Música independente 1990
Música independente 1990
Música independente 1990
CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA – MAHIS
FORTALEZA
2010
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
FORTALEZA
2010
2
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Francisco José Gomes Damasceno (UECE), Prof. Dr.
ORIENTADOR
_______________________________________
Simone Luci Pereira (FECAP), Profa. Dra.
________________________________________
Dilmar Santos de Miranda (UFC), Prof. Dr.
3
Tudo posso naquela que me
fortalece, minha mãe.
4
AGRADECIMENTOS
Neste momento não pretendo apenas agradecer aquelas pessoas que de uma forma ou de
outra contribuíram e engrandeceram esta dissertação, mas desejo compartilhar toda esta
experiência vivenciada nos dois últimos anos e alguns meses da minha vida, elevando-
os à categoria de co-autores de uma verdadeira viagem pelos manguezais do Recife.
Para minha Raphaela que nestes anos tornou-se uma extensão de minha alma, sabedora
de cada palavra, de cada frase que está contida nesta dissertação, enfim agradeço por
você existir.
Para minha família, pedra filosofal, fortaleza da minha vida que sempre estiveram
presentes, aqui vos agradeço eternamente, minha mãe Neyger, meu pai Francisco,
minhas irmãs Missilene e Milena e meu cunhado Tarcízio.
Entre a fronteira tênue que perpassa um orientador e um irmão, habita o amigo
Damasceno, travessia segura para o conhecimento, a quem agradeço sempre.
Aos companheiros da peleja denominada de mestrado, que tantas vezes escutaram
nossas angústias, comemoraram juntos nossas conquistas, enfim cito de forma especial
os amigos Ari e Samuel como portos seguros.
À Universidade Estadual do Ceará por proporcionar um mestrado de qualidade dentro
do nosso Estado, como também à CAPES que pela bolsa concedida durante este
percurso alcei vôos distantes, bem distantes mesmo!
Aos camaradas de Recife, Roger de Reno, Sandro, Fred 04, Renato L, Jair, Roger Man,
dentre outros que agora esqueço, sempre me acolheram de forma providencial, não
medindo esforços para contribuir neste trabalho tecido por muitas mãos especiais,
certamente, dedicando uma menção especialíssima ao meu irmão pernambucano Jaelson
Emiliano e sua família, que digo e repito: ―sem comentários‖.
À Biblioteca Pública de Recife, tão como o Arquivo Público e seus funcionários que
sempre foram pacientes com minhas jornadas intermináveis de consultas aos periódicos.
À amiga Ana e aos amigos Rômulo, Fábio, Antônio Carlos, João Paulo, Denilson que
pela afinidade pessoal, tributam uma confiança indelével à minha jornada acadêmica.
Às leituras precisas e contribuições sem precedentes da companheira de mestrado Flávia
Morais, que sempre chegam no momento certo.
E por fim, a Fred 04, Chico Science, Jorge du Peixe, e outros mangueboys que
mostraram que é possível injetar um pouco de energia na lama e mudar uma realidade.
5
Para aqueles que fizeram
música com a alma e para a
alma.....
6
Resumo
7
Abstract
This paper analyzes the various tactics or "outs" used by the artisans of MangueBit his
quest for self-promotion in the mainstream Brazilian music of the 1990s. The
discussions presented here cover the various characteristics pertaining to the music
industry that operates in Brazil since the early twentieth century, with the primary focus
of debate policies for the promotion of music practiced in the 1990s by the majors and
their companies subsidiaries located in Southeast Brazil. Some theoretical questions
relate to the concepts of cultural hybridization that permeate our research object. More
over interweave the sounds of Chico Science and Nação Zumbi and Mundo Livre SA to
a better understanding of the bulge that fostered the cultural MangueBit.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 10
Eu vim com a nação zumbi!/ Ao seu ouvido falar/Quero ver a poeira subir/
E muita fumaça no ar/Cheguei com meu universo/ E aterriso no seu
pensamento/Trago as luzes dos postes nos olhos/ Rios e pontes no
coração/Pernambuco em baixo dos pés/ E minha mente na imensidão1.
1
SCIENCE, Chico. Mateus Enter . In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 07 (32 seg).
2
Instituto Population Crisis Commitee, localizado em Washington (EUA), caracterizou Recife como a
quarta pior cidade do mundo para se viver, levando em conta dados como o alto índice de violência
urbana per capta (o maior do Brasil), altas taxas de desemprego, saneamento básico, condições precárias
de moradia para a maioria da população, entre outros índices.
3
A grafia ―MangueBit‖ irá respeitar a grafia original do Release Caranguejos com cérebro escrito em
1991, e publicado no cd ―Da lama ao caos‖ de Chico Science e Nação Zumbi de 1994.
4
Em nossa pesquisa de graduação trabalhamos três vertentes da movimentação, ou seja, a cidade como
cenário propício ao advento do MangueBit, a juventude recifense como participante ativa de todo o
processo sendo dividida em três componentes sociais: os jovens que conjecturaram toda a Cena, os jovens
da classe média que de alguma forma financiaram o movimento, e a juventude da periferia que através do
MangueBit ganhou oportunidades sejam como artistas ou profissionais que trabalham diretamente com a
realização de espetáculos musicais, ou desempenhando a profissão de músicos; como também as culturas
que envolviam toda a movimentação, seja elas populares como os maracatus, cirandas, afoxés,
caboclinhos, dentre outras, como também as influências culturais do exterior como o Funk, Soul, Rock,
Hip Hop, etc. NASCIMENTO, Francisco Gerardo Cavalcante. ―MangueBit‖: Mutação da Cultura
10
Neste novo desdobramento científico que versa principalmente sobre o
mercado fonográfico do Brasil contemporâneo, em particular o MangueBit, fomos,
somos e seremos sempre instigados aos descobrimentos, assim não nos restringimos
apenas ao foco acadêmico do objeto em pauta, mas também nos colocamos enquanto
espectadores, consumidores, e principalmente observadores destes novos postulados
sonoros.
Cabe-nos neste momento o papel de instigar o leitor antes de maiores
considerações, ou ―Afinal, ir e vir, mover-se sempre, romper fronteiras, deixar fluir a
informação (bit); mais do que meras palavras de ordem, eram – e continuam sendo
conceitos fundamentais para a utopia coletiva da Manguetown‖5; desta feita,
tencionamos esta utopia de jovens músicos suburbanos de Recife, em realidades
presentes em um mercado fonográfico verticalizado, com o olhar cristalizado e voltado
para a direção Sul, porém o que validamos a partir de agora, mesmo que uma obra
acadêmica não seja definitiva, é a condição de contribuinte neste emaranhado cultural
chamado de música contemporânea brasileira.
Dessa forma, nossa expectativa é a compreensão dos contornos históricos,
culturais, mercadológicos que inseriram o MangueBit de forma não excepcional, mas
peculiar na indústria fonográfica no que concerne, principalmente, a um distanciamento
geográfico das grandes gravadoras no início da década de 1990, não obstante às
prioridades destas empresas que passavam ao largo de uma sonoridade diversificada do
Nordeste brasileiro.
Assim, as fontes sonoras serão preponderantes no presente trabalho, e para tal
empreitada acadêmica, analisaremos durante toda nossa dissertação os Cd‘s “Da lama
ao caos” de 1994 e “Afrociberdelia” de 1996 de Chico Science e Nação Zumbi, e os
Cd‘s “Samba Esquema Noise” de 1994 e ―Guentando a Ôia‖ de 1996 do Mundo
Livre S.A, pois o primado da linguagem dos poetas do MangueBit assenta
principalmente na própria cidade de Recife como palco e mote para estes jovens
cronistas urbanos.
Dentro deste campo das análises sonoras, é de fundamental importância
ressaltarmos que as mesmas serão realizadas sob três aspectos, tendo como principal
6
Este termo ―movimentação‖ será melhor explanado no decorrer do nosso primeiro capítulo, quando
iremos propô-lo como uma terceira via na denominação do MangueBit.
7
A parabólica enfiada na lama para os jovens artífices do MangueBit representava os pés fincados na
lama das tradições populares de Pernambuco como os maracatus, afoxés, cirandas, caboclinhos, etc, uma
espécie de identidade cultural a partir da lama, representando a fertilidade da cultura do Estado de
Pernambuco. Enquanto que a parabólica significava o pensamento voltado para as novidades, para a
contemporaneidade sonora de outras partes do mundo, como eles mesmos versavam ―captando boas
vibrações‖.
12
Afoxés e Emboladas, entre outras, desencadeando uma movimentação musical na
cidade de Recife na década de 1990, unindo tendências musicais diferentes, público
heterogêneo e principalmente uma mentalidade cultural ampla, híbrida e pautada na
diversidade.
Postularemos no decorrer do nosso texto, a releitura cultural que o
MangueBit propôs ao Estado de Pernambuco, delineando uma necessidade quase que
premente de mudança cultural, ou segundo Vargas:
Para entendermos melhor esta ―diversão levada sério‖ citada por Chico Science,
iremos nos referir ao Brasil do final da década de 1980 e início da década de 1990, mais
precisamente a cidade de Recife com seus graves problemas sociais, econômicos e
culturais, segundo dados apontados pelo IBGE9, principalmente no tocante à violência
sofrida pelos jovens e o IDH10 (índice de desenvolvimento humano que avalia a
qualidade de vida dos habitantes de um determinado país, estado, cidade, ou região,
mensurados principalmente pela educação, riqueza e expectativa média de vida da
população).
8
VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science e Nação Zumbi. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2007. p.105.
9
Dentre alguns dados apontados pelo IBGE com relação à cidade de Recife e sua Região Metropolitana,
podemos citar os índices do abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo adequada nos
domicílios que compreendiam na década de 1990 cerca de 39,7% dos domicílios, sendo que este número
reduzia-se significativamente para 14% quando os domicílios pesquisados possuíam renda familiar abaixo
de 1 salário mínimo.
Outros dados que comprovam a baixa qualidade de vida da maioria dos recifenses que habitavam as áreas
mais pobres da cidade durante a década de 1990, estão relacionadas às taxas de analfabetismo de 13,7%
para os cidadãos com 15 anos ou mais de idade e principalmente os indicadores da violência urbana, ou
seja, durante a década de 1990 Recife amargou o posto de uma das capitais mais violentas do Brasil, ou
seja, durante o referido período as taxas de homicídios não foram inferiores a 43%, posto que estes
números tornam-se alarmantes com relação à violência referente às armas de fogo que superam a marca
de 82,5% e principalmente quando relacionadas ao sexo masculino em que estes números supera marca
de 120% para cada 100 mil habitantes.
10
Segundo o ―Atlas do Desenvolvimento Humano no Recife 2005‖ entre 1991 e 2000, Recife apresentou
uma evolução pouco significativa em termos de desenvolvimento humano. Seu IDH-M passou de 0,740
para 0,797, determinando um recuo, nesse período, da 437ª para 624ª entre todos os municípios
brasileiros. Esta é uma situação que ocorre com praticamente todas as capitais brasileiras, exceto com
vitória que melhorou sua posição no ranking nacional nesse período, passando da 25ª posição para a 16ª e
Florianópolis que permaneceu na 4ª posição. Atlas municipal do Recife 2005. p. 03.
13
Percebemos que há até mesmo um certo grau de ansiedade no músico com
relação à busca por novas sonoridades, uma espécie de espreita coletiva, um constructo
cultural, baseado na despretensão, mas com um compromisso de divertir-se
conscientemente, ou melhor, revolucionar a realidade de forma prazerosa.
Como nos referir a esta ―diversão levada a sério‖ citada anteriormente?
Para tal inquirição iremos propor um amplo entendimento do mercado
fonográfico mundial e brasileiro desde seus primeiros passos, aportando de forma
substanciosa na década de 1990, especificamente nas carreiras artísticas de Chico
Science e Nação Zumbi, e Mundo Livre S.A, em que as nuances de suas relações com
suas respectivas gravadoras serão melhores abordados mais adiante em nossos
capítulos.
Iremos propor em nossas discussões o entendimento de uma movimentação
musical baseada na inquietude com relação à arte que se promovia em Recife, partindo
deste princípio básico, deste estopim que deflagrou o MangueBit, deste modo a apontar
as várias ―saídas‖ encontradas por estes jovens músicos na intenção de sobrepor uma
geografia desfavorável no que concerne à indústria fonográfica e um complexo
midiático sediado no Sudeste brasileiro.
No percurso histórico proposto nos próximos capítulos, perceberemos que
esta movimentação e seus jovens músicos, foram reconhecidos ainda em seu próprio
―habitat‖ cultural, ou seja, não realizaram a típica mudança de cenário e público
recorrente aos artistas do Nordeste brasileiro como podemos citar os casos de Luiz
Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, Fagner, Ednardo, Belchior, entre outros.
Com relação à hemerografia na qual buscaremos suporte, destacaremos o
quão substanciosa a presença e atenção que os periódicos pernambucanos dispensaram
ao MangueBit, principalmente o Jornal do Commércio com um número expressivo de
matérias publicadas entre os anos de 1991 a 1997, período que compreende justamente
nosso recorte temporal, assim poderemos perceber que as matérias nas quais
empregaremos em nossas ilustrações denotam a simpatia e em uma certa medida a
contribuição na consolidação do MangueBit.
Nesse sentido a evolução da movimentação que perpassava o MangueBit foi
acompanhada pelos periódicos pernambucanos desde o início, desta maneira a análise
que será proposta destas matérias divide-se em duas categorias, quais sejam, a primeira
14
que utiliza-se dos mesmos apenas como ilustração desta notoriedade dispensada pelos
periódicos.
A segunda categoria que será utilizada está assentada nos periódicos
representados pelas revistas especializadas dentre elas a extinta ShowBizz, em que as
matérias que ilustrarão nossos futuros capítulos, também serão objetos de análises, não
apenas relacionadas diretamente ao MangueBit, mas também como fontes
imprescindíveis da indústria fonográfica que atuava na década de 1990 no mercado
brasileiro.
Posto isso nos debruçaremos nesta empreitada acadêmica intitulada
―MangueBit: diversidade na indústria fonográfica brasileira da década de 1990‖,
no intuito de desvendarmos as maneiras pelas quais estes artífices da movimentação
mangue se auto-promoveram diante de inúmeras adversidades presentes nesta indústria
fonográfica contemporânea.
Em nosso primeiro capítulo intitulado ―‗Que eu desorganizando, posso me
organizar: Novas possibilidades na indústria fonográfica brasileira da década de 1990‘‖,
apresentaremos as ―saídas‖ encontradas por estes artífices da movimentação mangue,
dentre as quais indicaremos o próprio fortalecimento da movimentação local a partir de
uma coletividade proposta por jovens músicos, por conseguinte apresentada como um
produto das vivências culturais e artísticas destes sujeitos sociais, uma espécie de
arcabouço composto por radialistas, breakers, ex-punks, roqueiros, hip hoperes,
produtores culturais, jornalistas, dentre outros.
A amplitude na qual o MangueBit assenta seus perfis estéticos híbridos, nos
conduz-nos à entrecortar nosso objeto à luz do conceito de hibridação cultural11, pois
percebemos que o referido conceito nos aporta teoricamente em um modo seguro de
tencionamento do nosso tema, que nos permite o diálogo com outros autores.
Toda esta discussão que será proposta em torno do nosso primeiro capítulo,
perpassa pelo poder que a própria mídia tem em divulgar e celebrizar certos
acontecimentos, e principalmente, em distorcê-los na sua essência, mesmo que isto traga
em certa medida a notoriedade almejada, porém ―A mídia precisa ser vista como um
11
Na presente pesquisa dentre os autores que iremos nos embasar acerca do conceito de hibridação
cultural podemos citar Nestor Garcia Canclini, Herom Vargas, Massimo Canevacci. Deste modo nosso
entendimento com relação à hibridação cultural será melhor apresentado em nosso primeiro capítulo.
15
sistema, um sistema em contínua mudança, no qual elementos diversos desempenham
papéis de maior ou menor destaque‖12.
Na busca pela autopromoção que será melhor desvelada ainda neste capítulo de
forma mais abrangente, demonstraremos como ocorreu a leitura inteligente do
movimento punk inglês, no tocante a se construir um contraponto entre a rebeldia
presente nos punks, e a armação da movimentação musical compreendida pelos músicos
de Recife. Nesta perspectiva faremos um contraponto entre o visual agressivo dos
coturnos, alfinetes, cabelos moicanos dos jovens punks ingleses, com os jovens músicos
recifenses, e a leitura extremamente inteligente das feiras populares de Recife que os
mesmo realizaram.
Para um melhor entendimento acerca da estética, ou das estéticas musicais
que fomentaram o MangueBit, será proposto um passeio panorâmico pelas
manifestações, movimentos, ou momentos histórico-musicais brasileiros mais versados
do século XX, ou seja, Bossa Nova, Tropicalismo, pois dentro de nossas considerações
é salutar compreendermos o DNA de cada um destes períodos, e como os mesmos de
uma forma direta ou indireta contribuíram no constructo musical do MangueBit.
Na abordagem que realizaremos da sonoridade de Chico Science e Nação
Zumbi e Mundo Livre S.A, é de fundamental importância destacarmos de antemão que
o rótulo musical que outros artistas e bandas carregam em suas músicas e por
conseguinte em suas carreiras, não poderá ser aplicado de maneira direta ao MangueBit,
devido principalmente ao caráter heterogêneo das composições, desta feita iremos
propor um possível entendimento do que seria um ritmo ao qual possamos denominar
como MangueBit, a partir do release caranguejos com cérebro, ou seja, o mesmo serviu
como mote principalmente para os dois primeiros discos de Chico Science e Nação
Zumbi e Mundo Livre S.A.
Em nosso segundo capítulo, intitulado ―Sons e ruídos nos trópicos: A
indústria fonográfica brasileira da década de 1990‖, perceberemos que houve uma
ampla exposição do que entendemos como indústria fonográfica, seus primórdios, os
formatos, evolução, expansão, a própria entrada desta indústria no mercado brasileiro,
como também seus períodos de ascensão, declínio, reestruturação, terceirização e
12
BURKE, Peter. BRIGGS, Asa. Uma História Social da Mídia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002. p. 15.
16
racionalização durante as décadas, desaguando na década de 1990 com suas
peculiaridades.
Concomitante a esta explanação ampla, destacaremos as várias nuances
desta indústria fonográfica, que pela sua magnitude e números assombrosos, delineou
de forma marcante os rumos da música brasileira do século XX, principalmente no que
tange à formação de públicos e consolidação de mercados consumidores.
Embora em um primeiro momento pareça que a discussão que iremos travar
acerca do constructo histórico que fomentou a indústria fonográfica no mundo, em
especial no Brasil, aparente ser extensa e de um certo modo extenuante, devemos
porém observar que características, fatos, crises econômicas, momentos políticos,
influenciaram e por vezes determinaram de forma contundente a indústria fonográfica
brasileira do século XX, em especial a década de 1990, objeto maior de nossas
considerações, contudo ponderando suas singularidades e temporalidades.
A análise destes aspectos trazidos de outras décadas para a década de 1990,
será analisada em nosso segundo capítulo, como uma série de medidas tomadas pelas
grandes gravadoras no sentido de diminuir custos e aumentar os lucros, a partir da
padronização dos estilos musicais e consequentemente do público.
Estes diversos aspectos perpassam o processo de profundas transformações que
este segmento atravessava não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, como a
substituição do disco de vinil pelo (CD) compact disc, a reestruturação que as Majors
passavam no início da década de 1990 com a transferência de vários diretores em
diversos países, o papel decisivo que um produtor musical desempenha na confecção de
um CD, a crise mercadológica já apontada pelas gravadoras transnacionais e a
consequente fragmentação ou terceirização dos produtos através das gravadoras de
menor porte, denominadas de Indies, entre outras características.
Em suma salientamos que toda esta conjuntura, que será explanada em
nosso segundo capítulo, faz-se primordial, na proporção em que desvelamos os diversos
caminhos que a indústria fonográfica trilhou até os dias atuais, sinuoso ao extremo no
que expõe seus interesses estritamente econômicos para com o formato música.
O nosso terceiro capítulo intitulado ―a terceira via da Manguetown‖ servirá
como uma espécie de intersecção entre o primeiro e o segundo capítulos da presente
pesquisa, ou seja, perceberemos que as saídas apresentadas pelos artífices do
17
MangueBit para a autopromoção nesta indústria fonográfica, como também esta própria
indústria e suas nuances, possuem um ponto em comum nesta seara musical, que foi a
visão que estes jovens artistas possuíam do mercado fonográfico pernambucano e
brasileiro da década de 1990.
Neste capítulo, a visão, ou visões dos artífices do MangueBit a qual nos
referimos estará embasada em fontes orais colhidas pessoalmente no decorrer dos
últimos quatro anos, estas supracitadas entrevistas com alguns dos protagonistas da
movimentação irão ajudar-nos a compreender quais sinuosidades fomentaram esta
relação entre os músicos e a indústria fonográfica, principalmente quando
entrecruzarmos as memórias dos sujeitos sociais em questão, com outras fontes a serem
utilizadas.
Para uma melhor e necessária contextualização da década de 1990 na cidade
de Recife, soma-se às fontes sonoras, outros recursos de pesquisa como o levantamento
de dados sociais em geral, principalmente produzidos pelo IBGE, durante o censo
demográfico realizado em 2000 acerca da década de 1990, como também o Atlas
municipal do Recife, e outros dados para a dissertação. Outras fontes foram consultadas,
dentre elas alguns sites da Internet, vídeos produzidos sobre o MangueBit e que
serviram também como fontes primárias, tais como ―A lama, a parabólica e a rede‖,
todas estas referendadas fontes serviram como balizadoras das visões, posições e
críticas acercado nosso objeto de pesquisa.
Esta percepção da indústria fonográfica enquanto meio de promoção dos
respectivos trabalhos de Chico Science e Nação Zumbi, e Mundo Livre S.A, será
desvelada de uma maneira mais apropriada, quando percebermos que mesmo antes da
efervescência cultural que o MangueBit proporcionou ao Recife, a cidade abrigava
algumas ações culturais isoladas, outras coordenadas no que tange à construção de uma
cadeia cultural auto-sustentável.
As supracitadas ações que analisaremos neste capítulo, referem-se à própria
necessidade destes jovens músicos em criar espaços para suas apresentações, realização
de festas com estilos musicais, bares como o ―Soparia‖ dispostos a divulgar as novas
bandas do cenário local, festivais de música de suma importância para a consolidação
do MangueBit como o Abril pro Rock, ou mesmo o curto tempo de vida da ―89 Fm‖ a
18
rádio rock que em um exíguo período de funcionamento, instigou as bandas de Recife a
uma maior profissionalização das suas carreiras.
Nestes exemplos perceberemos que a cidade de Recife passava por um
momento propício às novas possibilidades culturais, orquestradas por jovens músicos
suburbanos, que a partir da metáfora ―uma parabólica enfiada na lama‖, inseriram suas
composições no mercado fonográfico brasileiro, a partir dos selos alternativos, por fim
propondo uma terceira via na musicalidade brasileira.
Em linhas gerais poderá ser observado no capítulo em questão diversos
vetores culturais, quando unidos representaram possibilidades de reconhecimento para
alguns jovens músicos, que imbuídos pela idéia de cooperativismo cultural, escreveram
linhas interessantes mainstream musical brasileiro da década de 1990.
