso da execuao, como cerimonia em honra de Dionisio, estabelecida em obediencia a ordem direta do oraculo, nao era nunca esquecida. Os espectadores chegavam com grinaldas em tome da cabea, como para uma assembleia religiosa. A estiitua de Dionisio era
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lcvada ao teatro e colocada em frente ao cenario de modo que 0 deus pudesse desfrutar do espetaculo juntamente cOrn seus devotos. Os principais assentos do teatro eram ocupados quase sempre por sacerdotes e 0 assento central entre todos estava reservado ao sacerdote de Dionisio. A execuyao das peyas era precedida do sacrificio de uma vitima ao deus do festival. Os poetas que escreviam as obras, os coregas que as pagavam e as atores e cantores que as executavam eram considerados como ministros da religiao e suas pessoas, sagradas e inviolaveis. 0 teatro mesmo tinha a santidade de urn templo divino. Toda forma de ultraje ali cometida era tratada nao meramente como urn delito contra as leis ordinarias, mas como urn ato sacrilego que era condenado com a correspondente severidade. 0 processo jtiridico comum nao parecia suficiente, e estes delinqiientes eram submetidos a urn processo excepcional ante uma reuniiio muito especial da Assembleia. Conta-se que em uma ocasiao urn certo Ctesicles foi condenado a m rtc apenas por haver surrado urn inimigo pessoal durante a procissao. 0 simples fato de se arrancar urn homem do assento ocupado por engano era materia de sacrilegio punivel com a morte3.
Resguarderno-nos bern da estranhfssirna rnistura de elementos dfspares que este enorrne fato nos apresenta juntos, como desafiando-nos a que intenternos descobrir su'\ raiz s r t'i, 0 principio que os liga e faz de sua ant aonica pluralidaclc uma unidade organica. Porque af achamos um estaclo de profunda e patetica exalta<;ao religiosa c1estacando, como de urn fundo de que emana, sobre urn festival coletivo e multitudinario, consistente em folguedo e orgia, e inseparavelmente unidos a esses dais ladas do gigantesco fato estes outros dois: uma diversao publica e uma das cria<;oes da mais pura e elevada arte, da mais transcendente poesia que a Humanidade logrou. Nos que ha quarenta anos analisamos tenazmente a realidade radical que e a vida humana, estamos acostumados aver que toda concre<;ao sua, to do fato vital ou vivente tern
3. A. E. HAIG, The Cambridge, \907, pp. 1-2. Attic Theatre, 3. ad., revista por A. N. Pickard.
lados diversas4 Isso nos irnpoe urn modo de pensar com peculiar giro dialetico, que nos obriga sempre a dizer "por um lado ... ", "por outro lado ... " A atitude religiosa que torna presente ao homern nada menos que 0 divino, a orgia que pareceria a primeira vista tudo quanta h:i de mais contrario a ela, a diversao de ordinario considerada como essencialmente frfvola, e as belas-artes - poesia, musica, dan<;a e pantomima que valem como meras gra<;asde equfvoca substancia deritro da vida humana, essas quatro coisas das mais divers as tern que se transformar para nos em uma e mesma coisa se queremos de verdade entender 0 fato unitario em que as vemos surgir. Ante uma situa<;ao assim 0 pensador nao achamos outro nome rnenos indecoroso para designar seu offcio e opera<;ao - aparece como urn prestidigitador e ilusionista que arrega<;a as mangas e diz ao pllblico: "Senhores, estao vendo essas quatro coisas disti~tas e mesmo opostas, cuIto, orgia, diversao e arte? Pois eu vou, com alguns passes de mao, converte-Ias em uma so e mesma caisa!" E 0 casa e que ele naa tern autro remcdia senaa tentar faze-Io, parque nissa cansiste sua arte.
Parece, pois, ineludfvel e canstitutivo da condi<;ao human a duplicar 0 mundo e opar a este um outro que gaza de atributos contrarios. Mas e claro que nao encontra dentro de si mais que a simples postula<;ao desse transmundo. Agora se trata de descobri-Io, de tamar contato com ele, de ve-lo. Como? Por quais procedimentos, meios, metodos, tecnicas? o carMer geral com que este mundo se apresenta ao homem e a habitualidade. 0 mundo em que vivemos
por certo e no qual nos encontramos e 0 "mundo habitual", 0 "ordinario". Paralelamente 0 outro mundo fica, por simples repercussao, caracterizado por ser 0 "excepcional", 0 "extraordinario". E tudo 0 que se oferece com esta fisionomia adquire ipso facto 0 grau de Ultramundo e divino. Dai que desde os tempos mais primitivos tenha 0 homem considerado que os sonhos e os estados vision arios eram, por sua relativa excepcionalidade e vies extraordinario, 0 que the revelavam esse mundo que e outro e por ser outro e superior. a homem nunea foi muito inteligente, nao 0 e todavia. Ha milenios era menos ainda. Nao sabia pensar. Em troca, soube sempre sonhar quando dormia. as sonhos for am a "ciencia" primigenia do ser humano e sua pedagogia inicial. Nos, certamente, nao possuimos ainda nenhuma ideia clara sobre 0 que e 0 sonho e isto nos convida a nao menosprezar a Humanidade primeva porque julgava que ao sonhar se the tornava presente a realidade de urn modo superior, exatamente da mesma maneira que as percep<;6es normais da vigilia the apresentavam a realidade do "mundo habitual". No sonho vemos, tocamos e ouvimos. E como se todas as ilossas faculdades de pereeber se duplicassem formando dois equipamentos, urn que funciona na vigilia e outro que opera no sonho. E assim como nos fazemos "teorias do conhecimento", os primitivos fizeram e continuam fazendo "teorias dos sonhos". Por exemplo: como ao sonhar 0 primitivo - cuja vida e menos rica de componentes e para 0 qual os familiares tern mais existencia - ve os seus mortos, estes adquirem por. isso mesmo urn caniter divino. Nao e de estranhar que, inversamente, os Bokongos pensem que
os mortos san quem "nos dao os sonhos"". Se saltamos ate os indios norte-american os 'verificaremos que, segundo os pawnee, os sonhos nos san trazidos do mundo dos deuses no alto por certos passaros. Eles os trazem nos bieos, os depositam lei onde dormimos e voltam sem earga para as regi6es etereas6 as sonhos nao sao, pois, eseamoteados pelo homem primitivo, quero 'dizer, ele nao os converte em meros estados subjetivos. as sonhos san eoisas, realidade, mundo, san algo que "estei ai". a mesmo pensam as erian<;as. Eis urn dialogo transerito pelo melhor psieologo da infaneia que hoje existe, 0 sui<;o Jean Piaget:
Fav (8; 0) faz parte de uma classe de alunos cujo professor tern 0 excelente costume de dar a cada crianea urn "caderno de observayoes" no qual.~la anota diariamente, co;r, ou sem desenhos explicativos, urn aconiecimento observado pessoalmente fora da escola. Certa manha Fav anotou espontaneamente, como sempre: "Sonhei que 0 diabo queria mandar que me eozinhassem". Pois bern, Fav juntou a esta observayao urn desenho cuja copia anexamos: ve-se, it. esquerda, Fav em sua cama; no centro, 0 diabo, e a direita Fav em pe, em camisola de dormir, diante dele 0 diabo que vai mandar cozinha-lo. Fizeram-nos observar atentamente este desenho e fomos ver 0 proprio Fav. Seu des~nho ilustra, com efeito, e ate com certo poder, 0 realismo infantil: 0 sonho esta iunto it. cama, ante 0 adormecido que 0 contempla. Alem disso, Fav esta em earn isola de dormir, em seu sonho, como se 0 diabo o tivesse tiradn da cama. Mas 0 queFav nao compreende e a interioridade. do sonho: "- Enquanto sonhamos, onde esta 0 sonho? - Diante de nossos o/hos. - Onde? - Quando estamos na cama, diante dos o/hos. - Onde, muito perto? - Niio, no quarto." Ensinamos a Fav sua imagem em II. "- Que e isto? Sou eu.. Qual e a mais exata; esta (I) ou esta? (II). - No .sonho (assinala IT). - Isto e
5. 6. Levy-Bruhl.. W'ILSON D.
