Cap. 4 Literatura e Cultura Indigena Afro-brasileira

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UNIDADE 4

CULTURA INDÍGENA E REPRESENTAÇÃO


DO ÍNDIO NA LITERATURA BRASILEIRA

OBJETIVOS

• Identificar a contribuição da cultura indígena na formação cultural e literária


brasileira.
• Analisar criticamente a representação do índio na literatura brasileira.
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4.1 OS INDÍGENAS BRASILEIROS E SUA CULTURA

Quando Pedro Álvares Cabral e sua esquadra chegaram ao Brasil


em 1500, aconteceu o primeiro contato entre duas culturas muito diferentes.
Na carta escrita ao rei de Portugal, o escrivão Pero Vaz de Caminha
demonstra a admiração do homem branco ao deparar-se com os nativos
da terra recém-descoberta. Eis a descrição dos dois primeiros indígenas
vistos pelo escrivão da frota portuguesa:

Quadro de Vitor Meireles- Primeira Missa no Brasil

..E dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete
ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem
primeiro.
Ali lançamos os batéis e esquifes ao mar, e vieram logo todos os
capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde conversaram.
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho
para ver aquele rio. E logo que ele começou de ir para lá,
acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três,
de maneira que, ao chegando o batel à boca do rio, eram ali
dezoito ou vinte homens. pardos, todos nus, sem coisa alguma
que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos com
suas setas. Vinham todos rijos para o batel; e Nicolau Coelho
lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
(CAMINHA,1997,p.17)

Os habitantes nativos, que eram muito numerosos, viviam divididos


em tribos, que se espalhavam por todo o território que hoje constitui a nação
brasileira, tanto no litoral como no interior. Esses povos foram chamados

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de “índios” pelos portugueses, pois, inicialmente, pensavam ter chegado


às terras orientais denominadas “Indias”. Os índios, embora vivessem
nas matas e florestas não eram desprovidos de cultura. Possuíam uma
organização social e política, divisão de trabalho, usos, costumes, tradições
e religião, que apresentavam variações entre as diferentes tribos. A Língua,
talvez o maior patrimônio cultural de um povo, também, variava muito,
contudo, podemos distinguir os principais troncos-linguísticos, a que se
vinculavam as numerosas tribos. São estes: os tupi-guaranis (habitantes
do litoral); macro-jês ou tapuias (habitantes do Planalto Central); aruaques
e caraíbas (habitantes da Amazônia). Apesar de os colonizadores terem
implantado, de forma obrigatória, a língua portuguesa como idioma nacional,
o Português do Brasil assimilou muitas palavras das línguas indígenas.
Vejamos algumas palavras originadas de línguas indígenas:
Palavras ligadas à flora e à fauna: abacaxi, açaí, beiju, buriti, caatinga,
caju, capim, capivara, carnaúba, cipó, capim, jabuticaba, jaboti, jacaré
mandacaru, mandioca, maracujá, piranha, quati, sucuri, tatu.
Palavras que são utilizadas como topônimos: Aracaju, Grajaú;
Guarujá Guanabara, Guaporé, Ibirapuera,
Ipanema, Jabaquara, Jundiaí, Paraíba
Paraná Parati, Piracicaba, Tietê, Tijuca, Sergipe, Uberaba.
Palavras usadas como substantivos comuns: bocó, caboclo, cafundó,
cafuné, canoa, canga, capanga, cuia, caipira cunhã, garapa, pipoca, pirão,
tapioca.
Palavras usadas como nomes de pessoas: Araci, Bartira, Iara, Iracema,
Irapuã, Jurandir, Juraci, Moacir, Moema, Ubirajara, Ubiratã.
Hoje, a população indígena em território brasileiro é bastante
reduzida, em relação à época do descobrimento do Brasil e, muitas línguas,
como também muitos costumes indígenas foram desaparecendo ao longo
do processo de colonização implantado pelos portugueses. Atualmente a
população indígena brasileira, conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro

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de Geografia e Estatística), é de um pouco mais de 700 mil indivíduos, que


vivem em reservas, ou seja, em terras demarcadas por lei e sob a proteção
do governo. Contudo, quase 6 milhões de indígenas viviam no país antes
da chegada dos colonizadores, segundo apontam estimativas feitas por
historiadores e estudiosos de etnografia e antropologia. A colonização
portuguesa pôs em prática um processo de conquista, escravização e, por
fim, o extermínio dos índios brasileiros. Daí a drástica redução dos povos
indígenas, que foram perdendo também a sua cultura e a sua identidade.
O Piauí, que foi desbravado por bandeirantes paulistas, constitui
exemplo de colonização violenta que dizimou toda a população indígena
que vivia na região. A esse respeito, o historiador Monsenhor Chaves afirma
que:

O problema do selvagem, no Piauí, não oferece características


diferentes das que apresentou em outros pontos do território
nacional. Nosso índio foi a grande vítima do civilizado. O branco
tomou-lhe as terras para povoá-las a seu modo. Escravizou-o,
no princípio. Cometeu contra ele graves injustiças, que o fizeram
levantar-se em armas, em grandes federações tribais ofensivas
e também defensivas. Tremendas represálias se praticaram,
então, de ambos os lados.
Afinal o índio capitulou. Tinha que ser. Foi assim em toda a parte.
A diferença de cultura e a inferioridade de armas conspiraram
contra ele. (CHAVES, 1998, p.145)