Em suma, versaremos sobre o desejo dos jovens músicos em promover uma
imagem diferente da sua cidade, sonoridade, da própria calamidade que afligia a cidade
na referida época, uma catarse coletiva, ou melhor, parafraseando os jovens músicos,
―este corpo de lama que tu vê, é apenas a imagem que sou‖13, faremos uma leitura
metafórica deste composição de Chico Science, para entendermos que este corpo de
lama é a própria simbiose destes artífices com relação à lama assentada nos mangues
recifenses, o homem construído de lama, fomentado nos manguezais, em o ―sou‖ não é
apenas uma identificação simples enquanto indivíduo; remete-nos a uma questão mais
ampla e profunda, ou seja, a alma deste indivíduo que metamorfoseou sua realidade
cultural, e transformou sua geração em porto seguro
13
SCIENCE, Chico. Corpo de Lama. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 07 (03 min, 53 seg).
19
PRIMEIRO CAPÍTULO
14
SCIENCE, Chico. Da lama ao caos. In: Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de
Janeiro: Chaos/ Sony Music, 1994. 1 CD. Faixa 07 (04 min. 31 seg).
15
―Não, era farra, eu falo cooperativa assim, mas era só farra. Até hoje tem momentos que fico pensando
que é pouco, não dá para acreditar no que toda essa farra se tornou. Por ter sido realmente um fator de
transformação assim, porque na verdade o objetivo era aquela estória de diversão, juntar a galera que
tinha coisa em comum, num lugar onde não tinha espaços pra coisas que a gente gostava, mas depois
retornado, é isso quando a gente resolveu fazer esse movimento junto a partir de 1991‖. Fred 04. apud
SOUZA, Cláudio Morais de. ―Da lama ao caos”: A construção da metáfora mangue como elemento de
identidade / identificação da cena mangue recifense. Recife: dissertação de mestrado em Sociologia
UFPE, 2002. p. 52.
20
Definir este ser híbrido da música contemporânea brasileira como
movimento, Cena, ou qualquer outra denominação, parece restringi-lo a determinados
moldes pré-estabelecidos, sejam eles acadêmicos ou não, ou mesmo que estejam
relacionados a acontecimentos culturais anteriores ligados principalmente à música.
Em primeiro lugar podemos observar que os próprios artífices desta
conjuntura em depoimentos16 colhidos anteriormente, enfatizam o caráter
despretensioso do MangueBit, preferindo denominá-lo como cooperativa cultural,
movimentação, ou:
Bem a denominação é ... deixa eu pensar aqui, rapaz nunca foi a intenção da
gente das pessoas que fizeram essa parada de mangue, no início, que
fizeram não! Que começaram a fazer no início dos anos 90, o chamado
núcleo básico do MangueBit né, a galera do Mundo Livre, a galera da Nação
Zumbi, e uma série de amigos que transitavam ao redor e tal, nunca a
intenção da gente nunca foi fazer nada, nada, é ... que merecesse o rótulo de
movimento, porque a gente achava que essa palavra uma coisa muito
pretensiosa, pra se chamar movimento, imagina, movimento remetia logo à
sei lá Tropicalismo, ou Surrealismo, ou qualquer outra coisa com um peso
né, uma gravidade de é ... de arte, coisa e tal, principalmente porque não
tinha nem um código de regras que devesse, que normalmente um
movimento tem uma série de princípios, estéticos, ou sei lá o quê, que
servem mais ou menos de regras pra os seguidores, os adeptos, e o Mangue
sempre foi construído com uma coisa muito fluída, né até porque
trabalharam a diversidade e etc17.
Este caráter informal reforça o título de ―farra entre amigos‖ exposto por
Fred 04 ao definir o MangueBit, porém percebamos que esta informalidade estava
permeada por ambições culturais bem definidas, ou seja, criar uma cadeia cultural na
cidade de Recife para que estes mesmos artistas despretensiosos pudessem viver através
da música, fugindo de algum serviço burocrático ou coisa do gênero, caracterizariam
esta brincadeira entre amigos como uma coisa direcionada, com algum propósito,
remetendo-nos ao conceito de movimento, contudo sejamos cautelosos nesta definição,
pois esta terminologia merece maiores ponderações.
... o termo Cena enfatiza um caráter muito citado pela turma que é o da
diversidade. Não havendo um movimento a seguir, ―implantar uma cena‖
significa colocar em destaque um conjunto de ricas manifestações musicais
da cidade, de vários estilos e tendências, em espaços cada vez maiores,
16
Com relação a estes depoimentos podemos citar entrevistas realizadas pessoalmente para a presente
pesquisa, entrevistas colhidas em sites, e vídeos que somam outras fontes acerca do MangueBit.
17
Entrevista concedida a este pesquisador por Renato L na cidade de Recife. 18/01/2006.
21
abrindo canais de divulgação mais amplos e dando condições a seus
criadores para que demonstrassem seus trabalhos 18.
18
VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science e Nação Zumbi. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2007. p.88.
19
Souza, op. cit. p. 56.
20
Referência ao release caranguejos com cérebro, que será exposto mais adiante em nosso texto.
21
Neste ponto destacaremos a pesquisa de Geni Pereira dos Santos intitulada ―A linguagem do vestuário,
Expressão de culturas: Um estudo da produção do estilista Eduardo Ferreira.
22
Dentre outros filmes poderíamos citar o"O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas‖ (1999)
Paulo Caldas e Marcelo Luna. O referido filme aborda a história das periferias do Recife, mais
precisamente a periferia de Camaragibe, um município da Região Metropolitana do Recife, em que o fio
condutor da película são as vidas de dois jovens da mesma comunidade (Helinho e Garnizé), que
estudaram na mesma escola, cresceram com os mesmos problemas sociais, porém tomaram rumos
diferentes em suas vidas no intuito de mudarem suas realidades, pois enquanto Garnizé tornou-se
percussionista da banda Faces do Subúrbio, Helinho tornou-se justiceiro de bandidos que atuavam na
sua região, sendo assassinado em 2000 logo após as filmagens do longa metragem.
23
Dentre os prêmios podemos citar Troféu Buriti de Prata, como Melhor Filme pelo Público, no II
Festival Internacional de Cinema de Brasília, e o prêmio do Melhor Filme pelo Público e o Prêmio GNT
de Renovação de Linguagem do Documentário Brasileiro, no V Festival Internacional de Documentários
É Tudo Verdade.
22
apontamos o próprio texto do release ― Caranguejos com Cérebro‖24 que foi elevado à
categoria de manifesto pelas redações dos jornais que o receberam.
Em seu conteúdo na íntegra verificamos que os próprios artífices da
movimentação o conceituam como Cena e não movimento:
Mangue, O Conceito
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em
suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais
ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de
matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre
os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados
e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários
fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de
pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente
importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia
alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos
das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade,
diversidade e riqueza.
Manguetown, A Cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis
rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade
―maurícia‖ passou desordenadamente às custas do aterramento
indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de
―progresso‖, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não
tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros
sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta.
Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do
mito da ―metrópole‖ só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de
miséria e caos urbano.
Mangue, A Cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso
ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um
sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar
e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar
os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que
paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar
as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e
estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da
cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era
engendrar um ―circuito energético‖, capaz de conectar as boas vibrações dos
24
―Caranguejos com cérebro” foi o release sobre a cena musical que estava se instalando em Recife
escrito por Fred 04 e Renato L em 1991, e publicado neste mesmo ano na imprensa pernambucana e no
encarte do cd Da lama ao caos de CSNZ em 1994, porém a imprensa local tomou aquilo como um
Manifesto, e ficou conhecido como o ―Manifesto Caranguejos com Cérebro”.
23
mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem
símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-
hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos
(principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro,
rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos,
midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química
aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o
Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga
inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No
rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes,
filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o
sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
Certamente, que o tom jornalístico do release não seria novidade, visto que
Fred 04 e Renato L são jornalistas profissionais com formação acadêmica. Mas o que
nos interessa é justamente, este processo descritivo de toda uma conjuntura, isto é,
primeiro os jovens jornalistas nos revelam informações técnicas de caráter biológico
acerca da fauna e flora dos manguezais recifenses, um texto que revela propriedade de
conhecimentos técnicos daqueles que o escreveram.
A Manguetown25 apresentada por Fred 04 e Renato L é a cidade do
desencanto26, uma metrópole caótica, miseravelmente desigual, de grandes edifícios às
margens altas do Rio Capibaribe e palafitas às margens baixas deste mesmo rio, em que
noções de progresso arraigadas aos grandes especuladores condenaram a ―metrópole‖
do Nordeste a uma situação delicada no que se refere à qualidade de vida de seus
habitantes, ou seja, “Caos, exclusão social, mão-de-obra em excesso e desqualificada,
infra-estrutura urbana falida e violência serão os sintomas mais gritantes da mudança
do modo de produção arcaico-moderno para o pós-moderno”27.
Percebemos que a localização, o berço de toda esta movimentação é a
cidade de Recife, uma metrópole erguida sobre os manguezais, entrecortada de rios e
seus mananciais, ou como Josué de Castro afirmou: ―A cidade assenta nas terras baixas
de uma extensa planície aluvional que se estende desde as costas marinhas, frisadas,
em quase toda a sua extensão por uma linha de arrecifes de pedra”,28 deveras qualquer
25
O termo Manguetown faz alusão à cidade de Recife e seus problemas sociais, econômicos, culturais,
etc.
26
RIBEIRO, Getúlio. Do tédio ao caos, do caos à lama: Os primeiros capítulos da cena musical mangue,
Recife – 1984/1991. Uberlândia. Dissertação de Mestrado em História, UFU. p.77.
27
SALDANHA NETO, Manuel Romário. Caos e pós-modernidade na cultura pernambucana – A
estética do mangue. Recife: Dissertação de mestrado em letras, UFPE. 2004. p.12.
28
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Editora Brasiliense, 2000. p. 16.
24
atividade seja ela cultural ou não precisa antes de tudo de um habitat, e, Recife é um
produto da ação humana em detrimento da natureza dos manguezais.
Problemas históricos iniciados desde os primórdios da colonização européia,
agravados durante o período ditatorial dos anos sessenta e setenta, consequentemente,
revelando tragédias urbanas de proporções incomensuráveis, assim a Manguetown
fragilizada por séculos de exploração e maus tratos agonizava em vários setores da
sociedade.
Mangue, A Cena, é neste ponto que usaremos a palavra chave de toda a
movimentação que é ―diversidade‖, ou seja, o MangueBit idealizou Recife a partir de
uma mudança da própria realidade cultural da cidade, através de várias ações, dentre
elas a revisão de conceitos pré-existentes, ou de uma maneira mais lúdica, substituir os
canaviais pelos manguezais, o vaqueiro pelo vendedor ambulante, os coqueirais pelos
manguezais, o rural pelo urbano e principalmente o velho pelo novo sem depreciações.
As artérias entupidas da Manguetown precisavam voltar a circular cultura
mesmo que esta inquietação acontecesse através de Bits, pandeiros, literatura, táticas
midiáticas, e ―doses cavalares‖ de diversidade, segundo aponta Homi Bhabha ―a
diversidade cultural pode inclusive emergir como um sistema de articulação e
intercâmbio de signos culturais‖29, em outros termos, movimentar-se culturalmente;
acreditamos que seria a expressão mais usada pelos artífices do MangueBit, existir
enquanto criaturas fomentadas sob a égide da arte, ter a consciência do simbolismo
cultural pertencente a Recife, estruturar-se como ambiente de cultura, criar uma imagem
inspirada na ruas de Recife, desenvolver uma cadeia produtiva cultural na ―Veneza
Brasileira‖.
Havia a necessidade de colocar em movimento todo um organismo cultural
vivo chamado ―Recife‖ que durante anos viveu sob o sedentarismo das práticas
artísticas e do silêncio pernicioso das elites quebrado pelos baques altissonantes do
mangue e para os mangueboys a ordem geral era ―negociar para existir‖, compreender a
cidade como um grande circuito em que seus habitantes antenados como o mundo estão
interligados por lembranças, cultura, tecnologia, enfim:
29
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.63.
25
Pelos olhos – ouvidos, línguas, narizes – fios (elétricos) / ondas sonoras,
vírus conduzidos a cabo/ UHF/ Antenas agulhas/ Eletricidade alimenta/
Tanto quanto oxigênio/ Meus pulmões ligados/ Informações entram pelas
narinas/ E da cultura sai mau hálito ( ideologia)/ Sou eu um transistor?/ Se a
terra é um rádio/ Qual é a música?30
Quem viveu no Recife nos anos 80, é viveu uma época morta, em termos de
cultura, não aconteceu nada aqui no Recife nos anos 80, ou aconteceu muito
pouco também na área de cinema, sabe, é só pode se dizer, porque na área
de música só se tinha Alceu Valença na minha opinião já completamente
estagnado, a produção dele já completamente estagnada, assim, então Recife
passou batido pelo Rock brasileiro dos anos 80, já a galera de Salvador, ou
de Porto Alegre, ou de São Paulo óbvio né, sei lá.31
30
MONTENEGRO, Fred. MangueBit. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema Noise. São Paulo:
Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 01 (03 min. 55 seg).
31
Depoimento de Renato L para a presente pesquisa na cidade de Recife. 18/01/2006
32
O Bairro de Candeias fica localizado no litoral de Jaboatão dos Guararapes, município pertencente à
Região Metropolitana do Recife, berço de bandas como Mundo Livre S.A.
26
Livre S.A, e ―Sala‖ 101 de Renato L, que futuramente realizaria sob os auspícios de um
trabalho de conclusão de curso o programa de rádio ―Décadas‖ realizado na rádio
universitária, que posteriormente transformou-se em um meio de propagação da ―boa
música‖ como os próprios Renato L e Fred 04 denominavam a música que era
executada no programa, ou:
33
RIBEIRO, Getúlio. op. cit. p. 127.
34
O Grande Recife é composto ainda por outros 13 municípios (Abreu Lima, Araçoiaba, Cabo,
Camaragibe, Igarassu, Itamaracá, Ipojuca, Itapissuma, Jaboatão dos Guararapes, Moreno, Olinda, Paulista
e São Lourenço da Mata).
35
SCIENCE, Chico. Samba de lado. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 07 (03 min. 46 seg).
36
SCIENCE, Chico. A cidade. In: Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1994. 1 CD. Faixa 04 (04 min. 46 seg).
27
cultural contemporânea: o fenômeno da fragmentação/pluralização que tem atingido
não só o Brasil, mas, de modo geral, a grande maioria dos países do Ocidente”37.
A construção de um contexto cultural fazia-se necessária na cidade de
Recife, e para tal empreitada jovens possuidores de realidades diferentes pensavam
música como um agente aglutinador de possibilidades dentro de uma metrópole
esquecida pelos governantes, ou como Getúlio Ribeiro resumiu:
37
HERSCHMANN, Micael. (Org). Abalando os anos 90. Funk e Hip Hop, Globalização, Violência e
Estilo Cultural. Rio de Janeiro: Editora Artemídia Rocco, 1997. p. 58.
38
RIBEIRO, Getúlio. op cit. p. 212
28
seletividade e certamente, lobrigar o MangueBit como uma ação cultural coletiva de
seus amigos, que tentavam mudar o cenário musical da cidade que habitavam no início
da década de 1990, uma espécie de conjuntura macro que se conjecturava desde o
lançamento do release ―caranguejos com cérebro‖, que em uma certa medida fugia até
mesmo da compreensão destes artífices como citado anteriormente.
Ao apontarmos esta terceira via não estamos nos eximindo da
responsabilidade de denominarmos nosso objeto de uma maneira apropriada, mesmo
porque não há um consenso em sua denominação por parte dos artistas, imprensa e a
própria academia.
Desta feita nosso conceito de terceira via busca o entendimento do
MangueBit em toda sua conjuntura, ou seja, sua concepção enquanto necessidade de
criação de uma cadeia cultural na cidade de Recife, sua ideia central ―uma parabólica
enfiada na lama‖ que simboliza todo o conceito de diversidade proposto por seus
artífices, a própria visibilidade que toda esta ação cultural ganhou nos palcos do Brasil e
do mundo e a visão da mídia que o denominou como movimento e elevou seu release
―caranguejos com cérebro‖ à categoria de manifesto.
Em nossa pesquisa compreendemos que o MangueBit em sua gênese foi
concebido como uma movimentação por parte de seus artífices no intuito de se criar
uma Cena cultural na cidade de Recife, mesmo que com o passar dos anos e a
repercussão que o mesmo alcançava, seus fomentadores ainda o vislumbravam como
uma Cena, não percebendo de imediato toda a conjuntura que havia se formado ao redor
deles, como o apoio da imprensa local (periódicos, Tvs ―locais‖, jornalistas
especializados, etc), canais de televisão com um alcance amplo pelo Brasil como a Rede
Globo Nordeste, MTV, como também a própria indústria fonográfica que de uma forma
equivocada, apoiou as bandas em um primeiro instante, pensando se tratar de uma nova
Axé Music devido aos tambores de Chico Science e Nação Zumbi como relatado pelos
próprios artífices.
A denominação acerca do nosso objeto está assentada também no caráter
renovador e valorizador que o MangueBit delineou para a cultura popular
pernambucana dos maracatus, afoxés, caboclinhos, etc, a muito esquecida por uma
parcela considerável da população, principalmente por suas elites culturais.
29
Diante das variáveis expostas acreditamos que o MangueBit em sua gênese,
no tocante à escrita do release caranguejos com cérebro, da necessidade de se criar
espaços para apresentações por parte de seus fomentadores, da própria visibilidade
almejada junto às rádios pernambucanas e canais televisivos, o MangueBit caracteriza-
se como Cena, porém ao analisarmos toda a dimensão que o referido objeto tomou junto
aos canais de televisão, periódicos, imprensa especializada, casas de shows nas cidades
de Recife e Olinda e principalmente, o reconhecimento do público enquanto
consumidores desta guinada cultural que acontecia em seus ―quintais‖ logo após o
lançamento dos dois primeiro discos de Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre
S.A, respectivamente; o MangueBit caracteriza-se como movimento em sua amplitude.
Contudo, ao caracterizarmos nosso objeto de estudo como movimento,
devemos esclarecer que o mesmo não possuía regras rígidas pré-estabelecidas, estatuto,
ou qualquer outra noção que remetesse a um círculo fechado de ideias, pelo contrário o
movimento que apontamos ao MangueBit está diretamente relacionado ao significado
da palavra, ou seja, ―movimentação‖, ―agitação‖, ―circulação‖.
Não obstante como o próprio MangueBit se caracteriza como pluralizado no
tocante à estética musical que o compõe, nosso entendimento enquanto terceira via
perpassa justamente esta característica híbrida, condiz com o conceito de diversidade
citado anteriormente, propõe em nossa pesquisa uma liberdade, um largo espectro de
possibilidades na investigação do objeto em questão, outrossim nos permite dialogar
com as inúmeras fontes que nos alimentam, assim como também com os outros
pesquisadores que outrora contribuíram em seus trabalhos acadêmicos com a percepção
dos meandros que envolvem o MangueBit.
Portanto em nosso entendimento identificamos o MangueBit como uma
movimentação dentro destas perspectivas citadas anteriormente, não nos esquivando de
um conceito mais inteligível ou celebrado pela imprensa, mas oportuno e condizente
com todo as características que apresentamos até então, um termo impregnado com
todas as faces expostas por nosso objeto de pesquisa.
30
1.3 – ―O homem coletivo sente a necessidade de lutar‖ 39: Metamorfosear para se
organizar. Agir para existir.
―Ação‖ é um conceito cujo sentido fica mais claro quando confrontado com
outro, ―fabricação‖, de amplo trânsito não explicitado e não confessado. A
fabricação é um processo com um início determinado, um fim previsto e
etapas estipuladas que devem levar ao fim preestabelecido. A ação de seu
lado, é um processo com início claro e armado mas sem fim especificado e,
portanto sem etapas ou estações intermediárias pelas quais se deva
necessariamente passar – já que não há um ponto terminal ao qual se
pretenda ou espere chegar40.
39
SCIENCE, Chico. Monólogo ao pé do ouvido. In: Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos.
Rio de Janeiro: Chaos/ Sony Music, 1994. 1 CD. Faixa 04 (01 min. 06 seg).
40
COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, 2001. p.12.
41
Depoimento de Renato L para a presente pesquisa na cidade de Recife. 18/01/2006
42
Grupo de Samba Reggae da Comunidade de Peixinhos (periferia de Olinda), que serviu de base para o
naipe de tambores de maracatu que iriam compor a Nação Zumbi, juntamente com alguns integrantes
como o percussionista Gilmar Bola Oito que permanece na banda até os dias atuais.
43
Loustal foi uma banda formada em 1989 por Chico Science, Alexandre (dengue) e Lúcio Maia, em
homenagem ao quadrinhista francês Jacques de Loustal, a referida banda composta por futuros
integrantes da Nação Zumbi, compôs algumas músicas que serviriam de embrião para o repertório de
Chico Science e Nação Zumbi, como as músicas Etnia e Manguetown.
31
―Sul Maravilha‖ para alcançar o reconhecimento da grande mídia da indústria
fonográfica, sendo reconhecidos ainda em Pernambuco.
Para compreendermos esta conjuntura faz-se necessário uma exposição inicial do
panorama desta indústria cultural fonográfica dominada na época pelas Majors44
sediadas no Sudeste do Brasil, com suas divisões mercadológicas baseadas em uma
geografia impositiva dos bens culturais, além de uma logística empresarial que não
respeitava de maneira alguma as particularidades artísticas das regiões brasileiras.
44
O termo Majors em nosso texto faz alusão às grandes gravadoras (Sony, EMI, BMG-Ariola, Warner
Music, Polygram, etc) que dominavam o mercado fonográfico brasileiro na década de 1990 com relação à
produção de artistas e de seus respectivos CDs, Marketing, e distribuição.
45
DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz. Indústria Fonográfica brasileira e mundialização da cultura.
São Paulo: Boitempo editorial, 2000. p. 134.
32
Devemos observar que estas duas formas de produção fonográfica eram as
mais praticadas no mercado brasileiro e envolviam diretamente interesses comerciais
sobre os bens culturais, entretanto acreditamos que o MangueBit serviu como uma
terceira via para esta comercialização da arte, isto é, o movimento conseguiu deslocar os
holofotes da mídia para o Nordeste, visto que sempre estiveram voltados para o Sudeste
brasileiro, forçando os artistas nordestinos a uma transferência de suas carreiras,
exemplos disto foi os músicos Luiz Gonzaga na década de 1950, Belchior e Alceu
Valença na década de 1970, entre muitos outros.
O MangueBit obteve outras conquistas dentro desta indústria cultural
fonográfica brasileira que devemos salientar como a assinatura de um contrato com o
selo CHAOS de propriedade da Sony Music e a concepção da capa do primeiro CD de
Chico Science e Nação Zumbi ―Da Lama ao Caos‖ produzida pelos artistas
pernambucanos Helder Aragão e Hilton Lacerda, fato que até então era restrito aos
artistas do Sudeste brasileiro, esta capa consistia em um fundo preto com a silhueta de
um caranguejo feita através da colagem de várias figuras coloridas, embora a capa
desejada pelos Mangueboys em um primeiro momento tenha sido em preto e branco, e a
gravadora tenha optado por esta capa colorida por motivos comerciais.
