Lúcio_Cardoso_Dias_Perdidos-1
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Lúcio_Cardoso_Dias_Perdidos-1
Primeira parte
1
—Vem ver, Jaques, vem ver os olhos dele como são azuis!
—Não são azuis, Clara, são cinzentos, você não está vendo?
— Jaques… — murmurou.
Não era isto o que ele esperava? Não tinha ela dito tudo,
segundo o papel que lhe estava reservado há tantos meses? E de súbito
ela descobriu que nada mais era na vida daquele homem senão uma
simples sombra. E essa descoberta como que colocou sob uma luz
mais forte, mais impiedosa, as longas e dolorosas raízes que o
prendiam à sua própria vida.
3
A primeira vez em que ela teve nítida certeza de que nunca mais
o veria foi no trem, quando regressava à pequena cidade em que
morava. “Nunca mais o verei”, disse para si mesma de repente,
olhando a paisagem através da vidraça descida. E aquela frase causou-
lhe uma dor aguda, não porque constituísse uma revelação inesperada,
pois de há muito ela alimentava certo pressentimento a esse respeito,
mas pelo fato de reavivar uma estranha impressão de que alguma
coisa sacrificada existia no seu destino. Durante alguns minutos
sentiu-se tomada por insuportável mal-estar. Fitou quase com rancor
o passageiro do banco defronte, um homem gordo, de olhar manso,
que fumava charuto. Do fundo do carro, um cego que subira na
estação anterior rodou a manivela do seu realejo. A música fanhosa, de
notas primitivas, encheu o ambiente enfumaçado, comprimindo ainda
mais o coração de Clara. Viu-se menina, sentada num banquinho, um
bordado nos joelhos. Era a hora do almoço, e do fundo da sala vinha
um ruído de talheres. Na rua tocava um realejo como aquele, enquanto
uma grande mancha de sol se alastrava no assoalho lavado. “É uma
tolice”, disse Clara para si mesma, interrompendo o fio das suas
lembranças. Mas apesar de todos os seus esforços, apesar de repetir
ainda inumeráveis vezes “é uma tolice, uma pura tolice”, não
conseguiu mais escapar à sensação indefinida, pegajosa, que parecia
mergulhar o seu espírito num mundo de inquietação, de desânimo e
de melancolia. Aos poucos, a música ia cessando. E, quando de novo
só o ruído compassado do trem se fez ouvir, procurou analisar com
frieza a causa das suas emoções. “Por quê?”, perguntava a si mesma. E,
enquanto a paisagem rápida fugia, tentava se consolar inutilmente:
“Ainda não estou tão velha assim...” Mas já não lhe era possível
esconder aquela nova chaga que se tinha aberto na sua alma. O único
sentimento lúcido que a habitava naquele instante era o do tempo
vencido, do destino realizado, esse amargor dos que se descobrem no
fim de alguma coisa, sem que tenham tido tempo de olhar para trás.
Ao descobrir que não tornaria a ver Jaques, Clara percebera também
que alguma coisa havia findado na sua existência. Aquela aventura era
o derradeiro elo dessa corrente que simbolizava a sua mocidade.
Jamais teria uma outra igual, jamais encontraria quem a amasse
daquele modo, ou melhor, alguém a quem ela amasse tanto. Essas
experiências não se repetem na vida. Não tinha nela queimado as suas
forças mais vivas, não tinha gasto o que de melhor existia na sua alma?
E agora envelhecia, sentia que já não tinha forças para mais uma vez
dar realidade a uma ilusão daquelas...
Era esta a sua lembrança mais antiga. Muitas vezes, desse caos
em que se tinha convertido a sua infância, procurara destacar outros
vultos, imaginar situações mais recuadas, situar novos episódios que
se substituíssem àquele. Que poderia significar semelhante gesto,
quais seriam as palavras que tinham sido pronunciadas naquele
momento? Mas nada mais subia à tona da sua memória, nenhuma
frase, nenhum eco, nenhum movimento, senão aquele gesto perdido,
aquelas mãos estendidas na sombra, aquele rosto inquieto que se
debruçava sobre ele, marcado por tão pungente expressão de
sofrimento. Sim, existiam ainda alguns detalhes, a porta aberta ao
fundo, o crepúsculo, aquela densa atmosfera que o impregnara para o
resto dos seus dias. De sua mãe era aquela a visão mais antiga que
Sílvio guardava. O resto pertencia a “tia” Áurea.
– Mas que é isto, Sílvio? Áurea não devia andar lhe contando
essas histórias...
Com o correr dos dias, aquilo que em Clara tinha sido uma
ligeira nuvem de melancolia se agravou, persistiu, convertendo-se
numa tristeza constante, opressiva. Áurea, a quem a vida reservara
uma experiência limitada, sabia entretanto que para viver é preciso
paciência e humildade. Era o que dizia a Clara, quando esta se
mostrava excessivamente irritada, gritando para que Sílvio não a
importunasse, ou respondendo de mau humor às suas ingênuas
perguntas. Paciência para suportar as ambições constantemente
traídas — e humildade para não desejar acima das nossas forças.
Clara, já trabalhada por esse princípio de revolta que começava a
modificar de maneira tão decisiva a sua pacata existência, respondia
que estava farta de tudo aquilo, que tinha direito a uma vida diferente.
Estas conversas tinham lugar quase sempre à noite, quando, sob a luz
forte que uma folha de papelão protegia, dispunham as meadas ou
cortavam o linho para os bordados. Como a onda paciente que acaba
por lacerar profundamente a rocha dura, a tristeza daquelas horas
tinha acabado por minar a paciência de Clara. E já agora não podia
mais levar a vida tranqüila de antigamente, maldizendo-se a cada
minuto, suspirando, inventando razões imaginárias para os seus
males. Na realidade, ainda não conseguira ferir a causa exata daquele
desconforto que aumentava dia a dia. Ainda não percebera que alguma
coisa latejava impiedosamente no fundo da sua carne, clamando
contra aquela solidão com a crescente violência de uma tormenta. Em
vão ela procurava enumerar todos os motivos, investigando
aflitamente tudo o que a rodeava, o silêncio da sua casa, a passividade
dos objetos que a acompanhavam há tantos anos, culpando a esse
vazio, a essas formas inanimadas, com a obstinada cegueira dos que
não ousam realizar no íntimo a confissão que temem. Apesar de
multiplicar as possibilidades, não conseguia vislumbrar nenhuma
esperança no futuro. Para onde quer que olhasse, via sempre o mesmo
desenho cruelmente nítido, o mesmo recorte em torno da planície
vazia da sua existência. Em certos momentos, ferida por um desses
raios de intuição que é como uma projeção fugitiva da verdade
submersa, tomava-se de pânico, corria a refugiar-se no quarto,
pedindo de joelhos a Deus que a salvasse daquele desespero. Pois
apesar de todos os recursos de que lançara mão, de todas as
caprichosas mentiras que arquitetara, o que fermentava no fundo do
seu coração era o desespero, um desespero violento, mortal, que vinha
concentrando o seu veneno ao longo de todos esses anos de luta e
simulação. Sozinha, frente a frente àquele Deus a que tinha implorado
tantas vezes com os lábios gelados, Clara percebia o abismo para que
se encaminhava. E ninguém poderia auxiliá-la, nenhum ser humano
poderia estender-lhe a mão, ninguém escutaria os seus apelos inúteis.
Áurea era uma inocente, não compreendia nada. Nunca percebera
coisa alguma além daquela existência estreita, sufocada, onde nenhum
sentimento mais forte conseguia viver. Atormentada, sem encontrar
solução para a sua crise, Clara voltava a trabalhar, desdobrando-se
numa atividade quase febril, mas sem ver direito o que fazia, dando
pontos errados, furando os dedos com a agulha. Se por acaso
descobria que Áurea observava os seus movimentos, irritava-se, falava
asperamente à amiga, acabando por deixar a costura de lado e indo
refugiar-se novamente no quarto. Na escuridão, chorava longamente,
o rosto afundado no travesseiro, como a se proteger da visão de todas
aquelas coisas imutáveis que a cercavam. Pouco a pouco, aliviada pelas
lágrimas, tranqüilizava-se, permanecia algum tempo no escuro,
seguindo os pequenos ruídos da casa, a passagem de um rato, uma
tesoura que caía na sala, os passos de um transeunte retardado. Com a
serenidade, subia ao seu coração uma onda de remorso. Arrependia-se
do que tinha feito, voltava à sala, abraçava Áurea, pedia-lhe perdão
pelas palavras duras de momentos antes, alegando os seus nervos, sua
doença, não sabia mais o quê. Não ignorava que estava se
transformando numa criatura insuportável, mas a culpada era a
própria Áurea, pois já a habituara com a sua paciência evangélica.
Áurea ria, dizia que já estava acostumada àquelas coisas, que nem
sequer ouvia direito as respostas de Clara. E, aproveitando uma pausa,
falava seriamente, aconselhava Clara a procurar um médico, a passear,
a distrair-se. Tudo aquilo eram tristezas passageiras, no fundo não
tinham nenhuma importância. E, como Clara suspirasse, detinha-se, a
tesoura na mão, afirmando com certa hesitação que a culpada de tudo
era a própria Clara. “Por quê?", perguntava esta. “Aquele homem...”,
insinuava Áurea, abaixando os olhos. E mais baixo, como se ao mesmo
tempo pedisse perdão pela sua ousadia: “Você devia esquecê-lo.. .”
– Sílvio está dormindo — disse ela. — E acho que não tem febre
nenhuma, o melhor é deixar este remédio para amanhã.
– Por que foi que o senhor trouxe o pequeno? Será possível que
ainda não tenha compreendido?
— Vamos...
– Sobre quê?
– Mas. . . sobre Sílvio! — exclamou Áurea fixando a amiga pela
primeira vez. E, como percebesse a sua fisionomia alterada,
aproximou-se com maternal solicitude:
Por essa época, ele fez a sua primeira comunhão. Áurea, que
freqüentava a igreja e possuía várias amigas entre as devotas do lugar,
conversara a este respeito com uma delas, Maria Ernestina de grande
ascendência por causa dos seus hábitos recatados. Era ela uma
solteirona extremamente magra, de voz áspera, que usava óculos de
aros de tartaruga e possuía grandes mãos de dedos afilados e brancos.
Vestia-se com grande severidade, caminhava sempre de olhos baixos,
desfiando um interminável rosário de contas negras. Queixava-se
muito de doenças mais ou menos imaginárias, dores e sufocações,
vivia às voltas com remédios e receitas fora do uso. Aos mais íntimos
— e todos o eram, logo que estivessem dispostos a ouvi-la num canto
de esquina — confessava que andava preocupada com vozes que
escutava à noite, chamados e batidas nas janelas. Às vezes chorava,
tomada de esquisitos pressentimentos. Mas tudo isto não a impedia de
trabalhar quotidianamente na Agência do Correio local, entre vidros
de cola e volumosas barras de lacre vermelho. Quase toda a cidade
vinha conversar com ela pelo estreito guichê, enquanto Maria
Ernestina pesava cartas e amarrava embrulhos que deviam partir pela
primeira mala. Sabia de tudo, estava informada de todas as coisas,
aconselhava muita gente, resolvia até mesmo casos complicados. Não
se passava um só dia sem que Áurea fosse procurá-la. Juntas
discutiam graves problemas da Igreja, enquanto Maria Ernestina fazia
citações com o Evangelho aberto ou lembrava o exemplo de casos
acontecidos há muito. Era esta uma das suas especialidades, pois
estava informada até mesmo do que já se passara há vários anos,
quando a cidade mal principiava a nascer. Todos diziam que pelos
seus lábios deslizava a crônica inteira do lugar. Enquanto falava, suas
mãos adquiriam incrível agilidade, folheavam páginas, pesavam
embrulhos, contavam selos, faziam e desfaziam nós complicados.
10
Foi pouco depois que Camilo apareceu na classe pela primeira
vez. Ninguém deu pela sua entrada. Sentou-se numa das extremidades
da sala e, apesar da rígida imobilidade em que se conservou, era visível
que não prestava atenção às palavras da professora.
Foi naquela noite a primeira vez que Sílvio perguntou pelo pai.
De ordinário Clara nunca tocava neste assunto, nem ele manifestara
jamais a menor curiosidade a esse respeito. Como o pequeno falasse
sobre a carta, não soube o que responder, inventou uma desculpa
qualquer, disse afinal que o pai estava viajando. Sílvio tinha um
caderno aberto sobre os joelhos e a fitava como se fosse a primeira vez
que tivesse consciência da sua presença, do que ela realmente
significava para ele. Clara sentiu nitidamente a pergunta pairando
entre ambos, procurou sorrir, contou um caso sem importância, pediu
notícias de Camilo. E tudo aquilo era tão anormal que só fez aumentar
a curiosidade e o mal-estar do menino. Quando ele se recolheu, Clara
descansou a costura um minuto, uma ruga de preocupação desenhada
na testa. Começava a perceber que não poderia viver mais tempo
daquele modo, que de agora em diante suas relações com Sílvio não
seriam tão fáceis assim. Nunca lhe acontecera pensar no filho como
alguém que pudesse crescer e se desenvolver, colocando-se diante dela
como um ser que a obrigasse a maiores esforços do que aqueles que
despendia. Aliás, a presença do filho sempre lhe causava mais irritação
do que outra coisa. Muitas vezes, vagamente enciumada com os
cuidados de Áurea, procurava conquistar a simpatia do pequeno,
promovia alguma brincadeira, contava casos, indagava dos seus
estudos. A princípio desconfiado, ele acabava por se aproximar, depois
entregava-se inteiramente, com esse voluptuoso abandono que só
sabem ter algumas vezes as crianças solitárias. Mas não tardava muito
que a impaciência de Clara se manifestasse, exausta com as perguntas
que não se esgotavam ou com as brincadeiras que aos poucos se
tornavam violentas. Queixava-se então dos modos de Sílvio, dizia que
ele era um menino selvagem, de hábitos adquiridos na rua. Como o
pequeno a fitasse atônito, compreendia então que se tinha deixado
levar muito longe, que o excesso não merecia tão severa reprimenda.