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174.
alguma coisa? - Sim. Sou eu. Eram sobrellldo me/ls olhos que haviam permanecido la dentro (assinala 1) para vel' (!) - Como estavam hi teus olhos? - ESlava luda inleito, sahrellldo meus olhos. - E 0 resto? - Estava denIm lalllbhn (na carna). Como e isso? - Estava duas vezes. Eslava em minha cama e olhava todo 0 tempo. - Com os olhos abertos ou fechados? Fechados, ;a que era dormindo." Urn instante depois Fav parece ter compreendido a interioridade do sonho. "Quando sonha mos 0 sonho esta em nos ou nos estamos no sonbo? - 0 sanho esta em nos porque somos nos que vemas 0 sanha. - Esta na cabecra ou fora dela? - Na cabet;a. - Voce me disse faz urn momenta que estava fora dela; 0 que quer dizer isla? - (Jill' 1/(/0 Sf' \'ia a sanha sabre os alhas. - Onde eSla 0 sonho'! - Diwl/e de 1I0SSaSo/hos. - Ha alguma coisa de verdade diante dos alhos') Sim. - Que coisa? - 0 sonho". Fav sabe pois. que ha algo de interior no sonho; sabe que a aparencia de eXlerioridade do sonho e devida a uma ilusao ("nao se via 0 sonha sobre os olhas") e, no entanto, admite que, para haver ilusao. e necessario que exista "de verdade" alguma coisa diante de nos. "- Voce eslava 'IIi (II) 'de verdade'? Sim, eSlava duos veus de \'erdude (I ell). --Se eu tivesse estado ali, 0 teria visto? (II) - Niio. - 0 que quer dizer isto: 'eu estava duas vezes de verdade'? - 1'01''1111' quando eu estava I'm minhll CWl1(/ eSluviI de verdude. e depoi,\. q/lundo eSlava em mell SOli//{). qllando eSltll'u COlli () diu/JO, eslm'/I lumbflll de verdude"?
dade que 0 menino esta na cama e e verclade que esta dentro do sonho, 0 qual acontece no quarto . .t islo con~radizer-se? Tanto nao 0 e que a analise cientifica do que e urn sonho tern que come<;:ar pOI' fazer essas duas afi rma<;:6es.Precisamente porque ambas sac verdade 0 son,ho urn. pro?lema. E a "coisa" sonho que e con~raditona e por IS so e para nos questao.
o que sucede e que 0 menino nao continua 0 desenvolvimento dialetico iniciado ate chegar a urn resultado estavel. Detem-se. Detem-se, primeiro, por faHa de interesse; ,s~gundo, porque a mass a de pensamentos que e necessana executar e empregar para alcan<;:ar esse resultado estavel e tal que a Humanidade em seu imenso labor c?letivo, tardou milenios para chega; a uma solu<;:ao aproxll~ada. Mas 0 processo dialetico nao terminou ainda hOle. 0 sonho continua sendo questao, quer dizer, cOlltinuamos contradizendo-nos ao falar dele. So neste selltido cabe dizer que 0 menino se contradiz - isto e, do mesmo modo que nos.
., E~ outro dialog08 h3. urn menino de sete anos que J~ a~eng~ou, ou aprendeu dos mais velhos, que os sonhos sac ureals, que "nao sac de verdade".
Pasq. (7; 6).,"- Onde esta 0 sonho enquanto se sonha, no quarto ~u em v.oce? - Em mim. - Foi feito por voce ou veio de fora. - FOt IeI/o pOI' n1lm. - Com que coisa se sonha? _ Com os olhos., - Quando voce sonha onde esta 0 sonho? _ Nos a/has. - Esta no olho au atras do olho? - No 0/110".
E urn erro diagnosticar como faz 0 proprio Piaget - esta opera<;:ao do menino como uma contradi<;:ao.Nela 0 menino vai fazendo constar, com uma precisac digna de urn fenomenologo, os varios caracteres do sonho. 0 sonho, com efeito, tern 0 carater de uma cena real. Ela e presenciada de fora dela, como os acontecimentos corporais da vida desperta. 0 sonho tern, pois, o carater de algo exterior ao sujeito. Mas ao mesmo tempo tern 0 carater de estar mais adstrito ao sujeito individual do que as cenas na vigilia. Portanto, e algo subjetivo e interior. Ambas as notas sac verdade. Portanto, e ver-
. Ainda n,ao sabe, no entanto, que os sonhos sac fant~slas. 'pOlS, para ele algo nao-subjetivo, e Ilesse sentIdo obJetIvo porem irreal. Por isso did que nao e pen-
?'
sameIito mas uma coisa, e com adminivel logica 0 reune "aos contos". E uma adrninivel ontologia 0 sonho tern urn modo de ser afim ao dos contos. Mas 0 dramatico 6 a interven<;ao dos adultos. Estes o fazem com palavras que ou saodistintas, incomuns para a crian<;a ja que ela tern de procura-Ias, criar-lhes uma significa<;ao, ou tern significa:;6es mais ou menos nao coincidentes com as da crian<;a. At6 aqui esta fez por si so 'Seu mundo .a base de suas evidencias: 6 urn mundo autentico em que cad a componente 6 0 que 6. Mas as interven<;oes adultas 0 desconjuntam e Qesprestigiam. A 'crian<;a continua crendo em suas crengas porque nao pode deixar de faze-lo: procedem Qe evidencias. Mas se ve obrigada, ao mesmo tempo, a duvidar de si e em conseqiiencia duvida do que ere sem poder deixar de erer~. Deste modo, tem de dissociar-se em uma duplafaina: de um lado,: continua organizando seu mundo a base de evidencias, mas, de outro, tem de ir adptando-o ao que lhe dizem e que nao 6 para e1a evidente. Isto tira ao mundo resultante a autenticidade, 0 torn a hibrido, composto do visto e do escutado (inautentico, in-evidente, coecus). Nao se estudou esta socializa<;ao da crian<;a que e, ao mesmo tempo, uma deforma<;ao de sua individualidade. Exemplo de inautenticidade:
Tann (8; 0). "- Donde vem os sonhos? - Quando fechamos os olhos; em vez de que isto produza noite, vemos coisas. Onde estao as coisas? - Em nenhuma parte. Niio existem, estiio nos o/hos. - Os sonhos vem de dentro ou de fora? - De fora. Quando vamos e vimos, e vemos alguma coisa, esta Sf! marca
9. 0 termino desta etapa, pita ria descoberta de que, alem
parece ser) e
0
sobre nossa testa, sobre pequenos g/6bu/os de sangue. Que sucede quando dormimos? - Vemos as coisas. - Este sonho esta na cabec,:a ou fora? - Vem de fora e quando sOllharnos isso vem da caber;a. - Onde estao as imagens quando sonhamos? - De dentro do cerebro vem para dentro dos a/has. - !-Hl algllma coisa diante dos olhos? - Niio"lO.
Estes globulos vermelhos e sua fungao de receber 0 "engrama,,~oa das coisas, isso ja'nao 6 evidente, como nao o 6 na ciencia a impressao recebida nos centros cerebrais. Iii 6 hip6tese e, ademais, sem clareza para a crian<;a... nem para nos. Mas no sonho 0 homem esta dormindo. Seria preferivel ter sonhos desperto. Isto se consegue com estupefac!entesll. 0 sonhQ desperto 6 a embriaguez. Seu estudo fenomenologico seria muito importante, porque talvez seja 0 estado mental decisivo para 0 "descobrimento do transIIlundo". , 0 bebedo sente que se arrancou do que the era a vida - pesadume. Vive agora uma vida isenta de negatividade, cheia de luz, em que tudo sorri, nem sequer sente a resistencia da mat6ria (por perda do tato perif6rico). Por isso leva tombos, nao sente a dureza e solidez da terra. Nao percebe limita<;ao alguma a vida. Tudo 6 como deve ser. E a felicidade, a beatitude. Da vida anterior conserva apenas a impressao como de algo do qual foi arrancado. Esta sensa<;ao de "assun<;ao" 6 caracteristica do extase, do "estar fora de si".
para outro mundo, com a peculiaridade de que
10. loa. IL Piag~t.
a digestao dessa primeira desilusao se preci. GO que e (q real),' h:i 0 que se ere (0 que
.
como
se.
Marea dllradora produzida por um estfmlllo. Tra<;o (N. do T.) Sabre 0 fato de os estllpefaeientes serem, talvez, 0 "invento" mais ~n;~~~~:m~~::::.n~~~~, I;eja-se meu Comelltario\ al "Ballque'te" de Platoll,
e instantaneo, sem intermissao e, neste sentido, sem caminho. E urn salto, urn pulo nao urn passar com continuidade de urn mundo ao outro -; dai a impressao de arrebatamento e dai tambem que esta realidade a que chega se the oferea sem comunicaao com a que deixa e seja formalmente outro mundo. Nao obstante, a embriaguez por si nao inclui momento algum que leve ou tenha de ver com 0 religioso e que faa desse "outro mundo" urn mundo divinal. Ter-se-ia que postular, pois, uma embriaguez, em algum sentido, religiosamente pre-dirigida - de modo que todo 0 fenomeno, com cada urn de seus momentos, fique tingido de cor ou cariz religioso.
Urn aperfeioamento destes metodos e tecnicas que revelam ao homem 0 transmundo sao as cerimonias e ritos de que consistem as religioes antigas. Porque, diferentemente do islamismo e cristianismo, essas religioes nao SaD fe, mas SaD substancialmente culto. Nao se trata nelas de recolher-se dentro de si e ali, na solidao de si mesmo, na "solidao sonora" da alma (Sao Joao da Cruz), encontrar Deus que mana em nos como uma fonte despercebida, mas se trata, inversamente, de "por-se fora de si", de deixar-se absorver por uma ,extra-realidade, por outro mundo melhor que de subito, no estado excepcional e visionario, se faz presente, logra sua epifania.
