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RESUMO
O entendimento de divórcio e novo casamento sofreu alterações no período
intertestamentário. A interação mais intensa com outros povos a partir do
Exílio colocou o povo de Deus em contato com outras crenças e práticas que
os influenciaram. As escolas de Hillel e Shammai interpretam Deuteronômio
24.1-4 de modos distintos. No tempo de Jesus é possível se divorciar por
praticamente qualquer motivo em Israel. As pessoas se divorciam para se
casar novamente. Logo, os questionamentos feitos a Jesus sobre o assunto
ocorrem nesse contexto. Jesus responde apontando para o plano inicial de
Deus. Divórcio e novo casamento não faziam parte da boa criação de Deus.
Pessoas que querem seguir Jesus adotam as normas do Reino para sua vida
1
O autor é Bacharel em Teologia pelo Instituto e Seminário Bíblico Irmãos Menonitas (ISBIM),
Mestrado em divindade pelo Trinity Evangelical Divinity School (Deerfield, Illinois, EUA) e
PhD em Estudos Interculturais pelo Trinity International University (Deerfield, Illinois, EUA).
É professor da Faculdade Fidelis e professor convidado do Seminário Servo de Cristo. E-mail:
[email protected]
ABSTRACT
The way people understood divorce and remarriage underwent changes
during the intertestamental period. From the Exile onward God’s people had
greater interaction with other peoples and their beliefs and practices that
influenced them. The schools of Hillel and Shammai interpreted Deuteronomy
24.1-4 in distinct ways. In NT times it was possible to divorce your spouse
for practically any reason. People would divorce to remarry. So, when Jesus
is asked about this topic, the questions are made within this context. Jesus
answers pointing at God’s initial plan. Divorce and remarriage were not part
of God’s good creation. Those who want to follow Jesus live by the rules of
the Kingdom individually and collectively. Mark and Luke do not talk about
the problems involved attempting to implement the rules of the Kingdom
concerning divorce and remarriage within the church.
Keywords: Divorce and remarriage (NT). Mark 10.2-12. Luke 16.18.
Intertestamental period.
INTRODUÇÃO
Que divórcio e novo casamento é um tema complicado não é novidade.
Mas todos têm no mínimo uma noção do que a Bíblia ensina a respeito —
já leram os textos correspondentes do NT, ouviram outros ensinar sobre o
assunto, ou ainda desabafos contundentes de que a igreja atual descartou os
ensinos claros de Jesus a respeito. Os textos parecem tão claros, já que se
parte do princípio de que as palavras e expressões a respeito do assunto são
inequívocas. Agora é só se submeter aos ensinos da Bíblia ... o que alguns,
principalmente motivados pelo espírito da época, não querem fazer...
Mas poucos se preocupam em entender os antecedentes histórico-culturais
do AT e o contexto judaico do primeiro século d.C. por trás desses ensinos. Ou
seja, lemos as passagens correspondentes como se Jesus ou Paulo estivesse
falando para o nosso contexto atual e respondendo as nossas perguntas. No
entanto, como Craig Keener nos lembra: “Se de fato respeitamos a autoridade
do nosso Senhor, precisamos estar dispostos a nos esforçar para entender
o que Jesus realmente estava dizendo a seus ouvintes originais, e não nos
contentar com o que achamos que Jesus estava dizendo” (1991, p. 12), com
base em uma cosmovisão muito distante da cultura do primeiro século.
Influenciados pelas ciências exatas, cremos que uma exegese dos textos
com uma metodologia adequada levará todos os estudiosos à mesma conclusão
sobre o ensino dos textos bíblicos e a relação entre eles. Contudo, segundo
Collins, a exegese não é uma ciência exata; ela está ligada à interpretação
dos dados, algo que envolve sensibilidade e julgamento. Mesmo estudiosos
olhando os textos com uma perspectiva parecida chegam a conclusões
diferentes. Utilizar a mesma metodologia não traz necessariamente os mesmos
resultados (apud Heth, 1995, p. 68).2
Mudanças culturais forçam a igreja a rever sua posição sobre divórcio e novo
casamento.3 Textos bíblicos que pareciam tão claros passam a ser analisados
de outro ângulo. Isso se deve a um relaxamento do compromisso com as
Escrituras motivado por uma cultura atual supostamente mais “anticristã”?4
Ou uma releitura poderia nos levar para mais perto das Escrituras e nos
distanciar um pouco da influência cultural de épocas passadas sobre a Bíblia?5
2
Boa parte da igreja evangélica brasileira (como também ocorre em diversas partes do mundo)
ainda sustenta uma defesa acrítica do Iluminismo — equipara a revelação bíblica com os
princípios absolutos da razão defendidos por essa escola de pensamento. A dificuldade não está
em enxergar a Bíblia como revelação absoluta de Deus, mas a minha (ou da igreja, denominação,
etc.) interpretação da Bíblia como essa revelação absoluta, o que cria grandes dificuldades, uma
vez que esquece que como criaturas nossa percepção é falha e nosso entendimento limitado, algo
que ficou ainda mais acentuado depois da Queda. Para uma abordagem desafiadora, mas que nos
ajuda a adotar uma hermenêutica mais saudável, veja Grenz; Olson, 2006, p. 97-128.
3
Veja, por exemplo, a revisão que ocorreu com a posição da Confissão de Westminster sobre
divórcio e novo casamento (Jones, 1990).
4
Segundo o sociólogo Richard Udry, o casamento transformou-se em fonte de satisfação
emocional. Esse aspecto se tornou tão importante que poucas pessoas são capazes de suportar
um relacionamento que não cumpra essas expectativas (apud Rowatt, 1977, p. 51). Em outras
palavras, as pessoas estão à busca de realização em todos os aspectos no casamento. Como muitos
casamentos não satisfazem as expectativas geradas pela cultura ao nosso redor, estes terminam
em divórcio. Isso leva o teólogo Klyne Snodgrass a afirmar que “até que a morte os separe” foi
substituído por “enquanto eu estiver realizado”, ou seja, estamos confinados a uma sociedade em
que os relacionamentos que consideramos tediosos ou que não satisfazem mais são descartados
com tanta facilidade quanto roupa fora de moda (2016, p. 1).
5
Nosso repúdio ao divórcio e ao novo casamento no passado nos levou a odiar esse pecado,
mas também as pessoas que se divorciaram e/ou contraíram um novo casamento sem ouvir
suas histórias, sem saber o que motivou tal situação, etc. O pecado era tão evidente que nada
justificaria... Mas foi assim que Jesus agiu com pessoas em situação parecida?
Dentro desse contexto, Blomberg no adverte que pensar de modo lúcido sobre
o que a Bíblia ensina sobre o divórcio parece ser tão raro quanto casamentos
cristãos saudáveis (1990, p. 161).
Tentando pensar de modo lúcido sobre este tema, e com uma boa dose
de humildade, este artigo tentará trazer um pouco de luz sobre o assunto,
tentando refletir o que as Escrituras ensinam acerca de divórcio e novo
casamento levando a sério os antecedentes histórico-culturais do NT. O artigo
certamente não responderá todas as nossas perguntas, mas tentará fornecer
um fundamento sobre o qual é possível tentar discernir as implicações para
este assunto nos dias atuais.
6
Muitos casamentos são menos que ideais. Mesmo os “heróis” do AT são descritos com vida
familiar muito aquém do ideal (e.g., Abraão, Isaque, Jacó, Gideão, Davi, só para citar alguns). É
marcante que as Escrituras não apresentam um modelo de “pai” que pareça digno de ser imitado
(exceto talvez o pai do filho pródigo, uma alusão a Deus).
7
A cultura antiga exigia a fidelidade unicamente das mulheres, ou seja, havia um padrão diferente
para homens e mulheres. Essa parece ter sido a realidade também em Israel. A célebre frase de
Demóstenes se refere à cultura greco-romana, mas, segundo Neyrey, também se aplicava ao Israel
polígamo: “Temos amantes (evtairaj) para o prazer; concubinas (pallakaj) para nos proporcionar
cuidados diários e esposas (gunaikaj) para nos dar filhos legítimos e para que sejam guardiãs fiéis
de nossa casa” (apud Neyrey 1998, 196).
8
Uma inscrição funerária do final do primeiro século afirma: “São incomuns os casamentos que
duram tanto a ponto de serem terminados pela morte e que não acabem por causa do divórcio;
pois foi nosso destino feliz que este se prolongou por 41 anos sem separação”. Além disso, há
a afirmação famosa de Sêneca de que há mulheres que não contam os anos pelos magistrados
eleitos, mas por maridos (Instone-Brewer, 2002, p. 191, nota 3).
9
Veja também Keener, 2000b, p. 685; Garland, 2002, p. 263.
1.2 ADULTÉRIO
Diversas fontes judaicas condenavam de forma veemente o adultério. As
obras más eram sintetizadas especialmente pelo adultério. Mas a maioria dos
gregos e romanos também condenava o adultério por ser um insulto muito
grave contra a moralidade do marido da mulher adúltera. No contexto do
Mediterrâneo, a esposa era considerada propriedade exclusiva do marido,
no que diz respeito à sua sexualidade. Era considerado roubo qualquer outro
homem usar essa propriedade (Keener, 2000a, p. 7).
Mesmo para reis o adultério era visto como vergonhoso. A maioria dos
filósofos condenava o adultério, mesmo que não tentasse impedi-lo, nem
10
Keener sustenta que, na época de Jesus, a escola predominante era a de Shammai, ao passo a
escola de Hillel se torna a regra mais para o final do primeiro século (1991, p. 39). Apesar disso,
Keener, admite que, sem dúvida, um marido poderia se divorciar de sua esposa sem os motivos
mais estritos elaborados por Shammai; os fariseus não controlavam como as pessoas praticavam
o divórcio e os adeptos de Shammai não consideravam inválidos os divórcios autorizados pela
escola de Hillel (Ibidem, p. 39). Assim, é possível que, na mente do povo, o ponto de vista da
escola de Shammai estivesse certo, mas na prática a sociedade era regida pelos ensinos da escola
de Hillel. Para mais detalhes sobre os motivos do divórcio nessa época, veja Strack; Billerbeck,
1982, p. 315-318. Para mais detalhes, veja Keener, 1991, p. 38-40.
punir quem o praticava. Ainda assim, o adultério parece ter sido uma prática
comum nesse tempo. Alguns autores sustentam que o adultério caracterizava
a maioria das mulheres — a castidade havia abandonado a terra. O filósofo
grego Bias defendeu que quem se casasse com uma mulher bonita teria de
compartilhá-la. Sêneca, enfatizando o mesmo ponto, afirma que aqueles que
não praticam o adultério chamam a atenção; que o adultério se tornou o meio
preferido de contratar o noivado; que é difícil encontrar uma mulher tão feia
a ponto que tenha que se contentar com somente dois parceiros por dia e que
o único valor que o marido tem para a maioria das mulheres é provocar os
companheiros ilícitos dela (Ibidem, p. 7-8).
As mulheres deviam evitar o contato com homens, a não ser o seu
marido. Até hoje, em alguns locais da Europa Oriental, se um homem ficar
sozinho com uma mulher por mais de vinte minutos, se presume que tiveram
relações sexuais. Josefo pensava que as mulheres tinham tendência para a
infidelidade. Essa também parece ter sido a opinião generalizada do mundo
do Mediterrâneo, mesmo que as mulheres virtuosas resistiam bravamente
ao adultério. Os homens judeus deveriam evitar a companhia das mulheres,
já que isso poderia levá-los ao desejo, ou à aparência do mal (Ibidem, p. 8).