Podemos salientar que esta indústria fonográfica da década de 1990, que
atuava no Brasil, será devidamente apresentada e debatida em nosso segundo capítulo,
desta forma esta apresentação em linhas gerais nos indica uma conjuntura duplamente
desfavorável aos mangueboys no tocante ao local de surgimento da Cena mangue, ou
seja, uma periferia brasileira chamada Recife e em segundo lugar uma música que não
possuía um apelo comercial juntos aos meios de comunicação, principalmente
televisivos e radiofônicos; não obstante isto não impediu o uso de verdadeiras ―táticas
de guerrilhas nas trincheiras culturais urbanas‖, negociações culturais versadas nas
complexas teias multiculturais contemporâneas, ou
46
BHABHA, Homi K. op. cit. p.20-21.
33
Estes embates culturais acima citados por Bhabha nos remete à própria
sobrevivência cultural que estes jovens artistas travaram neste mercado, todavia não nos
remetemos a heroísmos artísticos ou qualquer outro tipo de promoção quixotesca da
cultura, mas às próprias negociações culturais colocadas em prática por estes artífices,
na década de 1990 caracterizada como um período de profundas mudanças no mercado
fonográfico brasileiro e mundial os quais serão devidamente analisados em nosso
segundo capítulo.
47
O sampler consiste em uma espécie de ―colagem‖ musical, realizada com o auxilio de equipamentos
analógicos, tendo como principal característica a sobreposição de músicas e ritmos diferentes ou
semelhantes, que de alguma forma são harmonizados, consistindo em um traço marcante da cultura Hip
Hop, do Dub e também presente no MangueBit.
34
Procure antenar boas vibrações/ Procure antenar boa diversão/ Sou, Sou,
Sou, Sou, Sou Mangueboy48.
Uma série de equívocos que eram tão esperados, assim, havia um campo tão
fértil das pessoas esperando por aquilo, que esses equívocos acabaram, é
sendo super aceitos, então foi uma coisa, o erro certo na hora certa,
equívocos eu falo porque é, é a ideia era ser uma cooperativa cultural, era
uma coisa de amigos que se transformou num movimento, equívoco porque
o release virou um manifesto, é, equívoco porque até o próprio nome a
grafia BIT de bit de informação, virou beat de batida, por algum erro de
algum jornalista, mas tudo, todos esses erros, é, atendiam a uma, uma
necessidade tão grande das pessoas que tavam ao redor do público, é, da
cidade, e dos jornalistas enfim, que foi erro certo na hora certa50
48
SCIENCE, Chico. Antene-se. In: Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1994. 1 CD. Faixa 10 (03 min. 35 seg).
49
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. p. 262.
50
DOLORES, DJ. Apud CALAZANS, Rejane. VIANNA, Clarisse. A lama, a parabólica e a rede. IÁIÁ
Filmes. 2008.
35
diferentemente do BIT de computadores que denota algo mais ligado apenas à
tecnologia .
Através do conceito ―Uma parabólica enfiada na lama‖ estes jovens artífices
buscaram saídas nesta seara mercadológica da indústria fonográfica de várias maneiras,
dentre as quais o ―movimento punk inglês‖ do final da década de 1970, ou melhor, uma
movimentação estético-musical surgida no Velho Continente, mais precisamente na
capital inglesa, que influenciou de forma marcante, jovens artistas do Nordeste
brasileiro na década de 1990 e os inspirou em várias atitudes, pois:
51
BIVAR, Antônio. O que é Punk. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 57.
36
estado de caos em vários setores de sua sociedade, sendo a juventude recifense um dos
segmentos mais afetados; os altos índices de desemprego e violência que atingiam a esta
referida juventude eram alarmantes, pois neste sentido de falta de perspectivas de vida,
não apenas pelas classes menos favorecidas como é o caso específico de Recife, mas
pela classe média também que vislumbrava melhores condições de vida no Sudeste
brasileiro, como o caso do músico Fred 04 que após o término da Universidade na
primeira metade da década de 1980, viveu um ano em São Paulo como repórter free
lancer.
Unindo estas duas experiências de uma forma cautelosa nos seus devidos
contextos, nos sobra uma juventude desiludida, que desacreditava não apenas em seu
próprio futuro como cidadãos de suas respectivas cidades, mas em toda a conjuntura que
os rodeava enquanto habitantes de metrópoles falidas socialmente.
Outra similitude entre estas duas manifestações juvenis contemporâneas foi
a própria negação de ambas as partes enquanto ser político, ou seja, ―A imprensa não
sabe o que diz. Como é que posso ser político se nem sei o nome do primeiro
ministro?‖52, de fato ao analisarmos a postura dos jovens ingleses no auge do punk,
verificamos uma distância entre o artista escrever músicas que contestem a coroa
inglesa como ―God Save the Queen‖ música de 1977 do grupo Sex Pistols, outra coisa é
a banda ou o artista tomar posições deliberadamente políticas. Assim, como também
compreendemos o MangueBit não como uma movimentação isenta da política, mas com
tendências muito mais permeadas pela cultura musical, que utilizou este elemento
artístico como catalisador das ações culturais desencadeadas por estes referidos jovens.
Neste viés comportamental do punk verificamos que o mesmo não defendia
bandeiras políticas, embora possuísse alguns aspectos contestatórios, porém é
importante salientarmos que, ―o punk é anarquizante, mas não anarquista e nunca
recorreu a soluções sociais propostas pelos teóricos do anarquismo‖53, este caráter
diríamos mais ―radical‖ do punk embora não se alinhe com a identidade mangue,
revela-se como propulsor de sentimentos em estado silente durante décadas, sobretudo
com relação à conjuntura pós-ditadura militar e de anistia que se instituiu no Brasil, isto
é, um cenário pré-mangue no que se refere à cidade de Recife.
52
BIVAR, Antônio. op. cit. p. 50.
53
MARKMAN, Rejane Sá. Música e Simbolização. Manguebeat: contracultura em versão cabocla. São
Paulo: Editora AnnaBlume, 2007. p. 71
37
Nesta questão das assimilações entre o Punk londrino e o MangueBit
recifense, podemos destacar a indumentária utilizada pelos jovens e suas respectivas
cenas, pois o punk utilizava-se do choque visual, dos alfinetes espetados no corpo e nas
roupas rasgadas e desbotadas, cabelos moicanos coloridos, coturnos no estilo forças
armadas, em suma, um visual que delineava uma intenção de agressividade perante
aquela sociedade desfalecida diante de graves problemas sociais que seus governos não
conseguiam solucionar.
Enquanto o MangueBit por outro lado demonstrava em sua estética visual, a
riqueza de elementos simbólicos de uma metrópole do Nordeste brasileiro, ou seja,
mesmo que o figurino não busque o choque imediato do visual punk, os mangueboys
utilizaram o que lhes representava um grande organismo metropolitano em estado de
caos chamado Recife, com sua urbe inchada, crescida desordenadamente, com um
comércio informal de camelôs disseminado em várias partes da cidade, e foi justamente
neste mercado alternativo que Chico Science e Fred 04 buscaram inspiração para
compor suas indumentárias com óculos de sol, chapéus de palha, colares, camisas
coloridas, tênis e meiões, além da própria linguagem de bits e pixels que serviram
também para vestir estes jovens músicos.
54
BOULEZ, Pierre. A música hoje 2. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 19.
38
1.5- Modernizar o passado é uma estética musical55.
55
Referência à música ―monólogo ao pé do ouvido‖ de Chico Science e Nação Zumbi do álbum ―Da
lama ao caos‖.
56
Não nos interessa nesse momento do texto maiores considerações acerca do termo movimento, pois
iremos analisar neste momento as estéticas que envolvem os referidos momentos musicais brasileiros,
cabendo apenas seu uso mais utilizado pela mídia e grande público.
39
camerística, Tom se voltava para os recursos sinfônicos. É como se ambos
interpretassem o momento histórico em que viviam de maneiras diferentes:
João à maneira construtivista que marcava a década, tanto na literatura
quanto na arquitetura e nas artes plásticas, e Tom a partir do ponto de vista do
modernismo musical, representado, por exemplo, por Villa Lobos57.
57
NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
p.18.
58
Idem. Ibidem. p.22.
40
instrumentos como baterias, pratos de ataque, dentre outros, que levariam a música a um
tom mais jazzístico e performático por parte dos músicos59.
Alguns artistas60 promoveram mudanças na música brasileira que iam além
de questões rítmicas, ou mesmo estéticas, pois estavam permeados por apresentações
mais pungentes, em que não apenas a música deveria ser bem executada mas a
performance de palco, representaram uma espécie de intersecção entre a Bossa Nova e o
Tropicalismo, mesmo que não possamos dissociar suas carreiras de ambas as
influências supracitadas.
A geração posterior de artistas do Tropicalismo com uma estética musical
versada nas composições engajadas devido principalmente ao Golpe Militar de 1964,
fez suas primeiras aparições para o grande público nos festivais de música a partir de
1965 na extinta TV Excelsior no I Festival de MPB de São Paulo, depois o II Festival
de MPB de São Paulo que lança Chico Buarque e Geraldo Vandré, posteriormente o III
Festival de MPB de São Paulo em que figuras como Caetano Veloso e Gilberto Gil
aparecem para um maior público.
O Tropicalismo aparece de forma mais nítida, justamente neste III Festival
de MPB de São Paulo em que Caetano Veloso e Gilberto Gil ficaram em segundo lugar
com a música ―domingo no parque‖, porém com sua amplitude cultural61, o
Tropicalismo tem como marco:
59
Com relação ao tom performático destes músicos, nos referimos à Elis Regina, Wilson Simonal, Jorge
Ben, dentre outros, diferentemente, da performance intimista de João Gilberto por exemplo.
60
Dentre estes artistas podemos citar Elis Regina, Jair Rodrigues, etc
61
Conferimos o termo ―amplitude cultural‖ com relação ao Tropicalismo para fazermos um contraponto
com a Bossa Nova, ou seja, percebemos que existiu uma maior diversidade cultural presente na
Tropicália, pois além da música em si, houve uma participação direta de segmentos artísticos como a
poesia representada pelos poetas Torquato Neto e Capinam, artistas plásticos como Rogério Duarte, Hélio
Oiticica, no teatro com o Grupo Oficina, dentre outras representações.
41
nacionalismo ufanista, ora como alusão difusa a um latino-americanismo
libertário; Coração materno, opereta grotesca de Vicente Celestino que na
voz de Caetano oscila entre a blague dadaísta (ao se utilizar de uma música
desvalorizada pelo gosto vigente na MPB, justamente para problematizá-la)
e a nostalgia da redundância (na medida em que traz à tona o material
musical cultural recalcado pela linha evolutiva, mas parte formativa de uma
sensibilidade musical arcaica)62.
62
NAPOLITANO, Marcos. VILLAÇA, Mariana Martins. Tropicalismo: As relíquias do Brasil em
debate. São Paulo: Revista Brasileira de História volume 18 nº 35, 1998.p.65.
63
NAVES, Santuza Cambraia. Da bossa nova à tropicália: contenção e excesso na música popular. São
Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais volume 15, nº 43, 2000. p. 43.
42
Nestas supracitadas estéticas que fomentaram o MangueBit, sejam elas
atinentes à cultura popular, aos elementos estrangeiros, às novas tecnologias a serviço
da música, podemos perceber que o papel, ou melhor a funcionalidade que cada
elemento teve dentro deste constructo da moderna música brasileira, foram necessárias
na comprovação de todo um arcabouço histórico musical delineado durante o século
XX.
À guisa de uma possível conclusão a respeito das estéticas musicais
presentes na Bossa Nova, no Tropicalismo, e no MangueBit, percebemos que um olhar
mais aguçado para as sonoridades brasileiras como o samba, o xaxado, o baião realizado
pelos bossa-novistas; ou mesmo a valorização de artistas e sonoridades de cunho mais
popular esquecidos pela mídia como o Tropicalismo o fez, com as rumbas e com artistas
como Vicente Celestino. Não tão distante da releitura e consequente valorização que o
MangueBit propôs aos maracatus, afoxés, cirandas, dentre outros que sofriam com o
ostracismo cultural por parte de diversas camadas da sociedade pernambucana.
Em nossas observações acreditamos que um dos principais fatores que
levaram estes três momentos históricos ao reconhecimento, foi justamente esta
capacidade de se reinventar, de alimentar-se com o banquete sonoro à disposição nos
melhores caldeirões culturais espalhados pelo Brasil, como também beber nas mais
diversas fontes sonoras, sejam elas jazzísticas, anglo-saxônicas, ou mesmo eletrônicas, e
regurgitarem uma catarse musical criativa, sempre atual, versada em certa medida na
originalidade que lhe coube.
64
SCIENCE, Chico. Enquanto o mundo explode. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio
de Janeiro: Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 07 (01 min, 28 seg).
65
O britânico Malcolm Mclaren foi um dos grandes articuladores da cena Punk londrina da década de
1970, além de empresário da Banda Sex Pistols.
43
promoção de festas com temáticas mangue, a autopromoção frente aos meios
midiáticos, uma indumentária própria carregada de simbolismos, a criação de uma
linguagem própria como ―chié, mangueboy, manguegirl, de andada, caranguejos com
cérebro‖, entre outras terminologias, além da criação de toda uma simbologia nas
composições de suas músicas e confecções de seus CDS, e indubitavelmente a criação
de toda uma cadeia cultural auto-sustentável.
66
LIRA, Ana. A Maravilha Mutante. Recife: Dissertação de Mestrado em comunicação, UFPE. 2002.
p.13.
67
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: Uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio
Nobel, 1996. p. 41
68
VARGAS, Herom. op. cit. p. 20
44
durante séculos foram forjadas por diversos agentes, sejam eles indígenas, africanos,
europeus, entre outros.
Nomear o inominável, ou mesmo restringir o que não se pode controlar,
assim denominar um conceito que serviu de tática cultural para jovens artistas do
Nordeste brasileiro da década de 1990, mesmo que tal conceito seja apresentado como
―uma cilada teórica‖69, parece a priori impossível, porém em nossas suposições
começamos a desvelar o que seria o híbrido, mais precisamente uma hibridação cultural
quando relacionamos diretamente à música, como o mesmo se encaixa, enquadra, ou
coaduna, não obstante este conceito não seja fixo, ele perpassa o MangueBit em um
contexto de negociações culturais que fomentaram esta Cena recifense.
É justamente na criatividade em beber de várias fontes, negociar e utilizar as
influências, que fazem do MangueBit uma movimentação erguida sob os auspícios da
hibridação cultural, da preponderância de combinações, ou seja, ―uma poderosa fonte
criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia,
que as velhas e contestadas identidades do passado‖70, Hall acrescenta que este mesmo
relativismo que poderia cercar o hibridismo tem seus custos e perigos, entretanto nestes
questionamentos observemos que a ―não linearidade‖, não significa falhas no estudo do
objeto.
Todavia esta mobilidade identitária permitiu ao MangueBit o surgimento
no mercado fonográfico brasileiro, representando uma alternativa criativa no processo
mercadológico das grandes gravadoras, ou até mesmo poderíamos pensar em certa
medida na ultrapassagem de fronteiras pré-estabelecidas, sejam elas temporais, causais,
ideológicas, entre outras.
Sendo o MangueBit cadenciado pelos toques polifônicos da hibridação
cultural, acreditamos que a mesma tenha sido uma das muitas variáveis que facilitaram
a inserção da Cena mangue no cenário musical brasileiro da década de 1990, um tipo de
tática, baseada na própria bandeira levantada pelos artífices (a diversidade), sem
cristalismos armoriais, discursos de resgate da cultura popular, ou qualquer outra
expressão do gênero, mas permeado por negociações culturais em que o secular e o
contemporâneo coexistam de forma que um não se sobreponha sobre o outro e vice-
69
Idem, Ibidem. p.21
70
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. p.
91
45
versa, constituindo um ―produto multideterminado de agentes populares e
hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais‖71, um verdadeiro
mosaico de culturas, e tecnologias a serviço da música, ou:
71
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2000. p. 220
72
VARGAS, Herom. op. cit. p. 23 – 24.
46
CHAMAGNATUS GRANULATUS SAPIENS73
Somos todos juntos uma miscigenação/ e não podemos fugir da nossa etnia/
índios, brancos, negros e mestiços/ nada de errado em seus princípios/ o seu
e o meu são iguais/ corre nas veias sem parar/ costumes, é folclore, é
tradição/ capoeira que rasga o chão/ samba que sai da favela acabada/ é hip
hop na minha embolada/ é o povo na arte/ é arte no povo/ e não o povo na
arte/ de quem faz arte com o povo/ maracatu psicodélico/ capoeira da
pesada/ bumba meu rádio/ berimbau elétrico/ frevo, samba e cores/ cores
unidas e alegria/ nada de errado em nossa etnia 74
73
Figura antropozoomórfica contida no encarte do CD Da lama ao caos de Chico Science e Nação
Zumbi, lançado pelo selo Chaos da Sony Music em 1994. A referida gravura simboliza um ser humano
habitante de Recife que após ingerir cerveja feita a partir da água da baba de um caranguejo mutante
radioativo, adquiriu esta forma. Porém, devemos verificar que esta mesma gravura nos remete de forma
proposital ao caboclo de lança (figura principal do maracatu rural pernambucano) com sua cabeleira
volumosa feita a partir de ráfia colorida.
74
SCIENCE, Chico. Etnia. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Chaos/
Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 06 (02 min. 32 seg).
75
RIBEIRO, Getúlio. Apud. MC (Master of Ceremonies), mestre de cerimônias, era o responsável por
apresentar e comentar as seleções musicais que o DJ tocava, além de ―agitar‖ o público com frases fortes
e palavras de ordem bem colocadas em meio às músicas. Com o tempo, o MC tendeu a se tornar, cada vez
mais, um tipo especial de cantor, o que se consolidou com o posterior desenvolvimento do rap (rythm and
47
como Fred 04 versou: ―Eu tenho feito samba pesado, misturando sons, inventando
estilos, ...‖76
Esta característica do MangueBit baseada na hibridação cultural, confere ao
mesmo um aspecto atual frente ao processo contínuo das culturas na atualidade, um
semblante jovial, um bramido de novos sons na música contemporânea brasileira, ou
um sopro de novidade.
1.7– Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar77: autopromoção
na cidade estuário.
poetry, em português ―ritmo e poesia‖) poesia rimada que serve como base para o desenvolvimento de
uma nova modalidade de canto falado. Com a difusão maior do rap, o MC passou também a ser chamado
de rapper. p.168.
76
MONTENEGRO, Fred. Destruindo a camada de ozônio. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema
Noise. São Paulo: Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 02 (03 min. 52 seg).
77
SCIENCE, Chico. Um passeio no mundo livre. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio
de Janeiro: Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 06 (03 min. 59 seg).
48
espetáculos e bares para as apresentações como o ―Poco Loco‖, ―Franc‘s Drink‘s‖,
―Soparia‖78, espaços públicos, dentre outros, eram conseguidos através dos amigos; o
aluguel do som utilizado nas festas era dividido entre as bandas que iriam se apresentar
e o público destas festas em algumas ocasiões era ―convocado‖ através de cortejos de
maracatu promovidos pelo ―Lamento Negro‖ até as casas de shows onde aconteceriam
os eventos.
É interessante observarmos que a própria formação acadêmica de alguns dos
fomentadores da movimentação mangue, como Fred 04, Renato L, dentre outros,
facilitou a divulgação da movimentação com os parcos recursos que estes jovens
possuíam na cidade de Recife, ou seja, os contatos pessoais com jornalistas que
trabalhavam ou ainda trabalham nos jornais de maior circulação do Estado de
Pernambuco, ―Diário de Pernambuco‖, e ―Jornal do Commércio‖, foram de certa forma
preponderantes na divulgação que os mesmos pretendiam.
Todavia podemos ressaltar neste ponto o amplo apoio que o referido JC79
desempenhou na divulgação da movimentação e posteriormente, na consolidação da
mesma, principalmente com o repórter e colunista José Teles, e o responsável pelo
Caderno C de cultura Marcelo Pereira do referido periódico.
Outrossim, não estamos afirmando que estes contatos com os periódicos da
cidade de Recife tenham sido o único motivo para estes jornalistas profissionais terem
apoiado a movimentação, embora tenhamos detectado em nossa pesquisa um número
significativo de reportagens acerca do MangueBit, como no Diário de Pernambuco com
um aspecto mais conservador, um pouco descrente para o que estava acontecendo na
cidade de Recife com relação à movimentação artística, e um número menor de
matérias, diferentemente do JC que durante o período de junho de 1991 a março de
2007 encontramos cerca de 295 reportagens acerca do nosso objeto.
Continuando nestas perspectivas da autopromoção da Cena na cidade de Recife,
verificamos uma conjuntura de ações midiáticas promovidas por estes jovens artífices,
isto é, pensar que uma movimentação musical do Nordeste brasileiro que iria utilizar a
Internet como meio de divulgação ainda na década de 1990, fazendo desta tecnologia
instrumento na divulgação e consolidação da mesma, tornando a cidade de Recife um
78
Bar pertencente ao agitador cultural Roger de Renor, um ex-produtor de divulgação da Warner que
resolveu dar oportunidades às bandas que estavam iniciando na cena pop pernambucana, dentre estas
bandas destacamos Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A.
79
Sigla para denominarmos o Jornal do Commércio.
49
grande circuito cultural antenado às boas vibrações, ou uma vanguarda virtual a serviço
da cultura urbana, ferramenta poderosa de divulgação mundo a fora.
Esta conjuntura de Bits, Pixels, Sites, UHF, entre outros elementos virtuais,
não foram utilizadas apenas na composição de músicas, mas na construção de sites
como o MangueBit em 1995, ou o Manguetronic de 1996 um dos primeiros programas
de rádio veiculados pela Internet, uma novidade para a década de 1990 não apenas na
cidade de Recife, mas em todo o Brasil até mesmo nas grandes metrópoles como São
Paulo e Rio de Janeiro, além dos rebentos tecnológicos como os sites ―A Ponte‖, ―Som
do Mangue‖, e a revista eletrônica ―Manguenius‖, etc.
Abrimos uma interseção neste ponto importante do nosso texto, pois
acreditamos que uma movimentação pop contemporânea precisa de um grande evento
para servir de baliza, ou mesmo uma espécie de termômetro do que estava acontecendo
na cidade, um local aglutinador não apenas de bandas que compunham este cenário,
mas do público que deveria ser formado naquele Recife da década de 1990, e
principalmente, de uma vitrine não apenas para os olhos curiosos do público
pernambucano, mas de produtores culturais e repórteres do Sudeste brasileiro habitat
das grandes corporações jornalísticas.
Referimo-nos ao Festival Abril pro Rock que teve sua primeira edição em
25 de abril de 1993, organizado pelo jovem empresário Paulo André Pires, que após
uma estadia nos Estados Unidos retornou à cidade de Recife onde inaugurou uma loja
de discos chamada Rock X Press, posteriormente, percebendo que havia uma carência
no ramo da produção de bandas locais, produziu grupos da cidade através de sua
produtora ―Kamikaze‖, dentre estas bandas produzidas por Paulo André devemos citar
Chico Science e Nação Zumbi, que através desta parceria conseguiram alçar vôos além
mar, ou seja, turnês pela Europa e Estados Unidos, além da assinatura do contrato com
o selo alternativo da Sony Music ―Chaos‖.