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o hornem necessita periodicamente da evasao da cotidianidade em que se sente escravo, prisioneiro de obrigaoes, regras de conduta, trabalhos forados, necessidades. 0 contnirio disto e a orgia. A simples ideia de que a tribo ou varias tribos proximas vao reunir-se urn dia, nao para trabalhar, mas precisamente para viver algumas horas de outra vida que nao e trabalho - em suma, a festa -, ~omea ja a alcooliza-Io. Depois a presenl;a dos outros, compaginados em multidao, produz 0 conhecido contagio e despersonalizaao - se a isto se acrescenta a dana, a bebida e a representaao de ritos religiosos (a dana ja 0 era por si mesma) que faz rebrotar do fundo das almas todas as emooes profundas, extraordinarias, transcendentais do patetismo mistico -, da urn resultado de ilimitada exaltaao e faz dessas horas ou dias uma forma de vida que e como ultra vida, como participaao em outra existencia superior e sublime. Isto e a festa. Isso e a theoria a que mereferi antes.
o caso da religiao dionisiacaeexcepcionalmente exemplar por sua clareza. Nela 0 Deus - Dionisio -e ao mesmo tempo, 0 metodo para chegar a cle. Como ha uma Imitar;ao de Cristo houve uma imitar;ao de Dionisio, a qual se chamou literalmente "imitaao" - 0f!-0l(J)Gl<; n:p0<; 'tOV&EOV e que consiste em "perder a cabea", frenesiar -se, enlou'quecer: I-'-a[ \lEa&al-~axy'E6El \I 12. Convem notar que na epoca chissica a religiao grega consistia em tres camadas de deuses, muito diferentes entre si como fauna divinal, que 0 homem grego trazia na alma superposta como estratos geol6gicos. Ra, para comear, os deuses e cultos dos povos vencidos pelos helenos quando do Nordeste, separando-se do tronco comum indo-europeu, desceram para a Grecia e suas ilhas. Esta religiao,a mais antiga, grosseira, rude, era a religiao que se havia estendido por toda a area da cultura egeia. Suas divindades predominantemente femininas, SaD de simbolismo ctonico. Sao deuses subterradido 12. Urn estudo mais amplo Comentario. da religiao dionisiaca encontrar-se-a no alu~
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neos, do "embaixo" ou inferno. Deuses sombrios que originariamente deviam ser os pr6prios parentes mortos. Ao serem vencidas essas naoes pelos gregos, elas ficaram ali como plebe, como 0 que Toynbee chama "proletariado interior de uma civilizaao". E e curiosa observar que, neste caso como sempre na Hist6ria, essa religiao proletaria e a que, com uns e outros acrescimos, acaba par rebrotar e impor-se sobrea religiao dos grupos aristocraticos que foram seus vencedores. . Esta e a outra camada, 0 outro Panteao, que culmina com refinamentos francamente amaneirados nos poemas homericos13. Suas divindades sac exatamente 0 con~ trario das subterraneas, infernais e necr6filas. Sao deuses celestes, siderais e fulgurais, o' sol e 0 raio. Desprezam os mortos. Em Homero, os mortos sac quase umas figuras comicas. 0 maravilhoso poeta cego acompanha com entusiasmo 0 homem enquanto vive, mas tao logo morre da-Ihe um pontape no traseiro e nao tom a a ocupar-se dele14 . I?ionisio representa uma camada intermediaria que partlClpa de ambas, que se concentra praticamente em urn s6 deus e que, por todos os conceitos, representa 0 maximo de altitude religiosa de que foram capazes os gregos. E filho de Zeusdo mais alto - e de Semele deusa da profubdeza, deusa telurica, do pais dos fene;idos. Dionisio e urn deus universal - deus da Vida, de todo renascer primaveril em planta, animal e homem,
13. Que eu qualifique Romero de amaneirado talvez surpreenda urn pOll" co e ate muito. Mas nao ha nada a fazer: ele 0. e. Como e por que se vera em meu livro El origen de La filosolia, ObTas Completas, torna IX. 14. Isto ja aparece de urn ffi?do perfeito e adquirido para sempre na Psy.c~e de ~DWI~ RH~DE, urn hvro portentoso que as grandes azernolas filologlcas, tipO Wllamowltz-Moellendorf, conseguiram desterrar e desqualificar durante anos, mas que a cada dia cobra no.va e maior refulgencia.
mas tambem deus dos mortos. Deus arnavel, delicioso, prazenteiro e festival; deus terrivel, destrutor, que acaba ele mesmoesquartejado em feroz canibalisrno*. Deus bom e deus mau. A rigor to do deus antigo tern em gerrne ambas as caras. E, com efeito, condiao do deus ser favoravel ao hornem e ser feroz com ele - ser "proverso" e ser "adverso". Dionisio e ambas as coisas de urn modo superlativo: e dellcia e e espanto. E 0 deus que regal a o hornern com visoes em que este preve 0 seu futuro15. E e ele 0 deus do frenesi e da demencia: a deus manfaeo, o deus ebrio. Dionisio e, sern d6vida, a deus mais deus que tiveram as gregos. A seu lado os olimpianos parecem "aficiu~ nados" a serern deuses. Zeus (Jupiter), Hera (Juno), Ares (Marte), Posseidon (Netuno), dir-se-ia que est50 "se fazendo de cieuses"16. Em Dionisio se rnanifesta mais clararnente do que em nenhurn outro 0 que para os gregos ..:- e nao somente para eles - e 0 atributo rnais caracterlstico dos deuses: que sac perturb antes, que nao se sabc como van cornportar-se, que nao se sabe bem que fazer com eles. Par iss9 Hesiodo os chama (}Erov IEVO~ a.l~olov", a casta perturb ante dos deuses17
0 autor utiliza 0 termo mascalismo de mascaT. (N. do T.) 15. Apolo de Delfos n~o. outorgava oraculos mediante visoes, seoao med.hlnte a interpretafao racional de certos signoo. Os interpretes, adscrito5 a seu templo, se chamaram pro/etas no sentido estrito desta palavra para 05 gregos, termo que os hebreus da Septuaginta traduziram - e traduziram mal o vocabulo hebreu nabib,* que significa uma coisa muito diversa. Quando 11 teligiao dionisiaca entrou triunff'lmente, em DeUos e Apolo teve de pactuar, introduziu.se ali a adivinhaf;ao - u.aV"CEta: por meio de visoes que a Sibila obtinha intoxicando .. e com gase.. mefiticos. VIDa das clatas que marcaram s epoca oa historia grega {oi a da entronizac;ao da Sibila cerca de 660 a.C.
Ainda em Heniclito (475 a.C.) repercute 0 efeito desla tremenda inovac;ao. * A transltiera~ao do termo hebraicO' nabi, nabUm Oll nil vi, IlflV;;m. profeta, profetas nao corresponde 11 utilizada pelo Autor no lexio. (N. do T) 16. Sornente Apo10 tern ares autentico e digno deliS. 17. HESlODO, Theogonia, verso 44.