Isso pode ser visto na surpresa dos discípulos de encontrar Jesus conversando
com uma mulher quando retornaram da cidade para onde haviam ido para
comprar comida (Jo 4.8,27).
Isso mostra que a sexualidade em Israel estava sendo influenciada a adotar
padrões diferentes daqueles que haviam sido expostos na Torá e na tradição
que dela decorreu.
Entretanto, o divórcio por outros motivos não era penalizado (Ibidem, p. 72-
73).
O casamento ocorria por consentimento mútuo. Quando esse consentimento
acabava, o casamento terminava. A implicação era que qualquer um dos
cônjuges poderia dizer que o relacionamento havia terminado, e nem precisava
de uma declaração oficial para isso. Assim, o divórcio era relativamente
comum, atingindo talvez a cifra de 30% dos casamentos no tempo do NT
(Ibidem, p. 73-74).
Em Israel havia cada vez mais igualdade entre homens e mulheres dentro
das prescrições da lei de Moisés. Somente o homem poderia dar o certificado
de divórcio à sua esposa, mas as cortes rabínicas gradualmente adquiriram
mais poder para forçar o marido a fornecer o certificado, caso a esposa assim
o desejasse (Ibidem, p. 80).
As leis sobre casamento e divórcio foram modificadas com o passar do
tempo. Inicialmente o noivo pagava um mohar [preço da noiva] de duzentos
siclos sagrados por uma virgem e cem siclos por uma viúva ou mulher
divorciada. Esse dinheiro era dado ao pai da noiva por sua filha. A primeira
mudança foi que esse dinheiro passou a ser dado para a noiva, mas ficava na
casa do pai dela como uma poupança, caso ela fosse divorciada ou se tornasse
viúva. Isso implicava um custo alto para se casar, mas nenhum custo para
se divorciar, o que levava as pessoas a certa relutância para se casar e uma
grande disposição para se divorciar. Outra mudança permitia que a noiva
trocasse o dinheiro por bens (potes de metal e ornamentos) que eram usados
pelo casal. Assim, o casamento continuava dispendioso, mas o divórcio tiraria
esses bens da casa do marido, tornando o divórcio caro para ele. A próxima
mudança permitia que o dinheiro fosse investido nos negócios da família. Isso
implicava que não havia restrição sobre o que poderia ser comprado com esse
dinheiro. Se ocorresse o divórcio ou a viuvez, a mulher receberia uma soma
em dinheiro, independentemente se os negócios da família iam bem ou mal. O
marido se tornava responsável por pagar essa soma em dinheiro, se necessário
tirando de sua própria propriedade. A última mudança permitia que o mohar
fosse pago somente por promessa. O resultado é que não havia entrega de
dinheiro, já que este se tornava parte da propriedade do noivo. Mas o marido
ficava responsável por retorná-lo, caso ocorresse o divórcio ou ela enviuvasse.
As duas últimas mudanças tornavam o casamento mais barato, mas o divórcio
muito caro, em especial se o dote dado pelo pai da noiva, aliado ao preço pago
ao pai da noiva, fosse bem alto.11 Isso também incentivou o pai da noiva a
conceder um dote generoso, pois isso daria segurança para o casal ou para a
noiva, caso ela fosse abandonada pelo marido (Ibidem, p. 82-84).
As mudanças introduzidas nas leis relativas ao casamento e divórcio
concederam maiores direitos à mulher, mas trouxeram também maior
instabilidade para o casamento. O divórcio se tornou mais comum.
Tanto homens quanto mulheres poderiam pedir o divórcio. As mudanças
introduzidas tentaram desencorajar o divórcio dando maior segurança para
as mulheres (Ibidem, p. 84).
11
Comumente o pai da noiva unia o mohar (preço da noiva, pago pelo noivo ao pai dela) com o
dote (presente que o pai da noiva dava para sua filha para iniciar a vida conjugal) e entregava para
o noivo. Essa soma total passou a ser chamada de ketubah (Instone-Brewer, 2002, p. 83). Esse
dinheiro era administrado pelo marido, mas continuava sendo propriedade da esposa.
12
Para mais detalhes, veja Strack; Billerbeck, 1982, p. 318-320; 1983, p. 23-24.
Para as regras sobre o dote elaboradas por Westbrook baseadas no Código de Hamurabi, ver
13
14
“Mas, se tomar outra mulher, não poderá diminuir os mantimentos, as roupas nem os direitos
conjugais da primeira. Caso ele não cumpra essas três obrigações, ela será libertada de graça” (Êx
21.10,11).
15
A poligamia soa estranha para pessoas do mundo ocidental da atualidade, mas está presente
no AT. Diversos personagens do AT tinham várias mulheres. De forma geral, parece que estes
adotaram os padrões da sociedade em que viviam. R. de Vaux afirma que a linhagem de Sete
adotou a monogamia, ao passo que a poligamia parece caracterizar a linhagem de Caim. Muito
mais tarde, o Talmude, de forma teórica, estabeleceu o limite de quatro mulheres para o homem
comum, e dezoito para o rei (de Vaux, 2003, p. 46-48). A lei de Moisés permitia a poligamia (Êx
21.10,11; Dt 21.15-17), mas havia indicações de que os reis não deveriam ter muitas mulheres (Dt
17.14-20). Mas a poligamia não recebe aprovação inequívoca; diversas passagens insistem no ideal
da monogamia (cf. Is 50.1; Jr 2.2; Ez 16.8; Pv 12.4; 18.22; 19.14; 31.10-31; Sl 128.3). Não temos
relatos de que a poligamia era comum em Israel, a não ser depois das guerras, quando a população
masculina estava reduzida. Os governantes que tinham diversas mulheres possivelmente
copiaram o modelo dos líderes de outras nações. A poligamia ocorria, mas as pessoas estavam
cada vez mais insatisfeitas com esse quadro. A comunidade de Qumran se opunha à poligamia,
mas não ao divórcio e ao novo casamento (Instone-Brewer, 2002, p. 59-72). Contra Carson, que
afirma, baseado em CD 4.21 e especialmente 11QTemple 57.17-19, que o divórcio em Qumran era
visto como ilegítimo em todas as circunstâncias (1995, p. 411). A mesma opinião é defendida por
Neusner e Green, baseado em CD 13.17; 4QDb18.2.5 (2002, p. 172). Contudo, essa posição tem
sido refutada por diversos estudiosos (veja Instone-Brewer, 2002, p. 72).
16
Davidson argumenta que “direitos conjugais” não tem suporte linguístico suficiente e que
deveríamos traduzir este termo com “habitação, permanência”. Sendo assim, as necessidades
básicas da moça escrava seriam alimento, vestuário e acomodação. Se Davidson estiver certo, este
texto nem trata da poligamia (Davidson, 2007, p. 193). Mas a postura de Davidson não tem muito
apoio dos estudiosos. Veja as possibilidades de tradução para esse texto que já foram sugeridas
em Instone-Brewer, 2002, p. 100; Dück, 2017b, p. 182-183.
17
Por exemplo, o líder de uma caravana de camelos provavelmente ficava fora de casa por trinta
dias, um marinheiro por seis meses, e um líder de uma caravana de jumentos, uma semana.
Por outro lado, Instone-Brewer nos alerta de que essas prescrições poderiam se tratar de regras
elaboradas contra os saduceus, que eram os mais ricos, e a intenção era puni-los com isso. Em
contraste, os rabinos tinham autorização para trinta dias de abstinência em virtude de sua
19
Para o divórcio, a escola de Hillel exigia somente que o marido devolvesse o dote para a esposa.
Qualquer remuneração que a esposa tivesse recebido depois do casamento, ou quaisquer produtos
que ela mesma tivesse produzido ou confeccionado, todos pertenciam ao marido (Instone-Brewer,
2002, p. 154).
20
Tanto Shammai, quanto Hillel eram rabinos com aproximadamente vinte anos a mais que Jesus
(Blomberg, 2014, p. 29).
de obter. Era bem mais fácil pegar alguém da escola de Hillel, que
aceitaria o divórcio sem qualquer evidência. A exceção seria quando
o marido quisesse provar o adultério ou outra forma de negligência
da esposa para evitar a devolução do ketubah. Uma corte da escola
de Hillel desprezaria essa postura como avareza. Não era interesse
da sociedade que uma mulher fosse divorciada sem ter meios para
se sustentar. Somente temos acesso a um único relato de uma
pessoa que tentou provar o adultério da esposa diante da corte e
não foi bem-sucedido (o que, aliás, era praticamente impossível em
virtude das provas exigidas). O divórcio por “qualquer motivo” era
o único praticado nessa época, bem como considerado o mais justo,
uma vez que aparecer no tribunal para ser julgado era considerado
vergonhoso para uma mulher. O divórcio “sem qualquer motivo”
não exigia testemunhas, tribunal, etc.,21 e foi o modelo escolhido por
José quando quis deixar Maria, por ser um homem justo (Mt 1.19). O
divórcio normal, para os rabinos, envolvia um tribunal que poderia
ser privado, caso fosse da escola de Hillel. Era um tribunal que possuía
três rabinos ou escribas locais, ou em alguns casos, sacerdotes.
Estes julgavam todas as coisas, a não ser as que envolviam a pena
capital. Normalmente o marido escolhia os juízes, exceto quando a
esposa chamava o tribunal, alegando que tinha motivos para pedir o
divórcio. Normalmente um divórcio da escola de Hillel não envolvia
o tribunal, a não ser que houvesse questões relacionadas ao ketubah
a serem discutidas, mas era bem mais seguro usar um tribunal,
pois, caso os acertos financeiros não fossem corretos, isso poderia
acarretar um processo muito oneroso, ou então, se os procedimentos
relacionados ao divórcio tivessem sido feitos de modo errôneo, o novo
casamento da esposa implicaria adultério. Havia dois documentos
que eram muito importantes no divórcio: o certificado de divórcio,
que precisava ser escrito pelo marido, ou por alguém apontado por
21
Parece que no judaísmo rabínico o divórcio era concretizado por um certificado de divórcio que
o marido entregava para a esposa. Para que a transação fosse considerava válida, tanto marido
quanto esposa deveriam estar de sã consciência e precisavam agir de mútuo consentimento,
ou seja, de modo espontâneo. Quando o livre consentimento não estava presente, um tribunal
rabínico poderia recomendar ou compelir um cônjuge diante do pedido do outro (Neusner;
Green, 2002, p. 172). Mas cada vez mais o divórcio era facilitado, de modo que no tempo de
Jesus, ao que tudo indica, o divórcio ocorria até mesmo sem consentimento e sem um tribunal.
22
Caso o marido não escreva pessoalmente o certificado, precisa encarregar alguém de modo
específico a fazê-lo e exigia-se para isso a assinatura do postulante. Além disso, o certificado
era específico para determinada esposa e não algo geral que poderia ser aplicado de forma geral
(Strack; Billerbeck, 1982, p. 304).