Mas, incapaz de voltar à antiga naturalidade, esquivava-se, alegando a
primeira coisa que lhe passava pela cabeça. Sílvio retirava-se cheio de
desconfiança, não ousando se aproximar durante dias seguidos. Mas o
seu ressentimento desaparecia quando a mãe voltava a convidá-lo para
um passeio qualquer. Saíam de mãos dadas, Clara esforçando-se,
iludindo-se quase a respeito do prazer que aquela saída lhe causava.
Não tardava a sentir-se excessivamente preocupada com as corridas de
Sílvio, passava a lamentar que tivesse tido tal lembrança, perdia-se
finalmente num rosário de recriminações. A volta era sempre um
suplício. E o passeio tão cuidadosamente projetado acabava por
separá-los mais do que nunca. Em casa, narrando a história a Áurea,
via esta colocar-se sempre ao lado do pequeno, achando desculpas
para todos os seus excessos. Então Clara se revoltava, dizia que era a
maneira de educar da amiga que estava pondo o menino a perder.
Discutiam durante algum tempo, até que a trégua se estabelecia na
forma de um silêncio cheio de hostilidade. Durante essas pausas,
entretanto, Clara chegava à conclusão de que realmente o único
culpado era o filho, imaginando mil e um defeitos que na realidade ele
não possuía. Achava-o de caráter extravagante, volúvel, inteiramente
voltado para coisas sem importância. Instintivamente comparava-o a
Jaques, encontrando pontos de semelhança entre os dois e concluindo
que o pequeno saíra mais ao pai do que a ela. E à força de pensar
nestas coisas convertia o filho num estranho, confundindo
insuficiências da sua própria natureza com detalhes nascentes daquela
alma que ainda não compreendia. Assim, o mal-entendido ia
aumentando dia a dia, através de pequenos incidentes de origem mais
profunda do que aquela que Clara chegava a apreender. Decerto ela
ignorava que estava desde então traçando o caminho que para o futuro
seguiriam as relações entre ambos. É que, com essa cegueira peculiar
às pessoas que vivem juntas, Clara ainda não tinha observado que
Sílvio crescia, que estava se convertendo rapidamente num rapaz.
11
Todo aquele ruído enervava Clara. Não estava habituada a luzes
tão fortes e além disso sentia-se perturbada pelo murmúrio das vozes
reunidas e o surdo espoucar dos foguetes ao longe. No começo,
arrastada pelo pueril entusiasmo de Áurea e Sílvio, chegara a comprar
um anzol, experimentando fisgar uma das prendas na barraca de
pesca. Depois ficara com bilhetes para o jogo das argolinhas, detivera-
se numa tenda conhecida a fim de tomar um refresco, trocara algumas
palavras com uma vizinha. E mais adiante acabara por verificar que
tinha perdido os bilhetes comprados.
– Oh, mas não se importe... É uma mulher que não presta, todo
mundo sabe que ela não vale nada!
– Foi sim, foi por causa dela. Já perdeu tudo o que tinha. E
agora deve a todo mundo, vive de implorar aos amigos.
12
Naquela mesma noite, revolvendo-se na cama, Sílvio não
conseguiu adormecer. No seu espírito agitado desfilavam todas as
emoções experimentadas no decorrer do dia. Em vão ele fechava os
olhos, mudava de posição, consertava o travesseiro. Um elemento
imponderável flutuava no ar, conservava-o desperto, atento aos
rumores, ao bater apressado das suas têmporas, aos pensamentos e
imagens que no seu espírito se sucediam sem descanso. E dentre elas,
sobretudo, uma obstinada, luminosa, desaparecendo por segundos,
voltando mais forte, iluminava a sua alma inteira com o inesperado
fulgor de uma luz acesa na obscuridade. Decerto tudo aquilo ainda era
muito informe, apenas uma fugidia sensação de desassossego,
qualquer coisa como o vislumbre de um pressentimento que o
mantinha atento, dolorosamente sobressaltado no limiar do sono.
Muitas vezes sentia-se prestes a adormecer, o corpo repousava um
minuto, a respiração num ritmo mais calmo — e logo, rompendo a
neblina, a imagem renascia, misteriosa, cheia de uma força que
parecia comovê-lo até às fibras mais íntimas.
13
Dominado pela impressão que lhe causara a menina do
carrossel, Sílvio esqueceu Camilo, os livros, as preocupações essenciais
da sua vida. A obsessão persistiu por vários dias e atingiu um ponto
em que todas as coisas passaram a existir exclusivamente em função
daquela miragem. Pálido, distraído, ele sentia aquela sombra projetar-
se sobre os seus menores gestos. Nada disto passou despercebido a
Áurea, que o seguia atenta, pronta a acudir à primeira manifestação
desse mal desconhecido. Mas devagar esse primeiro abalo foi
passando, os traços se diluíram como uma máscara de cera que se
desfaz, da visão primitiva nada mais ficou senão a simples lembrança
de um momento diferente dos outros. Depois, foi o esquecimento
completo. De raro em raro, no meio de uma brincadeira, lembrava-se
de algo que se assemelhava a uma menina de cabelos soltos. Com o
correr dos dias, porém, Camilo voltou a recuperar o seu lugar
primitivo. Voltaram as conversas sobre livros de história, as correrias
no terreno da igreja, os longos passeios pela estrada da olaria. Maio
findava, as árvores estavam cobertas com as derradeiras flores. Apesar
disto, Camilo parecia mais pálido, tossia de vez em quando, parado no
caminho, uma das mãos sobre o peito, a testa molhada de suor. Sílvio
lembrava-se então das palavras que ouvira a respeito da doença do
amigo. Obrigava-o a sentar-se à sombra de uma árvore, indagava
opresso o que ele estava sentindo, olhos fixos no seu rosto. Não raras
vezes, diante deste temor, Camilo punha-se a rir, afirmando que não
era nada, que aquilo passaria dentro em pouco. Enquanto falava,
aspirava um punhado de funcho que tinha apanhado no mato.
Entretanto, Sílvio percebia uma sombra deslizando nos seus olhos. À
noite, à espera do sono que cada dia parecia mais difícil de chegar,
imaginava o que aconteceria se Camilo morresse, chegava a idealizar
os seus últimos instantes, as derradeiras palavras que diria. Se tal
coisa sobreviesse, o mundo para ele se converteria num imenso
deserto. Via-se sozinho, caminhando nas mesmas estradas que
costumavam percorrer juntos. Na tarde calma, as árvores pareciam
mais longas. E Sílvio acabava debulhado em lágrimas, o rosto sufocado
contra os cobertores amarfanhados. Ao amanhecer corria à procura do
amigo, encontrava-o forte, corado, cheio de planos para o dia que
começava. E todas as idéias negras se dissipavam.
14
Há muitos dias já que Sílvio não aparecia, nem dava o menor
sinal de vida. Antigamente, quando alguma doença o retinha em casa,
ele mandava Áurea com recados ou para pedir emprestado um livro de
história. Então era Camilo quem ia visitá-lo, com o volume pedido ou
outro presente qualquer. Sílvio recebia-o com gritos de júbilo, retinha
o amigo junto dele o dia inteiro. E estas longas visitas só se
interrompiam quando Áurea abria a porta do quarto e dizia, as mãos
na cintura: “Chega, Camilo precisa de ir para casa.” Ele partia, mas
com promessa de voltar bem cedo no dia seguinte.
– Sílvio não está. Até pensei que ele estivesse na sua casa.
– Mas ele não tem parado em casa — disse. — Onde será que
este pequeno se mete?
Foi assim que Chico surgiu na sua vida. Era bem mais velho do
que os outros, magro, de olhos miúdos e audaciosos, gestos rápidos e
cheios de astúcia. No primeiro instante Camilo não compreendeu por
que é que tinha sido aceito de tão boa vontade, quando todos os outros
o repeliam ou fugiam dele. Nem sequer havia entre ele e Chico essa
simpatia inicial, essa compreensão repentina e mútua que através de
todos os obstáculos transforma os mais diferentes interesses em
sentimentos idênticos. É que ainda não lhe fora revelado todo o
mistério da iniqüidade humana, essa necessidade mórbida de intervir
e utilizar que desde o berço lateja no fundo de certas almas. Nem
mesmo aquele, que se transformaria no seu algoz compreendia o
obscuro papel que lhe estava reservado. Nem mesmo ele podia
encontrar palavras que justificassem o seu súbito interesse por aquela
criatura miúda e tímida, sempre hesitante nos menores gestos, como
se temesse uma agressão inesperada ou uma injúria mortal. Às
observações dos outros, Chico nada encontrava para dizer. Afinal não
sabia mesmo por que o tinha admitido no grupo. Concordava
plenamente que Camilo era um trambolho, um maricas que não servia
para nada. E apesar de tudo não podia abandoná-lo. Aliás, fora Camilo
quem o procurara pela primeira vez, um sorriso forçado nos lábios.
Agora era Chico quem passava todas as tardes na sua casa,
convidando-o para as brincadeiras no terreno da igreja. Camilo nunca
se recusava a ir — mas havia na sua atitude qualquer coisa forçada,
como se dentro dele alguma coisa se revoltasse contra aquelas novas
companhias. Sim, ele nunca deixava de acompanhá-los — mas era
como se fosse obrigado, como se cumprisse um castigo. Talvez fosse
isto que Chico tivesse descoberto. O certo é que não tardou a perceber
que podia transformar o novo amigo no que quisesse, lançar-lhe as
mais cruas palavras em plena face, cobri-lo de ridículo diante dos
outros. Ele não reagia nunca, exceto de maneira que parecia provocar
maiores injúrias ainda. Aliás era curioso como todo ele se iluminava
nesse instante, como o seu sorriso sem forças parecia dizer: “Bata-me
que nada lhe acontecerá, aqui estou para isto.” E em breve Camilo e
Chico converteram-se num autêntico espetáculo para todo o mundo.
Não havia quem desconhecesse aquelas disputas, aquelas explosões
sem motivo, aquelas maldades cuidadosamente preparadas, que
envolviam Chico num halo de magnética atração. Não era possível
negar que também ele resplandecia nesses momentos, provocado
pelos olhares de admiração dos que o cercavam.
– Então…
15
Sílvio abriu a porta na esperança de entrar sem ser pressentido.
Mas, no momento em que atravessava a sala de jantar, uma tábua mal
pregada estalou sob os seus pés. Então, no fundo do corredor, ouviu a
voz de Áurea que o chamava e percebeu que um raio de luz escapava
por uma porta entreaberta. Deteve-se hesitante, escutando o tique-
taque do relógio — e, como Áurea o chamasse de novo, decidiu-se com
um suspiro, adivinhando a natureza das palavras que iria ouvir. Assim
que empurrou a porta, viu que apesar da hora adiantada Áurea ainda
trabalhava. Sob a luz velada com uma folha de papel, ela bordava uma
enorme toalha que tinha lançada sobre os joelhos. Assim que Sílvio
entrou, dirigiu-lhe apenas um olhar e perguntou-lhe onde tinha estado
todo aquele tempo, enquanto ajeitava com a unha uma dobra da
bainha. E como ele nada dissesse, receoso de que a sua resposta o
atirasse num caminho mais perigoso, ela indagou sorrindo se aquilo
eram horas para um menino entrar em casa. Pronto para uma defesa
que julgava necessária, ele afirmou com certa violência que já não era
mais uma criança, que já tinha feito treze anos. Áurea se deteve um
instante e fixou-o em silêncio, como se duvidasse da veracidade
daquelas palavras. Mas outras idéias deviam preocupá-la, pois moveu
lentamente a cabeça e disse que não era por isto, mas porque tinha
encontrado a mãe de Camilo e que ela se queixara de que ele não
aparecia mais. Sílvio sentiu um repentino alívio, descobrindo que era
só aquele o motivo por que Áurea o chamara. Não havia nenhum
perigo, todas as suas últimas aventuras ainda eram inteiramente
ignoradas em casa. Mostrou então um repentino interesse por Camilo
e indagou o que havia, se ele já tinha melhorado, o que dissera o
médico. Não, afirmou Áurea, ele não tinha melhorado; ao contrário,
estava passando mal e o médico não alimentava muitas esperanças.
Era conveniente que Sílvio fosse visitá-lo. Vendo-se livre do que tanto
temera, ele se entregou a um súbito movimento de ternura, lançou-se
sobre Áurea, abraçou-a, afirmando que no dia seguinte iria sem falta.
Ela ria, procurando fugir àqueles abraços, ameaçando-o com a agulha.
