Lúcio_Cardoso_Dias_Perdidos-1

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DIAS PERDIDOS

Primeira parte
1

A mãe suspendeu o recém-nascido junto à janela e um raio de


sol bateu em cheio no seu rostinho de um rosado quase transparente.

—Vem ver, Jaques, vem ver os olhos dele como são azuis!

O pai se aproximou, inclinando-se sobre o ombro da


companheira. Durante um minuto examinou as pupilas da criança,
onde ainda pareciam descansar as derradeiras sombras de um mundo
invisível.

—Não são azuis, Clara, são cinzentos, você não está vendo?

E, como o marido continuasse a afirmar que eram de cor cinza,


ela embrulhou o pequeno num xale, apertou-o, refugiou-se com ele no
quarto ao lado. Do lugar onde estava, Jaques ouviu-a cantarolar,
passeando de um lado para outro, tentando adormecer o filho. Então,
todas as suas inquietações se desfizeram milagrosamente e ele se
inclinou à janela com um suspiro de alívio.

Sim, já não havia motivos para receios. Clara se achava


inteiramente absorvida pela criança. Dir-se-ia que esquecera até
mesmo as antigas disputas, os rancores, os prantos, os amuos que
muitas vezes duravam dias e dias. Sim, agora podia partir. Já não
sentia nenhum temor daquela casa, pois compreendia que dentro em
breve estaria livre das suas ameaçadoras paredes. E lá fora
reencontraria a liberdade que tinha perdido há tanto tempo, os sítios
que amava, as estradas largas batidas pelo galope surdo do cavalo.
Nascera para o sertão e para a sua vida agreste. Um estremecimento
percorreu-lhe o corpo — e naquele minuto, debruçado sobre a rua
vazia, sentiu renascer-lhe no sangue aquela mesma doida alegria que
lhe davam o espaço aberto e a perspectiva da aventura. Ao lado, o
canto da mulher ia desaparecendo como um fio d'água que se perde na
obscuridade. E mais uma vez, para se assegurar da sua decisão, ele
repetiu que nada mais poderia conceder à sua mulher e que nada mais
ela poderia desejar, além de uma criança: isto era o fundamento do lar
e ao mesmo tempo esse grão de eternidade que une duas vidas. Agora
sim, poderia ir para onde quisesse, poderia ganhar o sertão, demorar-
se dois, três anos… Dois, três anos, depois daquele longo cativeiro que
durava desde o seu casamento… Clara se resignaria, cuidando do filho,
que se tornaria o alvo das suas atenções. Ele não sabia, mas o seu
alívio vinha daí, dessa certeza de que já não era o objeto do mesmo
interesse, que poderia afinal respirar com mais liberdade. Pois
secretamente Jaques odiava o matrimônio.

Tinha sido um casamento de amor. Ele era um homem de


sentimentos fortes, mas também, como quase todas as pessoas dessa
natureza, de sentimentos rápidos. Tudo o que o tocava era
profundamente — mas sem durar muito tempo. Como não tinha de si
próprio um conhecimento muito grande, geralmente julgava
duradouras sensações e atitudes passageiras. Na realidade ele não
amava senão o que era exatamente efêmero, as corridas a cavalo, que
extenuam e favorecem uma emoção rápida, os amores sentimentais e
sem grande realidade, o encanto furtivo e a euforia da vida. Por isto é
que se enganara tantas vezes, comprometendo-se em aventuras para
as quais não podia garantir a fidelidade do seu coração. Por isto é que
cometera tantos erros, sem jamais conseguir se convencer de que tinha
nascido para as grandes aventuras, para os empreendimentos que
exigem força e audácia — e não para o calmo usufruto de sentimentos
a que não podia emprestar uma duradoura fidelidade. Quando
criança, a sua atenção se fixava de preferência nas narrativas de
guerreiros e de homens que tinham atravessado grandes perigos. O
seu livro de cabeceira era um almanaque de aventuras em que
sobressaía a história do naufrágio da corveta “Argus” e do salvamento
da tripulação pelo capitão Simpson. As suas brincadeiras eram sempre
violentas e a sua ferocidade fascinava os outros meninos. Em todas as
ocasiões era sempre o rei, o chefe — e dos outros, mais do que
amizade, exigia de início completa submissão. Mas apesar de tudo era
sentimental e, bastante susceptível ao encanto das mulheres, não
desprezava a sua fama de rapaz mais bonito do lugarejo. As suas
aventuras eram numerosas, fizera a infelicidade de várias raparigas
que por ele se tinham apaixonado. De todas levara alguma coisa — um
beijo, um carinho, um retrato que nunca mais olhara, frágeis
testemunhos de figuras que tinham aparecido na sua estrada, brilhado
um rápido minuto à sua passagem, retornando depois à escuridão,
como se dele tivesse vindo a vida que as alimentara um segundo.

E Clara tinha aparecido. No princípio tentara lutar,


compreendendo que aquele homem era mais forte do que ela e que
acabaria por submetê-la. Mais do que isto, porém, sentia-se advertida,
pela sua poderosa intuição feminina, de que se achava diante de um
desses raros seres a quem a vida concede uma espécie de título
nobiliárquico, criando em torno deles essa aura de mistério e
inquietação, de paixão e perfume — seres que são como luzes
repentinas que se acendem, iluminam, aquecem e desaparecem
depois, deixando após si o silêncio e as trevas. Além disso, Clara era
orgulhosa e mais inteligente do que as outras. Mas viviam numa
cidade pequena, encontravam-se nos bailes, dançavam ao som das
sanfonas, um pouco embriagados pelos perfumes da noite, pelas luzes,
pela própria mocidade. Como resistir mais tempo como fugir àquela
doce obsessão? Jaques, os seus cabelos negros, os seus olhos
brilhantes não lhe saíam da memória. Cedera às suas palavras, que no
momento pareciam sinceras. E eram — apenas não o seriam sempre.
Tinham se casado. O pai de Clara, a fim de que o casal não
abandonasse Vila Velha, onde sempre tinham vivido, lhes dera aquela
casinha no fim da rua, com grades cheias de trepadeiras, janelas azuis
e um quintal grande, onde as mangueiras deixavam uma sombra
protetora. Não durou muito tempo aquela felicidade. Clara
compreendeu logo que viria a época em que não mais poderia reter o
marido. Dera para surpreendê-lo suspirando, olhando a rua
empoeirada onde os caboclos transitavam. Observara depois que ele
passara a relembrar histórias antigas, trechos da sua vida em que fora
feliz, lugares que tinha conhecido. E ela compreendia bem que tudo
isso se referia à sua vida antiga, e era um lamento pela liberdade
perdida, uma acusação encoberta e, ai dela, até mesmo uma vaga
ameaça. Todo ele respirava uma surda nostalgia. Então ela se
revoltara: não cederia, não permitiria que ele a abandonasse, que
fizesse com ela o mesmo que já fizera com tantas outras… Mas bem no
íntimo possuía a certeza de que mais cedo ou mais tarde tudo seria
consumado. Enquanto não chegava o dia temido, multiplicava os
argumentos, as astúcias, as disputas, tudo enfim de que podia lançar
mão para o combate desigual. Pois ela começava a compreender
também que não era possível sufocar determinadas coisas na natureza
de certos homens. A idéia do filho fora a última que lhe ocorrera. No
princípio tivera a impressão de que estava obtendo bons resultados,
Jaques se interessava, cercava-a de cuidados, queria saber a todo
momento se estava se sentindo bem, vivia imaginando coisas para
distraí-la. Clara observava tudo com secreta ansiedade, o coração
batendo em surdas pancadas. No íntimo, o seu alarme continuava:
seria possível que ele se deixasse enganar por semelhante artifício? E
quando o marido vinha se colocar a seu lado, oferecendo-se para ler
em voz alta uma história ou as notícias do dia — essas atrasadas
notícias do interior —, ela se inclinava amorosamente e dizia baixinho,
como se fizesse uma promessa: “Jaques, vai ser um homem, você verá
que vai ser um homem!” Ele ria, dizia que não duvidava disto, que
seria um homem valente, um guerreiro, uma espécie do capitão
Simpson da sua infância. Clara se encolhia, remoendo a sua felicidade.

E fora um homem. Inclinado sobre o berço, Jaques ouvia os


nomes que a mulher propunha. Porque não Carlos Magno, ou
Marcelo, ou Dagoberto? Lembrava-se de um romance em que o herói
se chamava Alcione. Jaques, entretanto, nada respondia. Na sua
memória, naquele instante, desenhava-se a figura de seu pai, que fora
também um homem difícil e que ele, Jaques, jamais compreendera.
Ah, como se lembrava, como se lembrava dele naquele momento, de
que maneira lúcida e terrível! Tinham se separado inimigos e nunca
mais se tinham visto. Mas, debruçado sobre o recém-nascido, era o
vulto curvo que ele revia, as mãos ásperas e trabalhadas pelas mais
cruas emoções da vida pousadas no rebordo da janela, os olhos fixados
na distância — tal como ele próprio naquele instante em que a vida
misteriosamente parecia se repetir. E não tinha sido isto que os
separara, não fora essa semelhança que jamais haviam perdoado um
ao outro? E, cedendo a um impulso que vinha das profundezas do seu
coração, disse que o pequeno teria o nome do avô. Clara procurava se
opor, um nome que não significava nada para ela! Mas Jaques,
teimando, repetira: “Há de ser Sílvio, como o avô.” Clara custara a se
acostumar com aquele nome, repetia-o a todo instante, achando-o
vazio, sem expressão, sem realidade alguma. Mas aos poucos fora
achando nele um encanto particular, um brilho que estava menos nas
suas pobres sílabas do que nas longínquas reminiscências do passado
do marido, passado que ela conhecia tão pouco e que às vezes lhe dava
um ciúme tardio e doloroso. Não tardou muito que fizesse outra
descoberta. É que o filho pertencia somente a ela, como um dom,
como um presente, mas jamais como um elo que devesse impedir a
inevitável e cada vez mais próxima separação. Aquilo atingiu mais
fundo que ela própria esperava. Jaques não indagava pelo pequeno,
não queria saber se ele estava bem, ou se precisava de alguma coisa —
era dela que ele desejava ter informações, era pela sua saúde que
perguntava, se estava contente, se precisava ainda de alguma coisa.
Então, silenciosamente, ela sentiu o perigo mais próximo do que
nunca. Ali estava, diante dela, pronto para devorá-la com tranqüila
ferocidade. O seu terror não teve limites. Conhecendo que afinal
perdera a partida, procurou defender-se, refugiando-se na criança,
procurando desviar para o pequeno ser todo o afeto que lhe
transbordava na alma. Lutou durante dias e dias, voltada para a frágil
vida que nascera da sua, debruçada sobre a sua respiração, tentando
identificar-se com ela, de maneira tão profunda quanto aquela que ele
vivera nas suas entranhas. Bem cedo, entretanto, começara a
compreender que semelhante plano arrastava-a a maiores distâncias
do que desejava, como essas correntezas que nos enganam ao primeiro
relance e nos atiram mais longe do que esperávamos. No seu coração
principiara a nascer uma obscura repugnância por aquele filho que
tanto desejara, como se fosse ele o culpado de todos os seus males.
Mas Clara era uma natureza simples, educada segundo o rígido
sistema cristão de sua mãe. O horror pelos seus próprios sentimentos
obrigou-a a voltar à razão. E mais uma vez a luta renasceu.

Naquele dia, quando o pequeno Sílvio adormeceu e ela


regressou à sala, Jaques continuava debruçado à janela. Sem saber por
que, vendo-o de costas, ela sentiu de repente que alguma coisa de
grave se tinha passado.

— Jaques… — murmurou.

Ele se voltou bruscamente, como se tivesse sido surpreendido


numa falta. Aproximou-se, deixou-se cair numa cadeira, convidando a
mulher a fazer o mesmo. Ela imitou-o, sem resistência. Mas, no
simples modo pelo qual ele levantara a mão, pressentiu alguma coisa
nova, gelada como uma traição. Como o marido deixasse se absorver
de novo por uma idéia qualquer, fechou os olhos, sentindo que não
teria forças para resistir à luta que se aproximava. Seria sempre assim
— mais tarde, somente mais tarde, ela se arrependeria do que tinha
concedido naquele minuto. Mas já não haveria tempo para fazer mais
nada.

– Clara, você não ficará zangada...

A voz era a mesma que ela esperava. Admirou-se até de que as


palavras fossem aquelas, tão banais se tinham tornado no seu
pensamento, à força de repeti-las como as únicas possíveis.

– Não, meu bem, pode falar.

– Se eu partisse... se eu fosse embora... Espere, não vá se


aborrecer, por enquanto ainda são planos!

Clara teve vergonha de amá-lo tanto. Murmurou baixinho, o


rosto inclinado para que ele não visse a sua humilhação:

– Não, Jaques, não ficarei zangada. E, depois, tenho o meu filho.

Não era isto o que ele esperava? Não tinha ela dito tudo,
segundo o papel que lhe estava reservado há tantos meses? E de súbito
ela descobriu que nada mais era na vida daquele homem senão uma
simples sombra. E essa descoberta como que colocou sob uma luz
mais forte, mais impiedosa, as longas e dolorosas raízes que o
prendiam à sua própria vida.

E o tempo tinha corrido. Ali estava ela agora, na mesma janela


em que Jaques costumava se debruçar, remoendo os seus
pensamentos, sem encontrar solução para coisa alguma. Depois da
partida do marido, recebera apenas duas cartas — uma, longa, falando
na sua saudade, fazendo recomendações, aludindo ao desejo de
regressar em breve, mas também na necessidade de ganhar alguma
coisa, de lutar pela vida. Não era possível a Clara enganar-se com o
significado desses lugares-comuns. A outra era um simples bilhete
dizendo que estava bem e que embarcaria dentro em breve para outro
lugar, onde se ofereciam melhores oportunidades. Ela amarrotara o
bilhete, nem sequer se lembrara mais do nome da cidade. De que
valeria conservar aqueles nomes na cabeça, se ele na verdade não se
deteria em nenhuma, se continuaria sempre a sua jornada como se
uma ameaça qualquer o perseguisse? E naquele momento Clara odiava
o conhecimento que tinha do próprio marido. De outro modo, talvez
pudesse se enganar, talvez pudesse acreditar que ele voltaria um dia,
que não poderia esquecer totalmente a época em que tinham vivido
juntos. Poderia talvez imaginar o que tantas imaginam, que ele jamais
encontraria sossego nos braços de outra, pois o segredo de torná-lo
feliz só ela o possuía. Mas obscuramente ela conservava a intuição de
que era essa felicidade mesma que ele odiava. Nada justificava a sua
partida, nenhum gesto, nenhuma incompreensão, nenhuma disputa. E
agora ela estava sozinha naquela casa, com um filho pequeno, sem
ouvir voz humana durante dias seguidos. Era isto o que a revoltava.
Por que é que devia permanecer fiel e aguardar, quando ela também
podia possuir as suas inclinações e os seus desejos? Vinha-lhe uma
revolta imprecisa, adivinhando que o papel da mulher era inferior ao
do homem. Ele não precisava de todo aquele artifício para reter uma
criatura junto de si, ele não tinha essa necessidade sufocante de sentir
um ser aprisionado à sua vida, como era a sua própria necessidade,
como era a necessidade vital de tantas que tinham criado um lar e
isolado esse lar do resto do mundo, como se o mundo fosse uma
ameaça para esse retiro fechado. E a sua revolta já não permanecia
apenas na superfície da consciência, criava formas, patenteava-se
pouco a pouco no seu modo de viver e nos hábitos que ia adquirindo.
Já não arrumava a casa como nos primeiros tempos, descuidava-se
dos objetos que tanto lhe tinham custado, deixava as plantas morrer à
míngua d’água, passava dias inteiros sem abrir as janelas. Os móveis
iam adquirindo uma cor mofada, vagamente gordurosa, enquanto as
plantas secas, devoradas pela soalheira, minguavam lentamente nos
vasos esturricados. Uma ou outra amiga dos tempos antigos aparecia
de vez em quando, tentando quebrar a monotonia daquela vida
solitária. “Clara, que é que você tem?” Ela ria, pretextava uma dor de
cabeça, um mal cujo tamanho exíguo não concordava com a
exorbitância das conseqüências. E no fundo Clara desprezava um
pouco as companheiras, fugindo delas porque falavam a respeito de
cortinas, de tecidos que tinham chegado de fora, de coisas que para ela
já não tinham nenhuma importância. Na realidade fugia apenas da
imagem do que tinha sido, porque naquela época ainda não conhecia
Jaques. O marido dera-lhe uma espécie de segundo nascimento. Tudo
o que conservara do seu tempo de solteira era porque servia a ele, e
tudo o que não lhe servia ela rejeitava com obstinado desdém. A si
mesma, agora que Jaques não estava mais presente, indagava para que
vestidos novos, para que cuidar da casa, se nenhum interesse
encontrava naquilo? Por que é que os homens também não se
humilhavam tratando de coisas idênticas? E a cada dia que passava
mostrava-se mais relaxada, com os vestidos sujos, os cabelos
despenteados, numa indiferença que atingia os limites da aberração.
“É o filho”, diziam aqueles que a tinham conhecido antes e que não
compreendiam agora a origem da transformação. Mas se a vissem em
casa, acalentando a criança, não ousariam reafirmar tal coisa, pois ela
fazia tudo com a indiferença de uma autômata. Não que lhe faltasse o
instinto maternal, ou pelo menos o que Clara julgava como tal coisa.
Levantava-se de noite, preocupava- se em saber se o pequeno estava
bem agasalhado — eram frias aquelas noites de junho —, cuidava da
sua alimentação, fervia o leite, penteava-lhe os cabelos crespos. Mas
tudo isto sem calor, sem entusiasmo, com a minúcia e a apatia de
quem cumpre trabalhos forçados. Na realidade, o filho ainda não
existia para ela. No afã de encontrar um culpado para a sua
desventura, sem ousar lançar tudo sobre os ombros do homem que
amava, acusava instintivamente a criança. Se não fosse ela, Jaques
ainda não teria ousado partir, estaria ali gemendo, lamentando-se é
verdade, mas prisioneiro da sua existência. Algumas vezes ela sentia o
vislumbre de uma dúvida — poderia escravizar alguém, seria humano
conservar um homem daquele modo junto de si? E, perturbada,
exclamava cheia de horror: “Não, não!” Imaginava a situação inversa,
ela própria presa a um homem que não amava. Jamais toleraria
semelhante situação. Mas por que desejava então conservar o marido,
se ele desejava reaver a sua liberdade? Neste ponto ela recuava, não
ousando confessar que talvez o amor de Jaques já tivesse sido extinto.
A sua vaidade não o permitia. E, entretanto, era tão fácil raciocinar! Se
ele não estava mais ali, por que motivo partira, qual a força que o
levara para longe dos seus braços? Ah! Naquele instante ela ousava
negar até mesmo essa força selvagem que une dois seres contra o resto
do mundo, que os transforma numa só criatura, apesar de todos os
empeciIhos, de todas as barreiras. Tal coisa não era possível, tal amor
não existia. E, se bem que tivesse a longínqua percepção de que
alguma coisa entre eles se tinha acabado — como não reconhecer essa
morna existência que transforma os sentimentos mais fortes em
simples caricaturas, aparências, hábitos que se cristalizam e
substituem a chama inicial —, não possuía coragem suficiente para
descer ao fundo dessas paixões consumadas. O que restava, o motivo
que dera nascimento àquelas duas cartas, talvez fosse a memória
distante do que se tinha passado, dos dias vividos lado a lado,
derradeiros estremecimentos da alma que ainda se lembra... Agora
que Jaques partira — talvez para sempre ... — ela ousava aprofundar
um pouco mais as suas investigações. Reconhecia então que ele era
uma dessas naturezas que só vibram tocadas pelas forças extremas —
ou não vibram de todo. Para estas criaturas não há meio-termo: o
desinteresse completo ou a paixão. O resto não existe. A reação contra
esses pensamentos, entretanto, não se fazia demorar. Não era possível,
estava louca, divagando. Que era feito daquelas horas que tinham
vivido juntos? Reavivava os detalhes, um a um, ressuscitava
febrilmente as cenas passadas, as palavras do marido, os planos que
haviam idealizado. Seria possível que ele fosse uma criatura tão abjeta,
que tivesse fingido durante tanto tempo, que tudo aquilo nada fosse
senão uma simples representação? Não, tal coisa não era possível.
Clara passeava de um lado para outro, remoendo as razões,
apresentando causas, descobrindo respostas às numerosas questões
que se chocavam na sua consciência. E apesar de suas lutas, quando se
detinha um minuto, sentia o vazio que adormecia a casa inteira. A sala
estava imersa em sombras. Então novas recordações chegavam,
tumultuosas, enquanto seu coração batia cada vez mais forte. O dia em
que tinham vindo ali pela primeira vez, o ramo de flores que Jaques
apanhara no jardim ainda cheio de mato, o beijo que lhe furtara detrás
da porta, enquanto o pai se esforçava para abrir uma janela
emperrada. Depois a noite de núpcias, ambos sentados um defronte do
outro, enquanto Jaques discorria gravemente sobre o futuro, seus
planos, e ela escutava o tique-taque do relógio, tão perceptível no
silêncio, como um acompanhamento em surdina... E até mesmo
aquele simples rumor parecia fazer parte da sua felicidade. Lá estava
de novo o tique-taque do velho relógio, lá estava o cinzeiro, a poltrona
em que ele costumava sentar-se. Sim, lá estava o pequeno ruído
ritmado que parecia persegui-la em todos os momentos graves, desde
que haviam entrado naquela casa. Lembrava-se de outras noites,
pesadas, cheias de pressentimento, daquela em que fora avisada da
morte de seu pai, do momento em que descobrira a sua gravidez, das
primeiras rusgas com Jaques. Todas estavam lá, presentes,
irremovíveis, com essa densa atmosfera dos momentos intensamente
vividos. E Clara injuriava-se por muitos deles, por não ter sabido
perceber a felicidade que encerravam, por ter desdenhado aqueles
pequenos nadas que agora enchiam o seu mundo. Seria possível que
tudo se tivesse acabado para sempre? Sim, vil, criminoso, um ser
repelente, era o que Jaques devia ser. Entretanto, apesar de repetir em
voz alta todas essas injúrias, no fundo do coração sentia que estava
cometendo uma injustiça, que tudo aquilo jamais chegaria a
corporificar-se como uma verdade, pois o que quer que aquele homem
fizesse, as loucuras que praticasse, os crimes que ousasse fazer, de
tudo estaria inocente para sempre, pois qualquer coisa o afastava do
comum dos homens, como se Deus o tivesse misteriosamente
preservado de certa maldade comum às outras criaturas.

O filho… Lá estava ele, no quarto ao lado, dormindo como


sempre. Clara abriu a porta e aproximou-se vagarosamente do berço.
Não, não estava dormindo. Tinha os olhos abertos e fixava
obstinadamente um dos bambolins do cortinado. Clara sentou-se num
banquinho ao lado e inclinou a cabeça na borda do berço, retendo a
respiração para não assustá-lo. Sim, eram cinzentos os olhos da
criança, Jaques tinha razão. Sacudiu o berço de leve, procurando
adormecê-lo novamente. O menino, porém, esperneou, voltou os
olhos, fixou na sombra o rosto da mãe. Meu Deus, como aquele olhar
se parecia com o dele, como a cor do íris era idêntica à de Jaques! E
Clara sentiu um estremecimento percorrê-la de alto a baixo. Pela
primeira vez pensou que aquela criança era um fragmento do homem
que amava. E pela primeira vez, também, pensou no destino daquela
criança, no mistério da vida que se encerrava no seu ser tão frágil, na
terrível incógnita do seu destino. Que seria dele mais tarde? Talvez
nem chegasse a amadurecer, como a flor sacrificada pelo vento. Ou
talvez crescesse, seguisse as pegadas do pai e fizesse outras mulheres
tão infelizes quanto ela própria naquele minuto. E, ao pensar nisto,
sentiu uma espécie de orgulho, como se aquilo a vingasse de alguma
coisa. Poderia apresentá-lo mais tarde às outras companheiras,
consciente de que era um ser forte, ousado, liberto de tantas pequenas
misérias... Ah! Talvez chegasse também a amá-lo. Se fosse uma
menina, tudo estaria perdido. Mas, sendo um filho, ela o faria mais
forte do que todos, para que se assemelhasse àquele que lhe dera a
vida através de um beijo. E, balançando o berço devagar, Clara sentia
que uma nova presença acabava de invadir a casa vazia, uma presença
que ainda não reconhecia, como os cegos que apenas ouvem os passos
de quem se aproxima, mas que já existia, apesar dela não conseguir
identificá-la com o seu amor.

3
A primeira vez em que ela teve nítida certeza de que nunca mais
o veria foi no trem, quando regressava à pequena cidade em que
morava. “Nunca mais o verei”, disse para si mesma de repente,
olhando a paisagem através da vidraça descida. E aquela frase causou-
lhe uma dor aguda, não porque constituísse uma revelação inesperada,
pois de há muito ela alimentava certo pressentimento a esse respeito,
mas pelo fato de reavivar uma estranha impressão de que alguma
coisa sacrificada existia no seu destino. Durante alguns minutos
sentiu-se tomada por insuportável mal-estar. Fitou quase com rancor
o passageiro do banco defronte, um homem gordo, de olhar manso,
que fumava charuto. Do fundo do carro, um cego que subira na
estação anterior rodou a manivela do seu realejo. A música fanhosa, de
notas primitivas, encheu o ambiente enfumaçado, comprimindo ainda
mais o coração de Clara. Viu-se menina, sentada num banquinho, um
bordado nos joelhos. Era a hora do almoço, e do fundo da sala vinha
um ruído de talheres. Na rua tocava um realejo como aquele, enquanto
uma grande mancha de sol se alastrava no assoalho lavado. “É uma
tolice”, disse Clara para si mesma, interrompendo o fio das suas
lembranças. Mas apesar de todos os seus esforços, apesar de repetir
ainda inumeráveis vezes “é uma tolice, uma pura tolice”, não
conseguiu mais escapar à sensação indefinida, pegajosa, que parecia
mergulhar o seu espírito num mundo de inquietação, de desânimo e
de melancolia. Aos poucos, a música ia cessando. E, quando de novo
só o ruído compassado do trem se fez ouvir, procurou analisar com
frieza a causa das suas emoções. “Por quê?”, perguntava a si mesma. E,
enquanto a paisagem rápida fugia, tentava se consolar inutilmente:
“Ainda não estou tão velha assim...” Mas já não lhe era possível
esconder aquela nova chaga que se tinha aberto na sua alma. O único
sentimento lúcido que a habitava naquele instante era o do tempo
vencido, do destino realizado, esse amargor dos que se descobrem no
fim de alguma coisa, sem que tenham tido tempo de olhar para trás.
Ao descobrir que não tornaria a ver Jaques, Clara percebera também
que alguma coisa havia findado na sua existência. Aquela aventura era
o derradeiro elo dessa corrente que simbolizava a sua mocidade.
Jamais teria uma outra igual, jamais encontraria quem a amasse
daquele modo, ou melhor, alguém a quem ela amasse tanto. Essas
experiências não se repetem na vida. Não tinha nela queimado as suas
forças mais vivas, não tinha gasto o que de melhor existia na sua alma?
E agora envelhecia, sentia que já não tinha forças para mais uma vez
dar realidade a uma ilusão daquelas...

Olhou para fora, sem distinguir nada. Uma nuvem escura


empanava-lhe os olhos. Abriu a bolsa, retirou um lenço, limpou
furtivamente os olhos. No momento em que o guardava de novo, seus
dedos tocaram a face fria de um pequeno espelho. Hesitou durante um
segundo, o coração batendo mais forte. Defronte, o homem gordo
tinha atirado fora o charuto, fechara os olhos, parecia dormir. Aliás
todas as coisas pareciam desmaiar na atmosfera abafada do estreito
vagão. Então Clara retirou mansamente o espelho da bolsa, elevou-o à
altura dos olhos. Como brilhavam, como exprimiam bem toda a vida
de que ainda era dotada! O nariz, um pouco curvo, era o sinal mais
característico que herdara da sua família, aqueles antigos Oliveiras,
que tanto brilho tinham dado à história provinciana de Vila Velha.
Quanto aos lábios... Se havia alguma diferença, estava aí, pois quase
não era possível identificar aqueles lábios amargos, marcados por duas
rugas laterais, com os lábios que Jaques tinha outrora beijado tantas
vezes, numa paixão de criança. Aí é que a velhice começava a sua lenta
e indisfarçável invasão, relegando-a com mão suave e inflexível para a
margem da vida. Devagar Clara guardou de novo o espelho. Reparou
então que o homem gordo estava acordado e sorria. Teria visto o seu
gesto? Uma súbita vergonha trouxe uma onda de calor às suas faces.
Remexeu-se no banco, voltou a olhar a paisagem que desfilava. E pela
primeira vez naquele dia lembrou-se do filho. Onde estaria Sílvio
naquele momento? E mais uma vez pôs-se a rememorar tudo o que
ocorrera depois da partida de Jaques, há um ano atrás.

Esperara-o durante muito tempo. De vez em quando chegava


um bilhete lacônico, ou um amigo surgira com um recado. Estava bem,
mandava lembranças. E como Clara insistisse, ansiosa, debruçada
sobre a grade do jardim, o homem revelava que Jaques estava
comerciando com fazendeiros, negócios de gado, que em breve viajaria
com uma turma sertão adentro. Ela voltara para a sala, fechara a
porta. E de novo aquele silêncio que parecia invadir até mesmo os seus
pensamentos mais profundos, um silêncio pesado, definitivo, que se
insinuava através das cortinas de casa branca, escorregava pelas
portas mal fechadas e impregnava todas as coisas de uma surda
hostilidade. Uma noite, como a chuva martelasse duramente a vidraça
da sala, sentiu que não podia suportar mais aquela solidão, levantou-
se, guardou o bordado em que trabalhava interminavelmente há vários
meses e, dirigindo-se ao quarto, pôs-se a remexer os objetos da
cômoda. Estava disposta a partir. O plano lhe viera de repente, sem a
menor possibilidade de alteração. Não precisava mais de estudar
nenhum detalhe. Deixaria Sílvio com Áurea, uma sua irmã de criação,
até que voltasse. Iria depois procurar o marido e falaria de tal modo
que haveria de convencê-lo a voltar para casa. Senão, que valeriam
para ela aqueles móveis, aquela casa, o seu filho, ela própria? Não
poderia ir, vir, abrir as portas e entrar naqueles quartos, vestir-se,
comer, respirar, sabendo que estava sozinha, que assim permaneceria
ainda muito tempo, talvez para sempre. Era moça, precisava viver,
queria aproveitar o calor do sangue que lhe corria nas veias. Durante
toda a noite remoeu o seu plano, antevendo o encontro com Jaques, a
sua surpresa, as palavras com que se justificaria. E dessa vez seria
forte, não permitiria que ele a dominasse com duas ou três palavras,
reagiria, invocaria o nome do seu filho. Ele haveria de compreender, se
ainda não estivesse completamente louco. Arrumou febrilmente a
mala, preparou a roupa do filho, a fim de não deixar nenhum trabalho
para o dia seguinte. Mas não havia muito que fazer, dentro em pouco
estava tudo pronto. A noite ia alta, mas a madrugada ainda devia estar
longe. Desalentada, sentou-se num banco, as mãos cruzadas sobre o
joelho. E mais uma vez, como já o fizera tantas vezes desde que se
casara, procurou imaginar o que seria a sua vida sem aquele homem, o
que poderia fazer caso desistisse dele para sempre. Não seria melhor,
não seria possível atraí-lo mais facilmente, convencendo-o de que
abandonara a idéia de conservá-lo no lar? No entanto semelhante
coisa pareceu-lhe impossível. Tudo cessava de existir em torno dela,
desde que Jaques não existisse mais. Todas aquelas coisas, roupas,
móveis, a janela que o vento fazia bater, os seus desejos, o futuro de
seu filho — tudo existia porque Jaques respirava, porque o mundo
ainda contava com a sua presença. E, apesar de tudo, poucas vezes
pudera visualizar tão lucidamente a força da presença daquele
“estranho” na sua vida. Como era possível que pudesse existir alguém
com esse dom de se imiscuir de modo tão profundo no ritmo de uma
existência diferente? E só naquele minuto Clara compreendeu que não
só nada tinha tentado contra ele durante toda a sua vida, como nada
tentaria mais tarde, aceitando-o completamente, tal como era, com o
seu monstruoso egoísmo, com a sua morna e aterradora indiferença.
Apesar de supor que tivesse lutado, sempre fora assim, desde o
princípio. Clara era bastante inteligente para não se enganar com o
significado exato daquela descoberta. A extensão do seu amor
horrorizou-a. Sentiu a sua paixão como se fosse uma chaga aberta na
própria carne.
Procurou Áurea pela madrugada. Trazia Sílvio embrulhado num
xale de lã e uma valise cheia de roupas. Diante da amiga ainda meio
tonta de sono, nem sequer procurou se desculpar. Aliás sabia com
quem estava tratando, não precisava usar nenhum subterfúgio. Deu-
lhe uma nota de cem mil-réis e, como a outra protestasse, obrigou-a a
aceitar o dinheiro, afirmando que talvez demorasse uns dias. Feito o
que, encaminhou-se diretamente para a estação, onde comprou uma
passagem para a cidade em que julgava encontrar o marido. Durante
várias horas, sentada junto à vidraça como naquele momento em que
regressava, ensaiou as frases com que se defenderia. A qualquer
protesto de Jaques, saberia apresentar um perfeito libelo. No hotel do
pequeno lugarejo em que saltou, comunicaram-lhe que o marido já
não estava ali. Encontrava-se numa fazenda próxima, em vias de
fechar negócio com uma partida de gado. Clara, depois de ouvir a
informação, pagou sua despesa, retomou a mala de mão e alugou uma
charrete para conduzi-la ao local indicado. No caminho, procurou
conversar com o cocheiro, indagando a respeito do local para o qual se
dirigia. O homem, porém, de nada sabia. Duas horas depois,
extenuada, apeava no velho solar da família Ribeiro, sendo recebida na
porteira por um vaqueiro que atava um guizo ao pescoço de uma vaca
pachorrenta. O caboclo confirmou o que o hoteleiro lhe dissera,
Jaques estava lá, aguardando a chegada da família Ribeiro, que se
encontrava na capital. Clara deixou escapar um suspiro de alívio
quando soube que a fazenda estava deserta. Ouvindo o rumor da
charrete que regressava ao povoado, compreendeu que estava frente a
frente com o seu destino. Tomou a maleta que tinha deixado no chão e
enveredou pela escura alameda de mangueiras centenárias, enquanto
o caboclo reiniciava o seu trabalho. De longe, divisou o vulto do
marido na varanda da fazenda. “Jaques!”, gritou, acenando com as
mãos. O marido voltou-se, hesitou durante algum tempo, sem
reconhecê-la. Afinal desceu a escada correndo, tomou-a nos braços,
num transporte que a fez esquecer totalmente as desculpas que
ensaiara. “Jaques, Jaques!”, era tudo o que podia dizer. A emoção dele
parecia sincera. Não fez nenhuma pergunta sobre o motivo que a
conduzira até ali. Era como se tudo estivesse em ordem — recebia
aquilo como se fosse uma homenagem que lhe era devida. Qualquer
coisa no espírito de Clara advertiu-a do que se passava. Mas a sua
felicidade era muito grande, todo o seu ser estava inteiramente
galvanizado pela presença do marido. A emoção que sentia era tão
pura e tão recente quanto a que tivera nos primeiros tempos de
casada. E ela chegava a se admirar que o seu amor fosse tão novo, que
um sentimento humano pudesse durar inviolável durante tanto
tempo. Uma nova esperança começou a iluminar a sua consciência:
não seria possível ainda reavivar tudo, reacender na alma do
companheiro o que até aquele momento parecia morto? Oh! Talvez
que aquela viagem tivesse sido um bem — talvez que tudo pudesse ser
salvo. Jaques conduzira a mulher para a sala grande da fazenda,
anunciando que naquela noite poderiam dispor da casa, pois os donos
só chegavam no dia seguinte. E, enquanto providenciava o jantar,
Clara examinara os móveis rústicos, os quadros da parede,
imaginando que naquele lugar talvez pudesse levar uma outra vida.
Mas, em vez de uma fazenda, o destino só lhe tinha concedido uma
modesta casinha de janelas azuis. Assim, por um ínfimo detalhe do
destino caprichoso, uma vida inteira se desmoronava.

Ao amanhecer, enquanto ]Jaques ainda dormia, pensou que


aquilo que acabavam de viver talvez jamais se repetisse na sua
existência. Sentou-se na cama, atenta à luz que principiava a
atravessar as frinchas da janela. Ao longe os galos cantavam. Já agora
ela não podia dominar o amargo sentimento que a perseguia, aquela
sombra que parecia crescer e se tornar mais nítida nos momentos
supremos. Sentia que estava sendo advertida de uma desgraça
próxima. Tudo o que palpitava na sua alma, aquelas forças caóticas e
primitivas, convergiam para um só ponto, formando um centro
inflamado que se irradiava pelo seu ser inteiro: Jaques. Tinha certeza
de que dentro em pouco haveria de perdê-lo novamente. Olhou-o na
obscuridade e sentiu que a sua própria alma parecia emergir aos seus
lábios. Inclinou-se, beijou-lhe os cabelos, os olhos empanados pelas
lágrimas. A luz do dia ia se tornando mais forte, avançando pelo
assoalho até aos pés da cama. Os primeiros ruídos nasciam no pátio da
fazenda. “Um minuto ainda”, pensou Clara, tentando salvar o sono de
Jaques. Levantou-se silenciosamente, fechou completamente a janela,
enquanto absoluta escuridão voltava a descer sobre o quarto.
Encaminhou-se de novo para junto do marido, estendeu-se ao seu
lado. Notou como a sua própria respiração contrastava com a dele,
serena, ritmada. Seria sempre assim, junto daquele homem jamais
teria sossego, velaria, desdobrar-se-ia em cuidados, passaria a girar
em torno dele como a mariposa fascinada pela chama. Os minutos
escoavam rápidos. Lá fora as vozes se tornavam mais nítidas, os
rumores como que perfuravam as paredes. Um raio de luz,
atravessando uma frincha indefesa, alargou-se em cheio sobre a cama
desfeita. Clara levantou-se de novo, arrastou uma cadeira, tentou velar
a claridade indiscreta. Mais uma vez conseguira vencer o dia que
avançava impassível, mas lá fora os ruídos se tornavam mais fortes,
cães latiam, os bois enchiam o ar de longos mugidos. Clara lembrou-se
da família que estava para chegar. Mas que lhe importava isto? Que
lhe importava o resto do mundo? Todas as coisas pareciam cercar
aquele momento que ela vivia como um terreno vedado. Nada
ultrapassaria os limites em que tinha fechado o seu amor. Apesar de
tudo o ruído ia se tomando tão forte que Jaques abriu os olhos,
ergueu-se a meio corpo na cama. “Que horas são?”, perguntou,
inquieto, procurando a caixa de fósforos no criado-mudo. Clara
abraçou-o, perdida, os cabelos desfeitos sobre os seus ombros. Mas o
beijo que ele lhe retribuiu era um beijo diferente, sem gosto, como o
beijo de um homem que não se defende. “Jaques!”, murmurou ela no
escuro, tentando em vão dar nova vida à chama extinta. Mas tudo
estava irremediavelmente terminado.
Naquela mesma tarde ela teria a confirmação dos seus
pressentimentos. O laconismo do bilhete que ele deixara era quase um
insulto. A família Ribeiro não chegara ainda, mas não devia tardar
muito. E Jaques nem sequer esperara o amigo. Clara retomou a mala,
que nem sequer abrira, mandou chamar de novo a charrete, dirigiu-se
à estação. Lá, uma nova idéia atravessou-lhe o pensamento. Estava
numa pequena estação do interior, não poderia ter partido muita
gente naquele dia. Aproximou-se, indagou no guichê se o bilheteiro
tinha visto um homem com tais e tais sinais. O empregado fez um
movimento afirmativo com a cabeça, sorriu, afirmou que fora mesmo
o único passageiro que embarcara naquela estação. “Para onde?”,
indagou Clara, num tom de voz que se esforçava para ser o mais
natural possível. O bilheteiro forneceu a direção, perguntando depois
se ela não queria trocar o bilhete que comprara. Clara estendeu o
cartão maquinalmente, recebendo outro em troca. Na realidade, ainda
não tinha bem nítida consciência do que estava fazendo. “Mas a que
horas parte o trem?”, indagou novamente ao homem. Desta vez ele a
fitou surpreendido, enquanto apontava uma tabuleta. “À noite, está
escrito ali.” Clara afastou-se, foi até ao fim da estreita plataforma. Que
fazer durante todo aquele tempo? Teria paciência para permanecer ali
ou ficaria no hotel, repisando incansavelmente os seus tristes
pensamentos?

A cidade que o bilheteiro lhe indicara não era muito longe.


Talvez conseguisse combinar alguma coisa com o sujeito da charrete.
Dirigiu-se para à praça do lugarejo, onde estacionavam os raros
veículos locais. Não lhe foi difícil encontrar quem procurava. O
cocheiro a informou de que a cidade ficava a duas horas dali e que
poderia levá-la, caso quisesse pagar um preço extraordinário. Tudo
combinado, Clara saltou de novo para a charrete, atirando na estrada o
bilhete que comprara. Dentro em pouco ganhavam o campo, coberto
por uma vegetação rasteira e triste. “Que hei de fazer?”, perguntava ela
a si própria, sem descanso, imaginando que teria de lutar contra uma
força muito superior à sua. Duas horas depois atingiam as primeiras
casas do povoado. As ruas apresentavam um aspecto anormal,
embandeiradas, com os habitantes aglomerados nas calçadas em trajes
domingueiros. Na pequena praça junto à estação tinham armado um
coreto e foi lá, junto a uma luzida banda de música, que Clara deparou
de novo com a figura do marido. Trazia um lenço amarrado em torno
do pescoço, como os vaqueiros, e conversava animadamente com os
membros da comissão que iria julgar o gado dos fazendeiros locais.
Clara desceu da charrete e perdeu-se entre a multidão que rodeava o
coreto. Durante algum tempo, imóvel, examinou o marido de longe.
Não podia compreender que ele tivesse esquecido tudo tão
rapidamente, que não sentisse nenhum remorso por tê-la
abandonado. Como parecia despreocupado, como aos seus olhos
aquele comício de criadores era absorvente! E ao mesmo tempo ela
percebeu que Jaques tinha sido sincero. Talvez tivesse desejado e até
tivesse se esforçado para conservar sentimentos que julgava melhores
— mas que poderia fazer se a natureza o traía? Como aquilo tudo era
terrivelmente simples! Bastava contemplá-lo assim de longe, para
compreender que ele não suportaria muito tempo a amizade e a
proximidade prolongada de nenhum outro ser. E Clara não o odiou e
nem o culpou naquele instante. Continuou imóvel, seguindo os
movimentos animados de Jaques, lembrando-se do tempo em que o
conhecera, das palavras que ouvira e que ainda não conseguira
esquecer, dos melhores momentos que tinham vivido juntos. A banda
começara a tocar, um dobrado antigo, em que sobressaía o som agudo
da requinta. À luz forte do sol os metais dos instrumentos brilhavam,
as bandeirolas de papel voavam ao vento. Clara lembrou-se então de
um outro dia assim, há muito tempo, quando o sol brilhava do mesmo
modo. Estavam num piquenique, haviam ficado noivos recentemente,
Jaques não ousava afastar-se um só minuto, enciumado até com os
olhares mais simples que ela lançava aos companheiros. E tudo isto
tinha passado tão depressa… No coreto, como Jaques fizesse um
movimento na sua direção, assustou-se, quis fugir. Era inútil insistir,
jamais teria coragem para reaparecer aos seus olhos. E, no entanto,
como o admirava ainda, como era belo, como era imponente e
inacessível visto assim à distância! Lentamente ela abaixou a cabeça,
voltou à charrete que ainda aguardava. Subiu, mandou tocar de novo
para fora da cidade. A música se distanciava, só o ar continuava
luminoso, diluído sobre as coisas como uma poeira invisível.

E depois veio de novo o grande silêncio da estrada vazia. Ao


longe um regato brilhava. Clara ainda não tinha percebido
inteiramente o que se passara. Na realidade, naquele modo de
contemplar o marido, de julgá-lo, de compará-lo em relação aos
outros, já havia muito desse sentimento natural de divinização, que
era uma das tendências mais fortes do seu espírito. O esforço para
rememorar cenas antigas era uma tentativa para identificar o homem
que tinha visto conversando no coreto. Eram dois Jaques diferentes, o
que lhe pertencera e o que ela jamais alcançaria. Entre eles, havia um
desajustamento que a cada momento parecia crescer como um
abismo. Sem dúvida o seu amor ainda existia, mas era um amor que já
não cabia nos limites humanos, que os extravasava com a força da
adoração. Mais tarde, muito mais tarde, quando Jaques regressasse ao
lar, velho e doente, compreenderia que mais uma vez as duas imagens
não se reajustavam. Fiel ao que estava gravado no fundo da sua
consciência, ela odiaria então o companheiro arruinado pela idade,
sem conseguir dominar a sensação de estranheza que a sua presença
lhe causava.

Quando Áurea lhe entregou aquele pequeno ser que respirava


dentro de um amontoado de flanelas, sentiu o seu coração confranger-
se numa súbita piedade.