Dionisio e a religiao dionisiaca representam a tentativa de 0 homem libertar-se da vida como preocupaao que e sua forma primaria e substantiva. 0 dionisiaco e a vida como descuido, sem cuidados, 0 abandono ao puro existir e a f'e em que algo mais alem da personalidade - a personalidade e consciencia, deliberaao, cautelosa e suspeitosa previsao, regulamentada conduta, raziio - e mais poderoso, constante e fecundo que esta leva 0 homem generosamente em seus braos, enriquece sua existencia e 0 salva. Esse algo, ultra, sobre e infra-humano sac os poderes cosmicos elementares, os mais certamente divinos. Os deuses do Olimpo sao demasiado pessoas, demasiado reflexivos, preocupados, corretos; em suma, demasiado humanos para serem radicalmente divinos. Por isso a religiao dionisiaca invadiu a Grecia com incrivel rapidez; viu-se nela a possibilidade de contato com uma realidade mais autenticamente transcendente, mais genuinamente divina. De puro superior a tudo 0 que e humane, de puro onipotente que e diante dela, 0 homem nao e por si nada. A radical nulificaao do homem e 0 sintoma de toda grande e profunda - isto e - genuina religiao. Ante esses poderes supremos nao ha nada a fazer senao abandonar-se a eles. Porem como no homem tudo toma inexoravelmente 0 carater de fazer - ate 0 nao fazer nada e o fazer suspensivo de todo fazer - e, como digo na conferencia, ate a paciencia que retem toda aao e um esperar e este e um "fazer tempo". abandonar-se sup6c toda uma serie de atividades e inclusive exige uma tecnica e urn metodo. Nao e coisa tao facil que 0 homem, constituido em urn permanente, fatigante, angustioso "estar sobre si" -' como 0 abutre esta sobre sua presa -, se solte, perca essa regulamentaao de si mesmo, essa ativi-
dade policialesca que 0 leva a vigiar sua propria conduta. Para abandonar-se e preciso deixar de "estar sobre si", e isto significa que 6 preciso "por-se fora de si", deixar de "ser si mesmo", fazer-se outro, alheio a si - alienar-se. A entrega a Dionisio e a realidade transcendente que ele simboliza e a alienaao, a loucura estatica - "a mania". Homero devia andar pel0 mar Egeu cantando seus deliciosos contos la pOl' volta de 750 antes de Cristo. Era apolfneo e expoente do que ate entao havia side 0 homem grego, embora em sua forma mais avam;ada, mais afetada, mais "fim de epoca". Cem anos mais tarde a Grecia e uma forma de vida sobremaneira distinta. Na lliada e na Odisseia cita-se algumas vezes Dionisio, mas sem precisar nada a sell respeito, sem que ele intervenha em nada. Era Dionisio um deus demasiado formidavcl para poder tratar com os olimpianos, que eram gente um pouco acanhada, demasiado "distinta" e de bonne con1lJagnie. Mas cern anos mais tarde Dionisio se impos e dominou a vida grega. A medida e ao ser razoavel que Apolo representa, ensina e ordena com gesto bel0 porem severo, Dionisio contrapos e cQnseguiu fazer triunfar sua divina loucura. Desde entao os gregos nunca mais deixaram de render culto a exalta<;ao visionaria, ao pensar maniatico. Todos, em primeiro lugar sobretudo Platao e Aristoteles, os pais inventores da logica. Quem nao tiver isto sempre em vista, quem nao 0 entender nao sabe a menor coisa sobre a que foi a Grecia. Dionisio e a visao extatica de um Ultramundo que e a verdade deste nosso mundo. E a religiao visiot11ria. POl' que Dionisio e ao mesmo tempo 0 deus e 0 metoda para chegar a ele - disse ha pouco. Com efeito,
Dionisio e 0 deus-vinho, 0 vinho como deus e 0 divino como embriaguez. 0 vinho e 0 mais ilustre estupefaciente. Ele dispoe ao culto frenetico que consiste em danc;as apaixonadas. Ha urn texto muito curioso em que Alenco, citando a Filocoro, diz: "Os antigos nem sempre praticavam 0 ditirambo; mas quando celebravam 0 cuHo se era dedicado a Dionisio, cantavam e dimc;avam, bebe~do ate a embriaguez; mas se se tratava de Apolo, com medida e com ordem"18. . Os gregos nao renunCiavam a nada. Eis aqui as duas faces da vida: ordem e desordem, seriedade e di-versao, razao e aliena9aO. Assim como esquecemos 0 que foram para 0 horn em os sonhos, seus primeiros mestres, esquecemos 0 que durante milenios foi para a Humanidade a danc;a. E isto apesar de termos a nossa vista 0 fato de que todos os povos primitivos atuais nao podem existir' sem dan,c;ar. A danc;a e todo um lado da vida para eles. E a aC;aocoletiva por excelencia em que a tribo como tal, dirfamos; a. naC;aose faz presente, se reconhece. a si mesma como realidade coletiva, refresca constantemente sua solidariedade, atua e e. O,objeto mais santo, mais sacro sensu stricto, e 0 tambor: Na Africa negra, para expressar que urn individuo e estfJ-mgeiro, que pertence a outra tribo, se diz: "Esse danc;a com outro tambor"; e em muitos lugares quem poe a mao indevidamente ou se atreve a tocar sem titulo suficiente 0 santo tambor tribal e condenado a morte. Ao europeu que haja vivido nas profundas, secretas selvas da Nigeria e d~ Congo fica sempre 0 tanta, pertinaz de inumeraveis tambores invisiveis que tocam teimosamente dias, semanas, meses sem parar. E istosigC
nifica que milh6es de homens praticam com tenacidade de obsessos, de maniac os a danc;a, como se csta fora 0 [ado da vida mais importante. E de fato 0 e, pOl'que na danc;a, mesmo sem bebida nem droga, 0 homem se csquece de si mesmo, do gravame que esua vida e, conseguindo ver 0 mundo como. outro do que e, como transmutado em feliz ultramundo, e feliz - ultravive. Por isso nao e senao mais do que natural que Dionisio seja urn deus que danc;a - danc;a freneticamente e com ele suas sacerdotisas e fieis, as menades,isto e, as loucas. Tao danc;arino e Dionisio que, segundo 0 mito, ja danc;ava no ventre de sua mae. Apolo ,e a medida, a rigorosa norma da vida, 0 "estar sobre si", a conduta severa - a conduta conforme 0 ritmo, o "ser em forma". Mas, bem entendido, tambem danc;a, No Panteao grego - salvo Jupiter e Hera, que sac os donos da casa, que sac deuses ingleses, antipaticos, a pura .respectability - todo mundo dan~a. E parte da vocaC;ao de deus ter 0 pe agil. Apolo e, por excelencia, 0 deus danc;arino - so que sua danc;a e severo e rfgido ritmo; e par isso 0 cuHo que se Ihe dedica consiste em danc;as moderadas. Est modus in rebus*, e Apolo e 0 .modus, 0 logos da vida e das coisas. . Donde resrilta que a diferenciaC;ao mais precisa e clara destas duas religi6es contrapostas - a apolfnea e a dionisfaca -. seria. distinguir duas danc;as - como no seculo XVIII se batiam a socas na Espanha os "ilustrados", influenciados pelo enciclopedismo frances, e os castic;os, submersos na estupenda plebe espanhola, pela preferencia entre estes dois bailados: 0 minuet ou a chacona.
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18.
Ateneu,
XXIV,
628a.
o culto primigenio, j.1 0 disse, e uma danc;a. Mas esta danc;a e uma pantomima em que se representa a vida do deus. Deste modo, a pr.1tica religiosa que e 0 culto tern 0 efetivo car.1ter de uma imitatio dei, de uma f\01l(J)at<; 1l:po<; 1:oy {hav. Na danc;a dionlsiaca se representa a vida, paixao, morte e ressurreic;ao de Dionisio. A festa era o dia dos defuntos - a Choe19 -, que abria 0 longo festival das Antesterias, dedicado a venerac;ao dos mortos. Urn cidadao .que figurava ser Dionisio, coroado de pampanos e folhas de videira, entrava em Atenas dentro de urn navio colocado sobre rodas. Era 0 "carro naval" de onde vem nosso Carnaval.
Inversamente, aquilo que nas cerimonias de culto os homens fazem - desde os tempos mais primitivos - e projetado sobre a lenda ou mito do deus. Porque ao ador.1-lo danc;am os horn ens e nesta danc;a ritual se identificam com 0 deus cuja vida representam, produz-se entre 0 fiel e 0 deus uma troca de atributos. Esta e a razao de que os deuses dancem. Vemos, pois, que a representac;ao da vida divina e estilizada em danc;a ao introduzir nos acontecimentos mimeticos a magia formal do ritmo, que transp6e ou transubstancia 0 ate habitual e mundano em algo superior e transcendente - como na palavra, 0 vulgar e profano dizer ao converter-se grac;as ao ritmo em verso, se torna formula m.1gica- carmen20.
19. Dia em que se libava a tmnba dos martos. " com hidromel ~gua, vinho e mel sobre 20. Not6rio e que 0 verso primigenio DaO tern intent;ao nem senti do pd. tico, parero magico ou juddieo: conjuro ou lei. Para citar apenas urn caso espanhol, basta lembrar que no periplo dt': Avieno se diz que os tartesios, isto f:., os proto-andaluzes fonnulavam suas leis em capias. Fica divertido averiguar que as primeiras leis andaluzes ja apresentavam urn som de seguidilhas.
Agora nao temos mais que dar as coisas seus nomcs para que tudo isto se combine, se unifique, se aclare e se condense. A serie de movimentos, de atos que integram a "representac;ao" mimetica chamavam os gregos de "dromenon", dedrao atuar, executar. A forma nominal deste verba e drama. Ela nos faz ver, por assim dizer, oficialmente, no rito religioso 0 pre-teatro, a pre-historia do teatro que esta nota acrescentada ao texto da conferencia quisera mostrar ao leitor. Por outra parte, a cerimonia religiosa que consistia na danc;a mimetica, 0 dromenon ou ac;ao sagrada, dizia-sc em grego orgia21, de ergon, obra ou operac;ao, atuac;ao. Orgia e, pois, 0 mesmo que drama; mais exatamente, e 0 drama visto par seu anverso religioso. POl"em, como observamos, 0 ate religioso e formalmente festival. CuilO e festa, e vice-versa. Para a Humanidade toda, incluillclo Grecia e Roma, toda festa e religiosa e a religiao culmina a fortiori em festa. Nossas festas, para dizer a verdadc, nao 0 sao quase ou 0 sac em grau muito menor. Sao festas desdeusadas, laicas, "dessacralizadas", desossadas do sustent.1culo emotivo e simbolico religioso. Sao festas profanas, isto e, profanadaso Ao tornar-se na Grecia 0 culto b.1quico relevante e dominador de todos os demais, sua festa e rito cerimonio,is, sua orgia adquiriu um valor antonom.1stico, e como linhn um car.1ter de frenesi, a orgia e 0 orgiastico carregaram- c do sentido que hoje tem para nos. Daf que 0 {Illico em portamento coletivo que permanecia no Ocidente com certo valor residual de autentica "festa" fosse 0 "Carnava!", que
