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(Org.)
NARRATIVAS BRASILEIRAS
CONTEMPORÂNEAS
MEMÓRIAS DA
REPRESSÃO
Editora Polifonia
Edição e diagramação
Débora Luciene Porto
Revisão
William Moreno Boenavides e Débora Luciene Porto
Imagem da capa
Comissão Nacional da Verdade
Conselho Editorial
Eurídice Figueiredo
(UFF/CNPq)
Texto revisado segundo o novo acordo da Língua Portuguesa. Gínia Maria Gomes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (UFRGS)
Jaime Ginzburg
(USP/ CNPq)
M111 Mobilidade e resistência na literatura brasileira
contemporânea / organizado por Gínia Maria
Maria Zilda Ferreira Cury
Gomes - Porto Alegre: Polifonia, 2020. (UFMG/CNPq)
CDD B869.09
De mim já nem lembra, de Luiz Ruffato: entre a história e O romance brasileiro contemporâneo:
o esquecimento 175
as ruínas de um passado traumático
Maria Rosa Duarte de Oliveira
132 Helena Bonito C. Pereira Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 133
o que lhe deu grande visibilidade, oportunizando-lhe inúmeras en- A desumanização do torturado
trevistas. Em uma delas, Leal (2017) relata que a ideia do romance
surgiu da leitura de um artigo do The New Yorker, sobre as Avós da Em Mulheres que mordem a tortura e alguns outros aspectos da di-
Praça de Maio, que procuravam seus netos sequestrados por milita- tadura militar argentina são apresentados na voz de Ramiro, marido
res e adotados por eles ou por simpatizantes do regime após o assassi- de Elena. Ele é mostrado em sessões de terapia, que se realizam du-
nato das mães. Sensibilizada pela história, “Entrei no site das abuelas. rante dois meses, mais precisamente entre 6 de junho e 15 de agosto
E toda a minha pesquisa foi nesse site. Fui à gráfica e imprimi a histó- de 1992. Devido a esse artifício, sua fala tem a fragmentação como
ria de todas as abuelas, de todos os netos encontrados. E são muitas principal característica. Em decorrência disso, alguns dados sobre a
histórias” (LEAL, 2017). ditadura a que ele se refere são apenas tangenciados, ainda assim,
O romance está centrado em quatro mulheres, quatro mordidas: eles são perfeitamente compreensíveis, porque alicerçados em fatos
Elena mordia os alimentos e contava o número de mordidas; Rosa históricos, que podem ser facilmente complementados.
roía as unhas; Clara mordia os lábios durante as sessões de tortura; Na primeira sessão, ao ser questionado sobre as razões de ele ter
e “Laura morde as escovas de dentes” (LEAL, 2015, p. 43). Todas es- buscado terapia, responde: “Porque um colega recomendou. Disse que
sas mulheres estão inter-relacionadas: uma mãe biológica torturada, todos estão fazendo. Que pode ajudar a reduzir a pena no caso de um
uma mãe adotiva, uma avó e uma filha/neta, que nada sabe de sua julgamento” (LEAL, 2015, p. 23, grifos da autora). Na quinta sessão,
condição. Cada uma dessas vozes foi construída de forma diferente, ele retoma mais uma vez a questão: “Eu não quero ser julgado, não
o que se enquadra no projeto da escritora: “Então organizei: a Elena quero ser preso, mas foda-se também” (LEAL, 2015, p. 77). Ramiro
vai ser terceira pessoa, no passado. A Laura no presente. A Rosa vai não dá maiores esclarecimentos, mas a um breve olhar para essa épo-
ser em primeira pessoa. No início ia ser um diário, mas eu pensei que ca, logo se toma conhecimento de que depois da queda do governo
ia ser mais legal se ela estivesse conversando com alguém, então veio militar começaram a acontecer os julgamentos. Em 09 de dezembro
a carta. E a última, a Clara [...]. Aí me veio a história de botar na boca de 1985 foram condenados cinco militares, entre eles o General Jorge
do torturador dela” (LEAL, 2017). Rafael Videla, punido com a prisão perpétua. No entanto, à época
Essas histórias, que se passam em diferentes tempos, se cruzam e das sessões já haviam sido aprovadas leis que anistiaram os militares
oferecem ao leitor a possibilidade de remontá-las. São histórias que comprometidos com a repressão. Mesmo que essas leis estivessem
têm como elo a ditadura argentina (1976-1983), que atingiu essas em vigor, não foram suficientes para afastar os fantasmas que o as-
mulheres. Elena é esposa do militar que recebeu uma criança em sombram. Apesar de morar no Brasil, para onde se mudou quando
adoção. Rosa é a mãe que procura a filha desaparecida; ao saber que Laura tinha dez anos, e de a lei de anistia ter sido promulgada, a pos-
ela concebeu, ela inicia a busca pela neta. Clara é a militante desapa- sibilidade do julgamento parece pairar sobre ele.
recida e submetida à tortura. Laura é o elo entre essas mulheres: filha Ramiro é um torturador. Ao especificar que essa era sua função,
de Clara, adotada por Elena e neta de Rosa. No romance, descobrem- ele esclarece que cada segmento tinha uma incumbência, deixando
-se algumas faces dessa ditadura: tortura, desaparecimento, adoção e claro que a sua não era matar, atribuição conferida a outros:
exílio. São essas faces que este ensaio irá recobrir. Minha função era torturar. Havia uns milicos que pilota-
vam helicópteros. Aqueles que atiravam os caras ao mar.
134 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 135
Tinha os que fuzilavam. Minha especialidade era conseguir A autorização por parte dos superiores hierárquicos “le-
informações. Fui recomendado para atuar na operação galizava” os procedimentos, parecia justificá-los auto-
pelo pessoal da inteligência. (LEAL, 2015, p. 51, grifos da maticamente, deixando o subordinado sem alternativa
autora) aparente exceto a obediência. O fato de fazer parte de um
dispositivo apenas como uma de suas engrenagens criava
uma sensação de impotência que, além de desencorajar a
Jogar as pessoas ao mar e fuzilar eram práticas recorrentes. Ramiro resistência virtualmente inexistente, fortalecia a impressão
pertencia ao grupo da inteligência, que tinha como tarefa conseguir de ausência de responsabilidade. Os mecanismos para des-
informações dos presos. Em uma das sessões, ele afirma que auferia pojar as vítimas de seus atributos humanos facilitavam a
execução mecânica e rotineira das ordens.