— Não está passando muito bem — avisou a amiga, justificando


as pesadas roupas em que enrolara o pequeno. Durante alguns
segundos Clara sondou as pequenas pupilas onde nenhuma emoção se
refletia, sentindo um vago receio aflorar-lhe à consciência. Não devia
ter abandonado o filho, ainda estava muito pequeno para ser confiado
a estranhos. Era verdade que Áurea… Mas uma criatura daquela idade
pertence exclusivamente à mãe. Talvez acontecesse alguma coisa
grave, para castigo da sua imprudência. E de repente, com aquele
frágil ser entre as mãos, percebeu como era fácil perdê-lo, como a sua
respiração parecia leve, como era franzino e delicado! Era visível que
não chegaria a crescer, que nunca passaria daquilo. E depois?
Lembrou-se da sua solidão, das noites que teria de passar sozinha, das
janelas que teria de fechar, uma a uma, antes de se recolher ao leito.
Então apertou a criança contra o peito, num transporte, exclamando
baixinho: “Meu filho, meu filho!” Quis saber como tinham aparecido
os primeiros sintomas, se chorava à noite, se Áurea tomara todas as
providências. E, aos detalhes da amiga, impacientava-se, achava que
ela devia ter feito exatamente o contrário, que nada daquilo teria
acontecido se estivesse perto. A outra, tímida, apertava a bolsa entre as
mãos, sem saber o que alegar, sentindo que realmente devia ser
culpada nalguma coisa. Mas no íntimo admirava-se daquele ardor, ela,
que até agora só tinha visto Clara indiferente ao que se relacionava
com o filho.
Logo que chegaram, Clara mandou preparar um banho quente,
fazendo questão de despir a criança, de ministrar-lhe ela própria todos
os cuidados. Fazia tudo de um modo um pouco febril, como se
estivesse reparando uma falta cometida. Depois do banho aconchegou
de novo a criança sob as flanelas, acalentou-a, passeando de um lado
para outro, procurando rememorar as canções que sabia. O pequeno
custava a adormecer, choramingando sob as cobertas abafadas. A um
canto, muda, Áurea seguia atentamente os movimentos da
companheira. Não ousava interromper, não ousava falar, convicta de
que Clara jamais poderia errar. Sempre tinha sido assim, nada mais
era do que uma sombra da outra, uma espécie de criada, atenta,
obscura, quase ansiosa em torno dos seus movimentos. E isto
começara no tempo em que eram meninas, quando Áurea, para
agradar a Clara, sacrificava os seus brinquedos, oferecendo-os à
companheira. Muitas vezes Clara fazia-se cruel, atravessava dias
inteiros sem lhe dirigir a palavra, enquanto Áurea, silenciosamente,
aguardava que todo aquele mau humor passasse. Não tinha vontade
própria, a amiga fazia dela o que bem entendia. E tinham crescido
assim. Áurea era feia, sem graça, despida de toda vaidade. E Clara
repartia com ela as suas próprias preocupações, transferindo para a
existência vazia da outra, onde não surgira nenhum amor de homem,
um pouco da sua própria desordem.

No momento em que Clara colocou o pequeno na cama,


verificou que ele tinha febre. Uma nuvem passou pelos seus olhos.
Afinal, era bem possível que desta vez os pressentimentos não a
enganassem. Reteve a respiração, debruçou-se de novo, procurando
verificar se não se tinha enganado. Mas não, Sílvio estava
extraordinariamente vermelho, o seu sono era agitado. Clara pôs-se a
passear pelo quarto, imaginando algum recurso, tentando se acalmar,
procurando agir sem precipitação. Não seria melhor telegrafar a
Jaques? E semelhante idéia causou-lhe de repente uma intensa,
dolorosa alegria. Chegou a estudar a forma em que o redigiria: “Venha.
Sílvio passando mal.” Entretanto, voltando para junto do filho, teve
vergonha dos próprios pensamentos. Até aquele instante,
inconscientemente, nada fizera senão armar nova cilada para atrair o
marido. E que loucura, como ainda podia pensar em Jaques, com o
filho ardendo em febre? Mais uma vez teve vergonha daquele amor
que teimava em viver no fundo da sua alma, inabalável, doentio como
uma chaga. Resolveu então que fecharia inteiramente os olhos ao
passado, que se entregaria de corpo e alma ao filho doente. Mas de
novo a dúvida surgia na sua consciência: talvez estivesse exagerando,
talvez fosse um mal passageiro, uma simples irritação. Voltou a se
debruçar sobre o filho e reparou que a respiração do pequeno era
difícil como a de uma pessoa cujos pulmões estivessem gravemente
atacados. Não hesitou mais: pediu a Áurea que ficasse junto do filho,
enquanto ia chamar um médico. O diagnóstico foi rápido: pneumonia.
Naquele momento ela compreendeu que na realidade todas as outras
coisas recuavam, desapareciam como se tivessem sido tragadas por
um vento sobrenatural. Nada existia senão aquele pequeno ente que
sofria por sua culpa. E as acusações, até aquele minuto indistintas na
sua consciência, cresceram de vulto, ganharam formas, fixaram-se
com indestrutível realidade: com certeza Áurea não o agasalhara
direito, era possível que tivesse esquecido uma janela aberta ou que o
tivesse deixado com as roupas molhadas. E, às recomendações que o
médico lhe fizera, prestou uma tão angustiada atenção que este acabou
por lhe aconselhar que não se preocupasse muito, pois o caso parecia
não apresentar gravidade. Concluíra dizendo que era bom não
emprestar aos fatos maior importância do que realmente possuíam.

Mas Sílvio piorou desde aquele instante e Clara sentiu-se


inteiramente desnorteada. Aquilo pareceu-lhe de repente não um
simples castigo por leviandade cometida, mas obscura e terrível
advertência. Na verdade, a sua vida até agora nada tinha sido senão
um longo mergulho no esquecimento e no pecado. E, levada pela
tendência da sua natureza, exagerou o que se tinha passado,
desfigurando tudo com esse obstinado terror das consciências
excessivamente sensíveis. Não mais se deitou, permanecendo em
vigília junto à cabeceira do pequenino doente. Surda às
recomendações do médico e às observações de Áurea, que se tinha
transferido definitivamente para junto da companheira, continuou à
cabeceira do filho, noite após noite, num excesso que lhe arrebatava
rapidamente as últimas reservas de força. Uma noite, como o
desenlace parecesse mais próximo, atirou-se sobre as cobertas, num
desespero, vencida por uma crise nervosa. Áurea dormia no quarto ao
lado, toda a casa estava imersa em silêncio. Em torno dela flutuava
essa atmosfera indizível que rodeia o leito dos agonizantes, onde já
parece se condensar todo o silêncio, toda a angústia e toda a amarga
nostalgia que deixam após si aqueles que já partiram para além-
túmulo. Clara sentiu nitidamente toda a responsabilidade que lhe
pesava sobre os ombros. Levantou a cabeça, fitando com olhar ausente
a mesinha cheia de frascos de remédio, a lâmpada velada pelo
aparador de papel e o crucifixo de metal, mais longe, oculto na
sombra. Já agora os seus olhos não podiam fugir da imagem, enquanto
velhas emoções, sentimentos sepultados na sua alma desde os tempos
do colégio, reafluíam, venciam a rígida camada imposta pelo hábito,
reapareciam vacilantes como a pequena chama que luta contra o
vento. Não, não era possível que tudo se acabasse daquele modo, sem
que ela encontrasse ninguém a quem pedir auxílio, nenhuma voz que a
fizesse trilhar o caminho seguro que abandonara há tanto tempo.
Aquilo era uma oportunidade que lhe estava sendo oferecida: através
da espessa neblina em que estavam mergulhados os seus sentimentos,
sentia a voz penetrar lenta e poderosamente, como um apelo que
viesse de longe, lutando contra enormes obstáculos. Clara ajoelhou-se
devagar junto ao filho adormecido, tentou reencontrar as palavras das
orações que outrora tinha repetido tantas vezes. Agora, mais do que
nunca, sentia a presença de Deus terrivelmente impressa em todos os
acontecimentos daquele dia. Nunca tivera sensação tão nítida de uma
existência sobrenatural, nunca o seu coração estivera mais
violentamente aberto às solicitações da fé. “Meu Deus”, dizia ela de
joelhos, “não me abandones nesta hora, não me deixes neste momento
de provações...” E novamente as lágrimas vinham aos seus olhos, não
mais de sofrimento e de revolta inútil, mas de confiança nos secretos
desígnios do alto.

Tempos depois a criança entrava em convalescença. Clara estava


mais velha, seus modos eram mais bruscos, suas palavras mais raras.
Aos olhos observadores, não era possível escapar a transformação que
mesmo os seus hábitos exteriores tinham sofrido. Se antes já não
prestava grande atenção às suas roupas, não tendo sido nunca uma
dessas moças inteiramente fúteis, tornara-se mais severa ainda,
abandonando os derradeiros adornos que ainda usava. Guardou as
duas argolas de ouro que herdara da sua mãe, a pequena cruz de
brilhantes que Jaques lhe dera no começo do noivado, passou a se
vestir de cores escuras, em feitios pesados e sem graça. Mas se nem
todos reparavam nessas transformações, elas não escaparam
entretanto aos olhos vigilantes de Áurea. Tinha visto primeiro as suas
idas ao armarinho local, a escolha de fazendas fora da moda, o modo
por que alisara os cabelos, num penteado excessivamente singelo, que
a desfigurava quase. Mas às suas observações Clara respondia com
evasivas, que já tinha passado o tempo daquilo, que já não era mais
uma criança. Às vezes, reunia-se por acaso com antigas companheiras
no adro da igreja e era bastante nítido o modo por que Clara se
destacava. Não que as outras fossem mais bonitas, mas nela já existia
essa opaca tranqüilidade dos seres marcados precocemente pela
velhice. Aliás, ela não encontrava mais nenhum prazer em se reunir às
antigas companheiras, distanciava-se mesmo, sem conseguir achar
nenhum interesse nas coisas que tanto as preocupavam.
Instintivamente as outras a tratavam com certa deferência e na sua
frente poupavam determinados assuntos, como acontece em relação
aos mais velhos. Na realidade, por esse tempo, Clara só tinha uma
preocupação: a sua alma. E tudo o que não se referisse a isto ela varria
severamente da sua vida. Ia à missa todos os dias, confessava-se,
comungava; à tarde, era a última a sair da igreja, sempre com alguma
pergunta para fazer ao padre, alguma questão premente sobre um
escrúpulo de consciência. No princípio ele a aceitara com alegria,
rememorando as antigas queixas da mãe de Clara, pouco antes de
morrer, relativas ao desinteresse da filha pelas coisas da religião.
Enquanto os círios ardiam na obscuridade, o padre contava numa voz
baixa, ciciada, os diálogos que tinham tido, os temores da velha, os
seus pedidos para que nunca abandonasse a filha. Mas ele vivia cheio
de trabalho, amolentado pela velhice, que poderia fazer? Não raras
vezes se dirigira a ela, solicitando o seu auxílio para obras de caridade
ou festas da paróquia. Clara não respondia ou mandava o auxílio
pedido por intermédio de outrem. Agora, porém, Deus a conduzia de
novo ao seu rebanho. Mas pouco depois o padre Abreu, a quem a vida
não dera uma experiência do mundo muito extensa, assustava-se
diante daquela força que vinha se atirar aos seus pés, daqueles gritos
contidos, daquele tumulto, daquela angústia e daquele frêmito. Não
estava habituado a encontrar aquilo nas velhas que habitualmente
desfilavam pelas grades do seu confessionário. E era preciso não
exagerar, Deus não exigia tanto das criaturas Clara sentia uma secreta
revolta, arrebatava-se, afirmando que competia às criaturas entregar
tudo a Deus, não só o que Ele pedia, mas até mesmo o que desprezava.
Pois a Graça era uma luz que descia ao fundo dos abismos e
transfigurava todas as paisagens. Prudentemente o padre respondia
que não, pois aquilo era uma coisa que pertencia somente aos santos.
Então Clara se exasperava, fugia do confessionário, lutando contra as
forças que se chocavam na sua consciência. Não podia compreender
que o padre não lhe fizesse maiores exigências quando estava disposta
a sacrificar tudo, sua vida inteira. Pouco a pouco ia multiplicando as
penitências, os jejuns, passava horas inteiras esquecida num canto da
igreja. Lentamente sua exaltação parecia crescer. Ela penetrava na
capela aos primeiros clarões da madrugada e, envolta num capote
escuro, permanecia imóvel durante largas horas, olhos postos na
imagem timidamente clareada pela lamparina. As companheiras
afastavam-se respeitosamente, algumas apontavam-na de longe.
Afinal Clara se levantava, passava de cabeça baixa, as roupas
amarrotadas, olhos pisados. Em casa, mal conversava, apartada,
rezando enquanto costurava roupinhas de Sílvio. Áurea absorvia a
maior parte das obrigações caseiras, sempre disposta aos maiores
sacrifícios. Aquela situação, entretanto, não podia durar muito tempo.
Padre Abreu, percebendo que Clara já não vinha ao confessionário
como antes, procurou-a, a fim de convencê-la dos erros em que se
obstinava. Clara respondeu com frases mordentes, extravasando-se
numa ironia sem motivo, que esmagava o pobre homem, atônito e de
olhos baixos, sem compreender direito o significado daquelas coisas.
Finalmente ela própria se cansou daquela comédia. Não que tivesse
sido falso o seu impulso religioso, mas aquele ardor, aquele excesso
em se penitenciar, nada mais significava senão um desesperado
esforço para substituir a ausência da imagem de alguém que a habitara
durante muitos anos. Também ela não esquecera Jaques
completamente — mas agora tudo se resumia num sentimento calmo,
deixando margem para o equilíbrio de outras coisas. Já não era
preciso multiplicar os jejuns, nem inventar penitências desesperadas;
ia à igreja em horas comuns e colocava-se na fileira das outras,
escutando a voz ciciada de padre Abreu sem nenhum frêmito de
revolta. Às vezes, quando voltava da igreja, ao cair da tarde, detinha-se
na estrada ou na beira de uma cerca coberta de campânulas azuis — e
era então que voltava mais forte a lembrança de Jaques, estreitando-
lhe o coração numa dor que parecia transbordar como uma onda
vagarosa. Afinal a sua história tinha sido bem simples, não valia a
pena sobrecarregar a consciência com faltas imaginárias. Qual fora
realmente a sua culpa, de que terrível pecado poderia se acusar?
Ao chegar à casa, Áurea esperava-a na sala, acalentando o
pequeno Sílvio. Trocava duas ou três palavras com a companheira e
depois voltava a sua atenção inteiramente para a caixa de costura e os
bordados que a aguardavam. Na pequena cidade de Vila Velha não
havia naquela época quem bordasse melhor — e era disso que Clara
vivia. Uma ou outra vez roubava um pouco do seu tempo para uma
obra de caridade, indo a uma pequena festa, um leilão no terreno da
igreja ou um jogo de prendas em benefício do asilo local. Nestas
ocasiões, gostava de ver as suas caprichosas toalhas estendidas nas
prateleiras, admiradas pelas donas-de-casa que se reuniam em torno.
Ou então ia se colocar distante, esperando pacientemente a queima
dos fogos. Mas este último era um prazer gozado apenas a meio, pois
sentia-se atemorizada com as varetas dos foguetes, que tombavam a
esmo da escuridão. Desse modo os dias se sucediam, sem que nada de
grave viesse alterar o seu curso tranqüilo. Uma tarde de junho, de
regresso da novena, como abrisse a porta. Áurea viera ao seu encontro,
num alvoroço:

— Vem ver, Clara, Sílvio já está caminhando!

Ela viu o pequeno que se arrastava amparado a uma cadeira,


olhando-a com esse vago espanto das crianças que não sabem se
devem ou não esperar uma repreensão. Pela primeira vez ela reparou
como o filho tinha crescido nestes últimos tempos. E, abaixando-se
para tomá-lo nos braços, Clara sentiu-se mais uma vez cruelmente
dividida pelos sentimentos antagônicos que a invadiam diante da
criança: o seu puro instinto materno e a sensação de ter sido por ele
roubada nalguma coisa que jamais lhe seria restituída.

Era esta a sua lembrança mais antiga. Muitas vezes, desse caos
em que se tinha convertido a sua infância, procurara destacar outros
vultos, imaginar situações mais recuadas, situar novos episódios que
se substituíssem àquele. Que poderia significar semelhante gesto,
quais seriam as palavras que tinham sido pronunciadas naquele
momento? Mas nada mais subia à tona da sua memória, nenhuma
frase, nenhum eco, nenhum movimento, senão aquele gesto perdido,
aquelas mãos estendidas na sombra, aquele rosto inquieto que se
debruçava sobre ele, marcado por tão pungente expressão de
sofrimento. Sim, existiam ainda alguns detalhes, a porta aberta ao
fundo, o crepúsculo, aquela densa atmosfera que o impregnara para o
resto dos seus dias. De sua mãe era aquela a visão mais antiga que
Sílvio guardava. O resto pertencia a “tia” Áurea.

Ela sozinha enchia os primeiros tempos da sua infância, quando


a realidade ainda não se tinha libertado inteiramente do sonho,
quando o mundo, aos olhos da criança, ainda flutuava no terreno das
maravilhas e dos imprevistos. De todos os minutos, de todos os
terrores e de todas as alegrias, das descobertas, dos entusiasmos e dos
primeiros silêncios, já tão marcados pela dor e pelo pressentimento,
ela participava como se fosse o seu verdadeiro anjo da guarda —
primeiro sinal e primeiro apoio nesse mundo em que iria se
desenvolver, caminhar, viver e morrer. Por muito que desejasse
destacá-la como um ser autônomo, jamais o conseguiria — ela fazia
parte dos móveis, das luzes, do ar de ternura e de humildade que
embebia a sua infância inteira.

Quase sempre ao cair da noite ele se aproximava e dizia naquela


linguagem em que as palavras se encaixavam tão mal ao objeto
designado, como se uma realidade mais ampla tivesse deformado o
seu primitivo sentido:

– Tia Áurea, conte uma história.

Ela guardava pacientemente a costura, tomava a cabeça do


pequeno entre as mãos, aconchegava-o cuidadosamente junto a ela. E
começava então a estranha maravilha.

Era um príncipe que cavalgava um cavalo branco, tinha uma


estrela na testa e ia salvar a sua dama, prisioneira na torre de um
castelo. A sua capa vermelha voava ao vento, e sobre a roupa de veludo
negro uma fivela de diamantes cintilava. Um feiticeiro, desses que se
encontram na quebrada de um caminho ao pôr-do- sol, tinha-o
avisado de que tomasse cuidado com o terrível leão que guardava a
porta do castelo: se estivesse de olhos abertos é porque dormia, se
estivesse de olhos fechados é porque vigiava. Escondido detrás de uma
árvore, o cavaleiro esperava para furtar da sua goela a chave da torre
onde estava a prisioneira. Afinal a fera adormece e o bravo guerreiro
abandona seu esconderijo, empunhando a espada que já se tingira no
sangue de tantos heróis. Na floresta azul palpitam as primeiras
estrelas, a brisa gelada encrespa a face escura do velho lago. Morto o
leão em memorável combate, o cavaleiro rouba a chave, rapta a
prisioneira e voa pelas estradas, a capa aberta ao vento. E eis que um
galope surdo se aproxima: é o gigante que persegue os fugitivos. Então
o cavaleiro abre um papelzinho de pó mágico e um grande rio separa
de repente os dois inimigos.

– Tia Áurea, de que cor era este rio?

Ela guardava o dedal, sorria preparando o efeito:

– Era branco como leite.

E enquanto ela se afastava o pequeno permanecia no canto,


revisangue. A esta altura, a escuridão já tinha baixado completamente
na larga sala despovoada de móveis. Áurea recusava-se a contar mais
histórias, pretextando afazeres domésticos.

– Não é possível, Sílvio, tenho de olhar o jantar.

E enquanto ela se afastava o pequeno permanecia no canto,


revivendo cena por cena a história que acabara de ouvir. O que mais
lhe agradava era o detalhe do cavaleiro com a sua capa que voava ao
vento. Como devia ir depressa, como o seu coração devia bater, como a
noite devia ser escura! E de tanto pensar já não conseguia conciliar o
sono, rolando sem descanso na cama. Sentava-se, os olhos abertos na
escuridão. Que estaria se passando lá fora? Decerto a manhã estaria se
aproximando, galos cantavam ao longe: gente devia estar passando
nos caminhos. E permanecia acordado durante muito tempo ainda,
ouvindo passos, risadinhas, cochichos de pessoas que deviam estar
rondando lá fora. Se pudesse chamar alguém, se pudesse verificar o
que realmente estava acontecendo, poderia voltar a repousar de novo a
cabeça sobre os travesseiros, fechar os olhos, dormir como todos
naquela casa. Mas na parede branca do fundo uma sombra se agitava,
balançava-se lentamente, parecendo crescer a cada movimento,
diminuir como uma pessoa que se afastasse e se aproximasse repetidas
vezes. Alguma coisa gelada tombava sobre o seu coração. Por que tia
Áurea tinha aquela mania de conservar as janelas abertas? Dentro em
breve, porém, descobria que era apenas a silhueta de um galho que o
vento fazia oscilar. Mas nem por isto a calma descia ao seu espírito.
Não raras vezes Clara o surpreendia nessa posição, os olhos dilatados
pelo terror.

– Mas que é isto, Sílvio? Áurea não devia andar lhe contando
essas histórias...

E apesar do seu medo — tão misturado a um secreto sentimento


de prazer — o pequeno compreendia que nada devia dizer à sua mãe,
pois assim Áurea não voltaria a falar sobre o cavaleiro cuja capa voava
ao vento.

Nas manhãs chuvosas, quando as horas se alongavam


desmesuradamente, Áurea sentava-o ao seu lado, um livro de figuras
sobre os joelhos.

– Tia Áurea, quando eu crescer vou saber estas histórias todas?

– Vai, meu filho, mas é preciso estudar primeiro.

E então lhe parecia que o tempo de crescer não chegava nunca.


Tudo, aos seus olhos, pertencia a um mundo desconhecido, hostil, que
o fitava com o olhar severo com que as pessoas grandes fitam as
crianças imprudentes. Era verdade que nada deixava de lhe interessar,
que todas as coisas pareciam dotadas de perigoso encanto, desde os
pingentes de vidro do antigo lustre da sala de jantar, até aos desenhos
da parede, formados pelas manchas de umidade. Passava horas
remexendo os mil pequenos objetos que rolam no fundo das gavetas.
Mas de todas essas coisas sedutoras a mais importante, sem nenhuma
dúvida, era o gato. Sim, o grande e escuro gato que vinha das
profundezas da casa, trazendo nos olhos a sombra de inviolados
mistérios entrevistos nas trevas do porão. Que não daria para alisar o
pêlo do bichano, para penetrar na sua intimidade, torná-lo cúmplice
das suas descobertas? Mas o gato preferia estender-se na soleira da
porta, passando por ele com movimentos lentos e pesados. Às vezes
Sílvio vinha pé ante pé espiá-lo, tentando distinguir alguma coisa no
fundo dos seus olhos amarelados, onde nada se refletia, senão um
insaciável desejo de dormir. Se ele o apoquentava, o gato erguia-se
indiferente e, roçando nos umbrais, ia esconder-se caprichosamente
debaixo de um dos móveis. Então, por vingança, Sílvio identificava-o
com os monstros da história, odiava-o, jogava fora o leite que Áurea
colocava num pires junto à porta, perseguia o inimigo com o cabo da
vassoura. E passava a se interessar apenas pelas galinhas, dava-lhes
nomes, atava gravatas de papel nas que tinham pescoço pelado,
conhecia todos os segredos do galinheiro, surpreendia até mesmo as
conversas e os planos das frangas noviças. Era o seu grande mundo, o
quintal. Ali tudo existia numa íntima harmonia, desde as imponentes
mangueiras centenárias, até às humildes flores que nasciam nos
monturos. E havia ainda a água das poças, onde ele construía pontes,
casas nas margens, roçados formados com paus de fósforos, um
universo inteiro, de cuja metamorfose só ele conhecia o inefável
segredo. Com o correr das horas as casas se multiplicavam,
transformavam-se em verdadeiras cidades, ostentando praças, ruas,
avenidas, torres, bandeiras espetadas nos mastros, navios ancorados
nas lagoas calmas. Quando terminava o trabalho, não tinha coragem
para desfazer o que lhe custara tantos esforços. Abandonava-o então, o
coração apertado por uma saudade prematura, imaginando como a
noite seria longa, como as horas se arrastariam, até o momento em
que ele pudesse regressar à sua minúscula cidade. E ao amanhecer
corria novamente para o quintal, verificando, com a mais profunda
consternação, que a chuva estragara tudo, que do seu reino só existiam
ruínas e tristezas. Muitas vezes, pensando nessas chuvas da
madrugada que tinham destruído com tão grande rapidez tudo o que
ele inventara com tanto amor, odiava-as, com essa força obstinada e
dolorosa com que odiaria mais tarde o trabalho idêntico do mundo,
que na sua fúria procuraria destruir alguns dos seus sentimentos
vitais, aqueles exatamente com que tinha isolado no fundo do coração
a lembrança de alguns seres mais caros...

Da aparente abstração em que sempre vivia, Clara parecia


despertar algumas vezes. Chamava Áurea, examinava as roupas do
filho, escolhia as que lhe pareciam melhores. Diante das peças mal
remendadas pela companheira, sentia-se tomada de vagos remorsos,
dizia que precisava cuidar um pouco mais de Sílvio, que o coitado
andava como um maltrapilho. Áurea respondia que tinha feito o que
estava ao seu alcance, lançando mão até mesmo de antigas economias,
a fim de dar ao pequeno, por quem criara um amor de mãe, roupas
melhores do que aquelas que possuía. Escolhido o traje, Clara
anunciava que naquela tarde iriam dar uma volta. Depois iriam à
novena. Dessas saídas, Áurea nunca participava, aproveitando o
tempo, numa espécie de tácita combinação, para tratar afinal dos seus
próprios negócios. Mas ainda assim fazia questão de vestir Sílvio, de
cuidar dos menores detalhes, de levá-los até à porta, rindo, fazendo
recomendações, beijando e abraçando o pequeno como se na realidade
ele fosse fazer uma longa viagem. E Clara se encaminhava para a
pequena praça do lugar, defronte à estação, onde as famílias se
reuniam. Entretanto, sem coragem para se misturar aos grupos, ia
sentar-se sob uma árvore afastada, dando liberdade a Sílvio para
brincar com os outros pequenos. Defronte, uma locomotiva em
manobras fazia estremecer o telhado da pequena gare, lançando jatos
de fumaça negra que se diluíam na atmosfera avermelhada da tarde.
Uma invencível melancolia estreitava o coração de Clara, tudo aquilo
trazia ao seu pensamento a lembrança dos dias passados, dos
encontros que tivera com Jaques naquele mesmo lugar, em hora
idêntica, com a mesma locomotiva apitando longamente e lançando
para o alto grossos rolos de fumaça negra. Tudo isto se tinha acabado,
estava bem longe. Ela fechava os olhos, o livro de orações entre as
mãos, procurando sufocar o tormento inútil que aquelas lembranças
lhe causavam. Mas alguma coisa estava desperta em sua alma e ela
não conseguia mais fazer calar aquele sentimento de insatisfação, de
vazio e de abandono que em torno todas as coisas lhe traziam.
Revoltava-se contra o monotonia da vida, contra aqueles dias áridos,
cuja melancólica limpidez nada conseguia perturbar. Realmente
estaria tudo morto, nunca mais teria uma aventura, nunca mais
encontraria quem a amasse? Então a existência de uma mulher era só
aquilo, podia cristalizar-se em torno de um único homem, como se
nada mais lhe fosse permitido? E qualquer coisa bradava surdamente
dentro dela: “não! não!”, apesar das lágrimas subirem invencíveis aos
seus olhos. Um apito mais forte trazia-a à realidade, e Clara exclamava
baixinho: “tola, tola que eu sou!”, enxugando disfarçadamente os olhos
numa das mangas do capote. Habituado à companhia de Áurea, Sílvio
sentia-se mal no meio dos companheiros, afastava-se, acabava por
renunciar aos folguedos. Vinha então sentar-se junto à mãe, num
silêncio mais eloqüente do que todas as palavras do mundo. Pouco a
pouco o movimento ia esmorecendo na pequena praça. Clara fechava o
livro, levantava-se, tomava Sílvio pela mão e ganhava o caminho da
igreja. Os primeiros dobres do sino enchiam o lugarejo inteiro de um
repentino alvoroço. Clara caminhava mais rápida, toda a natureza se
banhava na luz escarlate do crepúsculo. Mãe e filho se misturavam aos
vultos que penetravam timidamente na capela e procuravam lugar
num dos últimos bancos.

Dessas tardes de novena, além dos sapatos novos que tanto


incômodo lhe causavam, Sílvio guardaria bem nítida a lembrança da
atmosfera da capela, com as suas grosseiras traves mal cobertas pela
caliça, a claridade leitosa das velas e o perfume do incenso, misturado
ao cheiro agreste do jardim, que parecia recender mais fortemente às
primeiras sombras da noite. De vez em quando, sobressaltada pelas
vozes e pela inesperada claridade, uma andorinha esvoaçava
tontamente na capela, até que pela porta aberta se perdia no espaço
puro da tarde. Clara, ajoelhada junto ao filho, distanciava-se, perdida
naquele mundo em que a criança ainda não penetrava. E, à medida
que os minutos corriam, Sílvio não podia sufocar aquela vaga de terror
que ia subindo lentamente ao seu espírito, diante daqueles vultos
escuros, recurvos, que enchiam a igreja de cicios e orações mastigadas
a meia voz. Uma vez ou outra, de uma dessas formas ocultas sob a
mantilha negra, emergia uma face de velha, os olhos miúdos, vorazes,
o nariz adunco como a experimentar os perfumes pagãos que a noite
esparzia lá fora. Imobilizado pelo medo, o pequeno se lembrava das
feiticeiras descritas com tanta exuberância por Áurea, dos gritos que
deveriam dar às sextas-feiras, quando montadas num cabo de
vassoura iniciavam a viagem fatal. Mas, à medida que fosse crescendo,
Sílvio iria compreendendo o segredo daqueles vultos que gemiam na
sombra, pobres fantasmas que da fúria da vida não conservavam mais
senão as máscaras chagadas — vítimas já transitando no escuro reino
em que a morte domina. A voz do padre, vinda do púlpito, nada fazia
senão aumentar o seu terror. Durante um minuto, atento às palavras
que não compreendia, sentia aflorarem à sua consciência ondas de um
mundo submerso, onde se ocultavam estranhos perigos. Mas devagar
tudo se convertia numa música compassada, suave como o escorrer de
um regato, arrastando-o a um total esquecimento. As nuvens de
incenso flutuavam ainda um instante sobre a mantilha negra das
velhas, depois tudo desaparecia, sugado pelo sono invencível. Mas até
ao limiar dessa primeira letargia, nos limites onde ainda velam as
últimas projeções do mundo exterior, sentia acompanhá-lo as
derradeiras cintilações dos castiçais, da estola bordada e dos
candelabros de vidro que se balançavam pesadamente no teto alto da
igreja.
6

Com o correr dos dias, aquilo que em Clara tinha sido uma
ligeira nuvem de melancolia se agravou, persistiu, convertendo-se
numa tristeza constante, opressiva. Áurea, a quem a vida reservara
uma experiência limitada, sabia entretanto que para viver é preciso
paciência e humildade. Era o que dizia a Clara, quando esta se
mostrava excessivamente irritada, gritando para que Sílvio não a
importunasse, ou respondendo de mau humor às suas ingênuas
perguntas. Paciência para suportar as ambições constantemente
traídas — e humildade para não desejar acima das nossas forças.
Clara, já trabalhada por esse princípio de revolta que começava a
modificar de maneira tão decisiva a sua pacata existência, respondia
que estava farta de tudo aquilo, que tinha direito a uma vida diferente.
Estas conversas tinham lugar quase sempre à noite, quando, sob a luz
forte que uma folha de papelão protegia, dispunham as meadas ou
cortavam o linho para os bordados. Como a onda paciente que acaba
por lacerar profundamente a rocha dura, a tristeza daquelas horas
tinha acabado por minar a paciência de Clara. E já agora não podia
mais levar a vida tranqüila de antigamente, maldizendo-se a cada
minuto, suspirando, inventando razões imaginárias para os seus
males. Na realidade, ainda não conseguira ferir a causa exata daquele
desconforto que aumentava dia a dia. Ainda não percebera que alguma
coisa latejava impiedosamente no fundo da sua carne, clamando
contra aquela solidão com a crescente violência de uma tormenta. Em
vão ela procurava enumerar todos os motivos, investigando
aflitamente tudo o que a rodeava, o silêncio da sua casa, a passividade
dos objetos que a acompanhavam há tantos anos, culpando a esse
vazio, a essas formas inanimadas, com a obstinada cegueira dos que
não ousam realizar no íntimo a confissão que temem. Apesar de
multiplicar as possibilidades, não conseguia vislumbrar nenhuma
esperança no futuro. Para onde quer que olhasse, via sempre o mesmo
desenho cruelmente nítido, o mesmo recorte em torno da planície
vazia da sua existência. Em certos momentos, ferida por um desses
raios de intuição que é como uma projeção fugitiva da verdade
submersa, tomava-se de pânico, corria a refugiar-se no quarto,
pedindo de joelhos a Deus que a salvasse daquele desespero. Pois
apesar de todos os recursos de que lançara mão, de todas as
caprichosas mentiras que arquitetara, o que fermentava no fundo do
seu coração era o desespero, um desespero violento, mortal, que vinha
concentrando o seu veneno ao longo de todos esses anos de luta e
simulação. Sozinha, frente a frente àquele Deus a que tinha implorado
tantas vezes com os lábios gelados, Clara percebia o abismo para que
se encaminhava. E ninguém poderia auxiliá-la, nenhum ser humano
poderia estender-lhe a mão, ninguém escutaria os seus apelos inúteis.
Áurea era uma inocente, não compreendia nada. Nunca percebera
coisa alguma além daquela existência estreita, sufocada, onde nenhum
sentimento mais forte conseguia viver. Atormentada, sem encontrar
solução para a sua crise, Clara voltava a trabalhar, desdobrando-se
numa atividade quase febril, mas sem ver direito o que fazia, dando
pontos errados, furando os dedos com a agulha. Se por acaso
descobria que Áurea observava os seus movimentos, irritava-se, falava
asperamente à amiga, acabando por deixar a costura de lado e indo
refugiar-se novamente no quarto. Na escuridão, chorava longamente,
o rosto afundado no travesseiro, como a se proteger da visão de todas
aquelas coisas imutáveis que a cercavam. Pouco a pouco, aliviada pelas
lágrimas, tranqüilizava-se, permanecia algum tempo no escuro,
seguindo os pequenos ruídos da casa, a passagem de um rato, uma
tesoura que caía na sala, os passos de um transeunte retardado. Com a
serenidade, subia ao seu coração uma onda de remorso. Arrependia-se
do que tinha feito, voltava à sala, abraçava Áurea, pedia-lhe perdão
pelas palavras duras de momentos antes, alegando os seus nervos, sua
doença, não sabia mais o quê. Não ignorava que estava se
transformando numa criatura insuportável, mas a culpada era a
própria Áurea, pois já a habituara com a sua paciência evangélica.
Áurea ria, dizia que já estava acostumada àquelas coisas, que nem
sequer ouvia direito as respostas de Clara. E, aproveitando uma pausa,
falava seriamente, aconselhava Clara a procurar um médico, a passear,
a distrair-se. Tudo aquilo eram tristezas passageiras, no fundo não
tinham nenhuma importância. E, como Clara suspirasse, detinha-se, a
tesoura na mão, afirmando com certa hesitação que a culpada de tudo
era a própria Clara. “Por quê?", perguntava esta. “Aquele homem...”,
insinuava Áurea, abaixando os olhos. E mais baixo, como se ao mesmo
tempo pedisse perdão pela sua ousadia: “Você devia esquecê-lo.. .”

Uma noite, Sílvio apareceu com febre novamente. Crescia a


olhos vistos, mas apesar de tudo era um menino pálido e nervoso. A
menor emoção deixava nele longos traços da sua passagem. Assustava-
se à toa, exaltava-se por qualquer insignificância, não raro tombava
em largos e inexplicáveis períodos de melancolia. Mas era valente,
ousado, quase temerário. Muitas vezes, depois de submetê-lo por
simples curiosidade a uma prova qualquer, Clara ria, dizendo: “Este
pequeno é meio doido.” E Sílvio mostrava-se ofendido, atravessava
horas sem dirigir palavra à mãe. Já não construía cidades e perdera
grande parte do seu encanto pelo gato. Entretanto, cavalgava o dia
inteiro uma cadeira quebrada, enchendo a casa de gritos como se
estivesse numa autêntica batalha. Quanto ao gato, o que o desiludira
fora o fato de descobrir que ele nem sequer se abalava com o trânsito
cada dia mais intenso de gordas e pesadas ratazanas pela horta.
Depois disto, arrastava-o, torturava-o de todos os modos possíveis,
vestindo-o com roupas de papel, amarrando-o à cadeira como um
cavalo numa biga romana, prendendo-o na gaiola do canário que
fugira. Áurea lamentava o destino do pobre gato, protegendo-o contra
a fantasia cruel do pequeno. Dizia que já estava velho, que não via
direito, que precisava descansar e não andar em combates com
temerosas ratazanas. Sílvio porém teimava em lançá-lo na luta contra
as galinhas, incitando-o com a ponta de um pau, espetando-o com
alfinetes, expondo-o sem piedade às furiosas bicadas. O triste animal
acabara por adquirir um tom neutro, vagando na penumbra dos
cantos, assustado, enfermiço. Mas com o tempo Sílvio alargara o
terreno das suas pesquisas, ganhara o quintal, o muro e até mesmo o
córrego que passava no fundo da casa. Numa dessas tardes,
procurando equilibrar-se no alto do paredão como se estivesse na
ponte de um navio, gritando ordens em vista da tempestade próxima,
perdera o equilíbrio, rolando no riacho. Voltara molhado para casa,
tossindo, os olhos vermelhos. E, como não fosse de constituição muito
forte, a febre não tardara a surgir. Clara pôs-se mais uma vez a
lamentar sua vida, atirando a culpa sobre os cuidados que aquele
pequeno lhe dava. Silenciosa, Áurea sorria sem ousar responder coisa
alguma. Mas, após as invectivas de Clara, lembrara que o melhor seria
conduzir o menino diretamente ao médico ou à farmácia, pois aquela
febre repentina podia ser originada de uma inflamação da garganta.
Depois de discutir ainda alguns instantes, Clara resolveu afinal seguir
o conselho da amiga. Como a farmácia ficasse mais próxima, foi para
lá que se encaminhou. Depois de despachar uma freguesa impaciente,
o farmacêutico voltou-se para Clara, indagando em que poderia servi-
la. Ouvindo a narração da história, o homem concordou que talvez
fossem as amígdalas, coisa a que a medicina hoje em dia dava muita
importância. Falava um pouco sibilado, a vista fixa num ponto
diferente, como se estivesse ocultando os seus pensamentos. Acabou
dizendo que era preciso examinar o pequeno, e conduziu-o ao
laboratório que ficava no fundo da farmácia. Tudo ali respirava a
poeira e umidade. Os últimos raios de sol mal penetravam pelas
frinchas da estreita janela, deixando os objetos mergulhados numa
sombra duvidosa, os vidros bojudos se enfileiravam nas prateleiras
altas, com rótulos escritos em grossas letras azuis. Depois de convidar
o menino a sentar-se numa cadeira, o farmacêutico acendeu uma
lâmpada, puxando-a para o lado, de modo a que a luz batesse em cheio
no rosto do doente.

Não se assuste — disse ele —, é para poder examinar melhor a


sua garganta.

Sílvio não estava assustado, mas olhava com espanto aqueles


objetos desconhecidos, que pareciam gastos por muitos anos de uso.
Tudo aquilo dava um imprevisto mistério ao mundo.

– Agora, abra bem a boca — recomendou o farmacêutico.

Obedeceu, os olhos cravados no rosto que se inclinara sobre ele.


Em certo momento o farmacêutico introduziu uma colher na sua boca,
tateando alguma coisa que estava muito ao fundo. Uma náusea
repentina obrigou o pequeno a se contrair. E, como Clara se
aproximasse, o homem exclamou com ar triunfante que não se
enganara, que eram mesmo as amígdalas.

– Não está vendo aqueles pontinhos brancos? — indagou,


mantendo sempre a incômoda colher.
Abandonou finalmente o menino, pôs-se a remexer nos vidros
que guarneciam a prateleira do fundo. E Clara, reparando na
desordem que reinava no pequeno e escuro laboratório, sentiu-se mal,
procurando apoiar-se à mesa cheia de tubos, caixas e rótulos. O
farmacêutico, percebendo o que se passava, precipitou-se com uma
ampola nas mãos.

– Está sentindo alguma coisa? — perguntou com voz


ligeiramente trêmula.

– Não, é uma tonteira passageira — respondeu Clara.

Talvez fosse melhor estender-se naquele divã — sugeriu ele,


apontando para um canto na sombra.

Então Clara fixou a vista, examinando-o com estranheza. O


homem abaixou o olhar, esperando a sua resposta.

– Não precisa — disse —, já passou, não sinto mais nada.

O homem ainda continuou diante dela, desapontado, e


finalmente voltou à receita. Minutos depois regressava com um
vidrinho nas mãos:

– É azul-de-metileno — explicou. — Se não melhorar até


amanhã, volte aqui para verificarmos isto de novo.

E, abrindo a porta, concluiu:


—Cuidado com o sereno. A esta hora, já é perigoso.
7

No dia seguinte, Clara voltou à farmácia.

— Ao contrário — respondeu a uma observação do farmacêutico


sobre o pequeno doente —, é muito raro que ele adoeça. Teve
pneumonia há alguns anos, mas depois disto…

Depois de procurar um instante na gaveta do fundo, o homem se


voltou e, diante dela, examinou a cor do líquido à luz do sol. Durante
esse intervalo, Clara indagou a si mesma se tinha sido inteiramente
sincera. Era verdade que Sílvio adoecia raramente, mas isto não
significava que fosse um menino forte. Ao contrário, era franzino, não
aparentava a idade que já tinha. Além disso era notório que se
destacava dos outros pela sua palidez, pelo seu nervosismo, por mil
outros pequenos detalhes que não conseguia perceber nos filhos dos
outros e que achava tão evidentes no seu. Movida pelo escrúpulo,
detalhou tudo o que acabara de pensar, enquanto o farmacêutico
embrulhava o remédio. À medida que falava, Clara notava que uma
ligeira perturbação se apossava dela, como se estivesse dizendo uma
mentira. Mas não, o motivo não era as suas palavras e sim o olhar
desconfiado, moroso, que o homem lançava sobre ela de vez em
quando. Calou-se, tomada por uma súbita vergonha. Por que aquele
olhar, tão idêntico ao que ele lhe lançara no dia anterior? Que ironias
estaria elaborando aquela criatura a respeito dos seus cuidados
maternos? Tomou o remédio, pagou, dirigiu-se de um modo quase
brusco para a porta. Teria ele ouvido realmente tudo o que ela dissera?
Tratava-se de um homem grosseiro, não tinha dúvida. Mas no
momento em que ia ganhar a rua ouviu que ele a chamava de novo.
Voltou-se, o rosto ainda afogueado pela cólera. Entretanto o homem
continuava encostado displicentemente ao balcão, e, sem saber por
que, Clara sentiu-se levemente decepcionada, como se esperasse
depará-lo numa posição menos descuidada ou ouvir alguma coisa
menos banal do que as palavras que ele lhe dirigia. Ainda era a
respeito de Sílvio, achava-o excessivamente pálido, era melhor que ela
o levasse lá outra vez, a fim de fazer um exame geral. Talvez não
fossem só as amígdalas, quem sabe? Essas coisas em crianças eram
muito complicadas. Ela sorriu, agradeceu. Sim, era melhor, haveria de
trazê-lo à farmácia assim que o tempo melhorasse um pouco. E
afastou-se, afinal, aproveitando a rápida estiada. Um sol gelado, sol de
inverno, derramava-se palidamente sobre as coisas. Clara caminhava
apressada, saltando as poças, o vidro apertado nas mãos. Em casa, no
momento em que ia dar o remédio ao filho, perguntou a Áurea se ela
conhecia o dono da farmácia. Decerto, respondeu a outra, há muitos
anos que se tinha estabelecido naquele lugar. Aliás admirava-se de que
Clara não o conhecesse, pois indagava sempre a respeito dela, do
pequeno, como iam, se não precisavam de alguma coisa. Uma vez
chegara a insinuar que servia muitos fregueses a crédito, que não fazia
questão de dinheiro. E de repente, abandonando o ferro de brasas,
Áurea pôs-se a rir. Como Clara a olhasse surpreendida, explicou que
talvez o homem estivesse apaixonado. Clara lembrou-se do olhar
desconfiado e repeliu a idéia da amiga com veemência. Não era
possível, exceto se o caso fosse com a própria Áurea. “Eu?”, exclamou
a outra quase com escândalo. “Só mesmo aquele sujeito com cara de
carneiro é que havia de me sobrar!” Clara não respondeu nada,
chocada com a expressão da amiga. Mas no fundo sentiu que era
aquilo mesmo: um carneiro. E reviu mais uma vez o rosto do homem,
os seus dentes de ouro, os olhos miúdos, onde nada se refletia senão
uma tranqüilidade milenar, os cabelos duros, encrespados como o pêlo
de um animal. Aconchegou Sílvio sob as cobertas e, tomando a
costura, foi se colocar junto à companheira. Durante algum tempo
permaneceram em silêncio. No fundo da sala soava o surdo tique-
taque do velho carrilhão de jacarandá e, mais longe, da cozinha, vinha
o barulho monótono da torneira pingando. Sim, era aquela a sua
oportunidade. Não perguntara a si mesma, dias antes, se jamais teria
uma nova aventura? Pois com o caso do farmacêutico achava-se diante
de uma autêntica aventura. Era realmente possível que aquele homem
alimentasse um sentimento secreto pela sua pessoa, mas na verdade
nunca tinha reparado nele antes daquela data. Era como se o tivesse
visto pela primeira vez. Mas a idéia dessa paixão era tão ridícula que
Clara a afastou com violência. O melhor era não pensar em coisas
daquela natureza. Como poderia amar semelhante animal? Tudo
naquele homem respirava sujeira e mediocridade. Aliás, sentia o
mesmo em relação à maioria dos homens. A sua solidão pareceu-lhe
naquele minuto como um dom preciso. Poderia viver assim durante
muito tempo, a vida inteira talvez. Não estava tudo tão tranqüilo, tão
sossegado naquela casa? Onde o desespero de dias antes? E deteve-se,
a agulha imóvel entre os dedos, escutando a torneira da cozinha.
Repouso não, morte. A idéia viera de repente, como um jato de luz que
emergisse na sua consciência. Morte. Aquele silêncio, aquela paz, eram
o silêncio e a paz de um túmulo. E assim seria eternamente. O
desespero jamais cessaria o seu diabólico trabalho na sua alma
dividida. Lá fora a chuva recomeçara a cair. Levantou-se, foi até o
quarto e verificou se Sílvio já tinha adormecido. Poucos instantes
depois regressou, tomando de novo a costura. O pequeno não estava
bem, ainda continuava acordado, tossindo, com febre. Áurea lembrou
que talvez fosse melhor consultar o médico. E depois de discutirem
durante alguns minutos ficou resolvido que não incomodariam o
médico por causa daquilo, mas que fariam nova consulta ao
farmacêutico. Como Áurea se dispusesse a sair, Clara interceptou-lhe o
caminho. Era ela quem iria, pois Sílvio precisava de alguém junto dele
e Áurea tinha maior habilidade em casos como aquele. Tomou a sua
mantilha, colocou-a sobre a cabeça e, depois de abrir o guarda-chuva,
encaminhou-se para a farmácia. Na escuridão, as poças d’água
reluziam. A chuva miúda, insistente, fustigava-lhe o rosto. Clara não
conseguia coordenar seus pensamentos, perturbada por emoções de
ordens diferentes. Sentia-se vagamente culpada, como se tivesse
procedido mal para com Áurea. Mas não valia a pena pensar naquelas
coisas, na verdade vivia se martirizando por causa de pequenos nadas.
A porta da farmácia achava-se apenas encostada, e através da fenda
um raio de luz descia até ao passeio molhado. Empurrou-a com certa
hesitação, tossindo antes para que o farmacêutico percebesse a sua
presença.