21. So se usava atuaC;Qcs rituais.
0
voc<ibulo
nesta
forma
que
c do
plural
rWI"lanto:
as
era a unica festa orgiastica sobrevivente na Europa. Como lhe haviam extirpado a alma, que era 0 deus - Dionisio, Baco -, a bacanal carnavalesca foi-se atrofiando, desnutrindo~se ate morrer em nossos dias. Nos, espanhois, ainda conservamos, embora em estado de agonia, 0 unico outro residuo de festa autentica: a corrida de touros, tambem em certo sentido - que nao YOU desenvolver aqui de origem dionisiaca, Mquica, orgiastica. Nietzsche dizia com verdade sobejante que "toda festa e paganismo". A religiao crista, ao desqualificar a vida humana em conseqtiencia de ,haver descoberto urn Deus mais autenticamente Deus que os pagaos, isto e, mais radicalmente transcendente, matou para sempre 0 sentido festival da vida. A "mania" baquica, 0 frenesiorgiastico nos faz ver outro mundo - urn mundo em que tudo e positivo, saboroso, sorridente e, ao mesmo tempo, terrivel. A visao da realidade outra que e 0 mitologico, 0 divino, e infinitamente atrativa; e, literalmente, a maxima voluptU<i)sidade, porque se 0 divino e 0 mysterium tremendum, e tambem 0 mYsterium fascinans22 Mas nesse outro mundo - istoe o essencial - mesmo 0 terrivel tern gesto positive, afirmativo. Tambem nele 1.a o.mais terrivel: a morte. Mas, ai estal, na visao dionisiacado mundo, morte e vida sac indiferentes, porque se vivt<,re, por ultimo, morrer, morrer e, ao fim, ressuscitar. Dionisio e 0 deus que vive freneticamente, que morre despedac;ado e que ressuscita gloriosam'ente. E mais: na torrente do misticismo dionisiaco cbegaram aos gregos as duas ideias que eles menos tinham em seu proprio fundo etnico: a ideia da imortalidade e a idela - nada menos - de que 0 homem e de origem
22. Ver R. OTTO, La Santo, tradu~ao (Na cole~ao Seletas, 2. ed., 1965.) da Reuista de Occidente, 1925.
divina. As duas ideias menos homericas que se pode imaginar. o culto dionisiaco - 0 prirneiro culto sensu stricto "mistico" que aparece na Grecia, vindo da Tracia - e constitutivamente visionario, presenc;a de Dutro ml}ndQque e a verdade deste, revelac;ao e, portanto, fantasmagoria. A Dionisio estava consagrada a videira e seu sumo o vinho. Entendarno-nos sobre 0 que significa clara e precisamerite a expressao ''Dionisio e 0 deus do vinho". Nao. se trata de que a simples e habitual realidade intramundana "vinho" se the agregue de fora e como algo novo e distinto da ideia de urn deus, mas que 0 vinho, gerador da embriaguez e com ela da exaltac;ao, visao do futuro e sentimento de felicidade e, por tudo isto, desde logo e por si, quid divinum. Porque tudo isso - a emoc;ao do ebrio, suas vis6es e quase alueinac;ao, sua anlccipac;ao do porvir e sua ventura sem par - e justamcnlc 0 lransmundo superior e a ultravida. Apesar de que a visao dionisiaea do mundo tenha, por urn de seus lados, 0 carater de terribili,da~e, 0 .fu~do d~ alma que predomina nas baeanais, no baqmeo festival, e a alegria, a joeosidade. Alegria e 0 qu~ 0 po~re homem, cansado de sentir os pesares de sua vida, val busear na taberna mais proxima. Ali eneontra 0 "metodo" para eonsegui-Io. Este "metodo" e a intoxieac;ao' - a I'BlYj que a vinhac;a proporciona. Ali, pouco depois de comec;ar a libac;ao, sente que sua onerosa vida perde peso, se torna ligeira, agil, rapida; em suma, alacer. Alacer 6 a palavra latina de onde vem a nossa "alegria", quc significa preeisamente esses atributos. De outra parte, "alaeer" eorresponde ao vocabulo grego EA.cqOt;, - elafos -, que designa os mesmos valores: 0 sem peso, ligeiro e r<lpido.
Dai que etafos signifique 0 cervo. 0 pobre homem que se arrasta esmagado pelo grande fardo que era seu viver sai da tasca convertido no mais agil cervo - alegre. A tradi<;ao mais difundida entre os antigos - Ateneu, Plotarco, Etymotogicum magnum - sobre a origem da tragedia e comedia era que ambas tinham por origem, em ultima instfmcia, a fLi(}'l, a intoxica<;ao, a bebedeira da vindima inseparavel do culto a Dionisi023 A vide e, pais, a planta dionisiaca. Mas the sao tambem consagradas duas especies animais: 0 touro e 0 cabrito. Par isso, em sua corrida desabalada pelos bosques, junto as menades, as loucas, que a seguiam desgrenhadas, iam tambem as seres elementares, isto e, quase divinos, "demoniacos" - daimones -, que 0 mito imagina meio homens, meio cabr6es: ossatiros. E par isso tambem os celebrantes de seu culto iam disfar<;ados de semibodes, formando 0 tropel turbulento e insolento do cora satirico que se conservaria na tragedia au - segundo a mais veIha tradi<;ao etimologicga - canto dos bodes~4. De outra parte, como em tantos povos muito primitivos, ainda hoje em dia, outros fieis do deus, disfar<;ados de bois, iammugindo, isto e, fazendo a ruido - fone dos bois. Sao os bu-foes, os que bufam. Nao podemos dar urn passo nesta religiao dionisiaca sem trope<;ar com coisas e gentes do Teatro, de tal modo sao mutuamentf' dionisismo e teatralidade, medula e substancia25
23. Ver 0 melhor esludo sobre esle problema das origens: Dithyramb, Tragedy and Camedy, Cambridge, 1927, p. 104. 24. mamente 25. os atuais Nem precise problematica. PICKARD.
Agora veremos, .como a coisa mais natural do mundo, brotar desse profundo humus religioso dionisiaco, mlstico, visionaria, fantasmagorico, como sua flor mais afim: o Teatro. CuIto, festival e orgia ja estao al consubstanciados, identificados diante de nos. Falta a momenta artistico. A arte e jogo, diversao, "como se", farsa. Os etnografos perseguem cada vez mais de perto 0 problema que se Ihes apresenta quando em seus "estudos no local"26 presenciam as cerimoniais religiosos dos pavos selvagens. Porque 0 aspecto da execu<;ao e a atitud~ de executantes e espectadores tern urn estranho carater equi.. voco, muito dificil de definir adequadamente. Com efeito, nao se sabe se 0 que fazem e 0 que seu fazer implica como cren<;a e direto e sincero au e farsa. Em seu livro Homo Ludens, meu grande e admirado amigo, 0 holandes Huizin ga - recentemente falecido - diz 0 seguinte:
Apesar dessa consciencia, parcialmente efetiva, da "nao autenticidade" dos sucessos magicos e sobrenaturais, os mesmos investigadores ressaltam que isto nao deve levar a eonclusao de que todo 0 sistema religioso de priiticas rituais seja uma fraude" inventada por urn grupo ineredulo para dominar outros que sac erelltes. Esta ideia e divulgadil nao so por muitos viajantes, mas as vezes tambem, aqui e ali, pela tradi"ao dos proprios aborigenes27.
26. as estudos mais professor de Antropologia gnifica tern que ser rnui primitivos, falar, conviver recentes da etnografia a escola de Malinowski em Londres - insiste em que a investiga<;ao clno~ acentuadamente estudo no local vcr C ouvir os com eles. '
popular
de tragedio de que
su-
as
aos bull-roarers
falam
27. Paginas 36 e 37. Este notavel livro, cuja tradu(ao publlquci em rninha pequena editora de aventura, que intitulei Editorial A~ar - Lisbon 1943 -, roi em parte inspirado pOl' minhas idcias, enunciadas em cnsnios mUlto antigos, sabre a sentida despartiva e festival da vida. Em CanVCf:if.H;UCS pcssoais, Huizinga me expressou muitas vezes em que rnedida a havianl movido n ernpreen del' sua grande oLra as breves insinua~oes feitas POT' mim sobre esse tema. (0 livro citado foi 0 unico a ser publicado pcla mcncionada Etlitora.) [Trad. bras.: JOHAN HUIZINGA, Homo Ludens, Sao Paulo, Ed. PCl"spcct:iva, Co!. ESludos, n. 4, 1971.]
E importante notar que esta impressao de equivoco experimentada pelo etnografo atual em face de quase todas as atua<;6es rituais dos selvagens, e identica ao que os antigos mesmos sentiram quando presenciavam pela primeira vez ou tinham noticia da esfalfa tipica da reJigiao dionisiaca. Pouco depois de introduzir-se em Roma, com 0 nome de "bacanais", produziu-se urn escandalo. Pareceu tao estranho todo aquele comportamento aos tranquilos e comedidos cidadaos da velha tradi<;ao romana, que chegaram a temer que isto se convertesse. num perigo para 0 Estado. E como ainda entao - isto e, em 186 antes de Cristo - 0 Estado nao era para eles coisa de brincadeira, interveio 0 Senado, abriu-se urn processo que foi famosissimo, que manteve em suspenso os bons cidadaos por algum tempo e que terminou por urn decreto consular proibindo 0 culto bacanal. Nem e preCise dizer que as bacanais, apesar disso, subsistiram e acabaram por instalar-se em Roma tao f'irme e dominadoramente como se Jeclararam na Grecia28 Mas, como digo, ante as primeiras manifesta<;6es daquelas theorias, daquele culto frenetico, os romanos nao sabiam ao que ater-se e duvidavam se se tratava de uma devof:iio ou de uma diversiio. Na Grecia este equivoco era precisamente 0 valor proprio da coisa: era devo<;ao porque era di-versao (saida para outro mundo, extase) e era di-versao porque esse outro mundo, por ser outro, era divino; portanto, sua presen<;a era devof:iio - theoria. Nesse ano, 186 antes de Cristo, ao propor a questao no Senado, 0 consul Postunio disse entre outras coisas:
28. Na Grecia muitos seculos antes dera-se a mesma resisteneia a entrada cia religiao dionisiaca nos usos cia polis, e tambcm ali acabou por triunfar o mistico e alegre frenesi do deus intoxicante.