Indubitavelmente, estas presenças no festival APR80 eram importantes para
a divulgação da Cena, porém a presença que nos interessa de uma forma especial em
nossa pesquisa é justamente, a dos agentes das grandes gravadoras, ou seja, os
―olheiros‖ uma espécie de descobridores de talento, pois foi a partir deste Festival que
as Majors, especificamente a Sony Music, percebeu que o silêncio da cidade dos
80
Utilizaremos esta sigla para denominarmos o Festival Abril pro Rock.
50
manguezais havia sido quebrado por alfaias81 estridentes, um ex-punk de linguagem
ácida e cavaquinho nervoso, e um jovem breaker de Rio Doce82 que mais adiante iria se
tornar o frontman desta movimentação.
Na primeira edição do festival APR que contou com 12 bandas, dentre elas
Chico Science e Nação Zumbi, e, Mundo Livre S.A, Maracatu Nação Pernambuco,
Paulo Francis vai pro céu, Zaratempo, o remanescente da geração setentista Lula Côrtes,
entre outros; serviu como um preâmbulo do que seria a edição seguinte do festival, pois
a notoriedade do mesmo foi substanciosa, com os veículos de comunicação83 que
aportaram em Recife para conhecer não apenas o festival pop que colocava no mesmo
palco, com o mesmo público, roqueiros, cirandeiros, metaleiros, etc; e bandas que
faziam uma sonoridade diferente e possuíam toda uma movimentação musical
organizada na cidade a partir de suas tradições seculares como os maracatus, cirandas,
afoxés, caboclinhos, entre outros, com sonoridades contemporâneas como o funk, soul,
hip hop, rock, além de tecnologias a serviço da música como o Sampler, e um
vocabulário próprio com o glossário mangue.
Acreditamos que o festival APR serviu como vitrine, e principalmente,
como vetor de uma maior projeção para grupos como Chico Science e Nação Zumbi e
Mundo Livre S.A, uma vez que partir da sua segunda edição em 1994, empresários que
representavam a Sony Music e a Warner estiveram em Recife para assinarem contratos
com bandas do cenário local.
81
Tambores específicos para as músicas do maracatu de Pernambuco, e utilizados pelos músicos da
Nação Zumbi.
82
Periferia de Olinda, um dos bairros mais populosos do Grande Recife, foi neste bairro que Chico
Science e Jorge Du Peixe se conheceram e cresceram.
83
Dentre estes veículos de comunicação podemos citar a Rede Globo Nordeste, MTV, revistas
especializadas em música como a extinta Show Bizz, entre outros.
84
SCIENCE, Chico. Matheus Enter. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 01 (00 min. 32 seg).
51
Observamos que os jovens artífices entenderam que para desenvolver todo um
circuito cultural em uma metrópole brasileira, é indispensável o fortalecimento dos
grupos locais e uma interação com todas as figuras que estejam envolvidas nesta seara
cultural, ou seja, o MangueBit através de uma assimilação e utilização desta conjuntura
midiática fonográfica contemporânea, imprimiu à música no Brasil uma nova
possibilidade, uma característica peculiar, ou:
85
VARGAS, Herom. op. cit. p. 104.
52
figura do produtor cultural, uma espécie de criatura onisciente e onipresente da indústria
fonográfica, e a terceirização ou fragmentação86 da mesma; entre outros aspectos serão
abordados no nosso segundo capítulo ―Sons e ruídos nos trópicos: A indústria
fonográfica brasileira da década de 1990‖.
86
Esta terceirização era realizada por gravadoras menores conhecidas como Indies, funcionavam no
mercado brasileiro como Marketing para os artistas em busca de oportunidades nestas Majors, ou seja,
estas gravadoras de menor porte tentavam promover alguns artistas nos meios midiáticos, caso estes
artistas conseguissem algum reconhecimento, estes seriam contratados por uma Major; em suma as
gravadoras Indies serviram como plataforma de lançamento de artistas desconhecidos para as gravadoras
Transnacionais, ou melhor gravadoras que prestavam serviços terceirizados para Majors.
53
2º CAPÍTULO
87
Segundo Jambeiro, a Indústria Fonográfica é formada por empresas encarregadas da concepção,
produção, distribuição e venda de gravações em seus diversos formatos. Quando completa, reúne quatro
atividades: a artística, a técnica, a comercial e a industrial, que podem ser agrupadas em duas categorias
dominantes: a cultural (artística) e a material (industrial). JAMBEIRO. Oton. Canção de massa: as
condições de produção. São Paulo: Pioneira, 1975. p.45.
54
Desta feita a evolução dos formatos fonográficos torna-se parte fundamental
deste constructo fonográfico em que ocorreram profundas mudanças na composição dos
formatos, sejam elas pelo disco de goma laca, 78rpm, LP, gravações magnéticas, fitas
K7 e os CDs.
Esta contextualização histórica da Indústria Fonográfica no Brasil nos
permite a ―onisciência‖ de uma certa maneira do processo fonográfico que se iniciou
ainda no começo do século XX e se consolidou no decorrer dos anos, como desigual,
centralizador, dominado pelo capital externo, através da aquisição de empresas
brasileiras tradicionais do mercado doméstico.
Na década de 1970 a Indústria Fonográfica do Brasil promoveu algumas
88
saídas no que tange ao monopólio das Majors, de modo que foram fundados selos
independentes como o Artezanal, ou mesmo grandes gravadoras como a Som Livre
pertencente à Rede Globo de televisão.
A observância de uma década marcada pela abertura do mercado doméstico
se faz premente, assim a década de 1980 apresenta-se como uma época decisiva da
Indústria Fonográfica brasileira no tocante à entrada mais acessível de ritmos e estilos
advindos do exterior, principalmente o rock, não obstante a década de 1980 ainda é
possuidora de outras características marcantes no meio fonográfico brasileiro, que
delinearam políticas mercadológicas vigentes até os dias atuais, ou mesmo artistas e
ritmos musicais, através de uma profunda reestruturação em seus organogramas,
pautada na segmentação e racionalização de seu funcionamento.
A década de 1990 foi deveras imbuída na segmentação mercadológica e
diversidade de ritmos explorados pelas Majors, como também a substituição do vinil
pelo CD e as sucessivas crises89 enfrentadas pelo setor no período.
Outras características pertencentes à supracitada década, configuram-na
como o período da profunda segmentação do mercado, processo ainda iniciado na
década anterior, como também foi cenário para o surgimento de selos alternativos das
grandes gravadoras, gravadoras Indies, estúdios de pequeno e médio porte
especializados em segmentos musicais específicos, além de canais de televisão
especializados em músicas no formato de vídeo clipe.
88
No decorrer deste capítulo os selos independentes e a gravadora Som Livre da referida década serão
melhores apresentados.
89
Com relação as sucessivas crises econômicas e as suas conseqüências para o mercado fonográfico,
apontaremos exemplos no decorrer deste presente capítulo.
55
Em toda esta estrutura mercadológica montada pelas grandes gravadoras,
percebemos que há uma relação que consideramos tripla, ou seja, ―arte, formato e
mercado‖ que envolve a Indústria Fonográfica na sua conjuntura nos remete a diversos
questionamentos acerca dos artistas, ritmos e obras musicais lançadas por estes
referidos, ou melhor, qual a extensão da arte pretendida e alcançada em uma gravação
comercializada por uma gravadora?
A simbiose entre indivíduo e música, confere a esta relação um grande
poder sobre as escolhas pretendidas, a interação entre esta mercadoria cultural e a mass
media é inconteste e está presente em diversos lugares e seguimentos do entretenimento
e da sociedade contemporânea, dentre eles o cinema, rádio, televisão, teatro, ruas,
computadores, relações sociais, ambiente de trabalho, a própria publicidade, enfim a
música nos cerca de uma forma praticamente onipresente.
No âmbito destas prerrogativas nos questionamos com relação às
peculiaridades artísticas e comerciais que envolvem o mundo fonográfico na
contemporaneidade, ou:
90
DIAS. Márcia Tosta. Os Donos da Voz. Indústria Fonográfica brasileira e mundialização da cultura.
São Paulo: Boitempo editorial, 2000. p.33.
91
Salientamos esta referida época, devido as inúmeras transformações sofridas na Indústria Fonográfica
na década de 1990, porém explicaremos quais mudanças foram estas mais adiante em nosso capítulo.
56
técnicos e engenheiros de som. O setor comercial estava encarregado da distribuição e
promoção dos discos nas rádios, redes de televisão, jornais, etc, estavam a cargo de
representantes comerciais, especialistas em marketing, promotores de vendas. O setor
industrial era encarregado da reprodução do fonograma, ou seja, as matrizes e stampers,
eram dirigidas por técnicos em produção e operários.
Verificaremos que a concentração econômica desde o início do século XX
seria determinante para a configuração de todo um cenário musical principalmente no
mundo ocidental do referido século, pois destacaremos que apenas cinco92 empresas
dominavam o mercado mundial de música gravada, este controle foi caracterizado por
Eduardo Vicente como ―integração vertical‖93 período compreendido principalmente no
pós-guerra de 1948 a 1955, que se configura como uma concentração oligopolista da
Indústria Fonográfica através do controle total de fluxo de produção, atacadista ou não,
e de uma oferta excessiva aos consumidores dos seus produtos, fato que comprova este
domínio, mesmo que possuidor de restrições com relação a esta concentração excessiva,
mostra que em 1948 a venda de discos nos Estados Unidos alcançava a cifra de US$ 48
milhões de dólares, saltando em 1973 para US$ 2 bilhões de dólares.
Outro fator interessante que deve ser ressaltado foi a integração entre
―hardware‖ e ―software‖, ou seja, a fabricação de discos ou cilindros, como os próprios
aparelhos para lerem estes suportes, mesmo que nos primórdios da Indústria
Fonográfica a venda destes suportes era uma maneira que os empresários encontravam
para o incremento da venda dos aparelhos reprodutores.
Esta relação entre ―hardware‖ e ―software‖ foi consolidada de uma certa
forma em 1948, quando da substituição do 78 rotações para 33 1/3 rpm, ou seja, as
empresas que fabricavam os discos, também fabricavam os aparelhos leitores destes
formatos.
Porém, esta prática bilateral esgotou-se no início da década de 1970, pois
apenas a RCA e Philips ainda atuavam com os dois segmentos (hardware e software); a
busca por um mercado mais abrangente, ou melhor, massificado, foi a tônica destas
grandes empresas na obtenção de lucros mais fáceis e principalmente maiores.
92
As referidas empresas (RCA, Victor, Columbia, Decca e Capitol) controlavam cerca de 75% do
mercado fonográfico, principalmente nos Estados Unidos
93
VICENTE, Eduardo. Música e disco no Brasil. A trajetória da indústria entre as décadas de 60 e 90.
São Paulo: USP, 2002. p.09.
57
Estas empresas que dominavam o mercado mundial da música gravada no
século XX, formaram verdadeiros conglomerados do entretenimento global, ou seja,
além das práticas da ―integração vertical‖, da fabricação do ―hardware e software‖, estas
empresas investiram maçiçamente nas indústrias cinematográfica, televisiva, internet,
lojas de discos, TV a cabo, satélites, etc, criando um cenário mundial que estava
composto da seguinte forma no final da década de 1990, das cinco maiores Majors do
mundo, quatro atuavam em outros setores do entretenimento, com exceção da britânica
EMI Music, conforme tabela94 a seguir:
Sony Corporation Grupo dividido entre a Sony Eletronics Corporation, formada por
(Japão) fábricas de equipamentos eletrônicos como TVs, vídeo-games,
DVDs, MDs, Walkmans, etc, e a Sony Software Corporation
composta, entre outros empreendimentos, pela Sony Music (antiga
CBS norte-americana), pela Columbia Pictures e por emissoras de
TV.
Bertelsman AG Atuava na publicação de revistas como a Stern, jornais, livros,
(Alemanha) canais de televisão como o RTL-Plus, Premiére, e a gravadora
BMG (surgida da compra da americana RCA e da espanhola
Ariola)
Universal Parte integrante do Grupo de bebidas Seagran, a Universal é
(Canadá) constituída pela Universal Studios, emissoras, produtoras de TV,
gravadora Universal Music (fusão da Polygram adquirida junto a
Philips, juntamente com a MCA)
Time-Warner Inc. Podemos considerá-la como o grupo mais abrangente com relação
(USA) às suas ações empresarias, pois é controladora da gravadora
Warner Music e da editora musical Warner Chapell, como também
das editoras Warner Books, Time4 Life Books, e das revistas
Asuiweek, DC Comics, Fortune, Life, Money.
Controla as produções cinematográficas da Warner Bros, New
Castle Rock, New Line Cinema, como também televissivas através
dos canais Warner Television, CNN, Cinemax, TNT, Cartoon
Network, HBO, etc, além das distribuição de filmes, CDs, parques
temáticos, cadeias de lojas, TV a cabo, dentre outros segmentos
empresariais.
94
VICENTE, Eduardo. op. cit. p 17- 18.
58
2.2– Formatando o som
95
A máquina consistia num cone ligado a um diafragma que, com a vibração resultante do som
produzido, fazia uma agulha inscrever um sulco horizontal sobre um cilindro coberto por papel estanho
(Tin-foil), tão logo o usuário girasse uma manivela que movia o cilindro. Apud, MARCHI. Leonardo.
Indústria Fonográfica Independente Brasileira: debatendo um conceito. V Encontro dos Núcleos de
Pesquisa da Intercom, 2005. p. 07.
59
corrida das grandes empresas de rádio-difusão dos Estados Unidos no tocante à
aquisição de companhias de discos, principalmente na primeira metade do século XX.
A origem do disco no formato em vinil está diretamente relacionada com a
Segunda guerra Mundial, pois o exército japonês durante o conflito, cortara o
fornecimento de goma-laca da Ásia para as indústrias de discos dos Estados Unidos,
forçando as empresas a buscarem materiais alternativos, como no caso do vinil um
plástico térmico que possibilitava a gravação em microssulco (microgroove), com
entalhes menores na superfície dos discos, ampliação sonora e o surgimento do disco 45
r.p.m, que posteriormente deu origem à fita magnética e ao Long Play.
O popularmente conhecido LP, caracterizou-se como o grande avanço da
metade do século XX com relação aos formatos precisamente em 1948, devido
principalmente a sua capacidade de armazenamento que se mostrava superior aos outros
formatos até então propostos pela Indústria Fonográfica. Contudo não foi apenas a sua
capacidade maior em armazenar informações que o conferiu como a grande inovação
tecnológica em formatos da referida indústria, foi também sua própria denominação
como ―longa duração‖ que o promoveu junto ao público consumidor, além das suas
capas que remetiam à propostas artísticas inovadoras, elevando o LP a item de
colecionador juntamente com os livros nas estantes dos consumidores.
Outro formato das gravações musicais que merece destaque dentro das
nossas considerações é a ―gravação magnética‖, fruto dos espólios norte americanos no
pós Segunda Guerra com relação aos alemães que durante a primeira metade do século
XX haviam conseguido significativos avanços com relação à melhoria deste formato.
Estes avanços tecnológicos das fitas magnéticas foram sentidos,
principalmente nas gravações em estúdio que se utilizavam destas fitas para as
gravações, podendo ser cortadas, editadas, enfim manipuladas conforme os técnicos as
utilizassem em seus estúdios, porém a utilização da fita magnética em outro contexto
viria revolucionar a reprodutibilidade técnica, não apenas no campo da indústria
fonográfica profissional, mas no próprio consumo doméstico do formato musical, além
do surgimento de gravações amadoras, que em um curto espaço de tempo viriam a
expandir os conceitos referentes às estéticas musicais.
Em 1963 esta reprodutibilidade tomaria um vulto maior com o surgimento
no mercado da fita cassete, que graças a sua portabilidade e a própria facilidade em se
60
reproduzir algum título do LP, favoreceu a comercialização destes referidos títulos, que
agora possuíam um catalisador, o ―Walkmann‖ que elevou o consumo musical à
categoria de móvel, ou:
98
SOUSA, Moacir Barbosa. Rádio e História. A indústria fonográfica e a música popular brasileira
como fonte de estudos históricos. São Paulo: V Congresso Nacional de História da Mídia. 2007. p.04.
62
Teles ―uma das mais atuantes gravadoras do país‖99; esta aventura musical deste
empresário pernambucano de ascendência judaica começou com uma viagem aos
Estados Unidos e foi através do incentivo de um amigo, que o mesmo trouxe para o
Brasil dois mil dólares em discos e passou a vendê-los, após o sucesso desta pequena
empreitada comercial ele começou a importá-los regularmente; é nesse momento que
começa a entrar elementos musicais da cultura estrangeira em Recife de uma forma
mais constante.
Posteriormente o comerciante pernambucano abriu uma moderníssima loja
situada à rua da Aurora no Centro de Recife chamada de ―loja do bom gosto‖, que além
dos discos, vendia eletrodomésticos em geral, porém a loja possuía alguns diferenciais
como cabines individuais para a audição dos discos, e uma cabine estúdio para a
gravação de ―Jingles‖ em discos de acetato, uma revolução para a época.
Foi com a gravadora Rozenblit que começaram a ser lançados discos
regionais, principalmente de frevo, caracterizando a principal contribuição do
empresário para a cultura e os ritmos pernambucanos antes marginalizados pelas
gravadoras.
O selo Mocambo foi também responsável por manter em seu cast nomes
nacionais como Jorge Ben, Silvio Caldas, dentre outros, porém em meados da década de
1970 o referido selo passava por problemas financeiros sérios, a exemplo de outras
gravadoras nacionais como Chantecler, RGE, etc.
Retornando ao crescimento da indústria Fonográfica na primeira metade do
século XX, impulsionado pelas melhorias técnicas, os programas de auditório nas rádios
já citados anteriormente, como também a construção de uma indústria para a produção
de discos(Odeon), podem ser caracterizados como avanços tímidos, se comparados com
a consolidação destes referidos bens culturais da seara sonora nas décadas de 1960 e
1970.
Certamente, devemos compreender também que este período histórico esteja
diretamente compreendido nos governos da Ditadura Militar no Brasil, ou seja, não
podemos negar o controle através da repressão e dos órgãos 100 criados especialmente
99
TELES, José. Do frevo ao Manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2000, p.18.
100
Neste caso podemos citar o DIP (Departamento de imprensa e propaganda) criado em 1939 no período
do Estado Novo do governo de Getúlio Vargas, dentre as suas atribuições estavam o controle,
centralização, orientação das propagandas oficiais, além da censura às mais diversas manifestações
culturais, como cinema, teatro, literatura, etc.
63
para esta função desde o Estado Novo, porém há uma participação maior do capital
privado nas indústrias, diferentemente da Era Vargas, como Renato Ortiz descreve:
101
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1988. p. 116- 117.
102
Idem. Ibidem. p.127.
103
VICENTE, Eduardo. op cit. p. 115.
64
1974 8,3 3,6 16,2 ----- 2,9 0,03 23,1 6,9%
1975 8,1 5,0 17,0 ----- 4,0 0,08 25,4 9,9%
1976 10,3 7,1 24,5 ----- 6,5 0,1 36,9 45,3%
1977 8,8 7,2 19,8 8,4 7,3 0,1 40,9 10,8%
1078 11,0 5,9 23,8 10,1 8,0 0,2 47,7 16,6%
1979 12,6 4,8 26,3 12,0 8,3 0,2 52,6 10,3%
104
As Majors aqui relacionadas são Polygram, Universal Music, EMI, BMG e WEA. Salientamos que a
RCA é de um período bem anterior, mais precisamente de 1925.
65
interesse, pois as Majors estrangeiras eram acusadas pelas nacionais de entrada ilegal de
matrizes fonográficas, lançamentos internacionais realizados com um preço de
concorrência predatória, monopólio sobre os catálogos, desigualdade na disputa pela
contratação de artistas líderes em vendagem de discos, maior acesso aos meios de
comunicação, principalmente aos televisivos.
Algumas medidas foram tomadas pelo Governo Militar, como por exemplo
a lei promulgada em 1967 ―Disco é Cultura‖, que buscava incentivar as gravações
nacionais, frente aos estrangeiros, através de leis de incentivos fiscais, como o
abatimento do ICM105 pago aos artistas domiciliados no Brasil com relação aos seus
direitos autorais, esta lei conferiu às gravadoras nacionais uma sobrevida, porém com o
tempo os impostos arrecadados com discos internacionais, favoreceu uma concentração
ainda maior de artistas mais expressivos no cast dos selos internacionais, que
reinvestiram as somas adquiridas com a referida lei.
Estas práticas de concorrência desigual das Majors com relação às
gravadoras nacionais forçou-as na busca por novos artistas e para a exploração de
segmentos musicais até então desvalorizados e consequentemente de menor
rentabilidade.
Dentre estes referidos segmentos destacamos o sertanejo, tido até então
como estilo estritamente popular, com discos vendidos pela metade do preço, o que
dificultava suas prensagens, ou seja, os custos de produção de um disco de MPB
tradicional para a classe mais abastada, era o mesmo de um disco sertanejo direcionada
para as classes mais populares; fato que praticamente inviabilizava a produção do
mesmo.
Esta prática de mercado predatória e busca por novos mercados configurou-
se em uma ―segmentação‖ do mercado fonográfico brasileiro, polarizando uma disputa
extremamente desigual entre Majors e gravadoras nacionais pelo controle da venda de
fonogramas no Brasil.
É importante salientarmos no que concerne ao reforço desta ideia de
segmentação, o fato de que a MPB tradicional dos anos 70 estava alocada quase que em
105
Imposto sobre circulação de mercadorias.
66
sua totalidade no cast das Majors, com artistas como Chico Buarque, Maria Bethânia,
Elis Regina, Jorge Ben, entre outros.
Certamente, algumas exceções desta segmentação mercadológica devem ser
ressaltadas, sobretudo com relação a alguns artistas de apelo mais popular como Sérgio
Reis, Perla, que gravavam pela EMI e Kátia e Roberto Carlos que gravavam pela CBS.
Curiosamente, esta segmentação do mercado fonográfico brasileiro conferiu
uma ―sobre-vida‖ às gravadoras nacionais, mais especificamente Copacabana e
Continental, que sobreviveram até a década de 1990, explorando estes nichos de
mercado voltados para o rural como a música sertaneja, ou segmentos mais populares
representados por artistas como Amado Batista, Bebeto, Dicró, Wanderley Cardoso,
Waldick Soriano, dentre outros.
A década de 1970 possuiu algumas peculiaridades com relação à Indústria
Fonográfica e ao mercado brasileiro de discos, no que concerne à fundação da
gravadora Som Livre em 25 de julho de 1971, braço fonográfico da Rede Globo de
televisão, a Som Livre possuía como principal missão o lançamento das trilhas sonoras
da referida emissora, desta feita no mesmo ano de 1971 a gravadora lançou seu primeiro
título com a trilha sonora da novela ―O cafona‖ que vendeu na época 200 mil cópias,
um número extremamente expressivo em se tratando de uma recém fundada gravadora
nacional.
A Som Livre não se restringiu apenas aos títulos referentes às novelas da
Rede Globo, pois em 1975 iniciou o lançamento de títulos referentes às rádios e às
denominadas ―paradas de sucesso‖; com esta prática a Som Livre no ano de 1977
configurou-se como a campeã em vendas do mercado fonográfico brasileiro.
Outra característica marcante da Indústria Fonográfica do final da década de
1970 e início da década de 1980, foi a priorização de um cast menos numeroso e mais
rentável, delineando aos artistas com vendas menos expressivas, ou voltados para um
viés mais político no tocante à organização de um movimento coeso em busca de
oportunidades de gravação; a fundação de selos independentes, ou seja, artistas que não
estivessem adequados a este formato proposto pelas Majors, teriam como uma das
soluções com relação à gravação de discos, o alinhamento aos selos independentes.