As tribos que viviam no Brasil, que não foram exterminadas,


renderam-se à convivência com o colonizador, dando lugar, assim, não só
a miscigenação racial, mas também, à participação da cultura indígena na
formação da sociedade brasileira.
Os povos indígenas possuíam uma organização cultural. Eles não
sobreviviam apenas da caça e da pesca, praticavam uma agricultura
rudimentar, cultivando milho, abóbora, batata-doce e mandioca. Eram
também hábeis em fabricar objetos, usando a matéria-prima que a
natureza oferecia. Respeitavam, porém, o meio ambiente, consumindo

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apenas o estritamente necessário para a sobrevivência. Construíam suas


casas, canoas, arcos e flechas utilizando a madeira abundante nas matas
e, com a palha, faziam cestos, esteiras, redes e outros utensílios. Algumas
tribos conheciam a técnica da cerâmica e a utilizavam na fabricação de
vasos, potes e panelas. Sabiam, ainda, fabricar tintas para pintar o corpo,
utilizando plantas como o urucum e faziam roupas e adornos com penas e
peles de animais.
:

Sertanista Domingos Jorge Velho

O povo brasileiro herdou muitos costumes indígenas, como o de


usar redes para dormir ou repousar, tal qual fazem os índios em suas redes
de palha, no interior de suas habitações, à qual dão o nome de ocas. Da
mesma forma, a culinária nacional agregou muitas iguarias inventadas
pelos índios, como é o caso do beiju ou tapioca, feito com a farinha de
mandioca, que também é utilizada no preparo da paçoca, hoje, um famoso
prato da culinária nordestina, que se faz socando a farinha e mandioca
com carne seca num pilão de madeira. A mandioca é também ingrediente
indispensável na preparação do pato no tucupi, prato tradicional da cozinha
paraense. A culinária do norte brasileiro, de modo geral, à base de peixe
seco, constitui, sem dúvida, herança de nossos índios.

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Na organização social, duas lideranças se destacavam: o cacique,


o chefe político, que comandava os homens na guerra, e o pajé, líder
espiritual, sacerdote e curandeiro, que, através de rituais e do conhecimento
de plantas e ervas, curava doenças, fazia previsões, dava conselhos e
transmitia ensinamentos às gerações mais novas.
Assim, as práticas populares, no Brasil, de tratar doenças com
a utilização de plantas, como, por exemplo, pó de guaraná, boldo, óleo
extraído da copaíba, catuaba, semente de sucupira, entre outros remédios
caseiros, têm origem na cultura indígena.
As crenças e rituais religiosos variavam de acordo com a nação
indígena, mas, de modo geral, acreditavam nas forças da natureza e nos
espíritos dos antepassados. Havia algumas tribos indígenas que enterravam
os corpos dos mortos em grandes vasos de cerâmicas, onde depositavam
também seus objetos pessoais, o que demonstra a crença na existência de
vida após a morte. A cerimônia do Kuarup, ainda hoje praticada por índios
do Alto Xingu é um atestado de que essas tribos cultivam a espiritualidade
através de rituais em que reverenciam àqueles que já se foram, dando a
eles o último adeus e encerrando o período de luto.
Diferente da celebração de finados da religião católica, o Kuarup é
uma festa de muita alegria em que enfeitados com suas melhores plumas,
seus mais belos cocares e braceletes, os corpos reluzentes de urucum,
os índios dialogam com os espíritos de seus entes queridos, expressando
saudade, carinho e gratidão e, entre cantos
e orações, lhes oferecem como presentes
frutos e outros agrados. A cerimônia
termina com toda a tribo levando em alegre
procissão os karupes (toras de madeira que
representam os espíritos homenageados)
até o rio, mergulhando-os em suas águas,
que os levarão para viver em outro mundo,
libertando-se para sempre da vida terrena. Cena do filme Kuarup,de Ruy Guerra.

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Os índios eram vistos pelos europeus como povos bárbaros e pagãos,


que deveriam ser convertidos ao cristianismo, por isso, trouxeram para o
Brasil padres jesuítas para o trabalho de catequese, cujo objetivo era impor
a religião católica como única religião praticada em território brasileiro.
Essa iniciativa dos governantes portugueses muito contribuiu para que os
indígenas fossem, ao longo do tempo, perdendo sua identidade cultural.
A antropofagia, que, para os europeus, era barbárie, constituía um
dos rituais simbólicos da cultura indígena. Eles acreditavam que comer
a carne do inimigo era um meio de incorporar a sabedoria, valentia e
coragem que estes possuíam. Por isso, se recusavam a comer a carne dos
fracos ou covardes. Este ritual se tornou tema do poema I – Juca-Pirama,
de Gonçalves Dias, no período romântico e, mais tarde, no Modernismo,
inspirou o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. Leia os
seguintes fragmentos dos textos desses autores:
.

I – Juca-Pirama
Canto V

- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,

E tu choraste!... parte; não queremos

Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas

O rebater do coração se ouvia

Precípite. - Do rosto afogueado

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Gélidas bagas de suor corriam:


No canto IV o guerreiro timbira
entoa seu canto de morte,
Talvez que o assaltava um pensamento...
narra sua história, a sua bra-
vura, contra as tribos inimigas,
Já não... que na enlutada fantasia,
suas lutas contra os Aimorés,
mas, pensando no velho pai,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
cego e doente, pede que o
deixem viver. Sua atitude é
Do velho pai a moribunda imagem
interpretada como covardia, e
o chefe dos Timbiras ordena
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato!
que o libertem, após ter ou-
vido o canto do guerreiro. Esta
Curvado o colo, taciturno e frio.
passagem está no V Canto

Espectro d’homem, penetrou no bosque!”