Alem do mais, ignora-se de que se trata propriamente em toda essaatuayao. Uns pens am que se trata. de uma forma de cu.l!o aos deuses, outros creem que e antes urn Jogo ou farsa e ocaSlao de lasclvia29
Demos agora
Dionisio se apresenta com uma mascara posta na mao. E 0 deus mascarado. Era a unica coisa que nos faltava para completar a realidade tea~ral,:. a mascara" 0 disfarce. A razao primeira pela qual DlOmslO traz a mascara nao oferece nenhuma duvida. E urn caso particular da "lei" historica antes formulada: 0 que os homens, <:1doradores de urn deus, fazem ao adora-Io, reatlia sohre 0 deus, projeta-se em sua figura mitica e plastica. Os que executavam 0 culto de Dionisio se mascaravam. Mas isto nos obriga a averiguar 0 que e a ma.cara, qual e a origem e em que consiste ~ realicJade huma.na que ela e; em suma, por que no Umverso ha essa COI. a que e a mascara. E entao nos deparamos com este outro dado surpreendente dentre os nao menos surpreendentes que ne~ta pre-historia do Teatro ja encontramos, a saber: que a mascara e um dos inventos mais antigos da Humanidade, como vimos que 0 for am 0 estupefaciente, a dan<;a e a pan tomima. A primeira apari<;ao do homem algo delineada que chegou a nos - a cultura paleolitica - ja no-Io apresenta
29. Coeterum quae res sit ignorare: alios dcorum aliquot CUIIUn'l, l\.lio~ concessum ludum et lascivian credere. Tito Livio, Jivro 39, XV. J)clo vl~lo aclorava-se a uma deusa Simula ou Stimula (luvenal II, 5). Salilo AgOSlinho diz que se chamava assim porque estimulava, quer diz~r, inlOx.~cavl~. Dt~ C,iu. Dei VI 11 e 16. Sem duvida se trata de Semele, rnae de DLOn{sIO (Baco) i veja-se MAC ROB 10, Saturnalia, I, 12, e OVIDIO, 1"".1'I0of, VI, 65.
usando mascara30 ~ esta, pois, irma e coetanea primeiro machado de silex, da pedra sem polimento.
do
Recordemos 0 que foi dito quase no come<;o deste anexo. 0 homem fez desde logo a experiencia radical que sobre a realidade de sua vida the cabe fazer: descobrir que e uma realidade limitada por todos os lados, em todas as dire<;6es e, portanto, de sobra impotente. 0 homem tern em seu poder algumas coisas que quer, mas isto nada faz senao acentuar tanto mais que nao tern em seu poder as melhores coisas que quer. Tal experiencia produz automaticamente a imagin'a<;ao de outra realidade, a qual pode, sem limita<;ao, ter tudo 0 que quer. A consciencia de sua propria relatividade e no horn em inseparavel da consciencia postuladora do absoluto. E entao se engendra nele 0 v~emente e equivoco afa de querer ser precisamente isso que nao e: 0 absoluto; participar dessa outra superior realidade, conseguir traze-Ia para a sua realidade carente e limitada, procurar que 0 onipotente colabore em sua nativa impotencia. Esta dualidade e contraste - impotencia-onipotencia - vai acompanhar 0 homem to do ao longo da historia, assumindo em cada etapa figura diferente. 0 perfil de uma e outra varia segundo os tempos, porque sendo a impotencia uma experiencia que 0 homem faz, cumpre entender que, como todas as experiencias, ele a vai fazendo; portanto, que nao fica nunca encerrada, conclusa, que se modifica, corrige, integra. E nao s6 porque se descobre hoje uma nova limita<;ao que ontem passou desperce30. Faz ja muito5 anos que Cartailhac e 0 Abade Brenil 0 presumiram: Le masque devait etre conon par nos artistes paleolithiques e awsi la clanse masque . La Caverna de San/iI/ana' pres San/ander, Monaco, 1906, pp. 142-43. Posteriormente esta antecipa~ao nada fez senao confirmar-se plenamente.
bida nem, vice-versa, porque se retifica hoje uma Vlsao erronea que se teve ontem, mas porque 0 homem ~onsegue ampliar suas potencialidades de sorte que hOJe !he sao possiveis coisas que ontem estav~m. na_esfera ?o. Impossive!. 18to traz consigo que a hmlta<;ao ~u flmtude constitutiva do homem nao e uma qualquer, nao se parece em nada com as demais finitudes que existem no Universo, mas que tern 0 paradox~l ~ in.9ui~~o.c~r:iter de ~er uma finitude indefinida, mas hmlta<;ao Ihmltavel ou el~stica a qual nao e possivel marcar ,termos absolut~s. Nmguem pode dizer de que 0 homem e, em absoluto, mcapaz, nem correlativamente de que seni capaz. Cabe somente delinear em cada instante a fronteira momentanea entre sua impotencia real e a: onipotencia que imagina. Ao dizer isto vem a mente, irremediavelmente, que Auguste Comte caracterizava a condi<;ao humana como constitulda por uma fatalite modifi.able, conceito. graciosamcnt contraditorio e que promucmdo com a solemdadc UlU pouco burocratica com que devia pronuncia-Io 0 proprio Comte tornava-se comico. Comico. mas veridicol
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A figura concreta da impotencia e sua contrapartida que e a onipotencia depende em cada etapa de com? funcione naquele momento 0 pensamento humano au, dlto cm outros termos, de qual seja seu estado "16gico". Pretendeu-se que 0 homem primitivo era i1ogico32; Isto tern toda a aparencia de ser uma tolice que se revelou como tal
31. Tambem nao teria feito nada mal ao existencialismo~ ~c t()m~:lse nesta forma a finitude constitutiva do Homem, com a qual tena cOlucguldo tambem aqui eludir 0 melodrama. 32~ t a tese de Levy-Bruhl que, inconcebivelmentc, arrrutou quo.l'IC ~odo o mundo menDs, esta claro, Bergson, que a tritura elegnntcmcnt~,. Olno quem naD faz nada. Ver Les deux SOUTces de la morale et de La rd'llaDrI. Sobre 0 tema 0 leitor encontrani urn estudo sistematico em um cnp'lulo Mundo e pensamento ffiagicos, de meu livro Epilogo ...
quando, como acontece hoje, 0 intento de construir de verdade - e nao so como vago programa - a logica, ao mesmo tempo que fracassava descobria a impossibilidade do puro logicismo e 0 carMer utopico, desiderativo do pensamento chamado logico. Ao nos darmos conta de que somos muito menos logicos do que reputavamos, perde sua base de sentido encerrarmos os primitivos na especie de manicomio que era sua pressumida falta de logica. A diferen<;a entre eles e nos se faz nesta ordem meramente qU,antitativa e se estabeleceuma perfeita comunidade e homogeneidade no desenvolvimento do. pensar humane que nunca foi, e, nem sera genuinamente logico, mas que nunca careceu de "alguma" 10gica-3~. falso, pois, supor E que na mente do primitivo nao funcionava nem funciona hoje - ja que 0 primitivo persiste diante de nos - 0 principio de identidade e demais formalidades do pens amento. Mas Levy-Bruhl nao leva em conta as advertencias elementares de que 0 formalismo logico nao pode funcionar in concreto, nao pode engendrar pensamento efetivo a nao ser combinando-se com principios ontologicos, quer dizer, com hipoteses "materiais" que ocupam 0 vazio de seu formalismo. Nao confundamos 0 pensar logico com a logica. Esta nos fala dos conceitos como tais e suas rela<;6es. E uma reflexao antinatural sobre nossas ideias que Ihes tira sua fun<;ao radical,. a saber: referir-se as coisas. Nossas ideias sac urn falar das coisas, mas a logica e urn falar de nossas ideias como tais. Com isso SU$pende a transitividade da ideia e a condena a urn narcisismo intelectual,esteril como os demais. Deste modo pode identificar 0 conceito sem interven<;ao de nenhum hiJlo33. Ver mcus Apuntes sabre el pensamiento: su teurgia y su demiurgia, no fasc1culo primeiro da revista Logos" 1941, cia Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires.