Afinal, depois de beijá-la estrepitosamente duas ou três vezes, Sílvio se
despediu, cerrando novamente a porta. Ao chegar ao seu quarto,
porém, não teve coragem para acender a luz. A janela estava aberta e o
luar cintilava lá fora. Debruçando-se no peitoril, ele sorveu com força o
frio perfume da noite, esperando acalmar o tumulto do seu coração.
Foi nesse estado de espírito que no dia seguinte Sílvio fez sua
visita a Camilo. Absorvido pelas suas idéias, ele nem sequer reparou
no ar de reservada alegria com que o recebia a mãe do seu amigo. É
verdade que os seus olhos descobriam alterações, que não lhe
escapava uma certa agitação que reinava na casa, bem como objetos
fora do lugar, móveis em posições diferentes, camas provisórias, toda
essa silenciosa balbúrdia das casas onde existe uma doença grave. Mas
eram apenas seus olhos que o constatavam, pois o coração permanecia
inerte, sob o fluxo dos seus obsedantes pensamentos.
— Depois que você adoeceu não tenho mais com quem andar.
16
Esse incidente em nada alterou a vida de Sílvio. Dia a dia sua
atenção mais se concentrava em Diana e em tudo o que dela se
originava. Às vezes, encontrando-o no corredor, Clara dizia: “Este
menino está ficando cada dia mais esquisito.” Se bem que não
prestasse muita atenção às reclamações desta natureza. Áurea
observara que realmente parecia existir qualquer coisa, Sílvio não era
o mesmo. Decerto não lhe ouvira nenhuma palavra mais áspera, nada
descobrira que pudesse despertar-lhe a menor suspeita. Entretanto,
via-o sempre taciturno, debruçado na janela, evitando encontros como
se na verdade ocultasse alguma coisa dos outros. Em certo momento
julgou que ele estivesse doente, vendo sua falta de apetite. Mas, como
esperasse em vão sintomas que não surgiam, resolveu afinal fazer uma
consulta a Maria Ernestina, sempre tão experimentada nestas
questões. A solteirona ergueu os ombros: “É da idade” — e a conversa
morreu neste ponto. Satisfeita, Áurea deixou de se preocupar com
Sílvio.
Com a sua saída, Sílvio sentiu uma espécie de alívio. Nada temia
da parte de Áurea, mas com a mãe estava sempre em guarda.
E aproximando-se de Sílvio:
Foi nesse momento que Clara fixou o olhar nele, não como õo
fazia tantas vezes durante o dia, mas com uma curiosidade movida
pelo pressentimento. E só aí, diante daqueles olhos fechados, daquele
livro que ela percebeu inteiramente inútil, diante daquele silêncio com
que ele recebia a notícia da morte do amigo, só aí ela compreendeu
tudo o que estava acontecendo. Tudo o que até aquele momento lhe
havia passado despercebido, aquela sombra sobre o rosto do filho, que
parecia torná-lo mais velho e mais grave, aquele desinteresse e aquela
fuga diante dos outros, todos estes sintomas lhe revelaram a realidade
oculta até aquele instante. Lembrou-se de que o vira dias antes com
uma menina desconhecida. E até mesmo de certos rumores a respeito
de uma família nova, mexericos da vizinhança, coisas a que ela não
dera muita atenção. Entretanto, ali estava a confirmação de tudo.
Agora ela o examinava com súbito e apaixonante interesse. Como era
estranho que já sofresse aquelas coisas, que passasse tão cedo por
transes tão dolorosos como os que ela própria já havia passado! Não,
ele não se parecia em nada com Jaques. Era um outro tipo, pertencia à
sua raça. E quanto mais o examinava, mais se convencia de que já não
era mais uma criança que tinha diante dos olhos. E que se teria
passado, quais as palavras, quais os acontecimentos que lhe teriam
aberto os olhos para a vida?
17
No dia seguinte Sílvio amanheceu realmente doente. O tempo
continuava enevoado, se bem que não chovesse mais. Recostado numa
pilha de travesseiros, durante largo espaço de tempo ele manteve os
olhos fixos na vidraça que o vento de vez em quando fazia estremecer.
Se fizesse um esforço poderia se levantar, mas sentia-se dominado por
um profundo desânimo. Entretanto, com o correr das horas o seu
estado de espírito foi se modificando. Uma surda agitação começou a
lhe trabalhar o espírito. Já não conseguia ficar quieto no mesmo lugar,
revolvia-se de um lado para outro, tentando fugir a um sentimento que
ia aumentando gradualmente de intensidade. Aliás era mais uma
sensação do que outra coisa — sensação de um grande vazio, onde as
imagens mais caras desapareciam como sugadas por lenta e insaciável
névoa. Na obstinação de um orgulho infantil ferido nas suas raízes, ele
procurava em vão repelir o fato da partida de Diana. E era este um
gesto de defesa natural, como o de certos doentes que adivinham os
alimentos proibidos. Mas aos poucos, de maneira silenciosa e
inflexível, a noção daquela viagem se impunha ao seu espírito. Ele, que
tanto se esforçara para não pensar naquilo, e até agora conseguira,
banir a sua lembrança do pensamento — pelo menos o acreditava —,
compreendia de repente que a ameaça surgia e subjugava os recantos
mais afastados da sua consciência. Sim, era inútil lutar, dentro de
algumas horas estaria sozinho, tentando reviver apenas fragmentos
daquele sonho que vivera intato tão curto espaço de tempo. E a um
certo momento essa noção foi tão intensa e dolorosa que ele se
levantou de um salto, pronto a reagir, a fazer qualquer coisa, contanto
que escapasse àquele intolerável sofrimento. Vestiu-se e saiu, mas no
momento em que atravessava a sala encontrou-se com Áurea:
Pois nem mesmo neste terreno ele cedia aos outros. Ninguém o
ultrapassava em aventuras. Era um conquistador, nenhuma mulher
resistia aos seus olhares. Sílvio escutava todas essas coisas, os olhos
baixos, lembrando-se de Diana. E a si mesmo perguntava como
Camilo pudera suportar tanto tempo um amigo daquela espécie.
— Meu Deus!
Nesse momento, sua única idéia nítida é que apesar de tudo ele
ainda era o seu marido. A idéia de uma outra mulher atravessou seu
pensamento como um relâmpago. Mas, sempre em silêncio, abriu a
porta e deixou que o homem passasse. A sala estava vazia, Sílvio e
Áurea conversavam na cozinha. Até eles vinha distintamente o som
das vozes. Jaques deteve-se um minuto, olhando tudo que o cercava
com uma curiosidade que lhe era impossível disfarçar. Era o mesmo
interior que deixara há tantos anos, apenas modificado num ou noutro
ponto. Ele próprio admirou que se lembrasse tão bem de tudo aquilo.
E, passando silenciosamente a mão pelo rebordo da cadeira, teve pela
primeira vez a clara intuição de que cometera um erro tremendo ao
abandonar o lar — jamais devia ter deixado aquelas coisas simples e
familiares; sua vida devia ser um escoar lento e sereno entre aqueles
objetos austeros.
– Não sei se fiz bem em ter vindo. Mas estou doente, o médico
aconselhou-me repouso.
– Bem sei que o melhor é que eu não tivesse voltado. Mas agora
é tarde.
– Deve ter sido seu pai. Ele quer saber qual é o seu
adiantamento real.
Sim, era gênio dele. Mas apesar de tudo ela não conseguia
condená-lo e nem sequer concordar consigo mesma que Sílvio devia
proceder de outro modo. No fundo existia um secreto ponto de
semelhança entre ela e o filho. Já tentara compreender aquilo, mas o
motivo lhe escapava, ou então ela procurava não vê-lo, como certos
doentes que não prestam muita atenção aos sintomas, temendo a
realidade da moléstia. Sim, era melhor não pensar em nada, esquecer
tudo, deixar que a vida corresse sem tentar interceptar-lhe a
correnteza. E ela fechou os olhos, exausta, esforçando-se por esquecer
tudo que a rodeava. Mas durante um minuto; violenta, borbulhou no
seu coração uma vaga de ásperos sentimentos — e, como de tantas
outras vezes, ela compreendeu que daquela também não lhe era
possível ocultar a verdade, nítida através de tantas palavras largadas a
esmo, de tantos gestos aparentemente sem importância, de tantas
questões deixadas sem resposta. Estas coisas assumiam agora uma
feição decisiva, exata, a que lhe seria impossível escapar. O fato é que
já não tinha mais nenhuma amizade pelo marido — e, o que era pior,
não tinha nem sequer forças para enganá-lo e enganar a si própria,
com esse dom com que certas almas caridosas substituem o amor que
já não existe. No decorrer do dia, vislumbrando a terrível verdade
através de uma resposta mais áspera, indagava atônita a si mesma se
era possível, se tudo aquilo não seria um trágico engano, se podiam
falecer assim sentimentos que tinham sido tão absolutos no seu
coração... Imóvel, olhos na sombra, procurava então rememorar cenas
antigas, coisas passadas há muito, palavras e imagens de Jaques,
lembranças do tempo em que haviam sido felizes. Nada entretanto
respondia a esse apelo, era como se pelos seus dedos deslizassem
apenas fantoches, um mundo de poeira fria e incolor. Então ela se
martirizava, esforçando-se por sufocar esses tristes sentimentos.
Aproximava-se dele, procurava atendê-lo de boa vontade, escutava
suas queixas com atenção, arranjava desculpas. Mas aquilo não ia
muito longe, uma surda irritação começava a ganhá-la. Jaques tinha
um modo especial de falar, como se nesta vida tudo estivesse
terminado para ambos. Lembrando-se então da existência reclusa que
vivera naquela casa durante tantos anos, Clara sentia abrasá-la uma
onda de revolta. Não podia permitir que ele a condenasse daquele
modo. Tudo poderia estar terminado para Jaques, mas, quanto a ela,
ainda tinha muito que viver. E levantava a cabeça, aspirando o ar com
força. Assim, a cada minuto, seus caminhos se distanciavam mais. Em
silêncio, enquanto aquelas imagens se sucediam no seu pensamento,
Clara analisava-o com dolorosa frieza. Sua maneira de caminhar,
curvado, como se temesse despertar dentro dele uma dor violenta, sua
voz dilacerada e triste, seu modo de responder com palavras irônicas
ou de exprimir o seu descontentamento com frases acerbas, que
muitas vezes escondiam o motivo real da sua irritação, tudo isto ia
cavando lentamente um abismo entre eles. E apesar disto, apesar de
ter sempre presente na memória os agravos que o marido lhe tinha
feito anos atrás, Clara sentia que estas coisas não seriam nada, se não
existissem outros fatores, mais grosseiros e mais humanos. Era através
deles que se evidenciava a irremediável derrota do homem. Muitas
vezes, surpreendendo-se cheia de repulsa ante uma dessas
observações, Clara tentava lutar, banir aqueles sentimentos que
desprezava. Não podia conformar-se em que a sua natureza fosse tão
mesquinha. Mas ao se deitar, no momento em que ia apagar a luz, não
lhe era possível deixar de reparar no copo d’água que Jaques colocava
cuidadosamente a seu lado, próximo ao vidrinho de gotas e à caixa de
ampolas. Clara deitava-se com o coração pesado. Na escuridão ouvia-o
tossir, gemer, revolver-se de um lado para outro, queixando-se de que
não conseguia fechar os olhos. Ela tentava acalmá-lo, dizendo que era
por causa do calor. Jaques então pretextava sufocações, queria a janela
aberta. Ela se levantava, agasalhando-se contra o frio. Lá fora a noite
era de uma quietude infinita. Dir-se-ia que não existiam os homens e
nem suas misérias, que a morte era um mito, só a eternidade se
desdobrava como um grande véu cheio de estrelas. E ela permanecia
inclinada para fora durante algum tempo, até que a voz impaciente de
Jaques a chamava de novo. Repreendia-a, não devia expor-se daquele
modo, via moléstias em todos os cantos. Consigo mesma ela pensava:
“Como é terrível o seu medo de morrer.” E nunca a existência humana
lhe parecera mais frágil, mais atormentada, mais imersa na angústia e
na solidão. Escutava-o gemer e tossir novamente. De vez em quando
Jaques deixava escapar pragas abafadas. Insetos entravam pela janela
aberta. Um besouro lançava-se pesadamente contra o abajur, zumbia
ameaçador no fundo do quarto. Jaques sentava-se na cama, maldizia a
idéia de abrir a janela, tossia mais fortemente ainda. E de novo Clara
era obrigada a se levantar. Quando voltava, Jaques tinha atirado as
cobertas de lado e procurava aflitamente o comutador. Tinha sentido
palpitações, podia ser o prenúncio de uma crise. A luz vermelha
afugentava as trevas. Uma barata fugia na penumbra. Jaques
apanhava as gotas e misturava-as com mãos trêmulas. Neste momento
Clara já não podia mais vencer sua enorme repulsa e escutava, com os
nervos contraídos, o tinido da colher dentro do copo d’água. “Meu
Deus”, pensava ela, “perdoai-me, é demais, como posso amar
semelhante homem?” E, enquanto Jaques ingeria o remédio com um
largo sorvo, Clara confessava a si própria que todos aqueles negros
sentimentos só tinham vida porque o amor há muito cessara de existir
entre eles. Agora, extenuado, Jaques continuava sentado na cama, a
cabeça baixa, contemplando a ponta dos chinelos. E não raro, sentindo
o olhar da mulher fixo sobre ele, balançava lentamente a cabeça,
dizendo: “Já não presto para nada, Clara.”
