O Carma Familiar

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Psicologia

O CARMA

FAMILIAR,

CHAVE DO

DESTI N O

HU MA N O ?
Olavo de Carvalho
Revist a Planeta , # 67, abril de 1978
[A expre s s ã o "Car m a Familiar" foi cunh a d a pelo profes s o r Olavo de
Cavalho. Na aula de 27 de junho de 2009 do Semin á ri o de Filosofia
Online ele decla ro u que este artigo foi vertido par a o franc ê s e
apr e s e n t a d o ao Dr. Lipot Szondi que concor d o u inte g r al m e n t e com
seu cont e ú d o . Se algu é m tiver ess a vers ã o franc e s a , pode ri a, por
favor, me enviar uma cópia? -- D.M.]
O psi q u i a t r a e hu m a n i s t a hú n g a r o L. Szo n d i pas s o u a
vida te n t a n d o sab e r o que imp e d i a a liber d a d e
int e ri o r do Ho m e m . Ele de s c o b r i u que as fig ur a s dos
ant e p a s s a d o s per m a n e c e m vivas no inc o n s c i e n t e do
indiví d u o , forç a n d o - o a rep e t i r se u s co m p o r t a m e n t o s
e imp e d i n d o - o de es c o l h e r sua própri a vida.
Talvez o símbolo mais popula r da injustiç a seja o lobo da fábula, que
pune o carn ei ro pelos crim e s hipoté tic os de seus pais, avós ou
bisavós. No ent a n t o, cada um de nós carr e g a no coraç ã o um lobo que
não desc a n s a enq u a n t o não pag a m o s com fraca s s o s , doenç a s e
humilh a ç õ e s , até o último erro e a últim a ignomínia real ou
imagin á ri a de nossos ante p a s s a d o s .
Isso pode par e c e r uma simples met áfo r a , mas é uma tes e
rigoros a m e n t e científica. É a teoria básica da Análise do Destino
(Schic k s alsa n aly s e ), escola psicológic a criad a pelo psiquia t r a e
hum a ni s t a húng a r o L. Szondi. Embor a pouco conhe ci d a no Brasil, a
Análise do Destino é um dos mais origin ai s des e nvolvim e n t o s da
teoria psica n alítica depois de Fre u d, Jung e Adler.
Szondi, que foi profes s o r da Escola Supe rio r de Psicop e d a g o g i a de
Buda p e s t e até que a invas ã o nazist a o obriga s s e a fugir para a Suíça
(onde contin u a ativo aos 84 anos), pass o u a vida tent a n d o res po n d e r
a uma das que s t õ e s mais dra m á t i c a s já form ul a d a s a resp ei to da
condiçã o hum a n a : por que as pesso a s qua s e nunc a cons e g u e m agir
da man ei r a que consci e n t e m e n t e des eja m , e acab a m fazend o outr a s
coisa s, que não tencion av a m e que até proc u r a v a m evita r? Existe
algu m a força ocult a mais pode r o s a do que a vont a d e ? Existe algo
assim como um destino ? Ser á que o Hom e m nunc a pode ser livre ?
Em res po s t a a essa s perg u n t a s , Szondi criou uma gra n dio s a
conce p ç ã o psicológic a e antro p ológic a onde uma das chaves mais
import a n t e s é justa m e n t e a pes a d a influê nci a dos ante p a s s a d o s
sobr e o destino, algo assim como um car m a familiar que acom p a n h a
os indivíduo s atrav é s da existê n ci a, levand o- a, freqü e n t e m e n t e , a um
des e nl a c e trágico.
Analisa n d o milha r e s de árvor e s gene al ó gic a s de cidad ã o s de
Buda p e s t e (onde era tam b é m direto r do Institut o de Gene alo gi a),
Szondi obse rvo u que dete r m i n a d o s distú r bio s psíquicos, sociais e
somá ticos par e ci a m rep e ti r- se de ger a ç ã o em ger a ç ã o, como se uma
comp ul s ã o mist e rios a arr a s t a s s e os indivíduos à rep e ti ç ã o eter n a dos
aspe c t o s mais neg ro s na vida de seus ante p a s s a d o s .