imenso prazer em obter essas informações, sobretudo quando se tra-
tava de mulheres, “que normalmente resistem mais que os homens” Essas ordens não eram questionadas, apenas cumpridas. É o que
(LEAL, 2015, p. 79). Nesse sentido, matar fugia de sua alçada, porém fazia Ramiro, sequer aventando para a possibilidade de não o fazer:
a tortura era imprescindível para o êxito dos seus objetivos: obter “Era o que era feito, simplesmente. Não se questionava. Não tentei não
informações com vistas a “capturar outras pessoas, armamentos ou fazer” (LEAL, 2015, p. 77, grifos da autora). O estupro não lhe con-
qualquer coisa que pudesse ser útil para as tarefas de contrainsur- feria prazer, mas “nojo” (LEAL, 2015, p. 78, grifos da autora). Nojo,
gência.” (CALVEIRO, 2013, p. 46). O próprio Ramiro justifica que “A porque eram corpos exauridos, mulheres desumanizadas, que já não
parte da violência física era um efeito colateral. A parte chata e buro- emitiam quaisquer reações: “[...] principalmente comendo mulheres
crática, que todo trabalho tem” (LEAL, 2015, p. 52, grifos da autora). que quase já não são humanas, que não olham, não falam ou gritam,
Percebe-se em sua fala um tom de contrariedade, como se ele se visse que não têm mais eficiência para emitir qualquer tipo de sensação pe-
obrigado a essas práticas. A tortura, não obstante ser parte integran- los poros, a não ser os cheiros” (LEAL, 2015, p. 78, grifos da autora).
te do seu trabalho, não lhe era agradável. Inclusive ele afirma que Ressaltar os “cheiros” é muito significativo, porque põe em foco a
invejava os colegas que obtinham prazer em aplicar esses métodos, animalização desses seres submetidos à tortura. Em outro trecho, ao
porque, nesse caso, ele “sofreria menos” (LEAL, 2015, p. 52, grifos afirmar que todos os torturados acabam se parecendo, ele é ainda
da autora). Apesar dessa ressalva, ele realizava o que estava prescri- mais explícito quanto à desumanização, a qual permite a similarida-
to, submetendo os presos a atos de extrema violência: “[...] arreben- de com os animais:
tar com eles. Socar, chutar, bater com cassetete, dar choque, arrancar
No final de tudo, eles ficam todos iguais. Tanto tempo em
unhas...” (LEAL, 2015, p. 53, grifos da autora). cativeiro, todos ficam iguais, morrem iguais, ocorre algu-
Além desses métodos, ele refere-se ao estupro, que executava sem ma forma de simbiose que você já não diferencia mais uma
pessoa da outra, é como se fossem animais, pálidos, magros
nenhum prazer em corpos depauperados. No entanto, ele não se e famintos, loucos pela liberdade ou pela morte. Ou pelos
abstinha de fazê-lo, uma vez que “[...] era um dos itens da lista que dois. Nus. Ninguém mais é humano depois de meses de tor-
tura. (LEAL, 2015, p. 53, grifos da autora)
cumpríamos” (LEAL, 2015, p. 77, grifos da autora). Falar que havia
uma “lista” que deveria seguir é apontar para a sujeição às regras pre- A observação de Ramiro está em consonância com os estudos de
viamente estabelecidas. Isso pressupõe a obediência. Pilar Calveiro Calveiro (2013, p. 98): “Havia um autêntico trabalho de destruição
(2013, p. 49, grifos da autora) reflete sobre o quanto essa presidia os do homem dentro do campo de concentração; por isso o uso da tor-
atos dos militares de diferentes escalões: tura, do terror e de um conjunto de mecanismos de desumanização
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e de despersonalização – que [...] têm uma dupla função: destruir a e editava aqueles jornalecos da esquerda peronista estudantil” (LEAL,
vítima e facilitar o trabalho do algoz”. 2015, p. 89, grifos da autora), por isso, ela é considerada uma prisio-
Os presos, submetidos a essa violência devastadora, ele denomi- neira importante. No entanto, ela mantém-se calada: “Ela não falava.
na genericamente “rebeldes” (LEAL, 2015, p. 51), termo atrelado ao Nunca ouvi sua voz” (LEAL, 2015, p. 90, grifos da autora), não obs-
campo semântico daqueles que contrariam a ordem estabelecida. tante a violência a que é submetida, o que fica transparente em “méto-
Aqueles cujas ideias divergentes são insubmissas ao governo autori- dos mais rigorosos” (LEAL, 2015, p. 90, grifos da autora), aludindo às
tário, o qual não abre espaço para o dissenso, por isso urge calá-los: práticas que a levam ao óbito. Ela permanece em silêncio, não emite
“Você pega aquele bando de filhinho de papai, que adora ficar com um grito, porém “parecia que mordia cada vez mais forte, sangrava
ideinha comunista e não sabe o que é botar a mão na massa, o que a boca dela [...]” (LEAL, 2015, p. 90, grifos da autora), tanto pelos
é ter que trabalhar, de fato, e ensina pra eles o que é o certo” (LEAL, murros, quanto pelas mordidas. Referindo-se à sessão causadora da
2015, p. 52, grifos da autora). O exemplo destaca a juventude dos sua morte, Ramiro menciona os diversos métodos que aplicaram em
militantes e a “ideiazinha comunista” que os mobiliza. É o temor do seu corpo já depauperado:
comunismo que impulsionou os vários golpes que tiveram lugar no
A gente tava aplicando muitos métodos, ela já tava toda
Cone Sul, todos eles norteados pela Doutrina de Segurança Nacional. arrebentada. Foram umas três horas de tortura, intensa. A
Em nome do combate ao comunismo, as vozes divergentes foram gente tava com muita raiva. Deixamos ela viva, ela pariu os
bebês no nosso hospital, com médicos nossos, e ela não fala-
caladas. Submetidos à tortura, esses jovens “rebeldes” foram silencia- va. Ela não falava. Uma hora, duas horas, batendo, choque,
dos e tiveram seus corpos depauperados. ela não falava. A gente não parou. Não sei qual foi a hora
que ela morreu. Depois mandamos os cabos lidarem com
Entre as mulheres torturadas, há uma de quem ele lembra cons- o corpo. Eles devem ter simulado um enforcamento suici-
tantemente: a única que “morreu enquanto eu torturava” (LEAL, da, algo assim, que era como a gente tinha que responder
pro pessoal da inteligência quando sem querer morria al-
2015, p. 89, grifos da autora). Nessa réplica, que ele faz às palavras guém que não podia, alguém que tinha muita informação.