67
Estas gravadoras independentes iriam atuar justamente, na fatia de mercado
artístico que as Majors desprezavam, sejam eles, mercados regionais, música sertaneja,
instrumental e o rock nacional.
Alguns nomes podem ser citados como exceções no final da década de
1970, como exemplos de mercados rentáveis, embora as Majors os desprezassem, a
saber o selo ―Baratos Afins‖ fundado em 1982 por Luiz Carlos Calanca, fruto da loja de
discos inaugurada quatro anos antes com o mesmo nome, dentre os nomes que
gravaram pelo selo podemos citar Ratos de Porão, Arnaldo Baptista, Fellini, dentre
outros.
Outras iniciativas não menos importantes, de produção independente devem
ser ressaltadas, ou talvez a principal experiência neste segmento brasileiro das décadas
de 1970 e 1980, foi o selo Artezanal do músico Antônio Adolfo, que em 1977 produziu
seu primeiro disco ―feito em casa‖, após sucessivas recusas das gravadoras para a
produção do seu disco.
Dentre estas observações devemos compreender que pelo fato do disco ser
produzido de forma independente, não significava que sua qualidade técnica fosse
inferior, pois os produtores independentes possuíam a vantagem de conhecer todo o
processo de produção e comercialização de um disco, como exemplo de sucesso o
primeiro disco do grupo ―Boca Livre‖ que vendeu expressivas 80 mil cópias em 1979.
Contudo não foi apenas o formato fonográfico em um primeiro momento
que chamou a atenção dos empresários envolvidos com o circuito independente, pois
em 1979 foi fundado o ―Teatro Lira Paulistana‖ de Wilson Souto Jr, que após algum
tempo fundou um selo com o mesmo nome, gravando artistas como Itamar Assumpção,
Arrigo Barnabé, Tetê Spíndola, Língua de Trapo, ou :
106
VAZ, Gil Nuno. História da Música Independente. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 24.
68
selos no início da década de 1980, motivos pelos quais podemos citar a dependência de
uma distribuição expressiva, divergências na produção e comercialização dos discos, a
própria saída de artistas como Oswaldo Montenegro e grupos como o ―Boca Livre‖ que
pela repercussão dos seus trabalhos, foram contratados pelas grandes gravadoras.
Enfim, a música independente no Brasil ensaiou belos acordes,
principalmente nos anos de 1982 e 1983, mesmo que tenham sido de pouca duração,
foram intensos e mostraram que o mercado fonográfico brasileiro é dinâmico e coloca
sob as luzes dos holofotes, artistas como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Oswaldo
Montenegro, dentre outros.
69
Para o entendimento claro das atividades exercidas por uma grande
gravadora no Brasil nas décadas de 70 e 80, Márcia Tosta Dias107 apresenta o
organograma básico de uma Major, com suas divisões e subdivisões:
107
DIAS. Márcia Tosta. Os Donos da Voz. Indústria Fonográfica brasileira e mundialização da cultura.
São Paulo: Boitempo editorial, 2000. p.71.
70
O papel do produtor artístico trafega entre o planejamento e a execução,
condensando várias etapas da produção e divulgação de um trabalho fonográfico, ―o
produtor musical concilia interesses diversos, tornando o produto musicalmente atrativo
e economicamente eficiente‖108.
Geralmente este produtor é oriundo do próprio meio artístico, porém com
uma visão mercadológica bastante abrangente e um conhecimento técnico na produção
de um trabalho musical.
As suas atribuições estendem-se desde a gravação no estúdio, como a
escolha das músicas, arranjadores, seqüência de faixas do trabalho, orientação do setor
de marketing da gravadora para a potencialização da venda do produto de uma forma
direcionada e principalmente, a visão aguçada para novos talentos do meio musical,
uma tarefa que congrega conhecimentos musicais, de mercado e a própria cena
independente que o circunda.
Enfim, é o produtor musical que adéqua o talento do artista às necessidades
do mercado e a ânsia de lucros por parte da gravadora, e sua principal função nesta
conjuntura é tornar os produtos (disco e artista) extremamente rentáveis para a
gravadora com o mínimo de despesas possíveis.
Retornando para a década de 1980, mais precisamente toda a sua conjuntura
mercadológica, devemos observar que o Brasil na referida década enfrentava sérios
problemas em sua economia, no que tange aos planos econômicos 109 fracassados, altas
taxas de desemprego e inflação, moeda desvalorizada no mercado mundial, dívida
externa gigantesca, enfim, um cenário que retraía qualquer indústria, principalmente
quando relacionado ao entretenimento.
Nesta perspectiva de mercado musical, podemos observar que a Indústria
Fonográfica desde a década de 1970, trabalhava com artistas de uma forma segmentada
em seus próprios casts, ou seja, havia os artistas de catálogo que eram caracterizados
por números em vendas não tão expressivos, porém mantinha um volume de vendas
constante, também não dependiam de vultosas somas promocionais, devido ao nome
que haviam construído na música brasileira, como Chico Buarque, Caetano Veloso,
Maria Bethânia, Gilberto Gil, entre outros.
108
DIAS. Márcia Tosta Dias.op.cit. p.91
109
Dentre os planos econômicos podemos citar o Plano Collor, efetivado no referido governo, que teve
como principal característica o congelamento das poupanças dos brasileiros.
71
A outra categoria de artistas promovidos pelas gravadoras, eram os de
―marketing‖, caracterizados por sucessos efêmeros, alto número em vendas, elevados
investimentos na promoção destes artistas por parte da gravadora, enfim as estes artistas
eram utilizados para a obtenção de lucros rápidos e altíssimos, prática que perdura até
os dias atuais.
Dissertando ainda sob o signo da crise da década de 1980, houve um
processo considerável de concentração de mercado, absorções, falências e vendas neste
mercado fonográfico, com empresas norte americanas como a K-TEL encerrando suas
atividades no território brasileiro, a Top Tape e RGE foram absorvidas pela RCA e Som
Livre respectivamente, como também a compra da Tapecar pela Continental e seu
catálogo pela RCA.
É importante salientarmos que esta crise da década de 1980, não afetou
apenas as gravadoras de pequeno e médio porte, pois algumas Majors sofreram com
esta referida crise, tendo suas participações e casts, absorvidos por outras gravadoras,
como a Ariola que desde sua entrada no país em 1979, apostando no mercado brasileiro
com artistas de renome como Chico Buarque, Miltom Nascimento, Ney Matogrosso,
etc, não conseguiu consolidar-se no mercado brasileiro, sendo absorvida em 1981 pela
Polygram.
72
400 funcionários, segmentando sua produção a partir deste momento (1981) com a
EMI-Odeon.
Devemos nos recordar que concomitante à esta crise mercadológica, havia a
reestruturação das gravadoras em todos os sentidos, o próprio formato, em que era
comercializada a música, estava sendo substituído, em 1983 a Indústria Fonográfica
havia lançado o CD (compact disc), fato que iniciou a era digital no mundo fonográfico.
Nesta realidade de novas adequações, empresas tradicionais que estavam
atuando no Brasil desde a primeira metade do século XX como a RCA, reduziram
drasticamente seu cast de 145 para 35 artistas, ou a Polygram que seguindo esta
tendência das suas concorrentes diminuiu seu cast de 100 apara 40 artistas; a Som Livre
manteve apenas 10 artistas, ou mesmo medidas mais drásticas como a Continental que
fechou sua fábrica de discos em São Paulo, em suma a redução dos artistas no cast das
gravadoras foi uma constante, principalmente na primeira metade da década de 1980.
O privilégio de pertencer ao cast de uma determinada gravadora, somente
poderia ser conseguido caso estes artistas vendessem no mínimo 100 mil cópias de cada
disco que a gravadora lançasse, com o argumento de que esta vultuosa quantia em
vendas era mínimo necessário para se pagar a produção de um disco.
Com estas turbulências, as próprias gravadoras iniciaram uma avaliação das
suas atividades ainda no decorrer da década de 1970, dentre os pontos observados por
esta Indústria Fonográfica, podemos salientar a hipervalorização da música
internacional com ênfase na discoteca, e outros títulos do gênero fizeram com que o
mercado fonográfico brasileiro ficasse saturado deste estilo por grupos110 inspirados
nesta temática.
O problema destas grandes tendências musicais reside justamente na sua
efemeridade, pois estão pautados em um contexto cultural versado nos anseios
econômicos dos grandes conglomerados do entretenimento que esgotam ao máximo
estas novidades do mercado musical, restando para estes empresários os artistas
domésticos, que mesmo com a crise atingindo os títulos internacionais, mantiveram-se
com as vendas pequenas, porém positivas e constantes.
Segundo Vicente, além destes motivos já apontados, os diretores das
gravadoras apresentaram outros como:
110
Dentre este grupos podemos citar as Frenéticas, Brazilian Genghis Khan, dentre outros.
73
O envelhecimento da geração de artistas dos anos 60 qua não havia sido,
ainda, plenamente renovada no contexto da indústria. A recessão econômica
e o incentivo governamental à poupança interna, que tendiam a afastar a
classe média do consumo. O surgimento de novas possibilidades de
consumo e lazer que começavam a disputar, com o disco, espaço dentro dos
hábitos de consumo da classe média. A pirataria em discos e cassetes que
atingia duramente a MPB e o repertório internacional. A atuação das FM´s,
―com numerosas rádios especializadas em cada gênero, oferecendo ao
consumidor a possibilidade de gravar a música direto do receptor. A
mudança da percepção do consumidor que, com a normalização
democrática, passa a se interessar mais pelo repertório em si do que pela
imagem e postura política do artista 111.
111
VICENTE, Eduardo. op. cit. p 65.
112
FENERICK, José Adriano. A globalização e a indústria fonográfica da década de 1990. Uberlândia:
Revista Artcultura, 2008.p.133.
74
Alguns pontos devem ser apresentados como decisivos na projeção deste
segmento musical no Brasil da década de 1980, dos quais destacaremos os artistas
Sérgio Reis e Almir Rogério, relacionados como únicos sertanejos na lista da Nopem113,
como também trilhas sonoras de filmes protagonizados por artistas do referido estilo
musical, além de séries televisivas114.
A partir deste notório interesse da Indústria Fonográfica pelo segmento
sertanejo, acentuado principalmente pela crise do mercado do rock brasileiro em 1987,
esta música caipira e seus representantes passam por significativas modificações, tanto
em suas indumentárias e nos instrumentos, que passam a ter como principal inspiração a
―Country Music‖ dos EUA, como nas temáticas musicais que não figuram apenas temas
rurais, mas o urbano também.
Havia ainda um hiato entre esta música sertaneja, que não era consumida
pela classe média urbana, uma das maiores consumidoras de discos do mercado,
principalmente, discos da MPB tradicional, música clássica e rock internacional, sendo
estes segmentos possuidores dos discos mais caros vendidos ao público.
Com o crescimento do agronegócio, estes consumidores rurais, começaram
a adquirir hábitos urbanos e consequentemente, a consumir discos, fator primordial para
o interesse destas gravadoras por este nicho de público.
Podemos observar que a própria música sertaneja possui traços semelhantes
com a Jovem Guarda, como por exemplo o romantismo exacerbado nas composições, a
inexistência de criticas sociais, além da exaltação de bens econômicos como carros,
propriedades, iates, etc.
Enfim, esta música sertaneja com toda esta visibilidade, consumidores,
interesse das gravadoras, torna-se extremamente profissional, no tocante aos produtores,
marketing, estrutura de palco, etc; fato que se exacerbou na década de 1990, em que
muitos artistas migraram das gravadoras nacionais e passaram a fazer parte do cast das
gravadoras internacionais.
113
Segundo Gustavo Bolognani Martins, o instituto Nopem do Rio de Janeiro, realiza um trabalho de
contabilização independente no Brasil há mais de vinte anos. MARTINS, Gustavo Bolognani. É o amor.
Lugares- comuns na música brasileira por suas rimas. São Paulo: USP, 2007. p.78.
114
Dentre as séries televisivas destacaremos a série pertencente à Rede Globo de Televisão ―Carga
Pesada‖, estrelada pelos atores Stênio Garcia e Antônio Fagundes em 1979, durando dois anos, sendo
reeditada em 2003 até o ano de 2007.
75
Outro segmento que destacamos anteriormente e neste momento nos
debruçamos com mais afinco é a música infantil brasileira, que vinha sendo
representada desde a década de 1940 com histórias narradas pela gravadora Continental,
porém com o decorrer dos anos, principalmente na década de 1970, gravadoras
começaram a participar desta fatia de mercado, dentre elas a ―Som Livre‖ com títulos
como ―O sítio do pica-pau amarelo‖ de 1975, fruto de uma série televisiva da Rede
Globo, além da Copacabana com o grupo ―As Melindrosas‖ e a RCA com o grupo ―As
Patotinhas‖, entre outros.
É interessante observarmos que um segmento explorado praticamente por
uma única gravadora (Continental), durante vários anos e que somente a partir da
década de 80 viria a ser mais explorado, teve seu auge na metade da referida década,
quando figurou como o mais importante segmento musical do mercado brasileiro, com
o apoio decisivo das emissoras de televisão.
O maior representante deste segmento capitaneado pela CBS foi o grupo
―Balão Mágico‖ da Rede Globo, que em pouco mais de 04 anos de existência vendeu a
vultuosa quantia de mais de cinco milhões de discos.
Outra vertente dentro do segmento musical infantil explorado pelas
gravadoras foi o dos apresentadores de televisão que lançaram discos, como exemplos
podemos citar Mara Maravilha do SBT que gravou pela Polygram, Sérgio Malandro
que transitou entre o SBT e a Rede Globo e gravou pela Polygram e RCA, porém o caso
mais significativo foi o da apresentadora Xuxa, que após uma rápida passagem pela
extinta Rede Manchete em 1983, foi contratada pela Rede Globo de televisão e em
pouco tempo laçou discos com o nome do seu programa ―Xou da Xuxa‖ e tornou-se a
maior vendedora de discos da América Latina, superando inclusive nomes já
consolidados no mercado como Roberto Carlos, Julio Iglesias, dentre outros.
Nesta busca das Majors por um mercado doméstico mais lucrativo,
citaremos neste ponto a presença marcante do rock nacional da década de 1980,
segmento musical que marcou uma época na cultura musical brasileira, servindo de base
para muitas bandas do atual cenário contemporâneo do Brasil, no tocante às bandas de
rock.
Iniciaremos nossas ponderações acerca do rock nacional, apontando
primeiramente o contexto no qual o mesmo deu seus primeiros passos, o início da
76
década de 1980 com um Brasil ainda imerso em um regime militar, embora estivesse
em um processo lento de redemocratização, havia muitos ranços ditatoriais presentes na
sociedade brasileira, principalmente na cultura.
Certamente, no Brasil já havia figurado alguns nomes expressivos do rock
nacional, principalmente na década anterior, porém estas bandas setentistas não
possuíram a projeção e repercussão na mídia, como observada em vários momentos
com o rock dos anos 80, ou como Dapieve afirmou: ―A afirmação do BRock passou
também pela presença de pessoas chaves nos meios de comunicação. No jornal “O
Globo” e na revista “Pipoca Moderna”, Ana Maria Bahiana. No “Jornal do Brasil”,
Jamari França. Na revista “Som Três” Maurício Kubrusly‖.115
Outro fator que caracterizou uma certa peculiaridade ao Rock Nacional da
década de 1980 foi a descentralização do eixo Rio-São Paulo, com relação às bandas
que surgiram neste cenário nacional, em outras palavras, ―Do mesmo modo que Rio de
Janeiro e São Paulo fermentavam uma forte cena roqueira no início da década de 80,
Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte também cultivavam as suas‖.116
O cenário do rock nacional carecia de uma renovação, visto que os nomes
que eram citados deste segmento pela Nopem em 1981, eram oriundos da década de
1970 como Rita Lee, The Fevers, Erasmo Carlos; porém em 1982 era iniciada uma
renovação nesta lista com nomes como Rádio Táxi e Blitz, sendo que a partir deste
momento o novo rock nacional começava a figurar e despertar um maior interesse por
parte das gravadoras.
Esta atenção crescente das gravadoras para o rock nacional foi baseada
justamente no próprio público consumidor deste estilo musical, formado por jovens
urbanos, na maioria de classe média, com um poder aquisitivo considerável para o
consumo de discos.
Com esta exposição, apoio da mídia, principalmente a escrita, não tardou
para que surgissem nas cidades, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, espaços
para as apresentações destas bandas, com destaque para o Teatro Lira Paulistana e o
emblemático Circo Voador na praia carioca do Arpoador.
Surgiram também revistas especializadas como a extinta Show Bizz da
editora abril e própria revista Som Três que mesmo tendo iniciado suas atividades em
115
DAPIEVE, Arthur. Brock: O rock brasileiro dos anos 80. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 32.
116
Idem, Ibidem. p. 32.
77
1979, teve seu auge na década de 80, além de festivais de projeção internacional como o
primeiro Rock in Rio promovido pela ArtPlan em 1985, com atrações nacionais como
Paralamas do Sucesso, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Alceu Valença, Elba
Ramalho, Barão Vermelho, e atrações internacionais como Queen, Iron Maiden, Nina
Hagen, entre outros; sendo que estas atrações nacionais, principalmente as bandas de
rock tiveram seus nomes consideravelmente projetados para a grande mídia.
Porém, após a metade da década de 1980, mais precisamente 1987, o rock
nacional começa a conhecer o lado ruim da Indústria Fonográfica, a crise, em que a
participação nesse mainstream está intimamente ligada à venda de discos, ou seja, as
gravadoras existem devido aos números e quando estes não são satisfatórios, as
primeiras demissões ocorrem do lado artístico.
Observando as várias nuances que levaram o mercado do Brock a esta
decadência, acreditamos que a própria ascensão das músicas regionalizadas com fortes
vínculos culturais, como a sertaneja, como também o caráter estritamente urbano das
metrópoles que o Brock possuía, não contemplava satisfatoriamente a população,
levando a perda de uma identidade, planos econômicos que fragilizaram a economia
brasileira de forma significativa, como também a crise de matéria-prima em 1986 de
resina e papelão para a fabricação dos discos, enfim estes diversos fatores e a
consequente queda nas vendas, fizeram com que esta crise se instalasse definitivamente
no mercado do rock nacional.
Aliada a esta forte recessão, não apenas o rock nacional, mas todos os
estilos contemplados pela Indústria Fonográfica que atuavam no Brasil no final da
década de 1980 assistiram à uma gigantesca reestruturação, segmentação e profunda
massificação do consumo musical brasileiro da década de 1990.
78
Fonográfica no mundo e em especial no Brasil, com algumas considerações gerais e
peculiaridades de cada década.
Primeiramente, propomos uma análise da conjuntura nacional da Indústria
Fonográfica, verificando que a mesma não havia sofrido ainda mudanças tão profundas
e significativas em sua estrutura, ou:
117
DIAS, Márcia Tosta. Op. cit.p. 102
118
Idem. p. 107.
79
serviços119, resultando na fragmentação de todo o ciclo produtivo de um CD, esta foi a
saída em um primeiro momento encontrada pelas Majors para suportarem a crise
mercadológica do início da década de 1990.
119
Esta terceirização dos serviços compreendia a distribuição dos CDS pelas lojas do Brasil, o marketing
utilizado na promoção dos artistas e consequentemente dos CDs, até mesmo a própria fabricação do
formato.
80
Dentre os maiores prejuízos gerados pela crise que assolava a Indústria
Fonográfica no referido período, estão o corte nos investimentos em novos artistas,
deflagrando uma política extremamente conservadora por parte das gravadoras, em que
lançamentos de novos CDs foram adiados, ou mesmo cancelados, abrindo caminho para
a prática das compilações, títulos internacionais e investimentos apenas em artistas já
consolidados no mercado fonográfico.
Esta radicalização de postura da Indústria Fonográfica da década de 1990,
com medidas já iniciadas na década anterior, porém com menor intensidade,
favoreceram de forma significativa uma segmentação ainda mais pungente no tocante à
valorização de determinados segmentos musicais120.
Podemos perceber que o agravamento desta crise da Indústria Fonográfica
no início dos anos 90, não foi decorrente apenas dos fracassados planos econômicos e
do congelamento das poupanças por parte do governo de Collor de Melo, mas também
pela própria falta de acessibilidade da maior parte da população aos formatos ―CDs‖121
e ao equipamento sonoro, haja vista os preços elevados, forçando a própria indústria ao
lançamento de títulos ―elitizados‖ como a MPB tradicional e música clássica.
Nesta crise instalada no mercado fonográfico brasileiro que ainda estava
sendo adaptado à nova modalidade de formato, uma nova modalidade de promoção
musical instalava no Brasil no início desta mesma década, com uma linguagem
entendida pelos jovens, um apelo musical extremamente segmentado, surgiu a MTV.
120
Esta valorização de outros segmentos musicais estendeu-se principalmente à música sertaneja, com
nomes como Zezé de Camargo e Luciano, Sandy e Júnior, Leandro e Leonardo, dentre outros.
121
Até o ano de 1992 somente a empresa Microsservice fabricava CDs no território brasileiro, fator que
encarecia as produções musicais no país.
81
Desta feita ainda no mesmo ano foram iniciadas as transmissões da MTV
Brasil nos moldes de sua matriz dos Estados Unidos, com uma programação 122 voltada
inteiramente para o público jovem, em especial do segmento Rock and Roll, porém em
1999 a MTV modificaria sensivelmente sua programação, adequando-se ao mercado
brasileiro e incorporando à sua programação, ritmos como o pagode, axé, sertanejo123.
Com a presença da MTV no mercado fonográfico brasileiro, os videoclipes
passaram a ser considerados pequenas produções cinematográficas; o amadorismo e a
receita simples do artista cantado suas músicas em play back com tomadas simples das
câmeras, foram sobrepujados por produções especializadas, com efeitos especiais,
dentre outros artifícios.
Com toda esta profissionalização o mercado fonográfico brasileiro viu
surgir em 1995 o VMB124, uma festa de premiação para os melhores videoclipes
nacionais, fortalecendo ainda mais este segmento da Indústria Fonográfica no Brasil,
destarte a MTV delineou novas fronteiras às gravadoras no que diz respeito à promoção
dos seus casts para o público, não apenas juvenil, mas como um todo.
A partir de 1993125 a Indústria Fonográfica que atuava no Brasil começou a
ensaiar os primeiros passos de uma saída da crise na qual estava mergulhada, assim
alguns fatores foram preponderantes para esta recuperação, como a fabricação de CDs
por parte da Sony e BMG, medida que barateou os custos de produção em torno de
13%, enquanto que o salário mínimo havia se valorizado em torno de 8,5%,
aumentando assim o poder de compra dos brasileiros com relação ao mercado de CDs.
Desde então o mercado fonográfico brasileiro sofreu uma verdadeira
―derrama‖ de títulos relançados (nacionais e internacionais); títulos que haviam estado
no mercado no formato vinil, agora eram disponibilizados em CDs, decorrendo em uma
quantia significativa de títulos da MPB de volta às prateleiras, além dos internacionais
que ofereciam às gravadoras lucros expressivos, devido às músicas e à capa já estarem
prontas, minimizando ao máximo os custos de produção.