23
Baseado na Mishnah Gittin 9, escrito em torno do ano 200 d.C., mas que se baseava em tradições
orais ao menos desde o tempo de Esdras, Neufeld sustenta que um rabino poderia aceitar um
certificado de divórcio que excluísse determinado homem de se casar com sua ex-esposa (que não
estivesse excluído já pela lei mosaica [e.g., seu irmão, seu pai, etc.]). Contudo, os sábios, que se
presume tinham a autoridade sobre o assunto, afirmavam que isso invalidada o certificado. Ao
que parece, o direito ao novo casamento era tomado por certo — interferir nesse direito tornava o
certificado inválido (Neufeld, 1989, p. 26-27).
24O
rabino Akiba interpretava a ordem de Levítico 19.29 (“Não desonrarás tua filha, fazendo-a
prostituir-se”) aplicando-se àquele que posterga o casamento de uma filha que já passou pela
puberdade. Segundo um escrito rabínico (Lm Rab. 1.2), os meninos também devem se casar aos
doze anos de idade (Instone-Brewer, 2002, p. 118).
entanto, se o seu pai tivesse morrido e o casamento tivesse sido arranjado pela
mãe ou pelos irmãos, ela poderia recusar seu marido assim que se tornasse
adulta. Uma mulher adulta não poderia ser forçada a se casar contra a sua
vontade, mas a maioria se tornava noiva muito antes de ter a própria escolha.
Nesse caso, uma viúva ou mulher divorciada estava livre para se casar com
quem quisesse, como consta nos certificados de divórcio. Na verdade, essa
liberdade não era absoluta, porque havia algumas restrições: não poderia se
casar com seu amante ou a pessoa com quem se suspeitasse que ela tivesse
adulterado; não poderia se casar com o ex-marido, caso tivesse se casado
com outro depois que se separou dele (ou este tivesse morrido); nem com um
sacerdote; somente poderia se casar com um judeu, por causa da regra acerca
dos casamentos mistos (Ibidem, p. 118-121).
Não havia estigma em se casar com uma viúva ou uma mulher divorciada,
a não ser que ela tivesse sido divorciada por adultério. O preço de uma viúva
ou divorciada era a metade de uma virgem, e como se supunha que houvesse
menos interesse num casamento com uma pessoa neste estado, a cerimônia
era realizada na quinta-feira, para permitir ao menos um fim de semana longo
para o novo casal, antes de voltar ao trabalho. Uma mulher com um ketubah
alto talvez quisesse permanecer solteira, para ter mais liberdade. Todo o
salário de uma mulher casada era controlado pelo marido, e se esperava dela
que estivesse sempre disposta para o trabalho doméstico. No entanto, uma
mulher solteira tinha direitos muito parecidos com os direitos dos homens,
podendo possuir propriedade, etc. Enquanto ela estivesse nos anos férteis,
porém, era incentivada a se casar novamente (Ibidem, p. 123-125).
25
O significado dessa expressão hebraica é difícil de determinar, tendo em vista que ocorre
somente mais uma vez em Deuteronômio 23.15, em que significa literalmente “nudez de alguma
coisa”. Assim, indica que a expressão não se refere unicamente a algo de ordem sexual, pois
neste caso sugere que era necessário fazer latrinas fora do acampamento para que as fezes não
ficassem jogadas no arraial. Contudo, em Deuteronômio 24.1 denota algo que parece dissolver
o elo matrimonial, embora o texto não indica claramente do que se trata (veja a discussão mais
detalhada em Dück, 2017a, p. 34-39). Mesmo a LXX, que traduz erwat dabar com avschnon
pragma, não especifica do que se trata. Talvez indique o motivo legal para o divórcio, que no
relato de Susana [livro apócrifo] se refere ao adultério. O dicionário BAGD indica que se trata de
mostrar as partes privadas do corpo, ou seja, essas partes do corpo eram expostas fora da união
matrimonial, dando a entender que se tratava de algum pecado na área sexual. Por outro lado,
na Vulgata, Jerônimo indica que não se trata de adultério, mas impureza cúltica (isso poderia ter
dado margem à interpretação que “alguma coisa vergonhosa” se refere a casamentos incestuosos
dos gentios). Na literatura rabínica, a interpretação dessa expressão hebraica deu margem às
interpretações de Hillel e Shammai. Isso denota que a expressão era ambígua e permitia diversas
interpretações, com tendência para uma transgressão de ordem sexual como motivo para o
divórcio (Foster, 2004, p. 110-112).
26
Há discussões sobre as diferenças entre moicheia e porneia:
a. Por vezes, podem ser usados como sinônimos, como em Eclesiástico 23.23, em que as duas
palavras aparecem lado a lado: evn porneia evmoiceuqh (“ela cometeu adultério por meio de um
ato adúltero”) (o mesmo ocorre em Os 1.2; 2.4; Jr 3.1,8,9 LXX);
b. Parece que porneia é usado diversas vezes para atos sexuais ilícitos realizados por mulheres,
ao passo que moicheia é utilizado para os homens (isso se encaixaria com o uso em Mateus
19);
c. Ao que tudo indica, o termo mais geral porneia pode incluir pecados sexuais ocorridos
Mateus (5.32 e 19.9) usam o termo porneia e este não está restringido por
outros elementos não podemos limitá-lo a incesto, infidelidade sexual,
etc.27 Refere-se a uma ação sexual ilícita. A não ser que fosse especificada de
forma diferente, as pessoas do tempo de Mateus entenderiam essa palavra
significando imoralidade sexual, ou seja, qualquer atividade sexual proibida
no AT. Alguns alegam que não poderia significar adultério, já que este era
punido com a morte no AT. Mas não se sabe se alguém era executado por este
crime no tempo do NT. Ao que tudo indica, havia também outras maneiras de
lidar com essa transgressão da lei nessa época (Stein, 1992, p. 195).
O motivo mais provável para a utilização da palavra porneia nesses textos
se baseia no fato de que seria a melhor tradução para a expressão hebraica
erwat dabar (alguma coisa vergonhosa), de Deuteronômio 24.1.28 Isso incluía
qualquer imoralidade sexual, sem determinar que isso implicava adultério
(como afirmava a escola de Shammai) ou uma conduta sexual imprópria de
maneira mais generalizada (Instone-Brewer, 2002, p. 158-159).
O fato de que Mateus usou o termo porneia em vez de moicheia pode
indicar que ele quisesse afirmar que o pecado sexual dentro do casamento
não se restringe ao ato sexual de uma esposa com outro homem. Como
descreveríamos a sua conduta, se ela habitualmente buscasse outro homem,
mas ele se recusa a corresponder às suas iniciativas? Talvez ela não fosse
culpada legalmente de adultério, mas sua ação constituía imoralidade sexual
num sentido mais amplo (Keener, 1991, p. 32). Segundo Janzen, Mateus usa
porneia em vez de moicheia para não restringir o significado ao adultério com
uma pessoa casada, mas para incluir o relacionamento sexual com alguém que
não é seu cônjuge também durante o noivado. Assim, a exceção permitida por
Jesus seria o equivalente a divórcio “com justa causa” (2000, p. 79-80).
É possível que os cristãos da igreja primitiva entendessem essa palavra
durante o noivado, ao passo que moicheia se refere a pecados ocorridos depois do casamento
(isso se encaixaria bem com o contexto de Mateus, especialmente à luz das ações de José [Mt
1.18-25]) (Pao, 2014, p. 70-71).
27
Alguns autores como Bonsirven, Fitzmyer, Wall, argumentam que porneia se refira a casamentos
ilícitos, às vezes ligados ao incesto. Embora porneia possa incluir essas práticas, não se restringe a
elas. Para uma análise dos argumentos, veja Instone-Brewer, 2002, p. 157-158; Janzen, 2000, p.
69-70. Para uma discussão do equivalente hebraico das palavras, veja Adams, 2012, p. 99.
28
O termo porneia não é tirado da LXX de Deuteronômio 24. Ali se utiliza avschmon pragma (algo
vergonhoso/nu) e não se refere sempre à vergonha sexual. A LXX é mais literal nesse texto, pois
erwah significa “nudez” (Instone-Brewer, 2002, p. 158). Para mais detalhes sobre que aspectos da
alusão de Jesus a Deuteronomio 24.1-4 vêm da LXX, veja Blomberg, 2014, p. 29-30.
29
Por outro lado, uma vez que Mateus enfatiza o perdão de forma continuada para os arrependidos
(Mt 18.21-35), pode ser que ele tenha em mente aqui uma conduta errada persistente e não apenas
um único ato (Keener, 1991, p. 32).
30
Veja a discussão em Leineweber, 2008.
31
Argumenta-se, com base em 1Coríntios 5.1, acerca de um caso na igreja de Corinto em que
um homem tem “relações sexuais com a mulher de seu pai”. Contudo, conforme Carson, não há
indicação de que se trata de um casamento incestuoso, mas de um relacionamento incestuoso.
Seria muito questionável qualquer judeu considerar esse relacionamento um casamento. Paulo
teria dito ao casal para cessar esse relacionamento e não que se divorciassem. Além disso, no
capítulo seguinte Paulo usa o termo porneia para se referir a prostituição (1Co 6.13,16) (1995, p.
414).
32
Davies e Allison listam pontos que poderiam ser usados para defender o incesto:
a. Esse significado é claramente atestado em 1Coríntios 5.1;
b. Moiceuw e moicaomai são palavras usadas por Mateus para “cometer adultério” (5.27,28,32;
19.9,18) e em 15.19 moiceia e porneia são claramente dois pecados diferentes. Assim, não é
provável que porneia significa adultério;
c. Em Atos 15.20,29; 21.25, o Concílio de Jerusalém declara que os gentios devem abster-se
“da carne de animais sacrificados aos ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e da
imoralidade sexual [porneia]”. Diversos estudiosos entendem que essas coisas proscritas
vêm da lei de santidade (Lv 17—18), que estabelece as leis não apenas para os israelitas, mas
seria interpretar porneia como relações sexuais antes do casamento, mas esta
é bem pouco provável, pois tornaria essa ação pior que o adultério (Davies;
Allison, 2004, v. 1, p. 529).
A proposta de Jones parece esclarecer a abrangência de porneia. Segundo
ele, porneia é o termo geral para relacionamento sexual imoral ou ilícito. O
significado específico precisa ser indicado pelo contexto: se inclui o pagamento
de despesas, trata-se de prostituição; se envolve parentes próximos, é incesto;
se envolve pessoas do mesmo sexo, homossexualismo; se envolve um casal
não casado, é impureza; e se contemplar uma pessoa casada se envolvendo
com outra não casada, é adultério (1990, p. 31).33 Isso ajuda a ilustrar a gama
também para “o estrangeiro que vive entre vós”. Nesse caso, porneia em Atos precisaria se
referir a relacionamento sexual com um parente próximo (cf. Lv 18.6-18);
d. Se a igreja de Mateus fosse composta de judeus e gentios, é provável que o evangelista
encontrasse entre eles pessoas cujo matrimônio violava as leis de incesto de Levítico. Desse
modo, a exceção de Mateus 5.31,32 poderia ser uma resposta a essa situação, ou seja, o
casamento deles era inválido (2004, v. 1, p. 529-530).
