Couto e Luandino

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 16

3 Introduo Quando se faz um estudo sobre uma gerao literria, toma-se em considerao o pressuposto de que a literatura no um fenmeno isolado.

. Ela ocorrre e se desenvolve em simetrias, envolvendo grupo de indivduos cientes das mesmas condies histricoliterrias, enfrentando os mesmos problemas. Por outro lado, esse mesmo grupo tem um propsito claro: revolucionar a literatura e delinear para ela outros moldes e outra maneira de ser e estar. nesta perspectiva que este trabalho, fruto de investigao, se circunscreve e visa fazer um estudo comparado entre as publicaes Mensagem, Cultura e Imbondeiro e a designada gerao 70 e demonstrar a relevncia destas para o surgimento da angolanidade literria, dando enfoque especial aos aspectos comuns e aos de distanciamento. Posto isso, fizemos tambm um estudo comparativo entre as obras de Luandino Vieira, Luuanda, e de Mia, Couto, Vozes anoitecidas e tecemos tambm os aspectos que os aproximam e os distanciam, no que diz respeito a linguagem. Para a efectivao deste trabalho recorremos aos seguintes mtodos: Consulta bibliogrfica, Confrontao e anlise de dados e a pesquisa na Internet. A consulta bibliogrfica permitiu-nos cruzar autores que analisam e criticam as literaturas africanas de Expresso Portuguesa, e deles retirar as premissas bsicas para o nosso trabalho; a Anlise e confrontao de dados permitiu a seleco de contedos que mais se avizinham natureza do nosso trabalho e, por fim, a pesquisa na Internet serviu de reforo intelectual e suporte deste. Esperamos que o trabalho v ao encontro das expectativas do docente e sirva de base para uma discusso aprimorada sobre este tema.

Anlise Comparativa entre as Publicaes Mensagem, Cultura, Imbondeiro e a gerao 70

Como aconteceu em muitos pases da Europa e da frica, a literatura angolana no nasceu espontaneamente. Vrios foram os antecedentes e percursores que influenciaram sobremaneira o carcter social, cultural e esttico da literatura e da poesia, em particular. Nessa perspectiva, podemos considerar como factor determinante para o nascimento da dita literatura angolana, o implacvel e descriminatrio regime colonial e suas manifestaes esttico-literrias, que duma maneira severa coisificava o homem negro e as suas tradies culturais. Conscientes desta realidade, um grupo de jovens funda o Movimento de Novos

Intelectuais de Angola, que, dentre vrios aspectos, lana o propsito de descobrir Angola, uma actividade que passava necessariamente pela revitalizao da cultura negroafricana afogada pela artilharia colonial e redefinir os valores fundamentais de caracterizao cultural, sem, de algum modo, seguir como modelo as perspectivas coloniais, completamente viciadas e inconsequentes. nesse contexto que se desenha o papel das revistas mensagem, cultura e ,dalguma forma, a revista Imbondeiro, pois, embora tenham agido em tempos e contextos scio-culturais diferentes, foram o suporte forte do chamado Projecto Ambicioso: descobrir a angola atravs duma intensa actividade cultural artstica, intelectual, literria e cultural. Ferreira (1977:16) A revista mensagem foi pioneira e constituiu, na ptica de Laranjeira (2005:96), a concretizao das aspiraes dos jovens angolanos de criar um clima propcio e os meios concomitantes produo intelectual, baseada no esprito de angolanidade, embora no tenha cumprido equitativamente a sua misso, pois de quatro edies previstas, apenas duas que foram concretizadas. com Mensagem que se projecta a viragem definitiva no caminho da literatura e cultura angolanas: o marco iniciador de uma Cultura Nova, de Angola, e por Angola, fundamentalmente angolana, que os jovens da Terra estavam construindo. Ferreira (1977: 17). A conscincia, a determinao e o sentido da mensagem desses jovens esto inscritos na forma como grafam com maisculas Cultura Nova e Nossa Terra que aqui no era

