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ONLINE ISSN 2316-686X - IMPRESSO ISSN 2316-462X


Vol. 7 n. 1 Junho | 2018

DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO NO NT (1): PERÍODO


INTERTESTAMENTÁRIO, MARCOS 10.2-12 E LUCAS
16.18.
Divorce and remarriage in the NT (1): intertestamental period, Mark
10.2-12 and Luke 16.18.
Dr. Arthur W. Dück1

RESUMO
O entendimento de divórcio e novo casamento sofreu alterações no período
intertestamentário. A interação mais intensa com outros povos a partir do
Exílio colocou o povo de Deus em contato com outras crenças e práticas que
os influenciaram. As escolas de Hillel e Shammai interpretam Deuteronômio
24.1-4 de modos distintos. No tempo de Jesus é possível se divorciar por
praticamente qualquer motivo em Israel. As pessoas se divorciam para se
casar novamente. Logo, os questionamentos feitos a Jesus sobre o assunto
ocorrem nesse contexto. Jesus responde apontando para o plano inicial de
Deus. Divórcio e novo casamento não faziam parte da boa criação de Deus.
Pessoas que querem seguir Jesus adotam as normas do Reino para sua vida

1
O autor é Bacharel em Teologia pelo Instituto e Seminário Bíblico Irmãos Menonitas (ISBIM),
Mestrado em divindade pelo Trinity Evangelical Divinity School (Deerfield, Illinois, EUA) e
PhD em Estudos Interculturais pelo Trinity International University (Deerfield, Illinois, EUA).
É professor da Faculdade Fidelis e professor convidado do Seminário Servo de Cristo. E-mail:
[email protected]

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individual e coletiva. Marcos e Lucas não abordam as dificuldades envolvidas


na implementação das normas do Reino na igreja no que diz respeito a divórcio
e novo casamento.
Palavras-chaves: Divórcio e novo casamento (NT). Marcos 10.2-12.
Lucas 16.18. Período intertestamentário.

ABSTRACT
The way people understood divorce and remarriage underwent changes
during the intertestamental period. From the Exile onward God’s people had
greater interaction with other peoples and their beliefs and practices that
influenced them. The schools of Hillel and Shammai interpreted Deuteronomy
24.1-4 in distinct ways. In NT times it was possible to divorce your spouse
for practically any reason. People would divorce to remarry. So, when Jesus
is asked about this topic, the questions are made within this context. Jesus
answers pointing at God’s initial plan. Divorce and remarriage were not part
of God’s good creation. Those who want to follow Jesus live by the rules of
the Kingdom individually and collectively. Mark and Luke do not talk about
the problems involved attempting to implement the rules of the Kingdom
concerning divorce and remarriage within the church.
Keywords: Divorce and remarriage (NT). Mark 10.2-12. Luke 16.18.
Intertestamental period.

INTRODUÇÃO
Que divórcio e novo casamento é um tema complicado não é novidade.
Mas todos têm no mínimo uma noção do que a Bíblia ensina a respeito —
já leram os textos correspondentes do NT, ouviram outros ensinar sobre o
assunto, ou ainda desabafos contundentes de que a igreja atual descartou os
ensinos claros de Jesus a respeito. Os textos parecem tão claros, já que se
parte do princípio de que as palavras e expressões a respeito do assunto são
inequívocas. Agora é só se submeter aos ensinos da Bíblia ... o que alguns,
principalmente motivados pelo espírito da época, não querem fazer...
Mas poucos se preocupam em entender os antecedentes histórico-culturais
do AT e o contexto judaico do primeiro século d.C. por trás desses ensinos. Ou
seja, lemos as passagens correspondentes como se Jesus ou Paulo estivesse
falando para o nosso contexto atual e respondendo as nossas perguntas. No

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 13

entanto, como Craig Keener nos lembra: “Se de fato respeitamos a autoridade
do nosso Senhor, precisamos estar dispostos a nos esforçar para entender
o que Jesus realmente estava dizendo a seus ouvintes originais, e não nos
contentar com o que achamos que Jesus estava dizendo” (1991, p. 12), com
base em uma cosmovisão muito distante da cultura do primeiro século.
Influenciados pelas ciências exatas, cremos que uma exegese dos textos
com uma metodologia adequada levará todos os estudiosos à mesma conclusão
sobre o ensino dos textos bíblicos e a relação entre eles. Contudo, segundo
Collins, a exegese não é uma ciência exata; ela está ligada à interpretação
dos dados, algo que envolve sensibilidade e julgamento. Mesmo estudiosos
olhando os textos com uma perspectiva parecida chegam a conclusões
diferentes. Utilizar a mesma metodologia não traz necessariamente os mesmos
resultados (apud Heth, 1995, p. 68).2
Mudanças culturais forçam a igreja a rever sua posição sobre divórcio e novo
casamento.3 Textos bíblicos que pareciam tão claros passam a ser analisados
de outro ângulo. Isso se deve a um relaxamento do compromisso com as
Escrituras motivado por uma cultura atual supostamente mais “anticristã”?4
Ou uma releitura poderia nos levar para mais perto das Escrituras e nos
distanciar um pouco da influência cultural de épocas passadas sobre a Bíblia?5

2
Boa parte da igreja evangélica brasileira (como também ocorre em diversas partes do mundo)
ainda sustenta uma defesa acrítica do Iluminismo — equipara a revelação bíblica com os
princípios absolutos da razão defendidos por essa escola de pensamento. A dificuldade não está
em enxergar a Bíblia como revelação absoluta de Deus, mas a minha (ou da igreja, denominação,
etc.) interpretação da Bíblia como essa revelação absoluta, o que cria grandes dificuldades, uma
vez que esquece que como criaturas nossa percepção é falha e nosso entendimento limitado, algo
que ficou ainda mais acentuado depois da Queda. Para uma abordagem desafiadora, mas que nos
ajuda a adotar uma hermenêutica mais saudável, veja Grenz; Olson, 2006, p. 97-128.
3
Veja, por exemplo, a revisão que ocorreu com a posição da Confissão de Westminster sobre
divórcio e novo casamento (Jones, 1990).
4
Segundo o sociólogo Richard Udry, o casamento transformou-se em fonte de satisfação
emocional. Esse aspecto se tornou tão importante que poucas pessoas são capazes de suportar
um relacionamento que não cumpra essas expectativas (apud Rowatt, 1977, p. 51). Em outras
palavras, as pessoas estão à busca de realização em todos os aspectos no casamento. Como muitos
casamentos não satisfazem as expectativas geradas pela cultura ao nosso redor, estes terminam
em divórcio. Isso leva o teólogo Klyne Snodgrass a afirmar que “até que a morte os separe” foi
substituído por “enquanto eu estiver realizado”, ou seja, estamos confinados a uma sociedade em
que os relacionamentos que consideramos tediosos ou que não satisfazem mais são descartados
com tanta facilidade quanto roupa fora de moda (2016, p. 1).
5
Nosso repúdio ao divórcio e ao novo casamento no passado nos levou a odiar esse pecado,
mas também as pessoas que se divorciaram e/ou contraíram um novo casamento sem ouvir
suas histórias, sem saber o que motivou tal situação, etc. O pecado era tão evidente que nada
justificaria... Mas foi assim que Jesus agiu com pessoas em situação parecida?

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Dentro desse contexto, Blomberg no adverte que pensar de modo lúcido sobre
o que a Bíblia ensina sobre o divórcio parece ser tão raro quanto casamentos
cristãos saudáveis (1990, p. 161).
Tentando pensar de modo lúcido sobre este tema, e com uma boa dose
de humildade, este artigo tentará trazer um pouco de luz sobre o assunto,
tentando refletir o que as Escrituras ensinam acerca de divórcio e novo
casamento levando a sério os antecedentes histórico-culturais do NT. O artigo
certamente não responderá todas as nossas perguntas, mas tentará fornecer
um fundamento sobre o qual é possível tentar discernir as implicações para
este assunto nos dias atuais.

1. DIVÓRCIO E CASAMENTO NO PERÍODO INTERTESTAMENTÁRIO


A partir do Exílio, o povo de Deus passou a sofrer uma influência muito
maior da sociedade ao seu redor. Na Babilônia, os exilados tiveram contato com
uma cosmovisão diferente; a comunidade que retorna do Exílio encontra uma
população morando em sua antiga pátria com outros costumes; a conquista
do mundo por Alexandre, o Grande, levou a língua e a cultura gregas a
estarem presentes com maior intensidade em Israel; a dominação estrangeira
durante a maior parte do tempo também trazia seus desdobramentos sobre o
envolvimento pessoal e comercial com os gentios. Aliado a isso, os judeus do
mundo todo vinham a Jerusalém para as grandes festas, trazendo os costumes
e valores que haviam adotado. Isso pavimentou o caminho para diversas
mudanças na questão do divórcio e do novo casamento entre o povo de Deus.

1.1 CASAMENTO E DIVÓRCIO


No judaísmo, estar casado era o estado ideal da pessoa. O relacionamento
matrimonial tinha precedência sobre todos os outros relacionamentos.
Praticamente desde o nascimento, tudo era direcionado para o casamento.
O casamento era primordial para a aliança, pois o êxito dela dependia desse
relacionamento e dos filhos que dele resultavam. A família biológica, uma
geração por vez, carregava a promessa da aliança até a sua consumação
(Greenberg, 1985, p. 3).
A Torá é a história de famílias, de relacionamentos reais em que ocorrem
amor, romance, ira, engano, honra, fidelidade, desconfiança, infidelidade,
companheirismo, intimidade, etc. Não se apresenta uma forma idealizada

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de casamento, o que facilmente pode ser comprovado nas narrativas do AT.6


O casamento se torna a metáfora principal da aliança. Um bom casamento
tem seus altos e baixos, mas, mesmo assim, os parceiros não rompem o
relacionamento. O mesmo ocorre com a aliança de Deus com o seu povo
(Ibidem, p. 5).
O casamento na sociedade ocidental atual consiste da decisão “livre” de
duas pessoas. Mas não é isso que ocorre em outras partes do mundo, nem
era o padrão no mundo antigo. Em culturas voltadas para a honra-vergonha,
o casamento adquire outra dimensão. O casamento em culturas que não
valorizam o individualismo une duas famílias. Amor romântico, realização
pessoal têm pouco espaço nesse ambiente. O casamento normalmente era
arranjado pelas famílias por motivos econômicos, políticos e sociais. As
famílias se beneficiariam dessa união, ou seja, a pessoa se casa para subir a
ladeira social ou obter vantagens, não por paixão ou romance (Neyrey, 1998,
p. 199-200). Hanson, por exemplo, argumenta que Herodes não optou por se
casar com Mariamne — ele fez um contrato de casamento com a família de
Hircano (apud Neyrey, 1998, p. 199).
Nesse contexto, o divórcio traz consequências evidentes para a estrutura da
sociedade, pois acarreta a dissolução do laço familiar criado, um insulto para a
família da esposa, ou seja, a questão da honra é central nesse contexto. Hanson
assevera que “os divórcios na família de Herodes demonstram a competição
pela honra nas estratégias de casamento. Uma esposa poderia ser descartada
quando uma aliança mais benéfica se tornasse viável” (apud Neyrey, 1998,
p. 199). Isso implica que em diversos casos o homem age de modo agressivo,
descartando sua esposa por uma união que lhe parece mais proveitosa. Isso
traria mais honra para ele, além das alianças que formaria por meio desse
casamento. Desse modo, diversas pessoas são desonradas: a esposa que ele
rejeitou; a família da esposa, de modo especial o pai dela e seus parentes do
sexo masculino, e o ex-marido de sua nova esposa, que a abandonou em favor
de outra (Neyrey, 1998, p. 200).
Segundo Keener, o divórcio havia se tornado corriqueiro na classe alta

6
Muitos casamentos são menos que ideais. Mesmo os “heróis” do AT são descritos com vida
familiar muito aquém do ideal (e.g., Abraão, Isaque, Jacó, Gideão, Davi, só para citar alguns). É
marcante que as Escrituras não apresentam um modelo de “pai” que pareça digno de ser imitado
(exceto talvez o pai do filho pródigo, uma alusão a Deus).

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romana, a ponto de se afirmar que as pessoas “se divorciam para se casar e


se casam para se divorciar” (Keener, 1991, p. 50-51; Instone-Brewer, 2002,
p. 191, nota 3). As fontes das quais dispomos não informam a porcentagem
de divórcios que ocorriam nas classes altas da época e sabemos ainda menos
sobre as classes mais baixas. Porém, o divórcio era tão comum a ponto de
dominar as fofocas da classe alta que foram preservadas nos escritos a que
temos acesso. Parece que o comportamento escandaloso de alguns aristocratas
era tal que atraía a atenção das pessoas da mesma forma que alguns atores
de cinema da atualidade (Keener, 1991, p. 51).7 David Instone-Brewer, com
base em inscrições funerárias e certificados de divórcio do mundo greco-
romano, sugere que boa parte dos casamentos terminava em divórcio,8 aliás,
eles eram formulados presumindo que o casamento terminaria em divórcio e
não na morte de um dos cônjuges. Os contratos de casamentos especificavam
muito mais detalhes sobre os procedimentos corretos a serem adotados caso
houvesse o divórcio do que o que deveria ser feito quando um dos cônjuges
falecesse (2002, p. 190-191).9
Mas não era esse o plano de Deus para a sociedade. Em Gênesis 1 a criação
de Deus é descrita como muito boa — a instituição do casamento faz parte
dessa boa criação de Deus. O relacionamento foi programado para ser fonte
de alegria, de realização e de continuação da raça humana. Lamentavelmente,
a Queda destruiu parte dessa beleza. A partir desse ponto em diante, os
relacionamentos criados por Deus para abençoar as pessoas, muitas vezes, se
tornaram fonte de maldição.
No mundo romano o divórcio era comum. As leis de Roma atestam isso.
É provável que na Primeira República [de 509 a.C. em diante] o divórcio
somente era concedido sob condições extremas. Diversos autores do primeiro

7
A cultura antiga exigia a fidelidade unicamente das mulheres, ou seja, havia um padrão diferente
para homens e mulheres. Essa parece ter sido a realidade também em Israel. A célebre frase de
Demóstenes se refere à cultura greco-romana, mas, segundo Neyrey, também se aplicava ao Israel
polígamo: “Temos amantes (evtairaj) para o prazer; concubinas (pallakaj) para nos proporcionar
cuidados diários e esposas (gunaikaj) para nos dar filhos legítimos e para que sejam guardiãs fiéis
de nossa casa” (apud Neyrey 1998, 196).
8
Uma inscrição funerária do final do primeiro século afirma: “São incomuns os casamentos que
duram tanto a ponto de serem terminados pela morte e que não acabem por causa do divórcio;
pois foi nosso destino feliz que este se prolongou por 41 anos sem separação”. Além disso, há
a afirmação famosa de Sêneca de que há mulheres que não contam os anos pelos magistrados
eleitos, mas por maridos (Instone-Brewer, 2002, p. 191, nota 3).
9
Veja também Keener, 2000b, p. 685; Garland, 2002, p. 263.

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século afirmavam que somente um covarde deixaria de divorciar uma


mulher problemática. Mas esse direito somente foi concedido às mulheres
na República Média (c. 264-133 a.C.). Contudo, no período imperial, uma
mulher conseguia o divórcio tão facilmente quanto seu marido. Qualquer
cônjuge poderia terminar unilateralmente a união, já que a lei romana exigia
a decisão individual de cada pessoa para uma união matrimonial. Assim, a
falta de consentimento mútuo também era suficiente para dissolver o vínculo
matrimonial. O divórcio não criava um estigma. Maridos que estavam
morrendo ou se divorciando, por vezes, até arranjavam novos casamentos
para seus cônjuges (Keener, 2000a, 6; 1991, p. 51).
Mesmo que na sociedade romana o consentimento mútuo era motivo
suficiente para o divórcio, havia situações que exigiam o divórcio. Na lei
romana, o adultério exigia o divórcio. Outras questões poderiam ser vistas
como motivos para o divórcio, mas não o exigiam. Se a mulher tivesse um
comportamento inadequado no âmbito financeiro que levasse ao divórcio,
ela talvez não conseguisse reaver todo o dote do casamento, mas o conceito
da “parte culpada” não era comum no divórcio. Os motivos para o divórcio
poderiam ser tão superficiais quanto o desejo de manter o status financeiro
contraindo um matrimônio mais lucrativo. Plutarco adverte que a mulher não
pode confiar em seu dinheiro, sua beleza ou condição de nobreza para protegê-
la. Assim, deve trabalhar arduamente para ser uma boa esposa. Em outras
palavras, a lei romana proporcionava pouca segurança contra um divórcio por
motivos espúrios (Keener, 1991, p. 52).
O judaísmo da diáspora frequentemente seguia os costumes locais e a
aristocracia judaica, os costumes gregos. Mas na maior parte no judaísmo
palestino somente o marido poderia iniciar o divórcio. Somente em situações
extremas o tribunal poderia exigir que o marido terminasse o casamento com
base na exigência da esposa. Uma vez que o divórcio poderia carregar alguns
estigmas para as mulheres dentro da sociedade judaica, elas não o buscavam
com frequência (Keener, 2000a, p. 6).
Um marido judeu poderia se divorciar de sua esposa por praticamente
qualquer motivo, o que não implica que buscasse motivos para isso. Ele
poderia se divorciar de sua esposa por desobediência, por queimar o pão, etc.
Ainda que a escola de Shammai fosse dominante entre os fariseus no tempo de
Jesus — aceitava o divórcio somente com base na infidelidade marital — esta

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visão sobre o divórcio era minoritária no judaísmo palestino da época. Ainda


assim, os adeptos da escola de Shammai aceitavam como legalmente válidos
os divórcios que ocorriam por motivos dos quais eles discordavam (Ibidem,
p. 6).10
O termo usado para o divórcio implicava liberdade para o novo casamento.
Assim, uma mulher sem um certificado de divórcio válido não poderia
contrair um novo casamento. O elemento básico do contrato ou certificado de
divórcio entre os judeus era a expressão “você está livre”, permitindo o novo
casamento para a mulher divorciada. Paulo utiliza a mesma fórmula para o
crente abandonado por seu cônjuge incrédulo (1Co 7.15) (Ibidem, p. 6).
Na sociedade greco-romana do período imperial, o novo casamento era
a prática usual depois do divórcio ou da viuvez. A decisão de não se casar
novamente poderia demonstrar um compromisso excepcionalmente forte
para com o marido falecido. Algumas pessoas se opunham ao novo casamento
das viúvas, pois as madrastas eram consideradas prejudiciais para os filhos
(Ibidem, 6), mas isso por motivos puramente pragmáticos e não legais ou
morais.

