Filosofia Da Caixa Preta - Vilém Flusser
Filosofia Da Caixa Preta - Vilém Flusser
Filosofia Da Caixa Preta - Vilém Flusser
Direitos autorais 1983 de Vilm Flusser. Ttulo do original alemo: Fr eine Philosophie der Fotografie. Traduo do autor. Direitos de publicao em lngua portuguesa reservados pela Editora de Humanismo, Cincia e Tecnologia Hucitec Ltda., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 04602 So Paulo, Brasil. Tel.: (011) 61-6319.
SUMRIO
Prefcio edio brasileira Glossrio para uma futura filosofia da fotografia 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A imagem A imagem tcnica O aparelho O gesto de fotografar A fotografia A distribuio da fotografia A recepo da fotografia O universo fotogrfico A necessidade de uma filosofia da fotografia
Flusser e a liberdade de pensar, ou Flusser e uma certa gerao 60 Maria Lilia Leo
PREFCIO A EDIO BRASILEIRA O presente ensaio resumo de algumas conferncias e aulas que pronunciei sobretudo na Frana e na Alemanha. A pedido da European Photography, Gttingen, foram reunidas neste pequeno livro publicado em alemo em 1983. A reao do pblico (no apenas dos fotografos, mas sobretudo do interessado em filosofia) foi dividida, porm intensa. Em consequncia polmica criada, escrevi outro ensaio Ins Universum der technischen Bilder ( Adentrando o universo das imagens tecnicas), publicado em 85, onde procuro ampliar e aprofundar as reflexes aqui apresentadas. Estas partem da hiptese segundo a qual seria possvel observar duas revolues fundamentais na estrutura cultural, tal como se apresenta, de sua origem at hoje. A primeira, que ocorreu aproximadamente em meados do segundo milnio a. C., pode ser captada sob o rtulo inveno da escrita linear e inaugura a Histria propriamente dita; a segunda, que ocorre atualmente, pode ser captada sob o rtulo inveno das imagens tcnicas e inaugura um modo de ser ainda dificilmente definvel. A hiptese admite que outras revolues podem ter ocorrido em passado mais remoto, mas sugere que elas nos escapam. Para que se preserve seu carter hipottico, o ensaio no citar trabalhos precedentes sobre temas vizinhos, nem conter bibliografia. Espera assim criar atmosfera de abertura para campo virgem. No obstante, incorporar um breve glossrio de termos explcitos e implcitos no argumento, no intuito de clarear o pensamento e provocar contra-argumentos. As definies no glossrio no se querem teses para defesas, mas hipteses para debates. A inteno que move este ensaio contribuir para um dilogo filosfico sobre o aparelho em funo do qual vive a atualidade, tomando por pretexto o tema fotografia. Submeto-o, pois, apreciao do pblico brasileiro. Faa-o com esperana e com receio. Esperana, porque, ao contrrio dos demais pblicos que me lem, sinto saber para quem estou falando; receio, por desconfiar da possibilidade de no encontrar reao crtica. Este prefcio se quer, pois, aceno aos amigos do outro lado do Atlntico e aos crticos da imprensa. Que me leiam e no me poupem. Percebo que editar este ensaio no contexto brasileiro empresa aventurosa. Quero agradecer aos que nela mergulharam, sobretudo Maria Llia Leo, por sua coragem e amizade. Que sua iniciativa contribua para o dilogo brasileiro. V. F. So Paulo, outubro 85
Aparelho: brinquedo que simula um tipo de pensamento. Aparelho fotogrfico: brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias. Autmato: aparelho que obedece a programa que se desenvolve ao acaso. Brinquedo: objeto para jogar. Cdigo: sistema de signos ordenado por regras. Conceito: elemento constitutivo de texto. Conceituao: capacidade para compor e decifrar textos. Conscincia histrica: conscincia da linearidade ( por exemplo, a causalidade). Decifrar: revelar o significado convencionado de smbolos. Entropia: tendncia a situaes cada vez mais provveis. Fotografia: imagem tipo-folheto produzida e distribuda por aparelho. Fotgrafo: pessoa que procura inserir na imagem informaes imprevistas pelo aparelho fotogrfico. Funcionrio: pessoa que brinca com aparelho e age em funo dele. Histria: traduo linearmente progressiva de idias em conceitos, ou de imagens em textos. Idia: elemento constitutivo da imagem. Idolatria: incapacidade de decifrar os significados da idia, no obstante a capacidade de l-la, portanto, adorao da imagem. Imagem: superfcie significativa na qual as idias se inter-relacionam magicamente. Imagem tcnica: imagem produzida por aparelho. Imaginao: capacidade para compor e decifrar imagens. Informao: situao pouco-provvel. Informar: produzir situaes pouco-provveis e imprimi-las em objetos. Instrumento: simulao de um rgo do corpo humano que serve ao trabalho. Jogo: atividade que tem fim em si mesma. Magia: existncia no espao-tempo do eterno retorno. Mquina: instrumento no qual a simulao passou pelo crivo da teoria. Memria: celeiro de informaes. Objeto: algo contra o qual esbarramos. Objeto cultural: objeto portador de informao impressa pelo homem. Ps-histria: processo circular que retraduz textos em imagens. Pr-histria: domnio de idias, ausncia de conceitos; ou domnio de imagens, ausncia de textos. Produo: atividade que transporta objeto da natureza para a cultura. Programa: jogo de combinao com elementos claros e distintos. Realidade: tudo contra o que esbarramos no caminho morte, portanto, aquilo que nos interessa. Redundncia: informao repetida, portanto, situao provvel. Rito: comportamento prprio da forma existencial mgica. Scanning: movimento de varredura que decifra uma situao. Setores primrio e secundrio: campos de atividades onde objetos so produzidos e informados. Setor tercirio: campo de atividade onde informaes so produzidas.
Significado: meta do signo. Signo: fenmeno cuja meta outro fenmeno. Smbolo: signo convencionado consciente ou inconscientemente. Sintoma: signo causado pelo seu significado. Situao: cena onde so significativas as relaes-entre-as-coisas e no as coisasmesmas. Sociedade industrial: sociedade onde a maioria trabalha com mquinas. Sociedade ps-industrial: sociedade onde a maioria trabalha no setor tercirio. Texto: signos da escrita em linhas. Textolatria: incapacidade de decifrar conceitos nos signos de um texto, no obstante a capacidade de l-los, portanto, adorao ao texto. Trabalho: atividade que produz e informa objetos. Traduzir: mudar de um cdigo para outro, portanto, saltar de um universo a outro. Universo: conjunto das combinaes de um cdigo, ou dos significados de um cdigo. Valor: dever-se. Vlido: algo que como deve ser.
1. A IMAGEM Imagens so superfcies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra l fora no espao e no tempo. As imagens so, portanto, resultado do esforo de se abstrair duas das quatro dimenses espcio-temporais , para que se conservem apenas as dimenses do plano. Devem sua origem capacidade de abstrao especfica que podemos chamar de imaginao. No entanto, a imaginao tem dois aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimenses dos fenmenos, de outro permite reconstituir as duas dimenses abstradas na imagem. Em outros termos: imaginao a capacidade de codificar fenmenos de quatro dimenses em smbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginao a capacidade de fazer e decifrar imagens. O fator decisivo no deciframento de imagens tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfcie e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal mtodo de deciframento produzir apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser aprofundar o significado e restituir as dimenses abstradas, deve permitir sua vista vaguear pela superfcie da imagem. Tal vaguear pela superfcie chamado scanning. O traado do scanning segue a estrutura da imagem, mas tambm impulsos no ntimo do observador. O significado decifrado por este mtodo ser, pois, resultado de sntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor. Imagens no so conjuntos de smbolos com significados inequvocos, como o so as cifras: no so denotativas. Imagens oferecem aos seus receptores um espao interpretativo: smbolos conotativos. Ao vaguear pela superfcie, o olhar vai estabelecendo relaes temporais entre os elementos da imagem: um elemento visto aps o outro. O vaguear do olhar circular: tende a voltar para contemplar elementos j vistos. Assim, o antes se torna depois, e o depois se torna o antes. O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem o eterno retorno. O olhar diacroniza a sincronicidade imaginstica por ciclos. Ao circular pela superfcie, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relaes significativas. O tempo que circula e estabelece relaes significativas muito especfico: tempo de magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece relaes causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo d significado ao nascer do sol, e este d significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens o contexto mgico das relaes reversveis. O carter mgico das imagens essencial para a compreenso das suas mensagens. Imagens so cdigos que traduzem eventos em situaes, processos em cenas. No que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. E tal poder mgico, inerente estruturao plana da imagem, domina a dialtica interna da imagem, prpria a toda mediao, e nela se manifesta de forma incomparvel. Imagens so mediaes entre homem e mundo. O homem existe, isto , o mundo no lhe acessvel imediatamente. Imagens tm o propsito de representar o mundo. Mas, ao faz-lo, entrepem-se entre mundo e homem. Seu propsito serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invs de se servir das imagens em funo do mundo, passa a viver em funo de imagens. No mais decifra as
cenas da imagem como significados do mundo, mas o prprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inverso da funo das imagens idolatria. Para o idlatra o homem que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicizao da vida: as imagens tcnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inverso da funo imaginstica e remagicizam a vida. Trata-se de alienao do homem em relao a seus prprios instrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual imagens so produzidas: servirem de instrumentos para orient-lo no mundo. Imaginao torna-se alucinao e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimenses abstradas. No segundo milnio A. C., tal alucinao alcanou seu apogeu. Surgiram pessoas empenhadas no relembramento da funo originria das imagens, que passaram a rasg-las, a fim de abrir a viso para o mundo concreto escondido pelas imagens. O mtodo do rasgamento consistia em desfiar as superfcies da imagens em linhas e alinhar os elementos imaginsticos . Eis como foi inventada a escrita linear. Tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em processos. Surgia assim a conscincia histrica , conscincia dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observvel entre os filsofos prsocrticos e sobretudo entre os profetas judeus. A luta da escrita contra a imagem, da conscincia histrica contra a conscincia mgica caracteriza a Histria toda. E ter consequncias imprevistas. A escrita se funda sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e abstrair todas as dimenses, com exceo de uma: a da conceituao, que permite codificar textos e decifr-los. Isto mostra que o pensamento conceitual mais abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva apenas uma das dimenses do espao-tempo. Ao inventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar. A escrita surge de um passo para aqum das imagens e no de um passo em direo ao mundo. Os textos no significam o mundo diretamente, mas atravs de imagens rasgadas. Os conceitos no significam fenmenos, significam idias. Decifrar textos descobrir as imagens significadas pelos conceitos. A funo dos textos explicar imagens, a dos conceitos analisar cenas. Em outros termos: a escrita meta-cdigo da imagem. A relao texto-imagem fundamental para a compreenso da histria do Ocidente. Na Idade Mdia, assume a forma de luta entre o cristianismo textual e o paganismo imaginstico; na Idade Moderna, luta entre a cincia textual e as ideologias imaginsticas. A luta, porm, dialtica. medida que o cristianismo vai combatendo o paganismo, ele prprio vai absorvendo imagens e se paganizando; medida que a cincia vai combatendo ideologias, vai ela prpria absorvendo imagens e se ideologizando . Por que isso ocorre? Embora textos expliquem imagens a fim de rasg-las, imagens so capazes de ilustrar textos, a fim de remagiciz-los. Graas a tal dialtica, imaginao e conceituao que mutuamente se negam, vo mutuamente se reforando. As imagens se tornam cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos. Atualmente o maior poder conceitual reside em certas imagens, e o maior poder imaginativo, em determinados textos da cincia exata. Deste modo, a hierarquia dos cdigos vai se perturbando: embora os textos sejam metacdigo de imagens, determinadas imagens passam a ser metacdigo de textos. No entanto, a situao se complica ainda mais devido contradio interna dos textos. So eles mediaes tanto quanto o so as imagens. Seu propsito mediar entre homem e imagens. Ocorre, porm, que os textos podem tapar as imagens que pretendem representar algo para o homem. Ele passa a ser incapaz de decifrar textos, no
conseguindo reconstituir as imagens abstradas. Passa a viver no mais para se servir dos textos, mas em funo destes. Surge textolatria, to alucinatria como a idolatria. Exemplo impressionante de textolatria fidelidade ao texto, tanto nas ideologias ( crist, marxista, etc.), quanto nas cincias exatas. Tais textos passam a ser inimaginveis, como o o universo das cincias exatas: no pode e no deve ser imaginado. No entanto, como so imagens o derradeiro significado dos conceitos, o discurso cientfico passa a ser composto de conceitos vazios; o universo da cincia torna-se universo vazio. A textolatria assumiu propores crticas no percurso do sculo passado. A crise dos textos implica o naufrgio da Histria toda, que , estritamente, processo de recodificao de imagens em conceitos. Histria explicao progressiva de imagens, desmagiciao, conceituao. L, onde os textos no mais significam imagens, nada resta a explicar, e a histria pra. Em tal mundo, explicaes passam a ser suprfluas: mundo absurdo, mundo da atualidade. Pois precisamente em tal mundo que vo sendo inventadas as imagens tcnicas. E em primeiro lugar, as fotografias, a fim de ultrapassar a crise dos textos.