– Cuidado, Sílvio.
5
Do alto da escada, Jaques olhou um instante o jardim
adormecido ao sol escaldante. Depois, protegendo a cabeça com uma
folha de jornal, encaminhou-se para o pé de acácias, que ficava rente
ao muro. Lá, sentou-se com um suspiro e prestou atenção ao surdo
zumbir das abelhas, que preparavam a colméia num dos ramos mais
altos. Em torno tudo parecia deserto, nada se movia naquela paisagem
assolada pelo calor. O céu azul refulgia — e de vez em quando, no alto,
um cacho de flores amarelas fremia, tocado pelo vôo inquieto de uma
abelha. Lentamente o olhar do homem se alongou até ao muro e
perdeu-se além, nos tetos distantes. E um sentimento intenso, de vida
e liberdade, pareceu dilatar-lhe durante um minuto o coração. Era ali,
sozinho e em silêncio, que ele passava a maior parte das suas horas.
No princípio, não compreendera bem o motivo por que só naquele
lugar respirava com tanto prazer — mas aos poucos fora percebendo
que não o escolhera, mas que viera ter à sombra daquela árvore como
se o tivessem empurrado, como a um lugar de exílio. “Sim, um lugar
de exílio”, repetiu ele em voz alta. E a sua respiração pareceu acelerar-
se, enquanto uma nuvem escurecia seus olhos sempre limpos.
– É isto?
– Melhorei sim.
– Vai bem.
7
Nos dias que se seguiram Clara verificou que, apesar dos seus
esforços, o orçamento era cada vez mais deficitário. Não adiantava
acumular encomendas, pois não tinha forças para suportar um tão
pesado regime de trabalho. É verdade que Áurea a ajudava, mas Clara
não podia contar muito com esse auxílio, pois todo o movimento da
casa era regulado exclusivamente por sua companheira. Às vezes,
vendo-a suada, arrastando um móvel qualquer, Clara se envergonhava
e procurava ajudá-la. Mas não tardava muito a abandonar tudo,
caindo exausta na primeira cadeira que encontrava. “Não se importe
comigo”, dizia Áurea penalizada, “nasci para estas coisas e você não.”
Clara achava-se injusta, odiosa, mas não ia além disto. Aliás, era
visível que a sua saúde já se ressentia com este novo estado de coisas.
Emagrecera, seus olhos pareciam mais salientes, sombrios e sempre
irritados. Além disso, tinha os nervos gastos, não suportava o menor
rumor. Não raro explodia em meio de conversas insignificantes,
acusando Áurea de coisas absolutamente imaginárias, intenções que
ela nunca tivera. E, como a outra lhe fizesse ver isto, perdia-se em
contradições e acabava por abandonar tudo num gesto de incontida
irritação. Ia refugiar-se então num banquinho junto à janela, o rosto
afundado nas mãos, numa crise de desânimo. Na verdade já não sabia
mais o que tentar, julgava-se perdida, não via solução para coisa
alguma. A amargura se derramava no seu espírito como um cáustico.
Numa das vezes em que se encontrava assim imóvel, olhos fixados
num ponto invisível, Jaques apareceu e perguntou se ela estava
sentindo alguma coisa.
Imóvel, Clara aguardou então que o marido falasse. Sua voz era
perfeitamente calma:
— Esperei durante todo este tempo — disse ele — e creio que não
há mais nada a fazer. Não adianta — interrompeu-a com novo gesto —,
sei muito bem o que iria me dizer. Mas, Clara, já estou cansado destas
coisas.
— Sim, Clara, ela ou eu. Há uma pessoa de mais nesta casa. Você
consente em mandá-la embora?
— Não.
— Adeus.
10
Mas uma onda de fel parecia ter inundado a sua alma. Devagar,
lábios contraídos como para reter aquelas palavras envenenadas que
teimavam em subir do fundo do seu coração, ela se afastou e foi cair
numa cadeira junto à janela. E como Jaques se aproximasse,
insistindo em saber o que se passava, deixou escapar tudo finalmente,
olhos fechados, como quem cede a uma vertigem. Ele escutava-a sem
ousar interrompê-la, suspenso às suas palavras, atônito e
desamparado. Quando Clara terminou, ele baixou a cabeça, sempre
em silêncio. Mas a uma exclamação da mulher, aflita e imperiosa,
respondeu num tom vago:
– Não sei o que pensar, Clara. Você fez mal em ter ido à casa
desse homem.
– Mas neste caso por que foi que você não ficou com ele?
Clara sentiu-se perdida e imaginou que aquele homem
escarnecia dela. Ele descera tanto na sua consideração que aquilo era
para ela uma insuportável humilhação.
–Mas… Clara!
– Você verá!
– O senhor... — começou.
– Deixe-me passar!
13
Ao amanhecer, quando Clara se levantou, Jaques estava sentado
na borda da cama, olhando pela janela aberta. Ela notou sua intensa
palidez e perguntou, ligeiramente constrangida, se ele estava sentindo
alguma coisa. Jaques respondeu negativamente e, como Clara fizera
notar seu aspecto abatido, afirmou que era apenas conseqüência de
uma noite maldormida. Ela pensou então em aconselhá-lo a não sair,
mas como o visse examinar as paredes com ar de fadiga, sugeriu
exatamente o contrário, isto é, que talvez fosse bom ele dar uma volta
pelos arredores. Sem nenhuma impaciência ante essas contínuas
interpelações, com ar sombrio, onde era possível a olhos mais atentos
discernirem uma profunda humildade, Jaques respondeu que preferia
ficar onde estava, que a janela aberta lhe bastava para descansar das
paredes nuas do quarto. Esta atitude causou certo mal-estar a Clara.
Durante alguns segundos fitou-o com ar estranho, tentando descobrir
algo que aquele rosto cansado lhe ocultava. Mas afinal abandonou o
quarto, esforçando-se por não pensar mais nestas coisas.
– Não sei.
– Por que é que você não vai até lá em cima? Talvez ele esteja
precisando de alguma coisa.
– Vamos!
– Jaques — chamou.
– Então?
– Sim — exclamou ela com violência —, bem sei que era sobre
isto que pensava, mas no entanto foi ele quem me abandonou. Se você
soubesse de tudo...
Mas ainda uma vez ela tinha cedido a um daqueles impulsos que
a arrebatavam ultimamente e de que tanto se envergonhava mais
tarde.
Sozinha, Áurea examinou de novo a sala que lhe era tão familiar.
A porta, batida pelo vento, estremecia em surdos solavancos. Ela
sentou-se com um suspiro, e foi nesta posição que Sílvio veio
encontrá-la, quando regressou à sala. Seus olhares se encontraram — e
ele compreendeu que as palavras eram inúteis, que não precisava
explicar nada do que havia se passado entre aquelas paredes. Áurea,
pela sua simples presença, havia dominado a situação e se apoderado
dos menores detalhes. Não era este um dos traços fundamentais da
sua natureza, esse dom de reter as pontas fugitivas dos
acontecimentos e trazê-los novamente à trilha natural? Não era ela
uma espécie de coordenadora do caos, um desses seres providenciais
junto de quem vão desaguar todas as vagas da discórdia, todas as
estéreis agitações que tremem no seio de tantas famílias como uma
corrente elétrica? Sim, ele não precisava informá-la de nada: sua
presença já valia por um ato de autoridade, e automaticamente todos
os mal-entendidos cessavam de existir. Era o que Sílvio pensava,
vendo-a tão tranqüilamente sentada sob a luz vermelha do abajur.
Seus gestos eram tão naturais, sua expressão tão serena, que nada
parecia se ter passado e ela própria jamais se afastado daquela casa.
Fundia-se perfeitamente no ambiente e não era possível compreendê-
lo sem sua modesta e elucidativa presença. Fora essa mesma espessa
sensação de tranqüilidade que assaltara Clara, ao vê-la do lado de fora.
E Sílvio, ainda surpreendido com essa repentina harmonia, com essa
estranha força que parecia diminuir e retirar toda a projeção hostil dos
fatos, fitava mais uma vez aqueles ombros fortes, quase masculinos, o
rosto grave, manchado de sardas, e as grossas tranças amarradas no
alto da cabeça, sem nenhuma preocupação de vaidade. Há quantos
anos a conhecia assim? Entre os privilégios de Áurea existia ainda o de
não envelhecer, sempre fora assim, esse ser sem graça, fanado,
inteiriço, fora do tempo como se estivesse além das contingências
terrenas. Vendo-a, ele admirava entretanto aquele tato que a fizera
recusar o convite de Clara para ir até ao quarto do doente. Esse
respeito, essa noção de sensibilidade alheia, esse pequeno traço, que
de um só golpe devolvia a Áurea toda a feminilidade que o físico não
lhe emprestava, estavam nitidamente impressos nos seus olhos
suaves, antigos, dotados de uma bondade que dissolvia todas as
asperezas de sua fisionomia.
– Sílvio — disse ela com voz insegura —, que faz você aqui? Já
devia estar dormindo.
– Não posso.
– Por quê?
16
Cerca do meio-dia, o doente tornando-se mais agitado ainda e
sua respiração mais difícil, Clara não teve dúvida de que o desenlace se
aproximava. Correu à sala e mandou que Áurea chamasse o padre. E,
como Sílvio quisesse acompanhá-la de volta ao quarto, pediu que ele
esperasse na sala de jantar e retivesse o visitante até que Jaques se
achasse em condições de recebê-lo. Áurea voltava dentro em pouco,
esbaforida, avisando que o padre não tardaria a vir. De fato ele
apareceu pouco depois e sentou-se num tamborete, o breviário aberto,
à espera de que o chamassem. Via-se que procurava se mostrar
indiferente ao que o cercava — e Sílvio, que não o perdia de vista,
achava-se pronto a escapulir à primeira tentativa de aproximação.
Decerto o padre percebera sua hostilidade, pois era simulado aquele
modo de folhear o livro e levantar os olhos de vez em quando, como se
estivesse mergulhado em funda meditação. Mas, percebendo que seu
ingênuo estratagema tinha sido descoberto, fechou o livro, suspirou e
com os olhos percorreu vagarosamente a sala. Como Áurea viesse lhe
trazer uma xícara de café, indagou se não seria melhor entrar logo, ao
que ela respondeu que ia verificar; voltou dizendo que o doente se
achava num estado de completa inconsciência.
– Então?
– Não há resposta.
– Por quê?
– Porque não há. Estou farto dessas coisas e não quero mais ver
essa mulher.
– Tudo isto não existe mais para mim — atalhou Sílvio, sombrio.
Chico continuou a caminhar enfiando a mão no braço de Sílvio.
– Não é por isto, é inútil esconder, bem sei que não é por isto
que você dá tantos passos errados na vida.
– Creio que ainda não será desta vez — disse Clara, entregando a
Áurea o copo vazio.
17
Realmente padre Abreu estava com a razão, quando a respeito
de Clara afirmou que certas almas só se salvariam caso um raio
tombasse dos céus e o milagre se produzisse. No dia seguinte ao do
enterro de Jaques, Clara descobriu afinal, sob a grosseira tessitura dos
fatos, não o raio inesperado e fulminante, mas a lenta e obstinada
vontade de Deus. Todos haviam saído, nenhum rumor se fazia ouvir
na extensão da casa. Ela estava sentada sob a lâmpada da sala e tinha
disposto uma peça de linho sobre os joelhos, quando, levantando a
cabeça, percebeu a luz da tarde que se despedia nas vidraças nuas.
Imediatamente sentiu a solidão pesar e, olhando em torno, mediu pela
primeira vez o silêncio enorme, definitivo, que se tinha feito em torno.
Sua impressão foi tão forte que ela julgou ouvir, como um eco
nascendo de extrema distância, uma voz que lhe transmitia uma
ordem. A ilusão era tão real que ela se levantou, inquieta, julgando que
alguém a chamava do lado de fora. Mas, aproximando-se da janela,
nada viu, o jardim adormecia às primeiras sombras da noite. No
entanto, Clara compreendeu que não se tinha enganado, e voltou a
sentar-se, o coração batendo violento. Nada perturbava aquele calmo
fim de dia, os objetos morriam sob uma penumbra deliqüescente.
Apesar dos seus esforços, ela não conseguiu retomar o trabalho, o
linho abandonado no chão, as mãos sobre os joelhos, ouvidos à escuta.
Nada mais se fazia ouvir, a misteriosa voz havia desaparecido. Não
teria sido um sonho, uma dessas alucinações que costumam nos
assaltar? O certo é que Clara não conseguiu readquirir sua serenidade,
e apanhando a peça abandonada foi guardá-la de novo no armário.
Sobre a mesinha de cabeceira deparou com os vidros de remédio que
Jaques usara, e que ela ainda não tivera tempo de jogar fora. Só aí,
diante desses objetos que pareciam ressuscitar todo o drama vivido
naqueles últimos dias, só nesse instante ela compreendeu que na
verdade nada fora esquecido e que, ao contrário, tudo permanecia
estranhamente vivo no seu coração. Olhando em torno, sentiu então
alargar-se aquela quietude como uma enorme fenda, e através dela
subir à sua consciência um terror surdo e doloroso. Sim, não podia
ficar ali sozinha, devia fazer qualquer coisa, estava ficando louca.