5 propriamente a Minha Terra de Jos da Silva Maia Ferreira do sculo XIX, terra da sua naturalidade, mas sim nossa Terra, nosso Pas, nossa Ptria. Eis como simbolicamente, e nesse tempo de clandestinidade contnua, se exprimia o sentimento patritico e se projectava o sentimento nacional. Ferreira (1977:18). Na perspectiva de Ferreira (1976:92), o projecto da revista mensagem circunscrevia- se na criao e na elevao da cultura de Angola alm fronteiras na voz altissonante dos poetas, escritores, intelectuais e artistas plsticos. Pretendia edificar uma cultura angolana moderna a partir da valorizao de alguns aspectos das culturas tradicionais, incluindo o homem negro. Os autores desta gerao, utilizando recursos lricos e dramticos, conseguem criar uma poesia de fundo e cariz emocional, procuram fazer juz ao propsito de descobrir angola, as suas origens, as suas tradies e mitos; a poesia adquire uma intencionalidade didctica e pedaggica: com ela tenta-se recriar frica e Angola, os valores ancestrais do Homem africano e da sua terra, bem como ensinar o mesmo Homem a se descobrir como individualidade. Quando a revista Mensagem ficou para a histria, surgiu em 1957 a revista Cultura (II), com o objectivo de dar continuidade aos propsitos no alcanados pela revista Mensagem e abrir vrios horizontes na sociedade angolana, com vista a desalienao da sociedade africana e instruo para a produo duma cultura viva, baseada na tradio africana, sem descurar os contributos internacionais. Este projecto queria propiciar os meios pelos quais ho-de tomar forma, ganhar relevo e contedo as expresses de todos os que realmente so capazes de escrever verso ou conto, de estudar ou analisar, de criticar ou equacionar os diferentes de toda a ordem que se pem em Angola. Com a queda da revista Cultura surge na cidade de S de Bandeira ( Lubango) a revista Imbondeiro, com o objectivo, na viso de Cosme Apud Laranjeira (2005:), preencher o vazio literrio deixado por aquela e mostrar ao exterior um dinamismo cultural prprio, ostentado pela ideia de que a Cultura II e as edies Imbondeiro formavam duas frentes de

6 um verdadeiro movimento literrio, sendo estas ltimas consideradas o primeiro movimento editorial organizado em Angola. As edies Imbondeiro tinham a inteno de publicar,sem inquerir da identidade, congregando em torno de si autores provinientes da Cultura e, desse modo, atestar a fidelidade aos mesmos valores humanistas. Queriam tambm expressar a cultura angolana, seja ela branca ou negra ( note-se que a cidade de S de Bandeira era maioritariamente branca), sem obrigatrio engajamento, o que permitia congregar autores dispersos, que nunca tinham colaborado nem com a revista mensagem, nem com a revista Cultura (II). Na perspectiva de dar continuidade as revistas Mensagem e Cultura, os integrantes das edies embondeiros apareciam como naturais continuadores do esprito de promoo cultural, usando, porm, uma estratgia completamente diferente: a de integrar os autores proibidos pelo regime em coleces que no desdenham de publicar tambm autores afectos ao Salazarismo ou que lhe eram simpticos. Portanto, no se pode falar da literatura Angolana, sem apontar o papel das revistas Mensagem, Cultura e Imbondeiro, pois estas foram de crucial importncia para o surgimento da Angola moderna no panorama artstico-cultural, bem no panorama polticosocial, pois, como bem sabido, deste renascer cultural abriram-se portas para a necessidade de lutar pela liberdade e indepncia Nacional. Se os anos 50 e 60 foram de uma actividade literria intensa e duma produo que merece referncia, tal no se vericou na primeira metade dos anos 70. nesta poca surgem trs nomes, que vo ser os principais responsveis por uma mudana profunda na esttica e na temtica: David Mestre, Ruy Duarte e Arlind Barbeitos. Os autores desta poca procuram distinguir-se atravs dum forte rigor esttico e, contrariamente ao perodo anterior, evitam propositadamente o panfletarismo. Entra-se tambm para um perodo de muito experimenterismo. Estes autores tentam reconciliar os temas polticos do passado com a procura duma linguagem potica mais universal. Ao lado de uma grande ambincia de oralidade e de um apontar para as consequncias da guerra,