122
A programação inicial da MTV brasileira era composta pelos programas ―Yo! MTV Raps‖, ―Clássicos
MTV‖, ―Cine MTV‖, ―TV Lessão‖ e ―Netos do Amaral‖.
123
Segundo Fenerick estas três vertentes da música brasileira da década de 1990, poderiam ser
consideradas como o ―Trio de ferro‖, ou seja, ―é de fato, mais um sintoma do aprofundamento da
decadência do gosto propiciado pelo mundo globalizado‖. FENERICK, José Adriano. Op.cit.p.134.
124
Vídeo Music Brasil.
125
Segundo Vicente o ano de 1993 foi o primeiro no mercado fonográfico brasileiro em que o número de
vendas de CDs superou o de LP‘s. VICENTE, Eduardo. op. cit. p.104.
82
Outro fator que alavancou as vendas de CDs no Brasil foi o lançamento das
coletâneas dos títulos em vinil já esgotados no mercado, principalmente dos artistas já
consolidados da MPB, como exemplo podemos citar Chico Buarque com 18 álbuns
relançados em CD.
Com relação à economia brasileira, não podemos deixar de mencionar a
relativa estabilidade financeira que as medidas econômicas do plano econômico de FHC
em 1993, e posteriormente em 1994 com o Plano Real no governo de Itamar Franco,
ambas as medidas estimularam o consumo dos brasileiros tanto pelo hardware como
pelo software.
83
dentre eles a má fé das gravadoras ao converter as URV’s126 para reais, aumentando o
preço do CD em pelo menos 40%.
Na fabricação dos CDs o preço médio127 que o produto havia sido produzido
girava em torno de R$2,50, isto é, R$ 1,00 a mais em relação ao vinil, porém o preço
praticado no mercado brasileiro era de R$ 10,00 saindo da gravadora e chegando ao
consumidor com o preço em média de R$ 20,00, havendo também a diferença dos
preços dos CDs nacionais para os importados que na maioria das vezes são preços
maiores, mesmos fabricados em território nacional, eram direcionados para as lojas de
departamentos que compravam em grande quantidade, prejudicando o preço praticado
pelas lojas especializadas em CDs, geralmente preferindo estas lojas trabalhar com CDs
importados.
Estes preços exorbitantes não se explicavam, pois os custos de produção e a
carga de impostos incidiam da mesma forma sobre os dois formatos (Vinil e CD), ou
seja, as despesas com royalites128, custos de gravação, adiantamentos para artistas,
pagamento dos técnicos, manutenção do estoque, salários dos funcionários, gastos com
a distribuição e investimentos em marketing.
Outra diferença entre as grandes lojas de departamentos e as lojas
especializadas em CDs, é justamente o atendimento, pois enquanto que uma loja de
departamentos o número de funcionários é reduzido, o cliente não pode escutar o CD,
sendo caracterizada assim uma venda às cegas; enquanto que uma loja especializada o
cliente tem o direito de escutar quantos CDs quiser, além de ser atendido por pessoas
que conhecem o produto que vendem, conhecem os lançamentos, também deve-se
ressaltar outro fator citado nesta reportagem que é justamente a exclusividade de
catálogos dos EUA e Europa que algumas lojas especializadas conseguiram,
comercializando assim os CDs por um preço mais acessível, geralmente 18 reais.
Quando comparamos os preços de CDs no ano de 1994 em vários mercados
fonográficos mundiais, sejam eles europeus, norte americanos, ou até mesmo sul
126
Unidade Real de Valor (URV), índice que indicou a variação do poder aquisitivo da moeda, servindo
apenas como unidade de conta e referência de valores. Teve curso juntamente com o Cruzeiro Real até 1º
de julho de 1994, quando da conversão para o Real.
127
Em 1994 logo após a implantação do plano real, a cotação do dólar girava em patamares idênticos à
moeda brasileira, ou seja, cada dólar deveria corresponder a R$ 1,00, segundo o plano econômico
implantado no governo de Itamar Franco.
128
Valor pago aos detentores do direito sobre a obra gravada.
84
americanos, constatamos o alto valor de mercado em que o CD no Brasil possuía em
1994 ou conforme o quadro129 a seguir:
129
Revista ShowBizz, edição 113, Ano 10, Nº 12, p. 67.
130
Podemos citar com Grandes Magazines que atuavam no Brasil em 1994, as lojas ―Americanas‖ e o
Mappin.
85
As linhas de produção atuavam em 1994 com sua capacidade máxima,
devido aos crescentes pedidos, fábricas que detinham a tecnologia de fabricação de CDs
como a Sonopress, Microservice, Sony Music e Videolar, aumentaram suas produções
em mais de 40% e mesmo assim o mercado carecia de CDs nas prateleiras.
Acreditamos que o principal fator definidor desta prática abusiva de
mercado, tenha sido a omissão por parte dos órgãos de fiscalização do Governo federal
que deixaram as gravadoras atuarem livremente no tocante aos preços cobrados nos
CDs comercializados no mercado nacional.
Vale ressaltar que toda esta discussão perpassa sobre o argumento da
Indústria fonográfica em afirmar que a qualidade de áudio do CD era superior ao vinil,
desta feita nos questionamos acerca da possível substituição do LP pelo DAT131, visto
que o mesmo possuía melhor qualidade de gravação, contudo foi verificado que na
realidade o Compact Disc (CD) promovia às gravadoras um lucro substancialmente
superior, em comparação aos outros formatos supracitados, no tocante ao baixo custo de
produção e o alto valor de comercialização.
Em 1995 o mercado fonográfico brasileiro detinha a 7ª posição com relação
ao mercado mundial em unidades vendidas, tendo como fatores decisivos para esta
expressiva colocação o papel da Som Livre com as trilhas de novelas da Rede Globo de
televisão, que desde os anos 70 configurava-se como um segmento de mercado
extremamente rentável, como também o promissor mercado dos grupos de pagode
representado pelos campeões em vendagens ―Só para Contrariar‖ e ―É o Tchan‖, e
duplas sertanejas que vinham desde a década passada com excelentes números para o
mercado fonográfico.
Concomitante ao sucesso dos já referidos grupos de pagode, ao surgimento
de grupos de pop rock132 e a consolidação do segmento sertanejo, dentre outros, a
Indústria Fonográfica sofria também uma crise devido à inadimplência das lojas de
departamento que no ano de 1995 abriram concordata, dentre elas a Mesbla e Colombo,
131
O formato DAT (Digital Audio Tape) foi criado pela SONY, com características semelhantes à fita
cassete, foi introduzida no mercado de forma tímida em 1987, porém sem sucesso, sua capacidade de
gravação equivalia-se ao CD em tempo de duração com uma qualidade de áudio semelhante, haja vista
que a mesma utilizava também a tecnologia da gravação digital.
132
Dentre os grupos de rock surgidos na década de 1990, ou que alcançaram reconhecimento nacional,
podemos citar ―O Rappa‖, ―Chico Science e Nação Zumbi‖, ―Mundo Livre S.A‖ ―Raimundos‖, ―Planet
Hemp‖, ―Los Hermanos‖, ‖Jota Quest‖, ―Pato Fu‖, dentre outros.
86
como também o aumento significativo da pirataria e o preço elevado dos CDs já citado
anteriormente.
À margem desta crise, algumas empresas estrangeiras133 do entretenimento,
vislumbrando o mercado brasileiro aquecido, entraram neste mercado nacional, devido
ao valor alto cobrado pelo CD e o aumento constante no número de unidades vendidas
entre os anos de 1995 a 1996; fator que levou o segmento fonográfico brasileiro a criar a
(CD Expo 1996), considerada a maior e mais representativa feira especializada desta
seara empresarial no Brasil, composta por agentes, distribuidores, lojistas, os próprios
artistas e o público em geral.
133
As referidas empresas foram a Tower Records, Sam Goods e MCA dos Estados Unidos liderada pelo
grupo de bebidas ―Seagram‖, além das inglesas ―Virgin‖ e ―HMV‖.
87
Marcos Maynard, oriundo da Sony Music do México, versava suas ações também na
cartilha da terceirização, ou:
134
MAYNARD Apud DIAS, Márcia Tosta. op. cit. p. 113.
135
VICENTE, Eduardo. op. cit. p. 110.
88
4.1.4 - A Produção Independente da década de 1990.
89
A própria política de extrema segmentação musical pautada no sertanejo e
na música romântica aliada à crise econômica do início da década de 1990, favoreceu de
forma significativa os selos independentes da década de 1990, a partir de então
denominadas de ―Indies‖, porém com as mesmas propostas.
Este mercado musical independente do Brasil da década de 1990, teve como
principal catalisador do seu sucesso, o lançamento de novos nomes do cenário nacional,
dentre eles Racionais, O Rappa, Pato Fu, Planet Hemp, etc.
A década de 1990 carregou em si algumas particularidades com relação às
décadas anteriores no tocante à produção independente; além do preenchimento dos
espaços no mercado musical que não interessavam às Majors, estes selos independentes
passaram a trabalhar em uma espécie de parceria com estas grandes gravadoras, como
na prospecção e formação de novos artistas, promoção de segmentos musicais restritos,
inovadores, ou até mesmo alternativos.
136
VICENTE, Eduardo. A música independente: uma reflexão. São Paulo: XVIII Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação – UERJ, 2005.p.08.
90
Com toda esta bagagem profissional adquirida por estes produtores musicais
ao longo dos anos junto as Majors, o mercado musical brasileiro da década de 1990,
conheceu a partir de então artistas e produtores que conheciam o processo da produção
de um CD por completo, o arranjo das músicas, os músicos que fariam os referidos
arranjos, a concepção da capa, até mesmo a venda ao lojista, ou a negociação da
distribuição dos títulos junto às Majors.
Este processo que se estabeleceu entre Majors e Indies na década de 1990,
tornou-se freqüente e formou bem sucedidas relações de prospecção artística, produção
musical, marketing cultural e distribuição de títulos, sendo considerada por muitos
empresários como uma relação natural de prestação de serviços entre empresas.
Explanando esta relação de uma forma mais clara, as gravadoras Indies
corriam o ―risco‖ em prospectar novos artistas para o mainstream musical, enquanto as
Majors disponibilizavam suas grandes redes de distribuição de títulos ao grande
mercado consumidor.
Outra relação existente entre Majors e Indies era a prática da contratação de
artistas revelados pelas Indies, que conseguiam uma certa notoriedade na mídia e
relativa vendagem de CDs, seriam contratados para comporem os casts das grandes
gravadoras, em suma as Indies serviam como ―laboratório‖ de novos artistas, ou uma
primeira etapa na carreira destes aspirantes ao estrelato.
Uma das táticas utilizadas por estas gravadoras independentes na descoberta
de novos artistas com potencial comercial, era a exploração de segmentos e mercados
regionais específicos, dentre eles a World Music e a New Age.
Porém, esta segmentação das Indies não se resumiu apenas aos dois estilos
musicais relacionados anteriormente, mas a títulos com características religiosas137,
regionalizados geograficamente, de contestação social138, ou certamente estilos que não
fariam parte dos interesses comerciais das Majors.
Algumas gravadoras atuavam no mercado fonográfico como exceções, a
exemplo da gravadora paulista Trama, surgida em 1998, através do empreendimento do
produtor musical João Marcelo Bôscoli e dos irmãos Cláudio e André Szajman, embora
137
Estes selos com características religiosas estavam representados no Brasil principalmente por católicos
e evangélicos, através dos selos Canção Nova, Paulinas Comep, como também, Line Records, Bom
Pastor, Gospel Records, respectivamente.
138
Estes referidos títulos possuíam entre seus principais representantes o grupo Racionais MC‘s, Pavilhão
9, MV Bill, dentre outros.
91
não possuíssem as características de uma grande gravadora, a Trama possuía um cast
das maiores revelações musicais brasileiras da última década, com a exploração de
segmentos deveras urbanos como o Rap, Pop Rock, Techno, a MPB contemporânea, e
principalmente a busca pela criação de um mercado independente a partir da união de
iniciativas autônomas entre as Indies.
Nesta criação de um circuito autônomo as Indies desenvolveriam táticas de
mercado que consistiriam nos investimentos maciços em divulgação virtual, o
lançamento anual de diversos novos títulos, além da venda de parte de seus catálogos ao
mercado internacional, como exemplo o selo Pau-Brasil que atuava com artistas
desconhecidos do grande público nacional.
Contudo não foi apenas a gravadora Trama que se utilizou da Internet para a
promoção e distribuição dos seus artistas, pois esta prática seria acentuada no final da
década de 1990 com a venda de CDs on line, a audição das músicas, as próprias rádios
virtuais, e no final da referida década a venda de músicas em unidade pelas gravadoras e
a distribuição de catálogos inteiros por outras independentes.
Outro caminho seguido pelas Indies na promoção dos seus catálogos e de
seus respectivos artistas, foram as bancas de revistas, pois a partir da isenção do ICMS
concedido a livros, periódicos, jornais, o preço dos respectivos CDs seriam reduzidos,
face aos preços abusivos praticados pelas Majors.
Neste contexto vários segmentos musicais se utilizaram desta tática de
mercado, como o Gospel, O Rock, ou mesmo artistas139 da MPB esquecidos pelo
grande circuito do mainstream musical, além de hinos de clubes de futebol.
139
Dentre estes artistas podemos citar Léo Jaime, Baby do Brasil, Oswaldo Montenegro, etc.
92
lançou a banda pernambucana Mundo Livre S.A, além do selo Cogumelo que divulgou
a banda mineira Pato Fu.
No caso do selo alternativo Chaos responsável pela divulgação e
distribuição da banda Chico Science e Nação Zumbi, o contrato que fora assinado em
1994, segundo Paulo André Pires ―consistia em um contrato padrão para época‖ 140, com
relação às bandas de pop rock da década de 1990, de fato o referido contrato não
versava acerca do apoio maior que artistas do mainstream musical brasileiro possuíam
como os cantores sertanejos, ou seja, suporte para as viagens, cachês adiantados para a
gravação de um CD, enfim ―regalias‖ que não existiam no circuito alternativo
fonográfico brasileiro.
Percebemos que esta prestação de serviços, ou até mesmo este interesse na
criação de selos alternativos, somente era possível graças ao declínio do poder destas
grandes gravadoras face ao mercado musical, efetivamente segmentado e afetado de
forma irreversível pela pirataria, caso contrário as Majors não despertariam interesse
por estes novos artistas ―descobertos‖ pelas Indies.
140
Entrevista realizada por pesquisador para a presente pesquisa com Paulo André Pires, Recife 02/05/08
93
contrário do que ocorre com as grandes redes de mídia. 3) a possibilidade da
intercomunicação global – principalmente pela Internet – que permite a
ampliação do mercado potencial dessa produção (através de migrantes que
deixaram o local, grupos que partilhem os mesmos valores identitários,
etc)141.
141
VICENTE, Eduardo. op. cit. p.11.
142
Dentre estas bandas podemos citar Mastruz com Leite sua principal, Mel com Terra, Cavalo de Pau,
Aquarius, etc.
94
Caracterizamos o MangueBit como singular dentro do universo da Indústria
Fonográfica, devido ao reconhecimento que as referidas bandas conseguiram ainda na
cidade de Recife, como exemplo a MTV que desembarcou na cidade estuário para
conhecer a novidade musical que já atraia a atenção da imprensa especializada.
Com este reconhecimento as bandas pernambucanas pertencentes ao
MangueBit, ou outras bandas que foram afetadas de forma positiva por este cenário
local, conseguindo contratos com selos alternativos ou gravadoras independentes, dentre
elas Chico Science e Nação Zumbi, e Jorge Cabeleira e o Dia em que Seremos Todos
Inúteis, assinaram com a Sony através do seu selo alternativo Chaos, a Mundo Livre
S.A assinou com a Banguela Records, selo alternativo da Warner, além das bandas
Sheik Tosado e Otto que assinaram com a Trama, Querosene Jacaré com a Paradoxx
Music, dentre outros grupos.
Um exemplo de segmento musical que por muitos anos sofreu com o
preconceito e a falta de interesse das gravadoras foi o Hip Hop, que mesmo tendo um
certo reconhecimento devido as suas origens na cidade de Nova Iorque ainda entre as
décadas de 60 e 70, não gozava de quase nenhum prestígio por parte das gravadoras.
O Hip Hop caracterizado como um estilo musical basicamente de origem
negra, agregou em seu bojo a música (Rap), a dança de rua (Break) a as artes visuais
(grafites), adentrou ao Brasil ainda na década de 70, ensaiando seus primeiros passos,
justamente nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, em especial São Paulo e
Rio de janeiro.
Nesta referida época o Hip Hop possuía como principal característica a
organização de bailes Black, tendo como seus principais representantes Nelson Triunfo,
Gerson King, dentre outros.
Os artistas ligados ao movimento Hip Hop teriam um maior reconhecimento
das gravadoras independentes a partir do final da década de 1980, através da realização
de coletâneas musicais, dentre elas ressaltamos ―O som das ruas‖ da Kaskata’s Records,
―Consciência Black‖ da Zimbabwe, entre outras.
Porém, a grande guinada do referido estilo musical, somente aconteceu na
década de 1990, com o sucesso de grupos de Rap como o ―Racionais MC‘s‖, ou mesmo
com cantores que não possuíam a mesma origem da maioria dos cantores de rap, a
exemplo de Gabriel, o Pensador.
95
Devemos ressaltar que a relação destes grupos com a Indústria Fonográfica,
não se deu de uma forma completamente aberta, pois a maioria dos grupos preferiam
manter-se afastados do grande circuito comercial, abrindo espaços para selos
especializados no referido estilo musical, dentre eles JWS, RDS, Discovery, etc.
96
multinacional não conseguiam esconder a euforia com a mina de ouro que
achavam ter descoberto143.
143
KISCHINHEVSKY, Marcelo. MangueBit e novas estratégias de difusão diante da reestruturação da
Indústria Fonográfica. Rio de Janeiro: CONECO: 1º Congresso de estudantes de pós-graduação em
comunicação do Rio de Janeiro, 2006. p. 01.
144
O termo originalidade ao qual nos referimos neste ponto, trata-se de outros artistas nordestinos ou
mesmo de outras regiões que em algum momento de suas carreiras , ou de seus discos tenham utilizado
em suas composições em décadas anteriores, elementos da cultura popular do Nordeste, dentre estes
artistas podemos destacar o pernambucano Alceu Valença, o cearense Ednardo, além dos baianos
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, dentre outros.
97
Banguela Records, devido aos executivos da gravadora acreditarem que pela sonoridade
baseada no samba do cavaquinho de Fred 04 e por letras mais politizadas, seu nicho de
mercado seria reduzido.
As diferenças sonoras que influenciaram as bandas em diversos aspectos,
relacionados aos seus contratos com suas respectivas gravadoras são melhores
visualizados a partir da tabela145 a seguir:
Matrizes da
Rock, samba de breque, samba-
música urbana Samba e rock.
rock, samba soul, partido alto.
brasileira
Matrizes
Maracatu de baque virado, coco de
regionais Maracatu (apenas em O rapaz do
embolada, pastoril profano, ciranda,
tradicionais não B... preto).
maracatu de baque solto, coco.
midiatizadas
Tipologias
cancionais mais Tematização e figurativização Tematização e figurativização
constantes
145
LIMA, Tatiana. Manguebeat da cena ao álbum: performances midiáticas de Mundo Livre S.A e
Chico Science e Nação Zumbi. Salvador: dissertação de mestrado em Comunicação e Cultura
Contemporâneas, UFBA, 2007.p.163.
98
Percebemos que o diálogo musical entre o rock e as matrizes regionais é
mais evidente em Chico Science e Nação Zumbi, em contraste com o Mundo Livre S.A,
fator que confere em nosso entendimento uma classificação genérica proposta pela
Indústria Fonográfica, nas quais são rotuladas como ―Rock Regional‖ e ―Samba Urbano
Brasileiro‖ respectivamente, embora estas denominações sejam mais usuais no Brasil,
visto que no exterior, ambos os grupos sejam denominados nas prateleiras das lojas de
World Music.
Como havíamos citado anteriormente, o MangueBit guardando suas devidas
proporções caracterizou-se como um caso singular na Indústria Fonográfica brasileira,
que embora sinalizasse sinais de enfraquecimento na primeira metade da década de
1990, buscava nos festivais de música espalhados pelo Brasil, novas possibilidades
sonoras que satisfizessem seus interesses comerciais, sendo que especificamente em
Recife encontraram uma parabólica enfiada na lama captando boas vibrações.
Deste modo, a percepção dos artífices do MangueBit acerca da Indústria
Fonográfica da qual os mesmos estavam inserindo-se, ou mesmo já faziam parte deste
mainstream, suscitou-nos ao entendimento dos diversos meandros que compunham o
mercado fonográfico em questão e sua respectiva temporalidade, ou seja, como era
desenvolvida a relação entre uma Major que atuava no Brasil da década de 1990 e
bandas do Nordeste brasileiro recém contratadas, como a Chico Science e Nação Zumbi
pelo selo Chaos da Sony Music, ou Mundo Livre S.A pelo selo Banguela Records da
WEA?
Por conseguinte em nosso próximo capítulo, analisaremos justamente, estas
relações comerciais da seara fonográfica entre os anos de 1994 à 1996 com as
supracitadas bandas e seus respectivos trabalhos que estão contidos nesta
temporalidade, como os CDs ‗Da Lama ao Caos‖ e ―Afrociberdelia‖ de Chico Science e
Nação Zumbi, e ―Samba Esquema Noise‖ e ―Guentando a Ôia‖ da banda Mundo Livre
S.A.
99
3º CAPÍTULO
146
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. A oralidade dos velhos na polifonia urbana. Fortaleza: Imprensa
Universitária, 2003. p. 39.
100
ramificações, porquanto acreditamos que ―A história que se escreve de maneira
consciente e inconsciente está marcada pela época em que se vive.‖147
Consideramos a oralidade destes indivíduos baseada em suas vivências na
década de 1990 como fundamentais em nosso entendimento, do que foi possivelmente o
funcionamento das relações de mercado entre jovens suburbanos do nordeste brasileiro
e grandes gravadoras sediadas no sudeste brasileiro.
Neste constructo histórico a oralidade embasada pela história oral assegura-nos
da metodologia historiográfica presente neste trabalho acadêmico, em outros termos,
―Dessa forma a história oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e
centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da
experiência dos atores sociais.‖148; contudo devemos salientar que nossas discussões e
análises que estarão presentes no terceiro capítulo, utilizam-se da oralidade e
consequentemente do suporte teórico-metodológico da história oral, nossas abordagens
serão menos aprofundadas nestes quesitos intrinsecamente técnicos, posto que nos
atentaremos as relações ente músicos e empresas e ao próprio mercado fonográfico em
um contexto mais abrangente.
Considerando nossa visão acerca da oralidade e por conseguinte da história oral,
acreditamos que a mesma configure-se em nossa pesquisa como outras possibilidades
de fontes para a pesquisa histórica, fato este reforçado pela estrema contemporaneidade
do nosso objeto de pesquisa e seus atores sociais ainda vivos e de fácil acessibilidade no
que tange aos depoimentos a eles solicitados.
Em suma, nossas perspectivas historiográficas no tocante a historia oral estão
representadas pelas inovações em certa medida, e principalmente pelas novas vertentes
abertas por esta metodologia de pesquisa, que outras fontes mais tradicionais ou menos
dinâmicas não proporcionam ao historiador que trabalha principalmente com temáticas
imbuídas pelo contexto contemporâneo.