O qu e te m a ver a
his t e r i a co m o jornal i s m o ?
Além disso, as famílias par e ci a m distrib ui r- se em grupo s clara m e n t e
delimit a d o s , onde a recor r ê n c i a de cert a s doen ç a s coincidia, por
incrível que isto fosse, com a escolh a das mes m a s profissõ e s. Para
complica r ainda mais as coisa s, as pes so a s pare cia m escolh e r seus
cônjug e s , e mes m o seus amigos, de prefe r ê n c i a entr e as famílias do
mes m o tipo.
Isso levant av a as mais estr a n h a s hipót e s e s . Que tipo de pare n t e s c o
pode ri a have r ent r e coisas tão apa r e n t e m e n t e dispa r a t a d a s como o
ecze m a , a epilepsia e a profiss ã o eclesiá s tic a ? Ou ent r e a dep r e s s ã o
e a profiss ão de antiq u á ri o? Ou, ainda, entr e a histe ri a e profiss ão de
ator ou jornalist a ?
Szondi não recuo u ante o abs u r d o apa r e n t e . Por mais difere n t e que
fosse m entr e si, era evide n t e m e n t e que as peç as não se juntava m e
sepa r a v a m no tabul ei ro unica m e n t e segu n d o as leis do acas o. Tinha
de haver uma regr a ness e jogo maluco. Na tent a tiva de descob ri- la,
Szondi form ulou as duas hipót e s e s básic a s da Análise do Destino:
Prim eira . Se as neu ro s e s , confor m e Fre u d tinha most r a d o , era m
manifes t a ç õ e s “desvia d a s ” dos instinto s hum a n o s , e se havia um
par e n t e s c o entr e ess a s doenç a s , as profissõ e s e as escolh a s de
parc ei r o s para o cas a m e n t o e a amizad e , era forçoso recon h e c e r que,
por trás de toda s essa s manife s t a ç õ e s , era a mes m a nece s si d a d e
instintiva básica que se expre s s a v a .
Seg u n d a . Se cada tipo de nece s si d a d e instintiva se rep e ti a de
gera ç ã o em gera ç ã o , entã o era forços o recon h e c e r que os instinto s
não pert e n c e m unica m e n t e à esfer a individu al (ou hum a n a em geral),
mas que têm tam b é m um cará t e r familiar . Ou seja, que ao lado do
incons cie n t e pesso al desco b e r t o por Fre u d, do incons cie n t e coletivo
estu d a d o por Jung e do incons ci e n t e social (núcleo instintivo de uma
dad a comu ni d a d e cultur al), desc ri to por Adler, devia existir aind a um
incons cie n t e familiar .

O indivíd u o carr e g a um a hera n ç a deix a d a por tod o s os se u s


ant e p a s s a d o s .
As figuras dos ances tr ais, cada um com seu com po r t a m e n t o e
carát er deter m i n a d o ,
per m a n e c e m vivas e ativas no incons ci e n t e familiar, funciona n d o
quas e que
como molde s ou padrõe s de com por t a m e n t o da pessoa.
No incons ci e n t e familiar o indivíduo carr e g a , em esta d o late n t e ,
toda s as suas possibilida d e s de existê n ci a , model a d a s por seus
ante p a s s a d o s . As figur a s dos ance s t r a i s per m a n e c e m vivas e ativas,
“quas e como molde s e figur a s, ou pad rõ e s de compo r t a m e n t o ”, diz
Szondi. Carr e g a d o s de ene r gi a instintiva, ess es padr õ e s esforç a m- se
const a n t e m e n t e por manife s t a r- se. Szondi deno mi n a isso pret e n s ã o
dos ance s tr ais : os vários destinos possíveis – e freqü e n t e m e n t e
cont r a di t ó rio s ent r e si – model a d o s pelos ante p a s s a d o s força m o
indivíduo a imitá- los, a rep e ti- los, e tudo qua n t o o indivíduo pode
fazer é escolhe r ora um, ora outro entr e os vários modelos her d a d o s .