Dirigiu-se novamente ao armário, apanhou um xale e, cobrindo a
cabeça, saiu.
“Não é viver que é difícil”, disse ela consigo mesma, olhos fixos
na dolorosa imagem da mãe de Deus, “é viver com os nossos
semelhantes. Tudo se resume em não levantar a mão contra eles, não
feri-los, não trucidá-los em nosso cego desejo de subsistir.” Era esta
verdade que ela tinha descoberto, depois que o corpo de Jaques para
sempre havia desaparecido sob a terra escura. Ou melhor, era esta a
verdade que afinal se tinha imposto à sua consciência, vencendo tantas
e tão árduas etapas. Durante horas e horas, naquele silêncio que vira
se avolumar com tão tremenda intensidade, tão repleto de frias
sensações, e dentro do qual julgara perceber enfim uma voz que
pronunciava o seu nome, ela aprendera que nada é mais perigoso
sobre a terra do que um homem disposto a reclamar o seu direito à
vida. Verdade elementar, mas dentro da qual fora preciso ela
comprometer o seu destino, a fim de percebê-la em toda a sua
profundeza. Nada poderá controlar essa força, esse ímpeto que
secretamente se avigora, esse ódio que se concentra visando um ponto,
um destino. Sim, agora podia falar livremente, já que os fatos haviam
se esgotado a ponto de só deixarem um cadáver amortalhado no seu
eterno silêncio, derradeiro aviso traçado pela mão de Deus. Agora
podia reconhecer esses pensamentos que vinham não sabia de que
misterioso lugar, cristalizando-se em torno de uma idéia, encerrando-
a numa estreita malha e criando assim a obsessão que não tardaria a
se levantar como uma arma terrível. Esse pensamento concentrado,
essa vontade aguçada ao longo de dias e dias de vida em comum, de
pequenas misérias, de gestos apenas esboçados e palavras que muitas
vezes parecem vazias de sentido — em tudo isto ela podia reconhecer
afinal a força vitoriosa, a arma ensangüentada. Tão poderosa era essa
influência, tão real e decisiva sua ação, que muitas vezes Clara a
sentira perturbá-la como se fosse uma outra pessoa, um novo ser
agindo incontrolado no fundo da sua alma. Como uma nuvem escura
que se levanta, essa força domina a atmosfera e lentamente sua ação se
insinua até conseguir o fim visado. “Meu Deus”, repetiu ela, a mão
sobre o coração, “ajudai-me, tende piedade da minha ignorância e da
minha miséria!” E nada respondia ao seu apelo naquela pequena
capela vazia, onde o seu vulto se destacava a um canto, imóvel, negro,
projetando sobre as pilastras uma sombra que a luz das velas tornava
vacilante.
Até minutos antes ela não sabia ainda. Até segundos antes de
entrar na capela, ainda podia viver como os outros, rir e conservar-se
alheia à realidade. Mas agora ela “sabia” e nada mais lhe era possível.
Uma porta se fechara, o mundo lhe havia sido misteriosamente
vedado. Era como se uma voz lhe houvesse dito: “Basta. De agora em
diante o teu caminho será outro.” E ela se lembrava de quantas vezes
julgara se aprofundar definitivamente no conhecimento de certos
fatos, descer mais a fundo nas experiências quotidianas, revolver uma
a uma essas pequenas lições que a vida deposita à margem dos dias.
Agora, entretanto, sentia que realmente só apreendera uma coisa, e
que todas as outras nada mais eram senão detalhes, miseráveis
acessórios dessa verdade capital. Apesar dos homens que descobrem
várias verdades essenciais, ela sabia que realmente só descobrimos o
que é morrer, viver e duas ou três coisas mais que, entrevistas no seu
mais extenso sentido, transformam toda a nossa existência. “Sim”,
repetia ela sem descanso, “somos tão cegos e insensatos que
destruímos aqueles que nos são mais caros, os seres que mais
amamos. Somos nós que os matamos, como um criminoso mata no
escuro.” E lembrava-se de Jaques, dos primeiros tempos em que o
conhecera, procurando em vão associar as duas imagens, a antiga e a
nova, Jaques daqueles tempos com o homem o que vira agonizar junto
dela, cabelos brancos, sem uma palavra de revolta. É fácil destruir a
imagem de um ser que amamos, mas é extremamente difícil recolocá-
la no coração, Clara lembrava-se também dela própria, da sua ida à
casa do farmacêutico, da sua discussão com Jaques, de todos esses
pequenos acontecimentos familiares que rapidamente se tinham
convertido numa onda destruidora. Das virtudes dos homens, sem
dúvida a mais rara é a caridade. Não a simples caridade do fariseu, a
esmola dada, o supérfluo dividido, o inútil abandonado à fome dos
outros — mas a coragem de não levantar a mão contra nós mesmos,
contra a sagrada imagem que representamos neste mundo. Pois Clara
tinha chegado à conclusão de que não fora só Jaques que
desaparecera, mas que também ela própria sucumbira, arrastada pela
voragem. Era inútil procurar esconder, seu papel estava terminado,
nada mais tinha a fazer, sua vida tornara-se inútil. E assim o fim já se
desenhava. Pela primeira vez ela compreendeu o que era sentir-se à
margem, isolada, perdida, sem destino sobre a terra. Estes
pensamentos levaram-na mais longe, a conclusões mais decisivas. É
exato que o mundo é cruel para com as crianças, um inferno para suas
pequenas almas sem segurança. Nada, entretanto, poderá se comparar
ao suplício que representa para os velhos. Toda a crueldade dos
homens, toda essa satânica sabedoria adquirida numa existência de
torpes ambições e fraquezas premiadas, desenvolve-se, torna-se mais
aguçada, a fim de desferir o golpe final contra as inermes vítimas.
Nada poderá salvá-los dessa fúria que lhes nega cada parcela do ar que
respiram. Eles devem se habituar a falar sem que ninguém lhes ouça a
voz, a se contentar com as sobras dos festins dos outros, a não
atravessar jamais os limites de uma existência condenada. E tudo isto
ainda é pouco — que sabemos realmente dessas faces cansadas que
vagueiam nos fundos das casas, desses olhares apagados que emergem
das janelas, dessas ambições sem horizontes, desses ideais que já não
se prendem mais à terra, desses conselhos que ninguém mais
reconhece, dessa experiência que ninguém aceita? Sim, Clara sabia
que sua missão estava cumprida. Agora era ela quem recuava para a
sombra e cedia lugar aos que chegavam. Sílvio já era um rapaz,
precisava viver, desenvolver-se. Ela jamais se oporia a que ele seguisse
o seu caminho, com essa cegueira de tantas mães que projetam uma
sombra enorme sobre os frágeis destinos dos filhos. Não carregaria
mais nenhuma culpa desta natureza para apresentar aos olhos de
Deus. E por um instante, pensando no que seria a sua vida para o
futuro, viu Sílvio distante, inacessível, entrando em casa sem
cumprimentá-la, como fazia a Jaques. Uma dor aguda estreitou-lhe o
coração. Sabia que o filho a tinha julgado, que aos seus olhos ela não
encontraria remissão. Em vão procurava atenuantes, preparava
desculpas e desfiava difíceis razões. Sílvio jamais se demoveria do seu
ponto de vista. Tinha reparado sua faina naquela manhã, arrumando a
casa, enquanto no quarto o marido agonizava sozinho. Tinha-a visto
tantas vezes, entregue exclusivamente ao seu capricho, surda a todos
os esforços de Jaques, ao seu desejo de perdão, à sua ânsia de vida…
Por essa época Sílvio, que já fizera vinte anos, era um rapaz
franzino, de cabelos quase louros, traços delicados e firmes. Seus olhos
não eram cor de cinza nem azuis, mas de um castanho muito claro, e
davam extraordinária vida à sua fisionomia, talvez excessivamente
pálida. Via-se ao primeiro golpe de vista que era nervoso e ágil, se bem
que controlado; às vezes, sob esta calma aparente um movimento ou
uma palavra brusca denunciavam uma violência cuidadosamente
adormecida, dilatando ainda mais seus grandes olhos claros na face
repentinamente sombreada. Sem vaidade, sua maneira de vestir
denunciava entretanto um severo cuidado. Suas roupas, pouco
vistosas, exprimiam bem essa secreta paixão pela ordem, pela
simplicidade e pela nobreza de atitudes. Toda a força da sua natureza
se concentrava numa outra espécie de paixão; a leitura. Lia tudo o que
encontrava, de preferência romances. Mas não escolhia, devorava tudo
desordenadamente, sempre às voltas com jornais e catálogos de
livrarias. Clara, que atravessara um longo período de desinteresse,
sentira reacender-se no seu espírito sua antiga paixão pelos livros e
acompanhava o filho, querendo saber suas opiniões a respeito de todos
os volumes que lhe passavam pelas mãos. Ele não se negava, desejoso
de introduzi-la nesse mundo onde se movia com tanto interesse e
liberdade. Às vezes, falava-lhe até mesmo no plano de um romance
que sonhava escrever. Chamar-se-ia “Adolescência” e trataria da vida
de rapazes e moças mais ou menos da sua idade. Clara escutava-o,
cheia de esperança. Mas, aos poucos, se para o seu espírito agitado
este modo de viver trouxera certa tranqüilidade, não deixava
entretanto de ponderar os motivos do filho e achar que lhe era
necessário um pouco mais de vida exterior. Não tardaria muito que ele
tivesse de procurar por si próprio outros meios de subsistência. E ela
não ignorava que lá fora a vida era difícil, e temia vê- lo fracassar nesse
árduo combate. Além disso, não queria vê-lo transformado num
selvagem. Até aquela data, Sílvio nunca havia penetrado num salão,
desconhecia todas as etiquetas e, segundo sua maneira de pensar,
ignorava até o modo pelo qual se devia cumprimentar uma senhora.
Freqüentes vezes Clara fazia alusões à necessidade dele travar
relações, instigando-o a freqüentar as festinhas da vizinhança ou as
reuniões do clube local. Sílvio se esquivava, encontrando sempre
razões que ela não ousava destruir, com a imagem da sua própria
mocidade sempre presente. Na verdade, não fora ela também uma
espécie de pequena selvagem?
E à guisa de desculpa:
– Esta noite abafada…
Era sobre isto que ela pensava, caminhando aquela manhã pelo
jardim. Abelhas voavam em torno das rosas abertas, pesadas,
oscilando sobre os canteiros maltratados. Ela se encaminhou para a
grade semi-arruinada e se deteve, olhando a areia da rua que faiscava.
Foi neste momento que viu uma carroça subir lentamente do fundo da
rua. O carroceiro fustigava os animais, imprecando. O veículo veio se
arrastando pesada e barulhentamente e afinal, com um solavanco,
parou defronte da farmácia. A placa de metal onde se lia o nome da
casa, presa à parede por uma seta de ferro, oscilava ao vento frio da
manhã. Clara se inclinou, interessada. O homem desceu, colocando o
chicote junto ao banco e acertando o avental de couro que usava. O
farmacêutico surgiu à porta e ambos penetraram dentro da casa.
Decorreram alguns minutos, em que Clara se manteve na expectativa.
Viu depois que o carroceiro arrastava um móvel para o meio da rua e
reconheceu facilmente a mesa em que se apoiara outrora, quando o
homem procurara beijar-lhe as mãos. Seu coração batia fortemente e
ela não conseguia desviar o olhar da carroça. O homem entrou de novo
e outros móveis vieram para o meio da rua. Ao sol, conservavam um
aspecto mesquinho e ofuscado. No primeiro instante Clara não quis
acreditar no que via, achava impossível que o farmacêutico se
mudasse. Para ela, sua casa fazia parte das pedras da rua, dos muros,
de tudo o que compunha a inalterável fisionomia do mundo que a
cercava. Não podia conceber o fato de passar ante aquela porta sem
vislumbrar a placa de ferro: “Farmácia São Geraldo”. Nunca soubera o
nome do farmacêutico, mas naquele minuto imaginou que fosse
Geraldo. Entretanto, como o visse ressurgir, ativo, esfregando as mãos
e indo rapidamente de um lado a outro, compreendeu que realmente o
farmacêutico partia. Sentiu-se vagamente irritada e, como no seu
coração alguma coisa antiga, escura e imprecisa a atormentasse,
indagou a si mesma que lhe importava aquilo, se afinal não era um
descanso ficar livre daquela vizinhança. “Mas não, não!”, bradou
dentro dela uma outra voz estranha e autoritária. E Clara se inclinou
um pouco mais, examinando a figura do farmacêutico, a quem não via
há muito tempo. Envelhecera também, os cabelos estavam
completamente brancos, se bem que ainda fosse ágil, como nos
tempos passados. Como naqueles dias em que… E Clara fechou os
olhos durante um minuto. Sabia agora que nunca havia lhe perdoado o
fato de amá-la. E o sabia pela melancolia que sua deserção lhe
causava. Não era ele seu escravo, não devia acompanhá-la para onde
se dirigisse, não devia seguir fielmente a sua sombra? Não cometera
um crime, levantando a vista para ela? Clara reabriu os olhos e julgou
perceber certa alegria nos movimentos do farmacêutico. Dir-se-ia que
ele realizava afinal um gesto pensado durante anos, que saía daquela
rua como quem foge de uma prisão. Uma idéia repentina atravessou o
pensamento de Clara. Foi até à porta da cozinha e chamou Áurea.