Apesar desses argumentos valiosos, os mesmos autores apresentam contra-argumentos para
mostrar o motivo pelo qual porneia deva ser visto como adultério:
a. Não há prova patrística de equacionar porneia com incesto;
b. O termo porneia não aparece m Levítico 17—18 e não é certo que o assim chamado “decreto
apostólico” [At 15] se refira ao código de santidade;
c. Logou porneiaj parece relacionado ao erwat dabar (Dt 24.1) que os adeptos de Shammai,
em oposição aos adeptos de Hillel (a linha majoritária dos judeus), que interpretavam
como debar erwá, ou seja, imoralidade da parte da mulher no casamento. A sequência das
palavras logou porneiaj não reflete o AT nem a posição de Hillel, mas a interpretação dada
por Shammai, que permitia o novo casamento em caso de um divórcio legal [veja tb. Carson
1995, 411]. Embora o novo casamento depois do divórcio seja questionável, uma reafirmação
da posição de Shammai poderia ser vista como importante para Mateus, em face do declínio
dessa posição em Israel;
d. Há muitas referências a porneia com o sentido de adultério;
e. É possível argumentar que o termo geral porneia - e não o termo mais específico moiceia -
aparece como a cláusula de exceção, pois se baseia em Deuteronômio 24.1, em que o
significado é geral e não específico. Além disso, segundo Bauer, a raiz moic- costuma ser usada
para homens e a raiz porn- para mulheres;
f. A passagem de Mateus 5.31,32 não contradiz necessariamente Marcos 10.9,10 e Lucas
16.18, uma vez que a proibição de Jesus do divórcio talvez tenha tomado por certo que uma
irregularidade sexual anularia o casamento (cf. Dt 22.13-30; Jr 3.8), ou talvez Mateus tenha
pensado dessa forma.
Como José quis dar a Maria o certificado de divórcio já que suspeitava de infidelidade da parte
dela, seria problemático não adicionar a cláusula de exceção, visto que o ‘pai’ de Jesus seria
visto como não agindo conforme a lei do divórcio. Assim, Mateus 5.32 e 19.9 podem ter sido
influenciados pelo desejo de tirar qualquer questionamento sobre a coerência das ações de um
homem justo e as palavras de Jesus (Davies; Allison, 2004, v. 1, p. 530-531; veja tb. Guelich, 1982,
p. 204; Stott, 1971, p. 170; Hagner, 1993, p. 124).
33
Para uma clas ocorrências do termo porneia e seus cognatos no NT divididos por categoria, veja
Jensen, 1978, p. 180-181; Leineweber, 2008, p. 14.
2.2 DIVÓRCIO E NOVO CASAMENTO ERAM VISTOS COMO UMA COISA SÓ?
Os textos bíblicos sobre o divórcio mostram que é possível se divorciar e não
se casar novamente. Logo, não eram vistos como uma coisa só. Mas no tempo
de Jesus era tido por certo que a pessoa que se divorciava automaticamente
tinha o direito ao novo casamento. A parte essencial do certificado de divórcio
entre os judeus consistia nas palavras: “Você está livre para se casar com
qualquer homem”. Esse seria o entendimento normal de Mateus 5.32, em que
o texto afirma que o homem que se divorcia faz de sua esposa uma adúltera,
ou seja, ela se casa de novo e por meio desse novo relacionamento comete o
adultério. O certificado tomava por certo que a mulher se casaria novamente.
Mesmo que o novo casamento não fosse uma parte necessária do divórcio,
o direito ao novo casamento era parte integrante dele. Jesus poderia ter
ensinado que o divórcio excluía a possibilidade do novo casamento, mas não o
fez. Ou, se o excluiu, não o fez de maneira clara, a ponto de mudar o conceito
que as pessoas tinham na sua época. Dessa forma, quando o NT menciona
o divórcio, devemos ter em mente que isso implicava o direito (mas não a
necessidade) ao novo casamento (Stein, 1992, p. 195-196).
Segundo Bräumer, o certificado de divórcio tinha algumas características
que o levariam se ser considerado válido:
a. Ele poderia ser escrito por qualquer pessoa, inclusive pela esposa;35
34
Contudo, Jensen reage contra a proposta de Malina (1972, p. 17), de que o uso de porneia no NT
não conota o relacionamento heterossexual antes do noivado de uma natureza não cúltica ou não
comercial (Jensen, 1978).
35
Veja Strack; Billerbeck, 1982, p. 304. Mas Deuteronômio 24.1 parece afirmar que, ao menos
em certo período da história, somente o marido poderia tomar a iniciativa do divórcio. Essa
também parece ser a postura de Mateus, mas Marcos permite que a mulher tome a iniciativa —
essa diferença possivelmente ocorre por causa dos leitores a quem a carta é endereçada. Por outro
lado, McKnight menciona textos descobertos em Wadi Muraba‘at, datados logo depois do período
do NT, que atestam que a mulher também poderia se divorciar de seu marido (2013, p. 98). Para
mais detalhes sobre a discussão da iniciativa da mulher no divórcio, veja Brooten, 1983; Janzen,
2000, p. 74, nota 24. Davies e Allison também mencionam que excepcionalmente as mulheres
podiam processar o marido para obter o divórcio (2004, v. 1, p. 527, nota 29). Ilan menciona
que talvez a mulher tivesse mais liberdade para iniciar o divórcio do que se imagina, citando a
comunidade de Elefantina, no Egito, e visto que praticamente tudo o que temos a respeito das
tradições legais judaicas procedem de fontes rabínicas e farisaicas (1996, p. 201).
36
Mas, para regulamentar um pouco essa prática de se divorciar entregando o certificado de
divórcio, a Gittin, um estudo na Mishnah trata das questões legais do certificado de divórcio.
Ela detalha os procedimentos na escolha das testemunhas, o conteúdo do certificado, como este
deve ser entregue (e.g., o marido não deve colocar o certificado nas mãos da esposa enquanto ela
dorme) e o que fazer se o marido quiser voltar atrás em sua decisão (Garland, 2002, p. 263; veja
Strack; Billerbeck, 1982, p. 306-310 para mais detalhes). A Gittin 2, 3 também especifica com
que material o certificado de divórcio poderia ser escrito (e.g., tinta, etc.) e com o que não deveria
ser escrito (e.g., suco de frutas, etc.). Também detalha sobre que material poderia ser escrito
(uma folha de oliveira, etc.) e sobre o que não poderia ser escrito (e.g., alimentos, etc.) (Strack;
Billerbeck, 1982, p. 303-304). Para mais questões legais a respeito do certificado de divórcio, veja
Ibidem, p. 304-306.
37
A Mishnah Gittin 9.3 traz um texto levemente diferente do certificado de divórcio:
O texto do certificado de divórcio: “Eis que você tem permissão [está livre] para qualquer homem.”
R. Judá afirma: “Que isso seja da minha parte o seu certificado de divórcio, carta de dispensa, e
ato de liberação, que você pode se casar com quem quiser”.
O texto do certificado de emancipação: “Eis que, você é uma menina livre, você pertence a si
mesma”. Veja tb. Instone-Brewer, 2002, p. 119-120 para o texto em hebraico (a versão mais longa)
e sua versão em aramaico (a versão mais curta). A Encyclopedia Judaica apresenta outro modelo
parecido (apud Adams, 2012, p. 64-65). Outro modelo ainda pode ser encontrado em Duty, 1978,
p. 31. Todos os modelos são basicamente iguais, ressaltando a permissão para o novo casamento.
entre as duas escolas rabínicas” (Marshall 1989, 673-674; Bräumer 1986, 122).
As diferentes escolas rabínicas discutiam a respeito do cumprimento literal da
lei, em contraste com a possibilidade de guardar a lei [ideal X real]. De acordo
com A. Schlatter, a lei não poderia ser tão difícil a ponto de que somente
uns poucos pudessem cumpri-la (apud Bräumer 1986, 122). Isso ainda não
queria dizer que Deus se agradava do divórcio. O divórcio foi permitido no
AT por causa da dureza do coração humano. Normalmente, entre os judeus,
era permitido que o homem se divorciasse de sua esposa. A mulher não tinha
esse direito, mas entre os romanos essa possibilidade era real. Um casamento
romano poderia ser terminado com mútuo consentimento, ou então quando
uma das partes declarava que o casamento havia terminado (Keener 1991, 51),
ou seja, por praticamente qualquer motivo. Por outro lado, quando ocorria
o adultério a lei romana exigia o divórcio, e esta também era a prática em
Israel neste tempo (era tomado por certo que o marido mandaria a esposa
embora em caso de adultério) (Keener 1991, 51; 1993, 59; Atkinson 1990, v.
1, p. 484).38 Rabinos tardios afirmavam que o divórcio era exigido em caso de
adultério, porque este gerava um estado de impureza que legalmente dissolvia
o casamento (Wilkins 2002, 119; Bock 2006, 126; Blomberg 2014, 29). Como
os relatos indicam que logo depois do tempo de Jesus essa era a prática em
Israel, Davies e Allison questionam se no tempo de Jesus o divórcio motivado
pela imoralidade já não era considerado inquestionavelmente certo, ou seja,
que na mente da comunidade judaica já durante o tempo de Jesus o divórcio
por imoralidade era imperativo, de modo que a cláusula de exceção seria uma
concessão em virtude disso (2004, v. 3, p. 16).
38
Para mais detalhes, veja Keener, 2000a, p. 6-7.
39
Muito embora para os judeus e expressão “se tornam uma só carne” indique que um vai fazer
parte da família do outro, não se restringindo à união sexual (Hamer, 2015, p. 41).
40
Este ponto é controvertido, já que se parte do pressuposto que o entendimento das pessoas
sobre o que constitui aliança permanece constante ao longo das Escrituras (é inquebrável) e que
contrato é aquilo que entendemos hoje sobre o conceito como aplicado em nossa sociedade, ou
seja, pode ser quebrado sem muitas dificuldades. Mas isso seria ler o nosso entendimento para
dentro da Bíblia e não analisar como o casamento era visto no período em questão. Segundo
Hugenberger, o significado usual de aliança no AT é de “um relacionamento eleito em contraste
com o natural, um relacionamento de obrigação estabelecido debaixo de sanção divina” (apud
Hamer, 2015, p. 20). Veja Instone-Brewer, 2002, p. 15-19 para as diferenças entre contrato e
aliança no mundo antigo.
41
Veja também Stott 1993, 79.
implica incesto;
d. O relacionamento sexual é a forma mais profunda de “dar-se”
ao próximo. Isso cria uma união que não pode ser quebrada.
Ninguém pode voltar atrás no que já deu para o seu parceiro,
desta forma o casamento não pode ser dissolvido.
2. Argumentos que favorecem (abrem a possibilidade para) a dissolução
do casamento (Feinberg; Feinberg, 1993, p. 304):
a. Gênesis 2.24 e Mateus 19.6 falam do ideal de Deus para o
casamento. Os textos afirmam que o ser humano não deve
quebrar o que Deus estabeleceu, mas não dizem que isso não pode
acontecer. Mesmo que Deus não gostaria que isso acontecesse,
isso ainda não é prova de que não vá acontecer:
b. A morte de um dos parceiros de fato quebra a união. Se a união
não pode ser quebrada, ela teria que continuar na eternidade.42
A Bíblia ensina que viúvas/viúvos podem se casar novamente
(Rm 7.1-3; 1Co 7.39). Se a união não fosse quebrada pela morte, a
Bíblia estaria aprovando a poligamia e a poliandria;
c. Se a cláusula de exceção de Mateus (e talvez de 1Coríntios) prevê
um novo casamento para a parte inocente, isso implica que
existem situações em que o casamento é dissolvido. Parece que
“imoralidade sexual” dissolve o casamento, o que implica em
possibilidade de novo casamento (Feinberg; Feinberg, 1993, p.
343).