1.2 ADULTÉRIO
Diversas fontes judaicas condenavam de forma veemente o adultério. As
obras más eram sintetizadas especialmente pelo adultério. Mas a maioria dos
gregos e romanos também condenava o adultério por ser um insulto muito
grave contra a moralidade do marido da mulher adúltera. No contexto do
Mediterrâneo, a esposa era considerada propriedade exclusiva do marido,
no que diz respeito à sua sexualidade. Era considerado roubo qualquer outro
homem usar essa propriedade (Keener, 2000a, p. 7).
Mesmo para reis o adultério era visto como vergonhoso. A maioria dos
filósofos condenava o adultério, mesmo que não tentasse impedi-lo, nem

10
Keener sustenta que, na época de Jesus, a escola predominante era a de Shammai, ao passo a
escola de Hillel se torna a regra mais para o final do primeiro século (1991, p. 39). Apesar disso,
Keener, admite que, sem dúvida, um marido poderia se divorciar de sua esposa sem os motivos
mais estritos elaborados por Shammai; os fariseus não controlavam como as pessoas praticavam
o divórcio e os adeptos de Shammai não consideravam inválidos os divórcios autorizados pela
escola de Hillel (Ibidem, p. 39). Assim, é possível que, na mente do povo, o ponto de vista da
escola de Shammai estivesse certo, mas na prática a sociedade era regida pelos ensinos da escola
de Hillel. Para mais detalhes sobre os motivos do divórcio nessa época, veja Strack; Billerbeck,
1982, p. 315-318. Para mais detalhes, veja Keener, 1991, p. 38-40.

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punir quem o praticava. Ainda assim, o adultério parece ter sido uma prática
comum nesse tempo. Alguns autores sustentam que o adultério caracterizava
a maioria das mulheres — a castidade havia abandonado a terra. O filósofo
grego Bias defendeu que quem se casasse com uma mulher bonita teria de
compartilhá-la. Sêneca, enfatizando o mesmo ponto, afirma que aqueles que
não praticam o adultério chamam a atenção; que o adultério se tornou o meio
preferido de contratar o noivado; que é difícil encontrar uma mulher tão feia
a ponto que tenha que se contentar com somente dois parceiros por dia e que
o único valor que o marido tem para a maioria das mulheres é provocar os
companheiros ilícitos dela (Ibidem, p. 7-8).
As mulheres deviam evitar o contato com homens, a não ser o seu
marido. Até hoje, em alguns locais da Europa Oriental, se um homem ficar
sozinho com uma mulher por mais de vinte minutos, se presume que tiveram
relações sexuais. Josefo pensava que as mulheres tinham tendência para a
infidelidade. Essa também parece ter sido a opinião generalizada do mundo
do Mediterrâneo, mesmo que as mulheres virtuosas resistiam bravamente
ao adultério. Os homens judeus deveriam evitar a companhia das mulheres,
já que isso poderia levá-los ao desejo, ou à aparência do mal (Ibidem, p. 8).
Isso pode ser visto na surpresa dos discípulos de encontrar Jesus conversando
com uma mulher quando retornaram da cidade para onde haviam ido para
comprar comida (Jo 4.8,27).
Isso mostra que a sexualidade em Israel estava sendo influenciada a adotar
padrões diferentes daqueles que haviam sido expostos na Torá e na tradição
que dela decorreu.

1.3 DESENVOLVIMENTO NAS LEIS SOBRE O CASAMENTO E DIVÓRCIO EM ISRAEL


O divórcio foi se tornando cada vez mais fácil para as mulheres entre o
segundo século a.C. e o primeiro século d.C. No mundo greco-romano, a
mulher tinha quase o mesmo direito ao divórcio que o marido. A mulher
estava sujeita ao marido, mas tinha um poder limitado de forçar o marido a
se divorciar dela. Se na Grécia e na Roma antigas o divórcio era praticamente
desconhecido, no tempo do NT ocorreu uma revolução social — os cônjuges
poderiam se divorciar quando bem entendessem, sem citar os motivos para
tal. A mulher perdia o dote, caso fosse divorciada por adultério, e o homem
precisaria devolver o dote mais a metade dele, se cometesse adultério.

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Entretanto, o divórcio por outros motivos não era penalizado (Ibidem, p. 72-
73).
O casamento ocorria por consentimento mútuo. Quando esse consentimento
acabava, o casamento terminava. A implicação era que qualquer um dos
cônjuges poderia dizer que o relacionamento havia terminado, e nem precisava
de uma declaração oficial para isso. Assim, o divórcio era relativamente
comum, atingindo talvez a cifra de 30% dos casamentos no tempo do NT
(Ibidem, p. 73-74).
Em Israel havia cada vez mais igualdade entre homens e mulheres dentro
das prescrições da lei de Moisés. Somente o homem poderia dar o certificado
de divórcio à sua esposa, mas as cortes rabínicas gradualmente adquiriram
mais poder para forçar o marido a fornecer o certificado, caso a esposa assim
o desejasse (Ibidem, p. 80).
As leis sobre casamento e divórcio foram modificadas com o passar do
tempo. Inicialmente o noivo pagava um mohar [preço da noiva] de duzentos
siclos sagrados por uma virgem e cem siclos por uma viúva ou mulher
divorciada. Esse dinheiro era dado ao pai da noiva por sua filha. A primeira
mudança foi que esse dinheiro passou a ser dado para a noiva, mas ficava na
casa do pai dela como uma poupança, caso ela fosse divorciada ou se tornasse
viúva. Isso implicava um custo alto para se casar, mas nenhum custo para
se divorciar, o que levava as pessoas a certa relutância para se casar e uma
grande disposição para se divorciar. Outra mudança permitia que a noiva
trocasse o dinheiro por bens (potes de metal e ornamentos) que eram usados
pelo casal. Assim, o casamento continuava dispendioso, mas o divórcio tiraria
esses bens da casa do marido, tornando o divórcio caro para ele. A próxima
mudança permitia que o dinheiro fosse investido nos negócios da família. Isso
implicava que não havia restrição sobre o que poderia ser comprado com esse
dinheiro. Se ocorresse o divórcio ou a viuvez, a mulher receberia uma soma
em dinheiro, independentemente se os negócios da família iam bem ou mal. O
marido se tornava responsável por pagar essa soma em dinheiro, se necessário
tirando de sua própria propriedade. A última mudança permitia que o mohar
fosse pago somente por promessa. O resultado é que não havia entrega de
dinheiro, já que este se tornava parte da propriedade do noivo. Mas o marido
ficava responsável por retorná-lo, caso ocorresse o divórcio ou ela enviuvasse.
As duas últimas mudanças tornavam o casamento mais barato, mas o divórcio

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 21

muito caro, em especial se o dote dado pelo pai da noiva, aliado ao preço pago
ao pai da noiva, fosse bem alto.11 Isso também incentivou o pai da noiva a
conceder um dote generoso, pois isso daria segurança para o casal ou para a
noiva, caso ela fosse abandonada pelo marido (Ibidem, p. 82-84).
As mudanças introduzidas nas leis relativas ao casamento e divórcio
concederam maiores direitos à mulher, mas trouxeram também maior
instabilidade para o casamento. O divórcio se tornou mais comum.
Tanto homens quanto mulheres poderiam pedir o divórcio. As mudanças
introduzidas tentaram desencorajar o divórcio dando maior segurança para
as mulheres (Ibidem, p. 84).

1.4 MOTIVOS PARA O DIVÓRCIO EM ISRAEL


Segundo Instone-Brewer, o divórcio passou a ser permitido por outros
motivos além daqueles presentes no AT:
1. A mulher poderia tomar a iniciativa do divórcio. Teoricamente,
baseado em Deuteronômio 24.1, o marido precisaria tomar a iniciativa
do divórcio. Mas no primeiro século d.C., os rabinos poderiam forçar o
marido a se divorciar, caso ele tivesse quebrado a aliança de casamento
com a esposa. Isso era implementado impondo multas pesadas sobre
o marido culpado, ou até pela força (o Talmude menciona a utilização
de chicote) (Instone-Brewer, 2002, p. 85-86);12
2. Infertilidade. No tempo do NT, a infertilidade era um dos motivos
para o divórcio, uma vez que o propósito principal do casamento era
a procriação. Baseado nisso, todos os judeus deveriam se casar e ter
filhos. Havia exceções para pessoas que queriam estudar a Torá, ou
para quem estava com dificuldades financeiras, mas isso era raro.
Como consequência, qualquer casal que estivesse casado por dez
anos, mas não tinha filhos, deveria se divorciar. Ambos os cônjuges
deveriam se casar novamente para procriar, mas é pouco provável que
essa regra fosse cumprida. O divórcio por impotência foi restringido
mais tarde, porque se achava que as mulheres poderiam usar desse

11
Comumente o pai da noiva unia o mohar (preço da noiva, pago pelo noivo ao pai dela) com o
dote (presente que o pai da noiva dava para sua filha para iniciar a vida conjugal) e entregava para
o noivo. Essa soma total passou a ser chamada de ketubah (Instone-Brewer, 2002, p. 83). Esse
dinheiro era administrado pelo marido, mas continuava sendo propriedade da esposa.
12
Para mais detalhes, veja Strack; Billerbeck, 1982, p. 318-320; 1983, p. 23-24.

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artifício para forçar o divórcio. Logo, parece que a infertilidade era


motivo para o divórcio, mas não uma obrigação (Ibidem, p. 91-93);
3. Infidelidade. O adultério era tratado de forma muito séria.
Teoricamente era castigado com a pena capital, mesmo que não
tenhamos relatos de que essa lei fosse aplicada. O castigo normal
para o adultério da esposa nessa época era o divórcio sem a devolução
do dote (ketubah).13 Mesmo o homem que tinha violentado a moça
e tinha que se casar com ela sem a possibilidade do divórcio (Dt
22.28,29), tinha permissão para se divorciar dela, caso ela se tornasse
infiel. É provável que os casos de adultério fossem raros. Além
disso, era praticamente impossível provar o adultério, uma vez que
se exigiam duas testemunhas oculares confiáveis do ato. Assim, a
pena de morte se restringia à teoria. Mas a suspeita de adultério era
muito comum. Presumia-se que uma mulher que estivesse sozinha
com um homem num quarto tivesse cometido adultério, até que fosse
inocentada com o ritual da água amarga [Nm 5.11-31]. Recomendava-
se que o marido se divorciasse de sua esposa se esta fosse adúltera.
Depois do ano 70 d.C. se exigia que o adultério resultasse em divórcio.
Antes disso, presumia-se que a mulher culpada que passasse pelo
ritual da água amarga morreria, tornando o divórcio desnecessário.
As adúlteras que não precisavam passar por este ritual eram aquelas
que confessavam a sua culpa, que estavam grávidas, ou aquelas
que tiveram relações com o marido durante esse tempo. Nesses
casos, o marido poderia optar pelo divórcio ou por uma separação
temporária (no caso de uma criança nascer de um pai desconhecido)
e depois tomá-la de volta. Mais tarde, os rabinos tomavam por certo
que o marido se divorciaria da esposa nesses casos. Mesmo não
sendo compulsório, presumia-se que o marido queria se divorciar
de sua esposa infiel. Se ela fosse culpada, ele não teria que devolver
o dote (ketubah). Em casos de suspeita de adultério, o divórcio era
incentivado, mesmo que implicasse a devolução do dote. A mulher
poderia ser divorciada inclusive por incentivar o adultério, mesmo
que este não se concretizasse. Isso ocorria se ela saísse de casa com o

Para as regras sobre o dote elaboradas por Westbrook baseadas no Código de Hamurabi, ver
13

Janzen, 2000, p. 76.

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 23

cabelo solto ou sem cobrir os braços. Presumia-se que tanto homens


quanto mulheres possuíam um desejo sexual forte e que os homens
eram atiçados pelos olhos. O simples olhar para uma mulher poderia
equivaler ao adultério. Uma mulher que mostrasse demais de sua
beleza poderia ser divorciada sem receber a devolução do ketubah, já
que isso era equivalente a adultério (Ibidem, p. 94-99);
4. A passagem de Êxodo 21.10,1114 que trata de um homem israelita
tomando uma segunda esposa,15 talvez uma escrava, passou a ser
aplicada de modo geral ao casamento. A tradução dessas palavras não
é totalmente certa, mas os rabinos concordavam com a tradução da
LXX: a esposa tinha direito a alimentos, roupas e direitos conjugais.16
Esse texto se tornou a base para as leis do divórcio. Se uma mulher
escrava tinha esses direitos, certamente isso também valeria para
a mulher livre. Se a esposa tinha esses direitos, o marido também
deveria tê-los. Isso equivale a afirmar que ambos os parceiros tinham
direito a alimento, vestuário e amor conjugal. Caso essas obrigações
não fossem satisfeitas, a pessoa estaria livre. Para a escrava, isso

14
“Mas, se tomar outra mulher, não poderá diminuir os mantimentos, as roupas nem os direitos
conjugais da primeira. Caso ele não cumpra essas três obrigações, ela será libertada de graça” (Êx
21.10,11).
15
A poligamia soa estranha para pessoas do mundo ocidental da atualidade, mas está presente
no AT. Diversos personagens do AT tinham várias mulheres. De forma geral, parece que estes
adotaram os padrões da sociedade em que viviam. R. de Vaux afirma que a linhagem de Sete
adotou a monogamia, ao passo que a poligamia parece caracterizar a linhagem de Caim. Muito
mais tarde, o Talmude, de forma teórica, estabeleceu o limite de quatro mulheres para o homem
comum, e dezoito para o rei (de Vaux, 2003, p. 46-48). A lei de Moisés permitia a poligamia (Êx
21.10,11; Dt 21.15-17), mas havia indicações de que os reis não deveriam ter muitas mulheres (Dt
17.14-20). Mas a poligamia não recebe aprovação inequívoca; diversas passagens insistem no ideal
da monogamia (cf. Is 50.1; Jr 2.2; Ez 16.8; Pv 12.4; 18.22; 19.14; 31.10-31; Sl 128.3). Não temos
relatos de que a poligamia era comum em Israel, a não ser depois das guerras, quando a população
masculina estava reduzida. Os governantes que tinham diversas mulheres possivelmente
copiaram o modelo dos líderes de outras nações. A poligamia ocorria, mas as pessoas estavam
cada vez mais insatisfeitas com esse quadro. A comunidade de Qumran se opunha à poligamia,
mas não ao divórcio e ao novo casamento (Instone-Brewer, 2002, p. 59-72). Contra Carson, que
afirma, baseado em CD 4.21 e especialmente 11QTemple 57.17-19, que o divórcio em Qumran era
visto como ilegítimo em todas as circunstâncias (1995, p. 411). A mesma opinião é defendida por
Neusner e Green, baseado em CD 13.17; 4QDb18.2.5 (2002, p. 172). Contudo, essa posição tem
sido refutada por diversos estudiosos (veja Instone-Brewer, 2002, p. 72).
16
Davidson argumenta que “direitos conjugais” não tem suporte linguístico suficiente e que
deveríamos traduzir este termo com “habitação, permanência”. Sendo assim, as necessidades
básicas da moça escrava seriam alimento, vestuário e acomodação. Se Davidson estiver certo, este
texto nem trata da poligamia (Davidson, 2007, p. 193). Mas a postura de Davidson não tem muito
apoio dos estudiosos. Veja as possibilidades de tradução para esse texto que já foram sugeridas
em Instone-Brewer, 2002, p. 100; Dück, 2017b, p. 182-183.