— Para quê?
— É verdade sim, ele disse que o negócio vai mal e que já está
muito velho.
4
Só quando atingiu a estrada grande é que Sílvio reparou quanto
pesava aquele silêncio entre ele e Diana. Caminhavam há vários
minutos, e ainda não tinham trocado meia dúzia de palavras. Aliás, a
maneira com que a moça o recebera desfizera muito do entusiasmo
com que ele a fora procurar. Apesar da noite agitada que passara,
certamente não esperava que ao primeiro contato se refizesse o antigo
ambiente de familiaridade, mas também estava longe de esperar
aquele ar surpreso, estranho e vagamente cômico com que Diana o
atendeu. Dir-se-ia que não esperava ver tão prontamente aceito o
convite que lhe fizera na véspera. Examinava-o furtivamente,
procurando surpreender na sua fisionomia alguma coisa que lhe
revelasse a razão daquele interesse. Diana não acreditava nesses
movimentos gratuitos e Sílvio desconcertava-a. Não seria excessivo
afirmar que, desde o primeiro instante, ela se sentira chocada com
esse ar de pureza e tranqüilidade que descansava sobre sua fisionomia,
esse aspecto de extrema mocidade que lhe afastava toda sombra de
malevolência, e que ela jamais havia encontrado nos homens. Além
disto, sentindo-o alheio à maioria das coisas do mundo, tornava-se
constrangida e irritada ao mesmo tempo. Voltando a examiná-lo,
como naquele instante, chegava a pensar que estava perdendo o tempo
com uma criança, detinha-se, pensava em voltar, suspirava de tédio e
fixava-o novamente com indisfarçada melancolia. Sílvio não percebia
muito bem o que se passava, completamente aturdido com a presença
da moça. Ela o dominava inteiramente, subjugava-o até às mais
recônditas fibras do ser. Mas, apesar de tudo, sentiu desde o primeiro
minuto, com essa espécie de segundo sentido que tantas vezes nos
revela a verdadeira essência dos fatos, que Diana era uma criatura
completamente diferente dele e que jamais teria acesso ao mundo em
que ela transitava e que iluminava com seu entusiasmo. Mas o destino
de certos homens é o de se obstinarem ante obras em que jamais
conhecerão a vitória. Assim como havia chegado àquela conclusão,
compreendeu que nenhuma força deste mundo o obrigaria a
abandoná-la. Havia nela um perigo que o atraía. Na verdade Diana
apenas aceitara seu convite para dar uma volta porque era esta sua
única esperança de se ver livre mais rapidamente, e depois porque
ainda não restabelecera contato com a vida agreste que lhe fora tão
recomendada. Ao atingirem a estrada, Sílvio admirou uma vez mais
seu talhe esbelto, que a roupa leve e esportiva realçava ainda mais.
Diana se tinha detido e, saltando o fosso cavado à margem da estrada,
procurava apanhar uma flor azul que irrompia através da cerca de
arame farpado. Quando voltou, estava extraordinariamente pálida.
Sílvio lembrou-se que ela parecia estar doente e indagou por que
motivo escolhera Vila Velha para repouso. Antes de responder Diana
aspirou o perfume da flor e depois, colocando-a nos cabelos, indagou
se ele estava lembrado da pessoa que a acompanhara da outra vez.
— Por quê?
— Mas, em vez disto, por que não vêm vocês comigo? O passeio
à cachoeira é maravilhoso!
— Que maravilha!
— Em todo caso...
5
Apesar dos seus propósitos, Sílvio voltou a procurar Diana
algumas vezes. Mas aquela idéia que passou a dominá-lo só apareceu
na última em que tinha estado com ela, quando fora deixá-la em casa.
Ou melhor, surgira antes, no momento em que se dirigiam à estação.
Ela, que já aprendera a adivinhá-lo em tão poucos dias, só notara
porém o seu silêncio quando lhe estendeu a mão para se despedir.
— Nada.
E depois de um minuto:
6
Nos dias que se seguiram eles andaram sempre juntos. Não era
somente Sílvio quem a procurava, Diana não podia passar sem os seus
conselhos, mesmo para os fatos mais banais e as atitudes mais
insignificantes.
– Você acha que me vai mal este vestido de listas? — dizia ela.
Hesitou e concluiu num tom mais baixo, olhos fixos nos dela:
– Escuta, Diana.. .
– Não sei, não sei, vou pensar! — disse ela com um suspiro.
– Por que você não a traz aqui para jantar? — propôs, afastando
malvas e begônias, a fim de atingir outra roseira mais ao centro do
canteiro.
– Amanhã?
— Mas... Sílvio!
Duas ou três voltas mais e ela explicou o que pensava. Ainda não
decidira nada, era cedo para falar em casamento. E, se tal acontecia,
por que então se preocupar com emprego e outras coisas
desagradáveis? Ouvindo-a, Sílvio percebeu pela primeira vez o que
existia nela de aventureiro e infixado; nenhuma coisa grave, de
importância para a vida simples de todos os dias, chegava a assumir
aspecto real a seus olhos. Diana gostava de divagar sobre as coisas,
aérea, colhendo o mel azul e superficial da existência, apenas
prestando atenção às batidas do seu próprio coração, fechando os
olhos para criar um jogo caleidoscópico com o brilho das lanternas,
aspirando o perfume das flores, sorrindo e dançando. A vida para ela
era realmente uma vertigem — mas uma vertigem de sensações
amenas e atitudes inconseqüentes. Durante um minuto, enquanto
girava, Sílvio desejou ver-se livre daquela criatura que se revelava tão
frívola a seus olhos. Odiou o conhecimento que ia tendo da sua
natureza, mas, como a visse sorrir e fechar os olhos, tonta como um
pássaro perdido no azul, sentiu uma estranha pressão sobre o coração
e atirou a culpa sobre si mesmo: ele é que não devia investigar as
coisas tão a fundo.
– Que resposta?
Ela riu:
– Por quê? Você não é livre, não pode agir como quiser?
– Então?
Sílvio, cujo amor era cada dia mais profundo, sofria à medida
que ia tomando conhecimento desse caráter bizarro. Clara não lhe
dizia coisa alguma, mas o rapaz sentia que no fundo ela desaprovava
essa estéril agitação e temia pelo futuro de ambos. Diana mostrava-se
cada dia mais absorvente, queria saber onde ele tinha estado a tal
hora, o que fizera, se pensara nela, por que não viera mais cedo, se não
podia faltar ao serviço no dia seguinte, a fim de acompanhá-la a um
piquenique. Sílvio fugia a essa cascata de palavras e interrogações
dizendo que não podia, que o seu papel era trabalhar e dedicar toda
atenção ao escritório, se quisesse prosperar nos negócios. Então ela
voltava a se lamentar, olhos marejados d’água, dizendo que ele não a
amava e que ambos haviam cometido um engano. Sílvio protestava,
assustado com aquela sensibilidade exacerbada. Aos poucos Diana
multiplicava suas extravagâncias, queria provas decisivas do amor do
marido, fugia, refugiava-se na casa do padrinho, exigia que ele fosse
buscá-la, indagava de tudo o que ele sentia, se a sua falta fora muito
grande. E, como Sílvio lhe respondesse com certa frieza, ameaçava
suicidar-se, fingia interessar-se pelas maneiras de morrer sem dor,
comovia-se com seu próprio destino, chorava e passava horas em
completo silêncio. Uma vez, irritada com esses despropósitos, Clara
chamou a atenção do filho. Ele respondeu simplesmente que eram
conseqüências da doença de que Diana sofria. Não tardou muito que
outra espécie de preocupação viesse absorvê-la: passou a desejar um
filho, explicou a Sílvio que lhe haviam aconselhado aquilo como
remédio, passava o tempo a idealizá-lo. Sílvio temia que ela não
suportasse tamanha responsabilidade. Mas, obstinada, ela criava em
torno dele uma atmosfera cada vez mais densa, onde existia todo o
maquinismo de uma perfeita situação amorosa, exceto o próprio
sentimento do amor. Nunca se achava bastante bela para o marido,
mandava sempre fazer novos vestidos e “négligés”, todos quase
absolutamente iguais, que se iam amontoando no fundo do guarda-
roupa. Como este gênero de vida acabasse por cansá-la e o filho
cobiçado não desse sinais de vida, passou a ler revistas, detendo-se nas
crônicas sociais, cerrando os olhos e sonhando com uma grande vida.
Via-se nos salões que conhecera outrora, entrando pela mão do
padrinho, aclamada pela sua beleza. Todos se curvavam à sua
passagem, havia cochichos, as mulheres empalideciam de inveja.
Quando voltava desses sonhos, a vida lhe parecia mais horripilante do
que nunca. Odiava aquela casa que julgava muito pequena, escura e
malcheirosa; odiava suas janelas com cortinas de cassa, seu jardim
maltratado e seus móveis escuros e sem graça; odiava Vila Velha, as
pessoas que conhecia, tudo. A vida parecia-lhe uma doença
monstruosa. Voltou aos romances, deparou com heroínas assim
devoradas pelo tédio, imaginou-se uma grande alma destinada a uma
sorte mesquinha. A idéia do suicídio reapareceu com maior força e
incrustou-se na sua alma como um crustáceo ao rochedo. A obsessão
cresceu, acordava à noite pensando no melhor meio de acabar com a
vida; procurou o médico, quis saber quais eram os sintomas da morte
por asfixia, envenenamento ou produzida por arma de fogo. Acabou
decidindo atirar-se na caixa d’água, e uma tarde, depois de ler sua
carta de despedida, ostensivamente deixada sobre a mesa da sala,
Sílvio foi encontrá-la junto à represa escura e profunda, o rosto entre
as mãos, numa crise de desespero. O lodo denso e esverdeado que
percebera no fundo causara-lhe horror. Desorientado, acreditando
naquele drama sem alicerces, Sílvio acabou prometendo que no ano
seguinte iriam para o Rio. Diana se animou e passou a considerar
aquilo motivo suficiente para que não cuidasse de mais nada, medindo
toda a sua vida pelo ponteiro desta recuada e problemática
possibilidade. E a esse respeito se exprimia com tal convicção que
Clara se assustou, interpelando Sílvio a respeito. Ele afirmou que sua
promessa de ir para o Rio só fora feita para acalmá-la. Na verdade não
via nenhuma probabilidade de se mudarem para o Rio. Entretanto
Diana nunca mais mandou fazer vestidos, tornou-se relaxada, vestia-
se mal, não penteava os cabelos, imaginando que nada mais tinha
importância, desde que em breve começaria uma nova vida. Contava
os meses, as semanas e os dias, suspirando, gemendo, queixando-se
incansavelmente do tempo. Voltara a viver debruçada à janela,
olhando a paisagem e conversando com as raras pessoas que
passavam. Dizia a todo mundo que ia regressar ao Rio e chegou
mesmo a comprar algumas malas grandes, onde atirou a maior parte
dos seus vestidos. Ficou apenas com o essencial para se vestir e, como
Sílvio lhe fizesse uma observação a respeito, alegou que ele não
ganhava o suficiente para que ela pudesse estragar suas melhores
roupas naquele brejo. Mas, como o tempo ainda assim custasse a
passar, voltou mais uma vez aos romances, atirou-os definitivamente
de lado e, tendo esgotado assim tudo o que existia dentro de casa,
passou a sair, sob pretexto de ir ao encontro de Sílvio. No princípio
saía como se achava em casa, mas aos poucos foi ganhando interesse
pelo divertimento, voltou a tratar dos cabelos e a vestir-se com apuro.
Agora, quando ia ao encontro de Sílvio, dando longas voltas pela praça
e pelas estradas próximas da estação, levava a mesma sombrinha com
que visitara Clara pela primeira vez. Como estivesse mais bem
disposta do que nunca, sua beleza causava admiração, provocando
murmúrios à sua passagem. Por essa época ela se enfeitava muito e,
como os enfeites lhe fossem bem, assemelhava-se assim, na estrada
deserta e poeirenta, a uma estranha e deliciosa visão a caminho de
uma festa. Aos poucos, no seu esforço para reagir contra Vila Velha e
aquilo a que chamava “sua sufocante opressão”, Diana exagerava,
vestia-se diferente de todo mundo, com roupas brilhantes,
inadequadas, onde era possível discernir qualquer coisa de febril e
alucinado.
– Sim, lá é diferente. Mas não foi você mesma quem disse que
estava vivendo uma vida à parte, como se não estivesse em Vila Velha?
Mas Chico, cuja consciência não lhe doía em nada e que tinha
certos planos em mente, voava cada vez mais rápido.
– Como pode ser tão cruel assim? — disse ele, procurando ferir a
nota exata.
– Oh, bem sabe que vivemos num deserto e que para mim você é
a única companhia que posso tolerar... Há meses que a venho
procurando, desiludido e triste. Vamos, não é isto uma crueldade?