Com base nos textos e argumentos acima, creio que devemos concordar
com John Murray, que afirma que o casamento era “original e idealmente
indissolúvel” (apud Stott, 1993, p. 72). A Queda modificou diversos elementos,
levando a um estado menos que ideal em diversos aspectos da nossa vida, ou
seja, o casamento não deveria ser dissolvido, mas na prática muitas vezes não
escapa desse flagelo.
42
Nem tudo que existe sobre a terra vai continuar da mesma forma na eternidade, pois isso
implicaria que teríamos a poligamia no mundo além, já que pessoas cujos cônjuges faleceram e
se casaram de novo forçosamente teriam mais de um cônjuge na eternidade, supondo que todo
estivessem juntos no mesmo local. Assim, esse argumento não é muito forte.
43
As discussões sobre essas diferenças não têm data para terminar. Segundo Keener, há algumas
maneiras de lidar com essas discrepâncias:
a. Afirmar que um dos Evangelhos simplesmente errou;
b. Afirmar que a exceção de Mateus, na verdade, dificilmente pode ser vista como exceção, e
por isso, não foi mencionada por Marcos e Lucas. Essa posição é adotada por muitas pessoas,
mesmo que não explique adequadamente porque Mateus resolveu inserir essa exceção;
c. Afirmar que Mateus está traduzindo, ou aplicando a mensagem original de Jesus para novos
contextos (1991, 111-112). Isso é feito em especial, analisando o contexto sociocultural dos
seus dias para analisar o significado das palavras e expressões dentro do contexto original.
A primeira alternativa seria muito estranha, pois admitira uma contradição aberta nas Escrituras.
A segunda não explica a discrepância entre as abordagens. A terceira parece mais coerente e será
desenvolvida ao longo do artigo.
44
Para uma discussão sobre a abreviação de princípios no mundo antigo com diversos exemplos
relacionados ao divórcio e novo casamento, veja Instone-Brewer, 2002, p. 161-167.
45
Por este motivo, será o primeiro texto a ser abordado na sequência.
46
Para uma discussão mais detalhada sobre os elementos sobre o problema sinótico, veja Instone-
Brewer, 2002, p. 171-175; Stein, 2012, p. 1050-1060; Blomberg, 2009, p. 116-125.
47
As discussões relacionadas à estrutura do texto são enormes. Osborne destaca que o cap. 10
continua o tema do discipulado, mas Jesus se volta brevemente do sofrimento e a postura de servo
para as Haustafeln (códigos domésticos) [em forma narrativa (Keener, 1993, p. 160)]: casamento
e divórcio, crianças (v. 1-16), o custo do discipulado (v. 17-31), e depois retorna para o sofrimento
e a postura de servo (v. 32-45) (Osborne, 2014, p. 170). Para mais detalhes sobre a estrutura de
Marcos, veja Green, 1990; Long, 2002, p. 5-6.
48
Alguns manuscritos não trazem o termo “fariseus” no v. 2. O termo pode ter sido acrescentado
com base na passagem paralela em Mateus 19.3, o que levaria a pergunta a ser feita “pelas pessoas”
ou, de modo mais geral, “ele foi perguntado” (Metzger, 1994, p. 88). Aparentemente a variante
textual mais curta é preferível (sem “os fariseus”), contudo, como o texto fala de colocar Jesus
à prova, provavelmente indica que as pessoas que o fizeram foram escribas e fariseus (France,
2002, p. 387, 390), mas não se pode excluir a ideia de que talvez o contexto de Marcos seja o
original e que Mateus o adaptou para seus propósitos (Hooker, 1991, p. 235).
49
A pergunta só faria sentido se houvesse uma parcela da população judaica que não entendia
que o divórcio era permitido. No passado, se cria que a comunidade de Qumran não permitia
o divórcio, mas estudos recentes já mostram que esse não era o caso (Instone-Brewer, 2002, p.
135; cf. 2002, p. 65-68). Para uma análise mais detalhada dos textos de Qumran que tratam do
divórcio, veja Elledge, 2010; Fitzmyer, 1976.
50
A tradução desse texto de Malaquias é complexa, pois certamente o texto está corrompido (para
mais detalhes, veja Dück, 2017b, p. 162-164). Contudo, Malaquias 2.13-16 é o único texto do AT
que protestava contra se divorciar da esposa no AT. O Targum desse texto o adapta para dizer: “Se
você a odeia, divorcie-se dela”. Um rabino até afirmava que havia mérito em se divorciar de uma
esposa má (citando Pv 18.22). Se o ketubah (a multa acertada para o divórcio) fosse muito alto, o
marido era incentivado a tomar outra esposa para sujeitar a primeira esposa à angústia de ter uma
rival em casa (Garland, 2002, p. 262).
51
Baseado em Deuteronômio 24.1-4, o divórcio era permitido quando o marido encontrava
“alguma coisa vergonhosa” em sua esposa (veja Dück, 2017a, p. 36-39). Contudo, na época no NT,
as interpretações haviam se polarizado entre a escola de Shammai e a de Hillel. Assim, quando
Jesus interage com as pessoas do seu tempo, não pode levar somente em consideração o que diz
o AT, mas também como as pessoas o interpretavam. Esse constitui um dos maiores problemas
para a interpretação dos textos do NT sobre o divórcio e novo casamento. Para mais detalhes, veja
Polaski; Polaski, 2009.
52
O Pergaminho do Templo de Qumran antevê a época em que Deus renovaria o povo de Israel e
suas leis com respeito ao divórcio, de modo que este deixaria de existir. O ensino de Jesus indica
que esse tempo já chegou (Garland, 2002, p. 262).
mais bonita do que ela (apud Bräumer 1986, 129).53 Mas ambas as escolas
concordavam que a lei frequentemente permitia o divórcio ao homem, por
mais lastimável que fosse (Keener, 1999, p. 463). Embora houvesse discussão
entre os rabinos sobre os motivos do divórcio, Neufeld sustenta que o novo
casamento era tão certo que não devemos exagerar nas diferenças de opinião
entre as duas escolas de interpretação sobre quais eram motivos válidos para
o divórcio (1989, p. 31).
O grupo que se aproxima de Jesus para colocá-lo à prova pode ter ouvido
que Jesus tinha uma posição radical sobre o divórcio. Lane acredita que
é possível que os fariseus quisessem que Jesus tomasse partido com João
Batista na questão do divórcio de Herodes.54 Desta forma, poderiam acusar
Jesus e talvez até se livrar dele (Lane, 1974, p. 354),55 ou ainda ouvi-lo falar
abertamente sobre o assunto poderia afastar os simpatizantes dele e quem sabe
até levá-lo a contradizer a lei de Moisés (France, 2002, p. 390; Carson, 1995,
p. 411), abrindo uma brecha bastante larga para todo e qualquer motivo para
o divórcio (Bräumer, 1986, p. 122). Esse pode ter sido o motivo da pergunta
feita a Jesus, embora Geddert nos lembra que o texto não nos informa o real
motivo da pergunta deles (2001, p. 230).56
Na verdade, a questão do divórcio era óbvia no tempo de Jesus, e as
pessoas que enfrentavam esse tipo de separação precisavam se posicionar
adotando a escola de Shammai ou a de Hillel. Se quisessem castigar a esposa
infiel por meio do divórcio, optariam por um tribunal da escola de Shammai,
que interpretaria “alguma coisa vergonhosa” (Dt 24.1) como algo indecente/
53
No mundo greco-romano, o divórcio era permitido por uma série de motivos: roubo de
dinheiro, adultério e embriaguez, perda de beleza, discussões com a sogra e temperamento
antipático, doença e comportamento desagradável (Carter, 2000, p. 476). A abertura para aceitar
praticamente qualquer motivo para o divórcio na escola de Hillel pode ter sido influenciada pelo
convívio com outras culturas.
54
Herodes se casou com sua sobrinha Herodias, que, na época, era casada com Filipe, meio-irmão
de Antipas. Herodias se divorciou de Filipe com base na lei romana, e Herodes se divorciou de
sua esposa, filha de Aretas IV, rei da Pereia, para se casar enquanto os antigos cônjuges tanto
dele quanto dela ainda viviam, o que de acordo com a lei judaica era imoral (Osborne, 2014, p.
99-100).
55
Se eles conseguissem que Jesus tomasse partido contra o casamento de Herodes com Herodias,
poderiam acusá-lo diante do monarca, e talvez este resolvesse dar a Jesus o mesmo destino de
João Batista. Como Jesus estava na região da Pereia, sob jurisdição de Herodes, seria apropriado
provocá-lo a dizer algo contra o monarca (Lane, 1974, p. 354; Evans, 2001, p. 81-82).
56
O que precisa ficar claro para o leitor atual é que os fariseus não procuram Jesus para receber
alguma ajuda do ponto de vista teológico ou com vistas ao aconselhamento de pessoas afetadas
pelo divórcio (Maier, 1995b, p. 409).
57
Muito embora na maioria dos casos um tribunal não era necessário para o divórcio. O certificado
de divórcio por qualquer motivo, de acordo com a escola de Hillel, bastava para que o divórcio
fosse concretizado.
58
A referência a divórcio somente em caso de porneia vem da Mishnah Gittin 9.10, ao passo que a
posição de divórcio por qualquer motivo, a visão majoritária da época, se baseia em alguns textos
como: “Se ela não obedece ao dedo e ao olho [o teu controle], separa-te dela” (Eo 25.26), ou o
comentário lacônico de Josefo: “Nessa época me divorciei de minha esposa, não gostando de seu
comportamento”. Outros motivos para o divórcio como estragar uma refeição ou encontrar uma
mulher mais bonita se encontram em Gittin 9.10 (France, 2002, p. 387-388). Convém lembrar
que Josefo era fariseu e segundo ele o divórcio era permitido por qualquer motivo (Carson, 1995,
p. 411).
59
Aos judeus, em especial aos que guardavam a Torá, apelar para os mandamentos de Moisés
significava apelar para a autoridade superior em qualquer assunto. Na Torá geralmente as ordens
são dadas pelo Senhor (Êx 4.28; 7.6,10,20; 12.28), embora em algumas situações Moisés e Arão
também o façam (Lv 9.5; Nm 34.13; Dt 27.1). Ao perguntar sobre a base das Escrituras e com
isso possivelmente que interpretação eles adotam, Jesus pode ajustar sua resposta a eles (Evans,
2001, p. 83).
60
O fato de que a divindade estava envolvida no casamento é atestada inclusive no mundo pagão,
McKnight insiste que precisamos ter em mente a [grande] história que Deus
conta (o contexto) para entender o ensino divino sobre casamento e divórcio.
Para ele, todo o amor na Bíblia é baseado no amor pactual de Deus (Gn 12;
15). O autor estrutura esse amor pactual da seguinte forma: Deus faz um pacto
para estar conosco e estar em nosso favor até que alcancemos a redenção
completa, ou seja, até que estejamos em seu reino, sejamos parecidos com
Cristo e nos tornemos o povo santo e amoroso de Deus. Esse entendimento
do amor pactual implica que o amor matrimonial reflete o amor de Deus. Em
face disso, o divórcio destrói o reflexo de Deus — ele que é completamente fiel.