Aí surgi a, poré m, a perg u n t a : por que algun s indivíduos expre s s a v a m
a pret e n s ã o dos ance s t r a i s ficando doent e s , enqu a n t o outros
limitav a m- se a escolh e r dete r m i n a d a profiss ã o ou a casa r com
det e r m i n a d o tipo de parc ei ro ? Foi assim que Szondi chego u à
terc ei r a hipót e s e : a da luta per p é t u a entr e comp uls ã o e liber d a d e no
hom e m .
Um ca m i n h o qu e vai
da co m p u l s ã o à lib er d a d e
Se o Hom e m , diz Szondi, rece b e pront a uma det e r m i n a d a estr u t u r a
instintiva básica, com todas as suas exigê n ci a s e conflitos, nem por
isso est á fixada de uma vez para sem p r e a sua man ei r a , a sua
fórm ul a pesso al de expr e s s á- la. Esta será det e r m i n a d a , em part e,
pelo ambi e n t e social e cultur a l (tam b é m herd a d o dos ante p a s s a d o s )
e em part e pelas escolh a s conscie n t e s do próp rio indivíduo.
Confor m e o maior pred o mí nio de uma ou de outr a des s a s orde n s de
fator e s , have r á nos ter m o s de Szondi, um destino com p ul sivo ou um
destino de livre escolha . O camin ho da comp uls ã o à liber d a d e é o
destino da vida hum a n a . Num a das pont a s do camin h o, está a
doenç a, a neu ro s e ou psicos e, que é a vitória absolu t a das pret e n s õ e s
incons cie n t e s dos ante p a s s a d o s sobr e a consciê n ci a. Na outr a pont a,
a vitória da consciê n ci a.
O ego, diz Szondi, é a instâ n ci a que, amp a r a d a pela ment e
consci e n t e , gover n a as noss a s escolh a s. Ele opta, a cada insta n t e ,
ent r e a repe tiç ã o mec â ni c a do des tino comp ul sivo e a expre s s ã o
delibe r a d a , conscie n t e , funda d a em valore s unive r s a is , e hum a niz a d a
enfim. Daí prové m toda a distâ n ci a que sepa r a “par e n t e s ” gené tic os
como o criminos o epilético e o sace r d o t e , o esquizofr ê nic o delira n t e
e o físico- mate m á t i c o, o doent e histé ric o e o orado r político, o
jornalis t a ou o ator. Iguais em sua estr u t u r a instintiva básica, o
hom e m doen t e e o hom e m são difere m unica m e n t e na reaç ã o do seu
ego ante a escolh a básica: o mun do “escu r o” e maligno das pulsõe s
incons cie n t e s , o mund o “luminos o” dos valore s univer s a is .
No enta n t o, o ego não cria a noss a liber d a d e neg a n d o as tend ê n c i a s
her d a d a s , mas comp r e e n d e n d o- as, assimila n d o- as, orien t a n d o- as e
expre s s a n d o- as de man ei r a socializa d a (ada p t a d a aos pad rõ e s da
comu ni d a d e ), ou, melho r ainda, num a instâ n ci a supe rio r,
hum a niz a d a (identifica d a a valore s univer s a i s).
Por isso mes m o, a escolha livre do ego é o mec a ni s m o básico da
psicot e r a p i a conce bi d a por Szondi. O psicote r a p e u t a szondi a n o (no
Brasil não cheg a m a trint a), pocur a conscie n tiz a r o indivíduo a
resp ei to dos seus padrõ e s familiar e s de compo r t a m e n t o , most r a n d o-
lhe a possibilida d e de uma nova vida livre m e n t e escolhid a, e em
seguid a estu d a com o pacie n t e uma man ei r a mais ade q u a d a de
expre s s a r e aliviar as pret e n s õ e s dos anc e s t r a i s, por exem plo
mud a n d o de profiss ã o ou de ambie n t e social. Depur a n d o a cang a
instintiva e orient a n d o- a no sentido da realizaç ã o hum a niz a d a , a
tera pi a szondia n a é um trab al h o verd a d e i r a m e n t e alquímico de
tra n s m u t a ç ã o interio r, no qual a mes m a força que des e q uilib ro u o
pacie n t e é usad a par a curá- lo.