Chico sentiu que era aquela a nota justa e tomou a outra mão da
companheira. Ela não relutou, sentindo uma estranha dormência
subir-lhe pelo corpo. Além disto, aquele ar frio e nebuloso que subia
da cachoeira causava-lhe uma espécie de vertigem. E Chico, tão
próximo já que parecia debruçar a cabeça no seu colo, continuou:
– Você nem pode imaginar como os seus cabelos são belos nesta
sombra! — voltou ele a dizer.
Ela moveu a cabeça, agitando a cabeleira ruiva. Seus olhos
brilhavam de gratidão e desejos contidos.
– Por que não repousa uns dias? — sugeriu ele, sentindo que
aquelas palavras nasciam independentes da sua vontade.
— Não sei, não sei bem o que eu quero. Sinto apenas que não
tenho liberdade, e isto me envenena. Quero viver, preciso sentir que
tenho direito a outras coisas que não estas que me cercam, que para
mim tudo não está terminado ainda.
11
Duas ou três vezes mais Diana se encontrou com Chico, sem que
suas relações ultrapassassem os limites de uma simples e cordial
amizade. Reuniam-se junto à caixa d’água, passeavam a pé ou de
automóvel, trocavam idéias ou delineavam planos para o futuro.
Algumas vezes, percebendo quanto Diana era sincera e com que
extraordinário entusiasmo se entregava a essas divagações, Chico
fitava-a com ligeira ponta de receio. Dir-se-ia que temia ver explodir
dentro dela um perigo insuspeitado. Realmente aqueles olhos verdes e
profundos, aquela face que parecia conter e projetar sobre as coisas a
luz de uma alma atormentada e viva, revelavam uma dessas criaturas a
quem Chico costumava tachar de “cacetes sem remissão”. Tinha
horror às mulheres muito sensíveis. Gostava de dominá-las, usá-las e
abandoná-las depois, sem entraves e complicações. Detestava
demorar-se em casos de solução difícil, fugindo apressadamente ao
sintoma de todo sentimento menos superficial. As paixões eram para
ele sinal de desequilíbrio ou apenas uma “trapalhada”, que resolvia
desaparecendo inesperadamente. Mas, como finalmente nenhum sinal
prenunciasse em Diana um desses incômodos contratempos, e como
sobretudo ele se sentisse ligado a ela por um estranho e sobrenatural
desejo de contrariar a Sílvio, aceitava tudo, sem descer a minúcias.
Mas no fundo já não tinha mais o que dizer à moça — sua alma vazia
estancara seu parco estoque de emoções e agora atravessavam longos
períodos de silêncio, só cortados pelos finos assovios entediados de
Chico. Aquelas longas caminhadas sem proveito começavam a causar-
lhe um mortal aborrecimento. Pouco tempo depois ele já se lamentava
abertamente, encurtando o tempo em que deveriam estar juntos, sob
pretexto de um negócio importante, ou chegando atrasado, sob a
desculpa de mil pequenos detalhes sem importância. Já não conseguia
esconder que achava Diana sem grande interesse. Observava-a e
chegava à conclusão de que ela se vestia mal, usava perfumes muito
fortes e não tinha senso de medida para coisa nenhuma. Alguns dos
seus amigos, possivelmente aqueles a quem mais prezava e admirava,
não hesitariam em classificá-la sumariamente no tipo “histérico”, isto
é, exatamente o tipo de mulher com quem se deve estar sempre pronto
para desaparecer. Vendo-o mais distante e mais silencioso, temendo
perdê-lo sem dúvida, Diana voltava a falar nos seus ideais de “almas
irmãs”, “sonhos comuns” e outras tolices que Chico lançara naquela
tarde apenas para sondar em que terreno devia deixar cair a âncora.
Entretanto, um sopro de paixão parecia realmente animar Diana.
Vendo-a transfigurada daquele modo, Chico se assustava ainda mais,
fitava-a de modo mais incisivo ainda, e admirava-se de que ainda
pudesse existir quem acreditasse naquelas frioleiras. Segundo ele, a
paixão era um mito. E um dia, sob o grande espinheiro da estrada,
junto ao vale que se abria em largas e brancas vagas de penachos
ondulantes, tentou beijá-la. Diana recuou vivamente e protestou de tal
maneira que ali mesmo ele resolveu dar o caso por terminado. Que
estaria ela pensando a seu respeito? Não tinha vocação para andarilho
e nem pretendia escrever poesias. Além do mais detestava essas
conversas de “almas irmãs”. E sentiu-se abalado por uma rajada de
revolta. Mostrou-se frio durante o resto do tempo em que
permaneceram juntos e no momento de se despedir, como Diana
indagasse se ele viria no dia seguinte, afirmou que não podia, pois
tinha um trabalho a terminar. E, vendo-a suspensa às suas palavras,
acrescentou que ia fazer uma curta viagem e que avisaria quando
regressasse. Sem outra explicação arrancou com o automóvel,
deixando-a parada no mesmo lugar, olhos baixos, o coração pesado
ante o pressentimento das duras conseqüências que acarretaria sua
recusa de minutos antes. E, enquanto o carro desaparecia ao longe
numa nuvem de poeira, o mundo pareceu-lhe de repente vazio,
mortalmente vazio. Sentiu-se abandonada e compreendeu que Chico
nunca mais voltaria. A poeira se aquietava lentamente no fundo do
horizonte. Pôs-se a caminhar em direção à casa, olhando as grades que
separavam os jardins bem tratados e onde se aninhavam grandes e
escuras rosas vermelhas. Sua alma estava de novo cheia desse
sentimento de amargura e solidão que ultimamente a visitava com
tanta freqüência. “Sim, nunca mais o verei”, repetiu ela para si
própria, olhos nublados pelas lágrimas. Ao entrar em casa, toda uma
vaga de sentimentos desencontrados assaltou-a e, imóvel, as mãos
apoiadas a uma cadeira, esperou que se amainasse no fundo da sua
alma aquele furioso vento de rebelião. Nunca suspeitara que ali dentro
fosse tudo tão pobre e vulgar. Atravessou finalmente a sala e, no
corredor, passou por Clara sem cumprimentá-la. À hora do jantar
declarou que não tinha nenhum apetite e continuou deitada,
esforçando-se em vão para acalmar aquela dor que parecia se
derramar pelo seu corpo inteiro. Sílvio veio vê-la, indagando se ela não
precisava de alguma coisa. Diana respondeu negativamente, e, como
ele já a conhecesse bem, julgou mais prudente não insistir e se retirou.
As horas se alongaram então para Diana, lentas e cheias de
impenetrável escuridão. Nada mais a interessava, o mundo se diluíra
num imenso deserto. Apesar de tudo, levantou-se no dia seguinte,
penteou os cabelos, vestiu-se de maneira apressada e ganhou a
estrada. Tinha esperanças de encontrar com Chico e pensava em
solucionar tudo. Farta de remoer seus próprios pensamentos durante
a noite, chegara à conclusão de que Chico não a interessava apenas
como “alma irmã”, mas que encarnava para ela uma espécie de ideal.
Além do mais, admirava suas roupas feitas na capital, o carro que
usava, sua maneira de aproveitar a vida e tratar com desdém o resto
do mundo. Para ela, isto significava um modo de se colocar acima de
questões que julgava mesquinhas. Uma vez Chico dissera mesmo que
jamais se resignaria a trabalhar num escritório como Sílvio, e que
sabia de outros meios mais inteligentes para se ganhar dinheiro. Sim,
aquele sabia viver.
– Não — disse Clara —, acho que ainda não são nem onze horas.
Sílvio ainda objetou alguma coisa, mas sem calor, acabando por
abandonar o assunto. Ferida por aquele desinteresse que ela estava
longe de esperar — e ao mesmo tempo imaginava que o filho não
poderia adivinhar o perigo que ela realmente corria —, Clara procurou
compreender o que se passava. Sílvio não conseguia afastar por muito
tempo os olhos de Diana e na sua fisionomia, de ordinário tão límpida,
estampava-se um obscuro sofrimento. “Esta mulher não se cansará de
sugá-lo?”, imaginou Clara. E pensou também que talvez não fosse bom
abandoná-lo naquela circunstância, mas lembrou-se do que o médico
lhe dissera e resolveu não adiar o assunto. Ficaria livre depressa e
voltaria para cuidar do filho. Ao mesmo tempo, como uma nuvem
escura que aumenta até cobrir todo o céu, sentiu invadi-la um surdo
terror à idéia de morrer longe, numa cidade desconhecida, entre
pessoas indiferentes. Ela, que detestava tanto o ambiente de hospitais!
Diana volveu para ele aqueles olhos verdes que Sílvio tanto
amara na sua infância, e onde agora só existia um desespero surdo e
sem nome.
– Sim — continuou ele —, tudo isto precisa acabar. Sei que você
se encontra todos os dias com alguém.
– É Chico?
– Deixe-me!
– Sim, eu o amo.
Mas Sílvio, que era franzino, sentia-se invadido por uma força
sobrenatural. Acertou o outro num dos olhos e, quando este ia se
defender, derrubou-o. Chico agarrou-o por uma das pernas e ambos
rolaram na lama, lutando sempre em silêncio, ferozes, como duas
bestas selvagens. Sílvio não poderia dizer quanto tempo tinha durado
aquilo. Sentia apenas que uma força estranha lhe conduzia a mão e
aplicava golpes cegamente, sentindo que às vezes feria a lama e outras
o adversário, em cheio, arrancando-lhe gemidos e pragas. Da luta fria
que se iniciara, o combate aqueceu e em breve se tornou violento,
rolando os dois homens até o leito da estrada de ferro. Não tardou
muito para que Chico, sentindo a lama escorrer-lhe pelos olhos e pela
boca, compreendesse que não lhe seria possível dominar o adversário.
Apesar da sua força — naqueles últimos tempos tão aperfeiçoada em
treinos e ginásticas — o outro ganhava-o em agilidade. Procurou então
escapar, agarrando-se aos arbustos, aos dormentes e até mesmo ao
ferro do trilho — mas o cego furor de Sílvio ia procurá-lo de novo e ele
regressava ao ponto de partida, inutilizado. Certa vez conseguiu
arrimar-se a uma touceira e levantou-se a meio corpo, esperando
fugir, mas Sílvio atracou-se de novo com ele e voltaram a rolar sobre
os trilhos, sujos e ofegantes. Enquanto batia o companheiro, Sílvio
compreendia ao mesmo tempo que não lutava apenas por Diana, mas
por fatos mais antigos, por Esperança, por Camilo, por tudo o que
Chico sujara e corrompera. Na sua febre, julgava mesmo entrever a
face de Camilo, aquela face infantil e resignada que parecia dizer ao
seu algoz: “Bata-me, nada lhe acontecerá se o fizer, aqui estou para
isto.” E ele vingava assim o seu passado, até que o outro, vencido,
permaneceu imóvel sobre a lama. A chuva parecia ter cessado, um ou
dois vagalumes apontavam na escuridão. De joelhos, Sílvio enxugou o
rosto, arquejante. Contemplou o homem deitado, sacudido por uma
respiração pesada, como se estivesse adormecido. Havia nele uma
claridade estranha, como a que se irradia da face de um anjo abatido
sob implacável castigo.
— Vem do Rio?
15
Clara queria aproveitar a manhã para tratar do jardim, mas
Sílvio viera procurá-la e, como ainda não tivessem tido oportunidade
para conversarem a sós, abrigaram-se sob o pé de acácias. As últimas
chuvas haviam carcomido o banco e este ameaçava ceder, motivo pelo
qual o rapaz, a fim de permitir que a mãe ocupasse a melhor posição,
sentou-se sobre uma pedra ao lado, apoiando-se no tronco da árvore.
Clara nunca o vira tão carinhoso. Parecia até mesmo que tinham
regressado aos antigos tempos, quando Diana ainda não aparecera e,
juntos, conversavam sobre romances e coisas da vida. Mas,
observando a fisionomia do filho, ela se sentia inquieta, achava-o
excessivamente pálido, nervoso, torturado por idéias e problemas que
se esforçava por ocultar. E Clara adivinhava tudo, vendo-o tão
silencioso ao lado de Diana, olhos baixos, como se fugisse a uma
explicação. A si mesma ela perguntava: ele ainda a amaria com a
mesma intensidade? E, à força de observar ambos, chegara à
conclusão de que uma transformação importante se produzira na sua
ausência. Aliás, desde que ela penetrara em casa sentira ruir todos os
seus planos: havia ali dentro qualquer coisa hostil e pegajosa que
inutilizava todo ato de boa vontade. Não era uma simples atmosfera de
incompreensão, mas algo de mais profundo e fundamental, o sopro da
própria desgraça consumada. Na mesma noite vira Diana passar junto
dela, abatida, os olhos dentro de dois círculos escuros. Seus
movimentos eram automáticos como os de uma pessoa adormecida.