(DIAS,1982, p.50 )

.
“Só a antropofagia nos une. Economicamente. Fisicamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,
de todos os coletivos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi or not tupy, that’s the question.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”

(Oswald de Andrade. Apud TELES, 1993,.p.353-360)

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Abaporu de Tarsila do Amaral

4.2 A representação do índio na literatura brasileira

4.2.1 As primeiras imagens dos índios na literatura brasileira

A representação do indígena na literatura brasileira se fez presente


desde as primeiras escritas acerca da nova colônia portuguesa, como é o
caso da Carta, de Pero Vaz de Caminha e das crônicas de viagens, escritas
por muitos europeus que estiveram no Brasil, interessados em estudar
ou explorar comercialmente a nova terra. Viajantes e cronistas europeus
produziram um considerável volume de textos sobre o Brasil. Esses
descreviam, com admiração, a exuberância da natureza e os estranhos
habitantes nativos, vistos como bárbaros que deveriam ser domesticados
e catequizados pelos colonizadores. Deste período são as obras: Diário de
navegação, de Pero Lopes e Sousa, escrivão de Martim Afonso de Sousa;
Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que
vulgarmente chamamos Brasil, de Pero Magalhães Gândavo; o Tratado
descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa; Diálogos das grandezas
do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão; Cartas dos missionários

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jesuítas escritas nos dois primeiros séculos de catequese; o Diálogo sobre


a Conversão dos gentios, do Pe. Manuel da Nóbrega; a História do Brasil,
de Frei Vicente do Salvador, dentre outros
Essas obras não são consideradas literárias, pois tinham como
objetivo registrar e divulgar informações sobre as condições geográficas,
econômicas, históricas e sociais da colônia portuguesa na América, bem
como descrever a cultura primitiva dos indígenas e dar conta do trabalho
de catequese realizado pelos jesuítas. Estes escritos têm, entretanto, um
valor histórico, já que se trata da primeira produção escrita sobre o Brasil e
o povo indígena.
A imagem do indígena começa a aparecer na literatura brasileira
a partir do Arcadismo, sendo a obra de Basílio da Gama (1741-1795) O
Uraguai, poema narrativo de caráter épico, publicado em 1769, a melhor
realização do período. O poema de Basílio da Gama narra o massacre dos
índios nas missões jesuítas dos Sete Povos das Missões no Rio Grande do
Sul. Retrata a luta travada por espanhóis e portugueses contra indígenas
e jesuítas, para fazer com que estes últimos obedecessem ao Tratado de
Madri.
Ainda no período árcade, o frei Santa Rita Durão (1722-1784)
publica o poema épico Caramuru (1781), que segue o modelo de Camões
em Os Lusíadas, porém não alcança o mesmo valor artístico de O Uraguai,
de Basílio da Gama. Trata-se de obra convencional, mostrando certo
artificialismo, que denuncia a falta de conhecimento in loco da natureza
brasileira. Nesta obra, o autor narra as aventuras de Diogo Álvares Correia,
náufrago português, que viveu na Bahia, entre os índios tupinambás, no
século XVI. Conhecido como “Caramuru”, (homem de fogo), por ter usado
uma espingarda para abater um pássaro em pleno voo, Diogo Álvares
Correia conquistou a amizade dos tupinambás e terminou casando com
Paraguaçu, filha do chefe da tribo. Enfocando o indígena, sua cultura, seus
costumes e, principalmente, a catequese, Santa Rita Durão explora um

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tema universal, a morte por amor. O triângulo amoroso formado por Diogo,
Paraguaçu e Moema tem solução na bela passagem em que esta última se
atira ao mar numa tentativa desesperada de alcançar o navio que levava
Diogo e Paraguaçu para a Europa.
Vejamos a seguir fragmentos dos poemas Uraguai, de Basílio da
Gama, e Caramuru, de Santa Rita Durão.
[...]
Começava a bordar nos horizontes Caramuru segue rigidamente
O céu de brancas nuvens povoado o modelo épico de Camões.
Quando, abertas as portas se descobrem Constituído de dez cantos, em
Em trajes de caminho ambos os padres, versos decassílabos e estro-
Que mansamente do lugar fugiam, fes em oitava-rima, o poema
Desamparando os miseráveis índios acompanha a estrutura da
Depois de expostos ao furor das armas. epopeia clássica, trazendo a
Lobo voraz que vai na sombra escura mitologia cristã e pagã, ape-
Meditando traições ao manso gado nas substitui os deuses greco-
Perseguido dos cães, e descoberto romanos por deuses indígenas
Não arde em tanta cólera, como ardem
Balda e Tedeu. A soldadesca alegre
Cerca em roda o fleumático Patusca,
Que próvido de longe acompanha
E mal se move no jumento tardo.”
(Basílio da Gama. O Uraguai. Rio de Janeiro:
Record, 2006, p.98)

[...]
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda, entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita

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A um ai somente, com que aos meus responda.


Bárbaro, esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir) ah! Não te escondas
Dispara sobre mim teu cruel raio...
E indo dizer o mais, cai num desmaio,
Perde o lume dos olhos, pasma e treme
Pálida cor, o aspecto moribundo;
Com a mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo.
Mas a onda do mar, que, irada, freme,
Tornando a aparecer desde o profundo,
- Ah! Diogo cruel! – disse com mágoa –
E sem mais vista ser, sorveu-se na água.”

(Santa Rita Durão. Caramuru. In: TEIXEIRA, Ivan.Multiclasscicos: Épicos,


2008)

Cena do filme Caramuru

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SABER MAIS

Ler o artigo de Regina Zilberman.


O Uraguai: moderno e americano.
In: MALLARD, L. et al. História da Literatura Ensaios. 2 ed. São Paulo:
Editora da Unicamp, 1995.