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


24 Arthur W. Dück

implicava liberdade do casamento e emancipação da escravidão para


a liberdade sem qualquer pagamento. Para a esposa e para o marido
(que não eram escravos), poderia significar que tinham o direito de
sair do relacionamento sem pagamento ou sem ter de abrir mão do
ketubah. Quase todas as discussões da Mishnah sobre o divórcio se
baseiam neste texto. Pelo menos no primeiro século d.C. esse texto era
usado como base para as discussões sobre o divórcio (Ibidem, p. 99-
102). Esse texto é classificado nas fontes rabínicas em dois aspectos:
a. Negligência material como motivo para o divórcio. O texto de
Êxodo 21.10,11 definia a obrigação material como suprimento
não reduzido de alimento e roupas. Mas os rabinos precisavam
de algo mais específico para lidar com as questões que eram
trazidas para os tribunais. O marido precisava providenciar o
alimento e o tecido (ou o dinheiro para comprá-los), enquanto
a esposa deveria fazer comida e confeccionar os itens do
vestuário. A Mishnah Ketuboth define o trabalho da mulher
com relação ao marido como moer trigo, fazer pão, lavar a
roupa, preparar comida, alimentar os filhos, fazer a cama e
trabalhar com a lã. Essas tarefas se dividiam em questões de
comida e vestuário e a questão de alimentar os filhos pode se
referir à ordem de “encher a terra”. A quantidade de comida
e tecido para a esposa também era definida com base no
sustento que precisaria ser dado pelo marido que viajava para
alguém cuidar da esposa enquanto estava ausente (Ibidem, p.
103-105);
b. Negligência emocional como motivo para o divórcio. Havia
regras claras determinando quanto tempo de abstinência
sexual era permitida entre o casal, dependendo da profissão,
definida por questões pragmáticas – se a profissão exigia
viagens, etc., com especificações para o tempo de abstinência
permitido.17 Não há regra equivalente para as esposas. É

17
Por exemplo, o líder de uma caravana de camelos provavelmente ficava fora de casa por trinta
dias, um marinheiro por seis meses, e um líder de uma caravana de jumentos, uma semana.
Por outro lado, Instone-Brewer nos alerta de que essas prescrições poderiam se tratar de regras
elaboradas contra os saduceus, que eram os mais ricos, e a intenção era puni-los com isso. Em
contraste, os rabinos tinham autorização para trinta dias de abstinência em virtude de sua

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 25

provável que algumas se dedicassem à oração (cf. 1Co 7.3-5)


e havia penalidades para a esposa que se recusava por tempo
demasiado às obrigações conjugais, mas o tempo não estava
definido. À mulher seria imposta uma multa: poderia ter seu
ketubah reduzido, e o marido que se recusasse às obrigações
conjugais poderia ter o ketubah da mulher aumentado. Na
prática essas sanções nada significavam até que se chegasse
ao divórcio, quando os tribunais eram obrigados a acertar
os detalhes da separação. Mas o resultado mais imediato é
que forçava o casal a vir com regularidade ao tribunal para
aumentar ou diminuir o ketubah. Aparentemente essa regra
era usada para convencer o cônjuge a mudar de opinião
para evitar o divórcio. A multa não era usada para forçar as
pessoas a se relacionar, mas um incentivo à responsabilidade.
Além dessa negligência, a crueldade e humilhação também
eram motivos para o divórcio relacionado com a negligência
emocional (Ibidem, p. 106-110).
5. Qualquer motivo. Com base em Deuteronômio 24.1, encontrar na
mulher “alguma coisa vergonhosa” (erwat dabar), era discutido
amplamente entre os judeus no tempo de Jesus, já que a expressão
não era muito clara, sendo literalmente traduzida como “indecência
ou nudez de algo”. Aliado a isso, o termo dabar (algo, alguma coisa)
parecia supérfluo — indecência já seria o suficiente, não havia motivo
para dizer “alguma coisa indecente”. Baseado nisso, a escola de Hillel
achava que havia um significado oculto no termo dabar. Assim,
havia dois motivos para o divórcio: “indecência” (erwat) e “outra
questão” (dabar, algo/alguma coisa).18 Na prática, isso significava
que indecência e outro motivo (qualquer coisa) eram motivos para o
divórcio. Como esse ‘outro motivo’ (qualquer coisa) englobava todos
as razões para o divórcio (incluindo indecência), esse era o motivo
que todos aqueles que quisessem se divorciar poderiam alegar. A
escola de Shammai entendia que se tratava de “uma questão de
indecência”, ou seja, adultério. Eles citavam Deuteronômio 24.1, mas

devoção ao estudo da Torá (2002, p. 106).


18
Para mais detalhes, veja Strack; Billerbeck, 1982, p. 312-315.

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


26 Arthur W. Dück

invertiam a sequência das palavras para enfatizar a sua interpretação


(dabar erwat, em vez de erwat dabar). Assim, a escola de Shammai
somente permitia o divórcio com base no adultério, embora também
aceitasse como motivo válido para o divórcio o não cumprimento de
Êxodo 21.10,11. As escolas também divergiam sobre o processo do
divórcio. Shammai acreditava que o certificado de divórcio poderia
ser entregue para a esposa a qualquer momento, ao passo que Hillel
afirmava que este deveria ser escrito pelo marido e logo em seguida
entregue para ela. Shammai sustentava que todo o processo de
divórcio implicava somente a escrita do certificado, enquanto Hillel
via três passos separados no processo: escrever o certificado, entregar
nas mãos da esposa (ou não mão do seu agente) e despedir de casa.
Como a escola de Hillel não necessitava de razões para o divórcio, ela
elaborou algumas prescrições para evitar que o marido que estivesse
com raiva da esposa terminasse todo o processo em questão de
minutos. Os três passos acabavam atrasando o processo, ajudando o
casal a considerar a hipótese da reconciliação. Essas regras também
tornavam financeiramente inviável se divorciar da esposa sem
motivo justo, dando também alguma segurança financeira para ela.19
A posição da escola de Hillel se tornou predominante nessa época
(Ibidem, p. 110-114);
6. O divórcio normal dos rabinos. Somente há relatos dos ensinos da
escola de Shammai acerca do divórcio com base nos escritos da
escola de Hillel, sua rival.20 Por algum motivo, somente os textos que
defendiam a posição da escola de Hillel sobreviveram à destruição
de Jerusalém em 70. d.C., talvez porque a posição da escola de
Shammai já estava em declínio nesta época. Poucos que buscavam
um divórcio escolheriam alguém da escola de Shammai para julgar
favoravelmente a sua causa, já que precisariam apresentar provas do
adultério, de negligência ou de infertilidade praticamente impossíveis

19
Para o divórcio, a escola de Hillel exigia somente que o marido devolvesse o dote para a esposa.
Qualquer remuneração que a esposa tivesse recebido depois do casamento, ou quaisquer produtos
que ela mesma tivesse produzido ou confeccionado, todos pertenciam ao marido (Instone-Brewer,
2002, p. 154).
20
Tanto Shammai, quanto Hillel eram rabinos com aproximadamente vinte anos a mais que Jesus
(Blomberg, 2014, p. 29).

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 27

de obter. Era bem mais fácil pegar alguém da escola de Hillel, que
aceitaria o divórcio sem qualquer evidência. A exceção seria quando
o marido quisesse provar o adultério ou outra forma de negligência
da esposa para evitar a devolução do ketubah. Uma corte da escola
de Hillel desprezaria essa postura como avareza. Não era interesse
da sociedade que uma mulher fosse divorciada sem ter meios para
se sustentar. Somente temos acesso a um único relato de uma
pessoa que tentou provar o adultério da esposa diante da corte e
não foi bem-sucedido (o que, aliás, era praticamente impossível em
virtude das provas exigidas). O divórcio por “qualquer motivo” era
o único praticado nessa época, bem como considerado o mais justo,
uma vez que aparecer no tribunal para ser julgado era considerado
vergonhoso para uma mulher. O divórcio “sem qualquer motivo”
não exigia testemunhas, tribunal, etc.,21 e foi o modelo escolhido por
José quando quis deixar Maria, por ser um homem justo (Mt 1.19). O
divórcio normal, para os rabinos, envolvia um tribunal que poderia
ser privado, caso fosse da escola de Hillel. Era um tribunal que possuía
três rabinos ou escribas locais, ou em alguns casos, sacerdotes.
Estes julgavam todas as coisas, a não ser as que envolviam a pena
capital. Normalmente o marido escolhia os juízes, exceto quando a
esposa chamava o tribunal, alegando que tinha motivos para pedir o
divórcio. Normalmente um divórcio da escola de Hillel não envolvia
o tribunal, a não ser que houvesse questões relacionadas ao ketubah
a serem discutidas, mas era bem mais seguro usar um tribunal,
pois, caso os acertos financeiros não fossem corretos, isso poderia
acarretar um processo muito oneroso, ou então, se os procedimentos
relacionados ao divórcio tivessem sido feitos de modo errôneo, o novo
casamento da esposa implicaria adultério. Havia dois documentos
que eram muito importantes no divórcio: o certificado de divórcio,
que precisava ser escrito pelo marido, ou por alguém apontado por

21
Parece que no judaísmo rabínico o divórcio era concretizado por um certificado de divórcio que
o marido entregava para a esposa. Para que a transação fosse considerava válida, tanto marido
quanto esposa deveriam estar de sã consciência e precisavam agir de mútuo consentimento,
ou seja, de modo espontâneo. Quando o livre consentimento não estava presente, um tribunal
rabínico poderia recomendar ou compelir um cônjuge diante do pedido do outro (Neusner;
Green, 2002, p. 172). Mas cada vez mais o divórcio era facilitado, de modo que no tempo de
Jesus, ao que tudo indica, o divórcio ocorria até mesmo sem consentimento e sem um tribunal.

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


28 Arthur W. Dück

ele;22 e o recibo de quitação do ketubah, no qual a esposa afirmava que


os acertos haviam sido realizados a contento. Logo, a prática comum
dos seus dias era que os casos de divórcio eram levados aos tribunais
da escola de Hillel para resolver essas questões (Ibidem, p. 114-117).

1.5 CASAMENTO E NOVO CASAMENTO PARA VIÚVAS E DIVORCIADAS


O novo casamento era o caminho normal para as viúvas, mesmo que
algumas pudessem achar que era mais vantajoso permanecer sozinhas, caso
tivessem condição financeira confortável. Normalmente uma mulher jovem
queria ser casar novamente, porque era considerado vergonhoso uma mulher
não estar casada. Na Lei de Moisés havia o casamento do levirato, mas não
se sabe se este ainda era praticado no tempo de Jesus. O direito ao novo
casamento era dado pelo ex-marido para a esposa e constava no certificado de
divórcio (Instone-Brewer, 2002, p. 117, 121-122).23
As moças normalmente noivavam antes da puberdade, com
aproximadamente doze anos e meio de idade, ou quando os sinais da
puberdade apareciam. Os pais eram incentivados a casar seus filhos e filhas
enquanto ainda eram bem jovens para evitar a imoralidade,24 mas a gravidez
deveria ser evitada antes dos doze anos. Dezoito anos também era uma idade
boa para se casar, mas supostamente Deus não estaria incomodado se alguém
ainda não tivesse se casado aos vinte anos de idade (Ibidem, p. 117-118).
O pai da moça tinha controle absoluto sobre ela até que se tornasse adulta.
Ele poderia anular qualquer voto que ela tivesse tomado e todo o dinheiro que
ela ganhasse ou encontrasse era dele. Ele poderia contratar o noivado com
alguém contra a vontade dela, e ela não poderia se recusar ao casamento. No

22
Caso o marido não escreva pessoalmente o certificado, precisa encarregar alguém de modo
específico a fazê-lo e exigia-se para isso a assinatura do postulante. Além disso, o certificado
era específico para determinada esposa e não algo geral que poderia ser aplicado de forma geral
(Strack; Billerbeck, 1982, p. 304).
23
Baseado na Mishnah Gittin 9, escrito em torno do ano 200 d.C., mas que se baseava em tradições
orais ao menos desde o tempo de Esdras, Neufeld sustenta que um rabino poderia aceitar um
certificado de divórcio que excluísse determinado homem de se casar com sua ex-esposa (que não
estivesse excluído já pela lei mosaica [e.g., seu irmão, seu pai, etc.]). Contudo, os sábios, que se
presume tinham a autoridade sobre o assunto, afirmavam que isso invalidada o certificado. Ao
que parece, o direito ao novo casamento era tomado por certo — interferir nesse direito tornava o
certificado inválido (Neufeld, 1989, p. 26-27).
24O
rabino Akiba interpretava a ordem de Levítico 19.29 (“Não desonrarás tua filha, fazendo-a
prostituir-se”) aplicando-se àquele que posterga o casamento de uma filha que já passou pela
puberdade. Segundo um escrito rabínico (Lm Rab. 1.2), os meninos também devem se casar aos
doze anos de idade (Instone-Brewer, 2002, p. 118).

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 29

entanto, se o seu pai tivesse morrido e o casamento tivesse sido arranjado pela
mãe ou pelos irmãos, ela poderia recusar seu marido assim que se tornasse
adulta. Uma mulher adulta não poderia ser forçada a se casar contra a sua
vontade, mas a maioria se tornava noiva muito antes de ter a própria escolha.
Nesse caso, uma viúva ou mulher divorciada estava livre para se casar com
quem quisesse, como consta nos certificados de divórcio. Na verdade, essa
liberdade não era absoluta, porque havia algumas restrições: não poderia se
casar com seu amante ou a pessoa com quem se suspeitasse que ela tivesse
adulterado; não poderia se casar com o ex-marido, caso tivesse se casado
com outro depois que se separou dele (ou este tivesse morrido); nem com um
sacerdote; somente poderia se casar com um judeu, por causa da regra acerca
dos casamentos mistos (Ibidem, p. 118-121).
Não havia estigma em se casar com uma viúva ou uma mulher divorciada,
a não ser que ela tivesse sido divorciada por adultério. O preço de uma viúva
ou divorciada era a metade de uma virgem, e como se supunha que houvesse
menos interesse num casamento com uma pessoa neste estado, a cerimônia
era realizada na quinta-feira, para permitir ao menos um fim de semana longo
para o novo casal, antes de voltar ao trabalho. Uma mulher com um ketubah
alto talvez quisesse permanecer solteira, para ter mais liberdade. Todo o
salário de uma mulher casada era controlado pelo marido, e se esperava dela
que estivesse sempre disposta para o trabalho doméstico. No entanto, uma
mulher solteira tinha direitos muito parecidos com os direitos dos homens,
podendo possuir propriedade, etc. Enquanto ela estivesse nos anos férteis,
porém, era incentivada a se casar novamente (Ibidem, p. 123-125).

2. QUESTÕES CONTEXTUAIS COMPLEXAS PARA A DISCUSSÃO DE


DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO NO NT

2.1 IMORALIDADE SEXUAL (porneia, porneia)


No AT, o texto-chave usado para o divórcio era Deuteronômio 24.1-4. A
questão crucial nesse texto era interpretar o que significava o termo “alguma
coisa vergonhosa” (erwat dabar).25 As escolas rabínicas do tempo de Jesus

25
O significado dessa expressão hebraica é difícil de determinar, tendo em vista que ocorre
somente mais uma vez em Deuteronômio 23.15, em que significa literalmente “nudez de alguma
coisa”. Assim, indica que a expressão não se refere unicamente a algo de ordem sexual, pois

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


30 Arthur W. Dück

discutiam amplamente o significado dessa expressão que foi traduzida por


porneia, em Mateus 5.32 e 19.9, que tratam da cláusula de exceção. Mas o que
significa essa expressão?
Tanto na LXX quanto no NT, porneia pode se referir a diversas ações
com conotação de ação sexual ilícita. Pode se referir a incesto (1Co 5.1 e
possivelmente em At 15.20,29; 21.25); adultério (Jr 3.9 – adultério e porneia
aparecem em paralelo como sinônimos); prostituição (Mt 21.31,32; Lc 15.30;
1Co 6.13-18); imoralidade sexual em geral (Mc 7.21,22; Mt 15.19; 1Co 6.9-
11; 7.2); e inclusive uma metáfora para a idolatria (Ap 17.1-5,15,16). Alguns
argumentam que porneia não pode corresponder ao adultério, já que existe
uma palavra grega especial para adultério, moicheia, que é distinguida de
porneia (Mc 7.21,22; Mt 15.19; 1Co 6.9; Hb 13.4) (Stein, 1992, p. 195). O texto
de Hebreus 13.4 apresenta as duas palavras no mesmo versículo, indicando
que existe diferença entre elas: “O casamento deve ser honrado por todos; o
leito conjugal, conservado puro; pois Deus julgará os imorais [po,rnouj] e os
adúlteros [moicou.j]” (Instone-Brewer, 2002, p. 156).
Na verdade, há uma diferença entre as palavras, mas é de detalhes
específicos. Moicheia é o termo específico para adultério, enquanto porneia
é um termo mais inclusivo, que significa ação sexual ilícita. Os termos não
são sinônimos, antes porneia inclui moicheia.26 Como ambos os textos de

neste caso sugere que era necessário fazer latrinas fora do acampamento para que as fezes não
ficassem jogadas no arraial. Contudo, em Deuteronômio 24.1 denota algo que parece dissolver
o elo matrimonial, embora o texto não indica claramente do que se trata (veja a discussão mais
detalhada em Dück, 2017a, p. 34-39). Mesmo a LXX, que traduz erwat dabar com avschnon
pragma, não especifica do que se trata. Talvez indique o motivo legal para o divórcio, que no
relato de Susana [livro apócrifo] se refere ao adultério. O dicionário BAGD indica que se trata de
mostrar as partes privadas do corpo, ou seja, essas partes do corpo eram expostas fora da união
matrimonial, dando a entender que se tratava de algum pecado na área sexual. Por outro lado,
na Vulgata, Jerônimo indica que não se trata de adultério, mas impureza cúltica (isso poderia ter
dado margem à interpretação que “alguma coisa vergonhosa” se refere a casamentos incestuosos
dos gentios). Na literatura rabínica, a interpretação dessa expressão hebraica deu margem às
interpretações de Hillel e Shammai. Isso denota que a expressão era ambígua e permitia diversas
interpretações, com tendência para uma transgressão de ordem sexual como motivo para o
divórcio (Foster, 2004, p. 110-112).
26
Há discussões sobre as diferenças entre moicheia e porneia:
a. Por vezes, podem ser usados como sinônimos, como em Eclesiástico 23.23, em que as duas
palavras aparecem lado a lado: evn porneia evmoiceuqh (“ela cometeu adultério por meio de um
ato adúltero”) (o mesmo ocorre em Os 1.2; 2.4; Jr 3.1,8,9 LXX);
b. Parece que porneia é usado diversas vezes para atos sexuais ilícitos realizados por mulheres,
ao passo que moicheia é utilizado para os homens (isso se encaixaria com o uso em Mateus
19);
c. Ao que tudo indica, o termo mais geral porneia pode incluir pecados sexuais ocorridos