7 constitui-se tambm uma reflexo sobre o prprio discurso potico. , no entanto Barbeitos a voz potica que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradio da Mensagem. Cultiva-se tambm nesta poca um ecletismo acentuado. A poesia tem a funo primordial de sugerir, ela um compromisso entre a palavra e o silncio, que tenta reconciliar o Homem com a sua condio e sujeit-lo perfeico. H aqui uma forte vontade de retorno imanncia e construir a irmandade universal. Note-se que, apesar da diferena entre esta gerao e a gerao Mensagem e Cultura, existem aspectos que as aproxima, sobretudo no que diz respeito ao uso da lngua: os autores tentam e conseguem africanizar a lngua colonial, numa tentativa continuada de repossuir todos os valores e tradies culturais do pas ( revejam-se os objectivos da revista Mensagem). Ferreira (1977:78-116)

2. Estudo Comparativo da Produo literria de Mia Couto e Luandino Vieira: a linguagem em Vozes anoitecidas e Luuanda As literaturas africanas de lngua portuguesa conheceram, nas ltimas dcadas, um desenvolvimento marcante, quer em termos de originalidade, quer em termos de edio, sendo esta evoluo o resultado de um conjunto de factores histricos, polticos, econmicos, sociais e culturais. Angola, Moambique, So Tom e Prncipe, Cabo Verde e Guin Bissau atravessaram um doloroso perodo de colonializao, descolonializao e guerra civil que, por exemplo, no caso de Angola, s terminou h poucos anos. Tal como foi referido, estes pases, como tantos outros, que obtiveram, depois de longos anos de cativeiro, a independncia e a autonomia que tanto almejavam, iniciaram a busca de uma identidade prpria, remontando ao passado, s tradies e rejeitando, na medida do possvel, as marcas do pas colonializador. Deste modo, verificamos que tambm este povo procurou o que lhe era inato, indgena e relegou para um plano inferior as caractersticas da escrita ocidental, valorizou a oralidade e o que lhe era intrnseco, afastando-se de uma

8 literatura originria no povo colonizador e de uma complexa teia de relaes intertextuais, sinais de subjugao metrpole. No entanto, e apesar dos aspectos anteriores, no restam dvidas de que a literatura africana muito influenciada pela europeia, sendo este facto atestado pela prpria lngua utilizada, que foi assimilada e utilizada correntemente, constituindo o meio privilegiado de comunicao. A este propsito, Leite (2004:49) tem uma opinio bem clara: Aintertextualidade e afinidade dos textos literrios africanos com as literaturas europeias e a complexa rede de relaes que com elas estabelecem um facto incontornvel. Contudo, uma vez que estas literaturas, alm deste enquadramento, so escritas na maioria dos casos na lngua do colonizador, semelhante colagem levou por vezes a anlises tendenciosamente paternalistas e a encarar a produo literria africana como uma espcie de produto neocolonial. Porm, Se cada homem uma raa, a raa de Mia Couto encanta pela originalidade e criatividade. Escritor singular, marcado pelas razes e origem, revela na escrita a energia do seu pas e a fora de um mundo sentido intimamente como um companheiro de sofrimento e de luta. Assim, um olhar atento sobre a obra deste autor moambicano no se pode limitar a uma anlise morfolgica, sintctica ou semntica e a um reconhecimento da notoriedade das expresses, das imagens, das palavras, das sensaes ou dos sentimentos. A representao de um universo diferente, de um continente dominado pela oralidade e pela ordem consuetudinria, onde a memria e a tradio dominam e constituem a base da diferena, configuram o cerne da escrita coutiana. De facto, a vivncia africana afirma-se face europeia, que se centra e se submete ao poder econmico, relegando para um plano secundrio as tradies, emoes e valores, como o respeito pela ancestralidade. Mia Couto, atravs da linguagem e da representao das coisas, d voz ao mundo em que vive e procura um sentido para o que o rodeia. Se lermos Vozes Anoitecidas, constataremos que a guerra civil que aconteceu em Moambique, aps a descolonizao, serve de base para a maioria dos contos que adquirem, deste modo, um sentido trgico e encaminham as personagens para a morte. As