tese ontologica. Seo conceito A e 0 conoeito B podem ser identicos e um carMer que neles se conhece de cara e sem mais. Mas se a coisa A e ou nao identica a coisa B e uma questao que nao depende do conceito de A e do conceito de B, mas do que se entende por ser. E 0 que se entende par ser ou realidade efetiva e sempre uma hip6te.se estranha a Iogica. A historia do pensamento e a narra<;ao da serie de experiencias ou tentativas que 0 homem fez para interpretar a realidade. Pois bern, 0 pensar primitivo e 0 pensar primigenio ou 0 primeiro pensar. Teve, pois, que fazer a primeira tentativa e. esta tinha que consistir na hipotese mais ampIa e mais simples, a qual consi~te em supor que todas as coisas que tern que ver, em qualquer sentido, urnas com as outras, sao a mesma coisa. Nao se trata, portanto, de que 0 primitivo nao proceda exatamente como nos mediante identifica<;6es, mas de que identifica ou cOl1sidera como identico tudo 0 que tern que ver entre si. Por exempIo:.o nome de uma coisa tern que ver com esta. Portanto, a coisa sera identica a seu nome ou, dito de outra forma, o nome. da coisa sera tanto a coisaquanto ela mesma. Vma coisa que se pare<;a vagamente a outra, 0 suficiente para que ao ver uma tenhamos de representar-nos a outra, sera identica a esta. Dai que a verdadeira realidade para o primitivo nao consista nos entes singulares e indepenclentes que costumamos chamar coisas, mas em enormes convolutos de fenomenos onde ficam c'onfuncliclas,isto 6, unificadas e identificadas, inumeraveis "coisas" que a nosso juizo sac distintas e mutuament6 alheias. POl' isso, nos parece que 0 primitivo confunde as coisas. Dever/amos ter bastante sutileza para agradecer~lhe 0 fato. Porque sem urn pensar primitivo que to masse sobre si a faina de
con-fundir
as coisas, reunindo-as em prim arias e amplissimas identificart6es, nao teriam podido os homens posteriores, e entre eles nos, operar diferenciart6es mais perspicazes e rigorosas. Naose repara no fato de que a confusiio tern urn sentido positivo, e uma a<;:aomental. As coisas por si nem estao confundidas nem deixam de estar. 0 confundir uma coisa com outra e uma maneira de toma-Las intelectualmente, isto e, de pensa-las. 0 pensar primigenio e positiva, constitutiva e afortunadamente o "pensar confuso". Seu resultado - a ideia que produz - nao e abstrato nem concreto propriamente, mas algo , . que devenamos ch amar " smcre t" ou " 0 .con- f un de nte" . Esses grandes convolutos de identificartaoem que, pari passu e como se nada houvesse, se transita de uma coisa a coisa, para n6s, mais distante, especie de enormes galaxias mentais, constituem 0 mundo magico em que 0 primitivo vive, se move e e. Sao os "sincretos" ou confusoes veneraveis sobre os quais se praticaram. todas as distin~6es posteriores. Entre tudo 0 que, tern que ver entre si escolh~mose separamos aqueles fenomenos que nos parecem maIS decisivamente conexos e criamos nov~s identifica~6es mais densas, que julgamos "mais reais", e desdenhamos como vagas e inoperantes as outras tenues concomitancias que bastam para a "ontologia" primigenia. Mas comprimamos nossa vaidade: as identidades de aparencia rigorosa em que nossa ciencia consiste nao sao, em derradeira instancia, mais que densificayoes progressivas do principio primigenio do pensamento que Ii a identificariio do que tern que ver com algo. Nao e preciso colocar, como Bergson contra Levy-Bruhl, 0 exemplo de "l'ltomme est un roseau pensant". t muito mais forte este: eu sou Joao - coisa que dira
de si 0 proprio Levy -; quer dizer, eu sou urn nome. 0 fundamento da identifica<;:aoe aqui e no "homem-canguru" o mesmo. Nao e a "participa<;:ao", mas 0 "ter que ver". Tudo 0 que tern que vcr e uno. Afinal de contas, a logica aristotelica nao impede 0 "Socrates e ateniense" e 0 "S6crates e filosofo". Tanto e assim que - em face do eleatismo -isso motivou, para nao "cair em contradi~ao", a distin<;:aoentre 0 ser substancial e 0 acidental, como se esta "reserva ontologica" anulasse a contradi<;:ao "logica". (Esta bem em Meyersoi:l34, masele tambem comete, com Bergson, 0 erro de que nos somas l6gicos. Esta muito bem a formula: "En somme, la forme de ses jugements ne nous a frappes que parce que nous n'etions pas d'accord avec leur contenu".35)36 Nao e senao expressar a mesma coisa de modo distinto, dizer que 0 homem passa a vida querendo ser Dutro. Mas 0 texto da conferencia nos fez ver que a unica maneira. possivel de que uma coisa seja outra e a metafora - 0 "ser como" ou quase-ser. Isto nos revela inesperadamente que 0 homem tern urn destino metaforico, que 0 homem e a metafora existencial. Disse que a experiencia radical do horn em e 0 descobrimento de sua propria limita<;:ao,da incongruencia entre o que ele quer e 0 que ele pode. Sobre essa experiencia radical, como sobre uma' area ou solo, ele faz inumeras outras. Viver e estar fazendo constantemente novas experiencias. No entanto, todas estas inumeraveis experiencias, que face a radical, podemos chamar "segundas", sao meras
34. Du cheminement de la pensee, Paris, 1931, pp. 83-84. 35. Ibidem, p. 84. [Em suma, a forma de seus julgamentos n30 nos atingiu a nao ser porque nao estavamos de acordo com seu contcudo - N. do T.] 36. (0 texto deste para-grafo consta de uma ficha; e sua c:xpressao por il'so, muito abreviada.) [Acrescentei 0 verba estar para dnr "Igum sentido a Crase - N. do T.].
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modificac;oes e variac;oes de umas poucas e as quais podemos reduzi-Ias e que merecem ser denominadas "experiencias categoriais". Entre estas, uma das mais importantes e a experiencia de morte, entende-se da alheia, porque da propria nao ha experiencia. A doutrina que alguns chamam de "existencialismo" e que hoje esta tao em moda com urn atraso de vinfe anos37, ao fazer da ideia da propria morte base de toda a filosofia, devia ter contado de forma mais substantiva com a condic;ao de que so ha duas coisas que a vida, a qual e sempre a de cada qual, em absoluto niio pode ser, que niio sao, pois, possibilidades de minha vida, que em nenhum casopodem acontecer. Essas duas coisas alheia a minha vida SaD 0 nascimento e a morte. Meu nascimento e um conto, urn mito que outros me contam, mas ao qual nao pude assistir e que e previo a realidade que chama vida. Quanto a minha morte e um conto que nem sequer podem contar~me. Donde resulta que essa estranhissima realidade que e minha vida se caracteriza por set limitada, fnita e, no entanto, por nao ter nem principio nem fim. E assim, a meu ver, que e preciso colocar 0 problema de minha propria morte, e nao como 0 coloca 0 melodramatico S:enhor Heidegger38 Mas agora nos referimos a uma efetiva e cat ego rial experiencia que 0 homem faz: a da morte do proxim039
37. S6 como sintoma da puerilidade e inconsciencia que atua em todo este reboli,:o da moda "existencialista", basta nOlar que 0 autor a quem se alribuem neste particular as principais leses - Heidegger - protestou contra o fato de que 11sua filosofia seja dada 0 nome de "existencialismo". Assim, nada mais, nada menos. Dai em diante, em toda esta tendencia topamos com uma serie de irresponsabilidades, de tolices e,_ em suma, de u:U tipico sdiaritismo, elitismo, intelectual". 38. A analise formal de sua doutrina, especialmente neste ponto sobre a morte como "a mais pr-6pria possibilidade da vida", encontra-se em meu Iivro Epi/ago ... 39. (Aqui se interrompe 0 manuscrito. Ver urn antecedente do tema iniciado En lama a Galilea, li"ao V.
o seculo e hoje, quem 0 ignora?, uma unidade de medida temporal: SaD cern anos. Significa, pois, uma quantidade de tempo e a medida desta quantidade. Para nos hoje essa quantidade esta de uma maneira muito precisa determinada, medida: medem-na com rigor os relogios, sobretudo os relogios dos observatorios astronomicos - que por isso, porque medem 0 tempo, se chamam crono-metros. o Tempo, isso que os cronometros quantificam e medem, e algo que consiste em passaro 0 tempo e, por excelencia, aquilo que passa e os cronometros contam sua passagem. E urn passar incessante, infatigavel, inexoravel: nao se detem jamais. E um fluxo. Parece um rio - 0 Tejo -, urn rio em que tudo quanta existe esta submerso. o Tempo e 0 Universo como rio. o Tempo tern tres dimensoes, diriamos, tres lados: e o Tempo presente - 0 agora, 0 hoje -, que tem as SUC:lS costas 0 passado, 0 ontem, e traz a sua frente 0 futuro, o amanha. Grac;as a isto e 0 Tempo um poder, simultaneamente, generoso e criminoso. Instalados no presente, no agora, sabemos que 0 tempo vai suscitar amanha coisas que hoje nao SaD ainda, lhes vai dar vida, existencia, rea-
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lidade. 13. estao ai, nessa misteriosa camara do futuro, preparadas, geiminando, fermentando; como que despertan do, espregui<;:ando-se do infinito sono que e 0 nada, coisas para nossa na<;:ao,para nossa familia e nossos amigos, para nos mesmos - coisas que ainda hoje nao sao, mas que serao amanha. 0 Tempo e criador e, por isso, e generoso. Generoso em sua etimologia significa 0 que engendra.