2. A IMAGEM TCNICA Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos so produtos da tcnica que, por sua vez, texto cientfico aplicado. Imagens tcnicas so, portanto, produtos indiretos de textos o que lhes confere posio histrica e ontolgica diferente das imagens tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares de anos, e as imagens tcnicas sucedem aos textos altamente evoludos. Ontologicamente, a imagem tradicional abstrao de primeiro grau: abstrai duas dimenses do fenmeno concreto; a imagem tcnica abstrao de terceiro grau: abstrai uma das dimenses da imagem tradicional para resultar em textos (abstrao de segundo grau); depois, reconstituem a dimenso abstrada, a fim de resultar novamente em imagem. Historicamente, as imagens tradicionais so pr-histricas; as imagens tcnicas so pshistricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens tcnicas imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo. Essa posio as imagens tcnicas decisiva para o seu deciframento. Elas so dificilmente decifrveis pela razo curiosa de que aparentemente no necessitam ser decifradas. Aparentemente, o significado das imagens tcnicas se imprime de forma automtica sobre suas superfcies, como se fossem impresses digitais onde o significado (o dedo) a causa, e a imagem (o impresso) o efeito. O mundo representado parece ser a causa das imagens tcnicas e elas prprias parecem ser o ltimo efeito de complexa cadeia causal que parte do mundo. O mundo a ser representado reflete raios que vo sendo fixados sobre superfcies sensveis, graas a processos ticos, qumicos e mecnicos, assim surgindo a imagem. Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nvel do real: so unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece no ser smbolo e no precisar de deciframento. Quem v imagem tcnica parece ver seu significado, embora indiretamente. O carter aparentemente no-simblico, objetivo, das imagens tcnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas e no imagens. O observador confia nas imagens tcnicas tanto quanto confia em seus prprios olhos. Quando critica as imagens tcnicas (se que as critica) , no o faz enquanto imagens, mas enquanto vises do mundo. Essa atitude do observador face s imagens tcnicas caracteriza a situao atual, onde tais imagens se preparam para eliminar textos. Algo que apresenta consequncias altamente perigosas. A aparente objetividade das imagens tcnicas ilusria, pois na realidade so to simblicas quanto o so todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captarlhes o significado. Com efeito, so elas smbolos extremamente abstratos: codificam textos em imagens, so metacdigos de textos. A imaginao, qual devem sua origem, capacidade de codificar textos em imagens. Decifr-las reconstituir os textos que tais imagens significam. Quando as imagens tcnicas so corretamente decifradas, surge o mundo conceitual como sendo o seu universo de significado. O que vemos ao contemplar as imagens tcnicas no o mundo, mas determinados conceitos relativos ao mundo, a despeito da automaticidade da impresso do mundo sobre a superfcie da imagem. No caso das imagens tradicionais, fcil verificar que se trata de smbolos: h um agente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado. Este agente humano elabora smbolos em sua cabea, transfere-os para a mo munida de
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pincel, e de l, para a superfcie da imagem. A codificao se processa na cabea do agente humano, e quem se prope a decifrar a imagem deve saber o que se passou em tal cabea. No caso das imagens tcnicas, a situao menos evidente. Por certo, h tambm um fator que se interpe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agente humano que o manipula (fotgrafo, cinegrafista). Mas tal complexo aparelho-operador parece no interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrrio, parece ser canal que liga imagem e significado. Isto porque o complexo aparelho-operador demasiadamente complicado para que possa ser penetrado: caixa preta e o que se v apenas input e output. Quem v input e output v o canal e no o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crtica da imagem tcnica deve visar o branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relao s imagens tcnicas. No sabemos como decifr-las. Contudo, podemos afirmar algumas coisas a seu respeito, sobretudo o seguinte: as imagens tcnicas, longe de serem janelas, so imagens, superfcies que transcodificam processos em cenas. Como toda imagem, tambm mgica e seu observador tende a projetar essa magia sobre o mundo. O fascnio mgico que emana das imagens tcnicas palpvel a todo instante em nosso entorno. Vivemos, cada vez mais obviamente, em funo de tal magia imaginstica: vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos cada vez mais em funo de tais imagens. Urge analisar que tipo de magia essa. Claro est que a magia das imagens tcnicas no pode ser idntica magia das imagens tradicionais: o fascnio da TV e da tela de cinema no pode rivalizar com o que emana das paredes de caverna ou de um tmulo etrusco. Isto porque TV e cinema no se colocam ao mesmo nvel histrico e ontolgico do homem da caverna ou dos etruscos. A nova magia no precede, mas sucede conscincia histrica, conceitual, desmagicizante. A nova magia no visa modificar o mundo l fora, como o faz a pr-histria, mas os nossos conceitos em relao ao mundo. magia de segunda ordem: feitio abstrato. Tal diferena pode ser formulada da seguinte maneira: A magia pr-histrica ritualiza determinados modelos, mitos. A magia atual ritualiza outro tipo de modelo: programas. Mito no elaborado no interior da transmisso, j que elaborado por um deus. Programa modelo elaborado no interior mesmo da transmisso, por funcionrios. A nova magia ritualizao de programas, visando programar seus receptores para um comportamento mgico programado. Os conceitos programa e funcionrio sero considerados nos captulos seguintes deste ensaio. Neste ponto do argumento, trata-se de captar a funo da magia. A funo das imagens tcnicas a de emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceitualmente. As imagens tcnicas devem substituir a conscincia histrica por conscincia mgica de segunda ordem. Substituir a capacidade conceitual por capacidade imaginativa de segunda ordem. E neste sentido que as imagens tcnicas tendem a eliminar os textos. Com essa finalidade que foram inventadas. Os textos foram inventados, no segundo milnio A. C., a fim de desmagiciarem as imagens (embora seus inventores no se tenham dado conta disto). As fotografias foram inventadas, no sculo XIX, a fim de remagiciarem os textos (embora seus inventores no se tenham dado conta disto). A inveno das imagens tcnicas comparvel, pois, quanto sua importncia histrica, inveno da escrita. Textos foram inventados no momento de crise das imagens, a fim de ultrapassar o perigo da idolatria. Imagens tcnicas foram inventadas no momento de crise dos textos, a fim de ultrapassar o perigo da textolatria. Tal inteno implcita das imagens tcnicas precisa ser explicitada.
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A inveno da imprensa e a introduo da escola obrigatria generalizaram a conscincia histrica; todos sabiam ler e escrever, passando a viver historicamente, inclusive camadas at ento sujeitas vida mgica: o campesinato proletarizou-se. Tal conscientizao se deu graas a textos baratos: livros, jornais, panfletos. Simultaneamente todos os textos se baratearam (inclusive o que est sendo escrito). O pensamento conceitual barato venceu o pensamento mgico-imaginstico com dois efeitos inesperados. De um lado, as imagens se protegiam dos textos baratos, refugiando-se em ghettos chamados museus e exposies, deixando de influir na vida cotidiana. De outro lado, surgiam textos hermticos (sobretudo os cientficos), inacessveis ao pensamento conceitual barato, a fim de se salvarem da inflao textual galopante. Deste modo, a cultura ocidental se dividiu em trs ramos: a imaginao marginalizada pela sociedade, o pensamento conceitual hermtico e o pensamento conceitual barato. Uma cultura assim dividida no pode sobreviver, a no ser que seja reunificada. A tarefa das imagens tcnicas estabelecer cdigo geral para reunificar a cultura. Mais exatamente: o propsito das imagens tcnicas era reintroduzir as imagens na vida cotidiana, tornar imaginveis os textos hermticos, e tornar visvel a magia subliminar que se escondia nos textos baratos. Ou seja, as imagens tcnicas (e, em primeiro lugar, a fotografia) deviam constituir denominador comum entre conhecimento cientfico, experincia artstica e vivncia poltica de todos os dias. Toda imagem tcnica devia ser, simultaneamente, conhecimento (verdade), vivncia (beleza) e modelo de comportamento (bondade). Na realidade, porm, a revoluo das imagens tcnicas tomou rumo diferente, no tornam visvel o conhecimento cientfico, mas o falseiam; no reintroduzem as imagens tradicionais, mas as substituem; no tornam visvel a magia subliminar, mas a substituem por outra. Neste sentido, as imagens tcnicas passam a ser falsas, feias e ruins, alm de no terem sido capazes de reunificar a cultura, mas apenas de fundir a sociedade em massa amorfa. Por que isto se deu? Porque as imagens tcnicas se estabeleceram em barragens. Os textos cientficos desembocam nas imagens tcnicas, deixam de fluir e passam a circular nelas. As imagens tradicionais desembocam nas tcnicas e passam a ser reproduzidas em eterno retorno. E os textos baratos desembocam nas imagens tcnicas para a se transformarem em magia programada. Tudo, atualmente, tende para as imagens tcnicas, so elas a memria eterna de todo empenho. Todo ato cientfico, artstico e poltico visa eternizar-se em imagem tcnica, visa ser fotografado, filmado, videoteipado. Como a imagem tcnica a meta de todo ato, este deixa de ser histrico, passando a ser um ritual de magia. Gesto eternamente reconstituvel segundo o programa. Com efeito, o universo das imagens tcnicas vai se estabelecendo como plenitude dos tempos. E, apenas se considerada sob tal ngulo apocalptico, que a fotografia adquire seus devidos contornos.
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3. O APARELHO As imagens tcnicas so produzidas por aparelhos. Como primeira delas foi inventada a fotografia. O aparelho fotogrfico pode servir de modelo para todos os aparelhos caractersticos da atualidade e do futuro imediato. Analis-lo mtodo eficaz para captar o essencial de todos os aparelhos, desde os gigantescos (como os administrativos) at os minsculos (como os chips), que se instalam por toda parte. Pode-se perfeitamente supor que todos os traos aparelhsticos j esto prefigurados no aparelho fotogrfico, aparentemente to incuo e primitivo. Antes de mais nada, preciso haver acordo sobre o significado do aparelho, j que no h consenso para este termo. Etimologicamente, a palavra latina apparatus deriva dos verbos adparare e praeparare. O primeiro indica prontido para algo; o segundo, disponibilidade em prol de algo. O primeiro verbo implica o estar espreita para saltar espera de algo. Esse carter de animal feroz prestes a lanar-se, implcito na raiz do termo, deve ser mantido ao tratar-se de aparelhos. Obviamente, a etimologia no basta para definirmos aparelhos. Deve-se perguntar, antes de mais nada, por sua posio ontolgica. Sem dvida, trata-se de objetos produzidos, isto , objetos trazidos da natureza para o homem. O conjunto de objetos produzidos perfaz a cultura. Aparelhos fazem parte de determinadas culturas, conferindo a estas certas caractersticas. No h dvida que o termo aparelho utilizado, s vezes, para denominar fenmenos da natureza, por exemplo, aparelho digestivo, por tratar-se de rgos complexos que esto espreita de alimentos para enfim digeri-los. Sugiro, porm, que se trata de uso metafrico, transporte de um termo cultural para o domnio da natureza. No fosse a existncia de aparelhos em nossa cultura, no poderamos falar em aparelho digestivo. Grosso modo, h dois tipos de objetos culturais: os que so bons para serem consumidos (bens de consumo) e os que so bons para produzirem bens de consumo. (instrumentos). Todos os objetos culturais so bons, isto : so como devem ser, contm valores. Obedecem a determinadas intenes humanas. Esta, a diferena entre as cincias da natureza e as da cultura: as cincias culturais procuram pela inteno que se esconde nos fenmenos, por exemplo, no aparelho fotogrfico, portanto, segundo tal critrio, o aparelho fotogrfico parece ser instrumento. Sua inteno produzir fotografias. Aqui surge dvida: fotografias sero bens de consumo como bananas ou sapatos? O aparelho fotogrfico ser instrumento como o faco produtor de banana, ou a agulha produtora de sapato? Instrumentos tm a inteno de arrancar objetos da natureza para aproxim-los do homem. Ao faz-lo, modificam a forma de tais objetos. Este produzir e informar se chama trabalho. O resultado se chama obra. No caso da banana, a produo mais acentuada que a informao; no caso do sapato, a informao que prevalece. Faces produzem sem muito informarem, agulhas informam muito mais. Sero os aparelhos agulhas exageradas que informam sem nada produzir, j que fotografias parecem ser informao quase pura? Instrumentos so prolongaes de rgos do corpo: dentes, dedos, braos, mos prolongados. Por serem prolongaes, alcanam mais longe e fundo a natureza, so mais poderosos e eficientes. Os instrumentos simulam o rgo que prolongam: a enxada, o
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dente; a flecha, o dedo; o martelo, o punho. So empricos. Graas revoluo industrial, passam a recorrer a teorias cientficas no curso da sua simulao de rgos. Passam a ser tcnicos. Tornam-se, destarte, ainda mais poderosos, mas tambm maiores e mais caros, produzindo obras mais baratas e mais numerosas. Passam a chamar-se mquinas. Ser ento, o aparelho fotogrfico mquina por simular o olho e recorrer a teorias ticas e qumicas, ao faz-lo? Quando os instrumentos viraram mquinas, sua relao com o homem se inverteu. Antes da revoluo industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as mquinas eram por eles cercadas. Antes, o homem era a constante da relao, e o instrumento era a varivel; depois, a mquina passou a ser relativamente constante. Antes os instrumentos funcionavam em funo do homem; depois grande parte da humanidade passou a funcionar em funo das mquinas. Ser isto vlido para os aparelhos? Podemos afirmar que os culos (tomados como proto-aparelhos fotogrficos) funcionavam em funo do homem, e hoje, o fotgrafo, em funo do aparelho? O tamanho e o preo das mquinas faz com que apenas poucos homens as possuam: os capitalistas. A maioria funciona em funo delas: o proletariado. De maneira que a sociedade se divide em duas classes: os que usam as mquinas em seu prprio proveito, e os que funcionam em funo de tal proveito. Isto vale para aparelhos? O fotgrafo ser proletrio, e haver um foto-capitalista? Em tais perguntas sente-se que, embora razoveis, no ferem ainda o problema do aparelho. Por certo: aparelhos informam, simulam rgos, recorrem a teorias, so manipulados por homens, e servem a interesses ocultos. Mas no isto que os caracteriza. As perguntas acima no so nada interessantes, quando se trata de aparelhos. Provm, elas todas, do terreno industrial, quando os aparelhos, embora produtos industriais, j apontam para alm do industrial: so objetos ps-industriais. Da perguntas industriais (por exemplo, as marxistas) no mais serem competentes para aparelhos. A nossa dificuldade em defini-los se explica: aparelhos so objetos do mundo ps-industrial, para o qual ainda no dispomos de categorias adequadas. A categoria fundamental do terreno industrial (e tambm do pr-industrial) o trabalho. Instrumentos trabalham. Arrancam objetos da natureza e os informam. Aparelhos no trabalham. Sua inteno no a de modificar o mundo. Visam modificar a vida dos homens. De maneira que os aparelhos no so instrumentos no significado tradicional do termo. O fotgrafo no trabalha e tem pouco sentido cham-lo de proletrio. J que, atualmente a maioria dos homens est empenhada em aparelhos, no tem sentido falar-se em proletariado. Devemos repensar nossas categorias, se quisermos analisar nossa cultura. Embora fotgrafos no trabalhem, agem. Este tipo de atividade sempre existiu. O fotgrafo produz smbolos, manipula-os e os armazena. Escritores, pintores, contadores, administradores sempre fizeram o mesmo. O resultado deste tipo de atividade so mensagens: livros, quadros, contas, projetos. No servem para serem consumidos, mas para informarem: serem lidos, contemplados, analisados e levados em conta nas decises futuras. Estas pessoas no so trabalhadores, mas informadores. Pois atualmente a atividade de produzir, manipular e armazenar smbolos (atividade que no trabalho no sentido tradicional) vai sendo exercida por aparelhos. E tal atividade vai dominando, programando e controlando todo trabalho no sentido tradicional do termo. A maioria da sociedade est empenhada nos aparelhos dominadores, programadores e controladores. Outrora, antes que aparelhos, fossem inventados, a atividade deste tipo se chamava terciria, j que no dominava. Atualmente, ocupa o centro da cena. Querer definir
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aparelhos querer elaborar categorias apropriadas cultura ps-industrial que est surgindo. Se considerarmos o aparelho fotogrfico sob tal prisma, constataremos que o estar programado que o caracteriza. As superfcies simblicas que produz esto, de alguma forma, inscritas previamente (programadas, pr-escritas) por aqueles que o produziram. As fotografias so realizaes de algumas das potencialidades inscritas no aparelho. O nmero de potencialidades grande, mas limitado: a soma de todas as fotografias fotografveis por este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui o nmero de potencialidades, aumentando o nmero de realizaes: o programa vai se esgotando e o universo fotogrfico vai se realizando. O fotgrafo age em prol do esgotamento do programa e em prol da realizao do universo fotogrfico. J que o programa muito rico, o fotgrafo se esfora por descobrir potencialidades ignoradas. O fotgrafo manipula o aparelho, o apalpa, olha para dentro e atravs dele, afim de descobrir sempre novas potencialidades. Seu interesse est concentrado no aparelho e o mundo l fora s interessa em funo do programa. No est empenhado em modificar o mundo, mas em obrigar o aparelho a revelar suas potencialidades. O fotgrafo no trabalha com o aparelho, mas brinca com ele. Sua atividade evoca a do enxadrista: este tambm procura lance novo, a fim de realizar uma das virtualidades ocultas no programa do jogo. E tal comparao facilita a definio que tentamos formular. Aparelho brinquedo e no instrumento no sentido tradicional. E o homem que o manipula no trabalhador, mas jogador: no mais homo faber, mas homo ludens. E tal homem no brinca com seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: penetra o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas. De maneira que o funcionrio no se encontra cercado de instrumentos (como o arteso pr-industrial), nem est submisso mquina (como o proletrio industrial), mas encontra-se no interior do aparelho. Trata-se de funo nova, na qual o homem no constante nem varivel, mas est indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em toda funo aparelhstica , funcionrio e aparelho se confundem. Para funcionar, o aparelho precisa de programa rico. Se fosse pobre, o funcionrio o esgotaria, e isto seria o fim do jogo. As potencialidades contidas no programa devem exceder capacidade do funcionrio para esgot-las. A competncia do aparelho deve ser superior competncia do funcionrio. A competncia do aparelho fotogrfico deve ser superior em nmero de fotografias competncia do fotgrafo que o manipula. Em outros termos: a competncia do fotgrafo deve ser apenas parte da competncia do aparelho. De maneira que o programa do aparelho deve ser impenetrvel para o fotgrafo, em sua totalidade. Na procura de potencialidades escondidas no programa do aparelho, o fotgrafo nele se perde. Um sistema assim to complexo jamais penetrado totalmente e pode chamar-se caixa preta. No fosse o aparelho fotogrfico caixa preta, de nada serviria ao jogo do fotgrafo: seria jogo infantil, montono. A pretido da caixa seu desafio, porque, embora o fotgrafo se perca em sua barriga preta, consegue, curiosamente, domin-la. O aparelho funciona, efetiva e curiosamente em funo da inteno do fotgrafo. Isto porque o fotgrafo domina o input e o output da caixa: sabe com que aliment-la e como fazer para que ela cuspa fotografias. Domina o aparelho, sem no entanto, saber o que se passa no interior da caixa. Pelo domnio do input e do output, o fotgrafo domina o aparelho, mas pela ignorncia dos processos no interior da caixa, por ele dominado. Tal amlgama de dominaes funcionrio dominando aparelho que o domina caracteriza
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todo funcionamento de aparelhos. Em outras palavras: funcionrios dominam jogos para os quais no podem ser totalmente competentes. Os programas dos aparelhos so compostos de smbolos permutveis. Funcionar permutar smbolos programados. Um exemplo anacrnico pode ilustrar tal jogo: o escritor pode ser considerado funcionrio do aparelho lngua. Brinca com smbolos contidos no programa lingstico, com palavras, permutando-os segundo as regras do programa. Destarte, Vai esgotando as potencialidades do programa lingstico e enriquecendo o universo lingstico, a literatura. O exemplo anacrnico porque a lngua no verdadeiro aparelho. No foi produzida deliberadamente, nem recorreu a teorias cientficas, como no caso de aparelhos verdadeiros. Mas serve de exemplo ao funcionamento de aparelhos. O escritor informa objetos durante seu jogo: coloca letras sobre pginas brancas. Tais letras so smbolos decifrveis. Aparelhos fazem o mesmo. H aparelhos, porm, que o fazem melhor que escritores, pois podem informar objetos com smbolos que no significam fenmenos, como no caso das letras, mas que significam movimentos dos prprios objetos. Tais objetos assim informados vo decifrando os smbolos e passam a movimentar-se. Por exemplo: podem executar os movimentos de trabalho. Podem, portanto, substituir o trabalho humano. Emancipam o homem do trabalho, liberando-o para o jogo. O aparelho fotogrfico ilustra o fato: enquanto objeto, est programado para produzir, automaticamente, fotografias. Neste aspecto, instrumento inteligente. E o fotgrafo, emancipado do trabalho, liberado para brincar com o aparelho. O aspecto instrumental do aparelho passa a ser desprezvel, e o que interessa apenas o seu aspecto brinquedo. Quem quiser captar a essncia do aparelho, deve procurar distinguir o aspecto instrumental do seu aspecto brinquedo, coisa nem sempre fcil, porque implica o problema da hierarquia de programas, problema central para a captao do funcionamento. Uma distino deve ser feita: hardware e software. Enquanto objeto duro, o aparelho fotogrfico foi programado para produzir automaticamente fotografias; enquanto coisa mole, impalpvel, foi programado para permitir ao fotgrafo fazer com que fotografias deliberadas sejam produzidas automaticamente. So dois programas que se co-implicam. Por trs destes h outros. O da fbrica de aparelhos fotogrficos: aparelho programado para programar aparelhos. O do parque industrial: aparelho programado para programar indstrias de aparelhos fotogrficos e outros. O econmico-social: aparelho programado para programar o aparelho industrial, comercial e administrativo. O polticocultural: aparelho programado para programar aparelhos econmicos, culturais, ideolgicos e outros. No pode haver um ltimo aparelho, nem um programa de todos os programas. Isto porque todo programa exige metaprograma para ser programado. A hierarquia dos programas est aberta para cima. Isto implica o seguinte: os programadores de determinado programa so funcionrios de um metaprograma, e no programam em funo de uma deciso sua, mas em funo do metaprograma. De maneira que os aparelhos no podem ter proprietrios que os utilizem em funo de seus prprios interesses, como no caso das mquinas. O aparelho fotogrfico funciona em funo dos interesses da fbrica, e esta, em funo dos interesses do parque industrial. E assim ad infinitum. Perdeu-se o sentido da pergunta: quem o proprietrio dos aparelhos. O decisivo em relao aos aparelhos no quem os possui, mas quem esgota o seu programa.