da terapeuta – “A mulher que você matou” (LEAL, 2015, p. 89) –, ele (LEAL, 2015, p. 90-91, grifos da autora)
se exime do ato assassino ao centrar-se em sua atividade, cujo fim se
constituía na obtenção de informações, a tortura sendo o meio para Observe-se que ele se reporta ao episódio no plural: seria uma
consegui-las. Essa mulher é Clara, embora não tenha certeza do seu tentativa de dividir responsabilidades? Nessa ocasião, há um descon-
nome: “Alguma coisa com duas sílabas... Luna, Rosa, Clara, Vera... trole dos torturadores, porque agem sob o domínio da raiva. Eles
Algo assim” (LEAL, 2015, p. 79, grifos da autora). estão frustrados por ela não falar. Mesmo desumanizada fisicamen-
Ao ser aprisionada, a descoberta da gravidez protela a tortura. te, como o próprio Ramiro reconhece – “Já não era mais humana”
Esse era procedimento recorrente durante a ditadura: as grávidas (LEAL, 2015, p. 80, grifos da autora) –, ao resistir, ela se humaniza,
eram poupadas até o nascimento dos bebês (CALVEIRO, 2013, p. frustrando os seus algozes. Clara morre, mas sua resistência interna
83). Depois de dar à luz a “um casal de gêmeos” (LEAL, 2015, p. 90, não sucumbe, mesmo diante da força destruidora a que seu corpo
grifos da autora), cuja menina é adotada por Ramiro, ela é libera- é submetido. Com Clara, ele não teve o prazer de conseguir infor-
da para os interrogatórios. De acordo com as informações que ob- mações com os métodos que ele se orgulhava de dominar. A pressu-
teve, ela “era uma das cabeças das uniões universitárias, que escrevia posta simulação de suicídio, aponta para a divisão de tarefas. Ele era
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o torturador, outros militares – os cabos – se incumbiam do corpo constantemente é renovado nos sonhos-pesadelos. Tendo permane-
morto, de fazer o apagamento da morte durante a sessão e do seu cido impune, considerar “penitência” (LEAL, 2015, p. 57) as noites
desaparecimento. em que os fantasmas do passado reaparecem é sintomático do quanto
Ramiro é um torturador, disso não se esquece, tanto é que foram é afetado pela não elaboração do evento traumático.
seus métodos que ocasionaram a morte de Clara durante uma sessão.
No entanto, é importante considerar que ele é afetado pelos seus atos,
A prática do desaparecimento
não ficando imune à barbárie de que ele mesmo é agente. Em duas A questão do desaparecimento é objeto das cartas de Rosa para
ocasiões ele revela seu sentimento de culpa. Já na primeira sessão, Roberto, ex-namorado da filha. Ela é uma das muitas mães que bus-
ele afirma “Sinto culpa” (LEAL, 2015, p. 24, grifos da autora). E em cam seus filhos desaparecidos pelo governo ditatorial. A Junta militar
outra, ele é ainda mais contundente: “Sinto culpa das minhas vitórias” que o preside tem no desaparecimento sua principal característica: “o
(LEAL, 2015, p. 31, grifos da autora). Quando a terapeuta lhe per- desaparecimento e o campo de concentração/extermínio deixaram
gunta o “por quê” (LEAL, 2015, p. 24) da sua culpa, ele silencia, não de ser uma das formas de repressão para se tornarem a modalidade
verbalizando o horror que promoveu. Como parte de uma estrutura repressiva do poder, executada diariamente a partir das instituições
macabra, ele também sucumbe. Isso se mostra em seus pesadelos: militares” (CALVEIRO, 2013, p. 40, grifo da autora). Embora fosse
“Depois que tudo acabou, nunca mais parei de sonhar com meus gri- um procedimento dos governos anteriores, foi potencializado desde
tos” (LEAL, 2015, p. 57, grifos da autora). Esses “gritos” podem ser os primórdios do golpe e concebido e praticado dentro das institui-
vistos como a reencenação metafórica das cenas de tortura. Em ou- ções. A ditadura argentina caracterizou-se pelo “poder desaparece-
tros sonhos ele é assombrado com a reaparição de Clara. É ela que, dor” (CALVEIRO, 2013, p. 28). Na fala de Ramiro, ele refere-se a
com seus “lábios carnudos” (LEAL, 2015, p. 91), retorna para ator- duas formas de desaparecimento: atirar as pessoas de helicópteros
mentá-lo. As discussões de Maria Rita Kehl (2010, p. 130, grifo da au- e fuzilar. A grande maioria tinha esse destino trágico. Alguns esca-
tora) sobre as implicações da impunidade da Lei de Anistia no Brasil, pavam e eram sepultados, mas nem por isso tinham uma condição
sobre o quanto o fato de não ter sido realizado um ajuste de contas melhor, porque lhes era negada a possibilidade de um ritual fúne-
revelou-se um trauma também para os torturadores, são adequadas bre. Nesses sepultamentos, também se perdia a identidade, uma vez
para a análise de Ramiro: que eram enterrados sem nome. Anos depois, esses cadáveres foram
Ocorre que a licença para abusar, torturar e matar, acaba
recuperados, e ocorreu uma tentativa de resgatar-lhes a identidade
por traumatizar também os agentes da barbárie. Não se apagada (CALVEIRO, 2013). Passavam a ter uma história. Esse é o
ultrapassa certos limites impostos ao gozo impunemente. caso de Clara, que não apenas recuperou o nome e a identidade fa-
[...]. Não é fácil efetivar a passagem do “sou um homem”
para “sou um assassino de outros homens” – ela tem um miliar, mas o fato de ter dado à luz, o que complementa sua história.
preço alto. O efeito, para o próprio sujeito, é tão aterrori- Clara provavelmente foi aprisionada no início de 1977 – Ramiro
zante que ele se vê impelido a repetir seu ato mortífero até
assimilar de vez sua nova hedionda identidade. declara que ela estava no início da gravidez – e morta alguns me-
ses depois do parto, o que ocorreu em agosto, isso considerando que
As reflexões da psicanalista podem ser estendidas a Ramiro. O Laura nasceu nesse mês. No entanto, esse período anterior está au-
trauma das mortes provocadas, que o transformaram em assassino, sente das cartas de Rosa. Na primeira, datada de 6 de setembro de
140 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 141
1981, ela afirma que a morte da filha foi oficializada, em razão de O relato sobre o ritual de reconhecimento data do dia 25 de se-
que ela foi chamada para o reconhecimento do corpo. Os quase cin- tembro. Mesmo que ela já tivesse sido advertida sobre o quão terrível
co anos de busca apenas aparecem como um movimento que dava seria esse momento, ela tem dificuldade de narrar sobre o impac-
sentido a sua vida, o que revela o temor do vazio que lhe possa advir to diante dos ossos da filha, mas ele é traduzido pelas suas reações
desse reconhecimento. Ela é explícita quanto ao desejo de que não físicas:
ocorra este fecho: “Não quero que a minha busca acabe” (LEAL, 2015,
E aí, nessa sala, eles trouxeram uma caixa com restos mor-
p. 11, grifos da autora) e, a seguir, com a arguta consciência do que tais de alguém, que poderiam muito bem ser ou não ser da
isso significa, completa: “Se pudesse escolher, escolheria buscar sem- Clara. Eu não vi muito, confesso que bati o olho e já disse
logo que assinaria o que eles quisessem. É assim que aconte-
pre, pois parece que toda a razão da minha existência agora é procu- ce. Ver tão de perto, de forma tão fria e direta, os restos mor-
rar” (LEAL, 2015, p. 12, grifos da autora). tais de alguém [...] é atemorizador. Na hora, o que acontece
é uma súbita vontade de chorar incontrolável, que você não
Essa carta também alude à aproximação de Rosa com as Mães da sabe de onde vem. O aperto na garganta vem como que des-
Praça de Maio, das quais certamente se acercou ao perder o contato carga elétrica, de uma vez só, e as pernas ficam bambas.