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 31

Mateus (5.32 e 19.9) usam o termo porneia e este não está restringido por
outros elementos não podemos limitá-lo a incesto, infidelidade sexual,
etc.27 Refere-se a uma ação sexual ilícita. A não ser que fosse especificada de
forma diferente, as pessoas do tempo de Mateus entenderiam essa palavra
significando imoralidade sexual, ou seja, qualquer atividade sexual proibida
no AT. Alguns alegam que não poderia significar adultério, já que este era
punido com a morte no AT. Mas não se sabe se alguém era executado por este
crime no tempo do NT. Ao que tudo indica, havia também outras maneiras de
lidar com essa transgressão da lei nessa época (Stein, 1992, p. 195).
O motivo mais provável para a utilização da palavra porneia nesses textos
se baseia no fato de que seria a melhor tradução para a expressão hebraica
erwat dabar (alguma coisa vergonhosa), de Deuteronômio 24.1.28 Isso incluía
qualquer imoralidade sexual, sem determinar que isso implicava adultério
(como afirmava a escola de Shammai) ou uma conduta sexual imprópria de
maneira mais generalizada (Instone-Brewer, 2002, p. 158-159).
O fato de que Mateus usou o termo porneia em vez de moicheia pode
indicar que ele quisesse afirmar que o pecado sexual dentro do casamento
não se restringe ao ato sexual de uma esposa com outro homem. Como
descreveríamos a sua conduta, se ela habitualmente buscasse outro homem,
mas ele se recusa a corresponder às suas iniciativas? Talvez ela não fosse
culpada legalmente de adultério, mas sua ação constituía imoralidade sexual
num sentido mais amplo (Keener, 1991, p. 32). Segundo Janzen, Mateus usa
porneia em vez de moicheia para não restringir o significado ao adultério com
uma pessoa casada, mas para incluir o relacionamento sexual com alguém que
não é seu cônjuge também durante o noivado. Assim, a exceção permitida por
Jesus seria o equivalente a divórcio “com justa causa” (2000, p. 79-80).
É possível que os cristãos da igreja primitiva entendessem essa palavra

durante o noivado, ao passo que moicheia se refere a pecados ocorridos depois do casamento
(isso se encaixaria bem com o contexto de Mateus, especialmente à luz das ações de José [Mt
1.18-25]) (Pao, 2014, p. 70-71).
27
Alguns autores como Bonsirven, Fitzmyer, Wall, argumentam que porneia se refira a casamentos
ilícitos, às vezes ligados ao incesto. Embora porneia possa incluir essas práticas, não se restringe a
elas. Para uma análise dos argumentos, veja Instone-Brewer, 2002, p. 157-158; Janzen, 2000, p.
69-70. Para uma discussão do equivalente hebraico das palavras, veja Adams, 2012, p. 99.
28
O termo porneia não é tirado da LXX de Deuteronômio 24. Ali se utiliza avschmon pragma (algo
vergonhoso/nu) e não se refere sempre à vergonha sexual. A LXX é mais literal nesse texto, pois
erwah significa “nudez” (Instone-Brewer, 2002, p. 158). Para mais detalhes sobre que aspectos da
alusão de Jesus a Deuteronomio 24.1-4 vêm da LXX, veja Blomberg, 2014, p. 29-30.

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32 Arthur W. Dück

desse modo. Os rabinos que argumentavam que o homem poderia se divorciar


de sua esposa somente por falta de castidade queriam dizer que isso significava
qualquer indiscrição ou infidelidade, incluindo uma mulher que saísse de casa
com a cabeça descoberta, o que na cultura local significava que ela estava à
procura de outro marido. A escola de Shammai entendia a expressão erwat
dabar de Deuteronômio 24.1 como qualquer coisa que mostrasse a imodéstia
e que indiretamente levava à suspeita de adultério (Keener, 1991, p. 32).29
Mesmo que no AT o significado de erwat dabar seja altamente discutido
e nenhuma conclusão definitiva ainda foi reconhecida, parece que no NT
o significado estava bem mais claro. Estudiosos como Allen; Schweizer;
Grundmann; Gundry; Carson; Luz; Davies-Allison; Strecker; France; Gnilka;
Harrington e Morris defendem que a palavra se refere a pecados sexuais,
como fornicação e adultério (cf. At 15.20,29) (Hagner, 1993, p. 124).30 Por
outro lado, outro grupo de estudiosos, entre os quais Fitzmyer; Lambrecht;
Mueller; Jensen; Guelich; Witherington; Caron afirmam que porneia não
se refere a imoralidade sexual, mas a problemas relacionados a casamentos
incestuosos, ou seja, casamentos proibidos de acordo com Levítico 18.6-18.31
Isso seria especialmente importante quando o evangelho entrou no contexto
pagão, visto que diversos desses casamentos eram permitidos naquela esfera.
Mas, como Mateus se concentra mais no povo judeu, essa última proposta
não recebe tanto apoio (Hagner, 1993, p. 124-125).32 Ainda outra possibilidade

29
Por outro lado, uma vez que Mateus enfatiza o perdão de forma continuada para os arrependidos
(Mt 18.21-35), pode ser que ele tenha em mente aqui uma conduta errada persistente e não apenas
um único ato (Keener, 1991, p. 32).
30
Veja a discussão em Leineweber, 2008.
31
Argumenta-se, com base em 1Coríntios 5.1, acerca de um caso na igreja de Corinto em que
um homem tem “relações sexuais com a mulher de seu pai”. Contudo, conforme Carson, não há
indicação de que se trata de um casamento incestuoso, mas de um relacionamento incestuoso.
Seria muito questionável qualquer judeu considerar esse relacionamento um casamento. Paulo
teria dito ao casal para cessar esse relacionamento e não que se divorciassem. Além disso, no
capítulo seguinte Paulo usa o termo porneia para se referir a prostituição (1Co 6.13,16) (1995, p.
414).
32
Davies e Allison listam pontos que poderiam ser usados para defender o incesto:
a. Esse significado é claramente atestado em 1Coríntios 5.1;
b. Moiceuw e moicaomai são palavras usadas por Mateus para “cometer adultério” (5.27,28,32;
19.9,18) e em 15.19 moiceia e porneia são claramente dois pecados diferentes. Assim, não é
provável que porneia significa adultério;
c. Em Atos 15.20,29; 21.25, o Concílio de Jerusalém declara que os gentios devem abster-se
“da carne de animais sacrificados aos ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e da
imoralidade sexual [porneia]”. Diversos estudiosos entendem que essas coisas proscritas
vêm da lei de santidade (Lv 17—18), que estabelece as leis não apenas para os israelitas, mas

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 33

seria interpretar porneia como relações sexuais antes do casamento, mas esta
é bem pouco provável, pois tornaria essa ação pior que o adultério (Davies;
Allison, 2004, v. 1, p. 529).
A proposta de Jones parece esclarecer a abrangência de porneia. Segundo
ele, porneia é o termo geral para relacionamento sexual imoral ou ilícito. O
significado específico precisa ser indicado pelo contexto: se inclui o pagamento
de despesas, trata-se de prostituição; se envolve parentes próximos, é incesto;
se envolve pessoas do mesmo sexo, homossexualismo; se envolve um casal
não casado, é impureza; e se contemplar uma pessoa casada se envolvendo
com outra não casada, é adultério (1990, p. 31).33 Isso ajuda a ilustrar a gama

também para “o estrangeiro que vive entre vós”. Nesse caso, porneia em Atos precisaria se
referir a relacionamento sexual com um parente próximo (cf. Lv 18.6-18);
d. Se a igreja de Mateus fosse composta de judeus e gentios, é provável que o evangelista
encontrasse entre eles pessoas cujo matrimônio violava as leis de incesto de Levítico. Desse
modo, a exceção de Mateus 5.31,32 poderia ser uma resposta a essa situação, ou seja, o
casamento deles era inválido (2004, v. 1, p. 529-530).
Apesar desses argumentos valiosos, os mesmos autores apresentam contra-argumentos para
mostrar o motivo pelo qual porneia deva ser visto como adultério:
a. Não há prova patrística de equacionar porneia com incesto;
b. O termo porneia não aparece m Levítico 17—18 e não é certo que o assim chamado “decreto
apostólico” [At 15] se refira ao código de santidade;
c. Logou porneiaj parece relacionado ao erwat dabar (Dt 24.1) que os adeptos de Shammai,
em oposição aos adeptos de Hillel (a linha majoritária dos judeus), que interpretavam
como debar erwá, ou seja, imoralidade da parte da mulher no casamento. A sequência das
palavras logou porneiaj não reflete o AT nem a posição de Hillel, mas a interpretação dada
por Shammai, que permitia o novo casamento em caso de um divórcio legal [veja tb. Carson
1995, 411]. Embora o novo casamento depois do divórcio seja questionável, uma reafirmação
da posição de Shammai poderia ser vista como importante para Mateus, em face do declínio
dessa posição em Israel;
d. Há muitas referências a porneia com o sentido de adultério;
e. É possível argumentar que o termo geral porneia - e não o termo mais específico moiceia -
aparece como a cláusula de exceção, pois se baseia em Deuteronômio 24.1, em que o
significado é geral e não específico. Além disso, segundo Bauer, a raiz moic- costuma ser usada
para homens e a raiz porn- para mulheres;
f. A passagem de Mateus 5.31,32 não contradiz necessariamente Marcos 10.9,10 e Lucas
16.18, uma vez que a proibição de Jesus do divórcio talvez tenha tomado por certo que uma
irregularidade sexual anularia o casamento (cf. Dt 22.13-30; Jr 3.8), ou talvez Mateus tenha
pensado dessa forma.
Como José quis dar a Maria o certificado de divórcio já que suspeitava de infidelidade da parte
dela, seria problemático não adicionar a cláusula de exceção, visto que o ‘pai’ de Jesus seria
visto como não agindo conforme a lei do divórcio. Assim, Mateus 5.32 e 19.9 podem ter sido
influenciados pelo desejo de tirar qualquer questionamento sobre a coerência das ações de um
homem justo e as palavras de Jesus (Davies; Allison, 2004, v. 1, p. 530-531; veja tb. Guelich, 1982,
p. 204; Stott, 1971, p. 170; Hagner, 1993, p. 124).
33
Para uma clas ocorrências do termo porneia e seus cognatos no NT divididos por categoria, veja
Jensen, 1978, p. 180-181; Leineweber, 2008, p. 14.

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34 Arthur W. Dück

de significados do termo, mas ressalta a dificuldade de determinar o seu


significado na suposta cláusula de exceção utilizada por Mateus. O uso na LXX
também não ajuda muito a definir o significado do termo, já que a gama de
significados é bem parecida com a expressão no texto hebraico (Jensen, 1978,
p. 172).34

2.2 DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO ERAM VISTOS COMO UMA COISA SÓ?
Os textos bíblicos sobre o divórcio mostram que é possível se divorciar e não
se casar novamente. Logo, não eram vistos como uma coisa só. Mas no tempo
de Jesus era tido por certo que a pessoa que se divorciava automaticamente
tinha o direito ao novo casamento. A parte essencial do certificado de divórcio
entre os judeus consistia nas palavras: “Você está livre para se casar com
qualquer homem”. Esse seria o entendimento normal de Mateus 5.32, em que
o texto afirma que o homem que se divorcia faz de sua esposa uma adúltera,
ou seja, ela se casa de novo e por meio desse novo relacionamento comete o
adultério. O certificado tomava por certo que a mulher se casaria novamente.
Mesmo que o novo casamento não fosse uma parte necessária do divórcio,
o direito ao novo casamento era parte integrante dele. Jesus poderia ter
ensinado que o divórcio excluía a possibilidade do novo casamento, mas não o
fez. Ou, se o excluiu, não o fez de maneira clara, a ponto de mudar o conceito
que as pessoas tinham na sua época. Dessa forma, quando o NT menciona
o divórcio, devemos ter em mente que isso implicava o direito (mas não a
necessidade) ao novo casamento (Stein, 1992, p. 195-196).
Segundo Bräumer, o certificado de divórcio tinha algumas características
que o levariam se ser considerado válido:
a. Ele poderia ser escrito por qualquer pessoa, inclusive pela esposa;35

34
Contudo, Jensen reage contra a proposta de Malina (1972, p. 17), de que o uso de porneia no NT
não conota o relacionamento heterossexual antes do noivado de uma natureza não cúltica ou não
comercial (Jensen, 1978).
35
Veja Strack; Billerbeck, 1982, p. 304. Mas Deuteronômio 24.1 parece afirmar que, ao menos
em certo período da história, somente o marido poderia tomar a iniciativa do divórcio. Essa
também parece ser a postura de Mateus, mas Marcos permite que a mulher tome a iniciativa —
essa diferença possivelmente ocorre por causa dos leitores a quem a carta é endereçada. Por outro
lado, McKnight menciona textos descobertos em Wadi Muraba‘at, datados logo depois do período
do NT, que atestam que a mulher também poderia se divorciar de seu marido (2013, p. 98). Para
mais detalhes sobre a discussão da iniciativa da mulher no divórcio, veja Brooten, 1983; Janzen,
2000, p. 74, nota 24. Davies e Allison também mencionam que excepcionalmente as mulheres
podiam processar o marido para obter o divórcio (2004, v. 1, p. 527, nota 29). Ilan menciona
que talvez a mulher tivesse mais liberdade para iniciar o divórcio do que se imagina, citando a

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 35

b. Precisava ter os nomes do marido e da esposa e suas assinaturas,


juntamente com a data do acordo;
c. Precisava haver uma explicação clara do marido, atestando que
por meio desta sua esposa está livre para um outro relacionamento
matrimonial;
d. Precisava ter a assinatura de duas testemunhas;
e. Poderia ser escrito em hebraico, aramaico ou grego (Bräumer, 1986,
p. 127).36
Na história do Judaísmo desenvolveu-se um certificado de divórcio como
segue:
E agora eu te repudio [...], filha de [...] e outro nome pelo
qual pode ser chamada [...], para que você seja livre, tenha
o poder de ir, de se casar com quem quiser, e ninguém vai
te impedir desde o dia de hoje até a eternidade. Eis que
você está livre para se aproximar de qualquer pessoa, e
isto da minha parte deve ser o documento de repúdio e
do divórcio e a carta de dispensa de acordo com a lei de
Moisés e de Israel (Bräumer, 1986, p. 127-128).37
A parte principal do certificado de divórcio era: “Eis, você tem permissão
para qualquer homem” (Strack; Billerbeck, 1982, p. 305).
As palavras utilizadas no certificado de divórcio não têm sua origem no
Pentateuco, mas eram similares aos certificados de divórcio dos rabinos. Essas

comunidade de Elefantina, no Egito, e visto que praticamente tudo o que temos a respeito das
tradições legais judaicas procedem de fontes rabínicas e farisaicas (1996, p. 201).
36
Mas, para regulamentar um pouco essa prática de se divorciar entregando o certificado de
divórcio, a Gittin, um estudo na Mishnah trata das questões legais do certificado de divórcio.
Ela detalha os procedimentos na escolha das testemunhas, o conteúdo do certificado, como este
deve ser entregue (e.g., o marido não deve colocar o certificado nas mãos da esposa enquanto ela
dorme) e o que fazer se o marido quiser voltar atrás em sua decisão (Garland, 2002, p. 263; veja
Strack; Billerbeck, 1982, p. 306-310 para mais detalhes). A Gittin 2, 3 também especifica com
que material o certificado de divórcio poderia ser escrito (e.g., tinta, etc.) e com o que não deveria
ser escrito (e.g., suco de frutas, etc.). Também detalha sobre que material poderia ser escrito
(uma folha de oliveira, etc.) e sobre o que não poderia ser escrito (e.g., alimentos, etc.) (Strack;
Billerbeck, 1982, p. 303-304). Para mais questões legais a respeito do certificado de divórcio, veja
Ibidem, p. 304-306.
37
A Mishnah Gittin 9.3 traz um texto levemente diferente do certificado de divórcio:
O texto do certificado de divórcio: “Eis que você tem permissão [está livre] para qualquer homem.”
R. Judá afirma: “Que isso seja da minha parte o seu certificado de divórcio, carta de dispensa, e
ato de liberação, que você pode se casar com quem quiser”.
O texto do certificado de emancipação: “Eis que, você é uma menina livre, você pertence a si
mesma”. Veja tb. Instone-Brewer, 2002, p. 119-120 para o texto em hebraico (a versão mais longa)
e sua versão em aramaico (a versão mais curta). A Encyclopedia Judaica apresenta outro modelo
parecido (apud Adams, 2012, p. 64-65). Outro modelo ainda pode ser encontrado em Duty, 1978,
p. 31. Todos os modelos são basicamente iguais, ressaltando a permissão para o novo casamento.