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O aparelho fotogrfico , por certo, objeto duro feito de plstico e ao. Mas no isso que o torna brinquedo. No a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez, jogo. So as virtualidades contidas nas regras: o software. O aspecto duro dos aparelhos no o que lhes confere valor. Ao comprar um aparelho fotogrfico, no pago pelo plstico e ao, mas pelas virtualidades de realizar fotografias. De resto, o aspecto duro dos aparelhos vai se tornando sempre mais barato e j existem aparelhos praticamente gratuitos. o aspecto mole, impalpvel e simblico o verdadeiro portador de valor no mundo ps-industrial dos aparelhos. Transvalorizao de valores; no o objeto, mas o smbolo que vale. Por conseguinte, no mais vale a pena possuir objetos. O poder passou do proprietrio para o programador de sistemas. Quem possui o aparelho no exerce o poder, mas quem o programa e quem realiza o programa. O jogo com smbolos passa a ser jogo do poder. Trata-se, porm, de jogo hierrquicamente estruturado. O fotgrafo exerce poder sobre quem v suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotogrfico exerce poder sobre o fotgrafo. A indstria fotogrfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum. No jogo simblico do poder, este se dilui e se desumaniza. Eis o que sejam sociedade informtica e imperialismo ps-industrial. Tais consideraes permitem ensaiar definio do termo aparelho. Trata-se de brinquedo complexo; to complexo que no poder jamais ser inteiramente esclarecido. Seu jogo consiste na permutao de smbolos j contidos em seu programa. Tal programa se deve a meta-aparelhos. O resultado do jogo so outros programas. O jogo do aparelho implica agentes humanos, funcionrios, salvo em casos de automao total de aparelhos. Historicamente, os primeiros aparelhos (fotografia e telegrafia) foram produzidos como simulaes do pensamento humano, tendo, para tanto, recorrido a teorias cientficas. Em suma: aparelhos so caixas pretas que simulam o pensamento humano, graas a teorias cientficas, as quais, como o pensamento humano, permutam smbolos contidos em sua memria, em seu programa. Caixas pretas que brincam de pensar. O aparelho fotogrfico o primeiro, o mais simples e o relativamente mais transparente de todos os aparelhos. O fotgrafo o primeiro funcionrio, o mais ingnuo e o mais vivel de ser analisado. No entanto, no aparelho fotogrfico e no fotgrafo j esto, como germes, contidas todas as virtualidades do mundo ps-industrial. Sobretudo, torna-se observvel na atividade fotogrfica, a desvalorizao do objeto e a valorizao da informao como sede de poder. Portanto, a anlise do gesto de fotografar, este movimento do complexo aparelho-fotgrafo, pode ser exercido para a anlise da existncia humana em situao ps-industrial, aparelhizada.
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4. O GESTO DE FOTOGRAFAR Quem observar os movimentos de um fotgrafo munido de aparelho (ou de um aparelho munido de fotgrafo) estar observando movimento de caa. O antiqussimo gesto do caador paleoltico que persegue a caa na tundra1. Com a diferena de que o fotgrafo no se movimenta em pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. Seu gesto , pois, estruturado por essa taiga2 artificial, e toda fenomenologia do gesto fotogrfico deve levar em considerao os obstculos contra os quais o gesto se choca: reconstituir a condio do gesto. A selva consiste de objetos culturais, portanto de objetos que contm intenes determinadas. Tais objetos intencionalmente produzidos vedam ao fotgrafo a viso da caa. E cada fotgrafo vedado sua maneira. Os caminhos tortuosos do fotgrafo visam driblar as intenes escondidas nos objetos. Ao fotografar, avana contra as intenes da sua cultura. Por isto, fotografar gesto diferente, conforme ocorra em selva de cidade ocidental ou cidade subdesenvolvida, em sala de estar ou campo cultivado. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condies culturais dribladas. A tarefa difcil. Isto porque as condies culturais no transparecem, diretamente, na imagem fotogrfica, mas atravs a triagem das categorias do aparelho. A fotografia no permite ver a condio cultural, mas apenas as categorias do aparelho, por intermdio das quais aquela condio foi tomada. Em fenomenologia fotogrfica, Kant inevitvel. As categorias fotogrficas se inscrevem no lado output do aparelho. So categorias de um espao-tempo fotogrfico, que no nem newtoniano nem einsteiniano. Trata-se de espao-tempo nitidamente dividido em regies, que so, todas elas, pontos de vista sobre a caa. Espao-tempo cujo centro o objeto fotografvel, cercado de regies de pontos de vista. Por exemplo: h regio espacial para vises muito prximas, outra para vises intermedirias, outra ainda para vises amplas e distanciadas. H regies espaciais para perspectiva de pssaro, outras para perspectiva de sapo, outras para perspectiva de criana. H regies espaciais para vises diretas com olhos arcaicamente abertos, e regies para vises laterais com olhos ironicamente semifechados. H regies temporais para um olhar-relmpago, outras para um olhar sorrateiro, outras para um olhar contemplativo. Tais regies formam rede, por cujas malhas, a condio cultural vai aparecendo para ser registrada. Ao fotografar, o fotgrafo salta de regio para regio por cima de barreiras. Muda de um tipo de espao e um tipo de tempo para outros tipos. As categorias de tempo e espao so sincronizadas de forma a poderem ser permutadas. O gesto fotogrfico um jogo de permutao com as categorias do aparelho. A fotografia revela os lances desse jogo, lances que so, precisamente, o mtodo fotogrfico para driblar as condies da cultura. O fotgrafo se emancipa da condio cultural graas ao seu jogo com as categorias. As categorias esto inscritas no programa do aparelho e podem ser manipuladas. O fotgrafo pode manipular o lado output do aparelho, de forma que, por exemplo, este capte a caa como relmpago lateral vindo de baixo.
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Tundra: pantanal siberiano (N. Ed.) Taiga: floresta siberiana (N. Ed.)
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O fotgrafo escolhe, dentre as categorias disponveis, as que lhe parecem mais convenientes. Neste sentido, o aparelho funciona em funo da inteno do fotgrafo. Mas sua escolha limitada pelo nmero de categorias inscritas no aparelho: escolha programada. O fotgrafo no pode inventar novas categorias, a no ser que deixe de fotografar e passe a funcionar na fbrica que programa aparelhos. Neste sentido, a prpria escolha do fotgrafo funciona em funo do programa do aparelho. A mesma involuo engrenada das intenes do fotgrafo e do aparelho pode ser constatada na escolha da caa. O fotgrafo registra tudo: um rosto humano, uma pulga, um trao de partcula atmica na cmara Wilson, o interior do seu prprio estmago, uma nebulosa espiral, seu prprio gesto de fotografar no espelho. De maneira que o fotgrafo cr que est escolhendo livremente. Na realidade, porm, o fotgrafo somente pode fotografar o fotografvel, isto , o que est inscrito no aparelho. E para que algo seja fotografvel, deve ser transcodificado em cena. O fotgrafo no pode fotografar processos. De maneira que o aparelho programa o fotgrafo para transcodificar tudo em cena, para magicizar tudo. Em tal sentido, o fotgrafo funciona, ao escolher sua caa, em funo do aparelho. Aparelho-fera. Aparentemente, ao escolher sua caa e as categorias apropriadas a ela, o fotgrafo pode recorrer a critrios alheios ao aparelho. Por exemplo: ao recorrer a critrios estticos, polticos, epistemolgicos, sua inteno ser a de produzir imagens belas, ou politicamente engajadas, ou que tragam conhecimentos. Na realidade, tais critrios esto, eles tambm programados no aparelho. Da seguinte maneira: para fotografar, o fotgrafo precisa, antes de mais nada, conceber sua inteno esttica, poltica, etc., porque necessita saber o que est fazendo ao manipular o lado output do aparelho. A manipulao do aparelho gesto tcnico, isto , gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fotgrafo a transcodificar sua inteno em conceitos, antes de poder transcodific-la em imagens. Em fotografia, no pode haver ingenuidade. Nem mesmo turistas ou crianas fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente, porque tecnicamente. Toda inteno esttica, poltica ou epistemolgica deve, necessariamente, passar pelo crivo da conceituao, antes de resultar em imagem. O aparelho foi programado para isto. Fotografias so imagens de conceitos, so conceitos transcodificados em cenas. As possibilidades fotogrficas so praticamente inesgotveis. Tudo o que fotografvel pode ser fotografado. A imaginao do aparelho praticamente infinita. A imaginao do fotgrafo, por maior que seja, est inscrita nessa enorme imaginao do aparelho. Aqui est, precisamente, o desafio. H regies na imaginao do aparelho que so relativamente bem exploradas. Em tais regies, sempre possvel fazer novas fotografias: porm, embora novas, so redundantes. Outras regies so quase inexploradas. O fotgrafo nelas navega, regies nunca dantes navegadas, para produzir imagens jamais vistas. Imagens informativas. O fotgrafo caa, a fim de descobrir vises at ento jamais percebidas. E quer descobri-las no interior do aparelho. Na realidade, o fotgrafo procura estabelecer situaes jamais existentes antes. Quando caa na taiga, no significa que esteja procurando por novas situaes l fora na taiga: mas sua busca so pretextos para novas situaes no interior do aparelho. Situaes que esto programadas sem terem ainda sido realizadas. Pouco vale a pergunta metafsica: as situaes, antes de serem fotografadas, se encontram l fora, no mundo, ou c dentro, no aparelho? O gesto fotogrfico desmente todo realismo e idealismo. As novas situaes se tornaro reais quando aparecerem na fotografia. Antes, no passam de virtualidades. O fotgrafo-e-o-aparelho que as realiza. Inverso do vetor da significao:
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no o significado, mas o significante a realidade. No o que se passa l fora, nem o que est inscrito no aparelho; a fotografia a realidade. Tal inverso do vetor da significao caracteriza o mundo ps-industrial, todo funcionamento. O gesto fotogrfico srie de saltos, o fotgrafo salta por cima das barreiras que separam as vrias regies do espao-tempo. gesto quntico, procura saltitante. Toda vez que o fotgrafo esbarra contra barreiras, se detm, para depois decidir em que regio do tempo e do espao vai saltar a partir deste ponto. Tal parada e subseqente deciso se manifestam por manipulao determinada do aparelho. Esse tipo de procura tem nome: dvida. Mas no se trata de dvida cientfica, nem existencial, nem religiosa. dvida de tipo novo, que mi a hesitao e as decises em gro de areia. Sendo tal dvida uma caracterstica de toda existncia ps-industrial, merece ser examinada mais de perto. Toda vez que o fotgrafo esbarra contra um limite de determinada categoria fotogrfica, hesita, porque est descobrindo que h outros pontos de vista disponveis no programa. Est descobrindo a equivalncia de todos os pontos de vista programados, em relao cena a ser produzida. a descoberta do fato de que toda situao est cercada de numerosos pontos de vista equivalentes. E que todos esses pontos de vista so acessveis. Com efeito: o fotgrafo hesita, porque est descobrindo que seu gesto de caar movimento de escolha entre pontos de vista equivalentes, e o que vale no determinado ponto de vista, mas um nmero mximo de pontos de vista. Escolha quantitativa, no-qualitativa. O tipo novo de dvida pode ser chamado de fenomenolgico, porque cerca o fenmeno (a cena a ser realizada) a partir de um mximo de aspectos. Mas a mathesis (a estrutura fundante) dessa dvida fenomenolgica , no caso da fotografia, o programa do aparelho. Duas coisas devem ser, portanto, retidas: 1. a prxis fotogrfica contrria a toda ideologia; ideologia agarrar-se a um nico ponto de vista, tido por referencial, recusando todos o demais; o fotgrafo age ps ideologicamente; 2. A prxis fotogrfica programada; o fotgrafo somente pode agir dentro das categorias programadas no aparelho. Esta ao ps-ideolgica e programada, que se funda sobre dvida fenomelgica despreconceituada, caracteriza a existncia de todo funcionrio e tecnocrata. Finalmente, no gesto fotogrfico, uma deciso ltima tomada: apertar o gatilho (assim como o presidente americano finalmente aperta o boto vermelho). De fato, o gesto do fotgrafo menos catastrfico que o do presidente. Mas decisivo. Na realidade, estas decises no so seno as ltimas de uma srie de decises parciais. O ltimo gro de uma srie de gros, que, no caso do presidente pode ser a gota dgua. Uma deciso quantitativa. No caso do fotgrafo, resulta apenas na fotografia. Isto explica porque nenhuma fotografia individual pode efetivamente ficar isolada: apenas sries de fotografias podem revelar a inteno do fotgrafo. Porque nenhuma deciso realmente decisiva, nem sequer a do presidente ou do secretrio-geral do partido. Todas as decises fazem parte de sries claras e distintas. Em outros termos: so decises programadas. Tais consideraes permitem resumir as caractersticas do gesto de fotografar: gesto caador no qual aparelho e fotgrafo se confundem, para formar unidade funcional inseparvel. O propsito desse gesto unificado produzir fotografias, isto , superfcies nas quais se realizam simbolicamente cenas. Estas significam conceitos programados na memria do fotgrafo e do aparelho. A realizao se d graas a um jogo de permutao entre os conceitos, e graas a uma automtica transcodificao de tais conceitos permutados em imagens. A estrutura do gesto quntica: srie de hesitaes e decises claras e distintas. Tais hesitaes e decises so saltos de pontos de vista para pontos de vista. O motivo do fotgrafo, em tudo isto, realizar cenas jamais vistas, informativas.