Você não questiona, você vai logo e assina o que quiserem
com a filha. O grupo, que logo passou a ser chamado de “Madres de que você assine. [...]. Mas o cheiro da sala, com o peso da
la Plaza de Mayo”, foi formado por mães, pais e familiares de desa- situação... a impressão que dá é que, enquanto você não se
render, eles vão ficar ali te mostrando aqueles ossos. Sem
parecidos políticos que, em 30 de abril de 1977, iniciaram um movi- parar. E a descarga na garganta não cessa. (LEAL, 2015, p.
mento de resistência ao caminhar em torno da Pirâmide de Maio. Na 27, grifos da autora)
ignorância do destino que lhes coube, essas mães buscam seus filhos
na expectativa de que ainda estivessem vivos, mas angustiadas com a É uma cerimônia de luto, um luto que ela precisa viver. Esse
possibilidade de estarem mortos. Rosa está entre essas que esperam: confronto foi “tenebroso” também para Rosa. Tanto é assim que ela
“Esperar pelo dia em que Clara não voltaria mais. Depois esperar pelo não suporta a crueza de estar diante dos ossos da filha e procura abre-
seu retorno. Esperei cinco anos até o telefone tocar” (LEAL, 2015, p. 38, viar esse momento. Momento de extrema dor, manifesta no corpo.
grifos da autora). Suas reações pressupõem a realização do luto, o qual “gera alívio”,
Ela faz parte dessa associação, tanto que através das outras mães conforme o relato das outras mães.
conhece fatos relativos à atividade política da filha, bem como são A morte de Clara tornada oficial significa resgatá-la da condição
elas que lhe transmitem a experiência do confronto com os restos de desaparecida, na qual permaneceu por quase cinco anos, livran-
mortais dos filhos: “As outras mães da praça dizem que o encontro do-a do anonimato dos que foram enterrados sem nome (nomen nes-
com os corpos dos filhos é tenebroso, porém gera alívio” (LEAL, 2015, cio). Essa circunstância limite para essa mãe também representa a
p. 11, grifos da autora). Ou seja, é um ritual necessário para a rea- perda das esperanças, porém ele foi fundamental para que ela tivesse
lização do luto. Esse enfrentamento, além de ser difícil, significa o forças para se abrir à nova etapa: a busca por um neto/neta.
reconhecimento da morte da filha, lhe tirando toda a expectativa de O sequestro dos bebês
que ela esteja viva. Ao final dessa carta, ela se mostra atemorizada ao
perceber que o confronto com a verdade não seria fácil. Durante a ditadura militar argentina estima-se que 500 crianças
tenham sido sequestradas e entregues a militares ou a simpatizantes
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do regime para serem criadas como filhos biológicos, sem menção às Sobre a origem da criança, nem a própria Elena sabe sobre os trâ-
origens, portanto negando-lhes a identidade. Isso aconteceu com os mites pelos quais passou o marido para ter acesso a ela, pelo menos
recém-nascidos ou com aqueles que tinham até quatro anos, “por- não inicialmente. Isso se deduz de suas reflexões, quando a criança
que, nessa idade, ainda não tinham sofrido a influência política dos tem por volta de três anos: “Imaginava como seria sua mãe biológica”
seus pais” (QUADRAT, 2003). Às mais velhas não lhes era dado o (LEAL, 2015, p. 23). Porém, passados três anos, ela “evita [...] pensar
direito à vida, sobretudo àquelas em torno de dez anos, pois estas nas origens da própria filha” (LEAL, p. 49). No final desse capítulo,
já teriam sucumbido à influência dos progenitores. Os manuais de ela está preocupada com o relacionamento de Ramiro com a menina
instrução sobre o tema elaborados pelo Exército, que escaparam da depois de sua morte (nesse momento ela está com doença terminal),
incineração generalizada feita antes de os militares deixarem o poder, o que se revela em sua percepção sobre o que deveria fazer: “E então
“permitem comprovar duas coisas: a apropriação de crianças foi uma ela compreendeu qual era o seu real papel de mãe. A liga” (LEAL,
prática de Estado, assim como o extermínio em massa, sem se impor- 2015, p. 50). Estaria ela se reportando às “Avós da Praça de Maio”?
tar com qualquer ética ou questão humanitária na medida em que até Estaria ela querendo denunciar a condição da filha? Nada é dito so-
crianças eram vistas como ameaças” (QUADRAT, 2003). bre o que fez, mas sabe-se que contou a Rosa que Laura era adotada.
As apropriações de bebês nascidos em centros clandestinos ou no Isso é revelado em uma das cartas que ela (Rosa) escreve a Roberto.
Hospital Militar eram sistemáticas, sendo estes logo doados, e os “be- Apesar do silenciamento de Elena, esses poucos indícios permitem
neficiados as registravam como sendo filhos naturais ou adotados” inferir que, quase seis anos passados da adoção, ela não é mais ingê-
(QUADRAT, 2003). Em qualquer das circunstâncias a origem estava nua quanto à possibilidade de Laura ser filha de uma militante polí-
perdida, impondo-lhes a nova identidade familiar, muitas vezes a mes- tica, apropriada pelos militares e doada ao marido.
ma “do responsável direto pela morte de seus pais” (QUADRAT, 2003). É interessante observar que o ano de nascimento de Laura (1977)
É nesse contexto de sequestros, apropriações e adoções ilegais que coincide com o da constituição da associação das “Abuelas”, que, ao
surgem as “Abuelas de Plaza de Mayo”. Ao perceberem que não se trata- final desse ano, já está formado. Em 1983, a menina com seis anos, as
va de casos isolados, mas que tal situação representava “um drama que atividades do grupo são amplamente conhecidas, inclusive em âm-
estava alcançando proporções nacionais, levou algumas mulheres a se bito internacional. Certamente essa visibilidade propiciada por sua
reunirem em um grupo, que teria como objetivo encontrar e restituir atuação contribuiu para a consciência de Elena sobre as origens da
as crianças sequestradas desaparecidas” (QUADRAT, 2003). Essa asso- filha. Essa consciência, cujo processo não é apresentado ao leitor, é
ciação surgiu em 15 de maio de 1977, apenas duas semanas depois da paralela a sua compreensão das dificuldades do marido com a crian-
constituição das denominadas “Madres de la Plaza de Mayo”. ça: “A maior preocupação de Elena era sobre como seria a relação
A mobilização de Beatriz Leal para a escrita foi justamente quan- entre Laura e Ramiro depois que ela não estivesse mais ali” (LEAL,
do tomou conhecimento de tal agremiação. Em seu livro a adoção 2015, p. 50). Nada é dito sobre essas percepções e sobre o marido.