Assistir ao filme Caramuru - a invenção


do Brasil, dirigido por Guel Arrais.

4.2.2 Romantismo – o índio como herói nacional

Não obstante a figura do índio já estivesse presente na literatura


brasileira desde o Arcadismo, foi a partir do Romantismo que o indígena
elevou-se à condição de herói nacional, tendo em vista que a estética
romântica, no Brasil, adotou o Indianismo como uma das suas características,
pois, na falta de um passado histórico para cultuar, como fizeram os
europeus, os autores brasileiros voltaram-se para os primeiros habitantes
do país, considerados os legítimos representantes do povo americano. Por
outro lado, o Romantismo começou no Brasil nas primeiras décadas, após a
Independência, coincidindo com o movimento de construção da identidade
nacional, através de uma cultura autêntica, que marcasse definitivamente a
autonomia do Brasil em relação a Portugal. Assim, os poetas e romancistas,
como Gonçalves Dias e José de Alencar se empenharam na construção de
obras representativas da nacionalidade da literatura brasileira, tendo o índio
como figura idealizada do herói medieval, ou ainda, do ”bom selvagem”
esboçado na teoria de Jean Jacques Rousseau.
Gonçalves Dias, poeta maranhense, foi o primeiro grande poeta do
Romantismo brasileiro e seu nome está ligado de forma indissociável à
poesia indianista. Conhecedor dos costumes, crenças, tradições dos índios

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brasileiros, Gonçalves Dias fez do indígena o verdadeiro representante da


cultura nacional. Dentro da sua poesia, o índio assume caráter mítico e
épico e traz à tona a sua relação com a natureza e as virtudes intrínsecas à
sua raça, como honra, coragem e pureza de sentimento, ainda que se trate
de uma imagem idealizada do homem selvagem. Tomemos como exemplo
o poema que segue:

Antônio Gonçalves Dias, filho de um com-


Canção do Tamoio
erciante português e de uma mãe mestiça
de índio e negro, nasceu em Caxias-MA,
I
no ano de 1823, e faleceu em um naufrá-
Não chores, meu filho;
gio na costa maranhense, em 1864. Orgul-
Não chores, que a vida
hava-se de possuir nas veias o sangue das
É luta renhida:
três raças que formavam o povo brasileiro.
Viver é lutar.
Formou-se em Direito pela Universidade
A vida é combate,
de Coimbra e no ano seguinte retornou
Que os fracos abate,
ao Brasil, trazendo na bagagem alguns
Que os fortes, os bravos
poemas e peças teatrais escritas quando
Só pode exaltar.
ainda era estudante. Passou a viver no
Rio de Janeiro, onde assumiu emprego
II
público, prestando relevantes serviços ao
Um dia vivemos!
governo imperial, na chefia de comissões
O homem que é forte
científicas exploratórias pelo Nordeste e
Não teme da morte;
pela Amazônia. Publicou volumosa obra
Só teme fugir;
poética: Primeiros cantos, Segundos
No arco que entesa
cantos, Sextilhas de Frei Antão, Últimos
Tem certa uma presa,
cantos, Os timbiras (inacabado). Em sua
Quer seja tapuia,
poesia épica cantou os feitos heróicos de
Condor ou tapir.
índios fortes e valorosos, que substituíram
os heróis medievais europeus. É autor, ai-
III
nda, de um Dicionário da língua tupi.
O forte, o cobarde
Seus feitos inveja

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De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV
Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!
[...]
(DIAS, Gonçalves. 1982, p.56-57)

A partir do Romantismo, surgiu um novo gênero literário: o romance.


Ao contrário da epopeia, narrativa clássica, que trata de acontecimentos
extraordinários vividos por heróis nobres e aristocratas, o romance dá conta
do cotidiano da vida de pessoas comuns, em linguagem simples, ao alcance
do grande público. No Brasil, no período imediato após a independência,
surgiram os primeiros romancistas, dentre os quais, destaca-se José
de Alencar, representante do indianismo na prosa literária, produzindo
romances que se tornaram célebres na literatura brasileira, como é o caso
de O Guarani (1857) e Iracema (1865). Ainda na vertente indianista publicou
Ubirajara (1874). Em O Guarani, é o herói indígena (Peri) quem vive junto
aos brancos europeus, já em Iracema, é o branco europeu (Martim) quem
vive no meio dos índios, somente em Ubirajara todos os personagens são
índios, vivendo numa época anterior à chegada dos portugueses.
O Guarani é a primeira obra do ciclo indianista de Alencar, na qual

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o autor representa o herói nacional, com características físicas e morais


idealizadas, traçando o perfil de homem jovem, saudável, belo e valente,
conforme se pode observar no seguinte fragmento:

Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de


árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se
um índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam
aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates,
caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe
delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre,
brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados
rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores
erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca
forte mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam
ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da
inteligência.
Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam
do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma
longa espiral, vinham rogar com as pontas negras o pescoço
flexível.
Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e
nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-
se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida.
(ALENCAR, O Guarani. São Paulo: Ática, 2002 p.27-28)