Portanto, o amor matrimonial é definido pelo amor de Deus: nosso amor pelo
nosso cônjuge significa estar com ele, em favor dele até atingir o propósito de
Deus para cada um de nós (McKnight, 2013, p. 95).61
Mas os fariseus prontamente se referem a Deuteronômio 24.1-4, em que
Moisés permitiu (evpitre,pw) o divórcio com a condição de que a mulher recebesse
o certificado de divórcio o que autenticava a sua liberação do contrato de
casamento e afirmava o seu direito ao novo casamento (Lane, 1974, p. 354).62
Essa concessão foi dada especialmente para proteger a esposa,63 que dessa
forma poderia provar que realmente estava divorciada (Lane, 1974, p. 354)
e autorizar o novo casamento. Contudo, a concessão visava regulamentar o
em que Ísis afirma: “Eu uni mulher e homem” (Evans, 2001, p. 84).
61
McKnight ainda sustenta que o relacionamento entre pessoas é modelado pelo amor que existe
entre a Trindade (2013, p. 95). Em si, a proposta de McKnight é correta e tem sido adotada
largamente em diversos segmentos da vida cristã, mas ela não é muito útil do ponto de vista
prático, uma vez que temos poucas referências nas Escrituras quanto ao relacionamento entre
as pessoas da Trindade (com exceção do relacionamento do Pai com o Filho encarnado), além
de que são seres de outra dimensão. Assim, ela estabelece o princípio da união na Trindade, mas
não nos ajuda muito a entender o relacionamento matrimonial, porque entendemos a Trindade
de modo muito superficial.
62
É provável que os fariseus estejam insinuando que as Escrituras claramente permitem o
divórcio. Se Jesus, junto com os essênios e talvez João Batista, se opõe ao divórcio, com que base
ele o faz? (Evans, 2001, p. 83). De fato, Deuteronômio 24 é o único texto claro sobre o divórcio
na Torá. De modo geral, pensava-se que esse texto havia resolvido a questão do divórcio (France,
2002, p. 387). Na verdade, Deuteronômio 24 não afirma que o divórcio está certo ou errado aos
olhos de Deus, somente trata do procedimento a ser adotado se o divórcio se concretizar, visando
minimizar os efeitos dele (Geddert, 2001, p. 230). Havia ainda a inferência para o divórcio em
Êxodo 21.10,11, em que o marido tinha a obrigação de prover alimento, vestuário, abrigo e amor
conjugal para a esposa. O divórcio poderia ser concedido quando uma dessas condições era
negada. Rabinos posteriores deixavam claro que o “amor matrimonial” poderia ser rompido ao
ponto do divórcio por aversão e crueldade (cf. Ketubbot 7.2-10). Esse é o cenário com o qual Jesus
depara nesse texto (McKnight, 2013, p. 98).
63
As regulamentações visavam proteger e valorizar as pessoas menos poderosas, menos influentes
e mais vulneráveis naquela cultura (Geddert, 2001, p. 232).
divórcio, não incentivá-lo (Evans, 2001, p. 84), diminuir o mal pela concessão
e não afirmar que era a vontade de Deus (France, 2002, p. 388). Mas não
podemos nos esquecer de que o foco de Deuteronômio 24 é a proibição do
novo casamento em um caso específico e não autorizar o divórcio. Além disso,
a resposta dos fariseus não é uma citação de Deuteronômio 24.1-4, mas um
resumo e interpretação questionável do texto: “Moisés permitiu redigir um
documento de divórcio e mandar a mulher embora” (Mc 10.4). Eles inferem
do texto que o divórcio é contemplado, uma vez que não é expressamente
proibido. O divórcio certamente não é uma ordem. Segundo France, os
interlocutores de Jesus admitem que a sanção desse texto ao divórcio é
ambígua, mas o adotam por falta de outro texto melhor para a situação (2002,
p. 391).64
Para os líderes religiosos da época, o divórcio estava se tornando uma
ordem no caso de adultério, inclusive de suspeita de adultério.65 Na verdade, o
divórcio nesses casos se tornará compulsório somente após o ano 70 d.C., mas
nessa época já se considera que esta seria a maneira correta de agir. Os líderes
defenderam, baseados na Lei, que o divórcio era compulsório em alguns casos,
para ir contra a indissolubilidade do casamento que Jesus estaria afirmando.
Mas Jesus distingue entre ordem e concessão.66 A implicação é que, mesmo
no caso de adultério, o divórcio não é compulsório (Instone-Brewer, 2002, p.
143-144).
É interessante notar a diferença entre o texto original de Gênesis 2.24
e como ele é citado por Jesus em Marcos 10.7,8. Uma vez que a poligamia
era permitida no judaísmo rabínico, mas estava caindo em desuso no séc. 1
d.C., praticamente todas as versões de Gênesis 2.24 acrescentam a palavra
64
Os fariseus que questionam Jesus não estão advogando algo inventado por eles, mas expressando
a ideia comum de seus dias. France argumenta que, quando se inicia a conversa sobre o divórcio já
admitindo que é uma possibilidade, a batalha já está perdida antes de ser iniciada, pois a questão
não é sim ou não, mas quando. Quem inicia a discussão com Gênesis 1—2 enxerga o divórcio como
um mal. Em circunstâncias pode ser o mal menor, mas continua sendo contra a vontade perfeita
de Deus (France, 2005, p. 714).
65
Se o divórcio era opcional ou compulsório em caso de “alguma coisa vergonhosa” (Dt 24),
depende da sintaxe do texto. Para uma discussão sobre isso, veja Dück, 2017a, p. 19-21. O Pastor
de Hermas 2.4.1 permite que o marido receba de volta a esposa apanhada em adultério apenas
uma única vez, se ela se arrepender (Keener, 1991, p. 156, nota 66).
66
Jesus questiona a hermenêutica dos fariseus que afirmam que se algo é “permitido” por Deus,
por conseguinte se trata da vontade dele (Evans, 2001, p. 84). Na verdade, os rabinos, bem como
os estudiosos judaicos do seu tempo, reconheciam a concessão como categoria legal estabelecida,
algo que não era o ideal, mas que precisava ser permitido porque as pessoas eram incapazes de
fazer o que era totalmente certo (Keener, 1991, p. 42).
“dois” para enfatizar essa verdade (com exceção das versões em hebraico).
Logo, é interessante comparar o texto de Gênesis 2.24 com o texto de Marcos
10.7,8, mostrando a ênfase sobre a monogamia (Instone-Brewer, 2002, p. 137;
Mueller, 2016, p. 10; Blomberg, 2014, p. 75):
“Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à
sua mulher, e eles serão uma só carne” (Gn 2.24).
“Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe (e se unirá à
sua mulher);67 e os dois serão uma só carne” (Mc 10.7,8).68
Jesus afirma que o divórcio nunca foi intenção de Deus. O divórcio pode,
em alguns casos, ser o “mal menor”, mas é sempre ruim. Jesus tenta mostrar
que a intenção de Deuteronômio 24.1 não era tornar o divórcio aceitável,
mas limitar as suas consequências (Lane, 1974, p. 355).69 Há uma diferença
entre a “vontade absoluta de Deus” e as provisões que levam em conta a
pecaminosidade do ser humano e são projetadas para limitar e controlar as
suas consequências (Cranfield 1959, 319).70 A dureza de coração71 que permitiu
67
A parte entre parêntesis foi omitida em alguns manuscritos importantes (a, B, etc.),
provavelmente porque ambas as linhas começavam com kai, o que levou o escriba a pular uma
linha. O texto não faz sentido sem essa parte e não haveria bons motivos para que ela estivesse
ausente do texto (Metzger, 1994, p. 88-89; France, 2002, p. 387).
68
A LXX faz uma tradução bem literal de Gênesis 2.24, mas substitui “eles” por “os dois. “Marcos
10.7,8 segue a LXX na íntegra, exceto pela omissão do pronome possessivo desnecessário antes
de ‘mãe’” (Blomberg, 2014, p. 75).
69
Na verdade, Deuteronômio 24.1-4 nem trata acerca da questão do divórcio (veja Dück, 2017a, p.
30-38). Contudo, os rabinos antigos interpretaram esse texto como autorização para o divórcio.
Esse texto se tornou a base para grandes discussões sobre o tema (Hurtado, 1989, p. 160).
70
Segundo Schüssler Fiorenza, a questão aqui reside no fato de que a questão legal seria
“totalmente androcêntrica” pressupondo o matrimônio patriarcal. Segundo ela, Jesus estaria se
opondo a esse modelo cultural que favorecia o homem em detrimento da mulher. Segundo ela,
a passagem a que Jesus se refere em Gênesis deveria ser traduzida assim: “as duas pessoas —
homem e mulher — se inserem em uma vida humana e em uma relação social comuns, porque
foram criadas iguais” (apud Myers, 1992, p. 321). Embora o pecado estragou a igualdade entre as
pessoas e criou distorções sociais, o texto de Marcos não favorece essa interpretação. A igualdade
proposta aparece somente na discussão sobre a iniciativa do divórcio e o casamento com alguém
que se divorciou e não em relação ao casamento propriamente dito.
71
Essa expressão lembra textos do AT (Dt 10.16; Jr 4.4; Ez 3.7). Por si só, essa expressão denota
uma repreensão mordaz, colocando Jesus no papel de profeta (Evans, 2001, p. 84). Embora não
apareça com frequência no AT, ela está relacionada a uma acusação frequente no AT, em que
o povo de Deus está endurecido contra Deus e insensível a suas exigências, um povo de “dura
cerviz”. Assim, a expressão não trata da crueldade do marido para com sua esposa, mas da
rebelião das pessoas contra a vontade de Deus para a sua vida (France 2002, 391). Alan Cole
define “dureza de coração” como a “incapacidade de compreender o propósito de Deus para o
casamento” (2015, 1453). É interessante notar que aqui Jesus afirma que a dureza dos corações
também é característica dos próprios fariseus: “por causa da dureza do vosso coração” (Mc 10.5).
Na LXX “dureza de coração (sklhrokardia) ocorre somente duas vezes, sempre se referindo a
Israel (Dt 10.16; Jr 4.4; cf. Sl 95.8 [94.8 LXX]; Ez 3.7). Ambos os textos se referem à idolatria e
Jeremias 4 se dirige contra os múltiplos adultérios de Israel. “Para Jesus, o problema por trás do
divórcio era sua adúltera idolatria contra Deus” (Watts, 2014, p. 248).
72
Para os judeus, essa postura de Jesus é muito radical. Para muitos deles, isso pareceria uma
agressão contra a santidade e perfeição da lei do AT. Na verdade, trata-se de um ataque de Jesus
contra os homens que se divorciavam de sua esposa quando quisessem (Hurtado, 1989, p. 160).
73
Lane atesta que em Deuteronômio 24.1-4 o divórcio é tolerado, mas não autorizado nem
sancionado (1974, p. 355). Isso mostra como Deus o enxerga. Para muitos, tolerar e autorizar
é a mesma coisa. No entanto, o que Jesus está querendo dizer é que pode, mas não deve, ou
seja, deveria ser considerada a última alternativa. Lane vai adiante e cita um exemplo da atitude
calejada que talvez pudesse ser adotada no que diz respeito ao divórcio vindo de Josué ben Sira
em Eclesiástico 25.26 (c. 200 a.C.): “Se ela não vai como queres que ela vá, corta-a de ti e dá a
ela o certificado de divórcio” (literalmente “corta-a de tua carne”, um reflexo da expressão “eles
serão uma só carne” de Gn 2.24) (1974, p. 355). Os próprios rabinos distinguiam entre o que as
Escrituras ordenavam e o que permitiam. Jesus leva os fariseus a reconhecer que Moisés permitiu,
mas não ordenou o divórcio (Keener, 1993, p. 161). Jesus rejeita a visão de que o casamento é
meramente um vínculo legal entre as partes envolvidas. Antes se torna um relacionamento de
sangue com as duas pessoas unidas por Deus. Por isso, Jesus rejeita a noção de Eclesiástico de
que a mulher é considerada um membro supérfluo do corpo que facilmente pode ser descartado
(Garland, 2002, p. 263).