ocupa um lugar central. Laura, que no presente da narrativa tem qua- Nas sessões de terapia de Ramiro, não há dúvidas quanto à ori-
se trinta anos, enquadra-se entre os netos que foram apropriados e gem de Laura: ela é filha de Clara, que morreu em sessão de tortura,
adotados por militares, os quais desconheciam sua ascendência. Ela conduzida por ele. Nesse sentido, o romance está em sintonia com
também ignora que Elena e Ramiro não são seus pais biológicos.
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um aspecto histórico amplamente disseminado: filhos de militantes andanças pela cidade. Ela faz algo ainda mais efetivo: muda-se para
serem adotados pelo mesmo torturador que vitimou a mãe. Ricoleta. Embora seja um local muito caro, comprometendo sua ren-
Quanto à Rosa, ela somente toma conhecimento de que se tornara da com o pagamento da casa, “é lá a maior concentração de milico
avó depois da cerimônia de reconhecimento dos ossos da filha. Ao por metro quadrado” (LEAL, p. 60, grifos da autora). A associação, à
sair do departamento de polícia é contatada por uma jovem que se época já atuante há quase seis anos, lhe recomendou o bairro, uma
apresenta como representante das avós, que lhe afirma ter alguns ou- vez que “Grande parte das crianças adotadas com berço de Cacha de-
tros dados sobre Clara para lhe revelar. O fato de a jovem estar ligada vem estar sendo criadas ali, [...]” (LEAL, 2015, p. 60, grifos da autora).
a essa associação imediatamente alerta Rosa para a possibilidade de Logo ela se insere na associação de avós e passa a frequentar suas
ter-se tornado avó. Porém, ela mostra-se indecisa quanto a iniciar ou reuniões. Em carta de 13 de janeiro de 1985, ela se considera uma
não essa nova etapa: “ainda não decidi se a busca vai continuar ou se delas: “Nós, avós da Praça de Maio, em alguns contextos somos cha-
vou parar por aqui” (LEAL, 2015, p. 28, grifos da autora). A indecisão madas de senis” (LEAL, 2015, p. 103, grifos da autora). São elas que
é de tal ordem que, na primeira vez que ela se dirige à associação, ela lhe encaminham alunos, entre outros, Rodrigo, com quem seu papel
sequer se identifica. Até então, ela desconhecia essa outra agremiação, extrapola ao de professora de piano, cuidando do menino para além
que tinha como objeto “procurar filhos dos desaparecidos. Acredita-se das aulas: apanhava-o na escola, ajudava-o nos temas e levava-o ao
que muitos desses bebês foram entregues à adoção depois de nascer em parque. Em um desses dias em que está no parque com o menino, ela
cativeiro ou no hospital da polícia” (LEAL, 2015, p. 39, grifos da au- conhece Laura, que brinca com Rodrigo em perfeita interação, ma-
tora). As datas das cartas evidenciam que ocorreu um processo até nifestando cumplicidade nas brincadeiras, o que lhe oportuniza falar
Rosa dispor-se a encarar as revelações que a jovem lhe anunciara e com a mãe da criança, Elena, a qual não é muito receptiva. Apesar
ir até as “Abuelas” com vistas a saber a verdade. A carta em que a de ela não gostar da intrusão, logo propõe levar Laura para uma aula
jovem a abordou à saída da prefeitura é de 25 de setembro de 1981, experimental de piano.
enquanto a que ela tem conhecimento da verdade é de 3 de junho de A carta de 10 de abril de 1983 é a primeira em que ela se refere à
1982, ou seja, há um intervalo de quase 9 meses entre as duas. Mesmo Laura; e a de 13 de janeiro de 1985 é a última. Nessa, ela relata um
admitindo-se que não haja nenhum problema nessa defasagem de episódio que lhe dá certeza de que a menina não mais retornará às
tempo, considerando-se a importância da revelação, acredita-se que aulas. São quase dois anos de convivência, nesse ínterim as cartas são
ela não deixaria passar muito tempo sem notificar o genro sobre a esparsas – na última ela justifica que a ausência de cartas decorreu
possibilidade de ele ser pai. Pressupõe-se que a distância entre fato e do fato de ter-se concentrado em Laura, criando artifícios para tor-
escrita tenha decorrido da necessidade de ela elaborar essa notícia até nar as aulas agradáveis para não irritá-la, pois “não queria de forma
sentir-se fortalecida para o confronto com essa nova situação e dis- alguma perder aquela aluna” (LEAL, 2015, p. 103, grifos da autora).
por-se à continuidade da busca. Ela aceita as informações das “avós” Além dessas duas, há apenas mais uma, com data de 30 de maio de
de que Clara deu à luz para o que suas palavras não deixam dúvidas: 1983. Essa é muito importante. Em menos de dois meses de convi-
“Voltei a buscar” (LEAL, 2015, p. 47, grifos da autora). vência Elena já lhe revelou que Laura era adotada, o que deixou Rosa
Sua busca, porém, não se resume a procurar em rostos de meni- impactada: “Minhas mãos começaram a tremer da mesma forma que
nas traços da filha e no de meninos os de Roberto quando de suas tremeram quando Elena me contou que Laura era adotada” (LEAL,
146 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 147
2015, p. 94, grifos da autora). A circunstância que motiva a compara- Nessa carta, ela extravasa o seu desespero, pois intui que Ramiro
ção é o relato de Ramiro sobre o estado precário da mulher, o que ele não mais trará a menina para as aulas, isso porque flagrou o seu olhar
fez com “voz suave e chorosa” (LEAL, 2015, p. 94, grifos da autora), o para alguns papéis sobre as “Avós da Praça de Maio que eu esqueci de
que a sensibilizou. Nas duas circunstâncias é o corpo que manifesta esconder” (LEAL, 2015, p. 105, grifos da autora). Ela termina a carta
a perturbação que a avassala. Interessa sobretudo sua reação ao saber em tom de desespero e o termo “Socorro” (LEAL, 2015, p. 105, grifos
da condição da menina: a tomada de conhecimento da adoção e o da autora) que a fecha é eloquente. Essa é a última palavra escrita
fato de o pai ser um militar são o suficiente para mobilizar essa avó por Rosa. Em tal carta, ela sequer coloca sua assinatura, o que dá a
que está buscando pelo(a) neto(a). O seu choque, revelado no corpo, dimensão do seu estado emocional.