Mas ant e s de sabe r quais as peça s que o ter a p e u t a e o pacie n t e
rem ex e m no imens o tabul ei ro dos instint os e de suas form a s de
expre s s ã o , é preciso sabe r como surgir a m ess as hipót e s e s na ment e
de Szondi.
Era co m o a so g r a:
qu e ri a mat ar os filh o s .
A exposiç ã o lógica que acabo de fazer pouco tem a ver com a
verd a d e i r a orde m das descob e r t a s na Análise do Destino.
Embo r a sem p r e amp a r a d a a post eriori em mas s a s enor m e s de
est a tís tic a s e obse rv a ç õ e s clínica s, as idéias de Szondi não nasc e r a m
da coleçã o de fatos isolados, mas de uma série de “impa c t o s
cognitivos” que levara m o mest r e húng a r o a uma suces s ã o de
intuiçõe s fulgur a n t e s sobr e o fenôm e n o hum a n o .
O mais conh e ci d o dess e s impa ct o s foi um acont e ci m e n t o corriq u ei r o,
narr a d o pelo ex- aluno de Szondi, dr. Juan Muller, psicólogo
arge n ti n o radic a d o no Brasil, em seu livro Alqui mia Moder n a (São
Paulo, Cupolo, s/d). Cert a vez apa r e c e u no cons ultó rio de Szondi um
casal: a mulhe r sofria de crise s dep r e s s iva s motivad a s pelo temo r
injustifica do de mat a r os filhos, a que m amava. Szondi obse rvo u
casu al m e n t e que já havia tido a oport u ni d a d e de trat a r de uma
senho r a com sinto m a s sem el h a n t e s , num a cida d e zi n h a dista n t e 200
quilôm e t r o s da capit al. Espa n t a d o , o marido da pacien t e pulou da
cadeir a:
– Mas essa pacie n t e que o senho r descr e v e é minh a mãe!
Daí surgi u a hipót e s e do libidotropis m o (escolh a de parc ei r o amoro s o
segu n d o o med elo ance s t r al), que foi uma das pedr a s angul a r e s da
Análise do Destino.
Outro impac t o ocorr e u quan d o Szondi est ava para se cas a r e
perc e b e u que sua noiva era qua s e uma cópia da mulhe r de um de
seus irmão s. Szondi era de orige m mode s t a , filho de um sapa t ei r o.
Seu irmão, jovem talent o s o, havia atira d o fora a oport u ni d a d e de
uma brilha n t e carr ei r a profission al ao cas a r- se com uma mulhe r que
par e ci a emp e n h a d a em ator m e n t a r - lhe a existê n ci a. Ao nota r que
est av a pre s t e s a rep e ti r esse destino, Szondi desistiu de cas a r e
prefe ri u continu a r os estu d o s . Mais tard e fez uma cas a m e n t o feliz
com outr a mulh e r, mas ess e fato lhe deu uma dime n s ã o do conflito
ent r e o des ejo de liberd a d e e auto- realizaç ã o e a tend ê n ci a
comp ul siva de rep e ti ç ã o. Deu- lhe ainda a visão do pap el decisivo da
escolh a na dete r m i n a ç ã o do destino.
O terc ei ro impac t o foi a gue r r a .
Judeu de orige m , Szondi teve de fugir às pre s s a s com a família,
enqu a n t o vários de seus amigos e colabo r a d o r e s era m preso s,
mortos ou depor t a d o s . Anos depois, ele teve a oport u ni d a d e de
estu d a r – pes so al m e n t e ou atr av é s de uma vasta rede de assist e n t e s
– a perso n alid a d e de criminos o s de gue r r a , como Adolf Eich m a n n e
Mart o n Zöldi (este, um coron el da polícia que dur a n t e a ocup a ç ã o
man d a r a mat a r pess o al m e n t e milhar e s de sérvios e judeu s em
Buda p e s t e ).