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36 Arthur W. Dück

palavras podem ser atestadas em certificados de casamento e de divórcio de


Israel desde o século 5 a.C. e em certificados de casamento e códigos legais
usados na Babilônia desde o séc. 14 a.C. (Instone-Brewer, 2002, p. 29).
Esse documento seria necessário quando a mulher quisesse se casar
novamente, já que normalmente era permitido ao homem ter mais de uma
esposa. Era um documento muito valioso para a mulher, pois, se ela não o
possuísse, viveria sob a constante ameaça do ex-marido, que poderia pedir
que voltasse para ele, afirmando que ela ainda estaria casada com ele e, além
disso, também poderia acusá-la de adultério, caso se casasse com outro
(Idem). Desse modo, a lei judaica dava mais liberdade à mulher do que as
leis de qualquer outra nação. A lei dava à mulher divorciada o documento que
provava o divórcio e que possibilitava o novo casamento e impedia qualquer
exigência futura do ex-marido, algo que acontecia em outras nações (Ibidem,
p. 31).
Em muitos aspectos, a diferença entre as leis de Israel sobre divórcio e novo
casamento e as leis de outras nações a respeito do assunto não é absoluta, só
de intensidade. Mas o certificado de divórcio estava presente somente na lei de
Israel, dando à esposa o direito a um novo casamento. Com isso, o certificado
desestimulava o divórcio e protegia a mulher. Quando o marido assinava
o certificado, estava abdicando do direito que tinha sobre a mulher. Sem o
certificado, ele poderia mandá-la embora e, depois de alguns dias, mudar de
ideia e pedi-la de volta (Ibidem, p. 32-33).
Assim, é evidente que o marido que quer se divorciar de sua esposa tem
a obrigação de dar-lhe o certificado de divórcio. Isso também fica claro em
Josefo: “Nessa época me divorciei de minha esposa, não gostando de seu
comportamento”. Mas em seguida ele faz outro comentário interessante: “o
homem que deseja se divorciar de sua esposa por qualquer motivo — e entre
as pessoas muitos desses podem surgir — deve certificar por escrito...” (Ant.
4.253, apud France, 2007, p. 208).

2.3 A POSSIBILIDADE DO DIVÓRCIO


“O divórcio era um fato da vida perfeitamente aceito nos tempos do NT.
O marido tinha plena liberdade de despedir a sua esposa na condição de se
seguir o processo legal apropriado de lhe dar a notificação de divórcio. Mesmo
assim, disputavam-se os motivos justos para um homem divorciar sua esposa

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 37

entre as duas escolas rabínicas” (Marshall 1989, 673-674; Bräumer 1986, 122).
As diferentes escolas rabínicas discutiam a respeito do cumprimento literal da
lei, em contraste com a possibilidade de guardar a lei [ideal X real]. De acordo
com A. Schlatter, a lei não poderia ser tão difícil a ponto de que somente
uns poucos pudessem cumpri-la (apud Bräumer 1986, 122). Isso ainda não
queria dizer que Deus se agradava do divórcio. O divórcio foi permitido no
AT por causa da dureza do coração humano. Normalmente, entre os judeus,
era permitido que o homem se divorciasse de sua esposa. A mulher não tinha
esse direito, mas entre os romanos essa possibilidade era real. Um casamento
romano poderia ser terminado com mútuo consentimento, ou então quando
uma das partes declarava que o casamento havia terminado (Keener 1991, 51),
ou seja, por praticamente qualquer motivo. Por outro lado, quando ocorria
o adultério a lei romana exigia o divórcio, e esta também era a prática em
Israel neste tempo (era tomado por certo que o marido mandaria a esposa
embora em caso de adultério) (Keener 1991, 51; 1993, 59; Atkinson 1990, v.
1, p. 484).38 Rabinos tardios afirmavam que o divórcio era exigido em caso de
adultério, porque este gerava um estado de impureza que legalmente dissolvia
o casamento (Wilkins 2002, 119; Bock 2006, 126; Blomberg 2014, 29). Como
os relatos indicam que logo depois do tempo de Jesus essa era a prática em
Israel, Davies e Allison questionam se no tempo de Jesus o divórcio motivado
pela imoralidade já não era considerado inquestionavelmente certo, ou seja,
que na mente da comunidade judaica já durante o tempo de Jesus o divórcio
por imoralidade era imperativo, de modo que a cláusula de exceção seria uma
concessão em virtude disso (2004, v. 3, p. 16).

2.4 O CASAMENTO PODE SER DISSOLVIDO?


Foi Deus que instituiu o casamento (Gn 2.18). Deus intentou que o ser
humano não deveria permanecer sozinho e por isso os criou macho e fêmea.
O texto de Gênesis mostra que o casamento é constituído quando os parceiros
deixam pai e mãe para se unirem e formarem uma só carne (Gn 2.24). Isso
significa que o relacionamento prioritário de agora em diante será entre os dois
e não mais com outras pessoas da família. Eles se unirão — não abandonarão
o seu parceiro por qualquer motivo. A implicação é que cada parceiro se

38
Para mais detalhes, veja Keener, 2000a, p. 6-7.

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38 Arthur W. Dück

dedicará ao outro. Eles se tornam uma só carne, indicando exteriormente a


união que aconteceu interiormente.39 A passagem de Mateus 19.6 enfatiza
que aquilo que Deus uniu, o homem não deve separar. Isso implica que Deus
uniu as pessoas no casamento (parece que isso se aplica para todas as pessoas
e não somente para os crentes). Porém, há alguns relacionamentos que são
proibidos por Deus. Neste caso, não podemos dizer que Deus está unindo as
pessoas (Feinberg; Feinberg, 1993, p. 301-302). Deus até permitiu a união
deles, mas não foi a sua vontade.
Se Deus une as pessoas no casamento, este pode ser dissolvido? Mateus 19
nos mostra que Deus não quer que isso aconteça, mas não existe garantia de
que o casamento não seja dissolvido.
1. Argumentos contra a dissolução do casamento (Feinberg; Feinberg,
1993, p. 303-304):
a. O casamento é uma aliança e não um contrato.40 Uma aliança
não deveria ser quebrada enquanto que o contrato pode ser
quebrado. Certamente algumas alianças (de Deus com Abraão e
com Davi) não podem ser quebradas, mas isso se aplica a todas
as elas?;
b. Se Deus uniu as pessoas, os seres humanos não podem quebrar o
que Deus uniu. Não se trata meramente de um contrato humano,
mas a vontade de Deus;41
c. Com base em Deuteronômio 24.1-4, o casamento estabelece
um relacionamento de sangue entre marido e mulher. Por isso,
uma vez divorciado e unido com outro parceiro não se poderia
voltar para o primeiro cônjuge. O argumento insiste que o
relacionamento formado é permanente e voltar ao parceiro

39
Muito embora para os judeus e expressão “se tornam uma só carne” indique que um vai fazer
parte da família do outro, não se restringindo à união sexual (Hamer, 2015, p. 41).
40
Este ponto é controvertido, já que se parte do pressuposto que o entendimento das pessoas
sobre o que constitui aliança permanece constante ao longo das Escrituras (é inquebrável) e que
contrato é aquilo que entendemos hoje sobre o conceito como aplicado em nossa sociedade, ou
seja, pode ser quebrado sem muitas dificuldades. Mas isso seria ler o nosso entendimento para
dentro da Bíblia e não analisar como o casamento era visto no período em questão. Segundo
Hugenberger, o significado usual de aliança no AT é de “um relacionamento eleito em contraste
com o natural, um relacionamento de obrigação estabelecido debaixo de sanção divina” (apud
Hamer, 2015, p. 20). Veja Instone-Brewer, 2002, p. 15-19 para as diferenças entre contrato e
aliança no mundo antigo.
41
Veja também Stott 1993, 79.

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 39

implica incesto;
d. O relacionamento sexual é a forma mais profunda de “dar-se”
ao próximo. Isso cria uma união que não pode ser quebrada.
Ninguém pode voltar atrás no que já deu para o seu parceiro,
desta forma o casamento não pode ser dissolvido.
2. Argumentos que favorecem (abrem a possibilidade para) a dissolução
do casamento (Feinberg; Feinberg, 1993, p. 304):
a. Gênesis 2.24 e Mateus 19.6 falam do ideal de Deus para o
casamento. Os textos afirmam que o ser humano não deve
quebrar o que Deus estabeleceu, mas não dizem que isso não pode
acontecer. Mesmo que Deus não gostaria que isso acontecesse,
isso ainda não é prova de que não vá acontecer:
b. A morte de um dos parceiros de fato quebra a união. Se a união
não pode ser quebrada, ela teria que continuar na eternidade.42
A Bíblia ensina que viúvas/viúvos podem se casar novamente
(Rm 7.1-3; 1Co 7.39). Se a união não fosse quebrada pela morte, a
Bíblia estaria aprovando a poligamia e a poliandria;
c. Se a cláusula de exceção de Mateus (e talvez de 1Coríntios) prevê
um novo casamento para a parte inocente, isso implica que
existem situações em que o casamento é dissolvido. Parece que
“imoralidade sexual” dissolve o casamento, o que implica em
possibilidade de novo casamento (Feinberg; Feinberg, 1993, p.
343).
Com base nos textos e argumentos acima, creio que devemos concordar
com John Murray, que afirma que o casamento era “original e idealmente
indissolúvel” (apud Stott, 1993, p. 72). A Queda modificou diversos elementos,
levando a um estado menos que ideal em diversos aspectos da nossa vida, ou
seja, o casamento não deveria ser dissolvido, mas na prática muitas vezes não
escapa desse flagelo.

42
Nem tudo que existe sobre a terra vai continuar da mesma forma na eternidade, pois isso
implicaria que teríamos a poligamia no mundo além, já que pessoas cujos cônjuges faleceram e
se casaram de novo forçosamente teriam mais de um cônjuge na eternidade, supondo que todo
estivessem juntos no mesmo local. Assim, esse argumento não é muito forte.

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40 Arthur W. Dück

3. DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO NO NT


A questão sobre o divórcio ensinada por Jesus é abordada em quatro
passagens dos Evangelhos. Cada autor do NT tinha um propósito com a escrita
do Evangelho, baseado em seu público-alvo, o que explica a diferença de ênfase
entre eles. Essas diferenças criam também dúvida sobre o que exatamente
Jesus ensinou sobre o assunto. Em duas passagens (possivelmente se refere
ao mesmo episódio), Jesus discute, com os mestres religiosos dos seus dias,
as razões para o divórcio (Marcos 10 e Mateus 19); nas duas outras passagens
(possivelmente se refere outra vez a um mesmo episódio), Jesus aparentemente
proíbe o divórcio de modo absoluto, para mostrar que veio para aumentar as
exigências da Lei (Lucas 16 e Mateus 5). É possível que Jesus ensinou sobre
o divórcio em ocasiões diferentes. Isso não cria problemas para Mateus, por
exemplo, que cita em duas passagens diferentes o que Jesus ensinou sobre
o assunto. Mas o que complica o entendimento sobre o que Jesus de fato se
propôs a ensinar é que as passagens de Mateus permitem o divórcio por um
motivo específico, ao passo que as de Marcos e Lucas não admitem exceção
alguma.43
As quatro referências ao divórcio nos Evangelhos estão em forma abreviada,
mas os textos de Lucas 16 e Mateus 5 estão ainda mais abreviados que os de
Marcos 10 e Mateus 19. A abreviação era comum no tempo dos apóstolos,
já que a transmissão era mais oral do que escrita — a abreviação facilitava
a compreensão.44 Parte-se do pressuposto de que as informações sociais e
culturais dos seus dias são conhecidas pelos leitores, e que, portanto, não
precisam ser explicadas. No primeiro século há uma discussão entre a escola

43
As discussões sobre essas diferenças não têm data para terminar. Segundo Keener, há algumas
maneiras de lidar com essas discrepâncias:
a. Afirmar que um dos Evangelhos simplesmente errou;
b. Afirmar que a exceção de Mateus, na verdade, dificilmente pode ser vista como exceção, e
por isso, não foi mencionada por Marcos e Lucas. Essa posição é adotada por muitas pessoas,
mesmo que não explique adequadamente porque Mateus resolveu inserir essa exceção;
c. Afirmar que Mateus está traduzindo, ou aplicando a mensagem original de Jesus para novos
contextos (1991, 111-112). Isso é feito em especial, analisando o contexto sociocultural dos
seus dias para analisar o significado das palavras e expressões dentro do contexto original.
A primeira alternativa seria muito estranha, pois admitira uma contradição aberta nas Escrituras.
A segunda não explica a discrepância entre as abordagens. A terceira parece mais coerente e será
desenvolvida ao longo do artigo.
44
Para uma discussão sobre a abreviação de princípios no mundo antigo com diversos exemplos
relacionados ao divórcio e novo casamento, veja Instone-Brewer, 2002, p. 161-167.

Revista Batista Pioneira vol. 7 n. 1 Junho/2018


Divórcio e novo casamento no NT (1) 41

de Shammai e a escola de Hillel acerca das questões relacionadas ao divórcio.


O que ambas as escolas creem não está especificado, apenas as diferenças
que existiam entre elas. Os escritos antigos normalmente não detalhavam a
exegese dos textos, já que essa era realizada nas sinagogas e era conhecida
por todos. Além disso, as expressões conhecidas de um modo geral, também
não eram citadas, como no caso dos motivos para o divórcio: “por qualquer
motivo” e “exceto por imoralidade” (Instone-Brewer, 2002, p. 165).
De modo geral, o consenso é que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser
escrito,45 e que Mateus e Lucas tiveram acesso a esse Evangelho quando
escreveram sua versão da vida e ensinamentos de Jesus. Entretanto, nos
últimos anos há um movimento tentando atestar que Mateus ocuparia esse
posto, embora a argumentação seja menos convincente. Ainda assim, a
discussão parece não terminar.46

3.1 MARCOS 10.2-12


Marcos está tratando nessa seção de seu Evangelho sobre a questão do
discipulado (8.27—10.52).47 A parte do divórcio é incluída aqui porque
trata do casamento, uma esfera vital em que os discípulos são chamados à
responsabilidade (Hurtado, 1989, p. 159). A intenção dos fariseus era colocar
Jesus à prova (10.2).48 Isso pode ser visto pelo fato de que é pouco provável
que a pergunta feita por eles viesse de qualquer judeu da época, já que essa
não era uma pergunta que um contemporâneo de Jesus faria (Hooker, 1991,
p. 235). Os judeus concordavam que o divórcio era permitido com base em
Deuteronômio 24.1-4. Segundo Instone-Brewer, os leitores do primeiro século

45
Por este motivo, será o primeiro texto a ser abordado na sequência.
46
Para uma discussão mais detalhada sobre os elementos sobre o problema sinótico, veja Instone-
Brewer, 2002, p. 171-175; Stein, 2012, p. 1050-1060; Blomberg, 2009, p. 116-125.
47
As discussões relacionadas à estrutura do texto são enormes. Osborne destaca que o cap. 10
continua o tema do discipulado, mas Jesus se volta brevemente do sofrimento e a postura de servo
para as Haustafeln (códigos domésticos) [em forma narrativa (Keener, 1993, p. 160)]: casamento
e divórcio, crianças (v. 1-16), o custo do discipulado (v. 17-31), e depois retorna para o sofrimento
e a postura de servo (v. 32-45) (Osborne, 2014, p. 170). Para mais detalhes sobre a estrutura de
Marcos, veja Green, 1990; Long, 2002, p. 5-6.
48
Alguns manuscritos não trazem o termo “fariseus” no v. 2. O termo pode ter sido acrescentado
com base na passagem paralela em Mateus 19.3, o que levaria a pergunta a ser feita “pelas pessoas”
ou, de modo mais geral, “ele foi perguntado” (Metzger, 1994, p. 88). Aparentemente a variante
textual mais curta é preferível (sem “os fariseus”), contudo, como o texto fala de colocar Jesus
à prova, provavelmente indica que as pessoas que o fizeram foram escribas e fariseus (France,
2002, p. 387, 390), mas não se pode excluir a ideia de que talvez o contexto de Marcos seja o
original e que Mateus o adaptou para seus propósitos (Hooker, 1991, p. 235).