não deixa dúvidas da ebulição que a consumiu. O corpo fala o que
as palavras silenciam. Nada é dito sobre seu processo de consciência,
“A peça do quebra-cabeça”
porém, a revelação de Elena, somada à ocupação de Ramiro, foi deci- Laura é a filha de Clara, morta em sessão de tortura presidida por
siva, para identificar Laura como a neta que buscava. Ramiro que, ato contínuo ao seu nascimento, adotou-a; é a neta que
Nessa carta fica expresso o carinho e o cuidado com a menina. Rosa logo identificou, por isso cumprir o papel de avó nas horas que
Como uma avó amorosa, procura lhe satisfazer os desejos: faz o “bolo partilhava com a menina. Laura não sabe de sua origem, no entanto,
de ‘nada’” (LEAL, 2015, p. 93, grifos da autora), o “favorito de Laura” sente-se desconfortável com a sensação de incompletude, a qual se
(LEAL, 2015, p. 93, grifos da autora), e coa o suco de laranja, pois revela na metáfora “a peça do quebra-cabeça que falta” (LEAL, 2015,
ela “não gosta dos pedacinhos” (LEAL, 2015, p. 93, grifos da autora). p. 9), repetida algumas vezes no romance para indicar sua condição.
Nas aulas de piano, ao perceber que a menina prefere teoria à prática, Ela é sintomática da existência de algo não identificado que a pertur-
ela prioriza o estudo da teoria. Para facilitar-lhe o exercício, coloca ba, mas de cujo confronto ela procura fugir.
adesivos nas teclas, com o que nunca concordou e o que nunca fez O sentimento de vazio que a atinge é, certamente, a manifestação
para outros alunos. Mas, por perceber que ela não tinha aptidão para mais contundente de seu desconforto. Por isso, procura enfrentar
a música, e por ter “medo de Laura desistir das aulas” (LEAL, 2015, p. esse vácuo criando problemas e, ao buscar resoluções, se afastar do
94, grifos da autora), ela recorre a esse artifício. “Perigo [de] ficar em silêncio” (LEAL, 2015, p. 7-8). Maximizá-los é a
Voltando à última carta, nela ela revela sua convicção do parentes- forma de não encarar o problema maior, que a assombra, e é apenas
co: “Mas depois que Laura passou a frequentar não só a minha casa, vislumbrado em algumas poucas circunstâncias. Essa nostalgia, asso-
mas também a minha rotina, nunca mais achei que qualquer outra ciada a essa “peça que falta”, decorre da ruptura abrupta com suas raí-
criança pudesse ser filho de Clara que não Laura” (LEAL, 2015, p. 103, zes, tão necessárias para a constituição identitária. De acordo com os
grifos da autora). No entanto, não deseja se desgastar para provar a estudos de Simone Weil (2001, p. 43), o enraizamento é fundamen-
ligação biológica, pois já sabe através das outras avós que o processo tal para o ser humano, pois pressupõe “sua participação real, ativa e
é penoso e demorado; basta-lhe usufruir “essas preciosas horas que natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos
eu tenho com ela na semana, e viver de ilusão” (LEAL, 2015, p. 104, tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”.
grifos da autora). A ruptura com tudo que representa a Argentina é imposta à meni-
na por Ramiro. Todavia, nem por isso ele mantém com a filha laços
148 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 149
minimamente satisfatórios. Aos treze anos, Laura percebia a existên- “tudo perdido” estão relacionados a sua primeira infância, e põem
cia de uma “linha de distância” (LEAL, 2015, p. 21) entre eles. Com em destaque sua identidade argentina, cuja ruptura foi determinante.
o pai, o hiato que os separa não é nunca superado e o sentimento de É interessante que ela tenha saudades das “aulas de piano”, metoní-
que não havia sintonia se instaura: “Faltava a peça do quebra-cabeça, mia de sua professora, avó de sangue, porque dela se afastou aos seis
a liga. Laura também não sentia que conhecia seu pai por comple- anos (1983) e com quem conviveu por pouco tempo, menos de dois
to, que estava de fato inserida na rotina dele. Havia conflitos de me- anos. Essa não é a única oportunidade que ela também lembra das
nos. Eles dividiam uma casa e um passado em comum. E só” (LEAL, aulas ou da professora de piano. É muito significativo que ela recor-
2015, p. 21). O trecho é muito elucidativo do distanciamento que de de detalhes dessa professora, como as “unhas ruídas” e os “dedos
havia entre os dois e da inexistência de um envolvimento afetivo. Sua que tremiam”, uma vez que já se passaram mais de vinte anos. Na
compreensão do desajuste, expresso na metáfora “peça do quebra- realidade, esses detalhes permaneceram devido à importância do elo
-cabeça” que estava faltando, afigura-se revelador, uma intuição que afetivo que foi construído com essa avó, apesar de ela não saber desse
a personagem não persegue. vínculo sanguíneo. Essas perdas, aliadas às manifestações de triste-
Esse corte se estende aos vínculos afetivos primordiais: com a mãe za, são consequência do seu desenraizamento, questão discutida por
e com a língua. Da mãe, Ramiro não lhe concede “sequer [...] uma Tzvetan Todorov (1999, p. 27): “O homem desenraizado, arrancado
foto” (LEAL, 2015, p. 22); e da língua, ele “proibiu-a de falar espanhol de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito
em casa [...]” (LEAL, 2015, p. 64). Maria José de Queiroz (1998, p. mais agradável viver entre os seus”. Expurgada das suas raízes, Laura
57), ao referir-se à importância do idioma, afirma que ela, no exílio, ressente-se desse afastamento.
“converte-se na metáfora da pátria.” E acrescenta: “Só quem se vê pri- A ruptura com tudo o que estivesse relacionado ao país natal é
vado de seu uso, na intimidade do dia-a-dia, sabe estimar-lhe a falta” aceita por Laura, que “não ousava resgatar qualquer associação à
(QUEIROZ, 1998, p. 57). Pode-se imaginar as consequências dessas cultura argentina enquanto morava com o pai” (LEAL, 2015, p. 62).
determinações para a menina. Por outro lado, esses cortes também É por essa razão que somente depois de ir viver sozinha que ela se
significaram a ruptura dos vínculos que havia entre eles: “[...] Ramiro dispõe a fazer aulas de tango e de espanhol. Quanto ao tango, a ex-
eliminou outra liga que havia restado, após a morte de Elena, entre pectativa de que lhe despertasse recordações adormecidas é logo
ele e a filha: o idioma” (LEAL, 2015, p. 64). frustrada. Após um início em que pode “se sentir um pouco mais
Essas perdas são essenciais para o sentimento de incompletude de argentina por alguns instantes” (LEAL, 2015, p. 63), imaginando-se
Laura, extravasadas em várias oportunidades. Em alguns momentos acolhida – “Era como se o país estivesse dizendo ‘Bienvenida!’, na voz
elas são apresentadas por meio de sua tristeza e desconforto em rela- de Gardel” (LEAL, 2015, p. 63) –, ela logo percebe que a dança não
ção a sua vida. Porém, em uma ocasião são explicitadas, mostrando lhe propiciaria as ansiadas evocações do passado.