— Olá — disse o homem assim que deparou com o seu vulto


imóvel, escorrendo água. — Esperava alguém, pois vi a luz da janela
acesa e julguei que o menino tivesse piorado.

No seu rosto grosseiro aparecera o prenuncio de um sorriso de


satisfação. Clara sentiu-se ofendida, pensou em voltar, imaginando
que fora imprudente, que não devia ter vindo. Mas de novo, com
insistência, ouviu o ruído monótono da torneira da cozinha.

— É verdade, piorou um pouco. Talvez o senhor pudesse me


aconselhar alguma coisa.

– Pois não, pois não — respondeu o homem, solícito.

E pôs-se, como das outras vezes, a procurar nas prateleiras.


Clara examinava-o de costas e percebeu que suas mãos tremiam, que
ele não conseguia encontrar o objeto procurado.
– Que tolice minha — exclamou ele com novo sorriso —, deve
estar do outro lado.

Atravessou a farmácia, tropeçando num cesto que se encontrava


a meio do caminho. E, de súbito, Clara não pôde mais sufocar a onda
de desprezo que a invadia. Toda ela parecia fremir de nojo, de
inquietação e arrependimento. Como pudera ter sido cega àquele
ponto? Mas o homem se aproximava de novo, estendia-lhe um vidro.
Ela abaixou os olhos, reparou que aquela mão peluda tremia mais
fortemente ainda, que todo ele parecia tremer, subjugado por
incontrolável emoção. No momento em que ia segurar o objeto, sentiu
que o homem se apoderava da sua mão, que se inclinava, que a cobria
de beijos vorazes. Durante alguns segundos, atônita, não soube o que
fazer. Sentia a poucos palmos de distância aqueles cabelos crespos,
negros, duros como lã de carneiro, enquanto daquele corpo de homem
emanava o odor de todos os remédios encerrados naquelas gavetas.
Empurrou-o bruscamente, tonta, disposta a fugir. Mas ele barrou-lhe
o caminho, segurou-a por uma das mangas, dizendo:

– Não faça isso... pelo amor de Deus... Ah, se soubesse! Esperei


o dia inteiro... sabia que haveria de vir... nem que fosse um minuto...

– Não me segure — disse ela ofegante, pronta a agredi-lo com o


guarda-chuva.

O homem afastou-se de repente, como se tivesse sido ferido por


um raio de dignidade. Clara abriu a porta apressadamente, ganhou a
rua, quase sem sentir a chuva miúda que a fustigava. Ao chegar em
casa, deteve-se alguns instantes diante da porta, esperando que sua
emoção passasse. Jamais permitiria que Áurea soubesse daquela triste
aventura. O melhor seria entrar naturalmente, como se nada tivesse
acontecido. E foi o que fez, indo encontrar a outra tranqüilamente, na
mesma posição em que a deixara.

– Sílvio está dormindo — disse ela. — E acho que não tem febre
nenhuma, o melhor é deixar este remédio para amanhã.

— É verdade — concordou Clara —o farmacêutico disse que o


outro bastaria. É que o efeito é demorado.

E naquela noite Clara teve um sono agitado, preocupada com o


modo pelo qual trataria o farmacêutico, caso o encontrasse de novo.
Apesar da sua reação, não se julgaria ele no direito de persegui-la
novamente? Imaginou várias medidas, mas não foi preciso colocar
nenhuma delas em prática, pois ao encontrá-lo no dia seguinte
compreendeu que a sua vaidade era bem mais profunda do que sua
paixão. Como fizesse menção de abaixar a cabeça a fim de não
cumprimentá-lo, percebeu que era desnecessário, pois o homem
passara de cabeça erguida, olhando para o outro lado como se não a
tivesse visto. Intimamente Clara não pôde deixar de sorrir, ao se
lembrar da cena da véspera. Decerto julgara que se tratava de uma
presa fácil, que não seria difícil a conquista de uma mulher cujo
marido vivia ausente.
Entretanto, aquela simples aventura trouxera um pouco mais de
serenidade à vida de Clara. Não lhe foi difícil perceber que apesar de
todo o seu desejo, da sua angústia e do sentimento da sua solidão, sua
natureza jamais lhe permitiria que descesse à miséria daquelas
aventuras, toleradas por tantas mulheres casadas. Aquilo bastara para
adormecer, pelo menos momentaneamente, aquela revolta que não
conseguira criar formas definidas. Mas, se a sua natureza repelia a
consumação daquelas coisas, não lhe faltava, apesar de tudo, uma
certa vaidade feminina pela conquista realizada. Depois do acontecido,
como se tivesse reparado melhor nas suas necessidades, passou a
visitar o armarinho com maior freqüência, escolhendo fazendas mais
leves, indagando a respeito de modas, o que deixava Áurea
mergulhada no mais absoluto assombro. A uma das suas perguntas
mais insistentes, Clara erguera os ombros, afirmando com sorriso
ligeiramente ofendido que ainda não estava inteiramente velha e que,
se tivesse vontade, ainda poderia encontrar um ou dois namorados. E
nos dias subseqüentes, como se desejasse obter confirmação das suas
palavras um tanto levianas, mirou-se repetidas vezes no espelho.

Era esta outra das recordações de Sílvio. Quando, não se


lembrava mais. E mesmo a maioria dos detalhes se perdia num todo
confuso, de onde sobressaíam, derradeiros sinais de um mundo
desaparecido, a colher que o homem lhe introduzira na garganta, o
brilho sinistro dos frascos bojudos, os rolos de algodão e de gaze, e
sobretudo aquele gosto amargo que o remédio azul lhe deixara na
boca. Desse caos, o episódio surgia nebuloso, como as paisagens
entrevistas através de vidraças empanadas pela neblina. O certo é que
tia Áurea não participava da história, ficara em casa, enquanto ele
passeava pela mão de sua mãe. A um momento qualquer ela se
encontrara com uma conhecida. Da conversa, sua memória não
retinha mais nada. O que o preocupava eram as duas bolas coloridas,
colocadas no balcão da casa fronteira. Não a teria reconhecido, se não
fosse o homem de bigodes que lhe fazia sinais, apontando-lhe os
vidros, as caixas e as garrafas enfileiradas. Aproximou-se. Sim, era o
mesmo homem da colher, do remédio azul e do gabinete cheio de
tubos de vidro. Tomou-o pelas mãos, expandindo-se em amabilidades,
afirmando que no gabinete do fundo existia uma surpresa
especialmente para ele, Sílvio. E perguntava se já não sentia mais
nada, se estava completamente bom, por que desaparecera da sua
casa. Era ingrato assim, não se lembrava mais dos amigos? Não
esperava resposta para as suas perguntas, movia-se febrilmente em
torno, apanhando um ou outro objeto, sorrindo, apalpando-o como se
temesse vê-lo desfazer-se em poeira de repente. Sílvio ia respondendo
o que podia, esmagado pela onda de gestos, palavras e amabilidades.
Depois de rodar inutilmente em torno dele, o farmacêutico acabou por
abrir uma das gavetas, de onde retirou um pacote de caramelos.
Sacudiu-o triunfalmente aos olhos do menino, quando a porta se abriu
e Clara apareceu. Estava pálida, seus olhos brilhavam como se
palavras incendiadas pela cólera estivessem prestes a romper dos seus
lábios. Entretanto, sem dirigir palavra ao farmacêutico, avançou,
tomando Sílvio pela mão. E iria afastar-se do mesmo modo brusco,
deixando os caramelos abandonados sobre a mesa, se o pequeno,
vendo perdido o seu belo presente, não se pusesse a espernear,
gritando, numa demonstração violenta de revolta e obstinação. Clara
esforçava-se para ganhar a porta da rua, mas era visível que a cada
instante a luta se tornava mais desfavorável para ela. Afinal o
farmacêutico, vencendo o primeiro momento de estupor, conseguiu
avançar alguns passos, e pronunciou com voz que apenas se ouvia:

— Mas não é preciso isto... afinal de contas….

Exausta, Clara acabou por abandonar o filho, que correu a


procurar o pacote de balas. E o diálogo se feriu rápido, como se o
tempo fosse curto para lançarem um contra o outro todo o fel que
tinham acumulado dentro de si.

– Por que foi que o senhor trouxe o pequeno? Será possível que
ainda não tenha compreendido?

Ele abaixou os olhos, humilde:

– Compreendi, sim. Mas que é que tinha?

– Não tinha nada de mais — cedeu Clara, penalizada —, mas


acho que o senhor está enganado a esse respeito.

E inclinou-se sobre o balcão, como se naquela luta lhe faltasse


apoio. Desse modo, estava apenas a alguns passos do homem. Ele
mediu de repente todo o seu esforço daqueles dias, todos os seus
sonhos destruídos, tudo o que ousara pensar e não se realizara. De
súbito, sem poder conter aquele movimento que parecia nascer dos
últimos restos da sua pobre paixão esfacelada, avançou dois passos e
procurou tomar-lhe as mãos. Ela recuou de modo tão vivo que se diria
ter sido tocada por uma brasa.

– Ah, se soubesse tudo o que significa para mim! — exclamou o


farmacêutico, perdido, devorando-a com o olhar.

Então, pela primeira vez desde o início daquela história, Clara


teve medo — e a intuição de que estava diante de alguma coisa mais
grave do que um simples capricho. Aliás, quem conseguiria saber o
momento exato em que um desejo superficial se transforma,
deslocando com a sua força crescente todo o destino de um homem?
Quem saberia localizar com precisão essas pedras que desviam o rumo
das correntezas? A origem não seria um gesto daqueles, um recuo, um
desses olhares de inocente crueldade, como só podem dar aqueles que
não possuem nenhuma noção do que representa aquele instante na
vida do outro?

– Mas o senhor é louco, inteiramente louco! — exclamou


atônita.

O farmacêutico abaixou a cabeça, vencido. Sílvio surgiu de novo,


o rosto molhado, o pacote de balas apertado nas mãos. Hesitou
durante um minuto, olhando para o homem e para a mãe. Não tinha
perdido uma só palavra do diálogo, se bem que nada percebesse.
Apenas, com essa extraordinária compreensão das crianças, sentiu que
alguma coisa se passava e que aquele homem, que se mostrara tão seu
amigo, esperava da sua mãe algo que lhe era recusado. Aproximou-se
dela, tomando-a pela mão. E durante algum tempo ficaram os três em
silêncio, revolvidos pelas suas desencontradas emoções. Afinal,
dirigindo-se ao filho, Clara murmurou com voz surda:

— Vamos...

Sílvio obedeceu em silêncio, voltando a cabeça de vez em


quando, a fim de examinar se o farmacêutico não os acompanhava.
Mas o homem permanecia no mesmo lugar, como se lhe fosse
impossível remover o peso que tombara sobre seus ombros. Quando se
encontraram longe, Clara avisou ao pequeno que não deveria mais
voltar àquele lugar. E, como ele indagasse por que, chocado com a
injustiça de semelhante determinação, Clara tentou explicar que não
era direito, que não convinha, que ele ainda era muito pequeno para
compreender certas coisas...
Naquela noite, como não se sentisse bem, Clara dobrou o
bordado e disse a Áurea que ia recolher-se mais cedo. Notou que a
amiga a examinava com certa estranheza, como se duvidasse da
veracidade do que acabara de ouvir. Como sempre em situações
idênticas, Clara sentiu-se invadida por uma onda de impaciência, mas
dominou-se e, depois de guardar o trabalho inacabado na caixa de
costuras, despediu-se com um seco boa-noite e recolheu-se ao quarto.

Sozinha, foi tomada pelo arrependimento, conseqüência


inevitável do que se passava minutos antes. Afinal, que obrigação
tinha Áurea de suportar a responsabilidade de todo o serviço? Pois
ultimamente já era quase um costume seu abandonar a tarefa apenas
começada enquanto a amiga terminava tudo. Entretanto, Áurea não se
queixava de coisa alguma, se bem que as peças se amontoassem e o
trabalho aumentasse extraordinariamente nos últimos tempos. Nem
mesmo um simples suspiro lhe escapava dos lábios — aceitava tudo
serenamente, como se fosse sua, na realidade, a culpa do que não
andava direito naquela casa. Na penumbra do quarto, Clara
perguntava a si mesma de que matéria era feita aquela natureza
plácida, quais as ambições que tinha sufocado, qual a extensão exata
do seu conhecimento das coisas do mundo. E, ao pensar naquilo,
esforçava-se para visualizar a face da amiga de tantos anos, sem
conseguir precisá-la, como se um detalhe qualquer impedisse a
reconstrução daquela máscara, tornando-a imprecisa como esses
objetos que nos acompanham a vida inteira e que, uma vez distantes,
jamais conseguimos restabelecer a fisionomia real. É estranho como
vemos mal as faces que nos são mais próximas, como nos escapam as
sutis deteriorações que o tempo lhes empresta, como se confundem
com esses objetos que usamos e abandonamos sem perceber nunca a
verdadeira expressão.

Em silêncio, à medida das suas constatações, Clara não podia se


impedir de admirar a companheira, comparando aquela serenidade
com os seus próprios sentimentos, os seus desejos e as suas revoltas,
que atingiam tão fundo, vibrando às vezes até às derradeiras raízes da
carne. Ainda naquele momento, ao pretextar a doença, desculpara-se
apenas para esconder os seus sentimentos reais. Todos os
acontecimentos daqueles dias afloravam dolorosamente à sua
consciência. Não que tivessem chegado a lhe causar um abalo mais
forte, mais íntimo, capaz de fazer a balança pender um pouco mais
para o lado do farmacêutico. Ao contrário, o que a assustava era esse
poder gratuito de certas criaturas penetrarem assim no destino das
outras. Talvez não conseguisse apreender todo o seu pensamento, mas
era esta a primeira vez que lhe vinha semelhante idéia. Nunca lhe
tinha passado pela cabeça que alguém pudesse amá-la daquele modo,
sem correspondência de espécie alguma. Sentira que aquele homem
era um escravo e que poderia fazer dele o que bem quisesse. E, ainda
sob o choque dessa primeira descoberta, perguntava a si mesma como
não percebera antes, como pudera permanecer tão cega à violência
daquele sentimento nascido da irradiação da sua imagem, que armas
usara para lacerar inconscientemente uma alma que lhe era
completamente estranha. Na verdade o mistério era mais profundo,
repousava quase nesse terreno onde se misturam as sombras do amor
e da morte.

Mas não, estava divagando, tudo aquilo não passava de uma


loucura. Aquela fantasmagoria não teria forças para se sobrepor à vida
comum. Nada fizera, de coisa alguma o farmacêutico poderia acusá-la.
E obscuramente Clara começou a perceber o significado dessa anciã
que arrasta as pessoas para tão longe da trilha ordinária. Talvez fosse
esse o único meio de sacudir o letargo do cadáver que transportam.
Com esse fito muitos ousam todos os ardis, gemendo por uma
bofetada que faça vibrar um pouco mais a besta fascinada pelo sono. E
ai de nós, pensava ela, se não emprestamos devida realidade a essa
súplica… Qualquer coisa a mais aumenta, em particular, o terrível peso
das culpas recebidas como herança comum.

Afinal Clara se levantou, foi até à janela, abriu-a. O ar frio trouxe


nova vida aos seus pensamentos. Sem saber como, viu-se de repente
tal como seria muitos anos depois, na mesma posição, os cabelos
brancos, dominada por sentimentos idênticos aos daquele instante.
Sim, continuou ela a imaginar, não conheço este homem, nada fiz para
feri-lo, mas a sua sombra jamais deixará de me perseguir. Pior do que
esses a quem não amamos, e que nos abandonam cheios de
ressentimento, são os que não sabem odiar e nem esquecer, e nos
acompanham em silêncio. Existem amores que queimam, destroem,
deixam marca semelhante a doença terrível que tivesse cicatrizado — e
há os amores que não passam, que latejam sempre no fundo da carne,
que transformam um ser em satélite do outro. Estes são os amores
cuja origem foi escrita no desconhecido, nostalgia de seres talhados da
mesma matéria bruta, fragmentos que se perseguem sem jamais
conseguirem uma união perfeita. Qualquer coisa está perdida sem
remédio, uma chaga, uma ferida que se abriu na queda, uma alma que
se fechou ou um destino que se cristalizou na renúncia e no desespero.
Sim, jamais na sua vida teria ela uma tão lúcida compreensão desse
mistério que existe dentro dos seres e que é como o próprio limo da
natureza humana.

Todas essas considerações levaram-na a pensar na sua


existência atual, e mais uma vez sentiu a mesma sensação de vazio,
como se alguma coisa irremediável tivesse sido sacrificada no seu
destino. Não poderia continuar assim, era impossível. E, como águas
tumultuosas que se comprimem afinal no leito que a natureza lhes
concedeu, o seu pensamento concentrou-se inteiro, liberto das
amarras que o tinham retido até aquela hora, na lembrança do marido
ausente. Nada desaparecera do seu antigo amor, nenhuma das suas
fibras vitais fora tocada. Tudo existia ainda, com a força dessas
alianças seladas com algo mais duradouro do que a palavra humana.
Onde quer que ele estivesse, ainda que desaparecesse por muito
tempo, ainda que na sua memória se apagassem todos os vestígios da
vida passada, jamais deixariam de pertencer um ao outro. Essa idéia já
lhe ocorrera muitas vezes, mas nunca com tão intensa realidade. Clara
pôs-se a caminhar de um lado para outro, rememorando os fatos
passados, os desencontros, os sonhos alimentados durante meses, as
possibilidades do futuro. Não há nada irremediável sobre a terra, não
existe um só movimento de incompreensão, uma só palavra de
amargura, um só olhar de inimizade, que não possa ser redimido ou
que mais tarde não encontre seu resgate num gesto de perdão. Era isto
o que ela pensava naquele momento, julgando que tudo pudesse ser
removido e que Jaques acabasse por regressar ao lar. Entretanto, no
fundo, nessa obscura região onde o temor e a dúvida permanecem em
eterna vigília, perguntava a si mesma como pudera aquele sentimento
permanecer tanto tempo dentro dela, como resistira a tão duros
embates, a tão amargas provações. Na verdade, quem lhe garantia que
a vida pudesse ser recomeçada, quem ousaria negar a existência de um
elemento imponderável que separa as criaturas, muitas vezes no
momento exato em que a aparência de comunhão é mais perfeita? E
de novo, obstinadamente, uma voz repetia na sua consciência que
apesar de tudo não se tinha enganado, que aquele era um laço
indissolúvel, cuja fatalidade estava acima do seu entendimento. Aonde
iria Jaques na sua velhice, que faria sozinho, que outras mulheres
toleraria junto dele, que outras crianças substituiriam seu filho? E
Clara sentiu-se forte, capaz de lutar contra todas as dificuldades. Não
era uma simples vaga de otimismo, um desses sentimentos de
entusiasmo infantil que um nada costuma acender no coração de
certas criaturas. Detendo-se diante da janela aberta, ela reviu então a
sua vida inteira, desde os tempos de menina até aquele minuto, como
uma estrada desenrolada aos seus olhos. Era estranha a sua impressão
de que só naquele instante começara a viver, de que uma onda de luz
alagara a sua alma diante da janela aberta. Tudo o mais desaparecia,
como essas paisagens refletidas na superfície das águas e que um
sopro do vento inutiliza. Ou melhor, tudo o que já vivera parecia
perder de repente toda a densidade, dissolver-se como se não tivesse
existido senão para dar maior força à revelação encerrada no âmago
daquele minuto. A própria noite ditava o conselho implacável: fugir,
encontrar de novo o homem que o destino colocara em seu caminho,
viver aquele amor que lhe tinha sido destinado como parte desse
quinhão de felicidade que cada um tem direito sobre a terra. Fugir,
encontrar Jaques. Esta idéia começou a lhe martelar o pensamento
com a insistência dos movimentos de um relógio. Desta vez não
armazenaria razões inúteis, não procuraria nenhuma desculpa. Abriria
a porta simplesmente e diria: “Aqui estou. Vim porque pertencemos
um ao outro, porque nada mais conseguirá nos separar.” E teria a seu
favor a experiência da outra viagem. Não tentaria obrigá-lo a voltar
para casa, não forçaria a noção dos deveres caseiros, não agitaria aos
seus olhos o fantasma das obrigações que todo homem contrai com o
casamento. Desta vez seria tudo diferente. Nada do que já fizera e dera
tão maus resultados. Apenas deixá-lo-ia perceber o que ela descobria
naquele instante, a inevitabilidade dos destinos que se cruzam, que se
perseguem sem descanso. Não era possível que lhe faltasse força para
transmitir essa poderosa sensação de compromisso. Pois um amor que
resiste com tão inabalável firmeza à ausência e ao desconhecimento
perdura eternamente, como esses sinais que o tempo imprime nas
paredes úmidas. E Clara repetiu a palavra “eternamente”, sentindo
que aquilo soava como um objeto atirado no silêncio de um abismo.
Todos esses pensamentos trouxeram-lhe uma febre súbita, pôs-se a
caminhar pelo quarto sem saber o que fazia, o coração batendo, a
cabeça apertada entre as mãos. Não era possível que alguém
suportasse existência semelhante, ninguém resistiria viver com tão
desesperada intensidade. Mas não hesitaria mais um só minuto:
fugiria, iria encontrá-lo de qualquer maneira, era livre, não permitiria
que vontades estranhas interviessem no seu destino. E, como fizera
tempos atrás, retomou a maleta que já usara, colocou dentro dela,
apressadamente, o que era necessário à viagem. Mas fazia o trabalho
com certa violência, como se estivesse se debatendo contra a oposição
de uma pessoa invisível. De vez em quando, uma peça de roupa nas
mãos, detinha-se, temendo provavelmente o súbito aparecimento de
alguém. Mas tudo continuava em silêncio, apenas um cachorro uivava
na distância. Abandonou as roupas, encaminhou-se mais uma vez para
a janela. A umidade molhava o beiral, uma réstia de luz cinza
começava a se alargar no fundo do horizonte. A manhã nascia. Então
ela tomou a maleta, apagou a luz, cerrou cautelosamente a porta. No
corredor escuro, entretanto, foi tomada de súbito remorso ao lembrar-
se de Áurea, das peças amontoadas sobre a mesa. Não podia
abandonar a amiga desse modo, que diriam os outros? Trêmula,
hesitou durante algum tempo, a valise nas mãos. E, quase sem ter
consciência do gesto, regressou vagarosamente ao quarto. Naquela
atmosfera abafada sentiu-se ferida por súbita e angustiosa sensação de
impossibilidade, percebendo que tudo lhe fugia das mãos, como se as
coisas do mundo não passassem de desoladora miragem. Uma dor
aguda, insuportável, estreitou-lhe o coração. E mais uma vez
pressentiu uma dessas revelações fulminantes, um aprofundamento
da sua inteligência nessa dolorosa ciência que é o conhecimento de
certas particularidades da vida. É que já lhe aflorava ao pensamento a
intuição de que nada existe na terra senão as paixões dos homens — e
tudo o mais são obstáculos que se antepõem ao nosso caminho, as
paixões dos outros, a impossibilidade da vida, o tormento das
ambições continuadamente frustradas. Pela primeira vez, pronta para
partir, teve nítida consciência de que toda a sua existência até aquela
data tinha sido apenas uma luta silenciosa contra esses elementos
adversos, uma tentativa para impor a sua vontade, a surda aspiração
dessa tumultuosa vida secreta. Mas nem por isto essa descoberta
diminuiu o ímpeto do terrível combate; ao contrário, forneceu-lhe
novas armas, dotou-a com certa espécie de cinismo. Estava disposta a
levar até ao fim os seus desígnios. Pois ela era uma dessas naturezas
que não sabem abandonar as suas paixões, que as vivem até aos
derradeiros estremecimentos, com o lúcido tormento dos seres
impotentes para reprimirem uma experiência que sabem desgraçada.

Assim é que mais uma vez voltou a tomar a valise, dirigindo-se


com passos firmes para os fundos da casa. Toda a sua fisionomia
respirava agora essa decisão peculiar aos seres egoístas, em que uma
vaga violência se mistura à crueldade. Essa força, até agora
desconhecida na sua natureza, tinha lhe dominado todos os outros
sentimentos. Aliás, até mesmo a sua própria fisionomia parecia
alterada, dir-se-ia que ela se tornara mais velha, um leve frêmito de
avidez agitava-lhe as narinas, emprestando-lhe uma vulgaridade que
não possuía. Na sala de jantar, diante da porta que se abria para a
cozinha, deteve-se mais uma vez. Era evidente que no seu espírito a
luta voltava a se iniciar. Do fundo da casa vinha o rumor da água
escorrendo, das xícaras lavadas, toda a vibração da vida quotidiana
que ressurge. Uma palidez extrema derramou-se na fisionomia de
Clara. Tentou avançar, deu ainda dois passos, mas abaixou a cabeça,
vencida por aquele tremendo obstáculo invisível. Apesar de tudo,
murmurou com os lábios cerrados: “É inútil, não ficarei aqui, partirei
de qualquer modo.” Entretanto, continuava no mesmo lugar,
prisioneira dessa força misteriosa, cuja insondável vontade parecia
penetrá-la até o fundo da carne. Na cozinha Áurea pôs-se a cantarolar.
Então, devagar, como se não desse acordo do seu movimento, Clara
pousou a mala no chão e avançou finalmente, os olhos fixos na porta.
Ao empurrá-la, viu Áurea que esfregava uma cafeteira de folha-de-
flandres, e que se voltara com o ruído.

– Tão cedo assim? — perguntou ela sem disfarçar a sua


admiração.

Clara não respondeu, encostou-se à pia, examinando os objetos


que a cercavam. Mas o seu olhar era idêntico ao de uma pessoa que
tivesse acordado de repente num lugar estranho. Como que todos os
raciocínios feitos durante a noite se desfaziam agora, impotentes
diante da surda oposição dos objetos familiares, juizes implacáveis da
desordem interior que lhe tinha ditado tão absurda resolução. E
instintivamente ela procurou conservar o rosto na sombra, a fim de
que a amiga não lhe percebesse a palidez. Áurea, que se abaixara para
soprar o fogo, pôs-se a tossir, sufocada pela fumaça que se desprendia
da lenha ainda verde. Foi até à porta, voltou com os olhos molhados de
lágrimas.

– Foi bom que você acordasse cedo — continuou. — Precisava


mesmo de lhe falar. ..

Clara examinava-a com os olhos semicerrados, julgando-a com


frieza quase impiedosa. Tão cedo ainda, e todo o movimento da casa
começava pelas suas mãos, desde os menores cuidados até ao
essencial, à saúde do próprio filho.

– Sobre quê?
– Mas. . . sobre Sílvio! — exclamou Áurea fixando a amiga pela
primeira vez. E, como percebesse a sua fisionomia alterada,
aproximou-se com maternal solicitude:

– Que foi, não dormiu direito?

Impaciente, Clara respondeu com voz onde não se disfarçava


ligeiro ressaibo de desdém:

– Nada não. Uma dor de cabeça.

Áurea estava habituada a não insistir. Voltou a concertar a


lenha, enquanto dizia:

— Pois é sobre Sílvio. Já está no tempo de ir para o colégio.


Ainda ontem estive com a professora, ela me disse para você levá-lo
até lá. Achou que ele estava crescido, um homenzinho.. .

E notava-se que havia certo orgulho na sua voz. Clara


continuava a examiná-la, sentindo que se solidificava a sua impressão
de hostilidade. Não podia deixar de se sentir atingida em qualquer
ponto da consciência, ao ver o seu grosseiro vestido de chita vermelha,
as suas mãos calejadas, o seu pobre rosto de solteirona sem graça e
sem alegria. Mas fora Deus quem a colocara no seu caminho. Tinha
pretendido abandonar Sílvio como se apenas importassem os seus
desejos, como se fosse real aquela liberdade que se concedia. Mas tudo
aquilo não tinha passado de um sonho. A sua vida era aquela,
aprisionada entre os objetos da vida comum, junto àquela criatura sem
viço, que representava um desdobramento da sua pessoa, que cumpria
o que ela deveria ser, mas que não tinha coragem para realizar. Já
avançara demais nessa estrada rotineira, para poder voltar-se agora
contra ela. Qualquer coisa lhe dizia que tudo estava perdido para
sempre, que o seu tempo já tinha passado. E afinal de contas, apesar
de todas as coisas que imaginara, ela não era dessas mulheres que
ousam afrontar tudo somente para obter o que desejam. Ia até certo
limite, como no caso do farmacêutico, mas depois voltava ao ponto de
partida. Talvez fosse um sinal de mediocridade, mas as suas paixões
morriam no limiar da porta, sem forças para transpô-la, ingênuos
desvarios de uma mulher comum.

Áurea continuava a expor a conversa com a professora. Via-se


que tudo aquilo existia realmente para ela, que participava dos
acontecimentos, que sabia viver com paciência o dia-a-dia, extraindo
das horas a sua pequena dose de alegria. E, de repente, aquilo que em
Clara era um simples movimento de hostilidade mal delineada
converteu-se numa onda escura de sofrimento, ao mesmo tempo que
uma cólera pesada lhe subia ao coração. “Uma usurpadora”, pensou,
sentindo a figura de Áurea projetar-se sobre aqueles objetos caseiros
com uma estranheza quase diabólica. Mas teve vergonha e abaixou a
cabeça. No silêncio que se tinha feito na cozinha, ouvia agora o estalar
da lenha devorada pelo fogo. E. como esta pausa prolongasse o mal-
estar, Clara retornou à sala.

Mas antes de transpor a porta, a mão ainda no trinco, disse a


Áurea:

— Você tem razão, Sílvio já está no tempo de ir para o colégio.


E ali estava ele, pronto para iniciar a sua nova vida. Enquanto
Áurea arrumava no armário a roupa já passada a ferro, sentou-se nos
degraus da escadinha de cimento, olhando a rua onde uma poça
d’água brilhava ao sol da manhã. O traje que vestia era o mesmo que
mais tarde examinaria tantas vezes na fotografia amarelecida: terno
azul de gola branca, gorro à marinheira, um porta-merenda de folha-
de-flandres a tiracolo.

Quanto às emoções, era impossível precisá-las. Jamais poderia


dizer exatamente o que sentia. Só essa angústia frente ao
desconhecido, o coração batendo em pancadas rápidas, essa nostalgia
que ainda não sabe explicar por que e nem qual é a sua origem. Só esse
sentimento de alguma coisa grave, prestes a se passar, em que já
começariam a entrar em jogo suas forças de ser humano, livre nas suas
conquistas e nos seus deveres. Mas tudo isto ainda não passa de um
mal-estar quase físico, um aperto na garganta, uma vontade de chorar,
ou talvez, quem sabe, apenas terror de se achar sozinho pela primeira
vez.

Ainda ontem era completamente livre, nada conhecia além dos


muros que limitavam os seus domínios. Dentro, no pátio junto à
cozinha, tinham ficado os brinquedos abandonados, aquelas criações
ainda grosseiras, quase informes, nascidas da sua imaginação.
Entretanto, aquelas casas de papelão, as pontes, os cercados feitos
com paus de fósforos, tudo aquilo representava a sua primeira visão
do mundo, mas que desde agora se achava cristalizada em passado. Se
o seu pensamento pudesse avançar, chegaria talvez até à fria
constatação dessa coisa terrível que é possuir um passado, primeira
conquista da morte que dia a dia ganha terreno, até nada mais deixar
senão o espaço gelado onde apodrece um cadáver.

Mas, da vida, os seus olhos só distinguem o que o sol ilumina,


seus ouvidos só escutam rumores familiares, a voz de Áurea lá dentro,
as recomendações que lhe trazem tão repentina e insensata alegria, os
sons que enchem a manhã de surda vibração. Dentro em pouco
encontrar-se-ia com outras crianças, também elas mal-nascidas para a
vida, mas prontas para participarem do destino comum, já lançadas
nessa correnteza de hábitos e obrigações a que os homens não podem
se furtar, sob pena de transformarem a existência em lenta descida ao
fundo de um abismo. Também para ele tudo se desenrolaria
naturalmente, aprenderia a ler, conheceria os primeiros sofrimentos,
ganharia amigos, voltaria a perdê-los, acabaria por desprezá-los,
matando um a um no fundo do coração, com palavras e gestos usados
há milhares de anos, até que nada mais restasse senão essa solidão
enorme em que a morte é pela primeira vez olhada face a face.
Decerto, ainda era muito cedo para que Sílvio compreendesse tudo
isto, mas outro não era o significado daquele minuto que parecia
demorar-se mais, concentrando no espírito do pequeno toda a
inquietação oriunda de tão densos pressentimentos. Foi nesse
momento que Áurea surgiu finalmente à porta:

— A fábrica já apitou onze horas, Sílvio, e se não andarmos


depressa vamos chegar atrasados.

Tomou-o pela mão e puseram-se a caminho. Alguns passos


adiante, na praça em que as árvores deitavam grandes sombras
imóveis, encontraram dois ou três pequenos que também se dirigiam à
escola. Traziam porta-merendas iguais ao de Sílvio, e assim que o
descobriram puseram-se a fazer sinais, enchendo a manhã de límpidas
risadas. Então as últimas dúvidas do menino se dissiparam, sentiu-se
forte, abandonou a mão de Áurea e pôs-se a caminhar na frente,
sozinho.

No pátio de recreio, sentado à sombra de uma velha mangueira,


Sílvio mastigava sua merenda e olhava os companheiros. Nunca vira
tantos meninos reunidos. Saltavam, riam, davam gritos, enchiam o ar
de um rumor pesado que se prolongava sob as copas pulverizadas em
flores e que se ia perder ao longe, sobre os tetos entrevistos além do
muro. Sim, lá estava o muro, com a caliça branca cheia de grandes
rombos, isolando a rua, a estrada, a sua casa, tudo o que ele conhecia
tão bem e que até aquele momento compusera o mundo em que
reinara solitário. A melancolia que sentira pela manhã continuava a
estreitar-lhe o coração. Bem sabia que dentro em pouco Áurea estaria
ali de novo e que assim tudo estaria terminado naquele dia. E quando
chegasse à casa, no momento em que estivessem reunidos à mesa,
contaria o que se tinha passado, exagerando sem querer detalhes de
coisas que ainda não compreendia.

Na verdade, o colégio fora uma decepção. Aquilo com que tanto


sonhara, sobre que fizera tantas perguntas, estava longe de constituir a
paisagem que a sua desenvolvida imaginação construíra. E, até aquele
instante, ainda não lhe fora possível vencer o desapontamento causado
pela sala quase escura, com a mesa onde descansavam o cone, a esfera
e o cubo, com o mapa de gravuras ao fundo e a lousa negra sobre um
cavalete. Tudo aquilo soava como uma linguagem estranha, era
demasiado vago e inconsistente para a sua alma primitiva. A
professora explicava a lição com voz arrastada, batendo palmas de vez
em quando, a fim de extinguir misteriosos cochichos que vinham do
fundo da classe, indagando a um e outro para ver se tinham prestado
atenção ao que explicara. Uma pesada dormência pairava sobre as
coisas, tornando os gestos lentos, as palavras distantes, as pálpebras
semi-cerradas pelo sono. E Sílvio tinha certeza de que se fechasse os
olhos ouviria o córrego escorrendo, sentiria o perfume da paineira
grande do fundo, a maior, a que já estava completamente florida. E, se
demorasse mais o pensamento, perceberia até mesmo aquelas bruscas
faiscações da água, reconheceria um a um todos os pequenos segredos
do seu mundo perdido. Quando voltasse iria direto ao ponto em que
costumava se deitar, a fim de examinar se nada se tinha alterado com
a sua ausência, se as formigas continuavam a construir ao pé da raiz
grossa, se a mãe teria vindo buscar o passarinho implume que caíra do
ninho. Quem sabe não estaria morto, apesar de todos os seus
cuidados? Vendo-o tão frágil, tão desamparado, enrolara-o no algodão
e colocara-o num dos ramos mais baixos da mangueira. A essa altura,
a campainha ressoou longamente, sobressaltando Sílvio e toda a
classe. E em fila tinham saído para o recreio, vasto terreno limpo e
claro, onde as árvores lançavam sombras protetoras. Ele não conhecia
ninguém, sentia-se distante, estrangeiro àquelas ruidosas expansões,
indiferente às combinações e apostas. Ia e vinha de um lado para
outro, detendo-se de grupo em grupo, esforçando-se para
compreender aquelas palavras que lhe pareciam tão diferentes, tão
inadequadas ao mundo em que vivera até agora. E, à medida que os
minutos passavam, sentia uma onda de sofrimento afluir
vagarosamente ao seu coração. Mas continuava o passeio, já agora
distanciado de todos os grupos, escutando apenas aquele rumor que
vinha até ele como o surdo remoer de uma máquina distante. Alguém
passou correndo, ouviu um grito, uma risada, depois o silêncio de
novo. Uma nuvem de poeira rodopiava ao longe. Sentara-se então sob
a mangueira, mastigando a merenda quase sem sentir-lhe o gosto. E
de repente, como ouvisse de novo as risadas que se aproximavam,
sentiu uma enorme tristeza, abaixou a cabeça a fim de ocultar as
lágrimas que lhe subiam aos olhos. Esteve assim durante algum
tempo, a merenda inútil nas mãos, esperando que aquilo passasse.
Mas as lágrimas teimavam em correr, e ele via todas as coisas através
de uma nuvem brilhante, cortada de reflexos vermelhos e azuis.
Levantou-se novamente, foi até junto ao muro, apanhou uma pedra,
afugentou uma lagartixa que dormia numa das fendas. E sentiu-se
mais tranqüilo com esse simples gesto, como se houvesse afinal
restabelecido contato com as coisas que abandonara. Toda a
melancolia se esvaiu no seu coração, olhou em torno com sadia
confiança, pressentindo dias em que aquele terreno não lhe seria tão
hostil como agora.

Tempos depois, como se sentisse mal durante o recreio, Sílvio


foi levado para a enfermaria, isto é, para uma sala pequena, estreita,
onde havia uma cama de ferro pintada de branco, uma pequena mesa
do mesmo metal e dois ou três banquinhos, além de uma estante
branca cheia de frascos coloridos. O sol entrava por uma janela alta
que se abria para a rua. Foi aí, passado o mal-estar, que Sílvio
conheceu o seu primeiro amigo. Era uma miúda e estranha criatura,
de olhos verdes e gestos nervosos, cabelos de um louro quase ruivo.
Quando Sílvio entrou, achava-se sentado num dos cantos, um livro
aberto sobre os joelhos. Logo que a professora deitou o doente na
cama de ferro, lançou-lhe apenas um olhar de breve curiosidade e
voltou a mergulhar na leitura Depois de recomendar absoluto repouso,
a professora saiu, cerrando cuidadosamente a porta. Sílvio fechara os
olhos, escutando um misterioso som que se assemelhava ao vôo de
uma grande abelha. Além disso a presença daquele menino
perturbava-o, pensava em levantar a cabeça, dizer alguma coisa, mas
não tinha forças. E sentia-se vagamente humilhado com isto. Esteve
assim de olhos fechados durante algum tempo, até que, sentindo o
zumbido se distanciar, reabriu as pálpebras — e desta vez deu com as
pupilas verdes muito próximas, examinando-o com indisfarçável
curiosidade. Percebendo-se apanhado, o pequeno tentou fugir, mas,
mudando de idéia, voltou a se aproximar da cama, indagando o que é
que Sílvio estava sentindo. Este tentou explicar que fora uma coisa que
lhe dera de repente, quando estava no recreio. Estivera muito tempo
ao sol e de repente vira tudo escuro. Apoiara-se ao muro e a professora
lhe dissera que era melhor descansar um pouco. Mal terminara a
explicação, o pequeno pusera-se a falar. As palavras brotavam
ardentes dos seus lábios, num tom abafado, ansioso, como se não
tivesse muito tempo para dizer tudo o que precisava. Assim é que
Sílvio ficou sabendo que ele ficava todos os dias ali na enfermaria, que
não tinha ordem para ir ao recreio, que era doente, podia se machucar
ou acontecer alguma coisa. Apesar da sua pouca idade, Sílvio reparou
que o seu pequeno interlocutor não possuía uma noção muito segura
de qual fosse o perigo que o ameaçava. Aliás, concluiu ele
apressadamente, não se incomodava com essas restrições, já estava
muito adiantado, sabia ler perfeitamente, distraía-se com livros de
história que a professora lhe arranjava. Ela mesma não gostava muito
que ele freqüentasse as aulas comuns, dizia que estava precisando
agora de um curso mais adiantado. O pequeno falava com grande
rapidez, engolindo metade das palavras, auxiliando a exposição com
caretas e outros singulares “tiques” nervosos. Apesar dessa vivacidade,
havia nas suas faces pálidas alguma coisa macerada e triste, um hálito
apenas perceptível de quartos abafados e dias de inverno. Quando
falava tornava-se mais pálido ainda, como se o esforço despendido lhe
afugentasse as últimas gotas de sangue. Não raro brandia o livro,
levantava-se, voltava a sentar, perdendo-se numa torrente
ininterrupta de gestos. Quando acabou, Sílvio sentiu que o zumbido da
abelha recomeçava. Parecia que um enorme inseto prisioneiro
esforçava-se por escapar através dos seus ouvidos. Continuou em
silêncio, olhos semicerrados. Percebendo o que se passava o pequeno
voltou cautelosamente ao seu banquinho. Mas Sílvio sentiu que
conservava o livro fechado entre os joelhos, a atenção presa aos seus
movimentos. O sol, violento, incendiava os frascos coloridos. Um
pesado silêncio dominou a pequena enfermaria. E dentro em pouco,
como Sílvio reabrisse os olhos, o pequeno se aproximou de novo,
inclinando sobre o doente a face onde se abriam duas pupilas
inquietas. Como Sílvio sorrisse, tornou a se animar, pôs-se a contar a
história que estava lendo, misturou-a com outras, perdendo-se num
verdadeiro emaranhado. Mas à medida que falava suas feições
perdiam o aspecto doentio, iluminavam-se, vivendo com estranha
força os incidentes que narrava. Sílvio escutava-o atentamente, menos
pelo interesse da história do que pela extraordinária mobilidade
daquela fisionomia infantil. Afinal, quando houve uma trégua na
trama cerrada da narrativa, indagou:

– Como é que você se chama?


– Camilo — respondeu prontamente, sem disfarçar certa altivez,
que afinal não tinha grande razão de ser.

Depois de novos minutos de silêncio, Sílvio percebeu que ligeira


nuvem toldava o brilho do seu olhar.

– Tenho uma coisa aqui dentro — disse ele apontando para o


peito — e meu pai diz que é fraqueza.