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42 Arthur W. Dück

teriam incluído mentalmente a expressão “por qualquer motivo” na pergunta


dos fariseus a Jesus, visto que a pergunta não fazia sentido sem ela (2002, p.
135, 154).49
A questão discutida no tempo de Jesus era em que situações o divórcio
era permitido, e não se o divórcio era permitido, mesmo que uma atitude
rígida com relação ao divórcio já estava se desenvolvendo no judaísmo, o que
pode estar implícito na passagem obscura de Malaquias 2.15,1650 e em outro
documento da literatura judaica (Regra de Damasco CD 4) (Hooker, 1999,
p. 235).51 Essa também era a posição dos essênios no tempo de Jesus (Evans
2001, 81).52 Mas não podemos falar que esta nova visão era predominante
na época. A visão mais restritiva de Shammai era minoritária no primeiro
século (France, 2002, p. 387; Neufeld, 1989, p. 30). De acordo com a escola
de Shammai, “indecência grave” seria o único motivo para o divórcio (Carson,
1995, p. 411), que segundo eles seria o adultério comprovado (Bräumer, 1986,
p. 128). Hillel, por sua vez, afirmava que qualquer coisa que incomodava
ou envergonhava o marido era motivo para o divórcio, como, por exemplo,
queimar o seu pão ou outra refeição (Lane, 1974, p. 353; Keener, 1999, p. 463;
Evans, 2001, p. 83), ou, segundo o rabino Akiba, um dos alunos de Hillel,
a esposa poderia ser dispensada se o marido encontrasse outra que fosse

49
A pergunta só faria sentido se houvesse uma parcela da população judaica que não entendia
que o divórcio era permitido. No passado, se cria que a comunidade de Qumran não permitia
o divórcio, mas estudos recentes já mostram que esse não era o caso (Instone-Brewer, 2002, p.
135; cf. 2002, p. 65-68). Para uma análise mais detalhada dos textos de Qumran que tratam do
divórcio, veja Elledge, 2010; Fitzmyer, 1976.
50
A tradução desse texto de Malaquias é complexa, pois certamente o texto está corrompido (para
mais detalhes, veja Dück, 2017b, p. 162-164). Contudo, Malaquias 2.13-16 é o único texto do AT
que protestava contra se divorciar da esposa no AT. O Targum desse texto o adapta para dizer: “Se
você a odeia, divorcie-se dela”. Um rabino até afirmava que havia mérito em se divorciar de uma
esposa má (citando Pv 18.22). Se o ketubah (a multa acertada para o divórcio) fosse muito alto, o
marido era incentivado a tomar outra esposa para sujeitar a primeira esposa à angústia de ter uma
rival em casa (Garland, 2002, p. 262).
51
Baseado em Deuteronômio 24.1-4, o divórcio era permitido quando o marido encontrava
“alguma coisa vergonhosa” em sua esposa (veja Dück, 2017a, p. 36-39). Contudo, na época no NT,
as interpretações haviam se polarizado entre a escola de Shammai e a de Hillel. Assim, quando
Jesus interage com as pessoas do seu tempo, não pode levar somente em consideração o que diz
o AT, mas também como as pessoas o interpretavam. Esse constitui um dos maiores problemas
para a interpretação dos textos do NT sobre o divórcio e novo casamento. Para mais detalhes, veja
Polaski; Polaski, 2009.
52
O Pergaminho do Templo de Qumran antevê a época em que Deus renovaria o povo de Israel e
suas leis com respeito ao divórcio, de modo que este deixaria de existir. O ensino de Jesus indica
que esse tempo já chegou (Garland, 2002, p. 262).

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 43

mais bonita do que ela (apud Bräumer 1986, 129).53 Mas ambas as escolas
concordavam que a lei frequentemente permitia o divórcio ao homem, por
mais lastimável que fosse (Keener, 1999, p. 463). Embora houvesse discussão
entre os rabinos sobre os motivos do divórcio, Neufeld sustenta que o novo
casamento era tão certo que não devemos exagerar nas diferenças de opinião
entre as duas escolas de interpretação sobre quais eram motivos válidos para
o divórcio (1989, p. 31).
O grupo que se aproxima de Jesus para colocá-lo à prova pode ter ouvido
que Jesus tinha uma posição radical sobre o divórcio. Lane acredita que
é possível que os fariseus quisessem que Jesus tomasse partido com João
Batista na questão do divórcio de Herodes.54 Desta forma, poderiam acusar
Jesus e talvez até se livrar dele (Lane, 1974, p. 354),55 ou ainda ouvi-lo falar
abertamente sobre o assunto poderia afastar os simpatizantes dele e quem sabe
até levá-lo a contradizer a lei de Moisés (France, 2002, p. 390; Carson, 1995,
p. 411), abrindo uma brecha bastante larga para todo e qualquer motivo para
o divórcio (Bräumer, 1986, p. 122). Esse pode ter sido o motivo da pergunta
feita a Jesus, embora Geddert nos lembra que o texto não nos informa o real
motivo da pergunta deles (2001, p. 230).56
Na verdade, a questão do divórcio era óbvia no tempo de Jesus, e as
pessoas que enfrentavam esse tipo de separação precisavam se posicionar
adotando a escola de Shammai ou a de Hillel. Se quisessem castigar a esposa
infiel por meio do divórcio, optariam por um tribunal da escola de Shammai,
que interpretaria “alguma coisa vergonhosa” (Dt 24.1) como algo indecente/

53
No mundo greco-romano, o divórcio era permitido por uma série de motivos: roubo de
dinheiro, adultério e embriaguez, perda de beleza, discussões com a sogra e temperamento
antipático, doença e comportamento desagradável (Carter, 2000, p. 476). A abertura para aceitar
praticamente qualquer motivo para o divórcio na escola de Hillel pode ter sido influenciada pelo
convívio com outras culturas.
54
Herodes se casou com sua sobrinha Herodias, que, na época, era casada com Filipe, meio-irmão
de Antipas. Herodias se divorciou de Filipe com base na lei romana, e Herodes se divorciou de
sua esposa, filha de Aretas IV, rei da Pereia, para se casar enquanto os antigos cônjuges tanto
dele quanto dela ainda viviam, o que de acordo com a lei judaica era imoral (Osborne, 2014, p.
99-100).
55
Se eles conseguissem que Jesus tomasse partido contra o casamento de Herodes com Herodias,
poderiam acusá-lo diante do monarca, e talvez este resolvesse dar a Jesus o mesmo destino de
João Batista. Como Jesus estava na região da Pereia, sob jurisdição de Herodes, seria apropriado
provocá-lo a dizer algo contra o monarca (Lane, 1974, p. 354; Evans, 2001, p. 81-82).
56
O que precisa ficar claro para o leitor atual é que os fariseus não procuram Jesus para receber
alguma ajuda do ponto de vista teológico ou com vistas ao aconselhamento de pessoas afetadas
pelo divórcio (Maier, 1995b, p. 409).

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44 Arthur W. Dück

imoral (porneia). Se quisessem se divorciar por um motivo menos grave


ou não quisessem se expor ao processo penoso (e por vezes demorado) de
tentar provar a infidelidade da esposa, ou outros motivos que supostamente
justificariam o divórcio, buscariam um tribunal da escola de Hillel,57 que
permitia o divórcio por “qualquer motivo”. Assim, a discussão do divórcio “por
qualquer motivo” versus “em virtude de porneia” era bem conhecida nos seus
dias por pessoas que tinham uma situação dessas em sua família ou círculo de
amigos (Instone-Brewer, 2002, p. 135).58
De acordo com Davies e Allison, o que os fariseus perguntam não é “o que
diz a Lei”, mas “o que é permitido (para você)”, visto que sabiam o que dizia
a Lei e queriam que Jesus fornecesse sua interpretação de erwat dabar de
Deuteronômio 24.1 (2004, v. 3, p. 9; Instone-Brewer, 2002, p. 156). A resposta
de Jesus é dupla: em primeiro lugar, ele pergunta a eles o que Moisés ordenou,
ou seja, qual era a vontade de Deus (o que não parecia tão importante para
eles nesse momento) afirmando com isso que um casamento não pode ser
dissolvido — depois disso fala sobre a possibilidade do divórcio (Bräumer,
1986, p. 122). Jesus lhes pergunta o que Moisés ordenou (evnetei,lato).59 Ele
queria que se lembrassem de Gênesis 2.24 (“Portanto, o homem deixará seu
pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne”), ou seja, o
plano inicial de Deus — o “ideal” de Deus para as pessoas. Em outras palavras,
segundo Evans, se Deus os criou para serem “um” em vez de “dois”, o divórcio
equivale a desfazer a ordem criada por Deus — o casamento é indissolúvel
(2001, p. 84; France, 2002, p. 388).60

57
Muito embora na maioria dos casos um tribunal não era necessário para o divórcio. O certificado
de divórcio por qualquer motivo, de acordo com a escola de Hillel, bastava para que o divórcio
fosse concretizado.
58
A referência a divórcio somente em caso de porneia vem da Mishnah Gittin 9.10, ao passo que a
posição de divórcio por qualquer motivo, a visão majoritária da época, se baseia em alguns textos
como: “Se ela não obedece ao dedo e ao olho [o teu controle], separa-te dela” (Eo 25.26), ou o
comentário lacônico de Josefo: “Nessa época me divorciei de minha esposa, não gostando de seu
comportamento”. Outros motivos para o divórcio como estragar uma refeição ou encontrar uma
mulher mais bonita se encontram em Gittin 9.10 (France, 2002, p. 387-388). Convém lembrar
que Josefo era fariseu e segundo ele o divórcio era permitido por qualquer motivo (Carson, 1995,
p. 411).
59
Aos judeus, em especial aos que guardavam a Torá, apelar para os mandamentos de Moisés
significava apelar para a autoridade superior em qualquer assunto. Na Torá geralmente as ordens
são dadas pelo Senhor (Êx 4.28; 7.6,10,20; 12.28), embora em algumas situações Moisés e Arão
também o façam (Lv 9.5; Nm 34.13; Dt 27.1). Ao perguntar sobre a base das Escrituras e com
isso possivelmente que interpretação eles adotam, Jesus pode ajustar sua resposta a eles (Evans,
2001, p. 83).
60
O fato de que a divindade estava envolvida no casamento é atestada inclusive no mundo pagão,

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 45

McKnight insiste que precisamos ter em mente a [grande] história que Deus
conta (o contexto) para entender o ensino divino sobre casamento e divórcio.
Para ele, todo o amor na Bíblia é baseado no amor pactual de Deus (Gn 12;
15). O autor estrutura esse amor pactual da seguinte forma: Deus faz um pacto
para estar conosco e estar em nosso favor até que alcancemos a redenção
completa, ou seja, até que estejamos em seu reino, sejamos parecidos com
Cristo e nos tornemos o povo santo e amoroso de Deus. Esse entendimento
do amor pactual implica que o amor matrimonial reflete o amor de Deus. Em
face disso, o divórcio destrói o reflexo de Deus — ele que é completamente fiel.
Portanto, o amor matrimonial é definido pelo amor de Deus: nosso amor pelo
nosso cônjuge significa estar com ele, em favor dele até atingir o propósito de
Deus para cada um de nós (McKnight, 2013, p. 95).61
Mas os fariseus prontamente se referem a Deuteronômio 24.1-4, em que
Moisés permitiu (evpitre,pw) o divórcio com a condição de que a mulher recebesse
o certificado de divórcio o que autenticava a sua liberação do contrato de
casamento e afirmava o seu direito ao novo casamento (Lane, 1974, p. 354).62
Essa concessão foi dada especialmente para proteger a esposa,63 que dessa
forma poderia provar que realmente estava divorciada (Lane, 1974, p. 354)
e autorizar o novo casamento. Contudo, a concessão visava regulamentar o

em que Ísis afirma: “Eu uni mulher e homem” (Evans, 2001, p. 84).
61
McKnight ainda sustenta que o relacionamento entre pessoas é modelado pelo amor que existe
entre a Trindade (2013, p. 95). Em si, a proposta de McKnight é correta e tem sido adotada
largamente em diversos segmentos da vida cristã, mas ela não é muito útil do ponto de vista
prático, uma vez que temos poucas referências nas Escrituras quanto ao relacionamento entre
as pessoas da Trindade (com exceção do relacionamento do Pai com o Filho encarnado), além
de que são seres de outra dimensão. Assim, ela estabelece o princípio da união na Trindade, mas
não nos ajuda muito a entender o relacionamento matrimonial, porque entendemos a Trindade
de modo muito superficial.
62
É provável que os fariseus estejam insinuando que as Escrituras claramente permitem o
divórcio. Se Jesus, junto com os essênios e talvez João Batista, se opõe ao divórcio, com que base
ele o faz? (Evans, 2001, p. 83). De fato, Deuteronômio 24 é o único texto claro sobre o divórcio
na Torá. De modo geral, pensava-se que esse texto havia resolvido a questão do divórcio (France,
2002, p. 387). Na verdade, Deuteronômio 24 não afirma que o divórcio está certo ou errado aos
olhos de Deus, somente trata do procedimento a ser adotado se o divórcio se concretizar, visando
minimizar os efeitos dele (Geddert, 2001, p. 230). Havia ainda a inferência para o divórcio em
Êxodo 21.10,11, em que o marido tinha a obrigação de prover alimento, vestuário, abrigo e amor
conjugal para a esposa. O divórcio poderia ser concedido quando uma dessas condições era
negada. Rabinos posteriores deixavam claro que o “amor matrimonial” poderia ser rompido ao
ponto do divórcio por aversão e crueldade (cf. Ketubbot 7.2-10). Esse é o cenário com o qual Jesus
depara nesse texto (McKnight, 2013, p. 98).
63
As regulamentações visavam proteger e valorizar as pessoas menos poderosas, menos influentes
e mais vulneráveis naquela cultura (Geddert, 2001, p. 232).

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46 Arthur W. Dück

divórcio, não incentivá-lo (Evans, 2001, p. 84), diminuir o mal pela concessão
e não afirmar que era a vontade de Deus (France, 2002, p. 388). Mas não
podemos nos esquecer de que o foco de Deuteronômio 24 é a proibição do
novo casamento em um caso específico e não autorizar o divórcio. Além disso,
a resposta dos fariseus não é uma citação de Deuteronômio 24.1-4, mas um
resumo e interpretação questionável do texto: “Moisés permitiu redigir um
documento de divórcio e mandar a mulher embora” (Mc 10.4). Eles inferem
do texto que o divórcio é contemplado, uma vez que não é expressamente
proibido. O divórcio certamente não é uma ordem. Segundo France, os
interlocutores de Jesus admitem que a sanção desse texto ao divórcio é
ambígua, mas o adotam por falta de outro texto melhor para a situação (2002,
p. 391).64
Para os líderes religiosos da época, o divórcio estava se tornando uma
ordem no caso de adultério, inclusive de suspeita de adultério.65 Na verdade, o
divórcio nesses casos se tornará compulsório somente após o ano 70 d.C., mas
nessa época já se considera que esta seria a maneira correta de agir. Os líderes
defenderam, baseados na Lei, que o divórcio era compulsório em alguns casos,
para ir contra a indissolubilidade do casamento que Jesus estaria afirmando.
Mas Jesus distingue entre ordem e concessão.66 A implicação é que, mesmo
no caso de adultério, o divórcio não é compulsório (Instone-Brewer, 2002, p.
143-144).
É interessante notar a diferença entre o texto original de Gênesis 2.24
e como ele é citado por Jesus em Marcos 10.7,8. Uma vez que a poligamia
era permitida no judaísmo rabínico, mas estava caindo em desuso no séc. 1
d.C., praticamente todas as versões de Gênesis 2.24 acrescentam a palavra

64
Os fariseus que questionam Jesus não estão advogando algo inventado por eles, mas expressando
a ideia comum de seus dias. France argumenta que, quando se inicia a conversa sobre o divórcio já
admitindo que é uma possibilidade, a batalha já está perdida antes de ser iniciada, pois a questão
não é sim ou não, mas quando. Quem inicia a discussão com Gênesis 1—2 enxerga o divórcio como
um mal. Em circunstâncias pode ser o mal menor, mas continua sendo contra a vontade perfeita
de Deus (France, 2005, p. 714).
65
Se o divórcio era opcional ou compulsório em caso de “alguma coisa vergonhosa” (Dt 24),
depende da sintaxe do texto. Para uma discussão sobre isso, veja Dück, 2017a, p. 19-21. O Pastor
de Hermas 2.4.1 permite que o marido receba de volta a esposa apanhada em adultério apenas
uma única vez, se ela se arrepender (Keener, 1991, p. 156, nota 66).
66
Jesus questiona a hermenêutica dos fariseus que afirmam que se algo é “permitido” por Deus,
por conseguinte se trata da vontade dele (Evans, 2001, p. 84). Na verdade, os rabinos, bem como
os estudiosos judaicos do seu tempo, reconheciam a concessão como categoria legal estabelecida,
algo que não era o ideal, mas que precisava ser permitido porque as pessoas eram incapazes de
fazer o que era totalmente certo (Keener, 1991, p. 42).