74
Com isso, Jesus defende que a lei é perfeita e reflexo da vontade de Deus, mas que esta foi
adaptada em virtude da pecaminosidade humana. Apelando para Gênesis, Jesus insiste que o
ideal de Deus no Éden é superior à concessão de Deus na Lei (Hurtado, 1989, p. 160), ou, em
outras palavras, “os que seguem Jesus são aqueles cujo alvo é fazer a vontade de Deus, não buscar
concessões” (Hooker, 1991, p. 234).
75
Jesus muda a ênfase que os fariseus estavam dando para a questão: “se Deus (que é santo)
uniu os dois, nenhum homem (que é adúltero e duro de coração) deve separá-los (incluindo não
apenas a questão mais imediata da formalização do divórcio, mas também a infidelidade que a
ocasionou)” (Watts, 2014, p. 248).
76
A concessão indica algo menos que o ideal. Mesmo o conceito de ser “uma só carne” aponta para
o conceito de que o casamento é indissolúvel e permanente. Não se trata de mero contrato de
conveniência mútua, mas uma condição ontológica. Não indica apenas que “uma carne” não deve
ser separada, mas que não pode ser separada (ouvke,ti eivsi.n du,o, não são mais dois) (France, 2002,
p. 392). O divórcio é pecado porque não atinge o ideal de Deus, não corresponde à intenção de
Deus com o casamento. Pode até ser a solução menos pior em alguns casos, mas não é o que Deus
gostaria. Segundo Instone-Brewer, a quebra do relacionamento marital sempre é ocasionada pelo
pecado, mas não significa que o divórcio necessariamente é pecado — pecado é a quebra os votos
feitos pelo casal que leva ao divórcio (2011, p. 8).
77
Jesus adota uma postura muito radical em Marcos. Segundo Evans, nem Filo, nem Josefo, ou
ainda qualquer autoridade rabínica exclui o divórcio e o novo casamento como o Jesus de Marcos
o faz. Contudo, a comunidade de Qumran apresenta um paralelo à posição de Jesus. Expandindo
o texto de Deuteronômio 17.17, que fala acerca do rei: “não tomará para si muitas mulheres, para
que seu coração não se desvie”, o Rolo do Templo (11QTemple 57.17-19) ensina: “Ele não deve
tomar outra esposa adicional; não, só ela estará com ele enquanto ela viver. Se ela falecer, ele
poderia tomar para si outra esposa da casa de seu pai, isto é, de sua família” (Evans 2001, 81). Cole
sugere que a declaração mais rigorosa de Marcos, comparada à de Mateus, que permite o divórcio
por porneia, talvez se deva a uma necessidade em virtude da Roma gentílica (2015, 1453). Por
outro lado, segundo McKnight, até os mais rigorosos acreditavam que o divórcio era necessário
em algumas situações. Mesmo para os justos (citando a situação complicada entre José e Maria
com a sua gravidez, Mt 1.19) a intrusão sexual entre marido e esposa exigia o divórcio para manter
a pureza (2013, 97). Carson (com base na Mishná M Sotah 5.1) afirma que a lei judaica exigia que
a mulher adúltera fosse divorciada por seu marido, o que pode ser pressuposto nos Evangelhos,
mas especificado somente em Mateus (1995, p. 416). Contudo, Nolland entende que o material
da Mishnah não é completamente consistente quanto a esse assunto (1995, p. 23, nota 7), razão
pela qual deveríamos ter um pouco de cautela com nossas conclusões. Como isso se tornará regra
somente no final do primeiro século, não sabemos até que ponto na época de Jesus isso já era
considerado o procedimento correto.
78
Em Marcos, o local de ensino é a casa. É ali onde os discípulos pedem que Jesus explique melhor
o que não ficou claro para eles (1.29; 3.20; 7.17,24; 9.28) (Evans, 2001, p. 84-85). A explicação é
dada aos discípulos de Jesus em particular, ao contrário de Mateus, em que a implicação é que ela
é dada em público aos fariseus, e que a seção seguinte sobre o casamento opcional (Mt 19.10-12)
é passada aos discípulos em particular (Instone-Brewer, 2002, p. 148).
79
“Comete adultério” é a tradução de moiceuw. A palavra e seus cognatos ocorrem 27 vezes no NT
e com muita frequência na LXX e em outras literaturas, sempre com o significado de atividade
sexual ilícita com alguém casado com outra pessoa. É usado para traduzir o mandamento: “Não
adulterarás” (Mt 5.27; 19.18; Mc 10.19; Lc 18.20; Tg 2.11) e para acusar a mulher apanhada em
adultério (Jo 8.3,4). Também aparece em Romanos 7.3 que define o termo: “Assim, se ela se unir
a outro homem enquanto o marido ainda vive, será chamada adúltera” (Instone-Brewer, 2002,
p. 148-149).
80
A contribuição singular de Marcos é que ele comete adultério “contra ela” (10.11) (Stein, 1992,
p. 197). Isso vai contra o pensamento judaico da época, uma vez que o adultério era cometido
somente “contra o marido” (pela esposa e pelo amante dela). Agora, Jesus indica com isso que
marido e esposa têm direitos iguais (Hooker, 1991, p. 236; Geddert, 2001, p. 232). Ao que tudo
indica, uma nova relação seria adultério contra a esposa porque o divórcio não separa essa união
indissolúvel (France, 2002, p. 393), ou seja, ele ainda continua casado com a primeira esposa,
o que levaria o relacionamento com outra mulher a ser considerado adultério, violando a lei de
Deus (Evans, 2001, p. 85).
81
Isso ocorre porque a poligamia é permitida em certas ocasiões e somente o homem pode se
divorciar de sua esposa. Mas agora o texto admite que a mulher também pode se divorciar (10.12).
O homem só poderia ser culpado de adultério em relação ao casamento de terceiros (Nolland,
1993, p. 823). Lane sustenta que o fato de que a mulher poderia se divorciar do marido era algo
ainda recente na cultura romana (c. 50-40 a.C.). A esposa que se divorcia do marido para se casar
com outro marido é tão culpada de adultério quanto o marido que se divorcia para se recasar (1974,
p. 358). David Cohen enfatiza que questões culturais influenciaram o significado de adultério no
mundo antigo: “O ponto crucial aqui é que a honra do homem é, em grande medida, definida por
meio da castidade da mulher com quem ele está relacionado. A honra feminina consiste de modo
abrangente da pureza sexual e do comportamento que as normas sociais julgam ser necessárias
para manter essa honra aos olhos de uma comunidade vigilante. A honra masculina tem o papel
ativo de defender essa pureza. A honra do homem está, portanto, ligada à pureza sexual de sua
mãe, irmãs, esposa e filhas; dele não se exige a castidade” (apud Neyrey, 1998, p. 195). Isso ajuda
a explicar algo que na ótica da sociedade atual é visto como extremamente injusto, ou seja, leis
diferentes para homens e mulheres no que tange à sexualidade.
82
Ao citar os textos de Gênesis, Jesus apela para o pensamento judaico de que o texto mais antigo
tem mais autoridade, ou seja, o texto de Gênesis vem antes da lei de Deuteronômio, portanto, tem
autoridade maior: essa era a intenção de Deus com o casamento (Osborne, 2014, p. 171; contra
France, que argumenta que a cronologia é menos importante que o propósito pelo qual foi dado
[2005, p. 719]). O fato de Jesus citar Gênesis 1.27 e 2.24, textos pré-Queda afirmam a importância
da mulher no casamento. Gênesis 1.27 fala do homem e da mulher indicando que ambos devem
ser respeitados — na verdade, são parceiros de igual valor. Isso é reforçado quando Jesus cita
Gênesis 2.24, em que o homem deixa pai e mãe para se unir à sua esposa. Como o divórcio o
mundo antigo se tornara fácil, em especial quando a esposa vinha de um contexto pobre e caso se
divorciasse talvez só recebesse o parco dote que trouxera (isso quando não acusada de impureza),
tornava a esposa a propriedade do marido. Assim, Jesus reconhece o valor da mulher no
casamento baseado em Gênesis 2.24. Além disso, esses textos não fazem parte das leis casuísticas
do AT e sim dos princípios que devem governar todos os relacionamentos matrimoniais (veja
Dück, 2017a, p. 13-16).
poderia se divorciar do marido.83 Assim, pode ser que Marcos incluiu essa
cláusula porque está falando para uma audiência romana em que a lei permitia
que a mulher tomasse a iniciativa do divórcio, ou então, que a situação de
Herodias, que se divorciou de seu marido, poderia prover o contexto para essa
afirmação vir da boca de Jesus, ou ainda que havia a possibilidade de a mulher
judia tomar a iniciativa do divórcio por causa do contato com a cultura greco-
romana por muitos anos.84 Não podemos nos esquecer de que aqui se trata de
um ensinamento feito por Jesus em particular a seus discípulos e não para as
multidões, nem para responder à pergunta dos líderes dos judeus (Hooker,
1999, 236-237; Evans, 2001, p. 85-86).85 De qualquer forma, Jesus abre a
possibilidade para a mulher tomar a iniciativa de se divorciar do marido e
83
Embora essa fosse a regra geral, a mulher judia poderia processar seu marido por alguns
motivos e forçá-lo a lhe conceder o divórcio. Manson observa que a esposa poderia forçar seu
marido a divorciá-la, se ele fosse imoral. O mesmo autor cita a prática excepcional na comunidade
judaica de Elefantina (séc. 5 a.C.) onde as mulheres poderiam iniciar o processo de divórcio
(apud Bock, 1996, p. 1357, nota 26). Basicamente isso ocorria quando os termos do contrato de
casamento eram quebrados: as promessas feitas oralmente ou por escrito eram a base para o
divórcio (Instone-Brewer, 2002, p. 86). Alguns estudiosos sugerem que essa concessão para a
mulher seria em virtude do encontro da tradição judaica com o mundo greco-romano, em que
a mulher poderia tomar a iniciativa do divórcio (para mais informações sobre as descobertas
da Elefantina, veja Instone-Brewer, 2002, p. 75-80). Isso é possível, mas a situação de Herodes
e Herodias era contexto suficiente para defender que se trata do ensino de Jesus e não um
acréscimo de seus seguidores. Aliado a isso, o ensino foi dado somente aos discípulos e não às
multidões (Evans, 2001, p. 85-86). Contudo, há relatos de mulheres judias de classe alta que se
divorciaram de seu marido. Josefo afirma que Salomé, a esposa de Herodes, o Grande, enviou a
seu marido o certificado de divórcio e declarou que este “não estava de acordo com a lei judaica”.