Sílvio compreendeu ainda que aquilo explicava quase tudo do


seu novo companheiro, inclusive as faces pálidas, o brilho dos olhos e
a agitação. Mas uma onda de misteriosa fraternidade derramou-se na
sua alma. Não sabia por enquanto o que era um amigo, não conseguira
se identificar até aquele minuto com nenhum dos seus colegas, mas
diante daquela curiosa criatura sentia aproximá-los um sentimento
novo.

– Onde é que você mora?

– Na curva da estrada, junto à caixa d’água.

Conhecia o lugar, já passara por lá muitas vezes. Havia perto


uma ribanceira que ia dar diretamente numa olaria, junto da qual
secavam grandes pilhas de tijolos vermelhos.

– Um dia desses passo por lá — disse ao pequeno.

O outro examinou-o durante um instante e depois, pousando a


mão no seu braço, disse com voz que a emoção tornava abafada:

– Vá sim. Tenho uma porção de coisas de que você vai gostar…


E Sílvio sentiu que essas “coisas” eram da mesma natureza que
aquelas que povoavam o seu mundo.

Por essa época, ele fez a sua primeira comunhão. Áurea, que
freqüentava a igreja e possuía várias amigas entre as devotas do lugar,
conversara a este respeito com uma delas, Maria Ernestina de grande
ascendência por causa dos seus hábitos recatados. Era ela uma
solteirona extremamente magra, de voz áspera, que usava óculos de
aros de tartaruga e possuía grandes mãos de dedos afilados e brancos.
Vestia-se com grande severidade, caminhava sempre de olhos baixos,
desfiando um interminável rosário de contas negras. Queixava-se
muito de doenças mais ou menos imaginárias, dores e sufocações,
vivia às voltas com remédios e receitas fora do uso. Aos mais íntimos
— e todos o eram, logo que estivessem dispostos a ouvi-la num canto
de esquina — confessava que andava preocupada com vozes que
escutava à noite, chamados e batidas nas janelas. Às vezes chorava,
tomada de esquisitos pressentimentos. Mas tudo isto não a impedia de
trabalhar quotidianamente na Agência do Correio local, entre vidros
de cola e volumosas barras de lacre vermelho. Quase toda a cidade
vinha conversar com ela pelo estreito guichê, enquanto Maria
Ernestina pesava cartas e amarrava embrulhos que deviam partir pela
primeira mala. Sabia de tudo, estava informada de todas as coisas,
aconselhava muita gente, resolvia até mesmo casos complicados. Não
se passava um só dia sem que Áurea fosse procurá-la. Juntas
discutiam graves problemas da Igreja, enquanto Maria Ernestina fazia
citações com o Evangelho aberto ou lembrava o exemplo de casos
acontecidos há muito. Era esta uma das suas especialidades, pois
estava informada até mesmo do que já se passara há vários anos,
quando a cidade mal principiava a nascer. Todos diziam que pelos
seus lábios deslizava a crônica inteira do lugar. Enquanto falava, suas
mãos adquiriam incrível agilidade, folheavam páginas, pesavam
embrulhos, contavam selos, faziam e desfaziam nós complicados.

Era ela também quem ministrava os rudimentos do catecismo.


Numa das suas conversas habituais, Áurea falou sobre Sílvio,
externando os cuidados que a educação do pequeno lhe exigia. Então a
solteirona pedira que a amiga o levasse imediatamente lá, afirmando
que já o vira várias vezes na companhia de moleques da pior espécie.
Não havia dúvidas de que já estivesse em tempo de fazer a sua
primeira comunhão. Como Áurea hesitasse, lembrando-se de Clara e
da sua indiferença pelas coisas da religião, Maria Ernestina
abandonara o lacre fumegante com que lidava, pusera as mãos na
cintura e indagara se ela o julgava um menino diferente dos outros.
Deixasse por conta dela, que os conhecia de sobra e sabia que todos
eles valiam a mesma coisa. Ouvindo-a, Áurea sentiu uma misteriosa
ponta de inquietação, pensando que talvez tivesse sido melhor não
tocar em assunto tão delicado. Tentara protestar, mas acabara
cedendo ante aquelas mãos pálidas, que se agitavam de modo tão
frenético. Depois de avisar Clara, trouxera Sílvio pela primeira vez.

Mais tarde ele se lembraria daquelas manhãs compridas,


quando o sol queimava a encosta da serra, a meio caminho da qual
ficava a pequena Agência do Correio. Quando a brisa passava, a placa
de ferro rangia nas suas velhas dobradiças. Pousavam nos fios
pássaros de cores raras, que denunciavam a proximidade da mata,
enquanto pregões longínquos subiam da cidade. Um cheiro intenso de
lacre derretido enchia a sala atravancada de latas e embrulhos. Sílvio,
mal chegava, ouvia da escada a voz da solteirona gritando: “És
cristão?”, e ele respondia, enxugando o rosto molhado pelo esforço da
subida: “Sim, sou cristão pela graça de Deus.” Maria Ernestina
prosseguia a lição, ao mesmo tempo que enfileirava junto à janela os
pesos da balança. De vez em quando uma cabeça surgia no guichê, ela
se voltava com um sorriso de felicidade, interrompia a explicação para
contar um caso. Mas quando não surgia nenhum freguês, a sala já toda
arrumada, ela sentava-se para adiantar o tricô que andava bastante
atrasado. As perguntas continuavam rápidas, incisivas, quase
violentas. Às vezes Sílvio se enganava na resposta, distraía-se olhando
um “galo-da-serra” que cantava lá fora ou a grosseira corrente de
papel de seda que enfeitava o fio da lâmpada. Então Maria Ernestina
se detinha, pousava o tricô e examinava-o durante algum tempo com
olhos que fuzilavam por detrás do vidro.

— Não se brinca com coisas da religião — dizia.

E voltava a trabalhar com maior furor, a voz trancada por uma


severidade que enchia de sombras o seu rosto macilento. Quando a
lição terminava, Sílvio sentia-se entorpecido, incapaz de se levantar,
de fazer um gesto sequer. Um gato atravessava lentamente a sala.
Então ele se resolvia, levantava-se, os livros debaixo do braço. Durante
alguns minutos, apoiado à cancela pintada de verde, aspirava a brisa
perfumada e fria que vinha da serra. Depois retomava o caminho de
casa, detendo-se para apanhar amoras e goiabas que apontavam sobre
os muros alheios.

Pouco tempo depois realizou-se sua primeira comunhão. Nunca


mais se esqueceria da igreja abafada em sombras, da voz melodiosa e
pura que cantava ao harmônio, no alto do coro, bem como da sua
própria e maravilhada emoção. Vários círios ardiam no altar do
centro, onde a Virgem Maria, num círculo de luzes, ostentava o título:
“Sede Sapientiae”. Padre Abreu, com a mais bela das suas roupas,
oficiava com gestos solenes, acompanhado pelo som das campainhas
que um pequeno sacristão fazia tilintar de vez em quando. E Sílvio não
sentia nenhum temor, como esperara, depreendendo das
recomendações de Maria Ernestina; tudo aquilo lhe parecia simples e
tranqüilo. Era como se cumprisse um rito, que outros vinham
cumprindo há milhares de anos.

Ao se aproximar do altar, porém, sentiu uma espécie de


vertigem, as luzes se misturaram, não conseguiu mais ler a legenda
sobre a cabeça da Virgem. Não era bem uma vertigem, mas apenas um
sentimento novo que irrompia na sua consciência, uma espécie de
libertação. Enquanto se ajoelhava, sentia que tinha esquecido tudo o
que aprendera até aquele instante, os artigos e as lições
cuidadosamente preparadas, os gritos e as sabatinas suportadas no
curso de tão longos dias. Desapareciam todas aquelas noções
marteladas a custo, e uma compreensão nova, uma emoção mais
ampla e mais profunda surgia no seu coração. De longe, o sorriso da
Virgem parecia animá-lo. “Sim, sou eu”, parecia ela dizer-lhe, “estou
aqui, nada temas.” E realmente Sílvio não temia coisa alguma, uma
inesperada confiança substituía nele todo o rígido depósito das
doutrinas aprendidas a custo, fazendo-o penetrar nesse território de
amor humilde e puro, de fé e de esperança, que jamais deveria
abandonar inteiramente no decorrer da vida.

10
Foi pouco depois que Camilo apareceu na classe pela primeira
vez. Ninguém deu pela sua entrada. Sentou-se numa das extremidades
da sala e, apesar da rígida imobilidade em que se conservou, era visível
que não prestava atenção às palavras da professora.

Mas pouco a pouco foi perdendo a timidez, lançou rápidos


olhares de soslaio, abriu um caderno, redigiu um bilhete para Sílvio,
no qual contava todo o enredo da última história que lera. Apesar da
sua curiosidade, Sílvio não conseguiu entender coisa alguma daquelas
grandes letras irregulares. No recreio, entretanto, reuniu-se ao novo
companheiro, que lhe mostrou uma série de desenhos feitos em casa,
um tabuleiro para jogo de damas e um pião laboriosamente talhado
em madeira. O dom de invenção de Camilo parecia inesgotável. Sílvio
interessou-se a tal ponto por estas coisas que passou a só andar em
companhia do novo amigo. E, nos dias subseqüentes, foi mesmo
procurá-lo na sua própria casa. Nessas ocasiões desciam, a ribanceira,
iam até a olaria, aproveitavam sobras de argila para fazerem grosseiras
esculturas. Sílvio esquecia-se do tempo contemplando a extraordinária
habilidade de Camilo, tentando ele próprio imitá-lo algumas vezes,
sem conseguir jamais obter os mesmos resultados. Em outros dias,
como o sol já tivesse baixado, iam até a igreja, juntavam-se aos
meninos da vizinhança, tomando parte ativa nas brincadeiras. Nesses
momentos Sílvio se destacava, defendendo o amigo contra os ataques
dos outros, auxiliando-o nos momentos difíceis, acompanhando-o no
regresso até perto de casa. Certa vez levou Áurea para conhecer a mãe
do companheiro. Ela foi e ficou encostada à grade meio arruinada pelo
peso das trepadeiras, enquanto a mãe de Camilo detalhava o que era a
doença do pequeno. Tratava-se de uma mulher simples, em cujo rosto
era possível vislumbrar a marca deixada pelas decepções e pela
pobreza. No momento em que Áurea se despedia, a velha lhe deu um
ramo de flores, pediu que voltasse mais vezes. E desde então era a
própria Áurea quem descobria motivos para enviar o pequeno à casa
de Camilo, com recados ou presentes domésticos.

O inverno se aproximava, as primeiras chuvas já tinham caído.


Foi por essa ocasião que o vigário resolveu levar avante o seu velho
projeto de organizar uma festa de barraquinhas em benefício da igreja.
Para esse fim mandou construir no terreno em torno várias barracas
de madeira, que não tardaram a ser invadidas pelos meninos, numa
tão grande algazarra que afugentava as andorinhas aconchegadas nas
traves da capela. Num dia em que Sílvio saía para se encontrar com o
bando, deparou junto ao portão com um desconhecido que lhe
estendeu uma carta. Tomou-a, foi entregá-la a Clara, que molhava no
tanque uma peça de linho novo.

No primeiro momento, com o envelope nas mãos, ela não


compreendeu direito. Só depois, quando Sílvio repetiu que um caboclo
estava esperando à entrada, percebeu que se achava diante de alguma
coisa extraordinária, que não era normal o fato daquela carta estar nas
suas mãos. E logo o seu pensamento se fixou em Jaques, e ela não teve
mais dúvida de que vinha da parte dele ou que tratava de algo a seu
respeito. Só aí suas mãos tremeram — não por um pressentimento de
desgraça, mas porque aquele envelope acordara, de um só jato no seu
coração, a lembrança desse passado que julgara inteiramente morto.
Mas aquilo foi como uma onda repentina que viesse e fosse se perder
ao longe. De novo uma espessa tranqüilidade desceu ao seu espírito.
Depois de recomendar a Sílvio que mandasse o portador esperar,
encaminhou-se para junto da janela, rasgou o envelope e leu o
seguinte:

“Clara: não tenho nenhum direito de me


socorrer de você neste instante. Mas
também não tenho mais ninguém a quem
me dirigir, estou numa situação difícil, de
passagem por uma cidade vizinha a Vila
Velha. O caso é que preciso com urgência de
algum dinheiro, qualquer quantia serve,
uns trezentos ou quatrocentos mil-réis, por
exemplo. O portador, que é meu amigo, se
encarregará da encomenda. Sei que você
compreenderá tudo. E que me perdoa.
Jaques”

O seu primeiro movimento foi de surpresa. O papel apenas


tremia-lhe nas mãos. Depois, entretanto, uma vaga sensação de medo
apossou-se do seu coração. Alguma coisa devia estar acontecendo. Era
verdade que conhecia Jaques bastante para saber que ele não recuaria
diante de coisa alguma, que usaria tudo para satisfazer muitas vezes
um simples capricho. Mas aquela carta tinha um sentido diferente, era
a voz de um Jaques que ela não conhecia, escondendo as razões do seu
gesto, quase humilde. E a essa altura ela voltou a olhar o envelope com
estranheza. Sim, era possível, mesmo as naturezas mais rebeldes se
modificam, não existe nada que escape à esmagadora pressão do
tempo. Voltou a reler a carta, e desta vez as palavras não lhe
pareceram tão extraordinárias. Ao contrário, devia ser exatamente
assim, até se admirava de que não tivesse descoberto logo o que elas
realmente significavam. Qualquer coisa como um vago sentimento de
júbilo dilatou o coração de Clara. Com o papel entre os dedos, era
como se tivesse o próprio Jaques a seus pés, vencido. Mesmo agora,
depois que os anos tinham alargado entre eles uma tão grande brecha,
ela não conseguia diminuir aquela sensação de inferioridade, de uma
diferença fundamental pairando entre eles. Talvez fosse apenas uma
consciência mais forte dessa luta que se desenrola eternamente entre o
homem e a mulher, inimigos devorados pela nostalgia de uma fusão
impossível. Ou talvez fosse apenas a derradeira onda oriunda do
ressentimento causado pelo seu injusto abandono. O certo é que o seu
coração batia mais forte, como se realmente ela tivesse entrevisto uma
possibilidade de vitória.

Através da vidraça descida, procurou então distinguir o homem


que trouxera a carta. A noite começava a descer, não era muito fácil
distinguir as feições do portador. Entretanto, lá estava ele, encostado
junto à grade, a cabeça baixa, provavelmente enrolando um cigarro.
Percebia-se que era um viajante pelo chapéu de abas largas que usava,
idêntico ao dos tropeiros. Talvez fosse melhor descer, conversar com
ele, investigar o fundo real do acontecimento. Mas no momento em
que atingia a porta uma brusca transformação se operou no seu
espírito. A sua mão escorregou no trinco, sentiu-se sem forças para
transpor os umbrais. O seu sentimento de superioridade não tinha
durado senão um minuto. Tudo se esboroava de repente, todo aquele
ímpeto se desfazia em cinza, em átomos de cinza. Decerto, aquela
rápida consciência da sua força era a primeira denúncia de uma
realidade que nascia, que viria a se fixar mais tarde, orientando as
possíveis relações entre Clara e o marido. Mas quase sempre o hábito
dá a sentimentos já mortos uma aparência de imutabilidade, criando o
mecanismo de uma vida extinta que encerra entre paredes geladas o
espírito à procura de paisagem mais ampla. Assim, recuando dois
passos, Clara sentiu reajustar-se ao seu espírito o sentimento de luta e
indecisão. Como que os objetos daquela sala avançavam acusadores,
reinstalando pela sua simples presença a rotina dessa vida sem alma.
E agora, aos seus olhos, todas aquelas coisas giravam num vertiginoso
redemoinho. Não era só a sua efêmera impressão de vitória que se
desfazia, mas até mesmo sua decisão de ir ao encontro do homem, sua
própria consciência da realidade. Perdida, impotente para reprimir o
tumulto do seu coração, apertou a cabeça entre as mãos, os lábios
cerrados. Mais uma vez, tudo se lançava nas sombras do mistério
como uma torrente furiosa.

Clara voltou à janela, a carta amassada entre os dedos.


Nenhuma idéia lúcida conseguia se fixar no seu pensamento. Só o
nome de Jaques, só aquelas duas sílabas afloravam aos seus lábios. Lá
estava o homem, com o chapéu de abas largas. Entretanto, já não era
mais possível distinguir se estava de cabeça baixa, a noite tinha
descido completamente. Então, o rosto colado à vidraça, ela sentiu
mais uma vez que devia partir. Impossível não ceder à força daquele
apelo. E viera naturalmente, como se fosse uma conclusão lógica, sem
violência, sem hesitação. Partir, encontrar Jaques como tantas vezes
planejara. E agora era tão fácil, bastava acompanhar aquele homem de
chapéu de abas largas que estava do lado de fora. Aquela facilidade
emprestou uma súbita estranheza à imagem de Jaques ausente,
converteu-o em qualquer coisa próxima, quase grotesca na sua
imediata possibilidade de visualização. Mas aos poucos tudo se
acalmava dentro dela, todas as inquietações cessavam. Os móveis
recuavam rigidamente para o lugar antigo. Jaques reassumia
docilmente a sua posição de sempre, distanciava-se de novo, perdia-se
mais uma vez na névoa e no inacessível. E Clara olhou o céu, onde
brilhavam estrelas isoladas. Sem saber por que, lembrou-se do tempo
em que freqüentara a igreja, procurando violentar a sua natureza. E
depois tudo se tinha aquietado, uma bolha que estremece um minuto e
desaparece na superfície da água. Naquela época também o hábito
reassumira o seu poderoso lugar. E a grande e obscura correnteza a
tinha levado, como a tantos outros.

Foi sob o domínio destas novas impressões que ela se dirigiu a


uma das gavetas da cômoda, e retirou de lá uma pequena caixa onde
guardava suas economias. Apesar de já estar bastante escuro, ela não
se deu ao trabalho de acender a luz. Mergulhou as mãos e retirou tudo
o que o cofre continha, enrolando as notas num lenço. Depois, colocou
um xale sobre a cabeça e saiu mansamente do quarto, encaminhando-
se para o jardim. A escuridão era quase completa. Percebeu o homem
encostado à grade, esforçando-se para acender um novo cigarro. Ele
não tinha percebido a sua chegada, e Clara se manteve a alguns passos
de distância, o lenço apertado entre as mãos. Um inesperado temor
paralisava- lhe os movimentos. Mas, como o homem lançasse uma
baforada para o alto, aproximou-se resolutamente e, depois de
cumprimentá-lo, entregou-lhe o dinheiro. Durante um minuto
permaneceram em silêncio, frente a frente, esperando algo que eles
próprios ignoravam o que fosse. Clara mal respirava, sentindo o vento
agitar as pontas do xale com que se cobrira. Afinal o homem levou a
mão à aba do chapéu, e já ia se retirar quando ela fez um supremo
esforço e disse:

– Espere um instante. Há muito tempo que não vejo meu


marido, talvez o senhor pudesse me dizer alguma coisa a respeito dele.
Vai passando bem de saúde?

Ele pareceu um pouco embaraçado, baixou os olhos, rodando


nervosamente o largo chapéu entre os dedos.

– Sim senhora, vai muito bem.

E toda a sua atitude parecia repelir qualquer tentativa de


aproximação. Clara sentiu a sua surda oposição e ficou em silêncio,
compreendendo que mais uma vez suas decisões se esboroavam.

– Não sei onde ele está agora — continuou o tropeiro —, mas


tenho ordem para deixar este dinheiro na casa de uns amigos.

Ela quis perguntar outras coisas, a coragem faltou-lhe,


encostou-se desalentadamente à grade. Uma idéia repentina
atravessou- lhe o espírito, julgou que talvez aquilo tudo tivesse sido
apenas um estratagema de Jaques. Mas não era possível que ele
tivesse descido tanto. O homem esperou ainda alguns instantes e,
como Clara não lhe dissesse mais nada, levou novamente a mão à aba
do chapéu e se afastou. Ia depressa, ela percebeu que aquilo se
assemelhava mais a uma fuga. Continuou no mesmo lugar, seguindo
com os olhos o vulto que diminuía na escuridão. Dentro em pouco
perdeu-o de vista. Só o rumor apagado dos seus passos ainda se ouvia.
Depois o silêncio foi absoluto, uma rajada de vento fez rodopiar
algumas folhas secas, uma risada retiniu ao longe. Então, lentamente,
ela abriu a porteira e penetrou de novo em casa, o coração afogado sob
uma vaga de desgosto, onde apesar de tudo se misturava não sabia que
miraculosa e imponderável parcela de íntima alegria.

Foi naquela noite a primeira vez que Sílvio perguntou pelo pai.
De ordinário Clara nunca tocava neste assunto, nem ele manifestara
jamais a menor curiosidade a esse respeito. Como o pequeno falasse
sobre a carta, não soube o que responder, inventou uma desculpa
qualquer, disse afinal que o pai estava viajando. Sílvio tinha um
caderno aberto sobre os joelhos e a fitava como se fosse a primeira vez
que tivesse consciência da sua presença, do que ela realmente
significava para ele. Clara sentiu nitidamente a pergunta pairando
entre ambos, procurou sorrir, contou um caso sem importância, pediu
notícias de Camilo. E tudo aquilo era tão anormal que só fez aumentar
a curiosidade e o mal-estar do menino. Quando ele se recolheu, Clara
descansou a costura um minuto, uma ruga de preocupação desenhada
na testa. Começava a perceber que não poderia viver mais tempo
daquele modo, que de agora em diante suas relações com Sílvio não
seriam tão fáceis assim. Nunca lhe acontecera pensar no filho como
alguém que pudesse crescer e se desenvolver, colocando-se diante dela
como um ser que a obrigasse a maiores esforços do que aqueles que
despendia. Aliás, a presença do filho sempre lhe causava mais irritação
do que outra coisa. Muitas vezes, vagamente enciumada com os
cuidados de Áurea, procurava conquistar a simpatia do pequeno,
promovia alguma brincadeira, contava casos, indagava dos seus
estudos. A princípio desconfiado, ele acabava por se aproximar, depois
entregava-se inteiramente, com esse voluptuoso abandono que só
sabem ter algumas vezes as crianças solitárias. Mas não tardava muito
que a impaciência de Clara se manifestasse, exausta com as perguntas
que não se esgotavam ou com as brincadeiras que aos poucos se
tornavam violentas. Queixava-se então dos modos de Sílvio, dizia que
ele era um menino selvagem, de hábitos adquiridos na rua. Como o
pequeno a fitasse atônito, compreendia então que se tinha deixado
levar muito longe, que o excesso não merecia tão severa reprimenda.
Mas, incapaz de voltar à antiga naturalidade, esquivava-se, alegando a
primeira coisa que lhe passava pela cabeça. Sílvio retirava-se cheio de
desconfiança, não ousando se aproximar durante dias seguidos. Mas o
seu ressentimento desaparecia quando a mãe voltava a convidá-lo para
um passeio qualquer. Saíam de mãos dadas, Clara esforçando-se,
iludindo-se quase a respeito do prazer que aquela saída lhe causava.
Não tardava a sentir-se excessivamente preocupada com as corridas de
Sílvio, passava a lamentar que tivesse tido tal lembrança, perdia-se
finalmente num rosário de recriminações. A volta era sempre um
suplício. E o passeio tão cuidadosamente projetado acabava por
separá-los mais do que nunca. Em casa, narrando a história a Áurea,
via esta colocar-se sempre ao lado do pequeno, achando desculpas
para todos os seus excessos. Então Clara se revoltava, dizia que era a
maneira de educar da amiga que estava pondo o menino a perder.
Discutiam durante algum tempo, até que a trégua se estabelecia na
forma de um silêncio cheio de hostilidade. Durante essas pausas,
entretanto, Clara chegava à conclusão de que realmente o único
culpado era o filho, imaginando mil e um defeitos que na realidade ele
não possuía. Achava-o de caráter extravagante, volúvel, inteiramente
voltado para coisas sem importância. Instintivamente comparava-o a
Jaques, encontrando pontos de semelhança entre os dois e concluindo
que o pequeno saíra mais ao pai do que a ela. E à força de pensar
nestas coisas convertia o filho num estranho, confundindo
insuficiências da sua própria natureza com detalhes nascentes daquela
alma que ainda não compreendia. Assim, o mal-entendido ia
aumentando dia a dia, através de pequenos incidentes de origem mais
profunda do que aquela que Clara chegava a apreender. Decerto ela
ignorava que estava desde então traçando o caminho que para o futuro
seguiriam as relações entre ambos. É que, com essa cegueira peculiar
às pessoas que vivem juntas, Clara ainda não tinha observado que
Sílvio crescia, que estava se convertendo rapidamente num rapaz.
11
Todo aquele ruído enervava Clara. Não estava habituada a luzes
tão fortes e além disso sentia-se perturbada pelo murmúrio das vozes
reunidas e o surdo espoucar dos foguetes ao longe. No começo,
arrastada pelo pueril entusiasmo de Áurea e Sílvio, chegara a comprar
um anzol, experimentando fisgar uma das prendas na barraca de
pesca. Depois ficara com bilhetes para o jogo das argolinhas, detivera-
se numa tenda conhecida a fim de tomar um refresco, trocara algumas
palavras com uma vizinha. E mais adiante acabara por verificar que
tinha perdido os bilhetes comprados.

Continuara o passeio, examinando a multidão domingueira que


afluía sem cessar aos terrenos da igreja. Sílvio detinha-se a cada passo,
cercando Áurea num círculo vivo de perguntas e exclamações.
Entretanto, sua maior surpresa fora o grande carrossel iluminado no
centro do pátio, que girava acompanhado pela música fanhosa de um
realejo. Não conseguindo arrancá-lo daquele lugar, Clara se afastara
um pouco, esperando que passasse aquele primeiro momento de
entusiasmo. A multidão parecia cada vez mais densa, leques aflitos
surgiam em torno do carrossel cheio de luzes. Então Clara se afastara
definitivamente, percorrera devagar todo o terreno da festa, voltara
mais uma vez ao carrossel, repetindo assim a trajetória inicial. Áurea e
Sílvio continuavam sempre no meio da multidão. De longe ela via as
duas cabeças inclinadas, inteiramente absorvidas no jogo lento das
luzes que giravam. Exausta, Clara se encaminhou para os degraus da
igreja e sentou-se a fim de descansar um pouco. O rumor tornou-se
mais apagado, as figuras amontoadas se converteram numa só vaga
informe e negra.

Sozinha, encostada a uma das pilastras, ela sondou com intenso


prazer a profundeza do silêncio que a cercava. Não podia compreender
como tanta gente conseguia se perder no tumulto vazio daquelas
festas, esquecidos de tudo o que não fosse uma furiosa necessidade de
se divertir. Havia nisto, como em toda necessidade de prazer, uma
espécie de embrutecimento voluntário. Dir-se-ia que não era alegria,
mas o esquecimento de uma enorme culpa o que era procurado. E
Clara tinha sido sempre assim, lembrava-se bem de tudo o que lhe
acontecera desde que fora a uma festa pela primeira vez. No princípio
ainda freqüentara algumas, forçada pela mãe, pelas companheiras,
pelo desconhecimento de si própria. Mas não tardara a verificar que
essas tentativas não passavam de um legítimo fracasso. Enquanto as
companheiras se divertiam, namorando ou dançando, ela ficava
sentada no jardim ou a um canto da varanda, conversando com esses
pobres náufragos que as danças expulsam do salão para recantos mais
obscuros — um rapaz acanhado, de colarinho duro, ou uma dessas
raparigas já maduras, a que nenhum artifício consegue mais
emprestar o fulgor da juventude. Lembrava-se até de uma delas, que
trazia um vestido azul-claro, disfarçando com o leque a irremediável
tristeza do sorriso. Esses repudiados eram então os seus
companheiros.

Entretanto, agora, nem mesmo gente daquela espécie se


avizinhava dela. Afastada da multidão que se deslocava pesadamente
em torno das barracas, seguia a queda dos foguetes ao longe. Uma
explosão, um relâmpago e depois o céu que voltava a ser
inalteravelmente negro, para ela bem mais belo e significativo nesse
silêncio e nessa escuridão sem limites. De repente, no momento em
que abaixava de novo o olhar, seguindo o resvalar das silhuetas junto
ao carrossel, Clara sentiu uma emoção desconhecida acelerar-lhe as
batidas do coração. Era mais uma vez essa impressão de um minuto
decisivo marcado no grande relógio do tempo, um minuto cuja
misteriosa densidade parecia composta da soma de todos os outros. A
que estava ali, depois de ter vivido aquela concentrada partícula das
horas, era uma outra Clara, uma nova figura que se desprendera do
conjunto de todas as outras Claras que haviam vivido até aquele
instante. Ainda não sabia dizer de que sentimentos novos era ela
composta, quais as aspirações e lembranças que conservara intactas
na sua consciência. Entretanto, era visível que uma transformação
profunda se operara no seu íntimo, como se fosse de uma realidade
mais viva, aquele sentimento que a excluíra da companhia dos outros.
Na verdade, nunca se sentira tão estranha quanto agora ao mundo que
a rodeava.

A música do realejo se reiniciara. Dois ou três pares


conversavam amorosamente à sombra das árvores. O cochicho às
vezes se tornava mais forte, uma palavra inteira se destacava, durante
um minuto flutuava docemente na penumbra, desaparecia substituída
por uma risada que se perdia sem eco. E de súbito o sofrimento de
Clara tornou-se tão vivo que levou as mãos à garganta, tentando
sufocar um soluço. “Por que, meu Deus, por quê?”, perguntou ela a si
própria, sem encontrar resposta. E pela primeira vez sentiu com
tremenda força a consciência da disparidade entre a sua natureza e a
do mundo, duas forças independentes, girando lado a lado, mas sem
jamais se penetrarem. E como voltasse a cabeça, procurando fugir à
violenta pressão desse pensamento, julgou distinguir dois olhos que a
fitavam por detrás da folhagem. Instantaneamente todos os seus
pensamentos desapareceram, como se tivessem cedido ao peso de uma
ameaça. Sempre no mesmo lugar, levantou um pouco mais a cabeça,
esforçando-se para distinguir quem a seguia. Mas duas crianças
passaram correndo, balançaram os arbustos, os olhos desapareceram.
No entanto Clara pressentiu a quem pertenciam, e desde aquele
momento não pôde mais encontrar nenhuma tranqüilidade. A sua
impressão de solidão estava desfeita. Em torno a serenidade voltara a
reinar. Ao longe uma voz de mulher cantava. Dessa vez ela teve medo
de ficar sozinha e se levantou, fixando de novo o arbusto onde vira
brilharem os dois olhos. Devia ser um homem, só podia ser um
homem. E ela se esforçou em vão por esquecer um nome que teimava
em lhe aflorar aos lábios. De qualquer modo, o melhor seria não
permanecer mais naquele lugar. E Clara afastou-se a passos lentos, a
fim de demonstrar ao desconhecido que não fugia. Poucos passos
adiante encontrou Áurea e Sílvio. Era curioso como Áurea se divertia,
parecendo participar mais daquelas coisas do que o próprio Sílvio.
Clara avisou-a de que já estava tarde, deviam partir. Mas apoiada em
Sílvio, que se agarrara às mãos da mãe, ela pediu para ficar um pouco
mais, ainda não tinham sido queimados os fogos mais bonitos. Além
disso não fora sorteada a prenda principal. E afastou-se, levando Sílvio
pela mão, insensível a todos os esforços de Clara para convencê-la.

Agora o carrossel girava ao som de uma antiga valsa. E Clara,


sozinha, frente à multidão cada vez mais compacta junto ao leiloeiro,
sentiu perfurar-lhe as costas o mesmo olhar que a espreitara das
moitas. O vento da noite agitava as bandeirolas de papel. Então ela
compreendeu que era preciso tomar uma decisão, voltou devagar para
junto da escada, examinando cuidadosamentc em torno. Neste
momento ouviu alguns gritos, percebeu a voz de Sílvio que a chamava
— e pouco depois ele chegava correndo, anunciando que o grande
prêmio tinha sido sorteado. Clara quis se recusar, explicou que
preferia esperar ali, mas a própria Áurea apareceu sobraçando
aflitamente uma garrafa de licor, insistindo para que ela viesse
presenciar o fim do sorteio. E afinal ela se decidiu, ia partir, quando
Sílvio puxou-a pelo vestido, dizendo:

— Mãe, olha ali o farmacêutico!


Clara estacou, sentindo que todo o sangue lhe afluía ao coração.
Sim, pertenciam realmente ao farmacêutico os olhos que tinha
entrevisto através da folhagem. Avançou lentamente, e próximo à
barraca do leiloeiro percebeu que o homem a acompanhava e que se
detivera junto a um dos postes de madeira, os olhos sempre fixados na
sua pessoa. Invadiu-a uma onda de furor, e voltando a cabeça olhou-o
face a face. Mas não tardou a voltar à posição primitiva, sentindo-se
mal ante aquela fisionomia humilde e torturada. Aquele homem nada
lhe causava senão uma repulsa cada vez maior. Clara fechou os olhos,
arrependida de ter vindo, ansiando por que tudo acabasse o mais
depressa possível. Não poderia dizer quanto tempo tinha durado
aquele suplício. Agora os fogos estalavam de novo no céu escuro e,
junto, um senhor de idade brandia uma lata de doce. “Tirei com o
número 13”, gritava ele. A grande prenda da noite, uma almofada de
rendas, já fora sorteada. E apesar disto Áurea e Sílvio continuavam
junto ao carrossel. Desesperada, Clara afastou-se mais uma vez,
procurando fugir aos olhos vermelhos e súplices do farmacêutico. Na
sua fuga esbarrou com alguém, voltou-se para pedir desculpas. Era um
homem de chapéu de abas largas, que a cumprimentou com um
grande sorriso cheio de respeito. No primeiro instante ela hesitou, mas
acabou reconhecendo o caboclo que dias antes lhe entregara o bilhete
de Jaques. Poderia cumprimentá-lo apenas e se afastar, mas percebeu
que, imóvel, o homem parecia aguardar alguma coisa. Lembrando-se
dos olhos que a perseguiam, aceitou aquele encontro como uma
repentina salvação. Adiantou-se, o coração contraído por obscuro
temor, sem saber ao certo que palavras lhe dirigir.

– A senhora desculpe — foi ele dizendo —, mas no outro dia...

Só nesse instante Clara compreendeu que alguma coisa ia se


passar, que possivelmente sairia dos seus lábios toda a explicação do
mistério daquela noite. Mas o caboclo não ousava ir mais longe,
rodando nervosamente o chapéu entre as mãos. Ela procurou auxiliá-
lo:

– No outro dia não tivemos tempo de conversar. O senhor


acha...

Calou-se, lembrando-se de repente de tudo o que se passara dias


antes junto à cerca. Desta vez foi o homem que veio socorrê-la, olhos
baixos, visivelmente embaraçado:

– A senhora desculpe, mas “ele” tinha dito que não esperasse. . .

E olhou-a de modo tão penalizado que Clara sentiu agitá-la um


frêmito de revolta. Entretanto uma súbita desconfiança infiltrou-se no
seu espírito e ela pousou de leve a mão no braço do caboclo:

– O senhor é amigo dele, não é?

E como o homem afirmasse que sim, num gesto decidido, ela


concluiu rápida em voz baixa, como se temesse a proximidade do
alguém:

– Escute, que faz ele por lá? É verdade que...


O homem concordou, num sopro:

– É verdade sim, falam dele com uma mulher que eu não


conheço.

Clara recuou, ferida em cheio por essa revelação que não


solicitara. Evidentemente não era isto que ela esperava saber através
do caboclo. Imóvel, aguardou durante alguns minutos que a sua
emoção passasse. Já não tinha dúvida de que naquelas simples
palavras repousava a explicação de tudo o que pressentira, que só elas
tinham gerado os eflúvios, encontros e sentimentos daquela noite,
como misteriosa eletricidade vagando entre as pessoas. Percebendo o
seu transtorno, o homem se precipitou, tentando desculpar-se:

– Oh, mas não se importe... É uma mulher que não presta, todo
mundo sabe que ela não vale nada!

Clara desviou a cabeça, esforçando-se inutilmente para esconder


a sua incontrolável emoção. A música do realejo parecia infinitamente
distante. Passaram-se assim alguns segundos, Clara sempre com os
olhos fixos na escuridão pontilhada de vagalumes. Alguma coisa se
rompia, talvez um desses pesados elos de ferro com que o tempo
aprisionara no seu coração a lembrança de alguns sentimentos vitais.
Depois, como o silêncio se tornasse muito pesado, ela voltou a cabeça e
indagou do homem, sem levantar os olhos:

– E foi por isto que ele mandou buscar o dinheiro?


A resposta demorou a vir, ela julgou de repente que tudo ainda
pudesse ser desfeito. Mas afinal o caboclo respondeu, numa voz baixa,
hesitante e cheia de uma inesperada ternura:

– Foi sim, foi por causa dela. Já perdeu tudo o que tinha. E
agora deve a todo mundo, vive de implorar aos amigos.

Ainda restava uma última pergunta. Ela a pronunciou, sem


hesitação, apesar de conservar sempre os olhos fixados na terra:

– E esta mulher… eles vivem bem?

— Não! Não! — respondeu o homem com veemência. — Ela o


maltrata, faz dele tudo o que lhe passa na cabeça.

De novo ficaram em silêncio. Mas, pelos gestos nervosos do


homem, Clara percebeu que a confissão ainda não estava inteiramente
terminada. E lhe veio um súbito horror de tudo aquilo, uma enorme
angústia diante daqueles golpes desfechados no escuro, sem que ela
pudesse tentar o menor gesto de defesa. Nada mais desejava saber,
nenhuma palavra deste mundo conseguiria restabelecer o mundo de
sombra que ruíra no seu coração. E num gesto ansioso estendeu a mão
ao caboclo, abandonando-o no meio da estrada. Pôs-se a caminhar
sem destino, impotente para reprimir a onda de pensamentos
contraditórios que lhe invadia o espírito. Já não lhe importava mais
que o farmacêutico a seguisse com olhares ardentes e ávidos. Junto ao
carrossel encontrou novamente Áurea e Sílvio. A multidão era menor,
grupos isolados se retiravam. Afastaram-se também, cada um imerso
nas suas próprias emoções, todas elas de natureza tão diferente.
“Amanhã já não existirá nada disto”, pensava Áurea, olhando com
nostalgia as luzes que se iam amortecendo na distância. E Clara, ao
chegar a casa, no momento em que abria a porta, sentiu mais uma vez
que Jaques estava definitivamente morto para ela. E a esta segunda
morte nada mais sobrevivia, nem mesmo a lembrança do tempo em
que tinham sido felizes juntos.

12
Naquela mesma noite, revolvendo-se na cama, Sílvio não
conseguiu adormecer. No seu espírito agitado desfilavam todas as
emoções experimentadas no decorrer do dia. Em vão ele fechava os
olhos, mudava de posição, consertava o travesseiro. Um elemento
imponderável flutuava no ar, conservava-o desperto, atento aos
rumores, ao bater apressado das suas têmporas, aos pensamentos e
imagens que no seu espírito se sucediam sem descanso. E dentre elas,
sobretudo, uma obstinada, luminosa, desaparecendo por segundos,
voltando mais forte, iluminava a sua alma inteira com o inesperado
fulgor de uma luz acesa na obscuridade. Decerto tudo aquilo ainda era
muito informe, apenas uma fugidia sensação de desassossego,
qualquer coisa como o vislumbre de um pressentimento que o
mantinha atento, dolorosamente sobressaltado no limiar do sono.
Muitas vezes sentia-se prestes a adormecer, o corpo repousava um
minuto, a respiração num ritmo mais calmo — e logo, rompendo a
neblina, a imagem renascia, misteriosa, cheia de uma força que
parecia comovê-lo até às fibras mais íntimas.

Era ela, sempre ela, a menina que vira no carrossel. Toda a


claridade como que vinha não das luzes penduradas no teto, mas da
sua figura rósea, imaterial, ondulando entre a música como nas vagas
de um sonho. Não a descobrira no primeiro momento, deslumbrado
ainda com os cavalos dc madeira e os carros que giravam no tablado
iluminado. Vira depois os meninos agarrados às rédeas de couro e
algumas meninas medrosamente encolhidas no fundo dos carros. Só
ela ousava acompanhar os meninos e montava um dos cavalos, de
lado, a saia suspensa acima dos joelhos por causa da posição forçada.
Não olhava ninguém, as mãos firmes nas rédeas, os olhos
semicerrados, toda empolgada no giro do carrossel. Sílvio sentiu que o
seu coração batia mais forte. Esperou quase impaciente que a volta se
completasse e avistou-a de novo, na mesma atitude, os cabelos soltos
sobre os ombros. E mais uma vez a marcha do seu coração se acelerou.
Desta vez, no momento em que o cavalo passava junto ao menino, ela
voltou a cabeça e fitou-o. Era possível que nada tivesse visto, que nem
sequer chegasse a destacar sua pequena silhueta da massa confusa que
se comprimia junto ao carrossel. Mas Sílvio sentiu-se distinguido,
elevado, como se tivesse tombado sobre ele um daqueles jatos de luz.
Ainda uma vez o cavalo se perdeu na curva, outros carros avançaram,
risadas soaram junto dele e foram desaparecendo ao longe. Agora já
não era uma simples expectativa, mas uma tensão de todo o seu
espírito, um esforço dos seus nervos, que o obrigava a aguardar a
passagem da menina de cabelos soltos. Todas as coisas em torno
tinham desaparecido, a música recuara para um plano infinitamente
longínquo. Junto dele Áurea falou qualquer coisa, mas Sílvio não a
escutou, a cabeça voltada, os olhos fixos na curva onde apareceria
novamente a menina. E ela surgiu, passou mais uma vez junto dele,
mas sem voltar a cabeça. Sílvio sentiu invadi-lo uma enorme decepção.
Pouco a pouco o mundo exterior se restabelecia, a música soava mais
forte, tudo existia de novo. Talvez que ela nunca mais o olhasse. Ao
mesmo tempo, movido por um surdo desespero, ele se levantou e
acotovelou duas ou três pessoas, avançando até ao arame que barrava
a multidão. Apesar de estar imprensado contra o fio, colocava-se agora
de um modo que seria impossível à pequena não o perceber. A música
cessava lentamente, os cavalos deram um último giro. Pela derradeira
vez a menina passou junto dele — e a sua atenção era tão grande, era
tão intensa a força que punha naquele olhar infantil, que ela afinal se
voltou e fixou-o, desta vez bem nos olhos. Não havia engano possível,
era a ele mesmo que a pequena fitava. O carrossel se tinha
imobilizado, as crianças saltavam. Só ela, só a menina dos cabelos
soltos permanecia imóvel, os olhos ainda pousados sobre Sílvio.
Depois, bruscamente, saltou do cavalo, avançou até ao arame da
barragem, procurando alguém com o olhar, e afinal, cheia de ousada
segurança, ganhou a porteira e se perdeu na multidão. Imediatamente
Sílvio sentiu que o mundo se despovoava, que nada mais lhe
importava naquele carrossel. Quis sair, puxou pela mão de Áurea, mas
ela o reteve. E pela primeira vez no decorrer daquela noite o pequeno
examinou sua companheira. No íntimo, não pôde deixar de admirar o
interesse com que ela seguia o movimento das pessoas que subiam ao
carrossel, como os seus olhos brilhavam, que estranha e radiosa
felicidade emanava da sua maravilhada imobilidade. Então um
misterioso temor paralisou-lhe os movimentos, permaneceu calmo,
atento aos cavalos que principiavam a girar de novo.

E aquele olhar fora o bastante. Tudo o que nele existia de


indeterminado, todas essas imprecisas emoções dos primeiros tempos
da vida, esse entusiasmo que vibra ao primeiro sinal, essa glória e essa
embriaguez que parece contaminar até mesmo os objetos inanimados,
tudo isso se congregara rapidamente, convertera-se num bloco
maciço, transfigurando inteiramente a sua alma. Já não era menino,
mas um pequeno ser cheio de gravidade e de capacidade de
compromisso, atento ao apelo daquele olhar que através do caos
infantil lhe revelara a sua identidade de homem. Naquele terreno já
nada mais seria lançado sem que fosse pesado e o coração interviesse
para aceitar ou repetir. Naquele minuto ele tinha abandonado para
sempre esse obscuro mundo em que a criança parece participar ainda
da natureza das coisas, para ingressar na áspera luta dos seres, nesse
combate sem tréguas no qual não sabemos se é o nosso sangue que se
esgota ou se é o dos outros que vertemos — nessa série de enganos, de
dádivas perdidas, de ofertas que não sabemos reconhecer, em tudo
isto que caracteriza de modo tão patético e doloroso a natureza
decaída do homem.

Exausto de rolar à procura de um sono que não vinha, Sílvio


sentou-se na cama, os olhos ardentes, a testa molhada de suor.
Durante um minuto, contemplando a desordem das cobertas e dos
travesseiros amarfanhados, julgou que estivesse doente, pensou em
levantar-se, chamar Áurea. Sentia o coração bater como nunca tinha
batido antes. Mas no momento em que colocava o pé fora dos lençóis a
brisa fria da noite, penetrando pela janela aberta, bateu em cheio no
seu rosto febril. Toda a angústia pareceu se dissipar, uma serenidade
imensa desceu de repente ao seu espírito. Era verdade que ele estava
longe de imaginar que nunca mais dormiria um sono idêntico ao que
dormira até aquela data, que de agora em diante todas as vezes que as
trevas descessem sobre ele viriam encontrá-lo na companhia dessa
consciência que acabava de se instalar no fundo do seu ser. A tudo
isto, porém, se opunha a visão de um mundo novo, de um mundo
como jamais vira, de um mundo cheio de maravilhosas formas. O luar
batia contra a vidraça alta. Sílvio levantou-se, foi até a janela,
contemplou durante algum tempo as estrelas perdidas no céu imenso.
E na sua atitude maravilhada ainda não havia nenhum desespero por
essa inocência fundamental que perdera, e que para todo o sempre o
afastara da comunhão das coisas simples.