9 diversas vozes que vo revelando o quotidiano moambicano em dois espaos distintos, o campo e a cidade, demonstram a misria da situao do pas e so, por isso, anoitecidas. Mia Couto o mediador entre as estrias que ouve e o pblico que as l, recorrendo escrita para isso. Deste modo, verificamos que a oralidade conflui na escrita e que o prprio autor est consciente do seu papel de intermedirio e de fomentador do sonho: (...) Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar. O livro Vozes Anoitecidas engloba num conjunto de contos as vivncias particulares de identidades mltiplas que se condensam na identidade de um povo, que perdeu a capacidade de sonhar e que, perante o desespero, a fome e a dor, mitificou o universo criando outros mundos possveis. Tal como refere Ana Mafalda Leite: (...) Poeta, o contista volve a esse estado da linguagem onde as vozes amalgamadas da linguagem mtica manifestam a unidade essencial, e repem a esperana de um tempo outro, principial, em que o trgico da guerra e da misria se transfigura na ordem csmica dos acontecimentos elementais, organizados por uma outra lgica, indiferente ao sofrimento e devedora do equilbrio e da harmonia. Estes espritos que se encontram no escuro devem readquirir a confiana no futuro e tm de, acima de tudo, realcanar a esperana que fundamental para todos, em geral, e para Mia Couto, em particular. As Vozes Anoitecidas devero ser substitudas por Vozes Sonhadoras. A presena de Jos Luandino Vieira na obra de Mia Couto incontestvel e facilmente captvel. O escritor moambicano revela a influncia do escritor angolano em directrizes chave dos seus textos, como a fora dos elementos naturais e a riqueza da escrita. Quer em Luandino Vieira quer em Mia Couto, encontramos processos de semiotizao, como ritmo, rima, figuras fnicas, sentido metafrico e simblico, poesia e musicalidade. So estes aspectos que tornam estes autores nicos e fazem deles no escritores de poesia da narrativa mas narradores poetas. Ambos, de uma forma muito semelhante, penetram na

10 aventura da lngua, ondeiam as palavras e as imagens e transportam o leitor para o mundo do maravilhoso e do sonho. Atentemos, em primeiro lugar, obra de Luandino Vieira. Apesar de textos Luuanda visarem, acima de tudo, uma mensagem social e pertencerem a uma literatura de luta, encontramos marcas poticas e momentos emotivos na mensagem: Fechava os olhos e o Kuanza corria ao luar, rugindo furioso ou manso e quieto, grande mar sem ondas. () Deitado, se deixou boiar no seu rio de criana, do planalto, que lhe tinha visto nascer. () s um quente novo, um fresco bom, melhor que o vento que soprava xaxualhando as pequeninas folhas verdes das accias, empurrando as flores, algumas deixavam cair as suas folhas vermelhas e amarelas, parecia era mesmo uma chuva de papel de seda em cima deles. Mas em narrativas como No Antigamente Na Vida e Joo Vncio: os Seus Amores que a musicalidade e a poesia das palavras assumem um carcter marcante: Se levantou: sua estrela de fogo por sob a nuvem pbica queimou nosso silncio, ar era pouco para tanto sopro de luz se libertando no corpo dela, avanando. Ns, as trevas brutas parecamos ramos. () Cantvamos. Tarde no era mais, msica de tempo. A gente se esvaziava do que nem sabamos ainda, queramos s sol no peito, corao sangrante para a Moa adiantar ver a berrvamos j o nunca dito... Mia Couto e Jos Luandino Vieira servem de intermedirios entre a oralidade e a escrita. Ambos conhecedores profundos do sistema lingustico portugus e da oralidade africana, contactam com o povo e recriam, com muita liberdade, o discurso popular. Segundo Ana Mafalda Leite: () a relao com as tradies orais e com a oratura comeam por manifestar-se exactamente pelas diferentes falas com que os escritores africanos se assenhorearam da lngua. A pilhagem ou roubo da lngua portuguesa pelo colonizado mostra que a africanizao, perversamente, se institui e processa no interior do instrumento comunicativo, num processo transformativo e nativizante. Esta recriao da lngua s possvel devido abertura dos sistemas lingusticos e ao facto deles serem potencialmente infinitos. Os dois escritores esto disso conscientes, sabem que o que cabe no sistema possvel, e, a partir de um sistema modelizante primrio, criaram um outro que pode no obedecer aos cdigos mas entra nele e constitui-se como Lngua.