a arguta consciência de suas perdas, sobretudo, aquelas relacionadas É bem diferente o que acontece com o espanhol. Desde a primeira
às origens: “Hoje, depois de tudo perdido, a mãe, a nacionalidade, aula Laura sente-se impactada, mobilizada pela escuta dessa língua.
o idioma, a virgindade, o primeiro amor, as estribeiras, não havia “Um incômodo estranho” (LEAL, 2015, p. 64) é o anúncio para o
mais espaço para a perfeição. [...] Laura sente falta das aulas de pia- retorno do recalcado, e o aflorar de reminiscências do passado se im-
no” (LEAL, 2015, p. 41). Alguns dos aspectos que se incluem nesse põe: “Tudo volta, o desenho borrado impressionista do rosto da mãe,
150 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 151
o cheiro de café e pão com ou sem manteiga da casa de dois andares origem. No entanto, ela não segue esse pensamento, se o seguisse
da Recoleta, as aulas de piano” (LEAL, 2015, p. 64-65). As duas pes- sua vida seria desconstruída. Ela intui essa origem, mas não se
soas representativas da sua infância – a mãe e a professora de piano, dispõe a rastreá-la. Sucedem-se imagens de um cotidiano familiar
que é nomeada indiretamente – estão entre as primeiras recordações e de compartilhamento de brincadeiras com outras crianças. As
evocadas. Também é interessante a rememoração dos cheiros e da imagens desse passado a impactam. Ato contínuo, vai ao banhei-
casa, principalmente do local onde ela se situava. A irrupção des- ro e chora sua solidão, o afastamento dos familiares, que nunca
sas lembranças lhe permite reconhecer que “talvez estudar espanhol
a procuraram. Entre os que são resgatados, está a professora de
fosse a melhor forma de resgatar a memória.” (LEAL, 2015, p. 65).
piano e surpreende-se por “recorda[r] mais [dela] do que de suas
Apesar do sentimento de desconforto diante do elogio do professor,
avós” (LEAL, 2015, p. 75). Sem procurar desvelar significados
ela vai embora “ansiando a próxima aula” (LEAL, 2015, p. 66).
A substituição do mestre por uma professora argentina com so-
mais profundos ela, ao contrário, abandona as aulas de espanhol e
taque portenho é da maior importância. Ouvi-la falar próxima de cancela uma viagem a Buenos Aires, já previamente programada,
si faz aflorar memórias da infância e as imagens, antes imprecisas, preferindo abortá-la a proceder a questionamentos que poderiam
adquirem um “foco perfeito” (LEAL, 2015, p. 73): levá-la à compreensão de si, do desconforto de sentir que algo
estava faltando. Questionar não está entre os seus hábitos. A isso,
A sensação de quando os óculos corrigem a miopia pela
primeira vez: as áureas que circundam os objetos antes de prefere “preencher o tempo obsessivamente com atividades alea-
colocar os óculos se juntam muito rapidamente à coisa tórias” (LEAL, 2015, p. 75). O “sentimento incômodo” (LEAL,
principal. Encaixe. Laura lembra dos traços do rosto da
mãe e de seus lábios finos e como se questionava por que 2015, p. 62) que a oprime é escamoteado pela assunção de múl-
seus lábios eram tão grossos, diferentes do pai e da mãe. tiplas tarefas, bem como ao se submeter a fazer coisas de que não
Lembra do parquinho onde brincava e do amiguinho que
também era aluno da mesma professora de piano. Lembra gosta: “ach[a] rodas de violão um saco.” (LEAL, 2015, p. 62). É
do sabor doce do suco de laranja feito pela professora todo
final de aula de piano. Lembra do seu quarto e do cheiro
para se ocupar, escapando ao confronto consigo mesma, que pro-
do amaciante que sua mãe usava nas fronhas. Lembra da cura preencher o tempo.
expectativa que era aguardar o retorno do pai do trabalho
e como eles se reuniam na frente da televisão após o jantar.
Sua estratégia de ocupar-se compulsivamente a protege dos ques-
Lembra da gritaria de crianças correndo na rua nos fins tionamentos e também do sofrimento que a ruptura com a terra de
das tardes de domingo. Lembra de árvores de Navidad e origem lhe acarretou. As reflexões de Edward Said (2003, p. 50) per-
de batatas fritas no almoço, batatas que sua mãe cortava
em formato de palitos. Laura lembra dos primos e das tias, mitem compreender que a condição do exilado se apresenta como
da avó materna, que nunca mais viu. (LEAL, 2015, p. 74) uma “fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre
o eu e seu verdadeiro lar: [...].” Laura, no entanto, resguarda-se desse
A metáfora dos “óculos [que] corrigem a miopia” é reveladora.
sofrimento por meio do acúmulo de atividades. E quando as lem-
Considerando que logo se impõe a lembrança da mãe e dos seus branças recalcadas irrompem, ela não resiste e chora, porém não se
questionamentos em relação aos lábios finos dos pais, diferentes deixa consumir por elas, não permitindo que voltem a assombrá-la,
dos seus, que eram grossos, se pode aventar a possibilidade de o que a desistência da viagem a Buenos Aires deixa entrever.
ela finalmente, aos vinte e oito anos, ter tido uma luz sobre sua
152 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 153
Laura não deseja sequer visitar a terra natal, cujas lembranças experiência, antes de tocar o corpo deslocado, imprime a marca psí-
dolorosas são reprimidas. Porém, sua relação com Brasília é de não quica da lágrima, de uma exclusão experimentada na interioridade,
pertencimento, embora nela more desde os dez anos. Não obstante uma consciência diante de uma condição”2.
ressaltar que “criou um tipo de intimidade com a cidade que nin-
guém mais tira” (LEAL, 2015, p. 61), sua não integração é posta em
Nota conclusiva
destaque. Isso se mostra ao sentir-se uma “turista em uma cidade As vozes de Mulheres que mordem apresentam diversas faces dos
nova” e ao “se reconhece[r] uma intrusa em um território onde as tempos sombrios da ditadura argentina. Embora em diferentes ní-
pessoas não são tão claras a respeito da intenção delas” (LEAL, 2015, veis, todas essas mulheres foram afetadas por esse poder repressor,
p. 61). As metáforas “turista” e “intrusa” apontam para a estraneidade que procurava calar sujeitos insubmissos. As respectivas mordidas
que mantém com o local da acolhida. Os dois termos mostram sua podem ser vistas como metáforas de resistência: de Elena, às agruras
condição de exterioridade, de estar “fora do lugar” (SAID, 2009). Em do casamento; de Rosa, à angústia da espera; de Clara, a resistência à
seu livro de memórias, Said (2004, p. 328) refere-se a esse sentimento tortura; e de Laura, ao aflorar do recalcado.