Sucederam-se para Clara dias de grande abatimento. Minada


por um desânimo que parecia aumentar a cada momento, irritava- se
ao menor ruído, repreendia o filho por causa do seu desassossego,
esforçava-se em vão por encontrar alívio na costura. Mas parecia-lhe a
todo instante que era impossível continuar a viver; as menores coisas,
os gestos mais simples, exigiam-lhe um esforço de que se julgava
totalmente incapaz. Não raras vezes surpreendia-se desejando que
tudo terminasse o mais depressa possível, que em torno dela os
objetos penetrassem numa quietude de morte, onde afinal fossem se
esboroar tantos desejos sem solução, uma tão intensa e desesperada
vibração às coisas da vida. Pois extinto para sempre o sentimento que
nutria por Jaques, o que lutava na sua alma eram essas pequenas
ambições, surdas, imperiosas, que jamais conseguiam encontrar o
caminho da realização ou da liberdade. Em certos momentos, perdida
sob o furor dessa contínua oposição que o vazio criara em seu espírito,
Clara levantava-se, a cabeça apertada entre as mãos, certa de que
todos esses sentimentos nada eram senão uma enorme vaga de
impiedade que lhe submergia o coração. “Meu Deus”, murmurava, “eu
não tenho culpa de desejar tanto, não posso e não tenho nenhuma
vontade de ser melhor!” E à medida que as horas passavam
aprofundava-se mais na sua revolta, as mãos trêmulas, o coração
pesado de um fel que não conseguia extravasar. Outras vezes detinha-
se diante do espelho, examinava cuidadosamente a própria face,
exagerando defeitos, descobrindo detalhes que não existiam. Com
silenciosa paixão media o tempo perdido, inventava romances com
pessoas que conhecera antigamente, lembrava-se de casos diluídos no
tempo, de palavras que lhe haviam parecido sem significação e que
agora ressurgiam cheias de perigosa duplicidade. E em tudo isto a
lembrança de Jaques continuava ausente, era como se na verdade ele
nunca tivesse existido. Uma página de revista aberta sobre a mesa
bastava para fazer subir à sua consciência toda a espuma daquelas
exaltações concentradas. Na paisagem impressa e onde certamente ela
jamais pisaria, naquelas ruas cheias de luzes, naquelas praças, quantas
vidas e quantas possibilidades o seu atual destino tinha afastado,
inutilizado para sempre! Seguia avidamente a narração de
acontecimentos sociais, não porque lhe agradassem tais coisas em si,
mas porque imaginava conflitos, existências pejadas de mistério e
perfume. Nunca, como nesses momentos, odiava tanto a miséria em
que se tinha cristalizado a sua vida. Nem sequer chegava a
compreender por que Deus lhe reservara papel tão ínfimo, ela, cujo
coração parecia se dilatar ao mais efêmero e pueril dos sentimentos.
Acordava à noite, sentava-se na cama, escutava os rumores com uma
obscura impressão de catástrofe. Não era possível que tudo
permanecesse na mesma, que tanta aspiração deixasse de conduzir a
alguma coisa. E, auxiliada pela densidade cada vez mais agressiva das
trevas, imaginava soluções dramáticas, atos desesperados, rebeldias
que finalizavam num ato qualquer de violência. E lembrando-se do
tempo em que freqüentara a igreja, dos votos e promessas que fizera,
do abismo que agora a separava dos seus antigos ideais, julgava-se
irremediavelmente condenada. Para ela não havia salvação possível.
Naquele minuto, ouvindo o canto dos galos que davam tão pungente
tristeza à solidão que a cercava, pesava todos os seus sentimentos com
uma severidade que assumia contornos de pesadelo. Mas ao
amanhecer, assim que percebia os primeiros sons no fundo da sala,
rejeitava tudo o que imaginara durante a insônia, admirava-se de que
pudesse ter ido tão longe, chegava a sorrir dos seus receios e
pressentimentos. Entretanto, no correr do dia, sentia aflorar à sua
consciência, uma vez ou outra, a sensação de uma negra realidade
apenas entrevista num instante de febril lucidez; detinha-se, um
objeto nas mãos, adivinhando que apesar de tudo o dia ocultava a face
exata das coisas, tão decisivamente reais quanto vistas no vazio
absoluto da noite. E nesses momentos, apaziguado o tumulto do seu
coração, ousava enfim fitar as coisas em torno com olhar menos hostil,
sentindo-se no meio delas uma pobre coisa também, uma humilde
coisa desamparada da graça de Deus.

13
Dominado pela impressão que lhe causara a menina do
carrossel, Sílvio esqueceu Camilo, os livros, as preocupações essenciais
da sua vida. A obsessão persistiu por vários dias e atingiu um ponto
em que todas as coisas passaram a existir exclusivamente em função
daquela miragem. Pálido, distraído, ele sentia aquela sombra projetar-
se sobre os seus menores gestos. Nada disto passou despercebido a
Áurea, que o seguia atenta, pronta a acudir à primeira manifestação
desse mal desconhecido. Mas devagar esse primeiro abalo foi
passando, os traços se diluíram como uma máscara de cera que se
desfaz, da visão primitiva nada mais ficou senão a simples lembrança
de um momento diferente dos outros. Depois, foi o esquecimento
completo. De raro em raro, no meio de uma brincadeira, lembrava-se
de algo que se assemelhava a uma menina de cabelos soltos. Com o
correr dos dias, porém, Camilo voltou a recuperar o seu lugar
primitivo. Voltaram as conversas sobre livros de história, as correrias
no terreno da igreja, os longos passeios pela estrada da olaria. Maio
findava, as árvores estavam cobertas com as derradeiras flores. Apesar
disto, Camilo parecia mais pálido, tossia de vez em quando, parado no
caminho, uma das mãos sobre o peito, a testa molhada de suor. Sílvio
lembrava-se então das palavras que ouvira a respeito da doença do
amigo. Obrigava-o a sentar-se à sombra de uma árvore, indagava
opresso o que ele estava sentindo, olhos fixos no seu rosto. Não raras
vezes, diante deste temor, Camilo punha-se a rir, afirmando que não
era nada, que aquilo passaria dentro em pouco. Enquanto falava,
aspirava um punhado de funcho que tinha apanhado no mato.
Entretanto, Sílvio percebia uma sombra deslizando nos seus olhos. À
noite, à espera do sono que cada dia parecia mais difícil de chegar,
imaginava o que aconteceria se Camilo morresse, chegava a idealizar
os seus últimos instantes, as derradeiras palavras que diria. Se tal
coisa sobreviesse, o mundo para ele se converteria num imenso
deserto. Via-se sozinho, caminhando nas mesmas estradas que
costumavam percorrer juntos. Na tarde calma, as árvores pareciam
mais longas. E Sílvio acabava debulhado em lágrimas, o rosto sufocado
contra os cobertores amarfanhados. Ao amanhecer corria à procura do
amigo, encontrava-o forte, corado, cheio de planos para o dia que
começava. E todas as idéias negras se dissipavam.

Um dia, no momento em que penetrava na classe, viu poucos


passos adiante a menina do carrossel. Não a reconheceu
completamente, apesar do coração adverti-lo de que não se tratava de
uma desconhecida. Mas, como a menina movesse a cabeça,
reconheceu afinal os longos cabelos soltos. Um estremecimento
percorreu-o da cabeça aos pés, enquanto das profundezas da sua
consciência renascia através do caos a imagem adormecida. Entrou na
sala com dificuldade, tomado por inexplicável vergonha. Ao sentar-se
deixou cair o porta-merendas, atraiu a atenção de todos os olhares,
provocando o riso da classe. Tudo isto tornou-o ainda mais
perturbado. Ante seu aspecto assustado, as risadas aumentaram — e
só aí a nova aluna voltou-se para vê-lo, examinando-o com aqueles
olhos que ele já conhecia, mas que ainda não conseguira identificar.
Indiferente ao ruído, Sílvio a examinava também, admirando-se de
que já fosse tão crescida. Sentiu-se pequeno, fraco, inibido em seus
menores movimentos. A classe regressava ao silêncio anterior, o
mesmo ar dormente pairava agora sobre as cabecinhas atentas. Então
ele pôde entregar-se livremente ao seu exame, analisando-a
detalhadamente. Os cabelos dela eram de um louro quase ruivo,
caindo sobre os ombros em ondas fartas e rebeldes. Estavam presos
por um laço de fita azul, e toda ela respirava uma fragilidade, uma
ternura que o trazia dolorosamente aprisionado à sua figura. Na
verdade, ele nunca pudera imaginar que existisse criatura tão bela.
Todo o seu ser expandia-se numa onda de ardente admiração. A
menina devia ter sentido a insistência daquele olhar, pois voltou
lentamente a cabeça e fixou-o de novo, desta vez com prolongada e
incisiva atenção. De novo percorreu-o o mesmo arrepio, mas ele não
desviou os olhos; ao contrário, permaneceu de cabeça erguida,
tentando devassar o mistério feminino daquelas pupilas. Nunca,
nunca na sua vida poderia imaginar que existisse coisa tão bela quanto
aqueles olhos. Eles lhe traziam a absurda nostalgia de alguma coisa
que não sabia direito qual fosse, provocando-lhe um calor, um
entusiasmo, uma vibração cuja origem estava longe de suspeitar. Eram
verdes, estranhamente verdes aqueles olhos calmos que o examinavam
com uma atenção cheia de complacência. Sílvio sentiu que era preciso
falar alguma coisa, que devia dirigir-lhe um bilhete como tinha feito
aos outros colegas. Era tão fácil, bastava dobrar e entregar ao
companheiro mais próximo, avisando-o para que passasse adiante.
Mas, se bem que abrisse o caderno e experimentasse o lápis, não
conseguiu escrever coisa alguma. Compreendeu então que jamais teria
coragem para empreender um gesto tão ousado. A presença daquela
menina neutralizava-o, convertia-o numa coisa sem vida. Pôs-se a
rabiscar a esmo, escrevendo nomes de pessoas conhecidas,
desenhando paisagens em traços grosseiros, completamente alheio ao
que se passava na classe. Devia ter sido nesse momento que a
professora chamara pelo seu nome. Mas Sílvio não a escutou,
continuando a escrever, os olhos perdidos no vago. Tudo o que existia
nele estava escravizado àquela radiosa presença. E de repente, como
levantasse os olhos, percebeu que, voltada para ele, toda a classe ria de
novo. Corou até às orelhas, abandonou precipitadamente o lápis, e
cruzou as mãos atrás das costas. A professora voltou a interrogá-lo,
mas Sílvio continuou em silêncio, sem nada compreender do que ela
lhe dizia. Desta vez a professora bateu com uma das mãos sobre a
mesa, levantou-se, atravessou a classe e veio até a sua carteira. O
caderno continuava aberto e ela leu em voz alta: “Isabel”. O nome
estava repetido quatro ou cinco vezes ao longo da página branca. Nem
ele mesmo sabia por que o tinha escrito. A professora ordenou-lhe que
se levantasse e fosse colocar-se de pé junto ao quadro-negro. Sílvio
obedeceu, com o rosto em fogo. E durante todo o tempo manteve a
vista fixa sobre a menina, sentindo-se miserável, esmagado por um
irremediável ridículo. Mesmo assim observou que só ela não ria do seu
infortúnio. Sentiu então uma obscura coragem para ir de encontro
àqueles risos. Era inútil ocultar que só fazia aquilo pela menina dos
cabelos longos, que só ela lhe transmitia aquela inesperada força,
estabelecendo entre eles uma secreta aliança. Quando a aula terminou,
a professora chamou-o. Precisava ser mais atento, que aquelas coisas
não se repetissem mais, pois em caso contrário seria reprovado no fim
do ano. Enquanto falava, Sílvio olhava aqueles lábios que se moviam,
sem entretanto nada compreender. A professora devia ter percebido o
que se passava, pois se calou de repente, olhou-o com estranheza e
despediu-o com um gesto rude. Quando encontrasse Clara, queixar-se-
ia da falta de respeito com que Sílvio a tratava.

Ao regressar, no caminho para casa, ele mal respondeu às


perguntas de Camilo. Não sabia por que, mas sentia-se irritado, cheio
de uma ira que parecia prestes a arrebentar por qualquer motivo.
Jantou em silêncio, o coração pesado. Não reclamou no intervalo da
sobremesa, esperando pacientemente, enquanto riscava com o garfo
um nome vago sobre a toalha. Era isto tudo que o interessava: saber o
nome dela. As horas custavam a passar, levantou-se num humor
sombrio, sentou-se a um canto, folheando revistas velhas. Mas
abandonou-as com um gesto impaciente, foi colocar-se junto à janela,
olhando as estrelas altas. O vento frio da noite começava a soprar.
Apesar da professora, do seu rosto encolerizado, nunca tinha desejado
tão ardentemente que chegasse o momento da aula. Debruçado no
escuro, media a extensão das horas que ainda c afastavam da escola.
Alguém passou na rua conversando alto. E essas palavras que ele não
conseguia perceber-lhe causavam um misterioso sofrimento, como se
elas fizessem ressaltar a sua solidão. Como as crianças chamadas à
vida pelo sofrimento precoce, sentiu pesar o silêncio enorme da noite.
Ao deitar-se, procurou imaginar de novo os grandes olhos tranqüilos,
mas tudo se misturou numa nuvem escura, só persistindo aquela
estranha dor no coração. Dormiu mal, agitado, acordou com a chuva
vergastando rudemente a vidraça descida. E se chovesse no dia
seguinte, se a mãe não lhe permitisse ir à escola? Não se abalou com
esta idéia, sentindo que nenhuma força do mundo seria capaz de detê-
lo. Caso isto se desse, fugiria, iria de qualquer modo, afrontaria todos
os perigos imagináveis. Viu-se de repente como um herói,
identificando-se com os personagens das histórias que lera.

No dia seguinte, foi o primeiro a chegar à classe. A sala ainda


estava mergulhada no escuro, os corredores silenciosos. Caminhou
sem destino, espiando o portão largo, forrado de zinco, por onde
entravam os alunos. O sino soou pela primeira vez, surgiu um dos
pequenos, depois outro, o pátio se foi enchendo lentamente. Camilo foi
um dos últimos. Logo que deparou Sílvio, encaminhou-se ao seu
encontro, o olhar velado por uma sombra de inquietação. Mas aquele
nada viu, afastou-se do companheiro, dominado por uma impaciência
que crescia de minuto a minuto. Afinal a menina surgiu, atravessando
devagar o pátio cheio de sol. Tal como vinha naquele minuto, ele
jamais a esqueceria — e mesmo depois, mesmo quando no seu coração
já não existissem daquele sentimento senão cinzas frias, jamais
conseguiria esquecer a pura emoção daquele primeiro encontro. A
menina passou junto dele, olhou-o de lado, depois penetrou na classe
sem voltar a cabeça. Enquanto Sílvio a acompanhava, também Camilo
o seguia de longe, o coração dominado por desencontrados
sentimentos. Viu que o amigo se dirigia à classe e que ocupava
silenciosamente o lugar costumeiro. A lição principiava, a voz da
professora se destacava com estranha nitidez no ar matinal. E apesar
de tudo Sílvio sentia que as suas esperanças se desmoronavam, que ele
jamais teria coragem para dar o primeiro passo, que aquele dia seria
igual aos outros, que se recolheria ao leito como na véspera, cheio da
mesma tristeza e dos mesmos amargos sentimentos. Mas uma
surpresa ainda lhe estava reservada. Poucos minutos depois, a
professora chamava a nova aluna ao quadro-negro. Contra aquele
fundo escuro, a sua cabeleira parecia mais ruiva, o laço de um azul
mais intenso. E de repente a professora pronunciou o nome: Diana.
Toda a sala pareceu vibrar aquelas três sílabas, trazidas até Sílvio por
uma brisa de ternura. Diana. Repetiu o nome uma, duas, três,
inúmeras vezes, admirado de que não o tivesse descoberto antes. A
menina tinha abandonado uma carteira sobre o banco e nela havia
escrito em letras brancas: Diana. Sílvio pôs-se a rabiscar o nome na
página do caderno, adornando-o com flores, grinaldas e pássaros.
Escreveu-o depois no livro de leitura, num tronco de espinheiro, na
janela da sua casa. Aquelas letras converteram-se numa obsessão,
descobria-o nas páginas das revistas, nos anúncios de jornal, em todos
os lugares.

O mundo inteiro parecia participar do seu sentimento. Desse


modo, grande parte das suas preocupações se desfizeram, e, apesar de
não ousar ainda dirigir-se à menina, mantinha-se de longe, na mesma
atitude humilde e apaixonada.

14
Há muitos dias já que Sílvio não aparecia, nem dava o menor
sinal de vida. Antigamente, quando alguma doença o retinha em casa,
ele mandava Áurea com recados ou para pedir emprestado um livro de
história. Então era Camilo quem ia visitá-lo, com o volume pedido ou
outro presente qualquer. Sílvio recebia-o com gritos de júbilo, retinha
o amigo junto dele o dia inteiro. E estas longas visitas só se
interrompiam quando Áurea abria a porta do quarto e dizia, as mãos
na cintura: “Chega, Camilo precisa de ir para casa.” Ele partia, mas
com promessa de voltar bem cedo no dia seguinte.

Mas agora era diferente. Camilo bem o sentia, apesar de


procurar se convencer do contrário. Ali estavam os livros que ninguém
viera buscar, os jogos inúteis, as cartas espalhadas no chão. No
primeiro dia ainda tivera esperança, imaginando mil e um motivos
para aquela inesperada ausência. Mas, à medida que as horas
avançavam, um estranho sentimento ia penetrando em seu coração,
um desânimo, uma melancolia diante de todas aquelas coisas que
julgava irremediavelmente acabadas. Sílvio não tinha vindo naquele
dia, não viria no outro, possivelmente não viria nunca mais. Noutros
tempos, ele podia dizer que era doença, pois sabia bem de tudo o que
se passava na vida do amigo. Agora um enorme hiato se tinha aberto,
uma pausa cheia de enigmas que ele jamais desvendaria. Por mais que
fizesse para acalmar o seu pequeno coração, sabia que entre eles se
tinha interposto um elemento mais forte: a menina que entrara
recentemente para o colégio. Camilo sentira tudo desde o primeiro dia,
desde o primeiro instante em que tinha visto um ao lado do outro.
Qualquer coisa existia entre eles, uma aliança, uma amizade que
afugentava a sua. Inútil tentar aproximar-se, iniciar a luta desigual ou
colocar-se servilmente como um terceiro, pronto a satisfazer o menor
capricho de ambos. No princípio chegara mesmo a tentar, aflorando o
assunto com Sílvio.

Percebera então que este se fechava com inesperada violência,


olhando-o com estranheza. Desistira. De longe, seguia os movimentos
do amigo, a sua ronda silenciosa em torno da menina. E ele também
sentiu alguma coisa se dilatar no seu coração, um hausto de imensa
admiração pelo vulto delicado da nova companheira. Na verdade não
era possível ficar-se indiferente a tão grande maravilha. Não se
cansava de olhar os cabelos ruivos que ondulavam nos ombros da
menina como um vivo elemento. E, ao mesmo tempo que pensava
nestas coisas, sentia crescer também uma enorme piedade por si
mesmo, compreendendo que aqueles dois seres giravam num mundo à
parte, onde ele jamais penetraria. Ali não existia a companhia
permanente dos frascos de remédio, nem a sombra morna e sufocante
dos quartos fechados, nem a silenciosa tirania dos relógios, dos
cobertores, de tudo aquilo que compunha sua vida. E pela primeira
vez, compreendendo a sua solidão, Camilo pôde medir também tudo
que o afastava dos outros, companheiros e pessoas da família, de todas
essas faces que compõem o amálgama indistinto de seres que respiram
conosco quase todos os minutos da vida, completamente indiferentes
ao nosso drama. Reviu sua mãe, preocupada com aquele silêncio que
se prolongava por tantas horas, aproximando-se e colocando sobre
seus cabelos a mão calejada pelos trabalhos grosseiros. “Meu filho, que
é que você tem?” Ele sorria, o coração despedaçado no esforço de
mentir: “Nada não.” Entretanto, ela não se afastava, atenta, o olhar
velado por uma sombra — essa sombra que desce ao olhar das mães
que não podem acompanhar os filhos até certos limites marcados por
Deus. E durante o dia inteiro ele sentia aquela presença pronta a
acudir ao primeiro apelo, e no íntimo a revolta o devorava, pois
desejava ficar só com o seu sofrimento. Mas, como os dias se
sucedessem sem que Sílvio aparecesse, a mãe acabou descobrindo o
que se passava. Foi ela própria quem se aproximou e disse: “Por que é
que você não vai à casa dele?” Desta vez Camilo olhou-a agradecido,
pois sabia que por si próprio jamais tomaria tal resolução. Mesmo
assim hesitou durante algum tempo, imaginando qual seria o
acolhimento de Sílvio. Afinal, vestindo um comprido sobretudo — o
tempo frio ameaçava chuva — beijou a mãe e desceu rapidamente a
estrada da olaria.

Ao aproximar-se, no entanto, sentiu-se invadido de novo pela


indecisão. Viu a casa silenciosa, as janelas fechadas, de aspecto quase
hostil. Ocorreu-lhe a súbita idéia de que o amigo talvez tivesse viajado,
E, como a sua hesitação aumentasse, convertendo-se em ansiedade,
avançou com passos trêmulos, disposto a tudo afrontar. Foi Áurea
quem o atendeu. Depois de cumprimentá-lo e perguntar pelos seus,
disse:

– Sílvio não está. Até pensei que ele estivesse na sua casa.

– Não está, não, há muito que não aparece.

Áurea, que não estava habituada a ver Camilo à procura do


amigo, de tal modo andavam juntos, olhou-o admirada.

– Mas ele não tem parado em casa — disse. — Onde será que
este pequeno se mete?

Camilo baixou os olhos, sem ousar responder. Áurea continuava


a fitá-lo, penalizada. Só agora reparava como ele estava magro, os
grandes olhos abertos à flor da pele. Toda a sua pessoa respirava uma
enorme fragilidade.

– Você não quer entrar? — perguntou.

– Não, obrigado. Preciso chegar à casa antes da chuva.

Despediu-se, abriu a cancela e ganhou a estrada. Uma rajada


fria sacudiu as árvores. Camilo pôs-se a caminhar de cabeça baixa, as
mãos metidas nos bolsos. Nunca como naquele instante as horas lhe
pareceram mais vazias, mais difíceis de serem atravessadas.
Novamente tinha de regressar, enfiar-se no quarto cheirando a
remédios, abrir os livros que já lera e relera tantas vezes. E ouviria de
novo os passos sutis da sua mãe, rondando a porta fechada, quando o
relógio marcasse seis horas, ela abriria a porta, a colherinha nas mãos:
"Camilo, está na hora de tomar o remédio.” Depois ele ficaria sozinho
mais uma vez. O tempo se arrastaria com implacável lentidão. A este
pensamento, qualquer coisa subiu à sua garganta como um soluço. Ao
longe, o vento esfacelava um grosso rolo de fumaça negra. Então ele se
lembrou de ir até à estação e distrair-se vendo as manobras do trem.
Pouco lhe importava que o tempo estivesse tão frio. Tudo seria melhor
a ter de voltar para casa. E à medida que caminhava Camilo via se
impor vagarosamente ao seu pensamento uma nova imagem: a da
menina dos cabelos soltos. E àquela simples evocação também ele
sentia todo o seu pequeno ser fremir. Agora os seus passos eram mais
rápidos, o suor molhava-lhe a testa. O surdo ruído da máquina se
aproximava. Pelo atalho em que passava agora, Camilo já podia ver a
plataforma vazia. Apenas dois ou três pares passeavam, olhando a
composição que se formava. Mas junto à grade que separava a rampa
do leito da estrada havia um outro par que parecia inteiramente
absorvido pelo espetáculo dos poderosos jatos de vapor que a máquina
expelia. E, ao depará-lo, Camilo sentiu uma pancada sobre o coração:
tinha reconhecido a menina dos cabelos compridos. Durante um
minuto, imóvel, ele esperou que a fumaça se desfizesse a fim de poder
verificar se não se tinha enganado. A máquina deu dois ou três
arrancos e foi se deter um pouco mais longe. Então ele pôde ver que
não havia engano possível, era ela mesma. E o seu companheiro era
Sílvio. Camilo continuava parado, sentindo que já não tinha forças
para avançar. Num minuto rápido como um relâmpago, pôde
visualizar a sua própria figura, agasalhada sob aquele velho capote que
lhe fora cortado de um antigo paletó do pai. Perto, o trem resfolegava
envolto numa nova onda de fumaça e vapor. Sentindo-se perdido, os
olhos cheios de lágrimas, voltou as costas à estação e pôs-se a
caminhar lentamente de regresso à casa.

Se antes Camilo nunca tinha tido amigos, já agora a sua


primeira experiência lhe ensinara que este sentimento é vital na
ordem das coisas. Ao entrar no quarto, diante dos livros e objetos que
lhe pertenciam, sentiu que jamais poderia voltar a viver sozinho com
aqueles tesouros. Pois as maiores riquezas perdem todo o valor
quando só o são aos nossos olhos. E Camilo, que tanto fugira dos
meninos da vizinhança, agora procurava se aproximar deles. Sem
dúvida temia a hostilidade latente que vislumbrava em todas aquelas
fisionomias. O seu coração se confrangia ao mais ínfimo dos olhares
trocado de lado, toda a sua alma se eriçava a uma palavra mais áspera.
Mas fingia nada perceber, pois compreendia que ao menor gesto de
repulsa a palavra ou o olhar seriam repetidos com intencional
crueldade.

Foi assim que Chico surgiu na sua vida. Era bem mais velho do
que os outros, magro, de olhos miúdos e audaciosos, gestos rápidos e
cheios de astúcia. No primeiro instante Camilo não compreendeu por
que é que tinha sido aceito de tão boa vontade, quando todos os outros
o repeliam ou fugiam dele. Nem sequer havia entre ele e Chico essa
simpatia inicial, essa compreensão repentina e mútua que através de
todos os obstáculos transforma os mais diferentes interesses em
sentimentos idênticos. É que ainda não lhe fora revelado todo o
mistério da iniqüidade humana, essa necessidade mórbida de intervir
e utilizar que desde o berço lateja no fundo de certas almas. Nem
mesmo aquele, que se transformaria no seu algoz compreendia o
obscuro papel que lhe estava reservado. Nem mesmo ele podia
encontrar palavras que justificassem o seu súbito interesse por aquela
criatura miúda e tímida, sempre hesitante nos menores gestos, como
se temesse uma agressão inesperada ou uma injúria mortal. Às
observações dos outros, Chico nada encontrava para dizer. Afinal não
sabia mesmo por que o tinha admitido no grupo. Concordava
plenamente que Camilo era um trambolho, um maricas que não servia
para nada. E apesar de tudo não podia abandoná-lo. Aliás, fora Camilo
quem o procurara pela primeira vez, um sorriso forçado nos lábios.
Agora era Chico quem passava todas as tardes na sua casa,
convidando-o para as brincadeiras no terreno da igreja. Camilo nunca
se recusava a ir — mas havia na sua atitude qualquer coisa forçada,
como se dentro dele alguma coisa se revoltasse contra aquelas novas
companhias. Sim, ele nunca deixava de acompanhá-los — mas era
como se fosse obrigado, como se cumprisse um castigo. Talvez fosse
isto que Chico tivesse descoberto. O certo é que não tardou a perceber
que podia transformar o novo amigo no que quisesse, lançar-lhe as
mais cruas palavras em plena face, cobri-lo de ridículo diante dos
outros. Ele não reagia nunca, exceto de maneira que parecia provocar
maiores injúrias ainda. Aliás era curioso como todo ele se iluminava
nesse instante, como o seu sorriso sem forças parecia dizer: “Bata-me
que nada lhe acontecerá, aqui estou para isto.” E em breve Camilo e
Chico converteram-se num autêntico espetáculo para todo o mundo.
Não havia quem desconhecesse aquelas disputas, aquelas explosões
sem motivo, aquelas maldades cuidadosamente preparadas, que
envolviam Chico num halo de magnética atração. Não era possível
negar que também ele resplandecia nesses momentos, provocado
pelos olhares de admiração dos que o cercavam.

No início, arranjara para Camilo os apelidos mais grotescos,


escolhendo de preferência os que denunciavam a sua debilidade de
modo mais vivo. Todos eles corriam o grupo como o rastilho de um
foguete. Mas, cansado desta brincadeira inofensiva, passara a dar
rasteiras no amigo, tombos, chegava a pregar-lhe sustos que o
deixavam pálido, o coração nos lábios. Algumas vezes Camilo tentava
reagir mas Chico redobrava então as suas proezas, construía
armadilhas para o incauto companheiro, desafiava-o para violentas
lutas corporais, amarrava-lhe rabos de papel. Muitas vezes Camilo se
recolhia sozinho, jurando que nunca mais voltaria ao meio daqueles
selvagens. Ora, nada mais difícil do que arrebatar a um homem a presa
com que ele se diverte. Assim como Camilo se submetia, aceitando
tudo como se soubesse que aquilo era o que lhe estava destinado,
assim Chico sentia, do mesmo modo obscuro, que aquele pequeno ser
lhe pertencia. Esse era o motivo por que ele não ignorava os recursos
que deveria usar quando Camilo se mostrasse zangado. Nesses
momentos, ele tinha bem presente os esforços gastos para conquistá-
lo. Apesar das aparências exteriores, aquilo era um processo antigo,
que datava de há muito, desde que vira Camilo pela primeira vez. Sim,
lembrava-se bem que durante muitos dias procurara atraí-lo ao seu
meio, sem nada conseguir. Passava inúmeras vezes diante da sua
porta, assoviava-lhe, lançava-lhe olhares provocadores. Mas o menino
permanecia distante, numa indiferença que coisa alguma parecia ter o
dom de perturbar. Chico já tinha desistido completamente, quando o
outro viera se oferecer de espontânea vontade. Nenhum deles
compreendeu o que se passava — mas sentiam que devia ser assim. Foi
desse modo que Chico passou a andar diariamente na companhia de
Camilo. Mas às vezes este esboçava um gesto de rebeldia — e passava-
se algum tempo, antes que Chico pudesse encontrá-lo de novo. Então
ele compreendia que tinha ido demasiado longe. Mesmo essas almas
formadas para receber todos os agravos do mundo, mesmo nessas
criaturas em que parece ter desaparecido todo desejo de compreensão,
mesmo para esses há coisas, gestos, atos que não podem ser aceitos
sem violência. É que é possível aos homens esmagar o amor, mas não
fazê-lo desaparecer inteiramente. Na natureza tão plácida de Camilo,
alguma coisa sangrava. Mas Chico, com essa habilidade dos que sabem
desde cedo jogar com a fraqueza dos sentimentos humanos, conhecia
muito bem os meios de obrigar Camilo a voltar ao seu domínio. Era
tão simples! Bastava ir procurá-lo naquele quarto abafado, cheirando a
remédios, sentar-se com ele na cama, tomar as cartas espalhadas no
chão e durante cinco minutos jogar com o doente o seu jogo predileto.
Nesses instantes, todas as palavras de carinho poderiam ser usadas.
Era bom indagar também pela sua saúde, oferecer-lhe um livro, um
assovio de metal ou parte da coleção de selos — ainda mesmo que mais
tarde tudo aquilo viesse ter de novo às mãos do seu primitivo dono. Só
nesses momentos é que Chico percebia confusamente que estava
representando um papel. Só nos momentos em que ia buscar nos seus
guardados os tesouros mais preciosos, a fim de vencer uma resistência
que ameaçava prolongar-se por mais de dois dias, só nesses momentos
é que ele sentia o quanto aquele pequeno era vital para o
desenvolvimento da sua personalidade ainda informe. Mas que
aborrecimento, que trabalho, que longas lutas entre sorrisos melosos e
palavras cheias de mentira! Mas, quando afinal obtinha o seu intento,
Chico vingava-se, redobrando os gritos, as rasteiras, as brincadeiras
que deixavam Camilo exausto. Já agora não era somente ele que usava
tais processos, mas a turma inteira. De repente Camilo viu-se alvo da
atenção de todos, a sua debilidade passou a constituir um triunfo.
Eram muitos os amigos que iam procurá-lo em casa. Ele se esforçava,
queria estar à altura dessa consideração, mas sentia-se perdido,
destacado dos outros como uma ovelha negra. Não raro voltava
chorando para casa e esperava no jardim que suas lágrimas cessassem.
Tudo se confundia no mesmo turbilhão cinza e doloroso. Até mesmo
aquele quarto abafado que tanto detestara parecia-lhe agora um
abençoado refúgio. Certa vez, sua mãe o surpreendeu numa dessas
crises de pranto. Ele nada soube explicar — e a sombra do olhar
materno pareceu tornar-se mais profunda. Não dizia nada, mas
também ela sofria pela ausência de Sílvio. Era verdade que ele ainda
tinha aparecido uma ou duas vezes, mas nunca mais brincara, nunca
mais se deixara ficar do mesmo modo inocente e franco, mantendo-se
diante do antigo companheiro como se fosse uma visita de cerimônia.
E ela própria acabara por desejar que ele não voltasse mais.
Entretanto, vendo Camilo regressar machucado, os olhos vermelhos,
ela balançava a cabeça devagar: “Você não deve andar na companhia
desta gente.” E Camilo nada respondia.

Uma tarde, como passassem junto de uma grande poça d’água


acumulada pela chuva, Chico disse ao amigo de repente:

– Vou atirá-lo nesta poça.

– Não faça isto — respondeu o outro serenamente — porque


senão nunca mais falarei com você.

Num outro momento, talvez ele tivesse cedido. Mas em torno


estavam quatro ou cinco faces ávidas e curiosas.

– Que me importa — disse. — Vou jogá-lo assim mesmo.

E, antes que Camilo pudesse se defender, empurrou-o dentro


d’água. Rompeu uma risada geral. Então, ainda sentado na poça,
Camilo fitou-o e sentiu que as suas penas estavam terminadas. Já nada
mais existia entre ele e aquela criatura. De repente, Chico percebeu
também que alguma coisa extraordinária se tinha passado. Estendeu a
mão a Camilo para ajudá-lo, mas este a recusou. Enquanto os outros
se afastavam, ele segurou Camilo pelo braço e murmurou em voz
baixa, como se estivesse dando uma ordem:

– Escute, hoje à noite passo na sua casa.

– Não precisa — articulou Camilo tiritando.

Então passo amanhã.

– Nem amanhã — respondeu Camilo no mesmo tom inabalável.

– Então…

– Nunca mais — concluiu Camilo, separando-se do grupo.


Naquela noite ele teve febre, no dia seguinte não se levantou. E na
verdade nunca mais se viram.

15
Sílvio abriu a porta na esperança de entrar sem ser pressentido.
Mas, no momento em que atravessava a sala de jantar, uma tábua mal
pregada estalou sob os seus pés. Então, no fundo do corredor, ouviu a
voz de Áurea que o chamava e percebeu que um raio de luz escapava
por uma porta entreaberta. Deteve-se hesitante, escutando o tique-
taque do relógio — e, como Áurea o chamasse de novo, decidiu-se com
um suspiro, adivinhando a natureza das palavras que iria ouvir. Assim
que empurrou a porta, viu que apesar da hora adiantada Áurea ainda
trabalhava. Sob a luz velada com uma folha de papel, ela bordava uma
enorme toalha que tinha lançada sobre os joelhos. Assim que Sílvio
entrou, dirigiu-lhe apenas um olhar e perguntou-lhe onde tinha estado
todo aquele tempo, enquanto ajeitava com a unha uma dobra da
bainha. E como ele nada dissesse, receoso de que a sua resposta o
atirasse num caminho mais perigoso, ela indagou sorrindo se aquilo
eram horas para um menino entrar em casa. Pronto para uma defesa
que julgava necessária, ele afirmou com certa violência que já não era
mais uma criança, que já tinha feito treze anos. Áurea se deteve um
instante e fixou-o em silêncio, como se duvidasse da veracidade
daquelas palavras. Mas outras idéias deviam preocupá-la, pois moveu
lentamente a cabeça e disse que não era por isto, mas porque tinha
encontrado a mãe de Camilo e que ela se queixara de que ele não
aparecia mais. Sílvio sentiu um repentino alívio, descobrindo que era
só aquele o motivo por que Áurea o chamara. Não havia nenhum
perigo, todas as suas últimas aventuras ainda eram inteiramente
ignoradas em casa. Mostrou então um repentino interesse por Camilo
e indagou o que havia, se ele já tinha melhorado, o que dissera o
médico. Não, afirmou Áurea, ele não tinha melhorado; ao contrário,
estava passando mal e o médico não alimentava muitas esperanças.
Era conveniente que Sílvio fosse visitá-lo. Vendo-se livre do que tanto
temera, ele se entregou a um súbito movimento de ternura, lançou-se
sobre Áurea, abraçou-a, afirmando que no dia seguinte iria sem falta.
Ela ria, procurando fugir àqueles abraços, ameaçando-o com a agulha.
Afinal, depois de beijá-la estrepitosamente duas ou três vezes, Sílvio se
despediu, cerrando novamente a porta. Ao chegar ao seu quarto,
porém, não teve coragem para acender a luz. A janela estava aberta e o
luar cintilava lá fora. Debruçando-se no peitoril, ele sorveu com força o
frio perfume da noite, esperando acalmar o tumulto do seu coração.

Nestes últimos tempos a sua existência se tornara tão diferente


que, agora, regressando ao convívio daqueles objetos que lhe eram
familiares, tinha a impressão de que voltava de uma longa viagem.
Tudo era inesperado, dotado de estranha e radiosa vitalidade. De
poucos momentos ele se lembrava de se ter sentido tão vivo, tão
sensível, tão apto a perceber o mistério das coisas. Muitas vezes,
inúmeras vezes já, distinguira aquela árvore lá fora, do mesmo lugar
que ocupava agora. Mas só naquele minuto reparava na sua grande
sombra acocorada, singularmente atenta ao enorme silêncio que
envolvia a paisagem. “Devo estar sonhando”, pensava ele, “tudo isto
não existe, a ninguém acontecem coisas como estas.” Mas Sílvio não
podia mais escapar, cada minuto ele o vivia com extraordinária
intensidade. Tudo o que ocorrera dias antes voltava detalhadamente à
sua memória. A saída da escola, a chuva miúda, os grupos que se
afastavam. Ele pensara novamente que iria passar uma tarde igual às
outras, que esperaria a noite chegar com o mesmo coração pesado, até
que o dia seguinte surgisse de novo e mais uma vez tudo se
desenrolasse de maneira perfeitamente igual. Mas, no momento em
que ia saltar uma poça, ouviu alguém que o chamava. Era ela. Durante
alguns segundos, permaneceu indeciso, imaginando que talvez se
tivesse enganado, que talvez não fosse ele a quem a menina chamara.
Mas, apontando para a enorme poça d’água, ela pediu que Sílvio a
auxiliasse, pois não conseguia transpô-la sozinha. Ele se aproximou
morosamente, atordoado com aquela súbita fortuna. Ajudou-a a
passar e puseram-se a caminhar juntos. Agora se tinha criado entre
eles um ambiente de constrangimento. Sílvio queria vencê-lo,
pensando em aproveitar a ocasião, mas nenhuma palavra lhe vinha
aos lábios, suas idéias se tinham obscurecido completamente.
Percebendo sem dúvida o que se passava, a menina pôs-se a falar,
como se nada mais esperasse para entrar em conversa com o tímido
companheiro. Disse que se chamava Diana — e, como Sílvio afirmasse
que já o sabia, fez-se muito séria, fitou-o quase com estranheza, mas
acabou sorrindo e contando o resto da sua história. A criada vinha
buscá-la todos os dias, mas não sabia o que acontecera naquela tarde,
pois cansara-se de esperá-la. Aliás não precisava daquilo, sabia muito
bem voltar sozinha, a mãe é que tinha daquelas coisas. Como Sílvio
esboçasse uma pergunta, adiantou que não era daquele lugar, que
tinha vindo do Rio porque sua mãe estava doente e precisava de
repouso. Ela não conhecia ninguém, vivia fechada em casa lendo
romances e escrevendo para o Rio. No princípio não quisera colocá-la
na escola, ainda conservava esperanças de voltar o mais cedo possível.
Mas, como o médico a visitasse e assegurasse que ele ainda estava
bastante fraca, resolvera tudo de repente entre lamúrias e prantos,
depois de escrever e rasgar numerosas cartas. Assim fora melhor, pois
ela não perderia tanto tempo. A esta altura, a menina encarou Sílvio
com gravidade e afirmou que ele precisava ir lá a fim de conhecer a
mãe dela. Não tinha amigas, a criada, tonta com as suas brincadeiras,
vivia indagando se ainda não arranjara com quem brincar.

E Sílvio aceitou o convite. Imóvel no canto do salão, olhava com


as pupilas dilatadas para todo aquele luxo que o cercava. A mãe,
deitada num divã, um livro nas mãos e fumando intermináveis
cigarros, mal olhava para ele. Saudara-o apenas com um “olá” e,
depois de fazer duas ou três recomendações à filha, despedira-os com
certa impaciência. De longe, Sílvio ainda olhava aquela sedutora figura
envolta num longo “peignoir” de seda cor-de-rosa, os dedos cheios de
anéis. No íntimo não podia deixar de compará-la a Clara, trajada
sempre com vestidos pesados e sem graça. Lembrava-se também do
ambiente pobre da sua casa e compreendia com misteriosa segurança
que jamais teria coragem para levar lá a nova companheira. E nem
mesmo ousou confessar a sua aventura em casa. Depois desta primeira
visita, a amizade com a pequena se estreitou, passaram a andar juntos
constantemente. Mas era ela quem o procurava, quem o exigia a todos
os momentos, observando-o de maneira completa. Diante dela Sílvio
sentia-se tomado pela mesma timidez do primeiro instante; a cada
momento, nas situações menos significativas, seus gestos eram
tolhidos, cheios de temor e indecisão. Algumas vezes ela se
impacientava, dirigia-lhe uma palavra mais forte ou arrebatava-lhe um
objeto das mãos. Não podia com tanta timidez. Ele se sentia
esmagado, abaixava os olhos, esperando ansiosamente que tudo
passasse. O seu único pensamento quando se achava junto da
companheira era o de muda adoração. “Como é bela!”, dizia para si
mesmo, sem poder desviar a vista do seu rosto. Até a mãe e a criada já
tinham notado aquilo, sorriam quando ele entrava, chegavam mesmo
a brincar com a menina. Uma vez, tendo empurrado cautelosamente a
porta, ouvira a criada dizer que Diana ia se casar com um matuto. Ela
se defendera, rindo no começo, mas acabara por se zangar e tocara a
criada para fora, com murros decididos. Era violenta e autoritária.
Acontecia quase sempre que Sílvio, perdido naquela adoração, não
compreendia suas palavras. Imaginando talvez que ele ousasse se opor
à idéia, os olhos verdes da menina se inflamavam, atirava os
brinquedos no chão, abandonando-o cheia de rancor. Duas ou três
palavras de desculpa obrigavam-na a voltar. Mas às vezes, cansada de
reinar com tanta facilidade, ela se obstinava, fechava-se no quarto, não
queria vê-lo. Sílvio retirava-se com a morte na alma. No dia seguinte,
entretanto, ela cumulava-o de amabilidades, fazia gatimonhas na aula,
enviava-lhe dezenas de bilhetes.

Mas nem sempre era assim que passavam as horas. Diana


gostava de imitar a mãe, tomava atitudes lânguidas, estendia-se no
divã. Ou então contava episódios do Rio, as festas, os amigos que
possuía. Nesses momentos, imaginando que um dia ela voltaria a esses
companheiros, Sílvio sentia abater-se sobre ele uma enorme tristeza,
Então ela ria, dizia que ele era um bobo, que o levaria quando tivesse
de voltar. Coloria as paisagens do Rio com maior entusiasmo, citava os
namorados, casos que sabia, conversas que ouvira dos mais velhos.
Sílvio, atônito, media a profundeza da sua ingenuidade. E os banhos
de mar, as praias, as sorveterias que ela descrevia, tudo surgia aos seus
olhos como um mundo de sonhos impossíveis. Imaginava-se viajando,
seguindo a paisagem da janela do trem, depois o burburinho na
estação, as ruas, o mar. "Você sabe como é o mar?", perguntava Diana.
Ele dizia que sim e fechava os olhos, esforçando-se para ver a extensão
das águas. Mas Diana ria, afirmando que era muito diferente do que
ele pensava. E ia à sala buscar uma enorme concha, a fim de que ele
pudesse ouvir o rumor que o mar fazia. Nesses instantes, com o rosto
quase unido ao da companheira, ele indagava a si mesmo por que não
imitava os amigos que ela deixara no Rio. Seria tão fácil beijá-la,
bastaria apenas voltar a cabeça. Mas só de pensar nisto o sangue lhe
subia às faces. “Que foi?", indagava Diana. E ele nada respondia
olhando aqueles lábios úmidos e carnudos que pareciam implorar
alguma coisa misteriosa. Outras vezes suas cabeças se confundiam e
ele sentia subir-lhe das entranhas um estranho calor. Diana fitava-o de
maneira bizarra. “Matuto”, dizia ela rindo, o rosto oculto entre as
mãos. E assim os dias se passavam.