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 47

“dois” para enfatizar essa verdade (com exceção das versões em hebraico).
Logo, é interessante comparar o texto de Gênesis 2.24 com o texto de Marcos
10.7,8, mostrando a ênfase sobre a monogamia (Instone-Brewer, 2002, p. 137;
Mueller, 2016, p. 10; Blomberg, 2014, p. 75):
“Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à
sua mulher, e eles serão uma só carne” (Gn 2.24).
“Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe (e se unirá à
sua mulher);67 e os dois serão uma só carne” (Mc 10.7,8).68
Jesus afirma que o divórcio nunca foi intenção de Deus. O divórcio pode,
em alguns casos, ser o “mal menor”, mas é sempre ruim. Jesus tenta mostrar
que a intenção de Deuteronômio 24.1 não era tornar o divórcio aceitável,
mas limitar as suas consequências (Lane, 1974, p. 355).69 Há uma diferença
entre a “vontade absoluta de Deus” e as provisões que levam em conta a
pecaminosidade do ser humano e são projetadas para limitar e controlar as
suas consequências (Cranfield 1959, 319).70 A dureza de coração71 que permitiu

67
A parte entre parêntesis foi omitida em alguns manuscritos importantes (a, B, etc.),
provavelmente porque ambas as linhas começavam com kai, o que levou o escriba a pular uma
linha. O texto não faz sentido sem essa parte e não haveria bons motivos para que ela estivesse
ausente do texto (Metzger, 1994, p. 88-89; France, 2002, p. 387).
68
A LXX faz uma tradução bem literal de Gênesis 2.24, mas substitui “eles” por “os dois. “Marcos
10.7,8 segue a LXX na íntegra, exceto pela omissão do pronome possessivo desnecessário antes
de ‘mãe’” (Blomberg, 2014, p. 75).
69
Na verdade, Deuteronômio 24.1-4 nem trata acerca da questão do divórcio (veja Dück, 2017a, p.
30-38). Contudo, os rabinos antigos interpretaram esse texto como autorização para o divórcio.
Esse texto se tornou a base para grandes discussões sobre o tema (Hurtado, 1989, p. 160).
70
Segundo Schüssler Fiorenza, a questão aqui reside no fato de que a questão legal seria
“totalmente androcêntrica” pressupondo o matrimônio patriarcal. Segundo ela, Jesus estaria se
opondo a esse modelo cultural que favorecia o homem em detrimento da mulher. Segundo ela,
a passagem a que Jesus se refere em Gênesis deveria ser traduzida assim: “as duas pessoas —
homem e mulher — se inserem em uma vida humana e em uma relação social comuns, porque
foram criadas iguais” (apud Myers, 1992, p. 321). Embora o pecado estragou a igualdade entre as
pessoas e criou distorções sociais, o texto de Marcos não favorece essa interpretação. A igualdade
proposta aparece somente na discussão sobre a iniciativa do divórcio e o casamento com alguém
que se divorciou e não em relação ao casamento propriamente dito.
71
Essa expressão lembra textos do AT (Dt 10.16; Jr 4.4; Ez 3.7). Por si só, essa expressão denota
uma repreensão mordaz, colocando Jesus no papel de profeta (Evans, 2001, p. 84). Embora não
apareça com frequência no AT, ela está relacionada a uma acusação frequente no AT, em que
o povo de Deus está endurecido contra Deus e insensível a suas exigências, um povo de “dura
cerviz”. Assim, a expressão não trata da crueldade do marido para com sua esposa, mas da
rebelião das pessoas contra a vontade de Deus para a sua vida (France 2002, 391). Alan Cole
define “dureza de coração” como a “incapacidade de compreender o propósito de Deus para o
casamento” (2015, 1453). É interessante notar que aqui Jesus afirma que a dureza dos corações
também é característica dos próprios fariseus: “por causa da dureza do vosso coração” (Mc 10.5).
Na LXX “dureza de coração (sklhrokardia) ocorre somente duas vezes, sempre se referindo a
Israel (Dt 10.16; Jr 4.4; cf. Sl 95.8 [94.8 LXX]; Ez 3.7). Ambos os textos se referem à idolatria e
Jeremias 4 se dirige contra os múltiplos adultérios de Israel. “Para Jesus, o problema por trás do
divórcio era sua adúltera idolatria contra Deus” (Watts, 2014, p. 248).

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48 Arthur W. Dück

essa situação72 é a determinação deliberada de pessoas que não querem


se conformar à vontade de Deus, no caso o cônjuge infiel que se recusa ao
arrependimento (Lane, 1974, p. 355; Instone-Brewer, 2002, p. 145-146).73
Jesus apela para a intenção original de Deus com o casamento, uma
ordenança da criação. O casamento é uma instituição que deriva a sua santidade
do fato de que por trás dela está a autoridade do próprio Deus (Cranfield,
1959, p. 321).74 Mesmo os rabinos admitiam (b. Git. 90b) que o Céu derramava
uma lágrima toda vez que um casamento acabava em divórcio (Evans, 2001,
p. 84). A decisão do divórcio é decisão humana, em contraste com a decisão
divina da união (France, 2002, p. 392). O homem não deve se separar (cwrizw,
termo usado nos papiros gregos para o divórcio) (Hooker, 1991, p. 236). Foi
Deus quem uniu, mas o compromisso foi estabelecido entre homem e mulher.
Deus abençoou o compromisso deles, mas agora os humanos quebraram
os votos do casamento. Se Deus uniu, os humanos não devem separar. Eles
podem separar, mas não devem.75 Se fazem o que não devem, aos olhos de
Deus é pecado (Instone-Brewer, 2002, p. 141).76 A posição que Jesus adota

72
Para os judeus, essa postura de Jesus é muito radical. Para muitos deles, isso pareceria uma
agressão contra a santidade e perfeição da lei do AT. Na verdade, trata-se de um ataque de Jesus
contra os homens que se divorciavam de sua esposa quando quisessem (Hurtado, 1989, p. 160).
73
Lane atesta que em Deuteronômio 24.1-4 o divórcio é tolerado, mas não autorizado nem
sancionado (1974, p. 355). Isso mostra como Deus o enxerga. Para muitos, tolerar e autorizar
é a mesma coisa. No entanto, o que Jesus está querendo dizer é que pode, mas não deve, ou
seja, deveria ser considerada a última alternativa. Lane vai adiante e cita um exemplo da atitude
calejada que talvez pudesse ser adotada no que diz respeito ao divórcio vindo de Josué ben Sira
em Eclesiástico 25.26 (c. 200 a.C.): “Se ela não vai como queres que ela vá, corta-a de ti e dá a
ela o certificado de divórcio” (literalmente “corta-a de tua carne”, um reflexo da expressão “eles
serão uma só carne” de Gn 2.24) (1974, p. 355). Os próprios rabinos distinguiam entre o que as
Escrituras ordenavam e o que permitiam. Jesus leva os fariseus a reconhecer que Moisés permitiu,
mas não ordenou o divórcio (Keener, 1993, p. 161). Jesus rejeita a visão de que o casamento é
meramente um vínculo legal entre as partes envolvidas. Antes se torna um relacionamento de
sangue com as duas pessoas unidas por Deus. Por isso, Jesus rejeita a noção de Eclesiástico de
que a mulher é considerada um membro supérfluo do corpo que facilmente pode ser descartado
(Garland, 2002, p. 263).
74
Com isso, Jesus defende que a lei é perfeita e reflexo da vontade de Deus, mas que esta foi
adaptada em virtude da pecaminosidade humana. Apelando para Gênesis, Jesus insiste que o
ideal de Deus no Éden é superior à concessão de Deus na Lei (Hurtado, 1989, p. 160), ou, em
outras palavras, “os que seguem Jesus são aqueles cujo alvo é fazer a vontade de Deus, não buscar
concessões” (Hooker, 1991, p. 234).
75
Jesus muda a ênfase que os fariseus estavam dando para a questão: “se Deus (que é santo)
uniu os dois, nenhum homem (que é adúltero e duro de coração) deve separá-los (incluindo não
apenas a questão mais imediata da formalização do divórcio, mas também a infidelidade que a
ocasionou)” (Watts, 2014, p. 248).
76
A concessão indica algo menos que o ideal. Mesmo o conceito de ser “uma só carne” aponta para
o conceito de que o casamento é indissolúvel e permanente. Não se trata de mero contrato de
conveniência mútua, mas uma condição ontológica. Não indica apenas que “uma carne” não deve

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 49

é mais radical do que as duas escolas de interpretação dominantes em sua


época.77 Jesus insiste na vontade de Deus descrita em Gênesis e não naquilo
que é permitido como concessão. Em outras palavras, Jesus muda o foco do
divórcio para o casamento, a verdadeira intenção de Deus (Geddert, 2001, p.
231).
Depois disso, Jesus entra em detalhes sobre o ensino com os seus
discípulos.78 Aquele que se divorcia e se casa com outra comete adultério
(10.11). Se a mulher se divorciar do seu marido e se casar com outro, comete
adultério (10.12). Isso parece indicar que Jesus está falando de deserção e novo
casamento (Lane, 1974, p. 358), ou seja, a pessoa se divorcia para se casar
com outro cônjuge. Era óbvio na sociedade da época que o novo casamento
seguiria o divórcio. Se deve haver alguma mudança em relação a essa postura,
é preciso que isso fique muito claro.
É interessante observar que há uma contradição entre o v. 9 (“o homem
não separe o que Deus uniu”), em que o divórcio é inconcebível, e depois os

ser separada, mas que não pode ser separada (ouvke,ti eivsi.n du,o, não são mais dois) (France, 2002,
p. 392). O divórcio é pecado porque não atinge o ideal de Deus, não corresponde à intenção de
Deus com o casamento. Pode até ser a solução menos pior em alguns casos, mas não é o que Deus
gostaria. Segundo Instone-Brewer, a quebra do relacionamento marital sempre é ocasionada pelo
pecado, mas não significa que o divórcio necessariamente é pecado — pecado é a quebra os votos
feitos pelo casal que leva ao divórcio (2011, p. 8).
77
Jesus adota uma postura muito radical em Marcos. Segundo Evans, nem Filo, nem Josefo, ou
ainda qualquer autoridade rabínica exclui o divórcio e o novo casamento como o Jesus de Marcos
o faz. Contudo, a comunidade de Qumran apresenta um paralelo à posição de Jesus. Expandindo
o texto de Deuteronômio 17.17, que fala acerca do rei: “não tomará para si muitas mulheres, para
que seu coração não se desvie”, o Rolo do Templo (11QTemple 57.17-19) ensina: “Ele não deve
tomar outra esposa adicional; não, só ela estará com ele enquanto ela viver. Se ela falecer, ele
poderia tomar para si outra esposa da casa de seu pai, isto é, de sua família” (Evans 2001, 81). Cole
sugere que a declaração mais rigorosa de Marcos, comparada à de Mateus, que permite o divórcio
por porneia, talvez se deva a uma necessidade em virtude da Roma gentílica (2015, 1453). Por
outro lado, segundo McKnight, até os mais rigorosos acreditavam que o divórcio era necessário
em algumas situações. Mesmo para os justos (citando a situação complicada entre José e Maria
com a sua gravidez, Mt 1.19) a intrusão sexual entre marido e esposa exigia o divórcio para manter
a pureza (2013, 97). Carson (com base na Mishná M Sotah 5.1) afirma que a lei judaica exigia que
a mulher adúltera fosse divorciada por seu marido, o que pode ser pressuposto nos Evangelhos,
mas especificado somente em Mateus (1995, p. 416). Contudo, Nolland entende que o material
da Mishnah não é completamente consistente quanto a esse assunto (1995, p. 23, nota 7), razão
pela qual deveríamos ter um pouco de cautela com nossas conclusões. Como isso se tornará regra
somente no final do primeiro século, não sabemos até que ponto na época de Jesus isso já era
considerado o procedimento correto.
78
Em Marcos, o local de ensino é a casa. É ali onde os discípulos pedem que Jesus explique melhor
o que não ficou claro para eles (1.29; 3.20; 7.17,24; 9.28) (Evans, 2001, p. 84-85). A explicação é
dada aos discípulos de Jesus em particular, ao contrário de Mateus, em que a implicação é que ela
é dada em público aos fariseus, e que a seção seguinte sobre o casamento opcional (Mt 19.10-12)
é passada aos discípulos em particular (Instone-Brewer, 2002, p. 148).

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50 Arthur W. Dück

v. 10-12 em que o novo casamento após o divórcio é proibido, pois leva ao


adultério. Para Jesus, o casamento é uma união indissolúvel. Assim, o marido
que se divorcia e casa com outra, comete adultério79 “contra ela”.80 Isso é sui
generis dentro do contexto judaico, onde somente a esposa poderia cometer
adultério.81 O ensinamento de que o marido pode adulterar coloca a mulher
no mesmo nível do homem.82 Mas na lei judaica, de modo geral, a esposa não

79
“Comete adultério” é a tradução de moiceuw. A palavra e seus cognatos ocorrem 27 vezes no NT
e com muita frequência na LXX e em outras literaturas, sempre com o significado de atividade
sexual ilícita com alguém casado com outra pessoa. É usado para traduzir o mandamento: “Não
adulterarás” (Mt 5.27; 19.18; Mc 10.19; Lc 18.20; Tg 2.11) e para acusar a mulher apanhada em
adultério (Jo 8.3,4). Também aparece em Romanos 7.3 que define o termo: “Assim, se ela se unir
a outro homem enquanto o marido ainda vive, será chamada adúltera” (Instone-Brewer, 2002,
p. 148-149).
80
A contribuição singular de Marcos é que ele comete adultério “contra ela” (10.11) (Stein, 1992,
p. 197). Isso vai contra o pensamento judaico da época, uma vez que o adultério era cometido
somente “contra o marido” (pela esposa e pelo amante dela). Agora, Jesus indica com isso que
marido e esposa têm direitos iguais (Hooker, 1991, p. 236; Geddert, 2001, p. 232). Ao que tudo
indica, uma nova relação seria adultério contra a esposa porque o divórcio não separa essa união
indissolúvel (France, 2002, p. 393), ou seja, ele ainda continua casado com a primeira esposa,
o que levaria o relacionamento com outra mulher a ser considerado adultério, violando a lei de
Deus (Evans, 2001, p. 85).
81
Isso ocorre porque a poligamia é permitida em certas ocasiões e somente o homem pode se
divorciar de sua esposa. Mas agora o texto admite que a mulher também pode se divorciar (10.12).
O homem só poderia ser culpado de adultério em relação ao casamento de terceiros (Nolland,
1993, p. 823). Lane sustenta que o fato de que a mulher poderia se divorciar do marido era algo
ainda recente na cultura romana (c. 50-40 a.C.). A esposa que se divorcia do marido para se casar
com outro marido é tão culpada de adultério quanto o marido que se divorcia para se recasar (1974,
p. 358). David Cohen enfatiza que questões culturais influenciaram o significado de adultério no
mundo antigo: “O ponto crucial aqui é que a honra do homem é, em grande medida, definida por
meio da castidade da mulher com quem ele está relacionado. A honra feminina consiste de modo
abrangente da pureza sexual e do comportamento que as normas sociais julgam ser necessárias
para manter essa honra aos olhos de uma comunidade vigilante. A honra masculina tem o papel
ativo de defender essa pureza. A honra do homem está, portanto, ligada à pureza sexual de sua
mãe, irmãs, esposa e filhas; dele não se exige a castidade” (apud Neyrey, 1998, p. 195). Isso ajuda
a explicar algo que na ótica da sociedade atual é visto como extremamente injusto, ou seja, leis
diferentes para homens e mulheres no que tange à sexualidade.
82
Ao citar os textos de Gênesis, Jesus apela para o pensamento judaico de que o texto mais antigo
tem mais autoridade, ou seja, o texto de Gênesis vem antes da lei de Deuteronômio, portanto, tem
autoridade maior: essa era a intenção de Deus com o casamento (Osborne, 2014, p. 171; contra
France, que argumenta que a cronologia é menos importante que o propósito pelo qual foi dado
[2005, p. 719]). O fato de Jesus citar Gênesis 1.27 e 2.24, textos pré-Queda afirmam a importância
da mulher no casamento. Gênesis 1.27 fala do homem e da mulher indicando que ambos devem
ser respeitados — na verdade, são parceiros de igual valor. Isso é reforçado quando Jesus cita
Gênesis 2.24, em que o homem deixa pai e mãe para se unir à sua esposa. Como o divórcio o
mundo antigo se tornara fácil, em especial quando a esposa vinha de um contexto pobre e caso se
divorciasse talvez só recebesse o parco dote que trouxera (isso quando não acusada de impureza),
tornava a esposa a propriedade do marido. Assim, Jesus reconhece o valor da mulher no
casamento baseado em Gênesis 2.24. Além disso, esses textos não fazem parte das leis casuísticas
do AT e sim dos princípios que devem governar todos os relacionamentos matrimoniais (veja
Dück, 2017a, p. 13-16).

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 51

poderia se divorciar do marido.83 Assim, pode ser que Marcos incluiu essa
cláusula porque está falando para uma audiência romana em que a lei permitia
que a mulher tomasse a iniciativa do divórcio, ou então, que a situação de
Herodias, que se divorciou de seu marido, poderia prover o contexto para essa
afirmação vir da boca de Jesus, ou ainda que havia a possibilidade de a mulher
judia tomar a iniciativa do divórcio por causa do contato com a cultura greco-
romana por muitos anos.84 Não podemos nos esquecer de que aqui se trata de
um ensinamento feito por Jesus em particular a seus discípulos e não para as
multidões, nem para responder à pergunta dos líderes dos judeus (Hooker,
1999, 236-237; Evans, 2001, p. 85-86).85 De qualquer forma, Jesus abre a
possibilidade para a mulher tomar a iniciativa de se divorciar do marido e

83
Embora essa fosse a regra geral, a mulher judia poderia processar seu marido por alguns
motivos e forçá-lo a lhe conceder o divórcio. Manson observa que a esposa poderia forçar seu
marido a divorciá-la, se ele fosse imoral. O mesmo autor cita a prática excepcional na comunidade
judaica de Elefantina (séc. 5 a.C.) onde as mulheres poderiam iniciar o processo de divórcio
(apud Bock, 1996, p. 1357, nota 26). Basicamente isso ocorria quando os termos do contrato de
casamento eram quebrados: as promessas feitas oralmente ou por escrito eram a base para o
divórcio (Instone-Brewer, 2002, p. 86). Alguns estudiosos sugerem que essa concessão para a
mulher seria em virtude do encontro da tradição judaica com o mundo greco-romano, em que
a mulher poderia tomar a iniciativa do divórcio (para mais informações sobre as descobertas
da Elefantina, veja Instone-Brewer, 2002, p. 75-80). Isso é possível, mas a situação de Herodes
e Herodias era contexto suficiente para defender que se trata do ensino de Jesus e não um
acréscimo de seus seguidores. Aliado a isso, o ensino foi dado somente aos discípulos e não às
multidões (Evans, 2001, p. 85-86). Contudo, há relatos de mulheres judias de classe alta que se
divorciaram de seu marido. Josefo afirma que Salomé, a esposa de Herodes, o Grande, enviou a
seu marido o certificado de divórcio e declarou que este “não estava de acordo com a lei judaica”.
Josefo comenta: “Pois é [somente] o homem que é autorizado por nós a fazer isso, e nem uma
mulher divorciada pode se casar novamente por sua própria iniciativa a não ser que seu ex-
marido concorde” (Garland, 2002, p. 263). Em outras palavras, o homem se divorcia somente de
forma voluntária (baseado em Dt 24.1 em que ele escreve o certificado de divórcio) ao passo que a
mulher pode ser divorciada contra a sua vontade (Instone-Brewer, 2002, p. 86). Isso ilustra que
os líderes judeus tinham a tendência de avaliar o adultério não relacionado à infidelidade para
com o cônjuge, mas em função de tomar a esposa de outro, ao passo que Jesus vai insistir sobre a
união do casal baseado na ordem divina (Carson, 1995, p. 412).
84
A cultura greco-romana permitia que tanto o marido quanto a esposa tomassem a iniciativa
do divórcio. Alguns estudiosos acham que o motivo para Marcos fechar a porta para qualquer
divórcio (sem a cláusula de exceção de Mateus) se deve à aplicação desse ensino de Jesus ao
contexto pagão (Hurtado, 1989, p. 159).
85
É interessante observar que Jesus, mesmo admitindo que Deuteronômio 24 faz parte da Torá, faz
referência ao texto de Gênesis 2 como base para o seu ensino. Isso equivale a dizer que o texto de
Deuteronômio 24 era válido (faz parte da Palavra de Deus), e poderia ser aplicado a determinadas
situações, agora não deveria mais ser usado para defender os divórcios (Dunn, 1988, p. 115). Por
outro lado, Lane sustenta que Jesus apela aqui para o princípio geral do casamento estabelecido
em Gênesis e não faz aqui reflexão alguma sobre a situação criada por um adultério (Lane, 1974,
p. 357, nota 17), uma vez que no plano ideal o adultério não vai ocorrer. Keener também acredita
que se trata de uma regra geral que não trata das exceções como adultério (abordado por Mateus)
(1993, p. 161).