Josefo comenta: “Pois é [somente] o homem que é autorizado por nós a fazer isso, e nem uma
mulher divorciada pode se casar novamente por sua própria iniciativa a não ser que seu ex-
marido concorde” (Garland, 2002, p. 263). Em outras palavras, o homem se divorcia somente de
forma voluntária (baseado em Dt 24.1 em que ele escreve o certificado de divórcio) ao passo que a
mulher pode ser divorciada contra a sua vontade (Instone-Brewer, 2002, p. 86). Isso ilustra que
os líderes judeus tinham a tendência de avaliar o adultério não relacionado à infidelidade para
com o cônjuge, mas em função de tomar a esposa de outro, ao passo que Jesus vai insistir sobre a
união do casal baseado na ordem divina (Carson, 1995, p. 412).
84
A cultura greco-romana permitia que tanto o marido quanto a esposa tomassem a iniciativa
do divórcio. Alguns estudiosos acham que o motivo para Marcos fechar a porta para qualquer
divórcio (sem a cláusula de exceção de Mateus) se deve à aplicação desse ensino de Jesus ao
contexto pagão (Hurtado, 1989, p. 159).
85
É interessante observar que Jesus, mesmo admitindo que Deuteronômio 24 faz parte da Torá, faz
referência ao texto de Gênesis 2 como base para o seu ensino. Isso equivale a dizer que o texto de
Deuteronômio 24 era válido (faz parte da Palavra de Deus), e poderia ser aplicado a determinadas
situações, agora não deveria mais ser usado para defender os divórcios (Dunn, 1988, p. 115). Por
outro lado, Lane sustenta que Jesus apela aqui para o princípio geral do casamento estabelecido
em Gênesis e não faz aqui reflexão alguma sobre a situação criada por um adultério (Lane, 1974,
p. 357, nota 17), uma vez que no plano ideal o adultério não vai ocorrer. Keener também acredita
que se trata de uma regra geral que não trata das exceções como adultério (abordado por Mateus)
(1993, p. 161).
86
Hurtado tem opinião parecida. Ele sustenta que Marcos tem em mente aqui é o marido que se
divorcia da esposa para se casar com outra (ou vice-versa), como no caso de Herodes e Herodias
(1989, p. 167). Em outras palavras, parece que Jesus está dizendo que se divorciar para contrair
um novo casamento com alguém que acha mais atraente não é menos adultério do que se os
procedimentos legais para o divórcio não tivessem sido seguidos (Geddert, 2001, p. 241). Neufeld
questiona se esse é o caso, ou se Jesus está chamando todos aqueles que contraíram um novo
casamento de adúlteros. Com isso, ele estaria invalidando todos os casamentos que ocorreram
entre o povo judeu após o divórcio, casamentos permitidos no AT. Certamente, Jesus é bastante
radical em diversas situações — mas, é o que ocorre aqui? (1989, p. 32). A pergunta certamente é
válida, mas é pouco provável que Jesus tivesse isso em mente.
87
Contra Hooker, que vê aqui uma contradição entre o v. 9, em que o divórcio em si é inconcebível,
e os v. 10-12, em que o novo casamento depois do divórcio é proibido porque leva ao adultério
(1991, p. 236). Parece que essa contradição é apenas aparente, uma vez que o novo casamento era
a consequência inevitável para o divórcio no tempo de Jesus e o divórcio e o novo casamento são
considerados uma coisa só nessa passagem.
88
Mesmo que Lucas 16.1 afirma que Jesus contou a parábola do mordomo infiel a seus discípulos,
ao que tudo indica os fariseus também a ouviram, pois reagem com zombaria em virtude de sua
ganância (Evans, 1996, p. 277). A zombaria deles provavelmente se deve a sua visão de que os
bens materiais eram sua recompensa justa por guardar fielmente a Lei, ou seja, pode ser que
pensavam que a pobreza de Jesus e de seus discípulos provava que não eram honrados da mesma
forma que eles próprios (Geldenhuys, 1951, p. 420).
89
Green sustenta que “a confirmação da autoridade da Lei por parte de Jesus é ressalvada por sua
insistência (implícita) de que a Lei não fala por si mesma e é suscetível à apropriação indevida”
(apud Pao; Schnabel, 2014, p. 431), ou seja, as pessoas podem pegar a lei de Deus e interpretá-la
de modo errado e alegar que a Palavra de Deus diz isso.
porque era um problema comum dos seus dias. Segundo ele, o tratado Sotá
do Talmude babilônico enfatiza que o adultério aumentou substancialmente
nesse período (Maier, 1996, p. 317). Apesar das tentativas importantes e
válidas de encontrar um fio condutor para Lucas 16 como um todo, este parece
difícil de ser encontrado. O capítulo conecta com diversos temas de Lucas,
mas é difícil estabelecer um tema unificador que conecte os v. 14-18 com o
restante do capítulo (Marshall, 1978, p. 614; Maier, 1996, p. 314).90
Uma comparação entre os textos ajuda a identificar as similaridades e
diferenças entre os textos sobre o divórcio registrados nos Evangelhos:
“Todo aquele que se divorcia de sua mulher e casa com
outra comete adultério; e quem casa com a divorciada
também comete adultério” (Lc 16.18);
“... todo aquele que se divorciar de sua mulher [...]
torna-a adúltera; e quem se casa com a divorciada comete
adultério” (Mt 5.31,32);
“Aquele que se divorcia de sua mulher e casa com outra
comete adultério contra ela” (Mc 10.11);
“... aquele que se divorciar de sua mulher [...] e se casar
com outra, comete adultério” (Mt 19.9).
Tanto a passagem de Lucas 16 quanto a de Mateus 5 apresentam a versão
mais abreviada do ensino de Jesus sobre o divórcio. O texto de Marcos 10 e
Mateus 19 expandem um pouco mais o ensino. Mateus 5 afirma que o homem
que se divorciar de sua esposa torna-a adúltera, ou seja, leva a mulher a
cometer adultério (pressupõe que ela vai se casar com outro marido) e em
Lucas o homem que se divorciar de sua esposa e se casar novamente é culpado
de adultério. Essa última parte é muito parecida com Marcos 10 e Mateus 19,
mesmo nas palavras usadas (Marshall, 1978, p. 631). No entanto, na lei judaica
o homem que se divorciava de sua esposa e casava com outra não era culpado
de qualquer ofensa (Marshall, 1978, p. 631). Contudo, Jesus afirma que isso é
adultério. Parece que o primeiro casamento é visto como permanente.
Marcos usa ho apolyon, “aquele que se divorciar”, mas Lucas acrescenta
a palavra favorita dele pas, “todo aquele” (Fitzmyer, 1985, p. 1120). Isso
90
As discussões sobre como estruturar esse texto são imensas e controversas. Fitzmyer, por
exemplo, entende que se trata de diversos ditos de Jesus que Lucas editou, sem necessariamente
uma conexão clara entre eles. Segundo o mesmo autor, o v. 18 é um tema totalmente à parte
do que vem antes (1985, p. 1119). É justamente a sequência dos ditos que desafiam a lógica do
intérprete. Marshall sugere que a sequência pode ter sua origem em “Q” (1978, p. 631). Seja
como for, parece ilusório tentar encontrar uma linha mestra que conecte o ensinamento sobre o
divórcio com o restante de Lucas 16.
91
É interessante observar que Jesus, cujo ensino de modo geral está mais em linha com a escola
de Hillel [não tão legalista], no assunto do divórcio adota a posição mais estrita da escola de
Shammai (Geldenhuys, 1951, p. 423).
92
Descamps observa que entre os pais da igreja gregos a conexão de ações com a conjunção kai [e]
frequentemente era entendida em seu sentido final, ou seja, denotando propósito: “Todo aquele
que se divorcia de sua mulher para se casar com outra” (Lc 16.18) (apud Nolland, 1993, p. 821-
822). Assim, parece que o divórcio tem a intenção real de contrair novo matrimônio. Isso leva
Nolland a argumentar: em virtude de que o foco do texto é sobre o novo casamento, a forma mais
natural de entendê-lo seria “se divorcia para”, ou seja, o divórcio é planejado visando uma nova
relação (Idem).
93
Isso está em linha com as seis antíteses de Jesus em Mateus 5, em que a motivação é o elemento
central. Não se trata só do ato consumado (assassinato, adultério, etc.), mas da intenção de
cometê-lo.
prostituta nem com mulher desonrada, nem com mulher repudiada por seu
marido, pois o sacerdote é consagrado ao seu Deus” (Lv 21.7; cf. Ez 44.22).
Assim, continua Isaksson, como os sacerdotes do AT, assim os discípulos de
Jesus são escolhidos e consagrados para o serviço de Deus (apud Fitzmyer,
1985, p. 1121).
É importante notar, no entanto, que o contexto aqui indica que Jesus está
mostrando que seu ensino é imbuído de autoridade de uma forma mais ampla
e não se restringe ao divórcio. Alguns tomam esse único versículo de Lucas
16.18 para proibir todo e qualquer divórcio nas Escrituras. Contudo, o que
Jesus está fazendo aqui é delinear o princípio geral que deve orientar seus
seguidores — ele não entra em detalhes para cada caso específico (Bock, 1996,
p. 1357).
Rashdall traz uma precaução interessante quando se trata desse assunto:
A dificuldade que experimentamos em determinar o
que nosso Senhor de fato ensinou sobre esse assunto
[divórcio] ilustra de modo impressionante a absoluta
impossibilidade de basear regras detalhadas para orientar
a vida contemporânea sobre ditos isolados de Cristo.
Que o ideal é o casamento monogâmico permanente é
sem dúvida o princípio que Jesus ensinou; e esse ideal
continua válido diante de todo o ensinamento ético de
nosso tempo. Como esse ideal poderá ser implementado
no detalhe, qual o mal menor quando o ideal não foi
alcançado e se tornou impossível, é questão que precisa
ser estabelecida pela consciência moral, pela experiência
e pelo juízo prático do presente” (apud Geldenhuys, 1951,
p. 423).94
A postura de Rashdall certamente alerta contra ler o texto fora do contexto
e ainda chama a atenção para a dificuldade de aplicar o texto para novos
contextos, que às vezes são tão diferentes do ambiente que deu origem ao dito
de Jesus.
CONCLUSÃO
É precipitado tirar conclusões a respeito de ensino de Jesus sobre divórcio e
94
Keener sugere à semelhança da maioria das afirmações gerais (e.g., Pv 18.22 com Pv 11.22;
12.4; 21.9; ou Pv 10.15; 13.8; 14.20 com 10.2; 11.4; ou 14.24; 16.6 com 15.16; 16.8; 30.7-9; ou 11.8;
12.13,21 com princípios como 2Tm 3.12), esta não exclui exceções (para a parte inocente que não
tinha voz ativa na respectiva questão, cf. Mt 5.32; 19.9; 1Co 7.15). Jesus quer proteger a parte
inocente que foi traída (Keener, 1993, p. 235).
novo casamento sem analisar os textos de Mateus 5.31,32 e 19.1-12 que tratam
em especial da clausula de exceção (esses textos serão abordados em outro
artigo). Contudo, fica claro que Jesus insiste que o divórcio e novo casamento
não são da vontade de Deus. Não são o que Deus planejou para os seres
humanos. O contato que o povo de Israel teve com outras nações influenciou
como interpretaram os ensinos do AT sobre o divórcio. Dentro desse contexto,
Jesus precisa responder às perguntas sobre o assunto. Jesus insiste no ideal
de Deus para seus seguidores. Aqueles que o seguem não devem se contentar
com menos do que Deus desejou para eles e os capacita a viver. Contudo, é
necessário olhar o que os textos de Mateus e de Paulo querem ensinar sobre o
assunto antes de tirar mais conclusões.
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