Cai m si m b o l i z a o de s e j o
de pod e r , de ter e de ser.
Essa expe ri ê n ci a gero u nele um profun d o inter e s s e pelo proble m a do
mal em toda s as suas form a s . Daí nasc e u a conce p ç ã o absolut a m e n t e
genial do Compl exo de Caim, que é a chave de toda a filosofia ética
szondia n a .
“Caim reg e o mun do”, escr ev e ele. “A que m duvida, acons el h a m o s o
estu d o da históri a unive r s a l. O historia d o r não oculta que a essê n ci a
da históri a é a luta. Não ocult a que a históri a não é a realizaç ã o de
um contín uo proce s s o des d e baixo até o alto, do mau ao bom, da
escr avid ã o à liberd a d e . Sua opinião é que a história é, ant e s, uma
linha tort uo s a de cruel d a d e s . A históri a regist r a quan d o um povo
crucifica ou queim a profet a s e santo s, tribu n o s e mission á ri os. Ao
cabo de milha r e s e milha r e s de anos, não diminui a ativida d e
ass a s si n a de Caim. O fratricídio é infinito.”
Obse rv a n d o que o ódio ao pai acom p a n h a d o de paixão pela mãe é
car ac t e r í s tic o apen a s de cert a s cultu r a s , enqu a n t o o ódio ent r e
sem el h a n t e s , o des ejo de mata r os irmão s, é univers al, Szondi afirm a
que o Compl exo de Caim, tal como está desc rit o no mito bíblico, é
um fenôm e n o mais profun d o e abr a n g e n t e do que o Compl exo de
Édipo desc rito por Fre u d segu n d o a mitologia greg a .
Mas Caim não é ape n a s o impulso ass as si n o, é tam b é m o des ejo de
auto- afirm a ç ã o, o desejo de pode r, de ter e de ser. Por isso, pode
tra n sfo r m a r - se num a foca civilizado r a , tra n s m u t a n d o- se em
Complexo de Moisés: o Home m violento e passion al a serviço da
justiç a divina.
Na tradiç ã o judaic a, conc e d e- se muit a import â n c i a ao fato de que na
narr a t iv a bíblica fora m os desc e n d e n t e s de Caim (e não os de Abel)
os fund a d o r e s de cidad e s , os civilizado r e s do mun do antigo, como se
o arre p e n d i m e n t o conduzis s e esse s hom e n s , here dit a r i a m e n t e
violento s, a canaliza r sua imens a ener gi a para finalida d e s
const r u tiv a s . Por isso o “sinal de Caim”, a marc a na test a que
segu n d o a tradiç ã o lendá ri a assin al a a desc e n d ê n c i a do irmão
ass a s si no, tanto pode ser inter p r e t a d a como indício de que se trat a
de um Hom e m violent o, qua n t o como gar a n ti a de que ess e Hom e m
decidiu inter r o m p e r a seqü ê n c i a de iniqüid a d e s de seus
ante p a s s a d o s e dedic a r- se dorava n t e ao bem, à cultu r a, às leis, à
hum a niz a ç ã o .
Na psicologia szondia n a o tipo cainita pode ser tanto o criminos o
epilético qua n t o o refor m a d o r moral tipo Moisés e Savon a r ol a. No
rom a n c e de Her m a n Hess e, Demia n , a marc a de Caim apar e c e como
um sinal dos sere s supe rio r e s , onde algo de diabólico coexist e
estr a n h a m e n t e com um traço de hum a ni t a ri s m o e de criativida d e
divina.
Os in st i n t o s não pert e n c e m ap e n a s ao indivíd u o , ma s te m um
carát e r fam ili a r
Ao lado do incons ci e n t e pes soal desco b e r t o por Freud, do
incons cie n t e coletivo identificado por
Jung e do incons ci e n t e social descrito por Adler, Szon di estab el e c e u
a existê n cia do que
cha m o u de incons ci e n t e familiar.