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Seu interesse est concentrado no aparelho. Esta descrio no se aplica, em suas linhas gerais, apenas ao fotgrafo, mas a qualquer funcionrio, desde o empregado de banco ao presidente americano. O resultado do gesto fotogrfico so fotografias, esse tipo de superfcies que nos cerca atualmente por todos os lados. De maneira que a considerao do gesto fotogrfico pode ser a avenida de acesso a tais superfcies onipresentes.
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5. A FOTOGRAFIA Fotografias so onipresentes: coladas em lbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritrios, afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas, camisetas. Que significam tais fotografias? Segundo as consideraes precedentes, significam conceitos programados, visando programar magicamente o comportamento de seus receptores. Mas no o que se v quando para elas se olha. Vistas ingenuamente, significam cenas que se imprimiram automaticamente sobre superfcies. Mesmo um observador ingnuo admitiria que as cenas se imprimiram a partir de um determinado ponto de vista. Mas o argumento no lhe convm. O fato relevante para ele que as fotografias abrem ao observador vises do mundo. Toda filosofia da fotografia no passa, para ele, de ginstica mental para alienados. No entanto, se o observador ingnuo percorrer o universo fotogrfico que o cerca, no poder deixar de ficar perturbado. Era de se esperar: o universo fotogrfico representa o mundo l fora atravs deste universo, o mundo. A vantagem permitir que se vejam as cenas inacessveis e preservar as passageiras ( o que, afinal de contas, seja admitido, j uma filosofia da fotografia rudimentar). Mas ser verdade? Se assim for, como explicar que existam fotografias preto-ebranco e fotografias em cores? Haver, l fora no mundo, cenas em preto-e-branco e cenas coloridas? Se no, qual a relao entre o universo das fotografias e o universo l fora? Inadvertidamente, o observador ingnuo se encontra mergulhado em plena filosofia da fotografia, a qual pretendeu evitar. No pode haver, no mundo l fora, cenas em preto-e-branco. Isto porque o preto e o branco so situaes ideais, situaes-limite. O branco presena total de todas as vibraes luminosas; o preto a ausncia total. O preto e o branco so conceitos que fazem parte de uma determinada teoria da tica. De maneira que cenas em preto-ebranco no existem. Mas fotografias em preto e branco, estas sim, existem. Elas imaginam determinados conceitos de determinada teoria, graas qual so produzidas automaticamente. Aqui, porm, o termo automaticamente no pode mais satisfazer o observador ingnuo do universo da fotografia. Quanto ao problema da crtica da fotografia, eis o ponto crtico: ao contrrio da pintura, onde se procura decifrar idias, o crtico de fotografia deve decifrar, alm disso, conceitos. O preto e o branco no existem no mundo, o que grande pena. Caso existissem, se o mundo l fora pudesse ser captado em preto-e-branco, tudo passaria a ser logicamente explicvel. Tudo no mundo seria ento ou preto ou branco, ou intermedirio entre os dois extremos. O desagradvel que tal intermedirio no seria em cores, mas cinzento... a cor da teoria. Eis como a anlise lgica do mundo, seguida de sntese, no resulta em sua reconstituio. As fotografias em preto-e-branco o provam, so cinzentas: imagens de teorias (ticas e outras) a respeito do mundo. A tentativa de imaginar o mundo em preto-e-branco antiga. Faltavam apenas os aparelhos adequados a tal imaginao. Dois exemplos desse maniquesmo pr-fotogrfico: 1. Abstraiam-se do universo dos juzos os verdadeiros e os falsos. Graas a tal abstrao, pode ser construda a lgica aristotlica, com sua identidade, diferena e o terceiro excludo. Esta lgica, por sua vez, vai contribuir para a construo da cincia moderna.
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Ora, a cincia funciona de fato, embora no existam juzos inteiramente verdadeiros ou inteiramente falsos, e embora toda anlise lgica de juzos os reduza a zero; 2. abstraiam-se do universo das aes as boas e as ms. Graas a tal abstrao, podem ser construdas ideologias (religiosas, polticas, etc.). Essas ideologias, por sua vez, vo contribuir para a construo de sociedades sistematizadas. Ora, os sistemas funcionam de fato, embora no existam aes inteiramente boas ou inteiramente ms, e embora toda ao se reduza, sob anlise ideolgica, a movimentos de fantoche. As fotografias em preto-e-branco so resultados desse tipo de maniquesmo munido de aparelho. Funcionam. E funcionam da seguinte forma: transcodificam determinadas teorias (em primeiro lugar, teorias da tica) em imagem. Ao faz-lo, magicizam tais teorias. Transformam seus conceitos em cenas. As fotografias em preto-e-branco so a magia do pensamento terico, conceitual, e precisamente nisto que reside seu fascnio. Revelam a beleza do pensamento conceitual abstrato. Muitos fotgrafos preferem fotografar em preto-ebranco, porque tais fotografias mostram o verdadeiro significado dos smbolos fotogrficos: o universo dos conceitos. As primeiras fotografias eram, todas, em preto-e-branco, demonstrando que se originavam de determinada teoria da tica. A partir do progresso da Qumica, tornou-se possvel a produo de fotografias em cores. Aparentemente, pois, as fotografias comearam a abstrair as cores do mundo, para depois as reconstiturem. Na realidade, porm, as cores so to tericas quanto o preto e o branco. O verde do bosque fotografado imagem do conceito verde, tal como foi elaborado por determinada teoria qumica. O aparelho foi programado para transcodificar tal conceito em imagem. H, por certo ligao indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque l fora: o conceito cientfico verde se apoia, de alguma forma, sobre o verde percebido. Mas entre os dois verdes se interpe toda uma srie de codificaes complexas. Mais complexas ainda do que as que se interpem entre o cinzento do bosque fotografado em preto-ebranco e o verde do bosque l fora. De maneira que a fotografia em cores mais abstrata que a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografias em cores escondem, para o ignorante em Qumica, o grau de abstrao que lhe deu origem. As brancas e pretas so, pois, mais verdadeiras. E quanto mais fiis se tornarem as cores das fotografias, mais estas sero mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade terica que lhes deu origem. (Exemplos: verde Kodak contra verde Fuji.) O que vale para as cores vale, igualmente, para todos os elementos da imagem. So, todos eles, conceitos transcodificados que pretendem ser impresses automticas do mundo l fora. Tal pretenso precisa ser decifrada por quem quiser receber a verdadeira mensagem das fotografias: conceitos programados. Destarte, o observador ingnuo se v obrigado, malgr lui, a mergulhar no torvelinho das reflexes filosficas que procurou eliminar, por consider-las ginstica mental alienada. Concordemos quanto ao que pretendemos dizer por deciframento. Que fao ao decifrar um texto em alfabeto latino? Decifro o significado das letras, esses determinados sons da lngua falada? Decifro o significado das palavras compostas de tais letras? Decifro o significado das frases compostas de tais palavras? Ou devo procurar, por trs do significado das frases, outros significados, como a inteno do autor e o contexto cultural no qual o texto foi codificado? Para decifrar o significado da fotografia do bosque verde, bastaria ter decifrado os conceitos cientficos que codificaram a fotografia, ou devo ir mais longe? Assim colocada, a questo do deciframento no ter resposta satisfatria, j que todo nvel de deciframento assentar sobre mais um a ser decifrado. Mas podemos, no
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caso da fotografia, evitar este regresso ao infinito. Para decifrar fotografias no preciso mergulhar at o fundo da inteno codificadora, no fundo da cultura, da qual as fotografias, como todo smbolo, so pontas de icebergs. Basta decifrar o processo codificador que se passa durante o gesto fotogrfico, no movimento do complexo fotgrafo-aparelho. Se consegussemos captar a involuo inseparvel das intenes codificadoras do fotgrafo e do aparelho, teramos decifrado, satisfatoriamente, a fotografia resultante. Tarefa aparentemente reduzida, mas na realidade gigantesca. Precisamente por serem tais intenes inseparveis, e por se articularem de forma especfica em toda e qualquer fotografia a ser criticada. No entanto, o deciframento de fotografias possvel, porque, embora inseparveis, as intenes do fotgrafo e do aparelho podem ser distinguidas. Esquematicamente, a inteno do fotgrafo esta: 1. codificar, em forma de imagens, os conceitos que tem na memria; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre. Resumindo: A inteno a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessveis a outros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a inteno programada no aparelho esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma de imagens; 2. servir-se de um fotgrafo, a menos que esteja programado para fotografar automaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4. fazer imagens sempre mais aperfeioadas. Resumindo: a inteno programada no aparelho a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe sirvam de feed-back para o seu contnuo aperfeioamento. Mas por trs da inteno do aparelho fotogrfico h intenes de outros aparelhos. O aparelho fotogrfico produto do aparelho da indstria fotogrfica, que produto do aparelho do parque industrial, que produto do aparelho scio-econmico e assim por diante. Atravs de toda essa hierarquia de aparelhos, corre uma nica e gigantesca inteno, que se manifesta no output do aparelho fotogrfico: fazer com que os aparelhos programem a sociedade para um comportamento propcio ao constante aperfeioamento dos aparelhos. Se compararmos as intenes do fotgrafo e do aparelho, constataremos pontos de convergncia e divergncia. Nos pontos convergentes, aparelho e fotgrafo colaboram; nos divergentes, se combatem. Toda fotografia resultado de tal colaborao e combate. Ora, colaborao e combate se confundem. Determinada fotografia s decifrada, quando tivermos analisado como a colaborao e o combate nela se relacionam. No confronto com determinada fotografia, eis o que o crtico deve perguntar: at que ponto conseguiu o fotgrafo apropriar-se da inteno do aparelho e submet-la sua prpria? Que mtodos utilizou: astcia, violncia, truques? At que ponto conseguiu o aparelho apropriar-se da inteno do fotgrafo e desvi-la para os propsitos nele programados? Responder a tais perguntas ter os critrios para julg-la. As fotografias melhores seriam aquelas que evidenciam a vitria da inteno do fotgrafo sobre o aparelho: a vitria do homem sobre o aparelho. Foroso constatar que, muito embora existam tais fotografias, o universo fotogrfico demonstra at que ponto o aparelho j consegue desviar os propsitos dos fotgrafos para os fins programados. A funo de toda crtica fotogrfica seria, precisamente, revelar o desvio das intenes humanas em prol dos aparelhos. No dispomos ainda de uma tal crtica da fotografia, por razes que sero discutidas nos prximos captulos. Confesso que o presente captulo, embora se chame A fotografia, no considerou algumas das mais importantes caractersticas da fotografia. Minha desculpa que seu
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propsito era outro: abrir caminho para o deciframento de fotografias. Resumo, pois, o que pretendi dizer: fotografias so imagens tcnicas que transcodificam conceitos em superfcies. Decifr-las descobrir o que os conceitos significam. Isto complicado, porque na fotografia se amalgamam duas intenes codificadoras: a do fotgrafo e a do aparelho. O fotgrafo visa eternizar-se nos outros por intermdio da fotografia. O aparelho visa programar a sociedade atravs das fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeioar-se. A fotografia , pois, mensagem que articula ambas as intenes codificadoras. Enquanto no existir crtica fotogrfica que revele essa ambigidade do cdigo fotogrfico, a inteno do aparelho prevalecer sobre a inteno humana.
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6. A DISTRIBUIO DA FOTOGRAFIA As caractersticas que distinguem a fotografia das demais imagens tcnicas se revelam ao considerarmos como so distribudas. As fotografias so superfcies imveis e mudas que esperam, pacientemente, serem distribudas pelo processo de multiplicao ao infinito. So folhas. Podem passar de mo em mo, no precisam de aparelhos tcnicos para serem distribudas. Podem ser guardadas em gavetas, no exigem memrias sofisticadas para seu armazenamento. No entanto, antes de considerarmos sua caracterstica de folha de papel , refletiremos por pouco que seja, sobre o problema da distribuio de informaes. O homem capaz de produzir informaes, transmiti-las e guard-las. Tal capacidade humana antinatural, j que a natureza como um todo sistema que tende, conforme o segundo princpio da termodinmica, a se desinformar. H fenmenos, por certo, na natureza (sobretudo os organismos vivos) que so igualmente capazes de produzir informaes e de transmiti-las e guard-las. O homem no o nico epiciclo negativamente entrpico, na linha geral da natureza, rumo entropia. Mas o homem parece ser o nico fenmeno capaz de produzir informaes com o propsito deliberado de se opor entropia. Capaz de transmitir e guardar informaes no apenas herdadas, mas adquiridas. Podemos chamar tal capacidade especificamente humana: esprito e seu resultado, cultura. O processo dessa manipulao de informaes a comunicao que consiste de duas fases: na primeira, informaes so produzidas; na segunda, informaes so distribudas para serem guardadas. O mtodo da primeira fase o dilogo, pelo qual informaes j guardadas na memria so sintetizadas para resultarem em novas (h tambm dilogo interno que ocorre em memria isolada). O mtodo da segunda fase o discurso, pelo qual informaes adquiridas no dilogo so transmitidas a outras memrias, a fim de serem armazenadas. H quatro estruturas fundamentais de discurso: 1. os receptores cercam o emissor em forma de semicrculo, como no teatro; 2. o emissor distribui a informao entre retransmissores, que a purificam de rudos, para retransmiti-la a receptores, como no exrcito ou feudalismo; 3. o emissor distribui a informao entre crculos dialgicos, que a inserem em snteses de informao nova, como na cincia; 4. o emissor emite a informao rumo ao espao vazio, para ser captada por quem nele se encontra, como na rdio. A todo mtodo discursivo, corresponde determinada situao cultural: o primeiro mtodo exige situao responsvel; o segundo , autoritria; o terceiro, progressista; o quarto, massificada. A distribuio das fotografias se d pelo quarto mtodo discursivo. Fotografias podem ser manipuladas dialogicamente. Por exemplo: possvel desenhar-se em cartazes fotogrficos bigodes ou outros smbolos obscenos, criando, assim, informao nova. Mas o aparelho fotogrfico programado para distribuio discursiva rumo ao espao vazio, como o fazem a televiso e o rdio. Todas as imagens tcnicas so assim programadas, salvo o vdeo, que permite interao dialgica. Mas o que distingue as fotografias das demais imagens tcnicas que so folhas. E por isso se assemelham a folhetos. Filmes, para serem distribudos, necessitam de
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aparelhos projetores; fitas de vdeo, de aparelhos televisores. Fotografias nada precisam. verdade que existem dispositivos, e que recentemente foram inventadas fotografias eletrnicas, que exigem distribuio por aparelhos. Porm, o que conta em fotografias a possibilidade de serem distribudas arcaicamente. Por serem relativamente arcaicas, as fotografias relembram um passado pr-industrial, o das pinturas imveis e caladas, como em paredes de caverna, vitrais, telas. Ao contrrio do cinema, as fotografias no se movem, nem falam. Seu arcasmo provm da subordinao a um suporte material: papel ou coisa parecida. Mas essa objetividade residual engana. Um quadro tradicional um original: nico e no multiplicvel. Para distribuir quadros, preciso transport-los de proprietrio a proprietrio. Quadros devem ser apropriados para serem distribudos: comprados, roubados, ofertados. So objetos que tm valor enquanto objetos. Prova disto que os quadros atestam seu produtor: traos do pincel por exemplo. A fotografia, por sua vez, multiplicvel. Distribu-la multiplicla. O aparelho produz prottipos cujo destino serem estereotipados. O termo original perdeu sentido, por mais que certos fotgrafos se esforcem para transport-lo da situao artesanal situao ps-industrial, onde as fotografias funcionam. Ademais, no so to arcaicas quanto parecem. A fotografia enquanto objeto tem valor desprezvel. No tem muito sentido querer possu-la. Seu valor est na informao que transmite. Com efeito, a fotografia o primeiro objeto ps-industrial: o valor se transferiu do objeto para a informao. Psindstria precisamente isso: desejar informao e no mais objetos. No mais possuir e distribuir propriedades (capitalismo ou socialismo). Trata-se de dispor de informaes (sociedade informtica). No mais um par de sapato, mais um mvel, porm, mais uma viagem, mais uma escola. Eis a meta. Transformao de valores, tornada palpvel nas fotografias. Certamente objetos carregam informaes, e o que lhes confere valores. Sapato e mvel so informaes armazenadas. Mas em tais objetos, a informao est impregnada, no pode se descolar, apenas ser gasta. Na fotografia, a informao est na superfcie e pode ser reproduzida em outras superfcies, to pouco valorosas quanto as primeiras. A distribuio da fotografia ilustra, pois, a decadncia do conceito propriedade. No mais quem possui tem poder, mas sim quem programa informaes e as distribui. Neo-imperialismo. Se determinado cartaz rasgar com o vento, nem por isso o poder da agncia publicitria, programadora do cartaz, ficar diminudo. O cartaz nada vale e no tem sentido querer possu-lo. Pode ser substitudo por outro. A comparao da fotografia com quadros impe repensar valores econmicos, polticos, ticos, estticos e epistemolgicos do passado. A decadncia do objeto e a emergncia da informao evidenciam-se melhor em fotografias que nas demais imagens tcnicas que nos cercam. O receptor de filme ou de programa de TV no segura nada em sua mo, mas o receptor da fotografia ainda tem um objeto entre os dedos, e o despreza. Vivencia concretamente o quanto ficaram desprezveis os objetos. Ao segurar a fotografia entre os dedos, o receptor se engaja contra o objeto e em favor e em favor da informao, smbolo da superfcie da fotografia. Exatamente como faz o receptor de folheto. Aps decifrada a mensagem simblica, a folha pode ser descartada. No entanto, o paralelismo entre fotografia e folheto no deve ser exagerado. Ambos so objetos desprezveis, por certo. Mas a inteno da fotografia oposta do folheto: transcodifica a mensagem linear do folheto em imagem. Quer magiciz-la. A fotografia antifolheto. Para prov-lo, basta considerar como fotografias so distribudas.