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Em O Guarani, o personagem central é Peri, um índio Goitacá, que


voluntariamente se põe a serviço da família do aristocrata português D.
Antonio de Mariz, por amor a sua filha, Cecília, a qual estava destinada
ao jovem fidalgo D. Álvaro de Sá, mas tornou-se alvo de cobiça do vilão
Loredano, ex-frade italiano, que buscava encontrar as minas de prata, a
partir de um mapa que havia roubado de um moribundo. Quando a casa
de D. Antonio de Mariz se encontra cercada por índios e aventureiros, o
fidalgo incumbe Peri de conduzir Cecília até a cidade do Rio de Janeiro. E,
assim, enfrentando uma grande enchente do rio Paquequer, Peri consegue
cumprir a sua missão. O final do romance projeta sutilmente o inicio da
formação do povo brasileiro através da miscigenação entre o branco e o
índio. Eis a cena em que Peri e Cecília, salvam-se da enchente, flutuando
sobre as águas na copa de uma palmeira, arrancada da margem do rio pela
força e determinação de Peri.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente,


resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma
ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase
inanimada, e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento
de ventura suprema:
- Tu viverás!
Cecília abriu os olhos e vendo seu amigo junto dela, ouvindo
ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da
vida eterna.
- Sim!... murmurou ela; viveremos!... lá no céu, no seio de Deus,
junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar o berço.
- Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no
seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu
viverás com tua irmã, sempre!...
Ela embebeu os olhos nos olhos do seu amigo, e lânguida
reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez no semblante da virgem um ninho de castos rubores e
lânguidos sorrisos; os lábios abriram como as asas purpúreas
de um beijo soltando o voo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte...
(ALENCAR, 1984, p.295)

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Em Iracema: lenda do Ceará, o segundo romance indianista de


Alencar, o autor representa o nascimento de uma nova civilização, através
do nascimento do mestiço Moacir, filho da índia Iracema com o branco
português Martim. O primeiro cearense, por extensão, o primeiro brasileiro,
logo ao nascer, emigra, para a Europa, onde será educado na cultura e
religião paterna.
estudosliterariosnaweb

[...]
“O cajueiro floresceu quatro vezes depois Martim partiu das
praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A
jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e
senhora.
O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra pátria.
Havia aí a predestinação de uma raça?” [...]
(ALENCAR, José de. 1955, p.158)

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O romance que encerra a trilogia indianista de José de Alencar é


Ubirajara: lenda tupi, único que aborda a vida indígena antes da chegada
do colonizador. Na primeira edição do romance, o autor escreveu uma
“Advertência“, da qual extraímos o seguinte trecho:

Este livro é irmão de Iracema.


Chamei-lhe de lenda como o outro. Nenhum título responde
melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da
pátria indígena.
Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver
estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade,
há de estranhar, entre outras coisas, a magnanimidade que
ressumbra no drama selvagem e forma-lhe o vigoroso relevo.
(ALENCAR, José de. Advertência. In: Iracema. Ubirajara. 1955,
p.333)

A passagem de Ubirajara, transcrita a seguir, representa um dos


rituais da cultura indígena, em que o jovem índio faz a passagem de caçador
para guerreiro:

Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama do


caçador pela glória do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o
jovem caçador conquiste esse título por uma grande façanha.
Por isso, deixou a taba dos seus e a presença de Jandira, a
virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.
(ALENCAR, José de. op.cit. p.214)

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana-CE, em 1829. Filho


de um senador do Império. Formou-se em Direito em São Paulo em
1850, mudando-se em seguida para a Corte no Rio de Janeiro, onde
começou a carreira jornalística. Em1856, sob o pseudônimo de Ig,
publicou uma série de artigos criticando a obra A Confederação dos
Tamoios, de Gonçalves de Magalhães. No ano seguinte publicou sob

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forma de folhetim o romance O Guarani, um estrondoso sucesso de


público. Funcionário do Ministério da Justiça, chegou a ser ministro dessa
pasta. Exerceu também o mandato de deputado, fazendo oposição ao
Imperador D. Pedro II. Faleceu de tuberculose, no Rio de Janeiro, no ano
de 1877. Além dos três romances indianistas já abordados, escreveu
ainda: A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva (1864); As minas de prata
(1862-1866) O Gaúcho (1870); A pata de gazela (1870); A guerra dos
mascates (1871); O tronco do ipê (1871-1873); Sonhos d’Ouro (1872);
Til (1872); Alfarrábios (1873); Senhora (1875); O Sertanejo (1875). Para
o teatro, publicou: Verso e reverso (1857); Demônio familiar (1857); As
asas de um anjo (1858); Mãe (1867); O jesuíta (1875). Além de outros
escritos de crítica literária, polêmicas e autobiografia – Como e por que
sou romancista (publicado em 1893) reuniu um conjunto de crônicas no
livro Ao correr da pena, publicado em 1854.

4.2.3 Modernismo – a paródia do nacionalismo e do indianismo

O Modernismo literário no Brasil se caracterizou pela ruptura com


o passado, com a imitação dos modelos europeus e, sobretudo com
a linguagem convencional da literatura academicista, ou seja, aquela
produzida por escritores que pertenciam às academias de letras. A partir
da famosa Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no ano de
1922, os modernistas promoveram uma verdadeira revolução na literatura
brasileira, preocupando-se com a renovação da linguagem através de
recursos formais, que aproximassem a escrita literária da fala cotidiana.
O nacionalismo cultuado pelo Romantismo passou a ser tratado de
forma crítica, daí a recorrência à paródia, que é uma forma subverter o
sentido original de um texto, trata-se de um texto que se refere a um outro,
mas de modo a rebaixando-o ou ridicularizando-o. Vejamos a paródia

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LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

que Oswald de Andrade fez do poema nacionalista Canção do exílio, de


Gonçalves Dias.
Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmares


onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas


E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas


Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá

Sem que volte pra São Paulo


Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
(Oswald de Andrade. In: CAMPEDELLI, Samira Yousseff e SOUZA, Jésus
Barbosa. Literaturas Brasileira e Portuguesa. São Paulo: Saraiva, 2001,
p.357

Outro exemplo de paródia é obra Macunaíma, de Mário de Andrade,


que tem a literatura indianista romântica como objeto parodiado. Vejamos
a abertura de Macunaíma em que se pode observar que o texto parodiado

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é o início do romance Iracema, de José de Alencar. Eis um fragmento de


cada obra:
Iracema

“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte,


nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábiosde mel, que tinha os cabelos mais
negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha
rescendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão
e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação
tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que
vestia a terra com as primeiras águas.”
(ALENCAR, op.cit., p.31)

Macunaíma

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.


Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia,
tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de
Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou
mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: If — Ai! que
preguiça!. . . e não dizia mais nada.”] Ficava no canto da maloca, trepado
no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os
dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem.
O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si
punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E
também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e

135
LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam


gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por
lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha,
Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos
machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos, e freqüentava com
aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas
danças religiosas da tribo.
(ANDRADE, Mário. Macunaíma. Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia/INL.
1984, p.9)

http://www.youtube.com

Assim como José de Alencar fez no seu romance O Guarani, Mário


de Andrade, em Macunaíma, tenta construir um herói que represente o
povo brasileiro, embora Peri e Macunaíma sejam tão diferentes um do
outro, enquanto o primeiro tem a conduta ética de um cavaleiro medieval, o
segundo é preguiçoso, oportunista, sensual. Ao contrário do Romantismo,
que apresenta um herói idealizado, o Modernismo se mostra crítico em
relação à sociedade brasileira, daí representar o brasileiro na figura de
um “herói sem nenhum caráter.” Alguns críticos entendem que a falta de

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caráter de Macunaíma significa que o povo brasileiro ainda não tem um


caráter definido e o Brasil ainda não possui uma identidade cultural.

Mário de Andrade nasceu em São Paulo em 1893 em São Paulo e


faleceu em 1945. Foi aluno do Conservatório Dramático e Musical
Nacional de São Paulo, do qual se tornou catedrático de História da
Música, anos depois. Foi um dos idealizadores da semana de Arte
Moderna de 1922 e um dos fundadores do Modernismo brasileiro. Foi
crítico literário, poeta e prosador. Publicou as seguintes obras: Há uma
gota de sangue em cada poema (1917); Pauliceia desvairada (1922); A
escrava que não era Isaura (1925); Losango cáqui (1926); Amar verbo
intransitivo(1927); Macunaíma (1928); Remate dos males (1939); Lira
paulistana ( 1945), entre outras.

4.2.4 O índio na literatura brasileira contemporânea

No seu livro O percurso da indianidade na literatura brasileira,


(2009) Luzia Aparecida Oliva dos Santos utiliza a expressão indigenismo
literário para classificar as obras literárias que tratam, de maneira crítica, as
questões do índio brasileiro. Segundo a autora, a obra que inaugura essa
fase é romance Quarup, de Antonio Callado, publicado em 1967. Aponta,
ainda, o conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, publicado em 1969,
e o romance Maíra, de Darcy Ribeiro, publicado em 1976, como obras que
compõem o indigenismo literário no Brasil. As três obras têm em comum
uma narrativa em que mito e fatos da atualidade da vida dos índios no
Brasil se misturam.
No conto O meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, tem-se a própria
voz do indígena em um monólogo, que dispensa a figura do narrador para
apresentar a visão de mundo do índio. A palavra Iauaretê significa onça
verdadeira. O texto narra a história de um bugre, exímio caçador, contratado

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LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

para matar as onças da região. Ele mata muitos desses animais, contudo,
com o tempo, começa a se identificar com as onças, se arrepende e passa
a protegê-las.
O meu tio o Iauaretê,
Mecê tá ouvindo, nhem? Tá aperceiando... Eu sou onça, não falei? Axi.
Não falei – eu viro onça? Onça grande, tubixaba. Ói unha minha: mecê olha
– unhão preto, unha dura... Cê vem, me cheira: tenho catinga de onça?
Preto Tiodoro falou eu tenho, ei, ei... Todo dia eu lavo corpo no poço... Mas
mecê pode dormir, hum, hum, vai ficar esperando camarada não. Mecê
tá doente, carece de deitar no jirau. Onça vem cá não, cê pode guardar
revólver...

Aaã! Mecê já matou gente com ele? Matou, a’pois, matou? Por quê que não
falou logo? Ã-hã, matou, mesmo. Matou quantos? Matou muito? Hã-hã,
mecê homem valente, meu amigo... Eh, vamos beber cachaça, até a língua
da gente picar de areia... Tou imaginando coisa, boa, bonita: a gente vamos
matar camarada, ’manhã? A gente mata camarada, camarada ruim, presta
não, deixou cavalo fugir p’los matos... Vamos matar?! Uh, uh, atimbora, fica
quieto no lugar! Mecê tá muito sopitado... Ói: mecê não viu Maria-Maria, ah,
pois não viu. Carece de ver. Daqui a pouco ela vem, se eu quero ela vem,
vem munguitar mecê...