de estar deslocado, que o acompanhou ao longo da vida: “O fato de Laura é o eixo centralizador entre essas mulheres. Ter sido se-
viver em New York com a sensação do provisório apesar de 37 anos questrada e adotada pelo torturador responsável pela morte da mãe
de residência aqui salienta mais a desorientação do que as vantagens e afastada da família biológica não é sem consequências. Ignorante
que auferi”. Essa parece ser a situação de Laura, posto não se sentir das origens, ela não persegue os indícios que lhe permitiriam resga-
integrada à cidade, o que essas metáforas desvelam. As reflexões de tar as raízes perdidas. Por isso, pode-se afirmar que sua história é de
Julia Kristeva (1994, p. 15) sobre os percalços do estrangeiro também desencontros: desse “pai”, o seu movimento é de afastamento até a
permitem compreender sua condição: “A origem perdida, o enraiza- dissolução mais absoluta dos laços; da avó-professora de piano, ela é
mento impossível, a memória imergente, o presente em suspenso. O abruptamente afastada. Essa avó, que não desejou enfrentar um pro-
espaço do estrangeiro é um trem em marcha, um avião em pleno ar, cesso para o reconhecimento do parentesco, perde-a definitivamente.
a própria transição que exclui a parada”. Entre esses encontros-desencontros cabe lembrar aquele com Bob
Laura, o bebê adotado por um militar, tem sua vida marcada por – trata-se de Roberto, o pai biológico e destinatário das cartas de
esse ato. Mesmo sem saber dessa circunstância, ela sente um des- Rosa –, que acontece em Búzios, para onde Laura viajou com o “na-
conforto insubmisso a explicações. Não obstante seu duplo desenrai- morado de olhos verdes” (LEAL, 2015, p. 75). Com ele, ela se expan-
zamento – da família e da terra natal –, ela foge a questionamentos de, sendo espontânea e falante, tanto que surpreende o namorado:
reveladores, camuflando seu sofrimento com o acúmulo de tarefas. “talvez ela conte mais do que ele já conseguiu desvendar nos últimos
A perda das suas origens é traumática, tanto é assim que ela recal- seis meses” (LEAL, 2015, p. 99). Bob, por sua vez, nela constata traços
ca qualquer possibilidade de acercar-se da verdade. Em decorrência da antiga namorada. Porém, ignorante da paternidade, a percepção
disso, sentindo-se não pertencente à cidade e sem laços afetivos, o
“exílio interior” (NOUSS, 2018, p. 57) é-lhe inerente. As palavras de 2 Tradução minha do original: “Tout exil, néanmoins, est un exil intérieur dans
la mesure où son expérience, avant de toucher les corps déplacé, imprime la mar-
Alexis Nouss (2018, p. 57) ajudam na compreensão da personagem:
que psychique de la déchirure, d’une exclusion vécue d’abord dans l’intériorité,
“Todo exílio, no entanto, é um exílio interior, na medida em que sua une conscience avant une condition”.
154 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 155
de semelhanças não significa reconhecimento. Motivado por esse en- com/entrevista-e-perfis/entrevista-com-beatriz-leal/. Consulta realizada
em 3 de outubro de 2019.
contro, ele resolve escrever para Rosa, falando-lhe de Laura e respon-
dendo-lhe perguntas feitas há muitos anos. No entanto, essas cartas NOUSS, Alex. La condition de l’exilé. Paris: Éditions de la Maison des Scien-
ces de l’homme, 2015.
se constituem em outro desencontro. Nem ele recebeu as da ex-sogra,
QUADRAT, Samantha Viz. O direito à identidade: a restituição de crianças
quando ela lhe fez o relato sobre ele ter-se tornado pai e da menina apropriadas nos porões das ditaduras militares do Cone Sul. – História vol
que identifica como neta, pois ele já havia se mudado quando essas 22 no. 2 Franca 2003 – Disponível em: http://dx.doi.org./10.1590/S0101 -
9074200300020001001-10-2019. Consulta realizada em 01 de outubro de
missivas lhe foram enviadas; e nem Rosa receberá essa carta, pois há 2019.
muitos anos havia trocado de endereço. Isso considerando que ainda QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio
estivesse viva. de Janeiro: Topbooks, 1998.
Laura seguirá sua vida na ignorância das origens, fugindo de tudo SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: SAID, Edward. Reflexões sobre
o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maria Soares. São Paulo: Companhia
que não se enquadra em sua “vida burocrática” (LEAL, 2015, p. 42), das Letras, 2003.
a qual se estende às relações afetivas, sejam elas de amizade, sejam SAID, Edward. Fora do lugar: memórias. Trad. José Geraldo Couto. São
as amorosas. Seguirá sendo alguém não pertencente, uma “turista” e Paulo: Companhia das Letras, 2004.
“uma intrusa”, alguém “fora do lugar”. A adoção a marcou definitiva- TODOROV, Tzvetan. Voltar. In:TODOROV, Tzvetan. O homem desenrai-
mente. Essa é uma das faces cruéis dessa ditadura. Mais cruel ainda zado. Trad. Christina Cabo. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 11-29.
foi ter sido adotada pelo torturador da sua mãe biológica. À morte WEIL, Simone. O enraizamento. Trad. Maria Leonor Loureiro. Bauru, SP:
EDUSC, 2001.
sob tortura, seguiu-se o desaparecimento do corpo, o qual permane-
ceu nessa condição por quase cinco anos. Cinco anos de desespero
para uma mãe, que transformou sua vida numa busca implacável.
Mulheres que mordem nos faz pensar na barbárie das ditaduras que
tiveram lugar no Cone Sul, barbárie que ainda ressoa nas vozes que
continuamos ouvindo...
Referências
CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento. Trad. Fernando Correa Prado.
São Paulo: Boitempo, 2013.
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, Edson; SAFATLE,
Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010. p.
123-132.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Car-
valho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LEAL, Beatriz. Mulheres que mordem. Rio de Janeiro: Motor: Imã Editorial,
2015.
LEAL, BEATRIZ. “A arte é uma libertação” [Entrevista concedida a] Nanah
Vieira. Revista Seca, 14 de julho de 1917. Disponível em: http://revistaseca.
156 Gínia Maria Gomes Exílio em Mulheres que Mordem, de Beatriz Leal 157