O mec a ni s m o da tra n sfo r m a ç ã o de Caim em Moisés é a própri a
ess ê n ci a da tera pi a szondia n a . Mas todos os instint os hum a n o s , e
não som e n t e a paixão ass a s si n a do cainist a, afirm a Szondi, pode m
seguir essa trajetó ri a, pois todos pode m ser semp r e vivencia d o s de
duas man ei r a s opost a s .
Com par e s de op o s t o s ,
el e mo n t a o jog o do de s t i n o .
Esse confro n t o de significa do s oposto s atribuí do s ao mes m o instinto
é a bas e par a a desc riç ã o que Szondi faz dos instint os hum a n o – e,
port a n t o, dos tipos de cará t e r e destino. Mont a n d o par e s de opostos,
ele const r ói assim o tabulei ro onde se distrib u e m as peça s par a o
jogo do destino.
Szondi recon h e c e a existê n ci a de quat r o “vetor e s ” – instint os
básicos:
● a pulsão sexual ;
● a pulsão paroxís tica (tend ê n c i a a acu m ul a r e desc a r r e g a r
ene r gi a s );
● a pulsão do ego (puls ão de escolh e r o próp rio destino) e
● a pulsão de conta t o (instinto social).
Cada um dess e s vetor e s pode ser vivido de dua s man ei r a s
contr a di t ó ri a s , tra d u zin d o- se, porta n t o, em oito nece s si da d e s
pulsionais :
A pulsão sexual, por exe m plo, cont é m em si as nec e s sid a d e s
opost a s de feminilida d e e masc ulinid a d e , pre s e n t e s em todo ser
hum a n o.
A pulsã o paroxístic a cont é m as nec e s sid a d e s pulsion ais de
senti m e n t o ético (nec e s si d a d e de est a r mor al m e n t e “cer to”) e a
nece s si d a d e de exibir- se, de faze r- se valor socialm e n t e .
A pulsão do ego compo r t a a egossíst ole (retr a ç ã o do ego,
poss e s sivid a d e , realis mo) e egodiás tole (expa n s ã o do ego,
nece s si d a d e de cresc e r , de ser mais em contr a p o s iç ã o ao ter da
egos sís tole ).
A pulsão de cont a t o, por sua vez, compo r t a as nece s si d a d e s opost a s
de mud a r , de tra n sfo r m a r- se, de adq ui ri r novos valore s e a
nec es si d a d e de apoio, de apeg a r- se a algo ou algué m .
Cada nec es si d a d e pulsion al, por sua vez, pode ser afirm a d a ou
nega d a pelo indivíduo, gera n d o assim 16 tipos difere n t e s de
tend ê n ci as impulsivas que se alte r n a m , aproxim a m . Afasta m ,
combin a m e comb a t e m na sua alma. Isto result a na sua configu r a ç ã o
instintiva pesso al, que se orga niz a em cada mom e n t o da sua vida em
torno de dete r m i n a d a s linhas básic a s. (No qua d r o, a lista comple t a
das tend ê n ci a s ).
Cada tend ê n ci a instintiva, por seu lado, pode ser vivida de inúm e r a s
man ei r a s , que vão desd e a doen ç a até a profiss ã o. A tend ê n c i a para a
sensibilida d e individu al (amor pess o al), por exe m plo, pode ser vivida
sob o aspec t o de doen ç a (homos s e x u alis m o masc ulino) ou sob o
aspe c t o norm al de ape g o a uma det e r m i n a d a pesso a , ou ainda ser
socializad a atr av é s da profiss ã o (tra b al h o s que exijam manife s t a ç ã o
dire t a do carinh o e atenç ã o).
“Cain s de tint e i r o ” – um a
for m a de soc i a l i z a r o ódio .
A tend ê n ci a cainit a para o mal (vinga n ç a , ódio) pode ser vivencia d a
sob o aspec t o crimino s o ou doentio, ou canaliza d a par a uma
profiss ã o (os “Cains de tintei ro”, na expre s s ã o de Szondi:
com e n t a r i s t a s de impre n s a hipe rc rí tico s e mord a z e s , são um bom
exem plo).