Nhem? A’bom, a’pois... Trastanto que eu tava lá no alecrinzinho com ela,


cê devia de ver. Maria-Maria é careteira, raspa o chão com a mão, pula
de lado, pulo frouxo de onça, bonito, bonito. Ela ouriça o fio da espinha,
incha o rabo, abre a boca e fecha, ligeiro, feito gente com sono... Feito
mecê, eh, eh... Que anda, que anda, balançando, vagarosa, tem medo de
nada, cada anca levantando, aquele pêlo lustroso, ela vem sisuda, mais
bonita de todas, cheia de cerimônia... Ela rosnava baixinho pra mim, queria
vir comigo pegar o preto Tiodoro. Aí, me deu aquele frio, aquele friiio, a

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cãimbra toda... Eh, eu sou magro, travesso em qualquer parte, o preto era
meio gordo... Eu vim andando, mão no chão... Preto Tiodoro com os olhos
doidos de medo, ih, olho enorme de ver... Ô urro!...
(ROSA, Guimarães. In: Estas Histórias, Rio, José Olympio, 1962)

João Guimarães Rosa nasceu em Minas


Gerais em 1908 e faleceu no Rio de Ja-
neiro, em 1967. Médico, Guimarães Rosa
serviu como oficial do exército e exerceu
vários cargos como diplomata. Renovou
a linguagem da prosa ficcional brasileira
com suas narrativas de caráter de regional
e universal, ao mesmo tempo. Publicou
Sagarana (contos, 1946); Corpo de baile
(ciclo novelesco, 1956); Grande sertão:
veredas (romance, 1956); Primeiras es-
Fonte:/www.google.com
tórias (contos, 1962); Tutameia (contos,
1967); entre outras obras.

Quarup, romance de Antonio Callado, narra a história de um jovem


sacerdote chamado Nando, que tinha o sonho de viver na Amazônia,
ajudando os povos indígenas a construir uma sociedade justa e harmoniosa.
O contato com pessoas ligadas ao Estado, ao SPI (Serviço de Proteção
ao Índio) e partidos políticos termina por mudar os ideais de Nando, que
abandona o sacerdócio e envolve-se com a política e passa a militar
nas Ligas Camponesas. Com o golpe militar de 1964, Nando é preso e
torturado. Depois de libertado passa a viver uma vida de orgia sexual,
deixando escandalizados os antigos companheiros de militância política.
Luzia Aparecida Oliva dos Santos, na obra já referida explica, assim, o
sentido do título do romance de Antonio Callado:

139
LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

As inflexões modificadoras do esquema mítico original são as


molas conflitantes que vão guiar a narrativa em sua solução.
Em Quarup, por exemplo, a identidade de Nando resolve-se
da esfera individual para a coletiva, no episódio do jantar em
que, comendo e bebendo antropofagicamente, Levindo assume
seu nome e sua condição de guerrilheiro. À maneira do quarup
indígena, o jantar dá, então a simbiose entre o mito e sociedade,
uma solução encontrada pela ficção para o caráter de verdade
simbólica.
(op.cit.p. 345)

Quarup
[...]
Anta sorriu de novo, o rosto largo iluminado, e foi seguindo Sônia que
se diluía no mato noturno. Foi ela quem estendeu a mão. E seguiu na frente,
para a maloca do Anta. Um índio descansava na rede, outro se enfeitava
para o quarup. Os tipitis pingavam mandioca esprimida, havia cuias com
restos de caxiri. Uma índia se recostava na rede, curumim dormindo a seu
lado, peito da mãe na boca. Sônia tirou o vestido pelos ombros, depois o
resto da roupa e sentiu um gostoso arrepio pela incuriosidade que sua nudez
despertava.será que os índios não iam falar naquilo? Mulher branca em
rede de índio devera valer pelo menos uma fofoca xinguana. Mas ali estava
ela nua em pelo no meio da maloca diante de homens e mulheres e todo
mundo continuava balouçando em rede de buriti, dormitando, esfregando
tinta no corpo. Sônia entrou na rede do Anta feito fêmea índia e deixou ele
deitar em cima e pensou que só queria estar ali na maloca com um homem
desencrencado por cima e pensou que só queria estar ali na maloca com
um homem desencrencado por cima e que era só isso, mas então viu em
cima da rede do Anta pendurado do poste central da maloca um espelho
redondo de barba que algum caraíba tinha dão em troca do arco ou flauta
e que aumentava a gente e pelo espelho viu as costas castanho-vermelhas
do Anta enterrado nela e viu a rede e o fogo no chão tudo muito maior e
cheio por dentro feito bola de soprar e coisa que vai estourar virando outra

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sei lá e entendeu que tinha mesmo querido não apenas passar o tempo
mas vir trepar ali na maloca diante dos outros.
(CALLADO, Antonio. Quarup. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1967,
p.244)

Antonio Callado nasceu em 1917 em Niterói e faleceu no Rio de Janeiro


em 1997. Trabalhou sempre como jornalista. Foi preso várias vezes pela
ditadura militar, implantada no Brasil em 1964. A experiência da prisão
inspirou muitos dos personagens que criou em suas obras. Publicou os
romances Assunção de Salviano, A madona de cedro, Quarup, Reflexos
do baile e Sempreviva. Para o teatro publicou O fígado de Prometeu, A
cidade assassinada, Pedro Mico, O colar de coral,O tesouro de Maria
Chica, Uma rede para Iemanjá, Forró no engenho e Cananeia. É
autor ainda de vários livros de reportagens, como Tempo de Arraes,
Vietnã do norte e Passaporte sem carimbo.