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Embora no necessitem de aparelhos tcnicos para sua distribuio, as fotografias provocaram a construo de aparelhos de distribuio gigantescos e sofisticados. Aparelhos que se colam sobre o buraco output do aparelho fotogrfico, a fim de sugarem as fotografias por ele cuspidas, multiplic-las e derram-las sobre a sociedade, por milhares de canais. O aparelho de distribuio passa a fazer parte integrante do aparelho fotogrfico, e o fotgrafo age em funo dele. Tais aparelhos, assim como os demais, so programados para programar os seus receptores em prol de um comportamento propcio ao seu funcionamento, cada vez mais aperfeioado. Sua distino dos demais aparelhos o fato de dividirem as fotografias em vrios braos, antes de distribu-las. Tal diviso distribuidora caracteriza as fotografias. Todas as informaes podem ser subdivididas em classes. Por exemplo, informaes indicativas (A A); imperativas ( A deve ser A); optativas (que A seja A). O ideal clssico dos indicativos a verdade; dos imperativos, a bondade; dos optativos, a beleza. Na realidade, porm, a classificao insustentvel. Todo indicativo cientfico tem aspectos polticos e estticos; todo imperativo poltico tem aspectos cientficos e estticos; todo gesto optativo (obra de arte) tem aspectos cientficos e polticos. De maneira que toda classificao de informaes mera teoria. Os aparelhos distribuidores de fotografias transformam-nas em prxis. H canais para fotografias indicativas, por exemplo, livros cientficos e jornais dirios. H canais para fotografias imperativas, por exemplo, cartazes de propaganda comercial e poltica. E h canais para fotografias artsticas, por exemplo, revistas, exposies e museus. No entanto, tais canais dispem de dispositivos que permitem a determinadas fotografias deslizarem de um canal a outro. Fotografias do homem na lua podem transitar entre revista de astronomia e parede de consulado americano, da para exposio artstica, e da para lbum de ginasiano. A cada vez que troca de canal, a fotografia muda de significado: de cientfica passa a ser poltica, artstica, privativa. A diviso das fotografias em canais de distribuio no operao meramente mecnica: trata-se de operao de transcodificao. Algo a ser levado em considerao por toda crtica de fotografia. O fotgrafo colabora nessa transcodificao da fotografia pelos aparelhos de distribuio, e o faz de maneira sui generis. Ao fotografar, visa determinado canal para distribuir sua fotografia. Fotografa em funo de determinada publicao cientfica, determinado jornal, determinada exposio, ou simplesmente em funo de seu lbum. Do ponto de vista do fotgrafo, duas razes o movem: primeira, o canal lhe permitir alcanar grande nmero de receptores, pois seu engajamento precisamente eternizar-se num mximo de pessoas; segunda, o canal vai sustent-lo economicamente, pois a fotografia, enquanto objeto desprezvel, no tem valor de troca. Em suma: o canal para o fotgrafo um mtodo para torn-lo imortal e no morrer de fome (quanto ao lbum, por ser canal sui generis, aparentemente privado, ser discutido no captulo seguinte). No canal, a inteno do fotgrafo e do aparelho se co-implicam pela mesma involuo j discutida: o fotgrafo fotografa em funo de um jornal determinado, porque este lhe permite alcanar centenas de milhares de receptores e porque o paga. O fotgrafo cr estar utilizando o jornal como mdium, enquanto o jornal cr estar utilizando o fotgrafo em funo de seu programa. Do ponto de vista do jornal, quando a fotografia recodifica os artigos lineares em imagens, ilustrando-os, est permitindo a programao mgica dos compradores do jornal em comportamento adequado. Ao fotografar, o fotgrafo sabe que sua fotografia ser aceita pelo jornal somente se esta se enquadrar em seu programa. De maneira que vai procurar driblar tal censura, ao contrabandear na fotografia elementos estticos, polticos e epistemolgicos no previstos no programa. Vai procurar submeter a
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inteno do jornal sua. Este, por sua vez, embora possa descobrir tal tentativa astuciosa, pode vir a aceitar a fotografia com o propsito de enriquecer seu programa. Vai procurar recuperar a inteno subversiva. Pois bem, o que vale para jornais, vale para os demais canais de distribuio de fotografias, uma vez que todos revelaro, sob anlise crtica, a luta dramtica entre a inteno do fotgrafo e a do aparelho distribuidor de fotografias. Tal crtica rara. Os crticos no reconhecem, via de regra, a funo codificadora do canal distribuidor na fotografia criticada. Assumem, como um dado no-criticvel, que canais cientficos distribuem fotografias cientficas; que agncias de propaganda distribuem fotografias publicitrias; que galerias de arte distribuem fotografias de arte. Desta maneira, os crticos tornam invisveis os canais distribuidores de fotografias. Funcionam em funo da inteno de tais canais, os quais, precisamente, se querem invisveis. Para isto os crticos so pagos: eis sua funo no interior dos aparelhos. Ao calarem os crticos sobre a luta entre fotgrafo e canal, colaboram com os aparelhos em sua inteno de absorver a inteno do fotgrafo contra o aparelho. Trata-se de colaborao no significado pejorativo de trahison des clercs1, e ilustra a funo dos intelectuais em situao onde aparelhos dominam. Ao formularem perguntas do tipo fotografia arte?, ou o que fotografia politicamente engajada?, sem admitirem que tais perguntas vo sendo respondidas automaticamente pelos canais, os crticos contribuem para o ocultamento dos aparelhos programadores. Ao considerarmos a distribuio de fotografias, esbarramos naquilo que as distingue das demais imagens tcnicas: so imagens imveis e mudas do tipo folha, e podem ser infinitamente reproduzidas; poderiam ser distribudas como folhetos, no entanto o so por aparelhos gigantescos que as irradiam por discurso massificante; enquanto objetos, as fotografias no tm valor: este reside na informao que guardam superficialmente; so, portanto, objetos ps-industriais: o interesse se desvia para a informao e no para o objeto que se abandona; antes de serem distribudas, as fotografias so transcodificadas pelo aparelho de distribuio, a fim de serem subdivididas em canais diferentes; somente dentro do canal, do medium, adquirem seu ltimo significado; nessa transcodificao, cooperam tanto o fotgrafo quanto o aparelho. Este fato silenciado pela maior parte da crtica, o que torna os aparelhos de distribuio invisveis para os receptores das fotografias. Graas a tal crtica funcional, o receptor da fotografia vai receb-la de modo no-crtico. E ser assim que os aparelhos de distribuio podero programar o receptor para comportamento mgico que sirva de feed-back para seus aparelhos.
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7. A RECEPO DA FOTOGRAFIA De modo geral, todo mundo possui um aparelho fotogrfico e fotografa, assim como, praticamente, todo mundo est alfabetizado e produz textos. Quem sabe escrever, sabe ler; logo, quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano. Para captarmos a razo pela qual quem fotografa pode ser analfabeto fotogrfico, preciso considerar a democratizao do ato fotogrfico. Tal considerao poder contribuir, de passagem, nossa compreenso da democracia em seu sentido mais amplo. Aparelho fotogrfico comprado por quem foi programado para tanto. Aparelhos de publicidade programam tal compra. O aparelho fotogrfico assim comprado ser de ultimo modelo: menor, mais barato, mais automtico e eficiente que o anterior. O aparelho deve o aperfeioamento constante de modelos ao feed-back dos que fotografam. O aparelho da indstria fotogrfica vai assim aprendendo, pelo comportamento dos que fotografam, como programar sempre melhor os aparelhos fotogrficos que produzir. Neste sentido, os compradores de aparelhos fotogrficos so funcionrios do aparelho da indstria fotogrfica. Uma vez adquirido, o aparelho fotogrfico vai se revelar um brinquedo curioso. Embora repouse sobre teorias cientficas complexas e sobre tcnicas sofisticadas, muito fcil manipul-lo. O aparelho prope jogo estruturalmente complexo, mas funcionalmente simples. Jogo oposto ao xadrez, que estruturalmente simples, mas funcionalmente complexo: fcil aprender suas regras, mas difcil jog-lo bem. Quem possui aparelho fotogrfico de ltimo modelo, pode fotografar bem sem saber o que se passa no interior do aparelho. Caixa preta. O aparelho brinquedo sedento por fazer sempre mais fotografias. Exige de seu possuidor (quem por ele est possesso) que aperte constantemente o gatilho. Aparelhoarma. Fotografar pode virar mania, o que evoca uso de drogas. Na curva desse jogo manaco, pode surgir um ponto a partir do qual o homem-desprovido-de-aparelho se sente cego. No sabe mais olhar, a no ser atravs do aparelho. De maneira que no est face ao aparelho (como o arteso frente ao instrumento), nem est rodando em torno do aparelho (como o proletrio roda a mquina). Est dentro do aparelho, engolido por sua gula. Passa a ser prolongamento automtico do seu gatilho. Fotografa automaticamente. A mania fotogrfica resulta em torrente de fotografias. Uma torrente memria que a fixa. Eterniza a automaticidade inconsciente de quem fotografa. Quem contemplar lbum de fotgrafo amador, estar vendo a memria de um aparelho, no a de um homem. Uma viagem para a Itlia, documentada fotograficamente, no registra as vivncias, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde o aparelho o seduziu para apertar o gatilho. lbuns so memrias privadas apenas no sentido de serem memrias de aparelho. Quanto mais eficientes se tornam os modelos dos aparelhos, tanto melhor atestaro os lbuns, a vitria do aparelho sobre o homem. Privatividade no sentido ps-industrial do termo. Quem escreve precisa dominar as regras da gramtica e ortografia. Fotgrafo amador apenas obedece a modos de usar, cada vez mais simples, inscritos ao lado externo do aparelho. Democracia isto. De maneira que quem fotografa como amador no pode decifrar fotografias. Sua prxis o impede de faz-lo, pois o fotgrafo amador cr ser o fotografar gesto automtico graas ao qual o mundo vai aparecendo. Impe-se
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concluso paradoxal: quanto mais houver gente fotografando, tanto mais difcil se tornar o deciframento de fotografias, j que todos acreditam saber faz-las. Mas ainda no tudo. As fotografias que sobre ns se derramam so recebidas como se fossem trapos desprezveis. Podemos recort-las de jornais, rasg-las, jog-las. Nossa prxis com a mar fotogrfica que nos inunda faz crer que podemos fazer delas e com elas o que bem entendermos. Tal desprezo pela fotografia individual distingue a sua recepo das demais imagens tcnicas. Exemplo: ao contemplarmos cena da guerra no Lbano em cinema ou TV, sabemos que nada podemos fazer a no ser contempl-la. Ao contemplarmos cena idntica em jornal, podemos recort-la e guard-la, ou simplesmente rasg-la para embrulhar sanduche. Isso leva a crer que podemos agir ao recebermos a mensagem de tal guerra, que podemos assumir ponto de vista histrico face guerra. Analisemos essa falsa atitude histrica face fotografia. A fotografia da guerra no Lbano em jornal mostra uma cena. Exige que nosso olhar a escrutine pelo mtodo j discutido anteriormente. O olhar vai estabelecendo relaes especficas entre os elementos da fotografia. No sero relaes histricas de causa e efeito, mas relaes mgicas do eterno retorno. Por certo, o artigo que a fotografia ilustra no jornal consiste de conceitos que significam as causas e os efeitos de tal guerra. Porm o artigo lido em funo da fotografia, como que atravs dela. No o artigo que explica a fotografia, mas a fotografia que ilustra o artigo. Este s texto no curioso sentido de ser pr-texto da fotografia. Tal inverso da relao texto-imagem caracteriza a ps-indstria, fim de todo historicismo. No curso da Histria, os textos explicavam as imagens, demitizavam-nas. Doravante, as imagens ilustram os textos, remitizando-os. Os capitis romnticos serviam aos textos bblicos com o fim de desmagiciz-los. Os artigos de jornal servem s fotografias para serem remagicizados. No curso da Histria, as imagens eram subservientes, podia-se dispens-las. Atualmente, os textos so subservientes e podem ser dispensados. Os pases assim chamados subdesenvolvidos comeam a descobrir tal fato. No decorrer da Histria, o iletrado era um aleijado da cultura dominada por textos. Atualmente, o iletrado participa da cultura dominada por imagens. Lutar contra o analfabetismo vai-se revelando luta quixotesca. Contudo, no so apenas os pases subdesenvolvidos que comeam a perceb-lo, Johnny cant spell nos Estados Unidos. O analfabetismo fotogrfico est levando ao analfabetismo textual. No , pois, historicamente, que agimos face guerra do Lbano; agimos ritualmente. Recortar a fotografia do jornal ou rasg-la agir ritualmente. A fotografia est sendo manipulada como em ritual de magia. No fundo, no somos ns que a manipulamos, ela que nos manipula. E da seguinte forma: a cena fotogrfica da guerra no Lbano consiste de elementos que se relacionam significativamente. No sentido temporal, um elemento precede outro e pode suceder ao precedente. No sentido de superfcie, um elemento d significado a outro e recebe significado de outro. Destarte, a superfcie da imagem passa a ser significativa, carregada de valores. Est plena de deuses. Mostra o que bom e o que mau: os tanques so maus; as crianas so boas; Beirute em chamas infernal, os mdicos de uniforme branco so anjos. A fotografia hierofania: o sacro nela transparece. E o que vale para esta fotografia relativa ao Lbano, vale para todas as demais. So, todas elas, imagens de foras inefveis que giram em torno da imagem, conferindo-lhe sabor indefinvel. Imagens de foras ocultas que giram magicamente. Fascinam seu receptor, sem que este saiba dizer o que o fascina. O receptor pode recorrer ao artigo de jornal que acompanha a fotografia par dar nome ao que est vendo. Mas, ao ler o artigo, est sob a influncia do fascnio mgico da