147
MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória. A cultura popular revisitada. São Paulo:
Editora Contexto, 1992. p. 10.
148
FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 2005.p.16.
101
3.1 - Espaços, tv’s, festas e rádios na Manguetown.
102
Academia do Medo, Câmbio Negro HC e até mesmo Mundo Livre S.A que existiam
desde 1984, sobreviviam sem nenhuma expressividade maior no cenário pernambucano
e brasileiro, restringindo-se basicamente à apresentações restritas, garagens, galpões, e
principalmente à falta de uma produção profissional, seja nos shows, ou mesmo em
gravações nos estúdios locais que deixavam a desejar em se tratando da qualidade
técnica das gravações.
Esta realidade nada favorável para estas bandas do cenário local, provocou
nestes jovens músicos um ―entendimento‖ de que era necessário a construção e
propagação de uma cena cultural na cidade de Recife e municípios vizinhos como
Olinda, assim esta ação cultural começou a ganhar forma e tomar corpo ainda no início
da década de 1990 com a realização de pequenos shows, festas, ensaios abertos, etc.
Com esta ideia de criação e abertura de espaços, estes agitadores culturais
iniciaram a empreitada artística com medidas inusitadas, como o aluguel de bordéis na
zona portuária de Recife, em um local denominado de ―Franc‘s Drink‘s‖, que devido ao
valor reduzido do aluguel do espaço, era possível realizar festas com uma sonoridade
diversificada, dentre estas festas uma ficou conhecida como a ―Sexta sem Sexo‖, fator
ainda mais interessante em se tratar de um local conhecidamente desprezado por jovens
urbanos de classe média, ou mesmo com uma cultura musical mais abrangente.
Outros locais serviram como suporte para as apresentações das bandas, como
por exemplo o ―Poco Loco‖ e o ―Espaço Oásis‘ no bairro de Casa Caiada em Olinda,
que em 1991 sediou a primeira festa com o termo mangue, estampada na página cultural
do Jornal do Commércio, em que a referida matéria está contida em nosso primeiro
capítulo com o título ―Sons Negros no Espaço Oásis‖.
Ocorreram também festas no Centro Daruê Malungo149 em 1991, local de
ensaios da Nação Zumbi e nos anos seguintes shows no espaço ―Rabo de Arraia‖ no
alto da Sé com a festa ―Viagem ao Centro do Mangue‖.
149
O Centro Daruê Malungo atua há mais de vinte anos no Bairro de Chão de Estrelas, periferia de
Recife na promoção da educação e valorização da cultura. Foi no Daruê Malungo que Chico Science
travou o primeiro contato musical com o Grupo Lamento Negro de Gilmar Bola Oito, que em pouco
tempo viria a compor o naipe de tambores da Nação Zumbi.
103
Cartaz da festa ―Viagem ao Centro do Mangue‖150
Com esta prática cultural urbana, os jovens artistas pernambucanos aos poucos
começavam a galgar espaços na mídia local, principalmente nos periódicos de maior
circulação no Estado de Pernambuco, principalmente no Jornal do Commércio e Diário
de Pernambuco.
Esta visibilidade dos periódicos comprovada em nossa pesquisa151, serviu como
plataforma para estes jovens músicos em vôos ainda mais distantes e arrojados, como a
chegada da MTV em 1991 na cidade de Recife em busca da novidade musical que vinha
de uma cidade nordestina em que não se esperava mais do que notícias sobre violência e
degradação ambiental.
Além da MTV, outro acontecimento que impulsionou não apenas o MangueBit,
mas todo o cenário musical recifense no início da década de 1990, foi a chegada da
Rádio Rock em Recife, ou seja, pela primeira vez uma determinada rádio da capital
pernambucana estava tocando as bandas locais, um fato inédito para época
150
TELES, José. Op. cit. p. 280.
151
Em nossa pesquisa junto aos periódicos constatamos cerca de 295 reportagens referentes ao
MangueBit realizadas pelo Jornal do Commércio e 87 realizadas pelo Diário de Pernambuco entre os anos
de 1991 a 1997.
104
3.2 – Sopa de sons na cidade estuário.
152
Roger de Reno é ex-promoter da WEA, que no ano de 1991 aos 28 anos após pedir demissão do seu
emprego formal na referida gravadora, abriu o bar no Pina, zona Sul do Recife, considerado na época da
abertura do estabelecimento uma área desvalorizada comercialmente e problemática no tocante à
segurança pública.
153
Roger de Reno. Entrevista concedida a presente pesquisa em 23 de novembro de 2008.
105
contemporânea, alguns locais serviram como ícones para determinadas bandas ou
movimentos, como por exemplo o CBGB154 na cena musical de Nova Iorque dos anos
70 e 80 que lançou nomes como Ramones, Talking Heads, dentre outros , ou mesmo
Cavern Club155 que serviu de palco para os Beatles, e em nosso caso o Soparia para os
mangueboys e outras bandas que se utilizaram do espaço para suas primeiras
apresentações.
154
Bar localizado em Manhattan na cidade de Nova Iorque, ficou conhecido por ser um reduto das
bandas alternativas no Estados Unidos e por ser um dos principais palcos da incipiente cena Punk nova
iorquina do início da década de 1970.
155
Bar localizado na cidade de Liverpool na Inglaterra, que serviu de palco para as primeiras
apresentações dos Beatles, sendo demolido em 1973 e reconstruído posteriormente, funcionando até os
dias atuais com duas sedes.
106
que não frequentavam o espaço, ou mesmo não entendiam a ideia despretensiosa do bar,
afastando desta forma as pessoas acostumadas a frequentar o Soparia.
Com o volume intenso de público, inúmeras ocorrências de violência nas
proximidades do bar foram registradas, como também a visão deturpada de alguns
frequentadores do local acerca do ambiente, favoreceu para que a Soparia encerrasse
suas atividades sob o comando de Roger de Reno em 2000, assim um símbolo da
movimentação cerrava suas portas no Bairro do Pina em Recife.
3.3 –Abram alas para o rock and roll! Abril pro rock na cidade estuário.
156
Dentre estas bandas que Paulo André conheceu em Shows ou pessoalmente através de contatos
pessoais foram Iron Maiden, Pink Floyd, Duran Duran, New Order, Primus, Faith no More, etc.
157
Utilizaremos a sigla PA para denominarmos o produtor cultural Paulo André Pires.
158
A Discossauro compunha juntamente com a Rock Xpress as principais lojas de discos especializadas
em Rock and Roll de Recife no início da década de 1990.
107
época para promover a festa ―Não Papai Noel‖, em que o cartaz possuía uma foto do
papai Noel enforcado.
Paralelamente, ao período de empresário da loja de discos e dos primeiros
contatos com as bandas locais, PA estreou algumas resenhas musicais para a revista
especializada em metal pesado ―Rock Brigade‖, além de enveredar na produção de
eventos, desta forma em 1991 juntamente com os músicos Alemão e Fred Kreder
trouxe para Recife as bandas Morbid Angel e em 1992 a banda Kreator, ambas
estrangeiras e representantes do metal pesado.
Neste mesmo período, mais precisamente em 1992, PA iniciou sua carreira
como empresário de artistas, com o músico Lula Côrtes, contemporâneo de Alceu
Valença, Zé Ramalho, dentre outros, assim com esta experiência em produção musical
que estava sendo acumulada, o primeiro Abril pro Rock foi pensado ainda para 1992,
porém,
Devido ao réveillon, carnaval, e outras festas da Prefeitura do Recife, o APR
foi adiado para 1993, tendo sua data montada justamente após o carnaval, ou
seja, ―fevereiro o carnaval, março as chuvas e a produção do festival, maio
com mais chuvas, junho os festejos juninos, então a melhor data foi abril,
abril pro rock‖159.
Em sua primeira edição o APR foi produzido de forma precária, com poucos
recursos, fato reforçado pela inexistência de um escritório apropriado para o festival,
para ficar claro, o quarto de PA servia como sede administrativa do festival, sendo que o
telefone de contato do festival era o mesmo de sua residência.
Na única noite do festival, dia 25 de abril de 1993, apresentaram-se doze
bandas160 do Grande Recife, dentre estas atrações estavam o Maracatu Nação
Pernambuco, Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A, com a ordem das
apresentações delineadas através de um prévio sorteio promovido pela organização do
festival.
Embora concentrado em um dia de muitas apresentações, a imprensa local,
jornalistas de outros Estados, e o público em geral, perceberam que na capital
pernambucana havia algo diferente, logo um ―novo olhar‖ era necessário para a
159
Paulo André Pires. Entrevista concedida a presente pesquisa em Recife 03 de maio de 2008.
160
As outras bandas que se apresentaram na 1ª edição do APR foram Zaptones, Cobaia Kid, Blusbroders,
Delta do Capibaribe, Zaratempo, Tempo Nublado, Academia do Medo, Paulo Francis Vai pro Céu, Lula
Côrtes e Xamã.
108
metrópole caótica, no que se refere à quantidade, e principalmente, à qualidade das
atrações que viriam a se apresentar no supracitado festival de música.
110
após inúmeros contatos as turnês foram iniciadas e estenderam-se para todo o Brasil,
Europa e Estados Unidos.
É importante destacarmos também que durante a década de 1990, existiu nas
edições do APR constantes visitas de produtores das grandes gravadoras, no intuito de
conhecer as novas bandas que surgiam não apenas em Pernambuco e Região Nordeste,
mas de uma certa forma em todo o Brasil, podemos citar fatores que embasam nossa
prerrogativa, tais como as bandas que participaram do APR e que consequentemente
assinaram contratos com grandes gravadoras, como Pato Fu (BMG/Plug), Jorge
Cabeleira e o dia em que seremos inúteis (Sony/Chaos), Mundo Livre S.A (Banguela
Records/WEA), etc; ou mesmo como PA afirmou ―a primeira vez que vimos o vinil e o
CD prontos de ―Da lama ao caos‖, foi quando os produtores da Sony vieram do Rio e
mostraram pra gente no APR de 1994‖161.
Em um melhor entendimento sobre esta chegada dos executivos das Majors
na capital pernambucana em meados da década de 1990, há sempre uma indagação
partindo dos representantes destas gravadoras para os próprios músicos ou jornalistas
especializados que acompanhavam a movimentação desde seus primórdios: que música
é essa?
Nas entrelinhas desta pergunta formulada pelo produtor musical, há outras
não pronunciadas, porém entendidas, por exemplo, qual a fatia do público que vai se
interessar por esta música? Não obstante percebemos que estes questionamentos
perfazem uma necessidade premente das gravadoras em rotular determinada sonoridade
de uma banda, no intuito de promovê-la segundo nichos de mercado e público
previamente estabelecidos por estas próprias gravadoras.
161
Paulo André Pires. Entrevista concedida a presente pesquisa em Recife, 03 de maio de 2008.
111
do público, mas dos empresários que não acreditavam no poder renovador veiculado
pela nova rádio, mas apenas em se tratar de uma música eivada de preconceitos e
severas rejeições por parte daqueles que de alguma forma poderiam patrocinar esta nova
empreitada cultural na capital pernambucana.
Atentando-nos aos bons momentos vividos pela 89 FM, destacamos a referida
entrada da rádio na capital pernambucana, como uma espécie de ―divisor de águas‖ na
mentalidade dos componentes das bandas, no tocante à promoção das bandas
recifenses, já que, até então os grupos não possuíam espaço nas rádios pernambucanas
para divulgarem seus trabalhos, nem mesmo os empresários da radiodifusão se
interessavam em pautar tais músicos em suas programações.
Desta feita a ―89 FM‖ buscou em sua curta existência, divulgar as bandas de
rock pernambucanas, isto para a época (início dos anos 90) foi em certa medida
―revolucionário‖ não no que tange à profundas mudanças, mas pautou a partir de então,
artistas da cena rock de Recife que até então não haviam possuído espaço nas rádios
locais, mesmo que há de se ressaltar que a programação da referida rádio ainda fosse
pautada em bandas estrangeiras.
Entretanto, este sopro de ―boas novas‖ e oportunidades, esbarrava em alguns
empecilhos suscitados justamente pela falta de apoio de anos anteriores a estas bandas;
das bandas pernambucanas de rock, apenas a ―Tempo Nublado‖ e ―Academia do Medo‖
possuíam discos com qualidade técnica para tocarem na rádio, mesmo que bandas como
―Câmbio Negro HC‖ possuíssem discos, estes foram gravados de maneira precária,
além do fato de ser uma banda de Hardcore, que para a época ainda era um estilo
impraticável em uma rádio de caráter comercial.
Esta curta oportunidade oferecida pela ―89 FM‖ suscitou nas bandas recifenses
uma verdadeira corrida aos estúdios de gravação, no intuito de terem seus trabalhos
divulgados na rádio, e é neste ponto que percebemos uma certa profissionalização das
bandas, mesmo que incipiente, no tocante a uma inserção no mercado fonográfico
local162.
Seu fechamento ocorreu de forma abrupta, em menos de um ano de
funcionamento, como já citamos anteriormente a 89 FM foi rechaçada pelo
162
Quando definimos como inserção local no mercado fonográfico, salientamos que as referidas
gravações dos vinis não possuíam distribuição nacional, nem mesmo eram apoiadas por alguma
gravadora de médio ou grande porte, estando restritas principalmente, ao mercado recifense.
112
empresariado local, que visualizava a música veiculada pela rádio de forma
extremamente depreciativa, muito embora o Sistema Brasil Nordeste de Comunicação,
responsável pelo empreendimento, tenha alegado prejuízos sem maiores detalhes acerca
da natureza destas perdas econômicas.
163
―Chaos‖ referência ao selo alternativo da Sony Music que gravou os dois álbuns de Chico Science e
Nação Zumbi, ―Da lama ao Caos‖ e ―Afrociberdelia‖
113
a audição da banda, fitas cassete demo164 com pouca qualidade técnica, além da
inexperiência dos integrantes da banda em estúdio aliada à própria falta de recursos
tecnológicos em gravar e equalizar de forma qualitativa o naipe de tambores da banda.
A partir do disco ―Da Lama ao Caos‖ pronto em 1994, uma das primeiras tarefas
do setor de marketing da gravadora foi colocar o disco para ser executado nas rádios
comerciais de todo o país, entretanto um dos problemas encontrados pela Sony e
consequentemente pela banda, foi o rótulo apontado pelas rádios especializadas em
rock, ao taxar o som de Chico Science e Nação Zumbi como ―regionalizado‖, desta
forma não atingindo de forma considerável o público cativo destas rádios.
Mesmo com a penetração na mídia dificultada por esta visão limitada do que era
o som produzido pela banda, o empresário do grupo através dos contatos profissionais
realizados no exterior, resolveu apostar na divulgação fora do Brasil, medida esta que
em um primeiro momento não foi aprovada pelo setor comercial da empresa, gerando
um certo mal estar pela própria incredulidade que a gravadora possuía em relação à
banda com o primeiro trabalho recém-gravado.
Consideramos este fato como a segunda indisposição entre a banda e a
gravadora, já que esta desconfiança se devia ao fato de que em abril de 1994 o disco e o
CD ―Da Lama ao Caos‖ foram lançados e apenas 5 mil cópias haviam sido vendidas nos
seis primeiros meses, posto que o MangueBit havia conquistado um espaço de destaque
na música brasileira pela mídia especializada desde então.
Este impasse entre a banda e a gravadora com relação a turnê internacional teve
seu desfecho no primeiro trimestre de 1995, quando Chico Science e Nação Zumbi
comunicou à Sony que iria realizar sua primeira turnê internacional, aproximadamente
por 40 dias, passando pelos Estados Unidos e Europa.
Estas apresentações incluíam o Summerstage Festival no Central Park de Nova
Iorque e mais sete países da Europa165, contudo devemos salientar que esta turnê
somente foi possível graças a ajuda que o Governo de Pernambuco proporcionou por
intermédio de Pedro Mendes, Secretário Adjunto de cultura do governo de Miguel
Arraes, tendo como titular da pasta o escritor Ariano Suassuna, que articulou 11
passagens aéreas com os seguintes trechos (Recife-Nova Iorque/ Nova Iorque-
164
Abreviação para as fitas cassetes que serviam de demonstração para bandas desconhecidas se
promoverem dentro do circuito cultural.
165
Dentre estes países destacamos França, Bélgica, Holanda, Portugal, Inglaterra, Espanha e Alemanha.
114
Bruxelas/Bruxelas-Recife), percebemos neste ponto a falta de apoio da gravadora Sony
com a banda Chico Science e Nação nesta empreitada estrangeira.
Com o retorno da banda, as propostas para apresentações em todo o Brasil
aumentaram consideravelmente e o disco ―Da Lama ao caos‖ que havia sumido das
prateleiras devido as vendas reduzidas, retornou ao público consumidor de uma forma
mais pungente.
Nesta repercussão positiva há um fator interessante, que serviu de catalisador na
promoção da banda, não apenas no mercado nacional, mas especificamente para o
público pernambucano, o Governo do Estado de Pernambuco contratou uma repórter de
Recife que morava e trabalhava nos Estados Unidos havia alguns anos para cobrir a
apresentação de Chico Science e Nação Zumbi no Summerstage Festival no Central
Park de Nova Iorque.
Com o trabalho pronto, o mesmo foi enviado ao Brasil e colocado no ar pela TV
Pernambuco quando a banda ainda estava excursionando pela Europa, o resultado foi
extremamente positivo, principalmente com relação ao respeito que a banda havia
conseguido a partir de então junto à gravadora Sony e ao público pernambucano.
A banda possuiu um relativo espaço de tempo para divulgar o primeiro disco, ou
seja, mais de um ano e meio para participar de shows e programas de Tv no Brasil e no
exterior durante este período, satisfazendo o setor de marketing da gravadora que exigia
turnês mais extensas.
Contudo a banda não dispôs deste mesmo espaço de tempo para divulgar o
segundo disco ―Afrociberdelia‖ que foi gravado entre dezembro de 1995 e janeiro de
1996, pois outra turnê para a Europa havia sido marcada, prova disto foi a ausência da
banda no lançamento do supracitado álbum.
A busca incessante por bons números com relação às vendas pela Sony, tanto do
primeiro disco ―Da Lama ao Caos‖, como do segundo ―Afrociberdelia‖, gerou outras
indisposições dos músicos com relação à gravadora, ou seja, a Sony antecipou a
produção do clipe e do single166‖Manguetown‖ em vários meses para aproveitar a
divulgação do Hollywood Rock que seria realizado no início de 1995.
Mesmo com esta divulgação massiva o disco Afrociberdelia, embora tenha
vendido 80 mil cópias nos seis primeiros meses, não agradou a gravadora que sempre
166
O single caracteriza-se por ser a música escolhida de um determinado álbum para servir como música
promocional de uma determinada banda, principalmente em vídeo clipes.
115
almejava números estratosféricos, ainda que outras táticas de mercado já tivessem sido
adotadas além da promoção no Hollywood Rock, como a gravação da música ―Maracatu
Atômico‖167, mesmo após o disco Afrociberdelia estando quase pronto na sua fase de
estúdio.
Capa de ―Afrociberdelia‖, Chico Science e Nação Zumbi, 1996, Chaos Sony Music
167
Composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, regravada no disco Afrociberdelia de Chico Science
e Nação Zumbi.
168
As versões encomendadas pela Sony são as seguintes: Maracatu Atômico (Atomic Version), Maracatu
Atômico (Ragga Mix), Maracatu Atômico (Trip Hop).
116
Desenvolvimento da Sony Music, a retirada dos remixes nos CDs que seriam lançados
no exterior ainda em 1996.
Em um panorama geral acerca das relações entre a banda e a gravadora Sony
através do seu selo alternativo Chaos, percebemos que mesmo a banda possuindo um
contrato padrão para a época com 10% dos royalties da venda dos discos, a postura dos
músicos manteve-se de uma certa forma independente sob vários aspectos.
Esmiuçando estas características de uma forma mais premente, observamos que
esta postura de independência esteve presente na confecção da capa do disco ―Da Lama
ao Caos‖, mesmo que as grandes gravadoras da época possuíssem uma ideia bem
formatada com relação às capas dos discos, distribuindo-as através dos gêneros
musicais, ou seja, ―o que era rock era rock, o que era música eletrônica era música
eletrônica‖169.
Partindo desta premissa do estereótipo das capas, acreditamos que a própria
Sony não soube trabalhar de forma eficiente a promoção de Chico Science e Nação
Zumbi, ou mesmo como a gravadora iria rotular um som ―irrotulável‖, que passeava de
forma híbrida por vários estilos musicais e tendências?
Mesmo que além das incompreensões do setor de marketing da Sony com
relação ao produto que estavam tentando promover, havia uma falta de consentimento
coletivo, até mesmo nas cores da capa, de um lado a banda desejava em preto e branco,
do outro lado da balança havia a gravadora que a preferia muito colorida, alusão direta
ao segmento Axé Music.
Nesta negociação prevaleceu uma espécie de meio termo entre as opiniões, ou:
―a capa não pode ser preto e branco porque o som de vocês é uma coisa alegre, não tem
nada a ver preto e branco, e já com a gravadora não poderia ser colorida demais senão
corria o risco de cair no estereótipo da gravadora, querendo rotular a banda como
Axé‖170
169
DJ Dolores. Entrevista concedida a presente pesquisa, Fortaleza 12 de março de 2010.
170
Idem
117
Capa de ―Da Lama ao Caos‖, Chico Science e Nação Zumbi, 1994, Chaos Sony Music.
118
transparecendo-nos a ideia de uma estagnação refletida ainda das décadas de 60, 70 e 80
com nomes consagrados da MPB, duplas sertanejas e bandas de rock remanescentes da
década anterior.
119
A partir da ideia de uma sonoridade diversificada, Fred 04, juntamente com seu
irmão Fábio e dois outros músicos, iniciaram a empreitada sonora, destilando os mais
diversos estilos musicais, buscando um punk rock tocado com um cavaquinho e
dançante como o ―Tábua de Esmeraldas‖171 de Jorge Ben, ou:
Não espere nada do centro/se a periferia está morta/ pois o que era velho no
Norte/ se torna novo no Sul/ eu tenho feito samba pesado/ misturado sons,
inventado estilos/ eu venho repensando o sucesso/ e destruindo a camada de
ozônio/ eu venho perseguindo bandidos/ pedindo a pena de morte/
receitando psicotrópicos/ aplicando eletro choques/ e destruindo a camada
de ozônio/ eu só queria ser Romário172.
171
Tábua de Esmeraldas é o décimo primeiro álbum do cantor e compositor Jorge Ben lançado em 1974
pela gravadora Philips, segundo Fred 04 após escutar o referido disco sua concepção sobre música sofreu
profundas mudanças no que tange às influências sonoras.
172
MONTENEGRO, Fred. Destruindo a camada de ozônio. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema
Noise. São Paulo: Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 02 (03 min. 52 seg).
173
Coelho, op.cit. p.16.
120
rock ou discoteca da adolescência, ou mesmo sua fase punk antes do curso de
jornalismo concluído na Universidade Federal de Pernambuco, em suma a música
sempre esteve presente na vida deste artífice do MangueBit.
O interesse pela cultura urbana, em especial a música, fez com que Fred 04 e um
grupo de colegas do curso de jornalismo, dentre eles Renato L, iniciassem a confecção
de um jornal acadêmico denominado de ―Gueto‖, que além de servir como um trabalho
curricular do referido curso, tinha como grande intenção segundo Fred 04 a pesquisa e a
divulgação das coisas que aconteciam nos Guetos de Recife.