Numa tarde em que passeavam junto à estação, Sílvio deteve-se


de repente, segurando Diana pelo braço. Acabara de avistar Clara, que
passava perto. Durante alguns instantes, ele teve esperança de que a
mãe não o visse. Entretanto adivinhando-o talvez, Clara olhou-o de
longe, pousando a vista sobre a menina com certa surpresa. Naquele
dia Sílvio voltou para casa cheio de vagos pressentimentos. Não sabia
por que escondia a sua amizade com tanto afinco, mas todo o seu
instinto o conduzia a isto. E, apesar de todos os seus temores, durante
o jantar Clara nada disse. Parecia ter esquecido o que vira, outras
idéias deviam preocupá-la, pois uma ruga de contrariedade se
desenhava na sua testa. Sílvio chegou a imaginar que podia ser ele o
motivo, mas ouvindo a mãe e Áurea discutirem sobre contas a pagar
tranqüilizou-se. Suas visitas a Diana tomaram-se mais assíduas.
Mesmo no colégio já reparavam naquela amizade. A professora seguia-
os com certa inquietação. Certa vez, num dos momentos em que Diana
lhe mostrava os presentes que tinha recebido do Rio, a campainha
soou e logo depois a criada surgiu com um telegrama. A menina voou
para a sala e voltou depois anunciando que o seu padrinho chegaria
daí a dois ou três dias. Sílvio nada disse, mas sentiu um estranho
pressentimento se apossar do seu coração. Diana estava
extraordinariamente excitada, relembrava aventuras com o padrinho,
passeios, detalhando a festa que a sua presença em casa significava. A
cada nova particularidade Sílvio mostrava-se mais taciturno, sua
tristeza aumentava. Diana em nada prestava atenção, absorvida pela
novidade. E desde esse momento ele não tivera mais sossego, um
espinho parecia se ter cravado na sua carne. E eram estes os
pensamentos que o mantinham naquele minuto debruçado à janela, a
alma dividida entre o prazer de misturar-se às realidades do mundo
em que transitava Diana e o temor de perdê-la — entre a alegria de ter
feito suas algumas dessas coisas que lhe pertenciam e o receio de vê-la
arrebatada por outras, mais estranhas e de maior interesse do que as
pobres dádivas da sua limitada experiência.

Foi nesse estado de espírito que no dia seguinte Sílvio fez sua
visita a Camilo. Absorvido pelas suas idéias, ele nem sequer reparou
no ar de reservada alegria com que o recebia a mãe do seu amigo. É
verdade que os seus olhos descobriam alterações, que não lhe
escapava uma certa agitação que reinava na casa, bem como objetos
fora do lugar, móveis em posições diferentes, camas provisórias, toda
essa silenciosa balbúrdia das casas onde existe uma doença grave. Mas
eram apenas seus olhos que o constatavam, pois o coração permanecia
inerte, sob o fluxo dos seus obsedantes pensamentos.

Camilo tinha mudado de quarto, haviam-no colocado no fundo


do corredor, no aposento ordinariamente ocupado pelos velhos. Logo
que entrou, Sílvio percebeu um vulto encolhido junto à porta, que mal
se levantou para cumprimentá-lo. Fixando a vista, reconheceu naquela
figura trêmula o pai do companheiro. Essa rápida visão deu-lhe uma
noção exata do espetáculo que o aguardava. Instantaneamente ele
compreendeu que Camilo estava perdido. Havia naquele homem
alguma coisa de um animal ferido. Logo que abriu a porta, sentiu a
atmosfera alterar-se bruscamente, o ar puro desapareceu, tornou-se
pesado, impregnado de álcool e remédios. As janelas estavam
fechadas, mal se distinguiam os móveis na penumbra morna. Ele não
ousou aproximar-se, tomado de súbito receio. Foi preciso que a mãe o
incentivasse, colocando uma cadeira junto à cama. Também não lhe
escapou aquele gesto de humildade, aquele sorriso servil que
iluminava tão escassamente a face amargurada da velha. Sentiu-se
vagamente culpado, mas não pôde sufocar o sentimento de
contrariedade que lhe subiu ao coração. Não sabia explicar por que,
mas tudo aquilo o irritava. No primeiro instante, já sentado, não
distinguiu o vulto do amigo, perdido naquela massa confusa de
travesseiros. Mas não tardou muito a vislumbrar dois olhos ardentes
que o fitavam da sombra. Então ele sentiu que era preciso dizer
alguma coisa, mas nenhuma palavra lhe aflorava aos lábios.
Permaneceram assim durante algum tempo, Sílvio se esforçando por
aniquilar a atmosfera de constrangimento que a cada instante se
impunha com mais força. A si mesmo indagava na maior aflição quais
seriam estas palavras, de que frases necessitaria para reatar o antigo
ambiente de confiança e intimidade. Mas o seu coração se achava
vazio, nada respondia àquele insistente e doloroso apelo. “É preciso, é
preciso!”, repetia ele inteiramente desamparado.

Foi o próprio Camilo quem rompeu o silêncio. As suas palavras


vieram trêmulas, como se apalpassem o terreno em que iriam tombar.
Do fundo do seu leito solitário ele compreendia o que se passava com o
outro. Naquele vazio, naquele esforço para restabelecer o calor a que
estavam habituados, reconhecia um obstáculo, uma força que o
separava irremediavelmente do amigo: era “ela”. No primeiro
momento, quando o vira encostado à porta, ainda tivera esperança e
julgara que depois de tão longa ausência eles pudessem talvez
reencontrar de novo o segredo das palavras que tinham usado outrora,
e com as quais haviam construído juntos tantos e efêmeros castelos.
Mas, diante daqueles olhos que o fitavam agora sem nenhuma
expressão, compreendeu que ele estava realmente banido para
sempre, que era apenas um tormento para o outro. E só neste minuto
ele sentiu realmente o perigo que se aproximava, só neste minuto ele
sentiu a noite, o vazio e o silêncio das agonias prolongadas, pois nem
os passos furtivos, nem os soluços e os vidros de remédio tinham
podido ainda transmitir-lhe a noção da morte. Ele não sabia explicar
com exatidão o que sentia, mas era como se de repente o tivessem
abandonado sozinho numa estrada escura.

Sílvio falou então qualquer coisa sobre o colégio. Ia tudo bem, as


lições estavam bastante avançadas. Mas, a uma pergunta de Camilo
sobre um dos pontos, titubeou, e o doente compreendeu que ele tudo
ignorava das aulas, que de lá também Sílvio estava ausente. A
profundeza daquele sentimento, entrevisto em tão rápido minuto,
causou-lhe um indizível mal-estar. Mas já agora era impossível fugir à
dominadora pressão daquela imagem. Num tom mais baixo, sentindo
que forçava toda a sua natureza, Camilo perguntou por Diana. Uma
onda de sangue subiu ao rosto de Sílvio, e ele respondeu com uma
palavra que nada exprimia. Mas arrependeu-se, e, como quem
confessa uma culpa, disse que um dia daqueles haviam ido até os lados
da olaria. Mal acabara de falar sentiu voltar à sua consciência, com
perturbadora nitidez, a lembrança de outros passeios que tinha feito
com Camilo, de lugares e sítios que haviam visitado juntos. E, mais do
que isto, percebeu que idênticas imagens acabavam de ressurgir com
tremenda força no espírito do outro. Então, à guisa de desculpa
murmurou:

— Depois que você adoeceu não tenho mais com quem andar.

Camilo não disse nada, o seu coração sangrava. Com os olhos já


acostumados à sombra, Sílvio seguia no rosto do companheiro aquele
sofrimento que se estendia como uma nuvem escura. Talvez fosse
melhor levantar, despedir-se, alegar que estava se sentindo mal. Mas
aquilo era uma covardia. Permaneceu no mesmo lugar, olhos baixos.
Sim, não adiantava mentir, agora tudo era diferente. Alguma coisa se
tinha acabado para sempre. E como não lembrar de tudo o que ainda
estava tão próximo, das palavras trocadas, dos segredos em comum,
dos passeios e dos livros? Que adiantava estar ali se nada mais sentia?
Então, insensivelmente, veio à sua memória um acontecimento antigo,
dos primeiros dias em que se tinham conhecido. Camilo discutia com
aquela gravidade que lhe era peculiar, os olhos brilhantes, todo ele
parecendo arder numa flama de entusiasmo. Amigo, dizia, é aquele
que nos merece tudo, até mesmo um sacrifício imenso, até o sacrifício
da própria vida. Sílvio concordara, transportado por idêntico
entusiasmo. Tão pouco tempo havia decorrido, dias tão curtos — e ali
estavam eles de novo, distantes como duas pessoas que nunca se
tivessem visto. Era possível que em Camilo nada se tivesse alterado,
era possível que ele fosse o mesmo que lhe fizera aquela afirmação
cheia de entusiasmo. Mas em Sílvio tudo era diferente, dentro dele
alguma coisa estava misteriosamente dilacerada. Não que lhe
importasse o sacrifício da vida, mas qualquer estranho lhe merecia
gesto idêntico. E ele se debatia ante aquela dolorosa visão, sentindo
que a sua compreensão ruía sob uma realidade mais forte, mais
amarga, mais humana.

Os minutos passavam sob um denso silêncio. Alguém abriu a


porta, espiou um instante e se afastou. “Talvez que uma palavra ainda
consiga salvar tudo”, pensou Sílvio. Mas do fundo do seu coração uma
nova imagem se opôs à do doente — Diana — e, cedendo enfim ao que
lhe era impossível vencer, ele se entregou inteiro àquele sentimento
que o possuía como uma obsessão.

16
Esse incidente em nada alterou a vida de Sílvio. Dia a dia sua
atenção mais se concentrava em Diana e em tudo o que dela se
originava. Às vezes, encontrando-o no corredor, Clara dizia: “Este
menino está ficando cada dia mais esquisito.” Se bem que não
prestasse muita atenção às reclamações desta natureza. Áurea
observara que realmente parecia existir qualquer coisa, Sílvio não era
o mesmo. Decerto não lhe ouvira nenhuma palavra mais áspera, nada
descobrira que pudesse despertar-lhe a menor suspeita. Entretanto,
via-o sempre taciturno, debruçado na janela, evitando encontros como
se na verdade ocultasse alguma coisa dos outros. Em certo momento
julgou que ele estivesse doente, vendo sua falta de apetite. Mas, como
esperasse em vão sintomas que não surgiam, resolveu afinal fazer uma
consulta a Maria Ernestina, sempre tão experimentada nestas
questões. A solteirona ergueu os ombros: “É da idade” — e a conversa
morreu neste ponto. Satisfeita, Áurea deixou de se preocupar com
Sílvio.

Diana arrastava-o a um mundo de estranhos acontecimentos.


De vez em quando, pretextando cansaço, dizia que não ia à aula e
propunha ao companheiro que fugissem. Ele aceitava sem hesitar.
Percorriam juntos todos os lugares imagináveis, penetravam a furto
nos roçados de milho, roubavam frutas, molhavam os pés no córrego.
Diana fazia todas estas coisas aos gritos, o cabelo amarrado para não
voar, o vestido suspenso num dos lados. Vendo-a tão ágil e nervosa,
Sílvio pensava que ela possuía muito de um rapaz, que era para ele
quase como um companheiro. Mas nunca tivera dessas aventuras com
Camilo, o máximo que ousavam ir era até ao terreno da igreja. E
aquele era justamente o lugar que a menina menos apreciava. Ao
contrário, avançavam até mesmo a lugares em que Sílvio nunca tinha
ido antes, aos pontos menos explorados do riacho, onde as árvores
deitavam grandes sombras, às estradas e picadas mais distantes,
muitas vezes até mesmo quase aos limites dos povoados próximos. Se
Sílvio aceitava tais aventuras tão passivamente, é que nelas ele
conseguia uma vantagem sobre Diana: afastá-la daquele ambiente em
que ela era rainha e que tanto pesava à sua pobreza e ao seu orgulho.
Nessas caminhadas, Diana submetia-se, era Sílvio quem prestava
todas as informações. Ela ignorava até mesmo os nomes das plantas
mais simples, e cada uma destas coisas assumia aos seus olhos
aspectos de uma revelação. Não só nomes de plantas ou flores, mas
também de pássaros e insetos, maneiras de pescar, de reconhecer os
melhores lugares, etc. Diana se interessava apaixonadamente por estas
coisas, ficava horas diante de um sapo ou de uma planta esquisita. Se a
noite os surpreendia, deslumbrava-se com os vagalumes, penetrava
loucamente nos lamaçais para apanhá-los, rasgava-se nos espinheiros.

Apesar de amá-la desse modo, nunca lhe tinha vindo ao


pensamento uma idéia menos pura. O seu coração ainda era sem
manchas. Algumas vezes, quando atravessavam uma sombra mais
densa ou quando a noite os apanhava ainda em caminho, percebia na
menina uma lassidão maior, como se dela se apoderasse uma
inquietante vertigem. Nesses momentos Diana se apoiava ao seu braço
e olhava-o de modo estranho. No tempo em que andava com Camilo,
de vez em quando sucedia surgir entre eles um silêncio idêntico, como
se alguma coisa ameaçadora os rondasse. Durante algum tempo
permaneciam mudos, opressos sob um misterioso sentimento de
incerteza — dir-se-ia que uma segunda e terrífica realidade
transfigurava as coisas. Mas tudo se diluía rapidamente. Agora,
sentindo no braço o peso do corpo de Diana, imaginava que
atravessava uma dessas pausas longas em que as palavras morrem,
inúteis para obterem uma aproximação maior. Sílvio gostava de olhar
o sol descer lentamente num mar de sangue — e sorria para Diana,
sentindo sua alma se dilatar. Ela sorria também e regressavam assim
ao seu primitivo entusiasmo. Mais tarde, em momentos de sombrio
pessimismo, ele tentaria extrair das suas lembranças a visão do
mistério encerrado nessa paixão sem desejo. E saberia então que
certas coisas pertencem irremissivelmente à infância.

Dias depois, como ele viesse procurá-la para um passeio nos


arredores da olaria, Diana desceu a escada correndo, agitando um
papel nas mãos. Era um telegrama do padrinho avisando que não
podia vir como prometera, mas que estaria ali daí a dois ou três dias, a
fim de levá-las novamente para o Rio. Mesmo enquanto transmitia a
notícia, Diana não podia dominar sua agitação. Ria, batia palmas,
sacudia a cabeça, num entusiasmo que a transfigurava. Agora sim, ia
ter de novo as coisas de que mais gostava, os cinemas, as sorveterias,
as visitas às amigas, toda uma série de obrigações sociais a
desenvolver. Talvez ainda apanhasse a estação dos banhos de mar.
Enquanto falava, Sílvio a contemplava quase sem reconhecê-la. Só
agora essas coisas de que tanto ouvira falar adquiriam realidade para
ele, uma realidade escura, dolorosa, negativa, inquietante como uma
doença que se descobre de repente. É que finalmente compreendia o
que se passava com ele. Sofrera durante todo aquele tempo, ignorando
o mal que o devorava. E de repente vislumbrara tudo, até os menores
detalhes, na vidência ampla e instintiva dos condenados à morte. Pois
naquele instante ele sentia também que perdia Diana. Ainda era cedo
para descobrir que na realidade nunca a tinha possuído, que na
existência dela ele não tinha nenhuma realidade. Era apenas um
objeto, como tantos em torno da sua pessoa. E era cedo também para
Sílvio chegar à triste conclusão de que o amor é um monólogo travado
na sombra. Mas o seu instinto advertia-o de que afinal o antigo mundo
reaparecia vitorioso, arrebatando sua amiga para aquela atmosfera em
que jamais penetraria. À medida que Diana falava, ele ia sentindo essa
impressão aumentar, como se cada uma daquelas palavras fosse um
gesto que o empurrasse lentamente para fora do lugar que até agora
tinha ocupado. Nada existia mais, nem os passeios que tinham feito,
nem os nomes que ele lhe ensinara, nem os longos silêncios, nada.
Uma outra Diana, inteiramente diferente, estava diante dos seus
olhos. E, ante aquele fluxo de exclamações que não cessava mais, ele se
sentiu diminuir até converter-se apenas num ponto minúsculo. A uma
certa altura, ela se calou e fitou-o. Naqueles olhos verdes que o tinham
fascinado desde o primeiro instante, Sílvio viu passar um relâmpago
de piedade. Então qualquer coisa se levantou dentro dele, selvagem,
indomável, um rancor que ainda não conhecia. Durante um minuto
odiou-a com toda a força de que era capaz. Diana também
compreendeu o que se passava. Sentiu a distância em que ele se
colocava, viu-o esmagado e humilde e compreendeu que dessa
distância ele a julgava. Num gesto rápido, atrevido, aproximou-se e
beijou-o violentamente na face. Sílvio tornou-se escarlate. Aquele beijo
ofendia-o ainda mais, era como um derradeiro escárnio aos seus
pobres sentimentos esfacelados. Então voltou-lhe as costas e saiu
correndo, sem se importar com os gritos de Diana, que o chamava.

Choveu durante todo o dia seguinte. Pretextando súbita


indisposição, Sílvio não foi à aula naquele dia. Permaneceu deitado,
tendo nas mãos um livro que não lia. Nem sequer chegava a
compreender direito o que se passava com ele. Sentia-se humilhado e
triste. Veio à mesa na hora do jantar, não se interessando porém pelos
eternos problemas caseiros de Áurea. Ao contrário, tudo aquilo o
enervava. Também Clara se mantinha silenciosa, visivelmente
enfadada com as queixas da outra. Depois da sobremesa alegou que
precisava sair, ia ao armarinho e não se demoraria.
– Com esta chuva? — indagou Áurea apontando para a vidraça
embaciada.

– Não faz mal, botarei qualquer coisa na cabeça — respondeu


Clara, decidida.

Com a sua saída, Sílvio sentiu uma espécie de alívio. Nada temia
da parte de Áurea, mas com a mãe estava sempre em guarda.

– Não se feche no quarto como um bicho — disse Áurea —,


senão acabará não sabendo mais falar.

Sílvio, que já ia se retirando também, voltou-se com um gesto de


fingida indolência:

– Vou só apanhar o meu livro.

Depois de alguns minutos, regressou à sala. Áurea já tinha


desdobrado a costura, enquanto a chuva batia surdamente contra a
vidraça. Com o livro aberto, Sílvio sentia pesar agora aquele grande
silêncio, onde os seus sentimentos pareciam mais vivos, mais
dolorosos. Que teria feito Diana durante todo o dia? Via-a carregando
embrulhos, desenrolando peças de fazenda, abrindo caixas de
chocolate. Junto dela, contemplando a cena, o padrinho que viera do
Rio. Imaginava-o um homem alto, de fartos bigodes caídos dos lados,
trazendo óculos de aros de ouro. Qual seria o interesse que Diana
conseguia achar num homem como aquele? Enquanto isto, do divã
onde fumava cigarro após cigarro, a mãe seguia com ternura os gestos
da filha. “Ela está crescida, não?”, perguntaria ao padrinho. O homem
aprovaria com um lento movimento de cabeça. “Sim, está crescida,
mas ainda tem modos de criança.” Nesse instante, Sílvio ouviu passos
que soavam lá fora. Era Clara que regressava. Escutou a porta que se
abria, mas nem sequer levantou a cabeça.

– Que tempo horrível! — exclamou Clara, tirando o xale da


cabeça.

E aproximando-se de Sílvio:

– Encontrei-me aí fora com um vizinho, pediu-me para avisá-lo


que Camilo morreu.

Áurea deixou escapar uma exclamação abafada e depôs o


bordado sobre a mesa.

– Morreu? — indagou como se duvidasse do que acabara de


ouvir.

– Morreu sim… acho que ainda há pouco…

E Clara, reparando na indiferença com que Sílvio recebia a


notícia, indagou:

– Não era seu amigo?

Sílvio não respondeu. Com os olhos baixos, o livro aberto sobre


os joelhos, procurava reavivar os detalhes da sua última visita ao
amigo. Ainda tinha bem presente o vulto pálido apoiado aos
travesseiros altos e aqueles olhos brilhantes, que lhe eram a única
coisa familiar no ambiente saturado de odores estranhos. E, fato
curioso, de nada mais se lembrava, tudo se confundia no mesmo caos
uniforme e indiferente. Sim, existiam os antigos passeios, os diálogos
que não se acabavam, os livros trocados. Mas que realidade possuíam
estas pobres coisas? De repente ele disse a si próprio, como uma
resposta a todas essas questões: “São coisas antigas, que não voltam
mais. Já não estou em idade para isto.” E agora, de olhos fechados,
esforçava-se em vão por separar a morte do amigo das imagens
recentes que o dominavam. Mas uma outra idéia obsedante se opunha,
a da partida de Diana. E entre esses dois sentimentos tudo se
misturava numa penosa sensação de mal-estar, que o oprimia como se
um anel de ferro lhe estreitasse o coração.

Foi nesse momento que Clara fixou o olhar nele, não como õo
fazia tantas vezes durante o dia, mas com uma curiosidade movida
pelo pressentimento. E só aí, diante daqueles olhos fechados, daquele
livro que ela percebeu inteiramente inútil, diante daquele silêncio com
que ele recebia a notícia da morte do amigo, só aí ela compreendeu
tudo o que estava acontecendo. Tudo o que até aquele momento lhe
havia passado despercebido, aquela sombra sobre o rosto do filho, que
parecia torná-lo mais velho e mais grave, aquele desinteresse e aquela
fuga diante dos outros, todos estes sintomas lhe revelaram a realidade
oculta até aquele instante. Lembrou-se de que o vira dias antes com
uma menina desconhecida. E até mesmo de certos rumores a respeito
de uma família nova, mexericos da vizinhança, coisas a que ela não
dera muita atenção. Entretanto, ali estava a confirmação de tudo.
Agora ela o examinava com súbito e apaixonante interesse. Como era
estranho que já sofresse aquelas coisas, que passasse tão cedo por
transes tão dolorosos como os que ela própria já havia passado! Não,
ele não se parecia em nada com Jaques. Era um outro tipo, pertencia à
sua raça. E quanto mais o examinava, mais se convencia de que já não
era mais uma criança que tinha diante dos olhos. E que se teria
passado, quais as palavras, quais os acontecimentos que lhe teriam
aberto os olhos para a vida?

E, por uma curiosa transposição, ela viu a si própria como nunca


tinha visto antes. Viu não somente a sua paisagem interior, mas as
modificações que o tempo havia feito na sua fisionomia. Sentiu com
enorme lucidez a lenta imobilização de tantas coisas vivas na sua face,
como uma lenta e implacável conquista da morte. Uma onda de
amargura espalhou-se no seu coração. Tudo o que fizera calar com
tanta dificuldade, aquele desespero e aquela fria revolta diante da
inutilidade da vida, todo o borbulhar daquela espuma profunda e
concentrada voltou à tona da sua consciência. Era como se fosse um
derradeiro grito de alarma. Clara levantou-se com um gesto brusco e
encaminhou-se até a janela. Toda ela fremia de inquietação, todos os
seus sentimentos pareciam se concentrar para precipitá-la num
derradeiro gesto de desespero. Entretanto, ninguém prestara atenção
ao seu movimento, em torno as coisas continuavam mergulhadas num
profundo silêncio. E a velha questão voltou a se colocar mais uma vez,
nítida, como a nota que rompe triunfal do fundo uniforme da
orquestra: fugir, recomeçar uma nova vida. Por que não, agora que
Sílvio já era um rapaz? Tudo estaria irremediavelmente terminado
para ela? De repente Clara se voltou e contemplou as pessoas que a
cercavam: ninguém a observava. Ela teve a impressão de que lutava
com fantasmas. Então voltou-se de novo e colou o rosto à vidraça. Lá
fora deslizava lentamente um vulto. E nessa sombra obstinada ela
reconheceu o farmacêutico, que todas as noites, de longe, rondava
silenciosamente sua casa.

17
No dia seguinte Sílvio amanheceu realmente doente. O tempo
continuava enevoado, se bem que não chovesse mais. Recostado numa
pilha de travesseiros, durante largo espaço de tempo ele manteve os
olhos fixos na vidraça que o vento de vez em quando fazia estremecer.
Se fizesse um esforço poderia se levantar, mas sentia-se dominado por
um profundo desânimo. Entretanto, com o correr das horas o seu
estado de espírito foi se modificando. Uma surda agitação começou a
lhe trabalhar o espírito. Já não conseguia ficar quieto no mesmo lugar,
revolvia-se de um lado para outro, tentando fugir a um sentimento que
ia aumentando gradualmente de intensidade. Aliás era mais uma
sensação do que outra coisa — sensação de um grande vazio, onde as
imagens mais caras desapareciam como sugadas por lenta e insaciável
névoa. Na obstinação de um orgulho infantil ferido nas suas raízes, ele
procurava em vão repelir o fato da partida de Diana. E era este um
gesto de defesa natural, como o de certos doentes que adivinham os
alimentos proibidos. Mas aos poucos, de maneira silenciosa e
inflexível, a noção daquela viagem se impunha ao seu espírito. Ele, que
tanto se esforçara para não pensar naquilo, e até agora conseguira,
banir a sua lembrança do pensamento — pelo menos o acreditava —,
compreendia de repente que a ameaça surgia e subjugava os recantos
mais afastados da sua consciência. Sim, era inútil lutar, dentro de
algumas horas estaria sozinho, tentando reviver apenas fragmentos
daquele sonho que vivera intato tão curto espaço de tempo. E a um
certo momento essa noção foi tão intensa e dolorosa que ele se
levantou de um salto, pronto a reagir, a fazer qualquer coisa, contanto
que escapasse àquele intolerável sofrimento. Vestiu-se e saiu, mas no
momento em que atravessava a sala encontrou-se com Áurea:

– Como você está pálido! — exclamou. — É melhor não sair com


este tempo...

– Vou só dar uma volta — respondeu ele sem se voltar.

Ganhou a estrada rapidamente, temendo um novo encontro. As


árvores escuras destacavam-se nitidamente contra o céu cor de
chumbo. “Não irei procurá-la”, repetiu Sílvio a si mesmo, “de modo
algum voltarei à sua casa.” Mas, apesar dos seus protestos,
aproximava-se cada vez mais do local em que morava Diana. No
momento em que atingia a praça, encontrou a criada da sua
companheira, que o deteve com um largo sorriso:

– Ia à sua casa. A menina mandou chamá-lo.

Ele sentiu uma nova dor trespassar-lhe o coração. Não era


alegria, mas uma impiedosa sensação do que acabava de perder,
através daquela voz que sempre ouvira misturada às coisas que mais
amava. Ela fazia parte de um mundo onde tudo lhe era sagrado. Sílvio
olhou-a como a um objeto familiar encontrado depois de uma
catástrofe, cheio do sentimento da sua origem, do seu drama e da sua
atual inutilidade.

– Mais tarde aparecerei — disse afinal, procurando fugir ao


olhar da criada.

– Não se esqueça — avisou a outra —, ela não quer voltar para o


Rio sem falar consigo.

E, enquanto se afastava, Sílvio pensou que nem mesmo ela


conseguia disfarçar a alegria que aquele regresso lhe causava. Que
seria então o Rio, que sedução poderia ser a sua? E por que Deus o
fizera nascer naquele lugarejo do interior? Jamais, jamais passaria de
um simples matuto. Apesar dos seus esforços, lágrimas brotavam dos
seus olhos ardentes. Via as casas através de uma névoa, o que lhes
dava um aspecto mais estranho do que nunca. Tudo aquilo pareceu-
lhe odioso, julgou impossível continuar a viver em semelhante lugar. E
durante um rápido minuto pensou em fugir, em tomar o trem,
desaparecer para sempre daquela paisagem que tanto detestava.
Engolfado assim em pensamentos de tristeza e revolta, caminhou
longamente a esmo. Atravessou a praça, ganhou uma das ruas menos
habitadas, passou pela ponte, ganhou o campo. Ali a atmosfera estava
saturada de um doce perfume. Na planície verde, penachos altos se
agitavam ao vento brando. Sílvio sentou-se sob uma árvore, o rosto
apoiado nas mãos, sentindo um certo alívio com a impressão de
liberdade que a paisagem lhe transmitia. Mas surdamente, o seu
sofrimento voltava. “Dentro em pouco”, dizia a si mesmo, “ela não
estará mais aqui. Não virá mais a este lugar e nem falará comigo.” E
aquela perspectiva tinha a profundeza e o silêncio da morte. Devagar,
a partida de Diana ia se colocando sob a sua luz mais crua. Agora era
impossível disfarçar a catástrofe. Pela primeira vez, compreendendo
que nada significava para ela, desejou então que Deus aniquilasse
aquele sentimento no seu coração, mas de maneira tão absoluta que
nada mais restasse, que ela afinal lhe fosse tão indiferente quanto
aquelas pedras sobre as quais pisava.

Quando Diana chegou à estação, acompanhada pela mãe e pela


criada, há muito que Sílvio se encontrava lá. Sem saber por que, ele se
sentia diminuído e miserável, o que lhe dava um ar tristemente
provinciano. Além do seu aspecto miúdo, ele ainda estava mais
abatido naquele dia. Sentado num banco, seguia com amarga lucidez
os passos da namorada. Nunca a achara tão bela, nem o ofuscaram
tanto o luxo e a exuberância da mãe. De longe, afogada em pelicas, ela
tinha o ar de qualquer animal misterioso e raro. Tudo na sua pessoa
era um amálgama de cinza e cor-de-rosa. Quanto a Diana, sentada
junto dele, repreendia-o docemente pelo abandono daquelas últimas
horas. Enquanto isto, quase sem compreender direito o significado das
palavras que ela lhe dirigia, ele não conseguia pensar noutra coisa
senão no fulgor extraordinário dos seus olhos verdes, nos seus cabelos
desatados sob o chapéu de palha branca, em mil pequenos detalhes
femininos que tanto o perturbavam nela, causando-lhe não sabia que
dolorosa, efêmera e voluptuosa felicidade. Tudo na sua pequena
pessoa respirava graça e fragilidade. E eram esses os encantos que ia
perder e pertenceriam a outros, a namorados mais belos e mais
ousados. Pela primeira vez, violentado até o âmago do ser pela
humilhação e pela amargura daquela partida, foi impotente para
repelir um desejo surdo que se insinuou no seu coração. Já agora a
presença física da namorada perturbava-o de um modo estranho.
Havia qualquer coisa de violento e de cruel no seu olhar. Lembrava-se
de tantas oportunidades que perdera, de encontros em lugares ermos,
de beijos que poderiam ter trocado na estrada. Quantas e quantas
vezes ela se apoiara displicentemente no seu braço, quantas vezes não
fechara os olhos, como se se entregasse inteiramente? Oh, imbecil que
fora, talvez tudo tivesse sido bem diferente agora! E, a tantos
sentimentos de tristeza que já o habitavam, misturou-se mais este,
áspero e frio como o de um erro cometido. De vez em quando os seus
olhos sombrios se afastavam das mãos ou dos lábios de Diana, para
pousarem sobre o róseo vulto da mãe. E ela lhe parecia de um
esplendor quase imaterial. Um brilhante faiscava nas suas orelhas
miúdas. Ela erguia a mão calçada de luvas e olhava os trilhos que se
perdiam numa curva distante. “Como este trem demora!”, dizia,
aconchegando-se mais sob o capote de peles. E Sílvio sentia uma
enorme confusão apossar-se dele, já não sabia direito se era a filha ou
a mãe a quem amava. Tudo se misturava no mesmo sentimento, até a
criada participava dessa erupção de ternura. Mas, sem dar a menor
atenção a Sílvio, a senhora palestrava com um senhor de idade que
parecia demonstrar-lhe a maior consideração.

– Eu lhe escreverei do Rio — disse Diana de repente após um ou


dois minutos de silêncio. — E você também vai me responder, não?

Em vão ela tentava reavivar tudo o que tinha existido. O amor


de Sílvio, sem que ele próprio o compreendesse, já era um sentimento
desmesurado e solitário. Aquela partida arruinara-lhe a comunhão e
elevara-o ao mesmo tempo. Inutilmente os olhares da menina se
faziam mais cariciosos, envolvendo-o numa onda de tépida
intimidade.

– Vou sim — respondeu ele sentindo que o seu coração


desmentia aquelas palavras. E, mesmo, Sílvio sabia que a namorada
jamais lhe escreveria. Tudo se acabava ali, inexplicavelmente, como
um caminho diante de um muro.

Afinal o trem apitou ao longe, rolos de fumaça escureceram o


céu. Houve um súbito burburinho na estação. Diana ergueu-se
vivamente, concertando o chapéu de palha branca. Os seus olhos
brilhavam ainda mais, líquidos, refletindo todo o entusiasmo existente
sobre a terra. O trem se aproximou rapidamente e estacou com um
longo estremecimento de ferragens gastas. O vapor expelido pelas
turbinas enchia agora a plataforma. A mãe de Diana encaminhou- se
lentamente para um dos carros.

– Venha, venha comigo — gritou-lhe a menina. — Traga esta


caixa para mim.
E atirou-lhe uma enorme caixa de chapéus. Sílvio obedeceu
como um autômato. Neste minuto, sentiu com desgarradora
melancolia todo o absurdo das suas pretensões. Teve a impressão de
que estava coberto de enorme ridículo. Diana, já dentro do carro,
tomou-lhe a caixa e sentou-se junto à janela.

– No ano que vem eu volto — exclamou com veemência, levada


por essa necessidade de apresentar desculpas que parecia possuí-la
desde o momento em que se tinham encontrado.

Um ou dois grupos se movimentavam junto ao carro. O homem


de idade continuava a sua conversa com a mãe de Diana, que se
apoiara noutra janela. Nada se via senão o seu rosto cor-de-rosa,
sobressaindo do montão de peles que vestia. Ao longe, dois
empregados empurravam volumes para o carro de bagagens. Um
pretinho oferecia bolos quentes. Sílvio não perdia nenhum desses
detalhes, o coração vazio de qualquer espécie de sentimento. Dir-se-ia
que nele tudo estava paralisado. Afinal um novo apito soou e um surdo
estremecimento percorreu a composição. Devagar o trem pôs-se em
marcha, deslizando maciamente nos trilhos.

– Adeus! Adeus! — gritou Diana acenando com um lenço.

Ele respondeu maquinalmente a esse movimento. Agora o trem


ganhava velocidade, passava expelindo jatos de fumo negro junto às
touceiras de lírios selvagens que margeavam o leito da estrada. Então,
de longe, ele viu a rósea figura da mãe de Diana que se inclinava e lhe
lançava também um gesto de adeus. Novamente a menina se
debruçou, e tudo se confundiu numa pequena nuvem de lenços que
palpitavam. Afinal o trem diminuiu e desapareceu na curva. Só os
lírios selvagens tremiam, açoitados pelo vento.

Na estação também todo o rumor desapareceu. As carretas de


bagagens foram recolhidas, o menino dos bolos sentou-se tristemente
a um canto. Devagar Sílvio pôs-se a descer a rampa e abrindo a
porteira ganhou a estrada. No ar ainda vagava o cheiro do carvão
queimado. Mas tudo que o cercava estava mergulhado num
impressionante silêncio. Dir-se-ia que o trem não tinha levado apenas
duas ou três pessoas, mas toda a vida daquele lugar. E, para Sílvio,
toda a vida que existia dentro do seu ser. Um vácuo imenso se fizera na
sua alma, um abismo que coisa nenhuma podia preencher, um escuro
precipício despovoado de todos os ecos. “Nunca mais”, repetia ele para
si mesmo, “nunca mais. E ainda agora estava a meu lado, ainda há
pouco eu lhe ouvia a voz, via os olhos que brilhavam tanto, os lábios
que sabem sorrir como ninguém mais no mundo.” E aspirava com
força aquele ar frio que ainda parecia conter os derradeiros ressaibos
dessas maravilhas desaparecidas. Uma pessoa conhecida passou junto
dele, cumprimentou-o, mas Sílvio não respondeu, incapaz de fugir
àquele peso tremendo que lhe tombara sobre os ombros. Com
desnorteante rapidez, subiam-lhe ao pensamento várias e nítidas
imagens da namorada, detalhes que até agora tinha desdenhado ou
que então não lhe haviam ocorrido de todo. E, à medida que eles se
projetavam com maior intensidade em seu espírito, indagava
ansiosamente o que ia fazer, como encheria de agora em diante os seus
dias, com que forças refaria a sua vida. Lembrando-se então da
questão que o assaltara durante a visita a Camilo, respondeu com uma
veemência cheia de amargura: “Não, a amizade não existe. Não há
senão um sentimento sobre a terra, e junto dele todos os outros
desaparecem.” E caminhava rapidamente, a cabeça baixa, sem nada
ver em torno. Assim é que atravessou a praça, ganhou a igreja e desceu
por uma das ruas laterais, àquela hora mergulhada em profunda
quietude. No momento em que dobrava uma das esquinas, viu ao
longe um grupo de homens que avançava lentamente do fundo da rua.
Não era aquele um fato comum, as multidões eram raras no lugarejo.
Apesar das suas preocupações, Sílvio deteve-se, procurando saber de
que se tratava. Os homens se aproximavam lentamente, todos eles
vestidos de negro. Pela maneira grave de andar e pela expressão
compungida do rosto — essa expressão enfastiada e ausente dos que se
aproximam sem respeito da morte — Sílvio compreendeu que
regressavam de um enterro. E subitamente a visão de Camilo se impôs
à sua consciência, com uma força terrível. Num dos homens, acabara
de reconhecer o pai do seu amigo. O velho fitou-o sem reconhecê-lo,
como se um véu imponderável o afastasse do mundo. Qualquer coisa
revolveu Sílvio por dentro, como se tudo se dilacerasse, sentimentos,
emoções e lembranças de acontecimentos passados. Até aquele minuto
ainda não compreendera o que significava essa simples palavra —
morrer. Não conseguira realizar esta idéia tão simples, como não o
consegue a maioria dos homens. Não porque não se lembrem dela e
nem porque deixe ela de se misturar aos prazeres mais caros dos
homens, mas porque para vislumbrar a sua face é preciso ter vivido e
ter perdido a vida, é preciso amá-la e contemplá-la no olhar dos
outros. Só depois disto é possível reconhecer a morte em cada
fragmento da renúncia que os dias lentamente acumulam em nossas
mãos, só depois disto é possível tocar com dedos trêmulos a sua
insondável realidade. Mas naquele instante Sílvio compreendeu-a com
o vigor intuitivo de um privilegiado. E o instrumento que a revelara
aos seus olhos era a visão daqueles homens desconhecidos, que jamais
haviam acompanhado Camilo na sua curta trajetória sobre a terra,
mas que na hora da morte surgiam para sancioná-la gravemente,
denunciando ao mesmo tempo tudo o que nela existe de gelado,
estranho e indiferente. “Eu o perdi para sempre”, murmurou Sílvio,
atônito, os olhos fixos nos vultos negros que desfilavam. E enquanto
desapareciam uma a uma aquelas máscaras de cera, homens felizes,
distantes, e que traziam no rosto o sinal de tantas inquietações alheias
ao ato que cumpriam, Sílvio reviu toda a sua vida nestes últimos
tempos e compreendeu que aqueles fatos estavam misteriosamente
entrelaçados, que uns dependiam dos outros, que tudo se
uniformizava como um grande quadro onde estivessem expostas todas
as suas fraquezas, todas as suas cegueiras, todos os seus inúteis
desesperos. E aos seus olhos ressurgiu a pequena figura inquieta de
Camilo, tal como o tinha visto nos primeiros dias de colégio, tão cheio
de interesse, tão grave, tão atento aos gestos que ele iria cumprir, às
suas palavras e às suas descobertas. Via-o depois, quando surgira
Diana, aflito e desprezado, mas sem jamais ocultar um gesto de afeto
ou um minuto de dedicação. E, mais tarde, quantas vezes Sílvio o vira
ainda, triste e cabisbaixo, junto a outros companheiros — e apesar de
tudo seguindo-o de longe, ansioso, sempre à espera… E ele reviu
também os dias passados com Diana, os passeios, as brincadeiras nos
dias de chuva, os bilhetes trocados na aula, as brigas e as épocas de
bonança. Tudo voltou à sua memória como uma enorme onda que
subisse à superfície. Gestos, palavras, risos, horas de tédio e de prazer
— um punhado de cinzas que sopramos pela estrada aberta ao vento.
Tudo se unia agora como as peças de um só mecanismo. Não só o que
ele próprio vivera, mas até mesmo aquilo que não conhecia, aquelas
cenas e aquelas faces que Diana trouxera de longe e esboçara como
fantasmas no seu caminho.

E que não existem fatos isolados. Todas as coisas se


correspondem, como as notas de uma imensa e dolorosa sinfonia. Não
existem sentimentos esparsos, mas um só sentimento a que
poderemos chamar a dor de viver, e onde se mistura tudo o que em
nós arde e se corrompe, tudo o que é humano fenece e é devorado pela
obscuridade. Nada praticamos isolado, mas fazemos tudo em comum,
e pelo menor dos gestos dos nossos semelhantes somos responsáveis
também. Assim, aos olhos de Deus, tudo o que para nós é estranho e
incompleto nada é senão um detalhe dessa imensa paisagem onde o
homem escreve a história da sua miséria e do seu destino. Certamente
Sílvio ainda ignorava essas coisas em todas as suas minúcias, o mundo
ainda não se apresentara nítido aos seus olhos. Mas, até onde a sua
lucidez podia alcançar, percebia que aqueles fatos se uniam, que a
morte de Camilo fazia parte daqueles acontecimentos, que a partida de
Diana era uma segunda morte. Nesse instante, ferido pela revelação,
ele se deteve, os olhos fixos no vácuo. Sim, não podemos impedir que
as pessoas morram dentro de nós, mesmo aquelas que mais amamos,
mesmo aquelas a quem mais devemos. Cada gesto que se afirma em
nós destrói algo nos outros. Sim, a partida de Diana era uma violência
de cujas vibrações ele ainda sentia o eco até às derradeiras fibras da
sua alma. Como da morte de Camilo, que ele viera a compreender tão
tarde, teria de regressar daquela desoladora realidade para reconstruir
um novo ser, uma nova vida. O resto ficava para traz, desfeito em
fumo. Um novo Sílvio renasceria nos dias vindouros. E ele continuou a
andar, absorvido naquela ardente onda de pensamentos. Desse modo
ganhou a estrada e foi ter de novo ao campo onde já estivera pela
manhã. Os penachos brancos destacavam-se oscilantes contra o céu
escuro. Sílvio ocultou o rosto nas mãos, procurando fugir às
lembranças que lhe chegavam. Tão pouco tempo, tantas coisas
destruídas! Mas já agora Diana estava mais distante, sua fisionomia
mais apagada, como uma imagem que aos poucos submerge no
horizonte. Sílvio compreendeu que todo o seu ser lutava contra aquele
domínio, que todas as suas forças se reuniam numa tremenda luta
pela sobrevivência. E diante daqueles campos onde tinha vivido tão
descuidado, daquela areia que fulgurava a um pálido sol de inverno,
daquelas asas que subiam tão alto, daquela paz e daquele silêncio, ele
sentiu todo o tremendo esforço que era preciso para arrancar vivo do
peito um sentimento que um dia consumiu toda a nossa esperança. Na
sua ânsia de viver, esse movimento levou-o mais longe — e Sílvio
percebeu que o vazio que se apoderara dele momentos antes se
alargava ainda mais na sua alma, e que nela uma nova chaga se abria,
como no escuro da noite uma rosa de sangue. Não era somente aqueles
dois seres que tinha perdido, mas algo maior, mais decisivo: a sua
infância.
Segunda parte
1

Tempos depois Sílvio travou relações com Chico. Há muito que


o conhecia de vista, vira-o mesmo várias vezes em companhia de
Camilo. Mas sempre evitara aproximar-se dele, levado por uma
antipatia de que não indagava o motivo. Agora, entretanto,
desaparecido o amigo, era para o companheiro dos seus derradeiros
dias que se voltava. Havia nesse movimento qualquer coisa de um
secreto remorso. Mas o motivo real era a solidão em que a partida de
Diana o tinha precipitado. Um dia, à saída das aulas, deparara com
Chico encostado a uma árvore, enrolando tranqüilamente um cigarro.
Era a primeira vez que o via depois que cursavam o ginásio. Como
sempre, Sílvio estava disposto a passar sem atender ao seu olhar
provocador, mas em vez disso, movido por repentina decisão, sorriu
ao colega e cumprimentou-o com um ligeiro aceno de cabeça. Chico
olhou-o com evidente espanto. E desde então Sílvio pôs-se a seguir os
movimentos do companheiro. Via-o em classe, ora bocejando e
olhando com pupilas úmidas para a janela aberta, ora atravessando o
corredor escuro da velha escola com seus agigantados passos. Por essa
época Chico era um grande rapaz magro e desajeitado, de olhos
miúdos, perspicazes, lábios estreitos e cruéis. Desde essa época
nenhum dos seus gestos escapou mais a Sílvio. Onde quer que fosse, os
seus olhos seguiam-no com um interesse que aos poucos se
transformava em iniludível entusiasmo. Não escapava a Chico a
devoção de que era objeto. Certo dia, finalmente, manobrando
ostensivamente um belo isqueiro que arrebatara numa aposta,
aproximou-se de Sílvio e pôs-se a conversar com ele. Falava ainda
hesitante, como se não estivesse seguro do terreno em que pisava.
Mas, vendo-se aceito sem restrição, perdeu a timidez e readquiriu o
seu tom volúvel, sarcástico e quase sempre autoritário. Enquanto
conversava, acendia um cigarro após outro, a fim de exibir o isqueiro
de maneira conveniente. Num outro momento qualquer, Sílvio ter-se-
ia rebelado logo a esse primeiro contato. Mas a sua solidão lhe parecia
insuportável; não podia ir todos os dias para casa, encolher-se a um
canto e remoer os próprios pensamentos. Não podia levantar-se cada
manhã com a esperança insensata de receber uma carta que não viria
nunca. Todas essas coisas causavam-lhe um aborrecimento sombrio,
afastando-o cada vez mais da família, onde se sentia espionado nos
mínimos movimentos. Não que o condenassem, mas o esforço para
participar dessa amargura, que só a ele pertencia, despertava-lhe uma
densa irritação. Assim é que, sem ter ninguém em quem se apoiar,
aceitou a amizade de Chico como uma libertação. Desde então
passaram a andar constantemente juntos. Mas, para aceitar o novo
amigo, Sílvio sentia que estava violando o que de mais íntimo existia
no fundo da sua natureza. Não tardara muito em que verificasse qual a
espécie de pessoa que Chico realmente era — e, mais do que isto, tudo
o que antes o cativara agora era um motivo de aborrecimento e de
reprovação. Na verdade nada lhe agradava naquela criatura. Mas após
duas ou três horas de silêncio dentro de casa, assim que Chico
assoviava do lado de fora, não se sentia com coragem para repeli-lo. E
dir-se-ia que não tinham escapado a este os sentimentos exatos do
novo companheiro. Aliás, em Chico, a consciência do seu próprio
caráter era muito grande para não compreender as reações que
despertava nos outros — nada lhe escapava, nem um simples gesto,
nem um sorriso, nem uma sombra fugaz nos olhos daqueles que o
escutavam. Daí a sua grande facilidade em mudar de assunto, em
misturar um tema que desagradava a outro de preferência do
interlocutor, numa habilidade, numa euforia que trazia em si alguma
coisa de satânico. Aliás era esse o traço fundamental do seu caráter:
nele tudo respirava um furioso desejo de agradar. E esta vontade
estava de tal maneira impressa na sua face, patenteava-se com tal
exuberância, que esse esforço se transformava em algo de servil. E este
era o mistério da sua grande impiedade. Para todas as coisas ele tinha
um recurso imprevisto, uma palavra ou uma desculpa adequada. Com
febril entusiasmo, esgotou aos olhos de Sílvio todas as surpresas que
poderia lhe oferecer. O mundo em que girava foi totalmente revelado
ao companheiro. E, diante da sua reserva, Chico multiplicava as
ofertas, como se temesse vê-lo desaparecer de um momento para
outro. É que também ele sentia a nostalgia de Camilo e da serenidade
com que o pequeno sofrera a sua tirania. Toda a sua natureza gritava
pela vítima. Passado o encanto da descoberta, Sílvio assistia com uma
passividade vizinha da indiferença aos movimentos de Chico.
Lentamente o caráter do outro ia se desenhando aos seus olhos, e
constatava com espanto que em nenhuma outra pessoa tinha ainda
podido perceber tão bem aquele prodigioso mecanismo gerador de
mentiras. Chico era uma dessas criaturas que sabem tudo e já
experimentaram todas as coisas. Objetos surgiam misteriosamente nas
suas mãos, aliás estranhas e ágeis mãos de grandes dedos afilados.
Não raro ele estendia a palma aberta, mostrando um canivete ou um
anel de metal duvidoso. Nesses momentos a sua face resplandecia,
enquanto os olhos miúdos se apertavam ainda mais:

— Foi “ela” quem me deu — dizia.