11

A conjugao do novo com o antigo e da escrita com a oralidade conflui numa harmonia hbrida e determinante para o perodo ps-colonial e ps-moderno, dado que contribui para a consolidao da identidade nacional. Esta intertextualizao da realidade, a partir da oralidade, passa necessariamente pela lngua. Quer Mia Couto, quer Luandino Vieira, criam novas palavras, s quais no podemos chamar de neologismos, dado que (salvo algumas possveis excepes) no passaro, em princpio, a pertencer ao portugus normativo, enriquecendo embora a Lngua Portuguesa. A forma como a lngua utilizada, pelos autores estudados, cabe dentro das preocupaes das teorias dos ps-coloniais. A oralidade faz parte da mundividncia dos africanos e reenvia o leitor para a autoctoneidade da populao: as palavras so ditas como o povo as compreende. Assim, esses jogos de lxico, a interconexo entre dois vocbulos e a pronncia no normativa dos fonemas denunciam a tnue ligao entre o povo e a lngua deixada pelo colonizador. No podemos esquecer, todavia, que os novos vocbulos revelam uma enorme riqueza a nvel lingustico porque se, por um lado, a captao e a transmisso lxicas de Mia Couto e de Luandino parecem naturais, por outro lado, elas so o resultado de um processo complexo, passvel de ser executado apenas por determinadas sensibilidades. Esta forma de escrita evidencia o rduo labor sobre a palavra. S um cultor da Lngua Portuguesa poder conseguir fazer isso. Se voltarmos a analisar as novas palavras criadas por Luandino em Luuanda, surge uma que chama, particularmente, a ateno: ganjsteres. Pertencente mais ao campo do estrangeirismo do que o do neologismo, denuncia a influncia americana e a capacidade coloquial do povo angolano. Mas os exemplos sucedem-se, noutras obras: boquiabrindo, medrsico, matacnhico, desconfuso, inutilitria, aroxignio, desclaos, pensaturo,roncanhar, ultimnicos, sestemunhas, poesista, tidiano, irivir, zinimigos Se considerarmos os vocbulos com rigor, notamos que os seus processos

12 de formao variam, assentando no sistema lingustico portugus, em chamadas palavrasbase. A partir da, desde a juno de um prefixo ou de um sufixo, como sucedeu com confuso ao qual foi associado o prefixo de negao des-, troca das letras dentro das slabas, o que verificamos em desclaos, at aglutinao ou amlgama, como acontece em boquiabrindo ou aroxignio, tudo parece possvel para retratar a fala dos angolanos. Ana Mafalda Leite (2003), distingue os recursos utilizados por Luandino para recuperar a tradio oral: He introduces in his stories the repetitions, the discursive redundancies and the opening and closing devices employed by oral literature. He uses or invents expressions and concepts derived from the influence of African languages and cultures on the Portuguese language. H ainda outro aspecto relacionado com a criao de novos lexemas que aproxima Luandino de Couto. a capacidade que os dois possuem para estabelecerem raros jogos de palavras. Podemos citar: Tudo s deus-dar, deusd, deusdar e Fruto exflorindo flor em folha floritura Esta aptido revela, novamente, a riqueza da lngua na oralidade. Quer os angolanos, quer os moambicanos demonstram grande facilidade em estabelecer conexes fnicas e rtmicas entre os vocbulos. E, desta forma, o portugus vai continuando a enriquecer-se. Mia Couto reconhece o desvio da lngua padro que se verifica nos seus textos: O desvio lingustico com relao norma portuguesa faz parte deste pas, da oralidade, onde eu bebo, onde eu vivo e como eu tenho um p em cada mundo, me apercebo destes desvios como qualquer coisa que pode introduzir beleza, que pode funcionar do ponto de vista esttico ou, mais importante, pode funcionar como qualquer coisa que interrogue aquilo que familiar. Outra funo mostrar o que est a operar neste nvel real, onde pessoas esto expressando, e