Foi justamente nesta experiência acadêmica que Fred 04 e Renato L travaram o
primeiro contato com esta cena underground das gangues de break e hip hop de Recife,
conhecendo também dois integrantes destes grupos que mais tarde formariam o ―núcleo
mangue‖, Chico Vulgo que mais tarde seria conhecido como Chico Science e Jorge Du
Peixe, ambos moradores do Bairro de Rio Doce, periferia de Olinda.
Chico Vulgo (futuro Chico Science) nos bailes de break da periferia de Olinda, década
de 1980.
Além deste primeiro contato pessoal entre Fred 04, Renato L, Chico Science e Jorge
Du Peixe, há outras nuances que podem ser destacadas, ou seja, primeiramente estamos
cônscios que este encontro não suscitou nada de especial ou mesmo extraordinário entre
estes jovens, porém abriu as ―janelas culturais‖ para dois jovens universitários de classe
121
média, que até então possuíam contatos do circuito cultural recifense, basicamente
restritos aos grupos de punk rock e hardcore da cidade.
Segundo Fred 04, esta experiência de pesquisa em campo, abriu um outro olhar
sobre a cultura presente na cidade, reforçada por outra experiência ainda na
Universidade, com o programa ―Canto Geral‖174, que também servia como estágio
curricular, sendo esta a mais decisiva na relação entre Fred 04 e Renato L, com relação
a uma parceria cultural, que se consolidou durante os anos seguintes com outros
programas de rádio175 e consequentemente com o futuro release ―Caranguejos com
Cérebro‖.
Em um contexto mais profissional da radiodifusão, Fred 04 antes do
reconhecimento da banda Mundo Livre S.A, trabalhou na rádio Transamérica em Recife
no início da década de 1990 como radialista, nesta oportunidade o músico travou
contato direto com produtores culturais, empresários, de bandas, divulgadores de
gravadoras, dentre eles Roger de Reno divulgador da Warner, além de participar de
grandes lançamentos de discos na capital pernambucana.
Logo após a conclusão do curso de jornalismo, Fred 04 também desenvolveu a
função de repórter da TV Jornal de Pernambuco, com pautas voltadas para o circuito
noturno de shows na cidade de Recife, assim conheceu nesta época bandas de rock do
mainstream nacional que se apresentavam na cidade, segundo o próprio músico
entrevistando praticamente todos os grupos que compunham o Brock.
Preconizando estas experiências amadoras ou profissionais de Fred 04,
percebemos que o mesmo possuía de fato uma clara noção do funcionamento, ou
melhor, das relações que envolviam as bandas e gravadoras, consequentemente, as
táticas de mercado utilizadas por estas empresas na produção e principalmente, na
divulgação destas bandas para o grande público.
Esta noção acerca dos meandros mercadológicos fonográficos, pautavam a
própria postura do músico frente a autopromoção realizada por ele e pelos outros
artífices, como também pela própria postura da banda Mundo Livre S.A diante das
174
O programa ―Canto Geral‖ já era realizado na rádio universitária, sendo caracterizado por fazer um
apanhado da MPB desde os anos 50 com a Bossa Nova, passando pela Jovem Guarda, até artistas mais
contemporâneos.
175
Dentre estes outros programas salientamos o programa ―Décadas‖ já descrito em nosso primeiro
capítulo, como também programas realizados durante a efervescência do MangueBit como o
―MangueBeat‖ que foi ao ar pela FM Caetés e o programa ―Manguetronic‖ difundido pela Internet,
ambos sob o comando do jornalista Renato L.
122
negociações, sugestões e até mesmo certas imposições das Majors a respeito da
identidade da banda176, seja pelo tipo de música, formação de componentes, aquisição
de novos instrumentos, ou mesmo a entrada de novos integrantes.
Este entendimento do mercado fonográfico perpassou as ideias do músico bem
antes mesmo da gravação do seu primeiro disco com o Mundo Livre S.A ―Samba
Esquema Noise‖, isto é, referimo-nos ao release elevado à categoria de manifesto pela
imprensa local ―Caranguejos com Cérebro‖, pois a intenção principal era fugir do
padrão de release das gravadoras, quando as mesmas iriam promover alguma banda.
A intenção dos mesmos era criar realmente uma certa estranheza logo que o
texto chegasse às redações dos jornais pernambucanos, fato comprovado e perpetuado
posteriormente, pois como já citado anteriormente, o texto foi renomeado por Marcelo
Pereira do Caderno C do Jornal do Commércio e logo após a sua publicação no Estado
de Pernambuco, a imprensa nacional, principalmente os jornais do Brasil e revistas
especializadas tomaram conhecimento de um manifesto escrito por jovens artistas da
Cidade de Recife.
É importante ponderarmos que estas táticas de autopromoção, com relação à
indumentária, vocabulário próprio, discurso pautado na diversidade cultural, conceitos e
principalmente, em um release escrito e divulgado na imprensa, conduziu os produtores
da Sony e Warner na primeira turnê do Mundo Livre S.A, a defenderem a ideia de que
as bandas do MangueBit não precisariam utilizar o setor de marketing das referidas
Majors, pois os mesmos já possuíam o marketing da movimentação completamente
pronto.
Havia em todo este contexto das negociações entre as bandas do MangueBit, em
especial o Mundo Livre S.A, que segundo Fred 04 ―era uma postura de anti-marketing,
que de uma certa forma era um marketing‖177, pois como citado anteriormente com
relação às mudanças propostas à banda, a Indústria Fonográfica almejava a diluição
desta postura da Mundo Livre S.A no intuito de criar uma padronização do som
produzido pela banda.
176
Segundo Fred 04 dentre outras sugestões da gravadora, incluíam-se a entrada de alfaias para a banda se
parecer com a Nação Zumbi, a contratação de uma voz feminina para dividir os vocais com Fred 04, estas
mudanças iriam render turnês extremamente lucrativas, porém foram negadas pela banda, pois segundo o
músico estas transformações iriam descaracterizar a banda e sua sonoridade.
177
Entrevista concedida a presente pesquisa, Fortaleza 01 de outubro de 2009.
123
3.8 - A boca cheia de dentes no Banguela Records.
124
Capa do disco ―Samba Esquema Noise‖, Mundo Livre S.A, Banguela Records 1994.
178
A banda Mundo Livre S.A somente possuiu seu primeiro empresário, quando estavam na turnê do
primeiro disco que já havia sido gravado e lançado.
125
(smart, drugs), pontes e overdrives‖, ―cidade estuário‖, outrossim há também músicas
que estão permeadas pela acidez e a crítica social características de Fred 04, como as
canções ―a bola do jogo‖, ―livre iniciativa‖, ―homero o junkie‖, ―saldo de aratu‖, ―sob o
calçamento (se espumar é gente)‖, ―samba esquema noise‖; ou mesmo músicas
fomentadas sob os auspícios da irreverência e porque não dizer, da influência direta de
Jorge Ben como as composições ―uma mulher com W maiúsculo‖, ―musa da ilha
grande‖.
Entretanto há interseções neste constructo musical, como a música ― o rapaz do
b... preto‖, que serve como uma espécie de confluência sonora, congregando as
principais características das composições citadas anteriormente, ou:
179
MONTENEGRO, Fred. O rapaz do b... preto. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema Noise. São
Paulo: Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 01 (04 min. 12 seg).
126
3.9 – Entrecruzando experiências sonoras.
180
Os discos nos quais nos referimos são ―Da lama ao caos‖ e ―Afrociberdelia‖ de Chico Science e Nação
Zumbi, e ―Samba Esquema Noise‖ e ―Guentando a Ôia‖ do Mundo Livre S.A.
181
MONTENEGRO, Fred. Cidade Estuário. In: Mundo Livre S.A. Samba Esquema Noise. São Paulo:
Banguela Records/ Warner Music, 1994. 1 CD. Faixa 10 (05 min. 05 seg).
127
A existência e inúmeros termos presentes no release, principalmente nas
questões biológicas, são evidentes, como também as metáforas relativas ao MangueBit,
no que concerne à injeção e saciedade cultural que a capital pernambucana necessitava
naquele momento, não vislumbrando apenas uma cidade construída sob os mangue e
rios costeiros, mas um ser vivo de lama, concreto e vida por todos os lados.
Assim como Chico Science e Nação Zumbi que versou de forma mais
contundente o release no primeiro disco produzido pela banda, a temática do mangue
ficou também menos evidente no disco ―Guentando a ôia‖ do Mundo Livre S.A,
possuindo um caráter muito mais político, diferentemente de Chico Science e Nação
Zumbi que em seu segundo disco ―Afrociberdelia‖o fio condutor, foi a busca por uma
sonoridade diferente baseada na música brasileira, ou como podemos observar:
Faminto e calmo o samba chegou/ Domingo de todos os lados/ Daqui pra ali
de lá pra cá/ Pode se escutar o som daqui do Brasil/ Lembro quase tudo que
sei/ E organizando as ideias/ Lembro que esqueci de tudo/ Mas, eu escuto o
samba!182
Não era apenas a fome de samba que moveu Chico Science e seus camaradas
nesta empreitada sonora, pois as ideias de experimentações musicais foram colocadas
em pauta no referido disco, como na presente canção, em um samba entrecortado por
um contra-baixo psicodélico, tendo as alfaias como marcadoras do ritmo deste samba
envenenado, assim como o groove da guitarra de Lúcio Maia enervada de efeitos
sonoros.
Entrecruzando as experiências sonoras de ambas as bandas percebemos os
pontos em comum que jovens suburbanos do Nordeste brasileiro, possuíram nas
músicas compostas por eles, e como estas mesmas canções oxigenaram a música
brasileira do final do século XX, abrindo novas perspectivas sonoras para grupos que
apareceram no mainstream musical brasileiro posteriormente.
Não há como negar que algo diferente aconteceu no início da década de 1990 na
latitude183 -08° 03' 14 e na longitude 34° 52' 52'', em que a distopia de uma metrópole
brasileira foi em certa medida transformada através da utopia de alguns agitadores
culturais, que em um curto espaço de tempo, transformou-se em um nascedouro de
possibilidades, sejam elas musicais, sociais, culturais, enfim como os próprios artífices
182
SCIENCE, Chico. Samba do lado. In: Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro:
Chaos/ Sony Music, 1996. 1 CD. Faixa 07 (03 min. 47 seg).
183
Estas coordenadas geográficas representam a cidade de Recife exatamente no globo terrestre.
128
do MangueBit versaram no release Caranguejos com Cérebro “Basta injetar um pouco
de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife”,
deixando entender que eram sabedores da receita da metamorfose cultural que a cidade
de Recife e consequentemente o Brasil há muito necessitavam.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
184
MOURA, Luciana Ferreira. Do mangue para o mundo:o local e global na produção e recepção da
música popular brasileira. Campinas: tese de doutorado em Ciências Sociais, UNICAMP, 2004.p.251.
131
Os caminhos apresentados no decorrer desta pesquisa, foram iniciados na
busca da autopromoção, bem antes dos artífices lograrem um reconhecimento
expressivo por parte de algum segmento social, principalmente midiático.
Por conseguinte o release ―caranguejos com cérebro‖ tomado pela imprensa
como manifesto, foi o ponto de partida, e, em nosso entendimento, o mote de toda a
movimentação, no que diz respeito aos conceitos versados e propagados a partir do
referido release, dentre eles a ideia central de ―uma parabólica enfiada na lama‖.
Como foi verificado, a partir desta ideia dos pés fincados na lama fértil da
tradição, e os ouvidos voltados para as novidades exteriores, o MangueBit propôs
algumas releituras e posteriores resignificações importantes acerca da cultura pop do
século XX, dentre elas a leitura atualizada e condizente da indumentária do punk
londrino, para a realidade de uma capital nordestina do final do século XX, como
Recife.
Presenciamos as convenções necessárias e deveras inteligente da utilização
das vestimentas como um artifício carregado de simbolismos, ou melhor, a partir de um
visual promovido pelos mangueboys, percebemos que havia toda uma carga cultural
trazida das feiras livres do Grande Recife, o grande ―shopping popular‖ da maioria da
população recifense, mesmo que esta indumentária não estivesse eivada de
agressividade, contestação social, ou coisas do tipo, referentes ao punk londrino, foi
vislumbrado a intenção dos jovens pernambucanos em causar também um choque
visual, não de repulsa ou coisas do gênero, mas um sinal da auto-identificação das
camadas mais humildes em reconhecer-se naqueles jovens que se vestiam com as
mesmas roupas utilizadas por eles mesmos no cotidiano.
Aos olhos de quem vislumbra o MangueBit, é percebido que não se trata
apenas de uma estética musical que conduza nosso objeto, mas várias estéticas, que o
fomentaram, como apresentado anteriormente.
Como fenômeno urbano da cultura contemporânea brasileira, o MangueBit
dialogou e trouxe para a atualidade, influências e características presentes em outros
momentos relacionados anteriormente, ou como poderíamos subscrever, a antropofagia
cultural se fez presente no MangueBit para com a Bossa Nova e principalmente, o
Tropicalismo.
132
Nesta esteira não linear, porém pautada na riqueza de estilos, foram por nós
compreendidos os pontos em comum que destacaram estes três momentos históricos da
música brasileira como de maior relevância no contexto do reconhecimento proposto
pela academia, mídia e público em geral.
Dentre estas convergências estéticas, acreditamos que a própria necessidade
de desconstruir paradigmas, a abertura para o novo, a coragem de experimentar em
maior ou menor escala, enfim entendemos que a temática predominante que alicerçou
estes três momentos supracitados, foi decididamente a capacidade de absorver
influências sonoras anteriores e torná-las atuais para os seus respectivos contextos.
A busca por uma compreensão elevada de meandros que elevaram o
MangueBit à inserção no mercado fonográfico brasileiro, e a óptica destes jovens
artífices com relação a esta indústria fonográfica que se fazia presente de forma
contundente no Sudeste brasileiro na referida época, moveu-nos e direcionou-nos para
uma ampla explanação e consequente entendimento da indústria fonográfica em todo o
seu contexto histórico, principalmente relacionada à década de 1990, em especial ao
MangueBit.
Neste contexto da década de 1990 em que o mercado musical brasileiro
estava dilatado por uma avalanche de ritmos, artistas e bandas, sejam eles relacionados
ao pagode, rock, funk, sertanejo, ou qualquer outro, como também por uma gama
variada de gravadoras Indies que serviram como ―trampolim‖ para o sucesso, o
MangueBit enveredou por outro caminho nas veredas do mainstream musical para o
reconhecimento, ou seja, os selos alternativos de propriedade das Majors, porém com
orçamentos bem mais modestos.
Percebemos de uma maneira geral que a tradução das culturas
contemporâneas realizada pelos artífices do MangueBit, serviu como plataforma e
alicerce ao mesmo tempo, isto é, foi decisiva na projeção desta movimentação no
cenário nacional e mundial, como também reforçou as bases deste constructo de paredes
porosas em que as trocas simbólicas fazem-se necessárias e porque não dizer, vitais.
Para Gueiros Júnior, ―o universo comercial da música é um meio peculiar
bem diverso dos demais segmentos de mercado‖185, desta forma ao propormos um
amplo entendimento do formato música e sua consequente comercialização desde seus
185
GUEIROS JÚNIOR, Nehemias. O direito autoral no Show Business. Tudo o que você precisa saber,
volume I. A música. Rio de Janeiro: Editora Gryphus, 1999. p.39.
133
primórdios industriais, cabe expor o que se pode concluir acerca das convergências que
limitam a indústria fonográfica à busca incessante por lucros durante décadas, como
também destacarmos as peculiaridades de cada período que convergiram em um
decênio marcado pela heterogeneidade de estilos, como também pela terceirização e
profunda segmentação características da década de 1990.
Assim, compreendemos por períodos este processo de reestruturação e
racionalização da indústria fonográfica iniciado no final da década de 1970, acentuado
na década de 1980 e desaguando na década de 1990, estabelecido sob o forte signo da
segmentação, aliada à terceirização, diversidade de ritmos explorados e popularização
do formato CD no mercado brasileiro.
Desta perspectiva, convém reconhecermos o poderio cultural e econômico
que as Majors amealharam durante um longo período de atuação no Brasil, mesmo que
tenhamos assistido a casos isolados como os das gravadoras Rozenblit, Som Livre e o
selo Artezanal.
Levando-se em conta o universo sonoro presente na música contemporânea
brasileira, o tempo e o capital trataram de forjar uma conjuntura fonográfica no Brasil
condizente com sua multiplicidade de ritmos, em que o papel de canais de televisão
como a MTV, as diferentes vozes emanadas dos mais diversos segmentos musicais
explorados nos anos 90, serviram como amálgama de uma década entrecortada por
inúmeras tendências.
Frente a tantas causas e efeitos, creditamos a inserção no mainstream
musical de Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A nos selos alternativos
Chaos e Banguela Records, pertencentes à Sony Music e WEA respectivamente, ao som
de caráter híbrido e diferente, que seduziu as Majors que há muito procuravam nos
festivais de música, bandas e artistas que preenchessem a lacuna deixada pelo BRock,
no intuito de atingir o público jovem.
Poder-se-ia dizer em um entendimento mais direto, que alguns pontos
caracterizavam Recife no final da década de 1980 e início da década de 1990 como
incipiente e amador no que tange ao mercado musical, para tanto servimo-nos de
diversas análises para compreender que havia a existência de uma espécie de barreira
em relação aos outros grandes centros irradiadores de cultura no Brasil, o cenário
musical enquanto cadeia auto-sustentável não era viável para as bandas que na sua
134
grande maioria habitavam ainda as garagens e galpões como o Mundo Livre S.A, com
algumas exceções, dentre elas Câmbio Negro H C, Templo Nublado e Academia do
Medo.
Podemos considerar em síntese, que alguns fatos que perpassaram a década de
1990 no Grande Recife, delinearam a cultura musical de forma decisiva deste período,
pois a capital pernambucana funcionou como um chamariz para novas possibilidades de
promoção da cultura, sejam elas através de bares como o ―Soparia‖, rádios
especializadas em rock como a ―89 FM‖, ou mesmo festivais de música como o APR,
que ajudaram em todos os seus momentos de alguma forma na consolidação do que
entendemos até então como a movimentação MangueBit.
Somos sabedores que esse trabalho, por enquanto fica aqui, ficarão outras
vertentes, ou até mesmo lacunas, não por desvios, ou quaisquer outros infortúnios, mas
estes hiatos servirão como inquietude, como o um repensar das experiências sonoras
vivenciadas em Recife na década de 1990, assim, percebemos que as possibilidades de
entendimento de um mesmo objeto são inúmeras, ou ―Mil caminhos chegarão aos
mesmos lugares. Todos os caminhos um caminho‖186. Assim desta forma resta-nos o
desejo de em um curto espaço de tempo, para talvez explorarmos este público que
recebeu tão bem essa novidade oriunda da cidade estuário, ou mesmo desnudar esses
dois momentos histórico-musicais brasileiros que se valeram da antropofagia cultural, e
definitivamente, possamos novamente enfiar o pé na lama e catar alguns caranguejos
desse riquíssimo ecossistema cultural denominado de MangueBit.
Estas experiências sonoras fizeram-nos perceber e reforçar que o MangueBit foi
acima de tudo um grande pacto pela cultura pernambucana, reforçando nosso conceito
de movimentação cultural, uma parceria bem sucedida de jovens artistas em busca de
um bem comum, ou seja, um habitat cultural auto-sustentável.
As leituras e releituras propostas por estes artífices demonstraram ao Brasil que
as negociações culturais com os opostos, convergem para um propósito, uma finalidade
em que não haja perdas para nenhuma parte, assim o MangueBit o fez com o secular e o
contemporâneo, dosou na medida certa e valorizou as influências que perpassaram suas
vidas enquanto sujeitos sociais dotados de memória em algum momento, fazendo com
186
LIMA, Tânia Maria de Araújo. Teia de sincretismo: uma introdução à poética dos mangues. Recife:
Tese de Doutorado em letras e lingüística, UFPE, 2007.p.359
135
que um circuito energético começasse a funcionar na cidade, desentupindo as artérias da
Manguetown, criando assim a nova cara da música contemporânea brasileira.
136
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Revista TRIP edição nº 86. Matéria ―O Brasil de Chico‖. Editora Trip. Fevereiro de
2001.
Vídeos
Sites Consultados
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www.nacaozumbi.com.br
www.aponte.com.br
www.bacana.com.br
www.manguebit.org.br
www.manguetronic.com.br
www.rabisco.com.br
www.trama.com.br
Discografia comentada
Chico Science e Nação Zumbi. Da lama ao caos. Rio de Janeiro: Chaos/ Sony Music,
1994. 1 CD.
Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Rio de Janeiro: Chaos/ Sony Music,
1996. 1 CD.
Mundo Livre S.A. Samba Esquema Noise. São Paulo: Banguela Records/ Warner
Music, 1994. 1 CD.
Mundo Livre S.A. Guentando a ôia. São Paulo: Excelente Discos/ Polygram, 1996.
1CD.
142
ANEXO
4 - Canibbal
Canibbal figura entre uma das maiores expressões da cena punk brasileira, sua carreira
musical vem desde a década de 1980 bem antes do MangueBit, atualmente é vocalista
da banda Devotos, conhecida antes como Devotos.
- Entrevistado: Canibbal
- Entrevistador: Francisco Gerardo Cavalcante do Nascimento.
- Profissão do Entrevistado: Músico
- Local da Entrevista: Cidade de Recife / Comunidade Alto Zé do Pinho
- Data da Entrevista: 23/07/2007
143
- Tempo de gravação: aproximadamente 1h: 11min.
144
9 - Entrevistado: Paulo André Pires
Foi o primeiro empresário da banda Chico Science e Nação Zumbi, idealizador e
produtor do Festival abril pro Rock que acontece em Recife desde 1993 e serviu de
vitrine para muitas bandas da cena musical de Recife, dentre elas Chico Science e
Nação Zumbi, Mundo Livre S.A, Mombojó, Querosene Jacaré, Jorge Cabeleira e o dia
em que todos nós formos inúteis, entre outras. Atualmente André Pires é produtor da
Mundo Livre S.A e continua realizando anualmente o Festival Abril pro Rock.
- Entrevistador: Francisco Gerardo Cavalcante do Nascimento.
- Profissão do Entrevistado: Produtor cultural
- Local da Entrevista: Cidade de Recife / Centro.
- Data da Entrevista: 01/05/2008
- Tempo de gravação: aproximadamente 1 hr 29min.
11 – - Entrevistado: Fred 04
Jornalista por formação acadêmica, vocalista e líder da banda Mundo Livre S.A desde
sua fundação, representa um dos principais artífices da movimentação MangueBit.
- Profissão: Músico.
- Local da entrevista: Fortaleza
- Data da entrevista: 01/10/09
- Tempo de gravação: 54 minutos
12 – - Entrevistado: DJ Dolores
Músico e designer gráfico, atualmente excursiona pelo país e o exterior com a sua banda
Orquestra Santa Massa, DJ Dolores é um dos artistas que participara ativamente da
movimentação do MangueBit desde seu início, como também é um dos responsáveis
pela concepção da capa do primeiro álbum de Chico Science e Nação Zumbi ―Da lama
ao caos‖.
- Profissão: Músico e Designer Gráfico
- Local da entrevista: Fortaleza
- Data da entrevista: 12/03/10
- Tempo de gravação: 38 minutos
145