Pois nem mesmo neste terreno ele cedia aos outros. Ninguém o
ultrapassava em aventuras. Era um conquistador, nenhuma mulher
resistia aos seus olhares. Sílvio escutava todas essas coisas, os olhos
baixos, lembrando-se de Diana. E a si mesmo perguntava como
Camilo pudera suportar tanto tempo um amigo daquela espécie.

Uma noite, como estivessem sentados na estação, à espera da


passagem do expresso, Chico se inclinou para apanhar um anel que
deixara cair no chão. No momento em que se abaixava, Sílvio
descobriu a cicatriz de um talhe que ia do seu pescoço até à orelha. Era
um grande risco avermelhado, de aparência recente, que a camisa
quase ocultava.

– Que foi isto? — indagou ele sem poder reprimir a sua


curiosidade.

Chico levantou a cabeça e recuou cheio de confusão. Alguma


coisa de selvagem chispou no seu olhar.

– Foi meu pai — respondeu. A conversa não foi avante, mas


durante todo o tempo Sílvio sentiu diante do amigo um estranho
sentimento de mal-estar. Apesar dos repetidos convites de Chico,
Sílvio ainda não ousara ir à casa da mulher que dava tantos presentes
ao seu companheiro. Logo que este lhe fizera as primeiras proposições,
opusera apenas uma resistência fria e desinteressada. Mas com o
correr dos dias, como Chico insistisse, acabara por se furtar
desabridamente e até mesmo com palavras ásperas. Mesmo
procurando imaginar repetidas vezes como seria uma casa daquelas,
mesmo idealizando as mulheres no silêncio das suas longas horas de
insônia, não conseguira ainda vencer o terror que tudo aquilo lhe
causava. Escutando o que os outros lhe diziam a esse respeito, julgava
então que jamais conseguiria vencer sua timidez e que entre os amigos
arrastaria sempre a sua pureza como um triste segredo. Às vezes,
depois de ouvir uma dessas aventuras narradas nos seus menores
detalhes, voltava para casa com o coração em alarme. Uma sombra
enorme parecia pairar sobre a sua existência. E à medida que os dias
passavam aquilo ia se convertendo lentamente numa chaga que
sangrava à menor das alusões. Chico notava a alteração que se
produzia no rosto do amigo assim que tocavam no assunto, suas
evasivas, suas palavras titubeantes. Percebendo que não estaria muito
longe a sua vitória, que Sílvio não ousava se opor abertamente ao
trânsito daquelas coisas, fez delas sua conversa habitual. Quer
estivesse só ou em companhia de outros, era às suas conquistas que se
referia, sobre as mulheres que já possuíra, meios de conquistá-las, etc.
Em torno dele os casos se multiplicavam, outros rapazes disputavam a
oportunidade para revelar aventuras idênticas, formava-se um bulício
de risos e palavras abafadas. À força de ouvir semelhantes coisas,
aquilo se converteu numa obsessão para Sílvio. Acordava à noite e
sentia-se sufocado, imaginando que estava perdido, que um miserável
destino o aguardava. Rolava sobre as cobertas desfeitas, olhos
ardentes, a garganta seca de um pranto que não chegava nunca.
Nesses momentos, duvidava até mesmo que tivesse amado Diana.
Talvez tudo aquilo não tivesse passado de uma ilusão, de um ingênuo
sonho de criança. Poderia existir amor sem aquelas coisas dúbias que
todo mundo parecia prezar tanto? E a vida lhe parecia um enigma
insolúvel.

Mas numa noite de chuva os convites de Chico se tornaram mais


insistentes. Estavam com dois ou três companheiros que espiavam
avidamente o rosto de Sílvio. Ele sentiu uma surda pancada no
coração, compreendendo que naquela noite o mistério se revelaria.
Não poderia escapar de maneira alguma. Chico apontava uma lasca de
madeira, esperando sua inevitável resposta. E ele concordou final,
trêmulo, uma enorme palidez espalhada no rosto. Os outros dois se
prontificaram então a acompanhá-los.

A amiga de Chico morava perto da estação, num sobrado de


janelas vermelhas. Depois de tocar a campainha de uma maneira
especial, que segundo ele era o sinal convencionado, subiram três
lances de uma escada escura e tortuosa. No alto esperava-os uma
senhora gorda, que depois de cumprimentá-los com ligeiro aceno de
cabeça afastou-se cheia de majestade. E penetraram enfim numa
ampla sala de jantar, modestamente mobiliada. Aquele ambiente
familiar cerrou o coração de Sílvio de maneira dolorosa. Não podia
deixar de se lembrar da sua própria casa, pois havia a um canto um
vaso de flores idêntico a um que Clara ganhara por ocasião do seu
casamento. Durante algum tempo este objeto atraiu a atenção do
rapaz como um ímã. Enquanto isto, Chico afetava uma grande
desenvoltura, andava de um lado para outro, com gestos exagerados e
palavras desdenhosas para todas as coisas. Apesar de notar um ligeiro
descontrole nos seus movimentos, Sílvio invejava do fundo do coração
aquela capacidade de superar o constrangimento geral. De vez em
quando detinha-se e examinava Sílvio, a fim de verificar o efeito da sua
atitude. Entretanto ela se transformou um pouco, quando a dona da
casa surgiu. Sua voz tornou-se ligeiramente mais baixa, seus gestos
menos ousados. Dir-se-ia que a mulher exercia sobre ele uma secreta
influência. Chamava-se Esperança, não era moça. Apesar de tudo,
ainda não perdera inteiramente a sua beleza. Seus traços eram finos e
regulares, se bem que o ar provinciano vulgarizasse um pouco essa
fisionomia ainda dotada de nobreza. Era gorda, e os seios flácidos
oscilavam sob a leve blusa de seda. Cumprimentou Chico com certo ar
de condescendência e depois pôs-se a fazer perguntas sobre os amigos
que trouxera. Sílvio interessou-a sobretudo, sentou-se junto dele,
tomou-lhe maternalmente as mãos, indagou da sua família. Ele mal
respondia, olhos fixos no chão. Ela moveu a cabeça lentamente,
dizendo: “Meu Deus, é uma criança ainda!” E passou a mão
carinhosamente pelos cabelos de Sílvio. Aquela mulher parecia-lhe
tudo, menos um instrumento de prazer. Sentia-se chocado com certos
detalhes da sua roupa, que já vira idênticos em Clara. A cada momento
que, fazendo um tremendo esforço sobre si mesmo, pretendia
mostrar-se mais desembaraçado, deparava com a renda cor-de-rosa
que debruava o vestido da mulher, com a fivela do seu cinto ou com a
ponta do chinelo bordado. Todos esses detalhes caseiros traziam-lhe
um insuportável mal-estar. Nada havia de real naquilo, era tudo um
estranho pesadelo. A mulher continuava a conversar, numa voz doce e
caridosa, evidentemente procurando dissipar o constrangimento dos
visitantes. De vez em quando, numa pausa mais longa, Sílvio levantava
a cabeça e percebia uma chispa estranha no olhar da mulher. Mas
imediatamente ela desviava a cabeça e continuava a conversar no
mesmo tom displicente. E Sílvio sentia que era excessivamente criança
para que ela o tomasse a sério. No fundo, arrependia-se amargamente
de ter vindo. Sentia-se desamparado e infeliz. A si mesmo, perguntava
quando terminaria aquele suplício. Aos poucos sua timidez ia se
convertendo num mal-estar quase físico: os ouvidos zumbiam-lhe, e
fazia esforços inauditos para compreender as palavras que lhe
dirigiam. Tinha a impressão de que jamais conseguiria se levantar
daquele lugar e que, no momento fatal, se trairia por um gesto
absurdo. Mas, como olhasse para os dois companheiros, compreendeu
que eles se achavam em idêntica situação. Apesar de tudo o que
haviam contado, das aventuras e das conquistas, era evidente que
vinham ali pela primeira vez. Isto o animou, ergueu a cabeça e
afrontou finalmente o olhar inquisidor de Chico. Nos olhos deste
julgou vislumbrar uma sombra de descontentamento. Voltou
lentamente a cabeça e encarou a mulher. Ela pareceu aprová-lo,
sorriu, ofereceu-lhe uma xícara de café. A senhora gorda, que os
recebera na entrada, surgiu com uma bandeja, xícaras e um bule
fumegante. Tomaram o café em silêncio, vorazmente, como se
esperassem encontrar nele um milagroso incentivo. Ouvia-se a chuva
cair lá fora e o vento gemer soturnamente. Devagar, Sílvio procurou se
acostumar com o ambiente, investigando a origem de um secreto calor
que parecia emanar dos objetos. Já agora os minutos deslizavam com
menor esforço. Assim ele readquiriu não só a sua primitiva serenidade,
mas uma espécie de desesperada ousadia para enfrentar a situação. E
tudo prosseguiu normalmente.

O sentimento que experimentava, após a sua terrível


experiência, era o de uma enorme amargura. Tudo aquilo lhe parecera
doloroso, insípido e imundo. Não encontrara nenhum prazer, nada
vira que lhe agradasse, e perguntava a si mesmo, com espanto, se era
aquilo o que causava tão grandes preocupações aos homens. E só aí
compreendeu que todos os seus companheiros mentiam, que nenhum
deles ousara ainda freqüentar aquela casa, que eram imaginárias todas
as aventuras que contavam. Veio-lhe uma surda revolta contra a
mentira forjada para lançá-lo naquela imundície. Sentiu-se miserável,
manchado para toda a sua vida. E os seus olhos se encheram de
lágrimas inúteis, que escorriam ardentes pelo seu rosto marcado com
os beijos furiosos de Esperança. Mas aos poucos, enquanto caminhava,
sentiu o ar frio da noite bater-lhe no rosto e o seu desespero se
atenuou. O seu rancor desapareceu, só uma grande e invencível
melancolia se derramou no seu coração. Imaginou que aquela miséria
não era sua em particular, mas que pertencia a todos os homens. E lhe
veio um nítido desejo de ser melhor, de fazer alguma coisa que
desvendasse aos olhos dos outros a iniqüidade daquela terrível
mentira. Caminhava devagar, os olhos fixos nas poças d’água que
brilhavam, sentindo com inesperada força o esplendor das coisas no
silêncio puro da noite. “Talvez que daqui a algum tempo não me
lembre de mais nada disto”, pensava. Teria de se acostumar, como já
se acostumara a tantas coisas da vida. Mal sabia ele que o esforço da
maioria dos homens é para se adaptarem a coisas que não amam — e,
se alguns raros se revoltam a fim de conservarem a fisionomia
original, outros se transformam até construírem uma espécie de
segunda natureza, que apesar de tudo rompe o verniz do hábito e
protesta algumas vezes contra este jugo que não pode amar.

Ao se aproximar de casa, no momento em que procurava no


bolso a chave do cadeado, Sílvio viu a poucos passos de distância a
figura de um homem que no escuro se debruçava sobre a grade,
tentando devassar a escuridão do jardim. O rapaz se deteve,
procurando reconhecer o indivíduo e o motivo por que ele se inclinava
daquele modo no jardim de uma casa estranha. Mas nada conseguiu
ver, pois nova bátega de chuva começara a cair. Voltando-se a passos
rápidos, o rapaz ainda observou o modo como ele caminhava, mas era
impossível identificá-lo através da chuva e da neblina. Então ergueu os
ombros, abriu o cadeado e entrou finalmente em casa, àquela hora em
completo repouso. O relógio da sala bateu surdamente algumas
pancadas. Longe, um cachorro latiu. Sílvio encaminhou-se devagar
para o quarto e antes de se deitar olhou ainda uma vez pela vidraça:
através da névoa julgou divisar novamente o vulto do homem, mas,
esforçando-se, acabou se convencendo de que tudo aquilo não passava
de simples ilusão. Além disso, o coração lhe pesava muito para pensar
noutras coisas. A boca amargava-lhe, não conseguia dissipar o seu
sentimento de remorso e tristeza. “Nunca mais irei à casa daquela
mulher”, disse ele a si mesmo, recolhendo-se à cama e procurando em
vão um sono que não chegava.
2

Clara esfregava a vidraça com um pano de lã, quando Sílvio


apareceu para tomar café, olhos fundos, denunciando a noite mal-
dormida. Ela olhou-o um instante e compreendeu tudo. O seu coração
se confrangeu, pois não lhe escapava que o filho sofria — e naquele
momento teve uma nítida intuição desse doloroso sacrifício que é para
os adolescentes esse primeiro contato com a vida. Pelos seus modos
desajeitados, pelo jeito trêmulo com que ele levantava a xícara,
percebeu toda a humildade da sua natureza ainda infantil, tentando
absorver a experiência dos que já haviam passado. “Como tudo é
frágil”, pensava ela examinando-o enquanto esfregava
automaticamente o vidro, “como tudo na vida do homem é frágil,
difícil e triste. Nada poderá exprimir exatamente a dor dessas coisas
tão miseravelmente humanas.” E, através da face atormentada do
filho, ela adivinhava um pânico que nenhuma força conseguia sufocar.

— Sílvio, você entrou muito tarde esta noite — disse ela,


sentando-se ao seu lado.
Ultimamente ela procurava introduzir-se um pouco mais na sua
intimidade, forçando um contato que até aquele momento
desdenhara. Agia a esmo, imaginando que não lhe seria difícil
conquistar a estima do filho. E logo às primeiras tentativas fora
obrigada a reconhecer que a tarefa não seria tão fácil assim, que teria
de usar argumentos mais sutis, gestos mais estudados. Essa conclusão
não lhe trouxe entretanto nenhum amargor — ao contrário, sentiu-se
tomada de certa admiração pelo rapaz, suspeitando qualidades que até
aquele momento nem lhe passara pelo pensamento que ele possuísse.
Passou a interessar-se pelas suas saídas, acompanhava-o com os olhos
quando entrava, lançava uma ou outra pergunta quando estavam
juntos, na esperança de saber alguma coisa, sem feri-lo com a sua
curiosidade. Mas Sílvio fugia habilmente a essas pequenas ciladas,
recusava-se, resmungava palavras que nada significavam. Clara
lembrou-se então de ir até ao quarto dele, procurar entre os papéis,
indagar dos vizinhos. Mas aqueles processos repugnavam-lhe, e nem
Sílvio merecia semelhante tratamento. Apesar de tudo, aquela questão
obsedava-a: de que era feita aquela vida, quais os seus acontecimentos
importantes, suas tristezas e suas alegrias? Agora, quando se sentava
ao lado de Áurea para trabalhar, a conversa girava incansavelmente
sobre o mesmo assunto: o filho. E, medindo a extensão do
conhecimento que a companheira possuía a esse respeito, lamentava
que não o tivesse seguido também desde o princípio. Procurava
lembrar-se de fatos antigos, coisas ocorridas há muito tempo, detalhes
de que procurava extrair uma lição oportuna. Revia o filho ainda
pequeno, acompanhando-a em extensos passeios, brincando junto ao
grosso pé da mesa ou doente, o rosto colorido pela febre. Mas nada
disto auxiliava-a a decifrar o segredo daquela criatura silenciosa em
que Sílvio se convertera. Voltava-se mais uma vez para Áurea, que
expunha as mínimas coisas, desde as suas preferências mais
acentuadas até ao que lhe desagradava ou ao que lhe era indiferente.
Clara sentia-se vagamente enciumada, interrompia o assunto,
absorvia-se no bordado. Mas em silêncio fazia projetos para o futuro,
imaginando reconquistá-lo antes que fosse muito tarde.

Ainda naquele momento, junto ao filho, ela considerava-o com


os olhos semicerrados. Como crescera, como se tornara um homem
depressa! E, como já observara tanto, ainda daquela vez o viu
responder de mau humor às suas palavras, defendendo ferozmente um
terreno que julgava ameaçado. Mas como era fácil verificar que tudo
nele respirava temor e confusão! Em vão ela procurava as palavras que
lhe deveria dizer, essas misteriosas palavras que lhe abririam o
caminho do seu coração. Mas há sentimentos que nenhuma palavra
consegue exprimir. Clara levantou-se de novo, com um profundo
suspiro. Sílvio percebeu seu gesto, pousou a xícara e disse:

– Mãe, encontrei ontem um homem que olhava o jardim,


debruçado na grade.

Ela estremeceu e voltou a fixar os olhos nele, tentando adivinhar


o significado exato daquelas palavras. Seria uma acusação velada? Mas
o rosto de Sílvio permanecia impassível.

– Quem era ele? — perguntou.

– Não sei, não me foi possível vê-lo direito.

– Algum vagabundo — insinuou Clara, pensativa.

E aos seus olhos se desenhou naquele momento a figura do


farmacêutico. “Este homem acabará cometendo uma loucura”, pensou.
Tomou novamente o pano com que trabalhava e pôs-se a esfregar os
móveis. Lembrava-se da primeira vez em que o vira, quando fora
buscar um remedio para o filho. Ele lhe dera um vidro de azul-de-
metüeno. Mas, no momento em que se afastava, o homem deixara cair
o objeto e procurara interceptar-lhe os passos. Isto já ia tão longe! E
desde então ele nunca mais cessara de acompanhá-la. Era uma estrela
cega, que ela tinha fascinado na sua trajetória. Às vezes, no momento
em que se recolhia e apagava a luz, Clara divisava com estranha nitidez
a face daquele homem. Procurava imaginar então o que ele estaria
fazendo, quais seriam os seus pensamentos. E, com a debilidade da
maioria dos seres humanos, aquele sortilégio que exercia sobre o
farmacêutico trazia-lhe uma certa vaidade — como se fosse uma
garantia contra a ameaça que o espelho lhe evidenciava a cada
instante, através de uma face que tão rapidamente ia perdendo o vigor
da juventude. Entretanto, o fato de ele ousar aproximar-se do jardim
irritava-a como um excesso ou como uma transgressão que não podia
tolerar. O farmacêutico ultrapassava os limites, qualquer dia ousaria
interceptar-lhe os passos na rua. E ela não sabia então o que poderia
acontecer.

Eram estes os pensamentos de Clara, quando Sílvio veio


anunciar que estava lá fora um homem que desejava falar com ela.
Ciara sentiu uma onda de sangue subir-lhe ao rosto. Nem um minuto
sequer hesitou sobre a sua identidade. “É ele!”, pensou cheia de
revolta. E, mandando Sílvio para dentro, encaminhou-se
resolutamente em direção à porta. Ao abri-la, entretanto, achou-se
diante de um desconhecido. No primeiro momento, perturbada, não
soube o que dizer — e nem o estranho dizia coisa alguma, imóvel
diante dela. Era um homem de idade, com um “cache-nez” enrolado
no pescoço e o rosto sombreado por um usado chapéu de feltro cinza.
Sua atitude era de expectativa e ansiedade. Clara, impaciente, ia dizer
qualquer coisa, quando ele se descobriu. Então ela recuou e, levando
as mãos ao rosto, exclamou:

— Meu Deus!

Acabara de reconhecer naquele estranho a figura do marido.


Jaques não ousava avançar, o chapéu nas mãos, seguindo com avidez
os sentimentos que se desenhavam na face de Clara. Durante algum
tempo permaneceram em silêncio, revolvidos por uma onda de
emoções desencontradas. O que chocava principalmente a Clara era a
transformação por que passara o marido, seu aspecto doentio e
arruinado. Além disso estava pobremente vestido, como um tropeiro
qualquer. Mas nada disto se comparava àquela face onde as provações
haviam deixado incisivas marcas, e que ela outrora conhecera tão
luminosa e bela.

Jaques devia ter compreendido quais eram os sentimentos da


sua mulher. A certa distância fitava-a com os olhos velados, sem
conseguir dominar seus amargos pensamentos. Sim, por que voltara?
Jamais aquele passo, durante tanto e tanto tempo meditado, pesado e
repelido durante tantas noites de insônia, lhe parecera tão absurdo
quanto agora. Cada gesto de Clara denunciava sua irremediável
loucura. Como não tinha visto que de certos atos e das suas
conseqüências jamais podemos nos livrar? E, como aquela pausa se
prolongasse, ele aproximou-se um pouco mais e disse em voz baixa:

– Eu não devia ter vindo, Clara…

Nesse momento, sua única idéia nítida é que apesar de tudo ele
ainda era o seu marido. A idéia de uma outra mulher atravessou seu
pensamento como um relâmpago. Mas, sempre em silêncio, abriu a
porta e deixou que o homem passasse. A sala estava vazia, Sílvio e
Áurea conversavam na cozinha. Até eles vinha distintamente o som
das vozes. Jaques deteve-se um minuto, olhando tudo que o cercava
com uma curiosidade que lhe era impossível disfarçar. Era o mesmo
interior que deixara há tantos anos, apenas modificado num ou noutro
ponto. Ele próprio admirou que se lembrasse tão bem de tudo aquilo.
E, passando silenciosamente a mão pelo rebordo da cadeira, teve pela
primeira vez a clara intuição de que cometera um erro tremendo ao
abandonar o lar — jamais devia ter deixado aquelas coisas simples e
familiares; sua vida devia ser um escoar lento e sereno entre aqueles
objetos austeros.

– Aqui não mudou nada — disse ele, sentando-se numa cadeira.

Clara acompanhou-o, ainda sob o domínio daquela surpresa em


que já se misturava uma tão grande piedade. Como antigamente, todas
as ofensas se anulavam, todas as queixas e infortúnios passados se
dissipavam. E apesar de tudo, no fundo dessa submissão, alguma coisa
sangrava.

– Cheguei há muitos dias — Continuou Jaques — mas não tive


coragem para entrar.

– Então era você… — começou ela, lembrando-se do que Sílvio


lhe contara a respeito do estranho que rondava o jardim. Mas teve
medo de humilhá-lo com aquela lembrança e calou-se. Jaques, que
esperava o resto da frase, suspirou e continuou em voz lenta:

– Não sei se fiz bem em ter vindo. Mas estou doente, o médico
aconselhou-me repouso.

Ela o examinava com os olhos semicerrados, pesando uma a


uma as suas palavras. Que vida deveria ter sido a sua durante este
tempo, para que se gastasse tanto e se convertesse em tão dolorosa
ruína! Lembrava-se da época em que se casara, quando lhe avisavam
que mais tarde seria infeliz por se unir a um homem mais velho do que
ela. Sempre esperara que Jaques envelhecesse antes, mas jamais
poderia imaginar que fosse tão depressa.

– A casa é sua, Jaques, não precisa arranjar desculpas. O que


passou já está bem longe.

Ele suspirou novamente e disse:

– Bem sei que o melhor é que eu não tivesse voltado. Mas agora
é tarde.

E parecia diminuir, sob o efeito dessa profunda humildade.


Aquela voz alterada, que Clara conhecera outrora tão altiva e segura de
si, trouxe ao seu coração nova onda de piedade. Ela agitou-se, quis
falar, mas a impossibilidade que desde o início a tolhia manifestou-se
ainda uma vez. Então, muda, olhos úmidos, examinou-o durante
algum tempo. As manchas pareciam ressaltar na sua roupa usada, os
punhos gastos repousavam sobre a madeira escura da cadeira.

– Oh, Jaques! — exclamou ela, as mãos juntas.

– Também não é por muito tempo — concluiu o homem com um


sorriso enigmático.

Clara percebeu que ele aludia a um doloroso segredo. Durante


alguns segundos reinou um pesado silêncio, lá dentro as vozes
esmaeceram, o tique-taque do relógio avultou. Clara teve medo de que
Sílvio aparecesse naquele momento. O próprio Jaques olhou inquieto
para a porta do fundo.

– Não é nada — disse ela.

Uma pergunta pairou um instante sobre os lábios do homem.


Ele pareceu prestes a formulá-la, mas, julgando talvez que ainda não
possuísse esse direito, desviou o rosto e abaixou a cabeça. Clara veio
em seu auxílio:

– Sílvio está crescido, já é um rapaz.

– Sim, eu o vi lá fora — disse ele, os olhos brilhantes. — Quase


não o reconheci…

Ficaram de novo em silêncio. Mas aquelas palavras tinham


desfeito muito do mal-estar primitivo, e eles se sentiam mais
próximos, unidos pela lembrança do filho. Clara forneceu-lhe ainda
alguns detalhes, contou um ou dois casos. Jaques, entretanto, mal
parecia escutá-la, nervoso, alisando os joelhos. Aquele gesto acabou
por enervar Clara, que silenciou. Jaques tossiu discretamente. Clara
pensou então em indagar-lhe sobre a sua doença, mas teve medo de
provocar nova crise de constrangimento. Ficou quieta, até que por si
mesma a atmosfera tornou-se plácida e natural. Quando minutos
depois Sílvio assomou à porta, ela encaminhou-se ao seu encontro e,
tomando-o pela mão levou-o junto ao homem:

– É seu pai, Sílvio.


Naquela mesma noite, com uma pequena lâmpada acesa ao
lado, ele contou sua história. Falava entrecortado, como se
rememorasse ou procurasse medir exatamente as palavras que dizia. E
nessa narrativa, feita entre pausas tão longas, ela percebia abismos,
hiatos de sombra onde os seus olhos curiosos jamais repousariam. Não
tardou muito a verificar que a todos os episódios faltava alguma coisa,
um elo, uma tonalidade qualquer necessária ao colorido exato do
acontecido. Tudo aquilo não passava talvez de uma visão bastante
parcial dos fatos. Decerto que nem uma só vez ela ousou pedir
esclarecimentos — apenas escutava, de olhos baixos, vendo-o a cada
passo tão nitidamente como se o tivesse acompanhado nesse largo
período de ausência. Mas às vezes, de súbito, detinha-se sem
vislumbrar mais nada, tudo desaparecia inexplicavelmente diante de
um enorme vácuo, onde falecia o poder das palavras e o mistério se
fazia mais denso. Jaques não percebia essas pausas, continuava sua
narrativa, encadeando os fatos sem se importar com o silêncio
inquietante de Clara. Sim, era só ele quem falava, e, se bem que ela
não se enganasse com aquela história preparada de antemão,
submetia-se com a mesma docilidade de outrora. De vez em quando,
silenciando, Jaques olhava a mulher; ela sorria, esforçando-se por
demonstrar seu interesse. Entretanto, cada um daqueles detalhes
auxiliava-a a terminar o retrato total do marido, começado há tantos
anos, e que a ausência e o desinteresse tinham interrompido. Agora,
em silêncio, ela procurava as peças antigas, aquelas que sufocara no
mais íntimo do seu ser, e reajustava-as com os elementos novos,
polindo aos poucos essa imagem que se impunha lentamente à sua
consciência. Enquanto o marido falava, Clara pensava consigo mesma:
“Outrora eu acreditava em tudo isto, hoje sei que não é verdade.” E,
ajeitando-se de vez em quando contra os travesseiros, indagava a si
própria, com uma frieza que se avizinhava da crueldade, por que
motivo ele lhe contava todas aquelas coisas, em que lhe importavam
fatos tão antigos, tão destituídos de interesse. Mas Jaques, o rosto
iluminado pela lâmpada que conservava acesa, não percebia nada,
prosseguia no mesmo tom monótono, acentuando sem habilidade
certos detalhes, a fim de ocultar outros. No fundo, sua história era bem
comum. Ele, que aspirara tanto a aventuras, não tinha conseguido
viver senão uma escassa parcela dos acontecimentos sonhados. Pelo
seu modo entrecortado e angustioso de falar, percebia-se que sofria de
uma sede que o tempo não estancara, que sua alma ferida ainda gemia
por alguma coisa suprema que lhe tinha sido prometida, mas que
jamais encontrara nas suas longas peregrinações pelo mundo. Essa
face trabalhada pelo sofrimento, esses túmidos lábios que pareciam
aspirar o ar de modo tão sôfrego e doloroso, esses olhos em que a
idade não conseguira diminuir a luz ardente, todas essas rugas e essas
marcas denunciavam o secreto tumulto dos desejos que não se tinham
libertado. Olhando-o com as pupilas semicerradas, Clara teve a
repentina intuição de que aquilo que o marido procurava não existia
neste mundo. Em vão gastaria ele as suas forças em buscas
infrutíferas, em vão se agitaria como se um fogo interior o consumisse:
nada conseguiria aplacar essa nostalgia que o devorava. No seu inútil
esforço, sentindo-se traído, lançava-se contra o mundo, culpando-o de
todos os seus fracassos. Afirmava que Clara não podia compreender a
maldade dos homens, vendo na sua derrota o resultado de um plano
cuidadosamente elaborado.

Oh, os empreendimentos que tentara… Os negócios que ideara,


em que comprometera dinheiro, esperança, desejo de viver! Não havia
naquelas redondezas terra que não tivesse palmilhado, sociedades que
não tivesse tentado, especulações que não tivesse ousado. No
princípio, aproveitando os recursos da zona pastoril, lançara-se no
comércio de gado. Mandara construir balsas para facilitar o transporte
pelo rio, escrevera dezenas de cartas, arrendara pastos e fazendas. Mas
tudo desaparecia misteriosamente das suas mãos. Os capatazes fugiam
com o dinheiro, as mercadorias eram desviadas, a peste se abatia
sobre o gado. Para fugir à ruína, ele passara a outras mãos o que ainda
lhe restava. E recomeçara com um negócio de carvão, comprara
maquinismos, abrira um escritório na capital. Mas o carvão rendia
pouco, a terra se mostrava avara do mineral. Liquidara tudo às
pressas, lançara-se noutro negócio que já o atraía. E assim montara
uma fabrica de sabão, construíra estradas, chegara mesmo a tentar
uma empresa de transporte e navegação. O que lhe parecia tão fácil de
longe, visto de perto não passava de uma miragem. Levantadas as
bases, os negócios tão habilmente planejados ruíam como se
estivessem sob o signo de uma secreta maldição. Ele começou a
perceber então que existia uma bizarra incompatibilidade entre seus
planos e os meios de levá-los a efeito. Aquela luta contra a realidade
tornou-o amargo, sentiu-se diminuído, já não podia mais ouvir falar
em negócios. Não podia confiar em ninguém, a humanidade inteira lhe
parecia falsa e venal. Chegou à conclusão de que o invejavam e sentiu-
se colocado acima dos outros, alvo de intrigas e premeditadas
crueldades. Além disso, como para acentuar ainda mais o pessimismo
dessas conclusões, outros prosperavam, iam avante depois de se terem
apoderado dos seus planos. De longe, ele assistia cheio de sombria
revolta a esses progressos, sentindo que desta vez estavam fixados em
terra com sólidas raízes. Nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ser
ele próprio o culpado de tudo, que o mal existisse na sua natureza
como uma fonte de veneno. Pois realmente os planos lhe interessavam
apenas como simples possibilidades, não os compreendia senão como
simples visão, só a miragem o seduzia. Assim que criavam formas, que
se corporificavam sob os seus dedos, sentia diminuir o seu interesse, já
não via tão bem o que vislumbrara antes, acabava por confundir as
perspectivas, deixava-se furtar, perdia tudo. É que, apesar da sua
estranha sede de vida, era ele um sonhador e não um homem de ação.
Temperamento violento e apaixonado, distinguia possibilidades
extraordinárias que se desfaziam ao contato frio da existência.

Escutando-o, era em outras coisas que Clara pensava. Aquela


voz descrevia-lhe apenas o caminho do homem sobre a terra. E essas
horas de dúvida, esses longos momentos de silêncio e indecisão, essas
pausas em que a derrota faz o seu próprio reconhecimento — onde as
teria passado ele, junto de quem, sobre que alma desinteressada
lançara aquela torrente de amor e inquietação que rolava no fundo do
seu ser? Em todas as criaturas humanas, mesmo nas mais fortes, nas
mais voltadas para as formas concretas da vida, existe um momento
em que tudo é pânico, sombra e hesitação — em que tudo se resolve
num grito supremo lançado para o céu que não responde. Quem o
teria amparado nestes instantes, quem teria tomado sua cabeça entre
mãos maternais, alisado seus cabelos, devolvido enfim o repouso a
essa alma atormentada? Ouvindo-o agora, Clara se lembrava do que
lhe dissera certa vez o homem de chapéu de abas largas, da piedade
que de repente lera nos seus olhos. Sim, tinha havido uma outra
mulher na vida de Jaques, mas quem seria ela, qual o seu nome? Essa
pergunta martelava o seu pensamento sem descanso. De vez em
quando, percebendo-o imerso naquelas coisas que rememorava com
tão pungente nostalgia, ela voltava a cabeça lentamente e examinava-
o, julgando descobrir traços, vestígios daquela vida secreta. Quantos
anos de lutas e de ciúmes haviam sido necessários para cavar aquelas
duas rugas? Que beijos implorados, que injúrias, que rogos haviam
dado àqueles lábios o seu doloroso aspecto de involuntária renúncia?
Mas nada de positivo saberia daquelas coisas. Viveria de novo com ele,
suportaria os seus abraços, ouviria continuamente sua voz, sentindo
pesar como uma sombra a lembrança dessa existência passada. A
solução era o silêncio. Algumas vezes, quando levantasse os olhos da
costura, veria o seu olhar perdido na distância, tentando reerguer das
cinzas a imagem desse tormentoso amor. Então se levantaria cheia de
ciúme, dobraria o bordado e iria se debruçar à janela. Mas estava
divagando, nada disto aconteceria, Jaques não se lembraria nunca, o
futuro atraía-o como uma vertigem. Ele não era homem que chorasse
sobre uma derrota dessas. Tranqüilizada, Clara voltou a ouvir sua
narração.

Desiludido, cansado, tendo perdido suas derradeiras economias,


Jaques pensara então em se retirar. Alugara um sítio num lugar
afastado, imaginando viver modestamente o resto dos seus dias. Mas
lá, de novo, assaltou-o a febre das realizações: já não bastava aquela
casa modesta, de quartos escuros e apertados. Além disso havia em
torno muito terreno inexplorado, a que uma nascente próxima poderia
beneficiar. Mais uma vez as idéias lhe chegaram em catadupas. Não
descansava mais, imaginando planos e reformas. Haveria de canalizar
a nascente, a fim de aproveitá-la até mesmo nos lugares mais
afastados. Experimentaria a terra para verificar qual a lavoura
conveniente, construiria cercas, valados, transformaria tudo. E assim
pusera-se afoitamente à obra; instalara lá fora uma turma cuidando do
material para a reforma da casa, pois não sabia fazer nada em detalhe,
mas em bloco, febrilmente, como quem empreende o levantamento de
um mundo novo. Em torno reinava agora intensa atividade. Ele
próprio pusera-se a aplainar tábuas, numa carpintaria improvisada.
Trabalhou assim durante dois dias — e no terceiro, quando se
inclinava sobre a plaina, pronto a iniciar a tarefa, sentiu uma dor
súbita, terrível, como se uma mão de ferro lhe apertasse o coração.
Abandonou a ferramenta, procurou um apoio, os olhos cheios de
lágrimas. E durante algum tempo sentiu aquela coisa tremenda
aumentar, aumentar até quase subtrair-lhe a respiração. Não podia
fazer um só movimento, tudo o que existia nele estava galvanizado
naquele único ponto, como se para ali afluísse toda a vida que lhe
existia no ser. E ele pressentiu que alguma coisa vital se passava.
Naquele minuto, sua vida se dividia em duas partes distintas e o seu
passado era violentamente rejeitado, aniquilado como se a luz dos seus
dias fosse avassalada por uma noite escura. Passado algum tempo ele
se arrastou para fora, chamou um caboclo, e com o seu auxílio montou
num dos cavalos. Viajou durante duas horas, meio cego pelo temor,
respirando com dificuldade e sentindo a crise voltar a cada momento.
No povoado foi direto à casa do médico. Este, um rapaz ainda, depois
de escutar atentamente sua narrativa, bateu-lhe no ombro: “O senhor
não tem família?” Jaques hesitou durante um minuto e afinal
respondeu: “Tenho. Por quê?” E o médico balançou a cabeça: “Sua
doença é grave, angina do coração.” Aconselhou-o durante algum
tempo, recomendou tranqüilidade e lhe entregou alguns remédios. “A
quantas crises posso resistir?”, indagou ainda. O médico encolheu os
ombros. “Depende… Para ser sincero, há muitos que não resistem nem
mesmo a uma.” E, como Jaques abaixasse a cabeça, tornou a bater
amigavelmente nas suas espáduas. “Mas não se preocupe, o essencial é
o repouso.” E conduziu-o até à porta.

Depois de montar, Jaques ganhou de novo a estrada,


regressando tristemente ao sítio. Ainda daquela vez a sorte lhe fora
adversa. Na fazenda, os caboclos aguardavam-no, silenciosos, as
enxadas imóveis luzindo ao sol. Vendo-os, ele não teve coragem para
confessar o que se passava e deu ordem para que voltassem ao
trabalho. Agora, não ousando mais descer ao terreiro queimado pela
soalheira, comandava o trabalho do alto da escada, o chapéu desabado
sobre os olhos. Os homens obedeciam-no, mas de vez em quando se
detinham, pressentindo um tormento qualquer na súbita insegurança
daquela voz.

Toda aquela noite Jaques passou se debatendo contra negros


sentimentos que tentavam subjugar seu coração. Lembrava-se de
Clara e do filho, sentia-se inutilizado, desamparado, perdido. Não
podia regressar, não tinha esse direito. E no dia seguinte,
abandonando a varanda, desceu de novo ao trabalho. Tomou a plaina
com cuidado, tentou raspar a madeira. E de novo a dor ameaçou-o,
como se uma veia inchasse no seu coração, prestes a arrebentar. Era
inútil, tudo estava realmente perdido. A morte espreitava-o. Naquele
dia tomou a deliberação de liquidar o sítio. E assim vendera-o por um
preço irrisório, pagara dívidas, arrumara as malas — e ali estava.
Quando ele acabou de contar sua história, era quase madrugada.
Todas as coisas pareciam se agitar misteriosamente na penumbra.
Clara ajeitou-se contra os travesseiros, fechando os olhos para ocultar
as idéias que lhe subiam ao pensamento. E Jaques aguardou
inutilmente que ela falasse. Lá fora os galos cantavam. Então, cansado
de esperar e de remoer lembranças, ele suspirou, ajeitou-se também e
adormeceu profundamente.

No escuro Sílvio levantou-se como um felino, apanhou seu


paletó sobre a cadeira, vestiu-o, abriu a porta e ganhou o corredor. Lá,
contemplou durante um minuto a réstia de luz que irrompia sob a
porta fechada. Sim, as vozes vinham do quarto, não havia nenhuma
dúvida. Eram elas que o impediam de dormir. Há várias horas que
lutava, rolando na cama e procurando fugir às questões que lhe
oprimiam o coração. Ainda não conseguira dominar o sentimento de
estranheza que lhe causara o aparecimento daquele homem. Ainda
não pudera dominar o choque que fora para ele o aparecimento desse
pai de que quase nunca ouvira falar. Em vão tentara aproximá-lo das
imagens de Clara e de Áurea, em vão se esforçara para misturá-lo à
matéria banal dos seus dias. A tudo isso a figura daquele estranho
permanecera imune, tocado de não sabia que misteriosa hostilidade.
No silêncio do quarto, ele pesara uma a uma as palavras que ouvira
dos seus lábios. Revira primeiro os olhos brilhantes, inquietos, que
pareciam sondá-lo, revolvê-lo por dentro, na esperança de uma
descoberta que lhe revelasse alguma coisa. Havia neles, é verdade, um
brilho vagamente terno. Mas tudo se ocultou de repente, quando os
gestos e as palavras entraram em cena. O homem pousou a mão na sua
cabeça, alisou-a, num gesto quase distante. Perguntou em seguida
qual era sua idade exata, se estava estudando, se gostava da escola.
Sílvio percebia nas suas palavras uma nota forçada, como se o pai o
visse através de uma névoa. E respondia contrafeito, como se estivesse
dizendo uma mentira. Aquilo eram perguntas para uma criança, um
aluno da classe primária, e não para ele. Aproveitando-se de um
momento em que Jaques pedia uma explicação a Clara, colocou-se
numa posição mais afastada. O pai voltou a considerá-lo, imerso em
profundas cogitações. Parecia comparar alguma coisa, detalhes da sua
vida passada. O certo é que acabou por suspirar, voltando lentamente
a cabeça. Dessa vez foi a ocasião de Sílvio examiná-lo. Tinha os cabelos
brancos, as faces enrugadas e o corpo curvo, mas apesar de tudo
desprendia-se dele uma estranha simpatia. Vestia-se pobremente,
parecia ter passado grandes provações. E de repente, pela primeira vez
na sua vida, ele teve consciência de que alguma coisa de grave devia se
ter passado naquela casa há muitos anos. Essa idéia perturbou-o,
tentou analisar melhor o pai, como se procurasse na sua face vestígios
desse drama antigo. Aliás era visível o modo contrafeito por que Clara
se dirigia a ele, usando palavras escolhidas, como se temesse ofendê-lo
ou trazer à tona a lembrança de um fato que devia permanecer oculto.
E com o correr do tempo verificou que esse modo de falar não
exprimia temor, mas era simplesmente a maneira com que se falaria a
um doente ou a um homem que não compreendesse as coisas senão
pela metade. Possivelmente só o interessariam determinados fatos — o
resto não existia. Sílvio voltou a examinar com maior cautela ainda a
face do pai e desta vez julgou distinguir nos seus olhos um brilho
vagamente alucinado. E de si mesmo, cheio de inquietação, indagou
quais os traços que ele tinha conservado daquele homem. De vez em
quando, detendo-se na conversa ou aproveitando uma pausa mais
longa, Jaques voltava a cabeça e fixava-o. E assim, as pupilas
semicerradas, examinava atentamente o filho, retornando depois à
conversa, com novo suspiro. Aqueles exames não escaparam a Clara:
também ela examinava-o às vezes em silêncio, como se rememorasse
coisas acontecidas há muito. Sílvio sentia como a sua presença pesava
e no fundo se orgulhava disso. Com o decorrer da conversa, verificou
ainda que parecia haver uma dissenção profunda entre Clara e o pai.
Decerto não era nada visível, apenas como se corresse, sob o concerto
abafado daquelas vozes, a nota grave e dolorosa de um irremediável
mal-entendido. “Ela já o perdoou, mas não pode esquecer”, disse ele
consigo mesmo. “O que quer que seja, estarei sempre ao lado de minha
mãe.” Aquele homem era um estranho, e Sílvio sentia com rara
intuição que assim ele permaneceria para todo o sempre. Faltava-lhe
qualquer coisa essencial para violentar a intimidade. Áurea também
apareceu e foi apresentada ao recém-chegado. Nada se alterou na sua
fisionomia, parecia mesmo que de há muito ela aguardava sua
chegada. Estendeu-lhe simplesmente a mão e voltou para dentro, a fim
de preparar um café. Do lugar onde estavam sentiam o perfume forte
que vinha da cozinha, e ouviam a voz de Áurea cantando uma modinha
em surdina. Sílvio admirou aquela calma, aquela segurança de uma
alma despida de prevenções. Apesar dos seus esforços, não conseguia
vencer sua inquietação — e, à medida que os minutos passavam,
indagava se realmente aquele homem tinha a intenção de permanecer
na sua casa. Não podia se habituar a essa idéia, o homem parecia
excedê-la como uma enormidade. A um gesto de Clara, Sílvio
levantou-se, pretextou uma desculpa e ganhou a rua.