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fotografia. No quer explicao sobre o que viu, apenas confirmao. Est farto de explicaes de todo tipo. Explicaes nada adiantam se comparadas com o que se v. No quer saber sobre causas ou efeitos da cena, porque esta e no o artigo que transmite realidade. E como tal realidade mgica, a fotografia no a transmite; ela a prpria realidade. A realidade da guerra no Lbano, a realidade ela mesma est na fotografia. No pode estar alhures. Se o receptor da fotografia for para o Lbano ver a guerra com seus prprios olhos, estar vendo a mesma cena, j que olha tudo pelas categorias da fotografia. Est programado para ver magicamente. E para que fazer tal viagem, se a fotografia lhe traz a guerra para sua casa? O vetor de significado se inverteu: o smbolo o real e o significado o pretexto. O universo dos smbolos (entre os quais, o universo fotogrfico dos mais importantes) o universo mgico da realidade. No adianta perguntar o que a fotografia da cena libanesa significa na realidade. Os olhos vem o que ela significa, o resto metafsica de m qualidade. E assim a fotografia vai modelando seus receptores. Estes reconhecem nela foras ocultas inefveis, vivenciam concretamente o efeito de tais foras e agem ritualmente para propiciar tais foras. Exemplo: em fotografia de cartaz mostrando escova de dente, o receptor reconhece o poder da crie. Sabe que fora nefasta e compra a escova a fim de pass-la ritualmente sobre os dentes, conjurando o perigo (espcie de sacrifcio ao deus Crie, ao Destino). Certamente, pode recorrer ao lxico sobre o verbete crie. Isto apenas confirma o mito, no importa o que diz o texto, o leitor comprar a escova. Est programado para tanto. At com informao histrica, agir magicamente. bvio, isto no descrio de vida em tribo de ndio; descrio de vida de funcionrio em situao programada por aparelhos. ndio no dispe de verbete. Ambos, ndio e funcionrio, crem na realidade das imagens. No entanto, a crena do funcionrio de m f. Naturalmente: o funcionrio pensa saber melhor, tem o verbete, aprendeu a ler, a Ter conscincia histrica das causas e efeitos. Sabe que no Lbano no se chocam Bem e Mal, mas que uma cadeia de causas produz uma cadeia de efeitos. Sabe que escova de dentes no objeto ritual, mas produto da histria do Ocidente. Este saber melhor deve ser reprimido, quando se trata de agir segundo o programa. Se o funcionrio estiver consciente das causas e efeitos do seu funcionamento, jamais funcionar corretamente. Se tivesse conscincia histrica, como poderia comprar escovas dente, formar opinio sobre o Lbano ou simplesmente ir ao escritrio, arquivar papeladas, participar de reunies, gozar frias, aposentar-se? A represso da conscincia histrica indispensvel para o funcionamento. As fotografias servem para reprimi-la. No entanto, a conscincia crtica pode ainda ser mobilizada. Nela, a magia programada nas fotografias torna-se transparente. A fotografia da cena libanesa em jornal no mais revelar foras ocultas do tipo judasmo ou terrorismo, mas mostrar os programas do jornal e do partido poltico que o programa, assim como o programa do aparelho poltico que programa o partido. Ficar evidente que judasmo e terrorismo etc., constam de tais programas. A fotografia da escova de dente no mais revelar foras ocultas do tipo crie, mas mostrar o programa das agncias de publicidade e o programa do governo. Ficar evidente que crie consta de tais programas. A crtica pode ainda desmagicizar a imagem. No entanto, algo de verdadeiramente monstruoso pode acontecer no curso do esforo para desmagiciz-la: o crtico est atualmente j programado para uma viso mgica do mundo. O prprio crtico v foras ocultas em toda parte. Sob tal viso, os prprios aparelhos tornam-se foras ocultas: o jornal, o partido, a agncia de publicidade,
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o parque industrial so deuses a serem exorcizados pela fotografia. Hierofania de segundo grau, onde o jornal vai tomar o lugar do terrorismo desmitificado. Os aparelhos no so mais percebidos enquanto brinquedos automticos, mas como possudos de foras inefveis. A crtica de cultura da Escola de Frankfurt bom exemplo desse paganismo de segundo grau, exorcismo do exorcismo. Resumindo; eis como fotografias so recebidas: enquanto objetos, no tm valor, pois todos sabem faz-las e delas fazem o que bem entendem. Na realidade, so elas que manipulam o receptor para comportamento ritual, em proveito dos aparelhos. Reprimem a sua conscincia histrica e desviam a sua faculdade crtica para que a estupidez absurda do funcionamento no seja conscientizada. Assim, as fotografias vo formando crculo mgico em torno da sociedade, o universo das fotografias. Contemplar tal universo visando quebrar o crculo seria emancipar a sociedade do absurdo.
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8. O UNIVERSO FOTOGRFICO As fotografias nos cercam. To onipresentes so, no espao pblico e no privado, que sua presena no est sendo percebida. O fato de passarem despercebidas poderia ser explicado, normalmente, por sua circunstancialidade: estamos habituados nossa circunstncia, o hbito a encobre, somente percebemos alteraes em nosso cotidiano. Tal explicao no funciona no caso das fotografias. O universo fotogrfico est em constante flutuao e uma fotografia constantemente substituda por outra. Novos cartazes vo aparecendo semanalmente sobre os muros, novas fotografias publicitrias nas vitrines, novos jornais ilustrados diariamente nas bancas. No a determinadas fotografias, mas justamente alterao constante de fotografias que estamos habituados. Trata-se de novo hbito: o universo fotogrfico nos habitua ao progresso. No mais o percebemos. Se, de repente, os mesmos jornais aparecessem diariamente em nossas salas ou os mesmos cartazes semanalmente sobre os muros, a sim, ficaramos comovidos. O progresso se tornou ordinrio e costumeiro; a informao e a aventura seriam a paralisao e o repouso. Igualmente habituados estamos colorao de tal universo. No nos damos conta quo surpreendente teria sido um cotidiano colorido para as geraes precedentes. No sculo XIX, o mundo l fora era cinzento: muros, jornais, livros, roupas, instrumentos, tudo isso oscilava entre o branco e o preto, dando em seu conjunto, a impresso do cinza: impresso de textos, teorias, dinheiro. Atualmente tudo isso grita alto em todas as tonalidades do arco-ris. Ns, porm, estamos surdos oticamente diante de tal poluio. As cores penetram nossos olhos e nossa conscincia sem serem percebidas, alcanando regies subliminares, onde ento funcionam. Algo a ser considerado por toda filosofia da fotografia. Se compararmos nossa colorao com a medieval ou com a de outras civilizaes no-ocidentais, constataremos o seguinte: na Idade Mdia, como em outras culturas exticas, cores so smbolos mgicos que se enquadram nos mitos. Assim, vermelho pode significar perigo de sermos engolidos pelo inferno. Em nosso universo, o significado mgico foi recodificado para e em funo de programas, sem contudo, perder seu poder mgico. Vermelho em farol de trnsito continua significando perigo, mas seu significado atravessa olhos e conscincia para que apertemos automaticamente o freio. A colorao do universo das fotografias funciona pela maneira descrita: vai programando magicamente o nosso comportamento. No entanto, o carter do camaleo do universo fotogrfico, sua colorao cambiante, no passa de fenmeno da pele. Quanto sua estrutura profunda, o universo fotogrfico um mosaico. Muda constantemente de aspecto e cor, como mudaria um mosaico onde as pedrinhas seriam constantemente substitudas por outras. Toda fotografia individual uma pedrinha de mosaico: superfcie clara e diferente das outras. Trata-se, pois, de universo quntico, calculvel (clculo = pedrinha ), atomizado, democritiano, composto de gros, no de ondas, funcionando como quebra-cabeas, como jogo de permutao entre elementos claros e distintos. A estrutura quntica do universo fotogrfico no surpreendente. Como produto do gesto de fotografar, o qual revelou-se gesto composto de pequenos saltos. Se
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analisarmos a estrutura quntica do universo fotogrfico, encontraremos explicao mais profunda para o carter saltitante d tudo que se refere fotografia. Descobriremos que tal estrutura tpica de todo movimento do aparelho. At em aparelhos que parecem deslizar (como nas imagens do cinema ou da TV), podemos descobrir os pequenos saltos. A razo que os aparelhos foram construdos segundo o modelo cartesiano. Isto se torna mais evidente se considerarmos como funcionam os computadores. Trata-se de aparelhos para pensar cartesianamente. Segundo o modelo cartesiano, o pensamento um colar de prolas claras e distintas. Tais prolas so os conceitos e pensar permutar conceitos segundo as regras do fio. Pensar manipular baco de conceitos. Todo conceito claro e distinto significa um ponto l fora no mundo das coisas extensas (res extensa). Se consegussemos adequar a cada ponto l fora um conceito da coisa pensante, seramos oniscientes. E tambm onipotentes, porque, ao permutarmos os conceitos, poderamos simbolicamente permutar os pontos l fora. Infelizmente, tal oniscincia e onipotncia no so possveis, porque a estrutura da coisa pensante no se adequa da coisa extensa. Nesta, os pontos se confundem uns com os outros, con-crescem, fazendo com que a coisa extensa seja concreta. Na coisa pensante, h intervalos entre os conceitos claros e distintos. A maioria dos pontos escapa por tais intervalos. Descartes esperava superar esta dificuldade graas geometria analtica e ajuda divina. No conseguiu faz-lo. Os computadores, estes sim, conseguem o feito, graas a duas estratgias: reduzem os conceitos cartesianos a dois: 0 e 1 e pensam em bits, binariamente; depois, programam universos adequados a esse tipo de pensamento. Em tais universos, os computadores passaram a ser, de fato, oniscientes e onipotentes. O universo fotogrfico um exemplo. A cada fotografia individual, corresponde um conceito claro e distinto no programa do aparelho produtor desse universo. Aparelho produtor que no necessariamente um computador, mas que funciona segundo a mesma estrutura lgica. Eis como se produz o universo fotogrfico: homens constroem aparelhos segundo modelos cartesianos; em seguida, os alimentam com conceitos claros e distintos (atualmente existem aparelhos de segunda gerao que podem ser construdos e alimentados por outros aparelhos e os homens vo desaparecendo para o alm do horizonte); os aparelhos passam a permutar os conceitos claros e distintos inscritos no seu programa; fazem-no ao acaso, automaticamente, pensam idiotamente; as permutaes que assim se formam so transcodificadas em imagens e fotografias; a cada fotografia, corresponder determinada permutao de conceitos no programa do aparelho, e a cada permutao corresponder uma determinada fotografia; haver relao biunvoca entre o programa do aparelho e o universo da fotografia; o aparelho ser onisciente e onipotente em tal universo. Mas ter pago um preo: os vetores de significao se inverteram. No mais o pensamento que significar a coisa extensa; a fotografia que significa um pensamento. Resta a pergunta: que significa pensamento programado? A descrio da produo do universo fotogrfico, acima esboada, ignora o fator humano. No considerou a involuo das intenes do aparelho com as humanas. A simplificao proposital do processo de produo do universo fotogrfico permite definir o conceito fundamental de programa: jogo de permutao entre elementos claros e distintos. Tal jogo obedece ao acaso, que por sua vez, vai se tornar necessidade. Exemplo extremamente simples de programa um jogo de dados: permuta os elementos 1 a 6
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ao acaso. Todo lance individual imprevisvel. Mas a longo prazo, o 1 ser realizado em cada sexto lance. Necessariamente. Isto : todas as virtualidades inscritas no programa, embora se realizem ao acaso, acabaro se realizando necessariamente. Se guerra atmica estiver inscrita em determinados programas de determinados aparelhos, ser realidade, necessariamente, embora acontea por acaso. neste sentido sub-humano cretino que os aparelhos so oniscientes e onipotentes em seus universos. O universo fotogrfico, no estgio atual, realizao casual de algumas das virtualidades programadas em aparelhos. Outras virtualidades se realizaro ao acaso, no futuro. E tudo se dar necessariamente. O universo fotogrfico muda constantemente, porque cada uma das situaes corresponde a determinado lance de um jogo cego. Cada situao do universo fotogrfico significa determinada permutao dos elementos inscritos no programa dos aparelhos, o que permite definirmos o universo das fotografias: 1. surgiu de um jogo programtico e significa um lance de tal jogo; 2. o jogo no obedece a nenhuma estratgia deliberada; 3. o universo composto de imagens claras e distintas, as quais no significam, como se pretende, situaes l fora no mundo, mas determinadas permutaes de elementos do programa; 4. tais imagens programam magicamente a sociedade para um comportamento em funo do jogo dos aparelhos. Resumindo: o universo fotogrfico um dos meios do aparelho para transformar homens em funcionrios, em pedras do seu jogo absurdo. Neste ponto da discusso, o argumento deve necessariamente bifurcar-se. Uma das direes do argumento conduz sociedade programada, cercada pelo universo das fotografias; outra vai levar rumo aos aparelhos programadores, lugares da deciso, como se dizia antigamente. A primeira levar crtica da sociedade ps-industrial; a segunda ser tentativa para transcender tal sociedade. Se no distinguirmos as direes divergentes, jamais conseguiremos nos orientar na situao emergente. Estar no universo fotogrfico implica viver, conhecer, valorar e agir em funo de fotografias. Isto : existir em mundo-mosaico. Vivenciar passa a ser recombinar constantemente experincias vividas atravs de fotografias. Conhecer passa a ser elaborar colagens fotogrficas para se ter viso de mundo. Valorar passa a ser escolher determinadas fotografias como modelos de comportamento, recusando outras. Agir passa a ser comportar-se de acordo com a escolha. Tal forma de existncia passa a ser quanticamente analisvel. Toda experincia, todo conhecimento, todo valor toda ao consiste de bits definveis. Trata-se de existncia robotizada, cuja liberdade de opinio, de escolha e de ao torna-se observvel se confrontada com os robs mais aperfeioados. A robotizao dos gestos humanos j facilmente constatvel. Nos guichs de bancos, nas fbricas, em viagens tursticas, nas escolas, nos esportes, na dana. Menos facilmente, mas ainda possvel, ela constatvel nos produtos intelectuais da atualidade. Nos textos cientficos, poticos e polticos, nas composies musicais, na arquitetura. Tudo vai se robotizando, isto , obedece a um ritmo staccato. A crtica da cultura comea a descobri-lo. Sua tarefa seria a de indagar at que ponto o universo da fotografia responsvel pelo que est acontecendo. A hiptese aqui defendida esta: a inveno do aparelho fotogrfico o ponto a partir do qual a existncia humana vai abandonando a estrutura do deslizamento linear, prprio dos textos, para assumir a estrutura de saltear quntico, prprio dos aparelhos. O aparelho fotogrfico, enquanto prottipo, o patriarca de todos os aparelhos. Portanto, o aparelho fotogrfico a fonte da robotizao da vida em todos os seus aspectos, desde os gestos exteriorizados ao mais ntimo dos pensamentos, desejos e sentimentos.