Maíra

Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Padre serei,


ministro de Deus da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas gente, eu
sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja padre, assim poderei viver
quieto e talvez até ajudar o próximo. Isto é, se o próximo deixar que um
índio de merda o abençoe, o confesse, o perdoe.
Reconheço que estou com complexo, obsessivo: paranoico ou
esquizofrênico? Sei lá. Na verdade ninguém me quer mal porque eu sou,
ou porque eu fui índio. Apenas constatam. Muitos até se comovem: “um
índio convertido?” Quase sempre se espantam: “vai receber ordens?” E
todos concluem: “para se dedicar às missões?” Nesta altura perguntam:
“vai voltar para seu povo?” Querem dizer: “à sua tribo?”, “aos selvagens”.
Eu vou? Não vou? Belga ou holandês pode catequizar índio. Espanhol e
italiano e até norte-americano pode pregar na Itália, na França, no Brasil,

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LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

onde quiser. Mas eu, índio mairum posso ser sacerdote deles? Nunca! No
Brasil também não me tomarão por índio o tempo todo? Não. Lá é diferente.
Muita gente tem cara de índio e anda lampeiro por todo lado, sem ninguém
ligar. Muitos até proclamam que a avó foi pegada no laço. Sobretudo se são
escuros. Mas comigo é diferente. Nenhuma avó minha foi pegada no laço.
O selvagem sou eu mesmo. Minha avó sou eu.
(RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.29-
30)

Darcy Ribeiro nasceu em Minas Gerais em


1922 e faleceu em Brasília em1997. Foi
antropólogo, escritor e político brasileiro
conhecido por sua dedicação à questão
indígena e à causa da educação no Brasil.
Como muitos intelectuais brasileiros que
faziam oposição à ditadura militar, esteve
exilado durante anos, vivendo no Uruguai.
Foi um dos fundadores da Universidade de
Brasília, no governo João Goulart, sendo seu
primeiro reitor. Durante o primeiro governo
de Leonel Brizola (1983-1987) idealizou e implantou os Centros Integrados de
ensino Público, os CIEPs. Exerceu os cargos de vice-governador do Rio de
Janeiro, senador da República, ministro da Educação e da Casa Civil. Membro
da academia Brasileira de Letras, publicou os seguintes romances: Maíra
(1976); O mulo (1981) Utopia selvagem (1982), Migo (1988). Deixou uma
vasta produção científica, como exemplo de obras etnológicas temos:Culturas
e línguas indígenas do Brasil (1957), Arte plumária dos índios Kaapo (1957), A
política indigenista brasileira (1962), Uirá sai à procura de Deus (1974),Diários
índios – os urubus-kaapor (1996). De cunho antropológico publicou: O
processo civilizatório – etapas da evolução sócio-cultural (1968), As Américas
e a civilização – processo de formação e causas do desenvolvimento cultural
desigual dos povos americanos (1970), Os índios e a civilização – a integração
das populações indígenas no Brasil moderno (1970) e O povo brasileiro – a
formação do Brasil (1995), entre outros.

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GLOSSÁRIO

Antropofagia: Prática institucionalizada de consumo de carne humana por


seres humanos, em rituais simbólicos

Antropologia: ciência que estuda a história natural e cultural dos homens


e dos grupos humanos.

Bandeirante: referência aos sertanistas do Brasil colonial, que desbravaram


os sertões brasileiros em busca de riquezas minerais, de indígenas para
escravização ou de quilombos para extermínio.

Etnografia: estudo descritivo de um determinado grupo humano.

Indígena: pessoa natural do lugar ou país em que habita, o mesmo que


nativo.

Kuarup: madeira que dá nome a um ritual indígena, cujo significado para


os índios é a despedida dos mortos e encerramento do período de luto.
Bugre: povo indígena; designação dada ao indivíduo índio.
Caramuru: designação dada pelos índios brasileiros ao lendário náufrago
português Diogo Álvares Correia, que supostamente viveu entre os índios
tupinambás, na Bahia. Este, certa vez, usando uma arma de fogo atirou
num pássaro, matando-o. Os índios, impressionados, gritaram: “Caramuru!
Caramuru! O vocábulo significa “homem de fogo”. Caramuru é o título da
obra do Frei Santa Rita Durão, cujo protagonista é Diogo Álvares Correia.
Identidade cultural: identidade cultural é um conjunto de representação
das relações entre indivíduos e grupos, que envolve historicamente o
compartilhamento de patrimônios simbólicos, como língua, religião, artes,
trabalho, esportes, festas, entre outros.

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LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA

Indigenismo: conjunto de ideias relativas à situação dos indígenas


brasileiros e à sua incorporação à sociedade nacional.
Mito: narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em
geração, dentro de uma determinada sociedade, que considera como
verdadeiros os acontecimentos narrados.
Paródia: literalmente significa “canto paralelo”. Trata-se de uma imitação
cômica ou satírica de uma obra séria.
Tupinambá: povo indígena que habitava toda a costa brasileira. Os
tupinambás são considerados os antepassados de todas as tribos tupis
que habitavam o litoral brasileiro, na época do descobrimento do Brasil. Era
a nação indígena mais conhecida da costa brasileira pelos navegadores
europeus do século XVI.

SABER MAIS

Ler o livro O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1986.

Assistir ao filme de Joaquim Pedro, do ano de 1969, Macunaíma

ATIVIDADES

1. Pesquise e elabore uma lista de palavras da língua portuguesa do Brasil


que tenham origem indígena.
2. Leia na íntegra a Carta de Pero Vaz de Caminha e faça uma síntese da
descrição dos indígenas que o autor apresenta.
3. Assista ao filme Kuarup, (1989), de Ruy Guerra, baseado no romance
Quarup, (1967), de Antonio Callado, e explique a relação entre o título da
obra e o ritual praticado pelos povos do Alto Xingu.
4. Procure em livros ou sítios da internet o poema Marabá, de Gonçalves
Dias e, após a leitura do texto, explique o seu título.

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5. Releia os fragmentos de O Guarani e Iracema e justifique a afirmação


de que Alencar idealiza o índio nas suas obras
6. Faça um levantamento das palavras indígenas no fragmento de
Macunaíma e pesquise o significado de cada uma delas.
7. Releia os fragmentos das narrativas O meu tio o Iauaretê, Quarup
e Maíra e comente sobre a questão de identidade que envolve os
personagens focalizados nos textos.

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