O núm e r o de combin a ç õ e s possíveis é imens o, e Szondi compl et a o
qua d r o com anális e s das tend ê n ci a s instintiva s inere n t e s a cada
profiss ã o. O rep e r t ó rio compl e to dos tipos profission ais e hum a n o s e
suas inter m u t a ç õ e s é um instr u m e n t o de anális e social dos mais
impr e s sio n a n t e s já conce bi d o s. À luz da teoria szondia n a , a
socie d a d e como um conjunt o apa r e c e como um giga n t e s c o apa r a d o
destin a d o a reori e n t a r , orde n a r e dirigir os instinto s, e dotad a de
uma inventivida d e quas e infinita par a a arte combin a t ó ri a que
tra n sfo r m a tend ê n ci a s sociais aceit áv eis, e vice- vers a: um imens o
Caim- Moisé s e combin a n d o e reco m bi n a n d o nece s si d a d e s e
possibilida d e s , instinto s e valore s em busca da har m o ni a e da
liberd a d e , e trop e ç a n d o a cada passo em novas form a s de velhos
obst á c ulo s: a violência e o mal. É um quad r o gra n dios o e sinfônico
dos esforços do hom e m pela sua hum a niz a ç ã o .
Aí ent r a aqu el a que é talvez a mais impr e s sio n a n t e das intuiçõe s de
Szondi, que o levou a criar um test e psicológico ( o Diagnós tico
Experi m e n t al dos Instinto s ou Test e de Szon di ), que é ao mes m o
tem p o aplica ç ã o e res u m o da sua dout ri n a.
Essa intuição nasc e u num a espé ci e de deva n eio ou sonho, em que
Szondi imagino u que o conflito ete r n o das combin a ç õ e s instintiva s no
coraç ã o do hom e m sob a form a de pers o n a g e n s , rostos hum a n o s que
ent r a v a m e saíam de cena confor m e est a ou aqu el a tend ê n c i a
instintiva vence s s e ou fosse vencida. Szondi imagino u, entã o, que os
instinto s básicos se expre s s a v a m no rosto das pesso a s (ante ci p a n d o
assim as idéias atu ais sobr e o “incons ci e n t e visível”), e que aceit a r
ou rejeit a r dete r m i n a d a pess o a equivalia a aceit a r ou rejeit a r
det e r m i n a d a tend ê n ci a instintiva em si mes m o.
A partir daí, Szondi elabor o u a imag e m visual da sua dout rin a . Como
um artist a que não se cont e n t a com as idéias abst r a t a s , mas que r
realiza r a proez a de dar- lhes forma conc r e t a e sensível, Szondi
passo u a procur ar aquele s rostos que havia vislum b r a d o , e que
seria m a trad u ç ã o exat a da sua conce p ç ã o. Par a isso, exa mino u e
testou nada menos de 80 mil fotogr afia s de rostos hum a n o s , até
ach a r aqu el e s nos quais instintiva m e n t e toda e qualqu e r pesso a
pude s s e recon h e c e r , conscie n t e m e n t e ou não, a pres e n ç a de
det e r m i n a d a tend ê n ci a .
Um te s t e qu e res u m e
as pos s i b i l i d a d e s do indiví d u o
A criaç ã o do Teste das Fotog r afia s foi um ato de ousa dia intelec t u al,
pois som e n t e os maior e s gênios da hum a ni d a d e cons e g u e m
vislum b r a r um significa do univer s a l em suas visões interio r e s e
depois com pr o v ar com test e s científicos que esse significa do é
verd a d e i r o. O Teste de Szondi não só fornec e um quad r o ade q u a d o
das tend ê n ci a s que o pacie n t e aceit a ou rejeit a em si mes m o como
tam b é m – o que é mais espa n t o s o – qua n d o o ter a p e u t a ped e que o
pacie n t e invent e uma biogr afi a par a uma das figur a s, a históri a
invent a d a quas e sem p r e coincide com o car á t e r e a doenç a da pes so a
que está na fotogr afia.