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O universo fotogrfico produto do aparelho fotogrfico, que por sua vez, produto de outros aparelhos. Tais aparelhos so multiformes: industriais, publicitrios, econmicos, polticos, administrativos. Cada qual funciona automaticamente. E suas funes esto ciberneticamente coordenadas a todas as demais. O input de cada um deles alimentado por outro aparelho; o output de todo aparelho alimenta outro. Os aparelhos se programam mutuamente em hierarquia envelopante. Trata-se, nesse complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas. Um supercomplexo de produo humana. Produzido no decorrer dos sculos XIX e XX, pelo homem. E homens continuam a produzi-lo. De maneira que parece bvio como criticar tudo isso: basta descobrir as intenes humanas que levaram a produo de aparelhos. Trata-se de um mtodo de crtica sedutor, por duas razes diferentes. Em primeiro lugar, dispensa o crtico de mergulhar no interior das caixas pretas. Basta concentrar-se sobre o input que a deciso humana. Em segundo lugar, o mtodo pode recorrer a critrios j bem elaborados, por exemplo, os marxistas. Eis o resultado de tal crtica: os aparelhos foram inventados para emancipar o homem da necessidade do trabalho; trabalham automaticamente para ele. O aparelho fotogrfico produz imagens automaticamente, e o homem no mais precisa movimentar pincis esforando-se para vencer a resistncia do mundo objetivo. Simultaneamente, os aparelhos emancipam o homem para o jogo. Ao invs de movimentar o pincel, o fotgrafo pode brincar com o aparelho. No entanto, certos homens se apoderam dos aparelhos desviando a inteno de seus inventores em seu prprio proveito. Atualmente os aparelhos obedecem a decises de seus proprietrios e alienam a sociedade. Quem afirmar que no h inteno dos proprietrios, por trs dos aparelhos, est sendo vtima dessa alienao e colabora objetivamente com os proprietrios do aparelhos. Segundo tal anlise, nada de muito novo aconteceu com a inveno dos aparelhos, porque os conceitos neles programados significam os interesses de seus proprietrios. Toda fotografia individual ser decifrada quando nela descobrirmos os interesses do proprietrio, da fbrica Kodak, do proprietrio da agncia de publicidade, dos poderes humanos que dominam a indstria americana, e finalmente, os interesses humanos que se escondem por trs do aparelho da ideologia americana. Quanto ao universo fotogrfico como um todo, estar decifrado somente quando descobrirmos a que interesses inconfessos serve. Infelizmente, essa crtica clssica jamais ferir o essencial: a automaticidade dos aparelhos. Justamente o ponto que merece ser criticado. No h dvida que os aparelhos foram originalmente produzidos por homens. Revelaram portanto, sob anlise, intenes humanas e interesses humanos, como acontece com todo produto da cultura. Que inteno humana e que interesse humano so esses? Precisamente chegar a algo que dispensa futuras intenes humanas e futuras intervenes humanas. O propsito por trs dos aparelhos torn-los independentes do homem. Essa autonomia resulta, segundo a prpria inteno, em situao onde o homem eliminado. Mas eliminado por mtodo que no foi previsto pelos inventores dos aparelhos, esse jogo casual com elementos, passou a ser de tal forma rico e rpido, que ultrapassa a competncia humana. Nenhum homem pode mais controlar o jogo. E quem dele participar, longe de o controlar, ser por ele controlado. A autonomia dos aparelhos levou inverso de sua relao com os homens. Estes, sem exceo, funcionam em funo dos aparelhos. No pode haver proprietrio de aparelhos. Como os aparelhos no mais obedecem ao controle humano, a ningum pertencem. Quem cr ser possuidor de
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aparelho , na realidade, possudo por ele. Doravante, nenhuma deciso humana funciona. Todas as decises passam a ser funcionais, isto , tomadas ao acaso, sem propsito deliberado. Os conceitos programados nos aparelhos, que originalmente significavam intenes humanas, no mais as significam. Passaram a ser autosignificantes. So vazios os smbolos com os quais joga o aparelho. Este no funciona em funo de inteno deliberada, mas automaticamente, girando em ponto morto. E todas as virtualidades inscritas em seu programa, inclusive a de produzir outros aparelhos e a de autodestruir-se, se realizaro necessariamente. A crtica clssica dos aparelhos objetar que tudo no passa de mitificao que os transforma em gigantes super-humanos, a fim de esconder a inteno humana que os move. A objeo falha. Os aparelhos so de fato gigantescos, pois foram produzidos para s-lo. E de forma nenhuma so super-humanos. Pelo contrrio so plidas simulaes do pensamento humano. O dever de toda crtica dos aparelhos mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos. Mostrar que se trata de vassouras invocadas por aprendiz de feiticeiro que traz, automaticamente, gua at afogar a humanidade, e que se multiplicam automaticamente. Seu intuito deve ser exorcizar essas vassouras, recolocando-as naquele canto ao qual pertencem, conforme a inteno inicial humana. Graas a crticas deste tipo que podemos esperar transcender o totalitarismo robotizante dos aparelhos que est em vias de se preparar. No ser negando a automaticidade dos aparelhos, mas a encarando, que podemos esperar a retomada do poder sobre os aparelhos. Depois dessa dupla excurso pelo universo fotogrfico, podemos resumir o argumento: o universo fotogrfico um jogo de permutao cambiante e colorido com superfcies claras e distintas, chamadas fotografias. Estas so imagens de conceitos programados em aparelhos e tais conceitos so smbolos vazios. Sob anlise, o universo fotogrfico universo vazio e absurdo. No entanto, como as fotografias so cenas simblicas, elas programam a sociedade para um comportamento mgico em funo do jogo. Conferem significado mgico vida da sociedade. Tudo se passa automaticamente, e no serve a nenhum interesse humano. Contra essa automao estpida, lutam determinados fotgrafos, ao procurarem inserir intenes humanas no jogo. Os aparelhos, por sua vez, recuperar automaticamente tais esforos em proveito de seu funcionamento. O dever de uma filosofia da fotografia seria o de desmascarar esse jogo. Quem l tal resumo, ter a impresso de que a importncia da fotografia sobre a vida ps-industrial est sendo exagerada. Porque o resumo no descreve apenas o universo fotogrfico, mas todo o universo dos aparelhos. No seria o universo fotogrfico apenas um entre os mltiplos universos do mesmo tipo, longe de ser o mais significativo? No haver universos mais angustiantes? O prximo e ltimo captulo deste ensaio se esforar por mostrar que o universo fotogrfico no apenas um evento relativamente incuo do funcionamento, mas pelo contrrio, o modelo de toda vida futura. E que a filosofia da fotografia pode vir a ser o ponto de partida para toda disciplina, que tenha como objeto a vida do homem futuro.
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9. A URGNCIA DE UMA FILOSOFIA DA FOTOGRAFIA No decorrer deste ensaio, vieram tona estes conceitos-chave: imagem, aparelho, programa, informao. Tais conceitos formam as pedras angulares de toda filosofia da fotografia, baseando-se na seguinte definio de fotografia: imagem produzida e distribuda por aparelhos segundo um programa, a fim de informar receptores. Todo conceito-chave, por sua vez, implica conceitos subseqentes. Imagem implica magia. Aparelho implica automao e jogo. Programa implica acaso e necessidade. Informao implica smbolo. Os conceitos implcitos permitem ampliar a definio da fotografia da seguinte maneira: imagem produzida e distribuda automaticamente no decorrer de um jogo programado, que se d ao acaso que se torna necessidade, cuja informao simblica, em sua superfcie, programa o receptor para um comportamento mgico. A definio tem curiosa vantagem: exclui o homem enquanto fator ativo e livre. Portanto, definio inaceitvel. Deve ser contestada, porque a contestao a mola propulsora de todo pensar filosfico. De maneira que a definio proposta pode servir de ponto de partida para a filosofia da fotografia. Os conceitos imagem, aparelho, programa, informao, considerados mais de perto, revelam o cho comum do qual brotam. Cho da circularidade. Imagens so superfcies sobre as quais circula o olhar. Aparelhos so brinquedos que funcionam com movimentos eternamente repetidos. Programas so sistemas que recombinam constantemente os mesmos elementos. Informao epiciclo negativamente entrpico que dever voltar entropia da qual surgiu. Quando refletimos sobre os quatro conceitoschave, estamos no cho do eterno retorno. Abandonamos a reta, onde nada se repete, cho da histria, da causa e efeito. Na regio do eterno retorno, sobre a qual nos coloca a fotografia, as explicaes causais devem calar-se. Rest, rest, dear spirit como dizia Cassirer com referncia causalidade. Categorias no-histricas devem ser aplicadas filosofia da fotografia, sob pena de no se adequarem ao seu assunto. No entanto, o abandono do pensamento causal e linear se d espontaneamente, no preciso deliber-lo. Pensamos j ps-historicamente. Os conceitos-chaves sustentadores da fotografia j esto espontaneamente encrustados em nosso pensar. Darei como nico exemplo, a cosmologia atual. Reconhecemos no cosmos um sistema que tende para situaes cada vez mais provveis. Situaes improvveis surgem ao acaso, de vez em quando. Mas retornaro, necessariamente, para a tendncia rumo probabilidade. Reformulando: reconhecemos no cosmos um sistema que contm um programa inicial, no big bang, que vai se realizando por acaso, automaticamente. No curso da realizao, surgiro informaes que vo pouco a pouco, se desinformando. A cada instante, o universo situao surgida ao acaso, que levar necessariamente morte trmica, de forma que o universo aparelho produtor do caos. A nossa prpria cosmologia no passa de imagem desse aparelho. Em conseqncia, tal cosmoviso deve descartar toda explicao causal e recorrer a explicaes formais, funcionais. Os quatro conceitos-chave da fotografia so tambm os da cosmologia. A estrutura ps-histrica do nosso pensamento pode ser encontrada em vrios outros terrenos: biologia, psicologia, lingstica, informtica, ciberntica, para citar apenas alguns. Em todos, estamos j, de forma espontnea, pensando informaticamente,
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programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente. Estamos pensando do modo pelo qual pensam computadores. Penso que estamos pensando de tal maneira porque a fotografia o nosso modelo, foi ela que nos programou para pensar assim. A tese no muito nova. Sempre se sups que os instrumentos so modelos de pensamento. O homem os inventa, tendo por modelo seu prprio corpo. Esquece-se depois do modelo, aliena-se, e vai tomar o instrumento como modelo do mundo, de si prprio e da sociedade. Exemplo clssico dessa alienao o sculo XVIII. O homem inventou as mquinas, tendo por modelo seu prprio corpo, depois tomou as mquinas como modelo do mundo, de si prprio e da sociedade. Mecanicismo. No sculo XVIII, portanto, uma filosofia da mquina teria sido a crtica de toda cincia, toda poltica, toda psicologia, toda arte. Atualmente, uma filosofia da fotografia deve ser outro tanto. Crtica do funcionalismo. A coisa no to simples. A fotografia no instrumento, como a mquina, mas brinquedo como as cartas do baralho. No momento em que a fotografia passa a ser modelo de pensamento, muda a prpria estrutura da existncia, do mundo e da sociedade. No se trata, nesta revoluo fundamental, de se substituir um modelo pelo outro. Trata-se de saltar de um tipo de modelo para outro (de paradigma em paradigma). Sem circunlocues: a filosofia da fotografia trata de recolocar o problema da liberdade em parmetros inteiramente novos. Toda filosofia trata, em ltima anlise, do problema da liberdade. Mas, no decorrer da histria, o problema se colocava da seguinte maneira: se tudo tem causa, e se tudo causa de efeitos, se tudo determinado, onde h espao para a liberdade? Reduziremos as mltiplas respostas a uma nica: as causas so impenetravelmente complexas, e os efeitos, to imprevisveis, que o homem, ente limitado pode agir como se no estivesse determinado. Atualmente, o problema se coloca de outro modo: se tudo produto do acaso cego, e se tudo leva necessariamente a nada, onde h espao para a liberdade? Eis como a filosofia da liberdade deve colocar o problema da liberdade. Por isto e para isto necessria. Reformulemos o problema: constata-se em nosso entorno, como os aparelhos se preparam a programar, com automao estpida, as nossas vidas; como o trabalho est sendo assumido por mquinas automticas, e como os homens vo sendo empurrados rumo ao setor tercirio, onde brincam com smbolos vazios; como o interesse dos homens vai se transferindo do mundo objetivo para o mundo simblico das informaes: sociedade informtica programada; como o pensamento, o desejo e o sentimento vo adquirindo carter de jogo em mosaico, carter robotizado; como o viver passa a alimentar aparelhos e ser por eles alimentado. O clima de absurdo se torna palpvel. Aonde, pois, o espao para a liberdade? Eis que descobrimos, nossa volta, gente capaz de responder pergunta: fotgrafos. Gente que j vive o totalitarismo dos aparelhos em miniatura; o aparelho fotogrfico programa seus gestos, automaticamente, trabalhando automaticamente em seu lugar; age no setor tercirio, brincando com smbolos, com imagens; seu interesse se concentra sobre a informao na superfcie das imagens, sendo que o objeto fotografia desprezvel; seu pensamento, desejo e sentimento tem carter fotogrfico, isto , de mosaico, carter robotizado; alimentam aparelhos e so por eles alimentados. No obstante, os fotgrafos afirmam que tudo isto no absurdo. Afirmam serem livres, e nisto, so prottipos do novo homem. A tarefa da filosofia da fotografia dirigir a questo da liberdade aos fotgrafos, a fim de captar sua resposta. Consultar sua prxis. Eis o que tentaram fazer os captulos
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anteriores. Vrias respostas apareceram: 1. o aparelho infra-humanamente estpido e pode ser enganado; 2. os programas dos aparelhos permitem introduo de elementos humanos no-previstos; 3. as informaes produzidas e distribudas por aparelhos podem ser desviadas da inteno dos aparelhos e submetidas a intenes humanas; 4. os aparelhos so desprezveis. Tais respostas, e outras possveis, so redutveis a uma: liberdade jogar contra o aparelho. E isto possvel. No entanto, esta resposta no dada pelos fotgrafos espontaneamente. Somente aparece como escrutnio filosfico da sua prxis. Os fotgrafos, quando so provocados, do respostas diferentes.Quem l os textos escritos por fotgrafos, verifica crerem eles que fazem outra coisa. Crem fazer obras de arte, ou que se engajam politicamente, ou que contribuem para o aumento do conhecimento. E quem l histria da fotografia (escrita por fotgrafo ou crtico), verifica que os fotgrafos crem dispor de um novo instrumento para continuar agindo historicamente. Crem que, ao lado da histria da arte, da cincia e da poltica, h mais histria: a da fotografia. Os fotgrafos so inconscientes da sua prxis. A revoluo ps-industrial, tal como se manifesta, pela primeira vez no aparelho fotogrfico, passou despercebida pelos fotgrafos e pela maioria dos crticos de fotografia. Nadam eles na ps-indstria, inconscientemente. H, porm, uma exceo: os fotgrafos assim chamados experimentais; estes sabem do que se trata. Sabem que os problemas a resolver so os da imagem, do aparelho, do programa e da informao. Tentam, conscientemente, obrigar o aparelho a produzir imagem informativa que no est em seu programa. Sabem que sua prxis estratgia dirigida contra o aparelho. Mesmo sabendo, contudo, no se do conta do alcance de sua prxis. No sabem que esto tentando dar resposta, por sua prxis, ao problema da liberdade em contexto dominado por aparelhos, problema que , precisamente, tentar opor-se. Urge uma filosofia da fotografia para que a prxis fotogrfica seja conscientizada. A conscientizao de tal prxis necessria porque, sem ela, jamais captaremos as aberturas para a liberdade na vida do funcionrio dos aparelhos. Em outros termos: a filosofia da fotografia necessria porque reflexo sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Reflexo sobre o significado que o homem pode dar vida, onde tudo acaso estpido, rumo morte absurda. Assim vejo a tarefa da filosofia da fotografia: apontar o caminho da liberdade. Filosofia urgente por ser ela, talvez, a nica revoluo ainda possvel.