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52 Arthur W. Dück

logo em seguida a fecha, dizendo que isso não deve ocorrer.


Geddert sustenta que é necessário descobrir que pergunta Jesus está
respondendo aqui. Ele sugere duas possibilidades:
a. Quando o divórcio e/ou novo casamento é errado?
b. Continua sendo adultério se eu me divorcio de minha esposa atual e
depois me caso com a pessoa com a qual quero ir para a cama?
Se Jesus estivesse respondendo à primeira pergunta, a resposta seria:
sempre. Mas isso vai contra o que vemos no restante das Escrituras e de Marcos
10.1-9, em que Jesus não está preocupado com as regras sobre o divórcio. Mas,
se Jesus responde à segunda pergunta, sua resposta é: sim. O foco de Jesus
é a fidelidade marital e não achar subterfúgios legais para justificar o pecado.
Essa proposta se encaixa melhor no contexto e deixa a primeira pergunta sem
resposta (Geddert, 2001, p. 231).86
Jesus está apontando para o ideal que deve reger o casamento e a família:
uma união permanente sem divórcio e sem novo casamento. É possível que
com isso Jesus esteja apontando para o ideal escatológico, ou seja, que a nova
criação já iniciou (Hooker, 1991, p. 236). Temos que admitir que o ideal nem
sempre acontece — separações são uma realidade, ou seja, vivemos a tensão
entre o “já e o ainda não”. Evitar o novo casamento resolve o problema? Evitaria
o mal maior? Jesus presume aqui que o novo casamento segue o divórcio. O
adultério aqui se refere a divórcio-novo casamento como uma coisa só.87 Não
faria sentido falar em adultério sem o novo casamento (France, 2002, p. 393).
Se a pessoa não se casa novamente, não vai cometer adultério. O que Jesus
ensina é que o casamento não deve ser dissolvido; não deve haver um novo
casamento, ou seja, nem divórcio nem novo casamento.

86
Hurtado tem opinião parecida. Ele sustenta que Marcos tem em mente aqui é o marido que se
divorcia da esposa para se casar com outra (ou vice-versa), como no caso de Herodes e Herodias
(1989, p. 167). Em outras palavras, parece que Jesus está dizendo que se divorciar para contrair
um novo casamento com alguém que acha mais atraente não é menos adultério do que se os
procedimentos legais para o divórcio não tivessem sido seguidos (Geddert, 2001, p. 241). Neufeld
questiona se esse é o caso, ou se Jesus está chamando todos aqueles que contraíram um novo
casamento de adúlteros. Com isso, ele estaria invalidando todos os casamentos que ocorreram
entre o povo judeu após o divórcio, casamentos permitidos no AT. Certamente, Jesus é bastante
radical em diversas situações — mas, é o que ocorre aqui? (1989, p. 32). A pergunta certamente é
válida, mas é pouco provável que Jesus tivesse isso em mente.
87
Contra Hooker, que vê aqui uma contradição entre o v. 9, em que o divórcio em si é inconcebível,
e os v. 10-12, em que o novo casamento depois do divórcio é proibido porque leva ao adultério
(1991, p. 236). Parece que essa contradição é apenas aparente, uma vez que o novo casamento era
a consequência inevitável para o divórcio no tempo de Jesus e o divórcio e o novo casamento são
considerados uma coisa só nessa passagem.

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 53

Marcos não trata da aplicação desse ensinamento na vida dos seguidores


de Jesus. O ensino de Jesus está claro e deve ser seguido. Mas o que fazer
com aqueles que por uma razão ou outra não conseguiram se conformar aos
princípios de Deus em sua vida prática? As respostas a esse tipo de perguntas
devem ser buscadas nas Escrituras de uma forma mais ampla e não utilizar o
texto de Marcos 10 para resolver todos os dilemas.

3.2 LUCAS 16.18


O capítulo 16 de Lucas trata do perigo das riquezas. O versículo 16 está
incluído na seção em que Jesus responde à zombaria dos fariseus (16.14-18).
Esses versículos estão inseridos entre duas passagens que tratam de riquezas e
posses (16.1-13,19-31). O texto é introduzido pela zombaria dos fariseus, uma
vez que amavam o dinheiro: “Os fariseus, que eram gananciosos, ouviam todas
essas coisas e zombavam dele” (16.14).88 Os fariseus zombam (evkmukthri,zw)
de Jesus, ou seja, “levantam o nariz” diante dele. Rejeitam completamente
os ensinos de Jesus; não ouvem o que ensina — só há lugar para desprezo.
Mas na sequência Jesus não toca no assunto do dinheiro, levando diversos
estudiosos a afirmar que esse texto não pertence ao argumento literário do
capítulo (Bock, 1994b, p. 267-268). Bock propõe que 16.14-18 esteja conectado
com os valores e a autoridade de Jesus. Colocar-se debaixo da autoridade de
Jesus muda os valores dos discípulos: leva-os a abdicar de lealdades divididas
(16.10-13); ter suas idolatrias reveladas, uma vez que Deus as odeia (v. 14,15) e
elevar os padrões de obediência para refletir a total integridade (v. 18) (1994b,
p. 267), ou seja, os padrões de Deus são diferentes dos padrões da sociedade
(16.15). Segundo Marshall, esse dito de Jesus aparece aqui em Lucas para
ilustrar que a lei continua em vigor, mas de uma forma nova dada por Jesus,
na verdade ela é intensificada pelo ensino do Mestre (1978, p. 613).89 Maier
sustenta que Jesus pode ter escolhido falar aqui em Lucas sobre o adultério

88
Mesmo que Lucas 16.1 afirma que Jesus contou a parábola do mordomo infiel a seus discípulos,
ao que tudo indica os fariseus também a ouviram, pois reagem com zombaria em virtude de sua
ganância (Evans, 1996, p. 277). A zombaria deles provavelmente se deve a sua visão de que os
bens materiais eram sua recompensa justa por guardar fielmente a Lei, ou seja, pode ser que
pensavam que a pobreza de Jesus e de seus discípulos provava que não eram honrados da mesma
forma que eles próprios (Geldenhuys, 1951, p. 420).
89
Green sustenta que “a confirmação da autoridade da Lei por parte de Jesus é ressalvada por sua
insistência (implícita) de que a Lei não fala por si mesma e é suscetível à apropriação indevida”
(apud Pao; Schnabel, 2014, p. 431), ou seja, as pessoas podem pegar a lei de Deus e interpretá-la
de modo errado e alegar que a Palavra de Deus diz isso.

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54 Arthur W. Dück

porque era um problema comum dos seus dias. Segundo ele, o tratado Sotá
do Talmude babilônico enfatiza que o adultério aumentou substancialmente
nesse período (Maier, 1996, p. 317). Apesar das tentativas importantes e
válidas de encontrar um fio condutor para Lucas 16 como um todo, este parece
difícil de ser encontrado. O capítulo conecta com diversos temas de Lucas,
mas é difícil estabelecer um tema unificador que conecte os v. 14-18 com o
restante do capítulo (Marshall, 1978, p. 614; Maier, 1996, p. 314).90
Uma comparação entre os textos ajuda a identificar as similaridades e
diferenças entre os textos sobre o divórcio registrados nos Evangelhos:
“Todo aquele que se divorcia de sua mulher e casa com
outra comete adultério; e quem casa com a divorciada
também comete adultério” (Lc 16.18);
“... todo aquele que se divorciar de sua mulher [...]
torna-a adúltera; e quem se casa com a divorciada comete
adultério” (Mt 5.31,32);
“Aquele que se divorcia de sua mulher e casa com outra
comete adultério contra ela” (Mc 10.11);
“... aquele que se divorciar de sua mulher [...] e se casar
com outra, comete adultério” (Mt 19.9).
Tanto a passagem de Lucas 16 quanto a de Mateus 5 apresentam a versão
mais abreviada do ensino de Jesus sobre o divórcio. O texto de Marcos 10 e
Mateus 19 expandem um pouco mais o ensino. Mateus 5 afirma que o homem
que se divorciar de sua esposa torna-a adúltera, ou seja, leva a mulher a
cometer adultério (pressupõe que ela vai se casar com outro marido) e em
Lucas o homem que se divorciar de sua esposa e se casar novamente é culpado
de adultério. Essa última parte é muito parecida com Marcos 10 e Mateus 19,
mesmo nas palavras usadas (Marshall, 1978, p. 631). No entanto, na lei judaica
o homem que se divorciava de sua esposa e casava com outra não era culpado
de qualquer ofensa (Marshall, 1978, p. 631). Contudo, Jesus afirma que isso é
adultério. Parece que o primeiro casamento é visto como permanente.
Marcos usa ho apolyon, “aquele que se divorciar”, mas Lucas acrescenta
a palavra favorita dele pas, “todo aquele” (Fitzmyer, 1985, p. 1120). Isso

90
As discussões sobre como estruturar esse texto são imensas e controversas. Fitzmyer, por
exemplo, entende que se trata de diversos ditos de Jesus que Lucas editou, sem necessariamente
uma conexão clara entre eles. Segundo o mesmo autor, o v. 18 é um tema totalmente à parte
do que vem antes (1985, p. 1119). É justamente a sequência dos ditos que desafiam a lógica do
intérprete. Marshall sugere que a sequência pode ter sua origem em “Q” (1978, p. 631). Seja
como for, parece ilusório tentar encontrar uma linha mestra que conecte o ensinamento sobre o
divórcio com o restante de Lucas 16.

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 55

poderia ser atribuído a sua redação. Em Lucas, o divórcio não é permitido em


circunstância alguma.91 Lucas ainda acrescenta que o homem, que se casar com
a mulher divorciada, comete adultério. Parece indicar que a “parte inocente”
não poderia contrair novo casamento sem cometer adultério, sugerindo que
o relacionamento com o primeiro cônjuge não foi quebrado. É difícil saber a
ênfase que esta passagem acrescenta ao ensino total de Jesus em Lucas.
Ao que tudo indica, temos aqui a proibição do novo casamento. Mas não
sabemos se Lucas está tratando de todos os casos ou se ele se refere à situação
em que o marido termina o seu casamento para poder se casar com outra
pessoa (fazer uma troca legal de cônjuge).92 Se alguém encontra um artifício
para terminar o seu casamento de forma legal para não ser taxado de adúltero,
isso aos olhos de Jesus é adultério (Geddert, 2004, p. 137).93 Aparentemente
esse é o caso aqui, ou seja, a pessoa busca o divórcio para contrair um novo
casamento, o que é descrito como adultério, pois representa a infidelidade
para com o voto inicial, já que vive com o segundo marido enquanto a primeiro
ainda está vivo (Marshall, 1978, p. 631).
Jesus aqui cobre todas as frontes: quem se divorcia e se casa novamente
comente adultério; quem se casa novamente com alguém divorciado comete
adultério, não importa se essa terceira pessoa era divorciada (Bock, 1996,
p. 1357). Assim, Jesus vai além do que era permitido no judaísmo e no AT
(Fitzmyer, 1985, p. 1121; Marshall, 1978, p. 631). Desse modo, Jesus reduz
claramente o casamento à monogamia e se posiciona contra a poligamia
sucessiva, que era permitida por causa do divórcio. O motivo para isso não
é descrito. Isaksson propõe que Jesus apresenta o casamento como união
indissolúvel — isso estaria em continuidade com a postura do AT para com
os sacerdotes que serviam no templo em Jerusalém: “Não se casarão com

91
É interessante observar que Jesus, cujo ensino de modo geral está mais em linha com a escola
de Hillel [não tão legalista], no assunto do divórcio adota a posição mais estrita da escola de
Shammai (Geldenhuys, 1951, p. 423).
92
Descamps observa que entre os pais da igreja gregos a conexão de ações com a conjunção kai [e]
frequentemente era entendida em seu sentido final, ou seja, denotando propósito: “Todo aquele
que se divorcia de sua mulher para se casar com outra” (Lc 16.18) (apud Nolland, 1993, p. 821-
822). Assim, parece que o divórcio tem a intenção real de contrair novo matrimônio. Isso leva
Nolland a argumentar: em virtude de que o foco do texto é sobre o novo casamento, a forma mais
natural de entendê-lo seria “se divorcia para”, ou seja, o divórcio é planejado visando uma nova
relação (Idem).
93
Isso está em linha com as seis antíteses de Jesus em Mateus 5, em que a motivação é o elemento
central. Não se trata só do ato consumado (assassinato, adultério, etc.), mas da intenção de
cometê-lo.

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56 Arthur W. Dück

prostituta nem com mulher desonrada, nem com mulher repudiada por seu
marido, pois o sacerdote é consagrado ao seu Deus” (Lv 21.7; cf. Ez 44.22).
Assim, continua Isaksson, como os sacerdotes do AT, assim os discípulos de
Jesus são escolhidos e consagrados para o serviço de Deus (apud Fitzmyer,
1985, p. 1121).
É importante notar, no entanto, que o contexto aqui indica que Jesus está
mostrando que seu ensino é imbuído de autoridade de uma forma mais ampla
e não se restringe ao divórcio. Alguns tomam esse único versículo de Lucas
16.18 para proibir todo e qualquer divórcio nas Escrituras. Contudo, o que
Jesus está fazendo aqui é delinear o princípio geral que deve orientar seus
seguidores — ele não entra em detalhes para cada caso específico (Bock, 1996,
p. 1357).
Rashdall traz uma precaução interessante quando se trata desse assunto:
A dificuldade que experimentamos em determinar o
que nosso Senhor de fato ensinou sobre esse assunto
[divórcio] ilustra de modo impressionante a absoluta
impossibilidade de basear regras detalhadas para orientar
a vida contemporânea sobre ditos isolados de Cristo.
Que o ideal é o casamento monogâmico permanente é
sem dúvida o princípio que Jesus ensinou; e esse ideal
continua válido diante de todo o ensinamento ético de
nosso tempo. Como esse ideal poderá ser implementado
no detalhe, qual o mal menor quando o ideal não foi
alcançado e se tornou impossível, é questão que precisa
ser estabelecida pela consciência moral, pela experiência
e pelo juízo prático do presente” (apud Geldenhuys, 1951,
p. 423).94
A postura de Rashdall certamente alerta contra ler o texto fora do contexto
e ainda chama a atenção para a dificuldade de aplicar o texto para novos
contextos, que às vezes são tão diferentes do ambiente que deu origem ao dito
de Jesus.

CONCLUSÃO
É precipitado tirar conclusões a respeito de ensino de Jesus sobre divórcio e

94
Keener sugere à semelhança da maioria das afirmações gerais (e.g., Pv 18.22 com Pv 11.22;
12.4; 21.9; ou Pv 10.15; 13.8; 14.20 com 10.2; 11.4; ou 14.24; 16.6 com 15.16; 16.8; 30.7-9; ou 11.8;
12.13,21 com princípios como 2Tm 3.12), esta não exclui exceções (para a parte inocente que não
tinha voz ativa na respectiva questão, cf. Mt 5.32; 19.9; 1Co 7.15). Jesus quer proteger a parte
inocente que foi traída (Keener, 1993, p. 235).

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Divórcio e novo casamento no NT (1) 57

novo casamento sem analisar os textos de Mateus 5.31,32 e 19.1-12 que tratam
em especial da clausula de exceção (esses textos serão abordados em outro
artigo). Contudo, fica claro que Jesus insiste que o divórcio e novo casamento
não são da vontade de Deus. Não são o que Deus planejou para os seres
humanos. O contato que o povo de Israel teve com outras nações influenciou
como interpretaram os ensinos do AT sobre o divórcio. Dentro desse contexto,
Jesus precisa responder às perguntas sobre o assunto. Jesus insiste no ideal
de Deus para seus seguidores. Aqueles que o seguem não devem se contentar
com menos do que Deus desejou para eles e os capacita a viver. Contudo, é
necessário olhar o que os textos de Mateus e de Paulo querem ensinar sobre o
assunto antes de tirar mais conclusões.

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