Clara sentiu que ela estava diante de alguém que caminhava
abertamente para o abismo, uma pobre alma que rejeitava toda
espécie de salvação. Pela primeira vez teve pena da moça — e a sua
piedade se acentuou, quando ouviu, através da porta fechada, o rumor
de um pranto abafado. Sílvio, que entrara pouco depois, ao olhar que a
mãe lhe dirigiu, ergueu os ombros. E, indo colocar-se distraidamente à
janela, parecia querer indicar a Clara que daquele lado já não havia
nenhum recurso a tentar. Assim mesmo logo se levantou e aproximou-
se dele, sem indagar coisa alguma. Sentia apenas que sua proximidade
lhe faria bem. Foi o próprio Sílvio que, abaixando a cabeça, contou-lhe
tudo o que se passara na sua ausência. Clara ouviu-o sem dizer palavra
e, depois, pretextou que era muito tarde e que no dia seguinte
continuariam a conversa. Na verdade apenas queria ganhar tempo
para meditar sobre o sucedido. Já agora, não podia evitar a enorme
piedade que sentia por Diana — e, indo de um lado para outro, cabeça
baixa, indagava qual o melhor meio de auxiliá-la. Não era possível
abandonar uma pessoa sozinha naquele transe. Diana se assemelhava
a um pássaro perdido, com as asas molhadas e arrebentadas pela
tempestade que se abatera de repente.
– Por que se casou ela comigo? Por que, se devia fazer tudo isto
depois?
– E então?
– Perdida?
– Sim, que o seu mal não tivesse cura e que ela não pudesse
viver noutro lugar.
Neste momento, sentiu que suas mãos tocavam uma parte dura,
artificial, como se metade do corpo de Clara tivesse sido convertido em
gesso. Tateando-a, Sílvio compreendeu então que ela tinha retirado
todo aquele lado, e o seu espanto foi tão grande que deixou escapar um
grito abafado. Era como se uma parte da própria Clara já tivesse
morrido, uma parte que ele conhecera, que beijara talvez, algo que já
não existia mais, como dentro em pouco não existiria mais nada.
Depositou-a na cama, os olhos embaciados pelas lágrimas.
16
Dois dias depois do enterro de Clara, sentados na sala vazia e
triste, Sílvio e Diana conversaram. Ela se tinha abatido muito nestes
últimos dias; além disto, o vestido preto que usava acentuava ainda
mais a finura quase imaterial dos seus traços. Sílvio examinava-a e em
certos momentos parecia não a reconhecer — é certo que naquela face
lisa, sem pintura e com os cabelos repuxados para trás, havia certa
beleza, mas era uma beleza diferente, dura, a beleza de uma mulher
que toma o partido da vida contra a vontade de Deus. Apesar de tudo,
os traços da antiga Diana não haviam desaparecido, até os olhos
pareciam maiores, ardendo sobre a face pálida com um brilho
singularmente sereno.
— Por quê?
— Sim, eu sei disto, sei de mais até. Não há remédio para mim; o
meu único caminho é o da solidão.
Assim tudo estava terminado, sem que nada mais tivessem para
dizer um ao outro, vencidos, sem nenhum consolo além daquele
irremediável silêncio que parecia submergi-los. Mas não, alguma coisa
ficava: Sílvio ainda queria guardar uma derradeira imagem, uma
última visão, como quem tenta arrebatar do naufrágio o olhar de
adeus da pessoa prestes a desaparecer. Queria mais uma vez vê-la tal
como a via agora, sentada, as mãos pousadas sobre os joelhos, toda de
negro, o sol ardendo num último reflexo sobre os seus cabelos. Já
havia nela qualquer coisa de morto, uma atmosfera antiga e
sobrenatural, como a que contemplamos em certos retratos do
passado. Toda vida parecia ter desaparecido da sua face, assim como
todo desejo, toda secreta inspiração, todo tumulto, os fantasmas e os
desesperados anseios: ela nada mais era senão um espírito aquietado
pelo sofrimento, e era assim que ele queria revê-la mais tarde, quando
tentasse reviver a tormenta desta fase da sua vida. Teria ela
compreendido tudo o que havia significado para ele? Decerto não, pois
aqueles a quem mais amamos nunca penetram na obscura realidade
em que vivemos, nesse país de treva e sofrimento, nesse mar de
nostalgia pela imagem que nos obseda. “Sim”, dizia ele a si próprio,
“nem de longe esta mulher poderá saber quanto eu a amei. Ela tem
razão, eu a destruí, eu a arranquei do seu mundo como se arranca uma
planta da terra mole. Por causa dela teria feito tudo, fui seu escravo,
teria matado, abandonado os meus e renegado a Deus. Não se ama
desta maneira senão uma só vez na vida, e também eu, de agora em
diante, serei uma criatura semimorta.
– Por quê?
– Tenho uma tia doente que precisa de mim. Sei que agora você
está livre e já não precisa dos meus cuidados.
17
O vagão estremecia de modo violento como se, chegando o fim
do dia, o trem fizesse um derradeiro e desesperado esforço para atingir
o seu destino. No ambiente esfumaçado e sujo, cabeças sonolentas
rolavam no dorso dos bancos, enquanto ao fundo, junto à porta,
sacudida em longos e pesados estremecimentos, uma criança chorava
convulsivamente. A mãe tentava sossegá-la, balançando-a nos braços
— e do lugar onde estava sentado Sílvio distinguia apenas aquele
monte de flanela cor-de-rosa que gritava e esperneava. Mas às vezes
tudo se confundia aos seus olhos, um nevoeiro espesso, irreal,
aglutinava na mesma densidade cinza o invólucro cor-de-rosa, a
lâmpada presa no alto, os capotes nos cabides e as faces mais
próximas. Sílvio fechava definitivamente os olhos, sentindo pesar-lhe
sobre o coração um estranho e doloroso sentimento de inquietude.
Tudo o que fizera parecia-lhe então uma loucura, a razão fugia
misteriosamente dos seus atos, suas decisões se apresentavam como
gestos confusos, vagos e irreais. Com o espírito vazio, sem conseguir
sufocar aquele sentimento de inutilidade, procurava esquecer o lugar
em que se achava, dormir um pouco. A si mesmo, perguntava quanto
tempo ainda duraria a viagem. Quando reabria os olhos, via de novo a
vidraça descida, abalada pelo fragor do carro em movimento. O
ambiente sufocava-o; agitava-se, voltando a examinar com olhos
vermelhos e ardentes o mundo estremunhado e sujo que o cercava.
Faces gordas, vermelhas e suadas sucediam-se em fila regular e
oscilante, até perder-se no fundo da porta envidraçada, como no fundo
de um lago enfumaçado. Não resistindo mais, ele abaixou
bruscamente a vidraça: o campo surgiu imenso, adormecido na
sombra, uma onda de ar frio varreu a atmosfera morna do vagão.
Faúlhas brotavam do leito da estrada, dançavam um minuto junto à
janela e iam morrer ao longe, sobre as touceiras de capim. De vez em
quando, numa visão rápida, uma ou duas casas emergiam de repente
da escuridão, juntas, solitárias, iluminadas por uma luz fumarenta e
triste. Mas o trem as devolvia de novo à escuridão e o deserto voltava a
dominar, coalhado de vagalumes que se alastravam sobre a vegetação
rasteira. Não raro a máquina apitava surdamente e todo um povoado
surgia, fábricas apontavam, chaminés de usinas, luzes que a distância
parecia tornar mais débeis. O trem diminuía a marcha, suspirava
longamente, detinha-se aos poucos, vencido afinal nessa corrida que
durava desde o amanhecer. O ruído de ferros morria, enquanto vozes
se elevavam na estação. Bandos de moças e rapazes ofereciam, numa
voz gritada e aflita, bandejas de bolos e copos com limonada. Um
cheiro forte de café impregnava a estação. Novo apito surdo e, com um
profundo estremecimento, o trem se punha em marcha. O carro
deslizava junto à caixa d’água, de onde pendia um grosso tubo de
borracha que ainda escorria. A pequena estação ia desaparecendo no
silêncio da noite e o campo reaparecia solene, impenetrável, aberto em
soturnos brejos onde os sapos coaxavam. Sílvio voltava a fechar os
olhos, sentindo que o pesadelo se apoderava da sua consciência.
Sim, este rapaz abrigado junto à janela, enrolado num capote
escuro e com a cabeça inclinada a fim de não ver os outros passageiros,
esta criatura franzina e tímida seria realmente ele? Teria realmente
deixado Vila Velha, não era aquilo apenas um sonho, tivera forças para
tanto? Mas aquele coração desconhecido e atormentado não o
enganava, há muito estava acostumado a conhecer-lhe todas as
batidas, a distinguir as menores nuances da sua alegria, das suas
tristes, rápidas e humildes alegrias. Era realmente a ele que pertencia
aquela área devassada nos seus mínimos segredos. E, coisa curiosa,
quanto mais se aproximava do Rio, menos distante sentia o lugar que
vinha de abandonar, onde nascera, crescera e aprendera a conhecer o
mundo. Como que a distância tornava essa imagem mais forte, mais
nítida, devolvendo-a afinal isenta da neblina com que sempre
vislumbramos as coisas que nos são mais próximas. Vila Velha se
achava revelada e definitivamente cristalizada na sua consciência,
como algo irremovível, eterno, como se fosse parte dele mesmo, dos
seus sentimentos, talvez ele próprio.
Mais uma vez o trem apitou, e Sílvio viu uma fieira de luzes que
surgiam na escuridão. Eram os subúrbios do Rio, a viagem se
aproximava do seu término. Qualquer coisa obscura agitou-o, seu
coração pôs-se a bater com pancadas mais fortes, enquanto ele se
debruçava, a fim de ver melhor o lugar a que chegavam agora. Casas se
amontoavam umas sobre as outras e, de vez em quando, no meio das
suas sombrias fachadas apontava a face iluminada de um cinema.
Uma fieira de lâmpadas coloridas balançava-se ao vento. Nas
esquinas, um lampião solitário espalhava uma luz arroxeada. A cada
um desses detalhes, Sílvio murmurava: “É o Rio”, não com o interesse
de quem vê a cidade pela primeira vez, mas como quem descobre
finalmente uma imagem perdida há muito, um rosto esquecido e
apesar de tudo cordial e familiar. Pois era de Diana que ele ainda se
lembrava, não a Diana que deixara em Vila Velha, mas a que perdera
um dia — não a criatura inconseqüente com quem se casara, mas
aquela que vira pela primeira vez no carrossel, sua primeira
namorada. Sim, apesar de tudo, aquela imagem ainda estava viva
dentro dele, viva como no primeiro instante, quando no carrossel ela
inclinara a cabeleira que voava ao vento. Qualquer coisa enorme se
dilatou na sua alma — algo subsistia, uma pequena e sagrada parcela
escapava à fúria da morte. À medida que se aproximava do Rio,
parecia-lhe ouvir de novo a voz da companheira, denunciando na
paisagem desconhecida semelhanças com os lugares outrora tão
amplamente descritos. Era assim que aquela casa de fachada
vermelha, aquele jardim de luzes espaçadas, as chaminés altas e até
mesmo os vultos dos transeuntes, tudo trazia à memória de Sílvio a
imagem de Diana, não uma imagem fragmentada, mas uma criatura
afinal, sem parcelas na sombra, sem fugas, sem mistérios na vida
passada. E, ao penetrar finalmente nesse terreno que lhe fora roubado
durante tanto tempo, sentia a figura ideal levantar-se dos seus
próprios escombros, eterna, inflexível, não mais encarnando o fracasso
de uma união impossível, mas como o símbolo intangível da mulher
que nos foi destinada, que procuramos sempre e não encontramos
nunca. “Não tentei colocar muito alto um ídolo que não merece”,
pensou ele, reportando-se a fatos antigos. “O meu erro foi ter tentado
fazer baixar do alto um ídolo que não pode viver entre os homens.”
Agora, ele a possuía como sempre devia ter sido: uma visão, um sopro
inspirador, alguma coisa de muito puro e frágil, acima de nós mesmos,
dos nossos erros e das nossas paixões, livre da destruição imposta pelo
tempo. Só desse modo a imagem da mulher podia durar em nossa
alma, não visível, presente e mortal às lutas da vida, mas como o
próprio símbolo do amor, alto e melodioso como uma música
sobrenatural.
Seria apenas uma ilusão? Sílvio sabia que não podia viver sem
criar dentro de si a imagem de alguns deuses terrenos e insuflar-lhes
alguns sentimentos que julgava imprescindíveis à existência sobre a
terra. Ele sabia disto e tinha a impressão de que alguma coisa se
salvara do imenso naufrágio. Experimentava a si próprio e duvidava
ainda. E, enquanto o trem penetrava ruidosamente na gare cheia de
gente, lançou um derradeiro olhar à estrela que ficava ao longe, alta,
solene, brilhando azul no imenso silêncio da noite. Fazia isto como
quem sonda o futuro, à procura de uma força qualquer que o
auxiliasse a enfrentar o que ainda lhe estava reservado. E
compreendeu que não se enganava e que uma luminosa imagem
existia no fundo da sua alma. Calmo, descia de novo à luta,
procurando preservar dos homens o seu grande segredo.
Table of Contents
1.
DIAS PERDIDOS
2.
Primeira parte
3.
1
4.
2
5.
3
6.
4
7.
5
8.
6
9.
8
10.
9
11.
10
12.
11
13.
12
14.
13
15.
14
16.
15
17.
16
18.
17
19.
Segunda parte
20.
1
21.
2
22.
3
23.
4
24.
5
25.
6
26.
7
27.
8
28.
9
29.
10
30.
11
31.
12
32.
13
33.
14
34.
15
35.
16
36.
17
37.
Terceira parte
38.
1
39.
2
40.
3
41.
4
42.
5
43.
6
44.
7
45.
8
46.
9
47.
10
48.
11
49.
12
50.
13
51.
14
52.
15
53.
16
54.
17