Szondi demo n s t r o u , assim, que não ape n a s sua intuiç ão a resp eit o da
equivalê n ci a entr e expr e s s ã o e tend ê n ci a era esse n ci al m e n t e
verd a d e i r a , mas que ess a intuição era virtual m e n t e a mes m a em
toda s as pesso a s , conscie n tiz a d a ou não.
O test e é, em si mes m o, um res u m o das possibilida d e s do destino
individu al. Como tem 48 fotogr afia s, um psicólogo ame ric a n o o
cha m o u “As 48 faces do destino”.
Qual o valor último da obra de Szondi? Depois de um suces s o inicial,
o pre s tígio da Análise do Destino nos anos 50- 60 porq u e muitos
psicólogos julgava m sem funda m e n t o a sua insistê n ci a na hera n ç a
gené tic a. Mais tard e, a psicólog a nort e- ame ri c a n a Sus a n Deri
most ro u que, indep e n d e n t e m e n t e da explica ç ã o gen é tic a, o test e de
Szondi – e port a n t o sua teori a – funcion a v a, na prátic a, par a obter
diagnó s ti cos muito preciso s e profun d o s .
Hoje, muitos discípulos de Szondi, como o belga Claud e van Reet h,
prefe r e m falar de um discu r s o familiar em vez de tra n s m i s s ã o
gené tic a, julga n d o que o carm a familiar se tran s m i t e atr av é s de
pura s significa çõ e s incons cie n t e s e não por via gen é tic a . Essa
ques t ã o contin u a em abe r t o, mas não invalida o fato de que, com
Szondi, a realid a d e inegáv el do car m a familiar ingre s s o u na
consci ê n ci a mode r n a .
O culto dos ante p a s s a d o s pare c e hoje um cost u m e bárb a r o de époc a s
remo t a s . Entr e t a n t o , ele cump ri a um papel psicológico
indisp e n s á v el: libert a v a o indivíduo dos fanta s m a s do pas s a d o e o
deixava livre para escolh e r sua exist ê n ci a. Cultu a n d o seus pais e
avós, o antigo apazig u av a suas exigên ci a s, vivas no seu incons cie n t e
pess o al, e asse g u r a v a o pre do m í nio da cons ciê n ci a clara, que é um
pre s s u p o s t o da sobr evivê n ci a hum a n a .
Num a era de racion alis m o, ess e trab al ho já não pode ser feito
medi a n t e prátic a s rituais que as pesso a s julgari a m ent r e bár b a r a s e
cômica s. Tem de ser feito por meios científicos. A psicot e r a pi a
szondia n a cum p r e hoje ess e pap el, e ela o tem feito com brilha n t e s
result a d o s . Ela rec u p e r a um antigo conhe ci m e n t o e o tra n s m u t a em
lingua g e m científica, recon s ti t ui n d o e reinst a u r a n d o um rito de
purifica ç ã o dos instint os para a libert a ç ã o do Hom e m . E, ness e rito,
Szondi é o sumo sace r d o t e .
O QUE LER
1. L. Szondi, Tratado del Diagnós tico Experi m e n t al de los Institu t o s .
tr. arg e n ti n a de F. Soto Yarritu, Buenos Aires, Bibl. Nueva, 1948.
2. L. Szondi, Introd u ç ã o à Psicologia do Destino , tr. bra sileir a de
Juan A. C. Muller, São Paulo, Manole, 1975.
3. L. Szondi, Cain y el Cainis m o en la Historia Univer s al , tr.
arge n ti n a de F. Soto Yarritu, Buenos Aires, Bibl. Nueva, 1975.
4. Max B. Painto n, A Clinical Validation of the Szon di- Test , Bern,
Hans Hube r, 1973.
5. Juan Alfredo Césa r Müller, Alqui mia Mod er n a (Trans p sicologia I) ,
São Paulo, Cupolo. s/d.
6. Id., A Magia da Vida (Trans p s icolo gia II) , São Paulo, Aldeia, s/d.
7. Id., “Muta çõ e s dos sinto m a s pelo test e de Szondi”, em Acta
Psychologica Szon dian a Brasilien s e , I:3.

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