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FLUSSER E A LIBERDADE DE PENSAR ou Flusser e uma certa gerao 60. Nasci em Praga em 1920 e meus antepassados parecem ter habitado a Cidade Dourada por mais de mil anos. Sou judeu e a sentena o ano vindouro em Jerusalm acompanhou toda a minha mocidade. Fui educado na cultura alem e dela participo h vrios anos. Embora mina passagem por Londres em 1940 tenha sido relativamente curta, ocorreu em poca de vida em que a mente se forma de modo definitivo. Engajei-me, durante a maior parte da minha vida, na tentativa de sintetizar cultura brasileira, a partir de culturemas ocidentais, levantinos, africanos, indgenas e extremo-ocidentais (e isso continua a fascinar-me). Atualmente moro em Robion, sul da Frana, integrando-me no tecido de aldeia provenal cujas origens se perdem na bruma do passado.1 Este o Flusser que conheo (e aprendi a conhecer) ao longo de espaos e tempos os mais descontnuos. Figura humana impressionante, dessas que causam impresso de matriz em nossos ncleos pessoais. Mesmo no havendo empatia, no primeiro ou nos encontros subseqentes, jamais se fica neutro. Flusser ama o desafio, o corpo a corpo intelectual provocando-o mesmo, quase como a um gesto inicitico. E que venham as crticas, elogiosas ou no, tanto faz! Um marco na cultura alem; Um desrespeito filosfico, de Plato a Wittgenstein: as duas crticas diametralmente opostas lhe foram dirigidas por ocasio de um seminrio em Hamburgo sobre seu livro Para uma filosofia da fotografia2. Flusser relata a cena com a melhor das gargalhadas trao personalssimo do carter desse autntico homo ludens, um Macunama judeu-tcheco-paulistano. Em sua ltima passagem por So Paulo, a convite da 18 Bienal para proferir palestras, ouvi-o falar sobre seu tema atual: texto/imagem. As sentenas, destiladas pelo rigor da razo-e-da-paixo (como Flusser, poucos conseguem amalgamar), eram como chicotadas, querendo sacudir-nos da letargia a que nos condena uma poca ruidosa; querendo incomodar, para que no se tenha a iluso de no sermos responsveis e que o pensar e repensar tudo no vale mais a pena. Mas aquelas sentenas queriam tambm abraar, atrair novos e mais parceiros ao dilogo. Flusser sempre faz pensar. E pensar di. Pois continua o mesmo, esse nosso amigo, escritor, filsofo, engajando-se para fazer da reflexo alimento de primeira necessidade, gesto corporal do ser, prazer ertico. No h dvida que, para ele, o homem total o ser pensante. Participo da desconfiana em analogias que tendem rapidamente a se transformarem em metforas, isto , transferncias de raciocnio adequado a um dado contexto para contexto inapropriado. No entanto, nada captaremos sem modelo. De modo que todo modelo deve, primeiro, procurar pescar o problema, e depois, procurar modificar-se, ou em certos casos, ser jogado fora. (...) O dever de gente como ns, engajar-se contra a ideologizao e em favor da dvida diante
Trecho de conferncia, Aptridas e Patriotas, proferida por V. Flusser no II Seminrio Internacional Kornhaus, Weiler, 1985. 2 Filosofia da Caixa Preta, na Ed. Brasileira, 1985.
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do mundo, que, de fato, complexo e no simplificvel. Engajamento difcil, por certo, mas nem por isto, apoltico. Para ns, Polis a elite decisria e no a tal massa.3 A inteno que move este relato, que se quer subjetivo, possibilitar um testemunho humano no mais que isso da vvida presena entre ns, geralmente incompreendida, super-sub-estimada, deste que , por muitos, considerado o genuno filsofo brasileiro-, j que falar de sua obra tarefa que exigiria plena desenvoltura no percurso de seu controvertido pensamento. Se o fao, certamente apoiada pelo afeto, mas sobretudo por um tipo de engajamento. Publicar Flusser, no Brasil, questo de honestidade, simples reconhecimento do valor de suas reflexes. Mas falar sobre a pessoa de Flusser , talvez, querer ir mais longe, penetrar floresta escura, j invadindo quem sabe espao transpessoal. Aprendi o seguinte: ao nascer fui jogado em tecido que me prendeu a pessoas. No escolhi tal tecido. Ao viver, e sobretudo ao migrar, teci eu prprio fios que me prendem a pessoas e fiz em colaborao com tais pessoas. Criei amores e amizades (e dios e antagonismos); por tais fios que sou responsvel. O patriotismo nefasto porque assume e glorifica os fios impostos e menospreza os fios criados. Por certo: os fios impostos podem ser elaborados para se tornarem criados. Mas o que importa isto: no sou responsvel por meus laos familiais ou de vizinhana, mas por meus amigos e pela mulher que amo. Quanto aos fios que prendem as pessoas, tenho duas experincias opostas. Todas as pessoas s quais fui ligado em Praga morreram. Todas. Os judeus nos campos, os tchecos na resistncia, os alemes em Stalingrado. As pessoas s quais fui ligado (e continuo ligado) em So Paulo, em sua maioria, continuam vivas. Embora, pois, Praga tenha sido mais misteriosa que So Paulo, o n grdio cortado foi macabramente mais fcil.4 Quando o conhecemos refiro-me a um grupo de jovens universitrios dos anos 60, gerao que cultivava um jeito de vivenciar intelectualmente a sua angustia e cuja ironia no havia ainda descambado para o deboche-, estvamos todos submersos no grande vazio que a busca de sentido. 5 Flusser, estrangeiro no mundo, aptrida por excelncia, assistia a tudo, promovendo tudo. Mas entre o seu engajamento na cultura brasileira e o nosso destacar-se do pano de fundo habitual-nativo, uma sutil dialtica se estabelecer. Ns os migrantes, somos janelas atravs das quais os nativos podem ver o mundo. Seria ele, para ns, esta janela? Mistrio mais profundo que o da ptria geogrfica o que cerca o outro. A ptria do aptrida o outro.
Carta de V. Flusser, 1983. Op. cit. in (1). 5 Entre outros, faziam parte do grupo: Alan Meyer, Betty Mindlin, Celso Lafer, Dina Flusser, Gabriel Waldman, Jos Carlos Ismael, Maria Eugnia Tavares, Maria Lilia Leo, Mauro Chaves.
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Seramos ns, para ele, esta ptria? Ns, jovens daquela gerao niilista, vivencivamos a saga de uma poca em que, aps ter aplaudido o clebre protesto de estudantes na Europa, nada passava mais a ter significado. Os anos 60, se de um lado traziam marcas como a rebeldia dos Beatles, a revelao do sexo, e a partir da, o culto ao amor livre do movimento hippie e a escalada social do bissexualismo; o fracasso da potncia americana no Vietn, onde a inteligncia venceu as armas, num combate que utilizou cobras, abelhas e bambus; toda uma poesia desordenada e todo um desencanto s coisas e aos valores estabelecidos, por um lado, deixou farrapos de um derradeiro romantismo: desejo da mo jovem querendo reconstruir o mundo e impedida pelos velhos (como sempre foi); o olhar do mundo culto e politizado para o primeiro movimento de objetivos definidos na Amrica, ao som do slogan cubanos si, yankees no; a resposta de uma gerao triste que comeava a se redimir pela msica e a poesia (Tropiclia e os Novssimos, apenas para citar alguns). No campo da Filosofia, Sartre, Camus e demais existencialistas marcavam a juventude intelectual brasileira, embora a grande maioria no tivesse acesso a tudo isso. O escritor Jorge Medauar quem diz: O Brasil no tem linha filosfica definida porque no tem pensadores. Nosso grupo, porm, era privilegiado: freqentvamos a casa de Flusser. L se canalizavam os turbilhes, ventos e brisas do mundo filosfico, em tertlias que se alongavam por sbados e domingos, e quantas vezes no ramos surpreendidos por Guimares Rosa, Samson Flexor, Vicente Ferreira da Silva! Flusser foi se revelando professor, cercado por aqueles moos e moas, de modo domstico e peripattico (embora sempre sentado em sua cadeira no jardim-de-inverno, nos fundos daquela casa, no Jardim Amrica) envolto s fumaas de seu cachimbo inseparvel. No h como apagar os primeiros passos na filosofia ensinada, transmitida assim... Paideia construda pelo con-viver, em cho de concretude, por um modelo vivo de existncia. Tudo isso plasmou as nossas mentes, interagindo hoje na circunstncia em que vivemos. Caso clssico de influncia poderosa de patriarca intelectual no faltar quem o diga. Alguns, no suportando o peso de tamanha in-formao, hoje o renegam e se refugiam nos cantos matreiros do inconsciente, omitindo-se ao confronto. No lembraria Flusser, em certo aspecto, a personalidade de Freud? Como ele subversivo, judeu, emigrado tambm no foi aceito pelo establishment acadmico, criando afetos, desafetos e uma fieira de pupilos dolorosamente estigmatizados. Ao longo dos trinta e um anos em que viveu na circunstancialidade brasileira, Flusser desenvolveu seu modo de pensar com um vigor e originalidade que cunham um de seus traos inconfundveis o que lhe valeu imagem mitificada, e at certo ponto, desconcertante para certos eruditos, que, tantas vezes, com ele se digladiaram. Como Nietzsche, Kierkegaard e tantos outros, Flusser no se props a construir um sistema filosfico. Seu pensamento um fluir generoso que se vai tecendo fora de velhas ou modernas malhas, dentro da urdidura fundante que a linguagem morada do ser, como a nomeia Heidegger. Seu mergulho nas correntes da Fenomenologia levou-o Filosofia da Linguagem, seu campo predileto, ao qual dedicou vrios ensaios, livros e cursos. Chegou at a criar uma coluna em jornal (Posto Zero na Folha de So Paulo, de 1969 a 1971), onde fazia uma espcie de anlise fenomenolgica do cotidiano brasileiro. Quando escreve, e o faz como quem respira o ar fresco das manhs, Flusser traduz e retraduz o mesmo texto para as lnguas que domina: alemo, ingls, portugus, francs.
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Sinto-me abrigado por, pelo menos, quatro lnguas, e isto se reflete no meu trabalho, uma das razes pelas quais me interesso pelos fenmenos da comunicao humana. Reflito sobre os abismos que separam os homens e as pontes que atravessam tais abismos, porque flutuo, eu prprio, por cima deles. De modo que a transcendncia das ptrias minha vivncia concreta, meu trabalho cotidiano e o tema das reflexes s quais me dedico.6 Max Planck, em sua biografia, diz que para haver uma idia original so necessrias duas condies: que o criador esteja livre e que morra toda uma gerao, porque apenas a seguinte poder compreend-la. Os contemporneos esto comprometidos e escravizados, por isso se assustam com o novo. Eis, numa palavra, o pecado de Flusser: pensar o novo e, para tanto, estar livre. Qualquer pessoa que entra em contato com suas idias percebe o quo ligadas esto ligadas com o que acontece sua volta. No se pode delimitar as bases de seu pensamento, porque ele est constantemente correlacionado a fatos, no importa de que natureza. A aguda capacidade de observar o mundo e captar a atualidade, filtrando a ambos pelos conceitos clssicos e construindo os seus prprios conceitos, tornam Vilm Flusser o pensador para a poca ps-histrica que atravessamos. precisamente a consonncia entre observao dos fatos e sua resultante reflexo que nos d a sensao do verdadeiro. Mas, para que tal sensao conduza verdade, o que ainda nos falta? Aqui transcrevo pergunta feita ao psicanalista Isaas Kirschbaum, que aps driblar com mestria: la reponse est la mort de la question...(que analista, afinal, no tem necessariamente de ser filsofo...) assim respondeu: Consenso que d cunho de verdade. Da, minha indagao: teria sido o meio cultural brasileiro e o paulistano em particular propcio formao de um consenso ao pensamento flusseriano, consenso que, por sua vez, teria de ser o fruto maduro de exerccios de crtica responsvel e consciente por parte da comunidade pensante? Migrar situao criativa, mas dolorosa. Toda uma literatura trata da relao entre criatividade e sofrimento. Quem abandona a ptria (por necessidade ou deciso, e as duas so dificilmente separveis), sofre. Porque mil fios o ligam ptria, e quando estes so amputados, como se interveno cirrgica tenha sido operada. Quando fui expulso de Praga (ou quando tomei a deciso corajosa de fugir), vivenciei o colapso do universo. que confundi o meu intimo com o espao l fora. Sofri as dores dos fios amputados. Mas depois, na Londres dos primeiros anos da guerra, e com a premonio do horror dos campos, comecei a me dar conta de que tais dores no eram as de operao cirrgica, mas de parto. Dei-me conta de que os fios cortados me tinham alimentado, e que estava sendo projetado para a liberdade. Fui tomado pela vertigem da liberdade, a qual se manifesta pela inverso da pergunta livre de qu em livre para fazer o qu. E assim somos todos os migrantes: seres tomados de vertigem.7
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Sei que Vilm Flusser tem algo a nos dizer. Algo para nos inquietar. Este livro, que ora publicamos, apenas o comeo. Sejamos livres para ouvi-lo. E exeramos com liberdade o direito de pensar.
Maria Lilia Leo Apoio edio brasileira Fred Jordan Jos Bueno Jos Longman Maria Lilia Leo Milton Vargas Rodolfo Geiser.
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SOBRE O AUTOR Nascido em Praga em 1920, Vilm Flusser iniciou seus estudos de Filosofia na Universidade Carolngia de Praga, em 1933. Emigrou para Londres em 1940 e para So Paulo em 1941. Seus primeiros ensaios sobre Lingstica e Filosofia foram publicados 1957 no Suplemento Literrio dO Estado de So Paulo, do qual passou a ser colaborador constante. Em 1962 tornou-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e professor de Filosofia da Comunicao na Faculdade Armando lvares Penteado (FAAP), em So Paulo. Tornou-se co-editor da Revista Brasileira de Filosofia em 1964 tendo sido nomeado delegado especial do Ministrio das Relaes Exteriores para cooperao cultural com os Estados Unidos e a Europa, em 1966. Entre 1965 e 1970, organizou seminrios e conferncias no Departamento de Humanidades do Instituto Tecnolgico da Aeronutica (ITA) sobre a Filosofia da Linguagem e abriu espao em jornal par escrever crnicas dirias sobre filosofia do cotidiano (Posto Zero, da Folha de So Paulo). Em 1972, mudou-se para a Itlia e, em 1976, para a Frana, onde reside atualmente, publicando principalmente na Alemanha e Frana. Publicou os livros: Lngua e Realidade (So Paulo, Herder, 1963); A Histria do Diabo (So Paulo, Martins, 1965); Da Religiosidade (So Paulo, Comisso Estadual de Cultura, 1967); La Force du Quotidien (Paris, Mame, 1972); Le Monde Codifi (Paris, Institut de lEnviroment, 1972); Naturalmente (So Paulo, Duas Cidades, 1979); Ps Histria (So Paulo, Duas Cidades, 1982); Fr eine Philosophie der Fotografie (Gttingen, European Photography, 1983); Ins Universum der technischen Bilder (Gttingen, European Photography, 1985).
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Filosofia da Caixa Preta prope nova abordagem da mdia fotogrfica. Vilm Flusser sugere que uma anlise dos aspectos estticos, cientficos e polticos da fotografia pode ser a chave para uma pesquisa sobre a atual crise cultural e as novas formas existenciais e sociais que, a partir dela, esto se cristalizando. O autor demonstra que a reviravolta da cultura de textos em cultura de imagens, bem como da sociedade industrial ps-industrial ocorrem de mos dadas. Para Flusser, a inteno que move este ensaio contribuir para um dilogo filosfico sobre o aparelho em funo do qual vive a atualidade, tomando por pretexto o tema fotografia.
Seguem questes baseadas no livro em anexo Filosofia da Caixa Preta, de Vilm Flusser, com leitura indicada dos trs primeiros captulos (A Imagem, A Imagem Tcnica e O Aparelho). As respostas sero corrigidas em sala e o relatrio dever ser entregue impresso na aula do dia 1 de maro. ... Filosofia da Caixa Preta Questes relacionadas ao livro de Vilm Flusser 1) Discorra sobre o tempo de magia (substituio do evento por cena). 2) O homem passa a viver em funo das imagens. O que se entende por esta afirmao? 3) Defina segundo o texto o que conscincia histrica. 4) Estabelea a diferena entre pensamento conceitual e pensamento imaginativo. 5) Faa a diferena entre Imagens pr-histricas e Imagens Tcnicas. 6) H uma aparente objetividade das imagens; por qu? 7) Como de d a magia das imagens tcnicas na TV, no cinema e nas mdias digitais? 8) Por que as imagens tcnicas substituem a conscincia histrica? 9) Quais so os trs termos da cultura ocidental? 10) Como voc entende a afirmao: o fotgrafo produz smbolos? (pg22) 11) As fotografias so realizaes das potencialidades do aparelho. Explique. 12) Qual a semelhana entre a atividade do fotgrafo e a do enxadrista? 13) A competncia do aparelho deve ser superior competncia do funcionrio. Comente.
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