Dessa camara magica que e 0 futuro as coisas passam ao presente, ao agora, a este instante em que estamos. o presente nao e uma camara, nao e urn ambito - e, eu disse, urn instante; e, pois, urn ponto imperceptivel que e a cxistencia, a realidade das coisas e de nossa vida. Mas enquanto dissemos isto, esse presente, esse agora instantaneo em que estavamos ja passou - e se fez definitivamente passado, preter~to. As coisas futuras que conseguiram ser por urn instante deixaram ja de ser. Nos mesmos somos ja em grande parte outros, distintos do que eramos faz alguns minutos, e tinha muita razao 0 grande Descartes quando sustentava que Deus nao so cria 0 homem quando este nasce, mas tern de recria-Io de novo a cada instante para que continue sendo; de outro modo o tempo nos arrastaria ao pass ado definitivo, ao que ja nao e. 0 Tempo e terrivel, senhores: cria as coisas, lhes da ser e por isso e generoso, mas em seguida as mata, as assassina, e por isso e criminoso. Mas, como veem voces, nao podemos falar do Tempo semnos referir ao que faz com as coisas: ele as cria, as aniquila, as transport a do futuro ao presente e do presente ao passado; isto e, as faz passaro Com efeito, 0 Tempo nao seria tempo sem as coisas. Tentem voces imaginar que nao houvesse senao Tempo, que nao houvessemcoisas.
Entaoestaria ai' 0 Tempo inteiro e todo - com todo 0 futuro e todo 0 passado - digo que ja EST ARIA ai todo ele, quer dizer, que nao passaria, que nao seria Tempo. Neste instante existiria todo 0 preterito e todo 0 futuro ~ nao haveria, a rigor, diferen<;:a entre preterito e futuro, mas todo 0 infinito Tempo seria urn presente. Imaginem voces que este instante de nossa vida se dilatasse como urn elastica, se distendesse e alJarcasse tudo 0 que foi e tudo 0 que sera, todo 0 infinito. pass ado e todo 0 infinito futuro de modo que 0 ;Tempo integro estivesse aqui, presente, agora. Entao 0 Tempo ffearia quieto, 0 rio ter-se-ia congelado - nao passaria. Por isso mesmo, esse Tempo sem coisas, esse Tempo solitario nao seria Tempo, mas bem ao contrario, porque isso, existir de modo que no presente se esteja vivendo simultaneamente todo . 0 pass ado e se esteja vivendo todo 0 futuro, e precis amente 0 que se chama eternidade. Recorde-se a maravilhosa defini<;:aoque Boecio dava desta: a eternidade, diz ele, e interminabilis vitae tota simul ac perfecta possesio - e a perfeita posse!>'sao;de uma vida intermin{wel, toda ela junta e de uma vez. Deus e assim - eterno e por isso nao-,tempo, no sentido de que nao tern nada a ver com 0 Tempo. . Mas fa<;:am'[oces agora urn terceiro e ultimo esfor<;:o de imagina<;:ao: nao vouexigir-Ihes mais nada. Imaginem urn ser que tern que ver com 0 Tempo, que e temporal como no~ 0 somos, que dura mas que e imorta1. Certamente, para esse ser 0 Tempo passa como para nos, mas como supomos que e imortal, para ele nunca acabara de passaro Este 'ser tern Tempo, tern urn Tempo infinito. Nao e eterno como Deus, 'que nao tern que ver com 0 Tempo - mas e sempiterno porque tern it sua disposi<;:ao 97
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a infinitude do Tempo. Tern, como n6s, urn hoje, urn ontem e urn amanha - mas como tern a16m disso infinitos hojes, infinitos ontens e infinitos amanhas, tanto the fara urn como outro. Que the irnporta? Se nao consegue hoje fazer uma coisa the 6 igual, porque a fara urn dia dentre os infinitos dias que tern a sua disposi<;ao. A um ser assim tudo the pareceni indiferente. Que the importanl nao acertar hoje uma coisa se sabe que tern infinitos dias para retificar seu erro? Tanto se the da, pois, acertar como errar. Ademais, por que ira ele interessar-se hoje, precisamente hoje, por algo? Do mesmo modo podera interessar-se por isso dentro de dez s6culos, nao 6 certo? A este ser imortal, por conseguinte, embora seja temporal, embora dure, Ihe 6 indiferente 0 tempo - nao 0 afeta Ihe 6 indiferente tudo e dira como 0 poeta romfmtico:
que ao fim SaG pret6ritas. Mas isto equivale a dizer que para poder ser 0 Tempo aquilo que passa 6 mister que passe a algu6m - as coisas e entre elas e, sobretudo, a n6s, os homens. Este passar a algo OU algucm urn certo tempo e durar. "Vida humana" 6, pois, para come<;ar, LImacerta dLlra<;ao normal da pessoa - urn certo tempo que Ihe 6 concedido e que 6 sempre escasso. A nossa vida falta sempre tempo; por isso essencialmente 6 ... pressa. Deixemos de lado - porque, felizmente nao interessa para a viagem que agora fazemos, embora seja fundamentallssima - a terrivel questao de que mesmo esse tempo normal de existir que temos nos 6 concedido, mas nao nos 6 garantido como urn autom6vel que compramos. Estamos seguros de que, no melhor dos casos, nao poderemos viver mais que entre noventa e cento e poucos anos. Em tioca, nao estamos seguros de que nao vamos deixar de viver, de que nao podemos morrer a qualquer instante, por exemplo, neste imediato que vai chegar. Morrer? o que vem a ser morrer? 0 que vem a ser deixar de ser? Nao 0 entendemos bem e nao vamos agora averigua-Io. o certo 6 que se trata de algo terrivel, que convida a que nao se fale dele, e se se alude a ele que seja mediante eufemismos. Voces ja sabem como se da nos jornais da Colombia a noticia dos falecimentos. Diz-se: Ontem 0 Senhor Coriolano Perez "ficou indiferente". Digamos, pois, que a qualquer instante 0 homern pode ficar indiferente. Mas repito que, afortunadamente, esta abismal questao nao interessa a meu tema.
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Donde resulta este surpreendente por6m ineludivel paradoxo: que urn ser imortal tern tanto Tempo que pode impunemente perde-Io e, por isso mesmo,. 6 como se nao o tivesse e 6 como se nao fosse temporal. Pelo visto, 0 mais essencial do Tempo consiste em ser algo que se pode perder, que se pode gastar em VaG- ou vice-versa, Tempo 6 algo que 6 preciso aproveitar. Para tanto 6 necessario urn ser que tern Tempo, mas. que tern pouco e tendo pouco nao pode perde-Io e tern de aproveita-lo. Este ser, senhores, 6 0 hornem e 0 Tempo que tern 6 a dura<;ao normal de sua existencia, que 6 0 que chamamos "nossa vida" . Vemos, pois, que 0 Tempo para ser aquilo que passa necessita de coisas, de coisas que por ele passem, de coisas que primeiro SaG futuras, que logo SaG presentes,
o que interessa sim 6 que 0 homem sabe que sua vida vai durar s6 urn tempo dado - 0 qual, por conseguinte, se comp6e de partes insubstituiveis, irreparaveis.
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Ao reyes do que para aquele ser imortal, cada dia para 0 hornem e unico - e urn dia de certos determinados dias que estao a sua disposi<;iio; se 0 perde, se nao 0 aproveit~ bem e uma perda absoluta. Tern que aproveita-Io, islo e, tern que acertar no que faz cada dia, e para acertar, tern que esfon;ar-se, a fim de estar no certo - ou 0 que e igual, tern que estar na verdade. E aqui veem voces como preocupar-se para de.scobrir a verdade nao e uma curiosidade de alguns senhores que se chamam "homens de ciencia", nem .de outros, mais importantes ainda, que se chamam "lntelectuais", mas que a verdade e algo que o homem necessita inexoravelmente, porque necessita acertar para nao perder 0 pouco tempo que tern. Dai por que, antes de tudo, para nao perde-Io the e for~oso ter claramente a vista esse tempo que the e concedido e lan<;ar em partidas duplas 0 que ja gastou e 0 que ainda the resta, e para isso tern que conta-Io. ComQ temos as horas contadas, temos que conta-Ias, e para contar 0 tempo temos de medi-Io e para medi-Io temos quebuscar uma unidade de medida. Suponho que voces compreendem bem 0 que e uma unidade de medida. E uma coisa real, por exemplo, uma vara de metal que se aplica as demais. e se ve quantas vezes elas contern 0 comprimento dessa vara. Essa vara de metal e 0 metro. Para que os metros existentes em todo 0 mundo nao variem de tamanho conserva-se cuidadosamente, no Bureau de Poids et Mesures, de Paris, urn IIletro model~ ou arquetipo que e uma especie de deus moderno, 0 deus do sistema metrico decimal. Mas antes de eleger 0 metro metalico como unidade de medida para as grandezas corporais, 0 hom~m durante milenios em-
pregou como unidade de medida dos demais corpos aquilo. que esta niais ao alcance de sua mao, que e 0 seu proprio corpo; dai todas as unidades de medida tradicionais: 0 covado, a polegada, tantos ou quantos dedos, palmos, a bra<;ada, 0 pe, 0 passo1
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