13 uma histria relatada numa lngua, que no a lngua prpria das pessoas. Esta fractura tem que ser descoberta, tem que ser revelada, e os desvios lingusticos so sinais que podem mostrar isto. Fico muito triste quando fazem a interpretao s em nvel esttico do desvio lingustico, quando eu gostaria que se evidenciasse este retrato de dois mundos. () [Esta linguagem despedaada espelha] a dificuldade que as pessoas tm, no portugus padro, sem desvio, de encontrar a expresso para traduzir aquilo que o seu mundo. Elas esto lidando com uma lngua que de outro mundo, com outra lgica, e elas tm que despeda-la para que a lngua possa ser sua. (112) De acordo com o autor estudado, a fragmentao do portugus padro ocorrido nos seus textos, no se limita a um recurso para conceber beleza esttica, mas um reflexo do mundo moambicano. A lngua portuguesa, associada ao universo europeu, no possui vocbulos adequados e adaptados mundividncia africana, pelo que tem de sofrer alteraes e tornar-se compatvel com os seus falantes. E essa a operao efectuada por Mia Couto. Bastaria olharmos para os ttulos de alguns livros como Estrias Abensonhadas, Mar-mequer ou Vinte e Zinco para comearmos a antever a adaptao. No entanto, a lngua despedaada e adequada a outro mundo est presente em toda a obra coutiana. Os vocbulos so incontveis: luavezinha, descampons, fintabolista, miuddivas, pensatempos, siamensal, subvivente, almarrotada, despedideira, esferogrvida, rimeira, esbracejos, dezanovinha, distraioeiros, remastigava Os processos de formao destas palavras so semelhantes aos j estudados. espantalhada, repetepete, pressentimentalista, aguarda-factos,

14 Em Luandino. Acontecem atravs da juno de afixos, da troca de letras ou da amlgama e, de facto, ajudam a caracterizar uma realidade diversa da portuguesa. Se no, vejamos: a nvel semntico, subvivente (113) designar algum que vive em condies abaixo das mnimas, em misria total. No uma pessoa que sobrevive, mas, pelo contrrio, um ser que nem vive e, num pas do chamado Terceiro Mundo, os subviventes no devero ser poucos. Outro vocbulo que parece marcadamente africano pressentimentalista (114), visto que, ao contrrio da realidade europeia dominada pelo racionalismo, a moambicana vive de crenas, fantasias, pressentimentos e sentimentos que, facilmente, se podero conectar. O mundo detentor de uma lgica diversa da portuguesa, transportado at ns por Mia Couto, serve-se, tal como faz Luandino, de jogos de palavras esteticamente surpreendentes. Atentemos nos seguintes exemplos: Mudam-se os tempos, desmudam-se as vontades.; Antes ao Sol que mal acompanhado! e Pai nosso, cristais no Cu, santo e ficado seja o vosso nome. Um verso de Cames, um provrbio popular e uma orao crist so adaptados ao cosmos moambicano. As palavras no escritas, passadas de boca em boca, so corrompidas com mais facilidade e levam ao aparecimento de novas ideias, estando a verificar-se o surgimento de variveis do Portugus. Assim, com Luandino e com Mia Couto, o portugus ganha diferentes contornos. Atravs da criao de novos vocbulos e dos constantes jogos de palavras, da interseco do sistema lingustico portugus com outros sistemas de lnguas autctones, a lngua evolui e flexibiliza-se para acompanhar um universo diferente, transportando a realidade e o mundo africano para o seio do Ocidente e servindo, igualmente, para a consolidao da identidade nacional. O desejo de expressar uma identidade colonial independente, contra os horrores do domnio estrangeiro, implica a utilizao de uma lngua indgena, ou a alterao da lngua colonial, atravs dum processo de adaptao ao universo local. De uma forma ou de outra, a lngua constitui o elemento fundamental da nao e o melhor meio de unificao de um estado.

15 Depois de termos pensado o texto nas suas dimenses inter e transtextuais, verificamos que Mia Couto construiu uma rede dialgica que o une a Luandino Vieira. Porm, julgamos que conseguiu ultrapassar claramente o mestre que o inspirou, dado que, para alm de conseguir expandir a cultura moambicana internacionalmente e atingir a admirao e o reconhecimento das comunidades literrias, ainda criou uma ponte entre a frica profunda e o Ocidente. Provou que, na actualidade, so a simplicidade e o maravilhoso que cativam as sensibilidades. Demonstrou que o ser humano, se calhar, est sedento de qualquer coisa menos abstracta e mais natural, que o aproxime da sua prpria humanidade. Mia Couto revelou o mundo de sonho que habita em todos os povos de todas as naes, aliando a sua mensagem de Luandino Vieira, que no deixa de ser, noutro tempo histrico e noutra situao, igualmente, genial. De facto, h um cruzamento entre as obras dos dois autores, no mbito da esttica e do manejo da palavra. O enraizamento e a procura da identidade atravs da memria colectiva, assim como o hino constante aos elementos da Natureza, so os fios condutores de duas cosmovises assentes na consciencializao profunda da necessidade de ressurreio das culturas ao servio da construo do futuro. Pelo exposto, a presena de Luandino Vieira na obra de Mia Couto parece ser uma inevitabilidade. Os dois partilham ideais, vises, sonhos, lngua e esperanas. Mas, partilham mais do que tudo o amor que sentem pelas suas ptrias e pelos povos.

16

Concluso Depois de estudo que fizemos, chegmos a seguinte concluso: As revistas mensagens, Cultura e Imbondeiro foram de crucial importncia para o desenvolvimento da literatura angolana e contribuiram significativamente para a ruptura da moderma literatura angolana com a portugalidade colonial. Com efeito, o surgimento da revista mensagem, circunscreve-se na concretizao das aspiraes de um punhado de jovens angolanos, que tem como propsito, o despertar das conscincias sobre a real cultura angolana e de criar um clima propcio produo intelectual baseada no esprito da angolanidade. A gerao 70, optando por uma esttica diferente a dos autores de Mensagem e Cultura, se desenvolveram e se notabilizaram por um certo ecletismo acentuado, virado a rigor esttico e a uma forma de estar na poesia sem fluxo exagerado de engajamento.

17

Mia Couto e Luandino Vieira so muito comuns em vrios aspectos, mas sobretudo no que diz respeito maneira como trabalham a lngua e narram as suas estrias. Vieira usa a liguagem influnciada pelas lnguas bantu e o seu texto caracteriza-se por surgir num espao de criao de uma linguagem nova baseada na apropriao da lngua codificada e estabilizada socialmente. Por seu turno, a linguagem em Couto manifesta a unidade essencial, e repe a esperana de um tempo outro, principial, em que o trgico da guerra e da misria se transfigura na ordem csmica dos acontecimentos elementais, organizados por uma outra lgica, indiferente ao sofrimento e devedora do equilbrio e da harmonia.

Referncias Bibliograficas COUTO, Mia. Vozes Anoitecidas, Lisboa, Caminho, 6 ed., 2001. FERREIRA, Manuel. Poesia Negra de Expresso Portuguesa, Lisboa, 1953. HAMILTON, Russell G. Literatura africana-literatura necessria-I Angola, Lisboa, Edies 70, 1981. LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. Universidade Aberta, Lisboa, 1995. LEITE, Ana Mafalda, Configuraes Textuais da Oralidade no Cnone Moambicano in Literaturas Africanas e Formulaes Ps-Coloniais, Lisboa, Edies Colibri, 2003. VIEIRA, Jos Luandino. Luuanda, Lisboa, Edies 70, 2000 (1 edio, 1964).

18 WWW. Wikipedia, enciclopdia livre, Vozes Anoitecidas. 2011/10/09,18h PT. Wikipedia. Og/wiki/ Jos Luandino Vieira, Luuanda: 2011/10/08,19h

ndice Introduo.............................................................................................................................3 Anlise Comparativa entre as Publicaes Mensagem, Cultura, Imbondeiro e a gerao 70..........................................................................................................................................3 2. Estudo Comparativo da Produo literria de Mia Couto e Luandino Vieira: a linguagem em Vozes anoitecidas e Luuanda.......................................................................7 Concluso...........................................................................................................................16 Referncias Bibliograficas.................................................................................................17

Você também pode gostar