Aturdido, caminhou a esmo durante algum tempo, incapaz de


fixar um só pensamento lúcido. Na verdade tudo aquilo era muito
estranho. Rememorou mais uma vez as palavras que ouvira, procurou
ir mais longe, descer às suas recordações de infância. Mas nada
respondia ao seu apelo, uma noite densa envolvia todas as coisas.
Sílvio caminhou assim até a estação, onde algumas pessoas já
aguardavam a passagem do expresso. Lá conseguiu esquecer
momentaneamente suas preocupações, absorvido no vaivém dos
amigos e conhecidos. Uma rapariga morena, vestida de vermelho,
sorriu-lhe de modo provocador. Ele se lembrou de Diana, sentiu uma
nuvem de tristeza passar-lhe sobre o coração. Mas, como a menina
fosse até ao fim da rampa e de lá voltasse lentamente, sorriu-lhe
também. Ela fez um trejeito malicioso, apertou o braço da amiga com
quem passeava. Aquele namoro inocente durou o espaço de duas ou
três voltas. Já o trem apitava na curva, um burburinho se formava na
estação. A menina de vermelho desapareceu num grupo de moças que
surgira do outro lado da rampa, ouviu-se um rumor de risos abafados,
de vozes e gritinhos femininos. O expresso se deteve, resfolegante.
Mãos apressadas atiravam embrulhos de correspondência sobre a
plataforma. De longe, a menina morena dirigiu novo e animador
sorriso a Sílvio. Ele correspondeu ligeiramente contrafeito, pois se
tinha lembrado mais uma vez de tudo o que lhe sucedera naquele dia.
Não podia deixar de imaginar no seu regresso e nas pessoas que de
novo encontraria na sua casa. E de repente ele sentiu um enorme
desalento, pôs-se a caminhar distraído entre os grupos, desceu
finalmente a rampa e ganhou a estrada. De novo estava sozinho, o
burburinho da estação ia sendo devorado rapidamente pela noite. E
ele se aproximava de casa a passos lentos, o coração cerrado. Sim, tudo
iria recomeçar de novo. Veio-lhe então uma surda nostalgia, um desejo
de partir, de mudar de ambiente. Por que não o Rio, com as suas
praias e os seus cinemas? E a imagem de Diana surgiu novamente das
trevas. Que valia a vida sem a sua presença? Jamais poderia deixar de
amá-la. Agora ele caminhava mais rápido, aspirando com força o ar
frio e puro. Sobre os muros brancos, via oscilar grandes dálias abertas,
de cores raras e violentas. Uma onda de vida se espalhou no seu ser, e
Sílvio sentiu uma intensa vibração, um desejo de correr, como se a sua
alma se dilatasse. Teve a impressão de que o mundo era feito
exclusivamente para os seus olhos. Nunca fora mais nítida essa
poderosa noção da sua própria mocidade. Mas ao chegar à casa, no
momento em que abria a porta, sentiu invadi-lo a lembrança do pai —
deteve-se, pensando em voltar. Mas como ouvisse vozes que vinham lá
de dentro, serenas como se nada de extraordinário houvesse
acontecido, acabou por entrar. No momento em que penetrava na sala,
o silêncio fez-se bruscamente. Clara perguntou onde ele andara.
Enquanto falava, Sílvio sentiu de novo que as pupilas do pai o
examinavam. E aquele suplício durou até ao anoitecer.

Agora estava ali, de pé, ouvindo as vozes que vinham do quarto


fechado. A sensação de estranheza se avolumara, tornara-se
angustiosa. Mudo, os olhos dilatados na sombra, ele se apoiara à
parede e procurava inutilmente compreender o que se passava lá
dentro. Quem dera aquele homem o direito de penetrar assim na sua
casa, de se apossar de tudo, de se fechar até no próprio quarto de
Clara? Era inútil ocultar, o que sentia era ciúme, tinha a impressão de
que fora roubado nalguma coisa. Seria assim em todas as casas, todos
os pais agiriam daquele modo? Neste caso ele não podia deixar de
odiar mortalmente os pais. E Sílvio avançou mais alguns passos,
avançou até quase aos limites onde a luz marcava o assoalho escuro
com um traço de fogo. E pela primeira vez, diante dessa porta fechada,
teve a intuição dessa aliança criada pelo matrimônio contra o resto do
mundo. Para além daquele limite marcado pelo traço de luz, sentiu
que havia uma felicidade, um terreno autônomo, fechado,
indevassável para o seu pobre coração sem amor. Esses dois seres,
unidos por um laço sobrenatural, possuíam uma noção de mútua
propriedade que destruía a lemorança de todas as misérias cometidas,
de todas as injúrias e traições, que os transformava num só corpo
hostil ao que não lhes pertencesse — até mesmo aos próprios filhos.

Agora era diferente. Nos dias que se sucederam, ele já não


precisou investigar tão ansiosamente o seu próprio coração. Tudo era
tremendamente fácil. Ele até se espantava dessa faculdade de
surpreender os sentimentos humanos ainda na sua origem, de colocá-
los em plena luz do dia e vaticinar-lhes assim um tão seguro
desenvolvimento. Diante do pai, já não tinha necessidade de
mergulhar naquela aflita hesitação, à procura de uma razão qualquer
para os seus estranhos sentimentos. Já não ouvia a sua voz com um
arrepio de temor e nem fugia ao seu olhar como se temesse alguma
coisa. Ao contrário, encarava-o serenamente, olhos nos olhos, não
como a um indiferente, mas como a um homem cujos segredos já nos
foram revelados. Tudo se desvendara no momento em que descobrira
o significado exato da sua presença naquela casa. O que quer que
fizesse, os atos e as injustiças que cometesse, seria sempre e
fatalmente o senhor. Bastava ver como Clara o olhava, como o servia à
mesa, como procurava adivinhar-lhe os desejos. Nunca a vira
interessar-se daquele modo por ninguém. Em silêncio, Sílvio
acompanhava os seus movimentos, pesava as suas palavras, descobria
as menores intenções dos seus gestos. E às vezes, vendo-a debruçar-se
sobre Jaques ou oferecer-lhe alguma coisa de um modo especial,
sentia uma dor tão funda penetrar-lhe no coração que voltava a
cabeça, a fim de ocultar seu repentino rubor. Era uma espécie de
amargura, misturada a uma onda de revolta. Não raro, imaginando
que era aquele um sentimento mesquinho, reagia, tornava a levantar a
cabeça, tentava pensar noutras coisas, esquecer o que se passava em
torno. Mas o “estranho” continuava na outra ponta da mesa,
indiferente aos sentimentos do filho. Desta vez ele sentia então um
verdadeiro rancor, e apertava fortemente o talher nas mãos que
tremiam. Assim as horas deslizavam tristes e pesadas. Às vezes,
quando terminavam as refeições, o pai chamava-o, indagava coisas da
sua vida, das suas aulas e amigos. Ele respondia contrafeito, por meio
de monossílabos. Via então uma sombra de irritação descer aos olhos
do pai, que o abandonava num brusco movimento de impaciência e
dignidade ofendida. Imóvel, o coração palpitante, Sílvio esperava
passar o rápido tumulto daquelas emoções. Via depois o pai afastar-se,
trêmulo, curvo, no jardim que escaldava ao sol do meio-dia. Sílvio
observava que de longe ele parecia conversar sozinho. Ia sentar-se à
sombra de um grande pé de acácias, as mãos apoiadas nos joelhos,
olhos perdidos na distância. Nestes momentos Sílvio sentia seus
sentimentos se converterem numa intensa piedade. Parecia tão velho,
tão desprotegido! Era visível que qualquer coisa essencial lhe faltava,
todo o seu ser era a gritante afirmação dessa ausência. Durante muitas
horas Jaques permanecia naquela posição, esquecido de tudo,
mergulhado na escura solidão da sua velhice. Talvez que meditasse
sobre essa noite que sucede tão rapidamente aos dias de sol, nessas
horas longas, de um tédio mortal, em que todas as coisas parecem
estremecer ainda num desesperado adeus. Afinal, cabeça baixa, uma
ruga de funda inquietação na testa, voltava devagar para dentro de
casa. Mas apesar disso, dos monossílabos e das respostas geladas do
filho, ele não cessava as tentativas. A todos os momentos Sílvio sentia
que ele procurava se aproximar. E era isto que não compreendia. Toda
a sua natureza, originalmente viciada pela prevenção, achava-se
armada, bloqueada pela rigidez e pela indiferença. A nenhuma das
suas perguntas respondia de maneira clara ou sem hostilidade.
Quando o encontrava, ambos tinham um súbito estremecimento,
olhavam-se com desconfiança, penetrando assim lentamente nesse
conflito que o tempo aprofundaria de maneira irremediável. Não raro,
passando no jardim ou atravessando o corredor, Sílvio sentia-se
acompanhado pelo olhar do pai. Com essa habilidade dos homens
guiados por uma repugnância que não explicam, mas que nem por isto
deixa de assumir aspecto vital em suas naturezas, sabia transformar
todos os atos e palavras do pai numa prova de premeditada
hostilidade. Nada lhe escapava, e a tudo emprestava uma significação
simbólica, que vinha alentar poderosamente essa aversão que ia
criando raízes tão poderosas na sua alma. Entretanto, no seu interesse
e na sua vontade de penetrar um pouco mais na vida desse filho que
viera conhecer tão tarde, Sílvio não percebia senão desejo de
intervenção, curiosidade e malevolência. “Não há nada em mim que o
interesse”, pensava ele, “senão o que é deficiência gerada pela minha
educação.” Pois rapidamente ele avançava nesse árido terreno do
ressentimento, passando da simples defesa dos seus interesses para o
da acusação. Agora que já podia se comparar aos outros, agora que
tinha um pai a quem podia apresentar os amigos, media com sombria
frieza tudo o que lhe faltara durante esse tempo, misturando lacunas
reais da sua educação com faltas imaginárias, nessa incapacidade de
discernimento que quase sempre envenena de maneira fatal os
melhores movimentos entre os homens. Nesse esforço para justificar
sentimentos que talvez repelisse se examinados friamente, chegara a
constituir um libelo cujos acessórios eram mais fictícios do que reais.
E a qualquer tentativa de aproximação mais nítida recorria a esse
mecanismo, pondo de pé todas as suas objeções, contra um réu que o
seu coração já condenara. Certa vez, chegando à casa, encontrou suas
gavetas remexidas e os livros fora do lugar. À sua revolta misturou-se
qualquer coisa de um amargo sentimento de triunfo. Procurou a mãe
e, encontrando-a ocupada em embrulhar uma encomenda, disse-lhe:
— Mãe, encontrei as minhas gavetas remexidas. Quem esteve lá?

Ela percebeu o violento sentimento que tornava trêmula a sua


voz. Acabou de amarrar o barbante e disse serenamente:

– Deve ter sido seu pai. Ele quer saber qual é o seu
adiantamento real.

Nada mais disseram, mas toda a natureza de Sílvio fremia de


revolta. Não, isto não podia continuar, era demais. Não havia
humilhação que se comparasse àquela. Voltou ao quarto, fechou as
gavetas com estrépito, ocultou as chaves. Foi colocar-se depois junto à
janela, os olhos embaciados pelas lágrimas. Daquele instante em
diante, a solução do conflito era impossível. Não se tratava de um filho
a quem o pai não soubera conquistar o afeto, mas de um inimigo
pronto a se defender contra a invasão de um intruso. Até agora ele
gozara de uma inteira liberdade, crescera como uma planta selvagem.
Tudo o que aprendera fora por si mesmo, consciente das suas faltas e
das suas virtudes, como só o são certos seres abandonados à sua
própria experiência. O gesto do pai não fora somente um ato de
violência, mas uma ameaça direta ao seu orgulho de animal livre. Só
então ele compreendeu nitidamente que a ameaça à sua pessoa era
bem maior do que julgara a princípio, e que fora a secreta intuição
desse perigo que desde o primeiro instante o advertira contra o pai.
Desde aí essa preocupação infiltrou-se na sua consciência como uma
obsessão. Dias depois, como narrasse tudo a Chico, viu o amigo
empalidecer e lançar um ligeiro assovio entre dentes.

– Que foi? — indagou ele, quase assustado.

Chico não respondeu logo, apreensivo. Mas quando passavam


sob a luz de um lampião o amigo bateu-lhe fraternalmente no ombro:
— Não tenho nada com isto, mas a minha impressão é que em casos
como este a gente deve reagir cedo.

E parando para acender um cigarro:

– Comigo é logo na direta. Não gosto que ninguém atrapalhe a


minha liberdade.

Clara levantou-se para fechar a janela, por causa das mariposas.


Por detrás da vidraça a noite se avolumava, cheia de tons
avermelhados. Durante um minuto ela se demorou olhando a
paisagem, hesitante, procurando escapar a um pensamento que a
obsedava. Mas, ao voltar-se, compreendeu afinal que não lhe seria
possível fugir àquela explicação que tanto temia. Jaques estava
sentado na cadeira de balanço, a cabeça repousada numa almofada,
um jornal aberto inutilmente sobre os joelhos. Clara olhou-o e sentiu-
se invadida por repentina piedade, pressentindo a terrível solidão que
o envolvia. Jaques devia ter compreendido o sentimento que
inspirava, pois um estremecimento despertou-o daquele letargo e ele
deu um ligeiro impulso à cadeira. Apesar de tudo, ainda conservava
alguma coisa do seu antigo orgulho. No silêncio que se prolongava, o
único ruído que se fazia ouvir era o esvoaçar aflito das mariposas em
torno da luz baixa. Uma sombra densa, inquietante, diluía as formas.
Clara aproximou-se devagar e sentou-se ao lado do marido. E esse
simples gesto pareceu aumentar o silêncio, tornou-o opressivo como
se as palavras fossem impotentes para vencê-lo. Mas, dando um novo
impulso à cadeira, Jaques suspirou e disse:

– Não é preciso mentir, Clara, eu sei que o rapaz não me


suporta.

Ela sentiu qualquer coisa dilacerar-se no seu coração e voltou a


cabeça para não fitá-lo. Intimamente não podia deixar de compará-lo
mais uma vez ao homem que conhecera há tantos anos passados, cheio
de força e de capacidade de domínio. Outrora ele jamais faria uma
observação daquelas, jamais lhe passaria pela cabeça que alguém não
o suportasse. Que estranho sentimento de demissão havia naquelas
palavras de agora! E sentindo-o respirar com dificuldade, quase junto
ao seu rosto, Clara concluiu que a velhice era um cáustico terrível, um
veneno que devora o orgulho dos homens mais fortes.
– Não é isto, Jaques — disse depois de algum tempo —, ele
sempre foi meio esquisito.

– Sei disso. Mas vi ontem como ele fechou as gavetas e passou


junto a mim cheio de raiva.

– É gênio dele, sempre foi assim — tornou ela, molemente.

Sim, era gênio dele. Mas apesar de tudo ela não conseguia
condená-lo e nem sequer concordar consigo mesma que Sílvio devia
proceder de outro modo. No fundo existia um secreto ponto de
semelhança entre ela e o filho. Já tentara compreender aquilo, mas o
motivo lhe escapava, ou então ela procurava não vê-lo, como certos
doentes que não prestam muita atenção aos sintomas, temendo a
realidade da moléstia. Sim, era melhor não pensar em nada, esquecer
tudo, deixar que a vida corresse sem tentar interceptar-lhe a
correnteza. E ela fechou os olhos, exausta, esforçando-se por esquecer
tudo que a rodeava. Mas durante um minuto; violenta, borbulhou no
seu coração uma vaga de ásperos sentimentos — e, como de tantas
outras vezes, ela compreendeu que daquela também não lhe era
possível ocultar a verdade, nítida através de tantas palavras largadas a
esmo, de tantos gestos aparentemente sem importância, de tantas
questões deixadas sem resposta. Estas coisas assumiam agora uma
feição decisiva, exata, a que lhe seria impossível escapar. O fato é que
já não tinha mais nenhuma amizade pelo marido — e, o que era pior,
não tinha nem sequer forças para enganá-lo e enganar a si própria,
com esse dom com que certas almas caridosas substituem o amor que
já não existe. No decorrer do dia, vislumbrando a terrível verdade
através de uma resposta mais áspera, indagava atônita a si mesma se
era possível, se tudo aquilo não seria um trágico engano, se podiam
falecer assim sentimentos que tinham sido tão absolutos no seu
coração... Imóvel, olhos na sombra, procurava então rememorar cenas
antigas, coisas passadas há muito, palavras e imagens de Jaques,
lembranças do tempo em que haviam sido felizes. Nada entretanto
respondia a esse apelo, era como se pelos seus dedos deslizassem
apenas fantoches, um mundo de poeira fria e incolor. Então ela se
martirizava, esforçando-se por sufocar esses tristes sentimentos.
Aproximava-se dele, procurava atendê-lo de boa vontade, escutava
suas queixas com atenção, arranjava desculpas. Mas aquilo não ia
muito longe, uma surda irritação começava a ganhá-la. Jaques tinha
um modo especial de falar, como se nesta vida tudo estivesse
terminado para ambos. Lembrando-se então da existência reclusa que
vivera naquela casa durante tantos anos, Clara sentia abrasá-la uma
onda de revolta. Não podia permitir que ele a condenasse daquele
modo. Tudo poderia estar terminado para Jaques, mas, quanto a ela,
ainda tinha muito que viver. E levantava a cabeça, aspirando o ar com
força. Assim, a cada minuto, seus caminhos se distanciavam mais. Em
silêncio, enquanto aquelas imagens se sucediam no seu pensamento,
Clara analisava-o com dolorosa frieza. Sua maneira de caminhar,
curvado, como se temesse despertar dentro dele uma dor violenta, sua
voz dilacerada e triste, seu modo de responder com palavras irônicas
ou de exprimir o seu descontentamento com frases acerbas, que
muitas vezes escondiam o motivo real da sua irritação, tudo isto ia
cavando lentamente um abismo entre eles. E apesar disto, apesar de
ter sempre presente na memória os agravos que o marido lhe tinha
feito anos atrás, Clara sentia que estas coisas não seriam nada, se não
existissem outros fatores, mais grosseiros e mais humanos. Era através
deles que se evidenciava a irremediável derrota do homem. Muitas
vezes, surpreendendo-se cheia de repulsa ante uma dessas
observações, Clara tentava lutar, banir aqueles sentimentos que
desprezava. Não podia conformar-se em que a sua natureza fosse tão
mesquinha. Mas ao se deitar, no momento em que ia apagar a luz, não
lhe era possível deixar de reparar no copo d’água que Jaques colocava
cuidadosamente a seu lado, próximo ao vidrinho de gotas e à caixa de
ampolas. Clara deitava-se com o coração pesado. Na escuridão ouvia-o
tossir, gemer, revolver-se de um lado para outro, queixando-se de que
não conseguia fechar os olhos. Ela tentava acalmá-lo, dizendo que era
por causa do calor. Jaques então pretextava sufocações, queria a janela
aberta. Ela se levantava, agasalhando-se contra o frio. Lá fora a noite
era de uma quietude infinita. Dir-se-ia que não existiam os homens e
nem suas misérias, que a morte era um mito, só a eternidade se
desdobrava como um grande véu cheio de estrelas. E ela permanecia
inclinada para fora durante algum tempo, até que a voz impaciente de
Jaques a chamava de novo. Repreendia-a, não devia expor-se daquele
modo, via moléstias em todos os cantos. Consigo mesma ela pensava:
“Como é terrível o seu medo de morrer.” E nunca a existência humana
lhe parecera mais frágil, mais atormentada, mais imersa na angústia e
na solidão. Escutava-o gemer e tossir novamente. De vez em quando
Jaques deixava escapar pragas abafadas. Insetos entravam pela janela
aberta. Um besouro lançava-se pesadamente contra o abajur, zumbia
ameaçador no fundo do quarto. Jaques sentava-se na cama, maldizia a
idéia de abrir a janela, tossia mais fortemente ainda. E de novo Clara
era obrigada a se levantar. Quando voltava, Jaques tinha atirado as
cobertas de lado e procurava aflitamente o comutador. Tinha sentido
palpitações, podia ser o prenúncio de uma crise. A luz vermelha
afugentava as trevas. Uma barata fugia na penumbra. Jaques
apanhava as gotas e misturava-as com mãos trêmulas. Neste momento
Clara já não podia mais vencer sua enorme repulsa e escutava, com os
nervos contraídos, o tinido da colher dentro do copo d’água. “Meu
Deus”, pensava ela, “perdoai-me, é demais, como posso amar
semelhante homem?” E, enquanto Jaques ingeria o remédio com um
largo sorvo, Clara confessava a si própria que todos aqueles negros
sentimentos só tinham vida porque o amor há muito cessara de existir
entre eles. Agora, extenuado, Jaques continuava sentado na cama, a
cabeça baixa, contemplando a ponta dos chinelos. E não raro, sentindo
o olhar da mulher fixo sobre ele, balançava lentamente a cabeça,
dizendo: “Já não presto para nada, Clara.”

Era destas coisas que ela se lembrava. No íntimo comparava o


seu modo de sentir com o de Sílvio, e não podia deixar de achar que a
razão estava com o filho. Uma estranha solidariedade obrigava-a a
silenciar ante os seus gestos, como se lhe faltasse razão para condená-
los. Talvez Clara não percebesse, mas o seu silêncio dava início a uma
dessas lutas que costumam dividir as famílias em facções, partidos que
se digladiam de maneira implacável ao longo dos anos, até que a morte
desfralde sobre um dos campos a sua negra bandeira de paz. Os
resultados desses combates são subterrâneos e corroem com a
paciência de uma secreta chaga, mas acabam surgindo à luz do sol e
exibindo o seu terrível trabalho, como o ódio que separa os irmãos vai
afinal explodir no seio da eternidade, levando à presença de Deus,
como inimigos, seres que viveram juntos a vida inteira. Sim, talvez ela
não percebesse sua responsabilidade, mas entre um marido a quem já
dera tudo, e que lhe causara todas as decepções, e um filho a que não
dera nada, e que apresentava aos seus olhos todo um longo futuro a
construir, não podia, não tinha o direito de hesitar. Mas algumas
vezes, olhando friamente o homem envelhecido que tinha junto de si,
sentia sacudi-la a escura noção de um dever maior, mais fundamental,
mais imperioso, surgindo das trevas do seu espírito como estranha
ameaça.

Aproximava-se o fim do ano, as últimas aulas se arrastavam


com dificuldade. Por um momento, preocupado com os exames, Sílvio
esqueceu os acontecimentos caseiros. Via o pai movimentar-se como
uma sombra, quase sem dirigir palavra a ninguém. Ao regressar das
provas, mal reparava no vulto trêmulo, encolhido, que se dirigia para o
seu abrigo sob os galhos da acácia. Mas algumas vezes, passeando de
um lado para outro no jardim, procurando reter na memória uma lição
mais difícil, encontrava os olhos de Jaques que o acompanhavam.
Aquilo não durava senão um minuto — e o homem voltava
rapidamente a cabeça, como se alguma coisa ao longe o atraísse. Certa
noite, entretanto, Sílvio encontrou-o imóvel junto à porta, a mão sobre
o coração. Assustou-se, quis ajudá-lo, mas o pai afastou-o com um
gesto quase rude e penetrou em casa sem nem sequer voltar a cabeça.
Cenas mais ou menos idênticas se repetiram duas ou três vezes. Cada
vez era mais denso o silêncio que se acumulava entre eles. Sílvio,
entretanto, atraído por outros interesses, demorava pouco em casa.

Se bem que tivesse jurado que não mais voltaria à casa de


Esperança, acabou cedendo aos insistentes convites de Chico e voltou
a visitá-la. A esta segunda visita se sucederam outras, já sem a
companhia prestimosa do amigo. Agora, um sentimento singular
atraía aquela mulher para Sílvio. Vencidas as barreiras da timidez, um
mundo novo se abria aos seus olhos inexperientes. Esperança parecia
nutrir por ele um grande interesse, fazia questão de que o rapaz viesse
vê-la todas as noites. Ele relutou a princípio, mas acabou cedendo
inteiramente, pois estava farto de passear nas ruas solitárias e frias, de
esperar a passagem do expresso ou de aturar as eternas conversas de
Chico sobre as vantagens que obtinha com as mulheres. Esperança
aguardava-o com o chá pronto a ser servido, as xícaras convidativas
dispostas sobre a toalha de linho branco. Enquanto lhe oferecia uma
fatia de bolo, indagava da sua vida, do que tinha feito, quais eram seus
planos para o futuro. Queria saber de tudo, todos os detalhes da sua
vida a interessavam. De vez em quando suspirava, indagava se Sílvio
não a achava muito velha, suplicava-lhe que lhe dissesse a verdade,
que não lhe poupasse nada. Ele jurava que a achava linda, que não
existia outra igual. Apesar dela fingir um ar despreocupado, como se
tudo aquilo não passasse de uma brincadeira, Sílvio sentia-a suspensa
às suas palavras. Crescendo a intimidade e o calor do ambiente.
Esperança descia a questões mais íntimas, queria saber se ele tinha
conhecido outras mulheres antes, ou então, numa súbita desconfiança,
indagava se alguém não lhe tinha feito sinal na rua, se uma menina
qualquer não lhe sorrira, toda uma série de despropósitos a que Sílvio
respondia com inequívocas risadas. Mas em breve essas simples
indagações assumiram caráter mais grave. Logo ao chegar ele
encontrava Esperança imersa numa estranha hostilidade, olhos
vermelhos, um lenço molhado entre os dedos aflitos. Ante a insistência
de Sílvio, acabava confessando que soubera da existência de uma
namorada sua, uma moça do Rio com quem ele andava. Sílvio
tornava-se sombrio, afirmava que isto fora há muito tempo. Então
Esperança se levantava, vibrando de furor contida, punha-se a
caminhar de um lado para outro, acusando-o e lamentando-se ao
mesmo tempo. Fizera mal em acreditar nos seus protestos, ele mentia
como os outros. Mas no fundo não se importava, queria apenas que ele
lhe dissesse uma coisa — e a sua voz se tornava menos áspera — se
essa menina era bonita, quantos anos tinha, se aquele namoro durara
muito tempo... E Esperança se inclinava sobre ele, os olhos mais
brilhantes e rodeados de um círculo escuro. Era tão visível o seu
sofrimento que Sílvio estremecia, pressentindo no exaspero daqueles
sentimentos alguma coisa terrível. Ele jurava então que era um tipo
vulgar, tão vulgar que nem mesmo se lembrava mais dos seus traços.
Na sua memória, aquela primeira namorada era agora mais um nome
do que uma fisionomia. Esperança parecia tranqüilizar-se e vinha
sentar-se ao seu lado, cobria-o de beijos ardentes, demorados,
apertava-o em loucas carícias. Durante um minuto aquela vaga paixão
submergia-o e ele nada ouvia senão o escoar daquela torrente de
palavras úmidas de ternura. Mas Esperança era dessas mulheres que
precipitam em torno de si os desastres, e nesse sentido sua imaginação
jamais descansava. Assim é que as suas desconfianças voltavam e ela
acusava-o por se mostrar tão frio. Como Sílvio resistisse molemente,
multiplicava os seus processos de sedução, procurando ressaltar os
seus encantos. Pedia licença um minuto, deixava-o entre cigarros e
revistas, demorava-se lá dentro durante algum tempo. Do lugar onde
estava, Sílvio ouvia o rumor de portas que se abriam, de vidros e de
escovas caindo no chão. Esperança reaparecia depois transfigurada
num “peignoir” cor-de-rosa, cabelos soltos, envolta numa onda de
perfumes. Tudo em torno dela se fazia mais estranho, uma radiosa
feminilidade parecia envolvê-la. Então era Sílvio quem fazia loucos
protestos de amor, secundando-a naqueles gestos de estudada e
mecânica sensualidade. Esperança ensinava-lhe várias coisas,
mistérios de que jamais suspeitava. Aliás, um dos seus dons principais
era o da transformação — dir-se-ia que não existia nela uma só
mulher, mas várias. Só mais tarde Sílvio verificaria que realmente ela
não se transformava, que aquelas aparentes mudanças apenas
ocultavam, de maneiras diferentes, o mesmo insaciável e inútil desejo.
Mas naquele momento, na obscuridade para que se tinham retirado,
ele assistia, surpreso a esse curioso processo. Em todas as máscaras
que a prostituta compunha, a mesma luz flamejava, rubra e violenta
como um fulgor do inferno. Ela sabia explorar poses estranhas, gestos
ousados e palavras cheias de misterioso perfume — e, mais do que
tudo isto, possuía um agudo senso da oportunidade, pressentindo com
segurança os momentos em que o tédio se apossava do seu jovem
amante. Mas, às vezes, alguma coisa falseava nessa ciência de íntimas
baixezas. Era quando, por exemplo, entre dois beijos mornos, ela
chamava Sílvio de “meu filho”. Ele estremecia, examinava-a através
das pálpebras semicerradas e achava-a envelhecida, gasta e manchada
por não sabia que espécie de abjeto impudor. Ela repetia “meu filho”,
meio cega, roçando-se nele com uma volúpia onde se misturava
qualquer coisa incestuosa.

Assim os dias iam correndo, os meses avançavam. Sílvio se


transformava a olhos vistos e Clara seguia-o cheia de inquietação. No
princípio fora o fato de se demorar na rua até alta noite; depois sua
magreza, seus longos silêncios, seu desinteresse pelas coisas da casa.
Com essa acuidade peculiar às mulheres, começou a notar detalhes
que até agora lhe tinham passado despercebidos. Assim é que entre
três ou quatro palavras reparava numa que lhe era estranha, ou
descobria em Sílvio um modo de encarar as coisas que diferia muito da
sua maneira habitual. Auxiliada pela sua segura intuição, percebia que
esses pequenos nadas tinham uma origem feminina; assim, não lhe
era difícil levantar uma ponta do véu que ocultava a atual existência do
filho. Outras vezes, escovando-lhe a roupa, percebia denunciadores
rastros de perfume. Apesar de saber que aquele era o caminho
habitual de todos os rapazes, não podia deixar de se inquietar. Sílvio
era muito frágil para estas coisas. E apesar de tudo não encontrava
nenhum meio de lhe chamar a atenção, se bem que tais pensamentos
não a abandonassem um instante sequer. Não era esta uma missão
que competia aos pais? E, vendo a cegueira de Jaques, irritava-se
ainda mais contra ele, transformando Sílvio numa vítima. Como os
dias passassem sem que ela encontrasse solução para esse problema,
torturava-se, imaginando que toda a dificuldade vinha do princípio,
que era ela a culpada por não se ter habituado desde cedo a penetrar-
lhe a intimidade. Lembrava-se então de Áurea, mas tinha vergonha de
falar com a amiga em tais assuntos. Áurea parecia ignorar tudo o que
se referisse às coisas desta natureza. E assim, sem nada encontrar para
solucionar o seu difícil caso, Clara acompanhava, com o coração
pesado de sombrios pressentimentos, a evolução do filho. Agora, seus
modos eram outros. Em casa, passava todo o tempo cuidando da
roupa, escovando-se, amolando Áurea para que o auxiliasse. Queria
tudo a tempo e de uma limpeza irrepreensível. Tornava-se exigente,
brigava por causa de uma simples mancha descoberta na gravata ou
porque seus sapatos já estavam muito gastos. Clara, sem ousar
discordar, era obrigada a lançar mão das suas economias para lhe
comprar uma camisa ou um par de calçados novos. Além disso, como
houvesse lhe estipulado uma mesada, ele fazia avanços, empréstimos
sobre as quantias futuras, cercando-a de pedidos e exprobrações. Clara
se irritava às vezes, indagava onde ele metia tanto dinheiro. Sílvio
respondia que ela o tratava como uma criança, que todos os rapazes da
sua idade gastavam muito mais. Também fazia empréstimos a Áurea,
ou então suplicava-lhe que intercedesse junto à mãe, jurando sempre
que aquela seria a última vez. Quando Ciara se recusava, temendo
maiores complicações de uma hora para outra, Sílvio ameaçava então
de abandonar os estudos e procurar um emprego. Jurava que as
mulheres não compreendiam estas coisas, salientando a palavra
“mulheres”, que cavava entre eles uma súbita e irremediável distância,
como se pertencessem a mundos que devessem existir em perpétuo
conflito. Era essa mais uma das diferenças que Clara notava, pois
antigamente jamais lhe ocorrera relegá-las com tão nítido desprezo. E
cedia, afinal, sonhando sempre um futuro mais vasto para o filho.

Entretanto, não era somente com Esperança que Sílvio gastava


aquele dinheiro. Chico levara-o a uma mesa de jogo encabeçada pelo
chefe da estação, e era lá que o rapaz lançava a maior parte das
importâncias que recebia. No princípio por simples ostentação, depois
por interesse e finalmente com uma espécie de frio entusiasmo. A
companhia de Chico repugnava-lhe cada vez mais, é verdade — mas,
como não pudesse libertar-se dela e sentisse ao mesmo tempo uma
secreta inclinação pelas experiências que o amigo lhe proporcionava,
imaginava vingar-se ultrapassando-o e perdendo-se naquelas coisas
como num mar de altas vagas. Mas era visível que havia um certo
desespero no modo pelo qual agia. Dir- se-ia que, apesar de usá-las,
não conseguia identificar direito nenhuma daquelas coisas, e se atirava
a elas arrastado por um tirânica força interior. Às vezes, assustado,
Chico tomava-o pelo braço:

– Cuidado, Sílvio.

E ele, lábios cerrados, respondia:

– Não se incomode com isto.

Percebendo que, no fundo, ele não chegava nem a amar e nem a


temer tais coisas, Chico sentia-se ofendido. Nas suas habituais
conversas, dizia então que ele era um louco. Sílvio sorria, erguia os
ombros e prosseguia sua vida. Do mesmo modo com que procedia com
o jogo, ele vivia com Esperança. Não tardou muito para que ela
observasse que o rapaz nem sequer a via. Deitada nos seus braços,
sentia-o distanciar-se, olhos fixos num ponto invisível. Em vão
multiplicava agora seus processos habituais, suas lamúrias e as crises
de ciúme. De tudo aquilo Sílvio conservava-se perpetuamente ausente,
insensível aos perfumes, aos “peignoirs”, a tudo que antes ainda
conseguia fazê-lo vibrar. Ao contrário, Esperança agora percebia que
eram justamente essas coisas que o entediavam. E ela compreendia
que estava lutando contra um inimigo mais forte e que daquela
criatura ainda mal desperta para a vida só lhe poderiam advir
sofrimentos. Mas, na sua ânsia para não perdê-lo, excedeu-se,
multiplicando as acusações em torno de faltas imaginárias. À força de
ouvir invectivas sem razão, Sílvio acabou se convencendo de que afinal
aquelas constantes recriminações não eram de todo injustificadas. Já
foi sem grande escrúpulo que arranjou uma nova amante, para os
lados do Areal. Esta ainda era bastante nova, não o tratava
maternalmente, mas com humilde passividade. Tudo nela, apesar da
sua juventude, respirava uma inexorável corrupção. E era através
desse melancólico prisma que ela compreendia todas as coisas da vida.

– Sílvio — exclamava Esperança quando ele reaparecia no velho


sobrado —, onde tem andado você?

Ele não respondia, farto daquelas carícias que lhe despertavam


tão funda repulsa, daquele ambiente de perfumes baratos, da
insaciável animalidade daquela mulher. Mas, apesar das suas visitas se
tornarem cada vez mais raras, ainda não ousara romper. O hábito era
mais forte e criava no seu espírito uma ilusão de vida. Quanto a
Esperança, ia compreendendo devagar que lhe era impossível retê-lo e
resignava-se, num silêncio cheio de amargor. Nos largos e cada vez
mais freqüentes períodos de ausência, comparava sua vida com a de
Sílvio, e um raio de lucidez costumava iluminar seu coração chagado.
Via-o ainda no limiar da juventude, pronto a partir e a viver uma
existência inteiramente diferente daquela que ela poderia lhe oferecer.
Bem sabia que já estava velha e que, naquela amizade, tentara reter o
derradeiro clarão prestes a desaparecer. Inutilmente, pois de novo se
encontrava sozinha, mais cansada e com menos coragem para iniciar
uma experiência semelhante. “Também, ele já deve ter outra amante”,
pensava. E, se bem que fosse verdade, Sílvio não conseguia encontrar
nesta outra as compensações que imaginava. Impotente para aprovar
no fundo da alma aquela devassidão, vinha-lhe de tudo isto uma
enorme amargura, uma tristeza imensa, que parecia nascer como um
fumo negro da combustão daquelas misérias. Nestes momentos, sentia
que atingia certos limites, que lutava contra horizontes fechados — e
era numa tremenda solidão que percebia elevar-se na sua alma, como
a nítida visão de um pântano intransponível, a noção do tédio que se
desprende do corpo humano, tédio que nada remove e que tem um
gosto de morte.

5
Do alto da escada, Jaques olhou um instante o jardim
adormecido ao sol escaldante. Depois, protegendo a cabeça com uma
folha de jornal, encaminhou-se para o pé de acácias, que ficava rente
ao muro. Lá, sentou-se com um suspiro e prestou atenção ao surdo
zumbir das abelhas, que preparavam a colméia num dos ramos mais
altos. Em torno tudo parecia deserto, nada se movia naquela paisagem
assolada pelo calor. O céu azul refulgia — e de vez em quando, no alto,
um cacho de flores amarelas fremia, tocado pelo vôo inquieto de uma
abelha. Lentamente o olhar do homem se alongou até ao muro e
perdeu-se além, nos tetos distantes. E um sentimento intenso, de vida
e liberdade, pareceu dilatar-lhe durante um minuto o coração. Era ali,
sozinho e em silêncio, que ele passava a maior parte das suas horas.
No princípio, não compreendera bem o motivo por que só naquele
lugar respirava com tanto prazer — mas aos poucos fora percebendo
que não o escolhera, mas que viera ter à sombra daquela árvore como
se o tivessem empurrado, como a um lugar de exílio. “Sim, um lugar
de exílio”, repetiu ele em voz alta. E a sua respiração pareceu acelerar-
se, enquanto uma nuvem escurecia seus olhos sempre limpos.

Decerto Jaques não era homem que percebesse exatamente o


significado das coisas. Para isto lhe faltava serenidade, maior
conhecimento da sua própria natureza e um mais lúcido interesse
pelos homens. Mesmo assim, entretanto, não pudera deixar de se
sentir rudemente chocado com o que se passava em torno da sua
pessoa, já não falava do frio acolhimento que Clara lhe dispensara,
pois, apesar de encontrar sempre tão hábeis justificativas para os
próprios atos, sentia a esse respeito que agira mal para com ela. Mas,
se compreendia essa frieza inicial, conservava-se atônito com o
desinteresse dos dias subseqüentes, e mesmo pela acentuada repulsa
que descobria ultimamente nos seus gestos. Nada daquilo lhe tinha
passado despercebido. Quando estavam a sós e ele se aproximava para
lhe fazer uma carícia, ela ria com um leve acento nervoso, dizia que
estavam muito velhos para aquilo ou então alegava que tinha
necessidade de terminar um serviço urgente. Esta cena se repetira
tantas e tantas vezes que Jaques acabara por se retrair completamente,
ferido no seu orgulho. Devagar fora compreendendo que não se
tratava de um movimento passageiro, mas da gradativa revelação
desse sentimento de hostilidade em que parecia se haver convertido o
antigo amor de Clara. Tudo nele a desagradava, a mais insignificante
das suas palavras tinha o dom de irritá-la. Se ela às vezes não
respondia é que procurava vencer tais sentimentos, ocultá-los para
não ferir um homem a quem, afinal de contas, estava ligada pelos laços
da Igreja. Apesar de compreender todas estas coisas, Jaques
acompanhava-a com os olhos, sempre à espera de um sinal que
denunciasse a proximidade da bonança. No fundo, ainda não podia
acreditar que Clara o desprezasse inteiramente. Por essa época ela
ainda era uma bela mulher, pouco envelhecera. Adquirira um modo
lento e voluptuoso de caminhar, o que ressaltava mais fortemente suas
linhas arredondadas pelos ócios da vida caseira. Era verdade que não
usava nenhum adorno, sempre fora assim, mas também prescindia
perfeitamente destas coisas. Havia muita graça no modo simples com
que repartia os seus negros cabelos, e na luz inquieta dos seus olhos
sempre inteligentes. Examinando-a agora, Jaques lembrava-se do
tempo em que a conhecera, da paixão que ela lhe despertara. Todo ele
vibrava agora numa inútil nostalgia. Seria impossível reavivar
sentimentos que haviam existido com tão grande intensidade? Como
tudo passava depressa, como os minutos se perdiam sem que
soubéssemos o seu valor! Jaques suspirava, compreendendo
instintivamente que o encanto se tinha desfeito como uma névoa,
devolvendo à realidade o doloroso aspecto das coisas. De que outra
maneira explicar fatos que ele não chegava a perceber direito, como o
olhar de Clara, quando ele pingava as gotas no copo, os seus
movimentos de fuga, quando se aproximava, ou os seus
intransponíveis silêncios, quando não conseguia fugir? Examinando
um a um esses detalhes, Jaques chegava à conclusão de que ela
obedecia a um impulso secreto, oriundo de razões exteriores à sua
pessoa. Sim, devia ser isto, Clara lhe ocultava qualquer coisa. Com
inesperada força, revivia então, mais uma vez, cenas dos primeiros
tempos em que se casara, as loucuras que ela fizera, as viagens que
empreendera. Como podia acreditar agora que Clara lhe fosse
inteiramente indiferente? Quantas vezes ouvira dos seus lábios que os
seus destinos estavam unidos para sempre, que só a mão de Deus os
separaria? Não vivera todo esse tempo amparado numa lembrança
imprecisa, num sustentáculo invisível que só agora compreendia ser a
imagem afastada da esposa? E Jaques dizia a si mesmo,
obstinadamente: “Não, não é possível, alguma coisa subsiste de tudo
isto, um fragmento qualquer perdura deste desastre.”

Se nesta questão de sentimentos Jaques hesitava tanto, outras


havia em que o seu olhar pousava mais firme. No caso de Áurea, por
exemplo. Ele não podia viver sem participar intensamente das coisas;
com esse privilégio das almas fortes e egoístas, sabia violentar a ordem
natural e obrigar tudo o que existisse próximo a girar exclusivamente
em torno da sua vontade. Assim é que, nos mais ínfimos detalhes
referentes à casa, ele queria ser ouvido. Se uma torneira se
desarranjava, se a enxurrada arrebentava uma das grades do jardim,
se havia necessidade de uma cadeira nova, para tudo ele queria ser
consultado e obedecido. E, neste caso, suas idéias se chocavam sempre
contra a vontade obstinada de Áurea. Seu voto era sempre contrário ao
de Jaques e exalava um sadio bom senso. Intervinha no meio das
discussões, opinava que não tinham necessidade nenhuma de uma
torneira nova, que bastava colocar um encosto provisório na cadeira
velha ou que as grades do jardim já não prestavam mais. E em todos
estes casos, depois de pensar um pouco, Clara se colocava
invariavelmente ao lado da companheira. Aliás Jaques já notara que
era ela. Áurea, quem fazia tudo ali dentro, que Clara pouco se imiscuía
na direção da casa. Nunca ela consultava esta última sobre o que devia
fazer; ao contrário, quase sempre era Clara que ia lhe pedir conselhos.
Sentindo a oposição da mulher, e nada podendo fazer contra ela,
Jaques procurava uma vítima em torno, e era sobre Áurea que se
lançava. De simples observações, ele passou às recriminações menos
veladas e finalmente às queixas decisivas e mesmo violentas. Nos
momentos em que ele e Clara se encontravam sozinhos, era somente a
este respeito que conversavam. Jaques queria saber de tudo, como
Áurea viera para ali, o que fazia, se recebia algum dinheiro, quanto, o
que diziam os outros a esse respeito, etc. E Clara, que já se furtara a
tantas explicações, não ousava fugir a estas. Detalhava o seu
conhecimento com Áurea, descrevia e exagerava os serviços que ela lhe
tinha prestado, a amizade que Sílvio lhe granjeara. Mas quanto mais
defendia a companheira, mais crescia a irritação de Jaques.
Exprobrava o procedimento da mulher, mostrava-lhe os pontos fracos
da atuação de Áurea, descobria-lhe defeitos de que Clara nunca
suspeitara, chegava mesmo a predizer catástrofes futuras. Mas a sua
grande cartada era afirmar ser ela a principal responsável pela
educação de Sílvio. Clara respondia-lhe que não via falhas tão graves
assim. Então Jaques ria com ar de íntima satisfação e falava do alto,
expondo um quadro tétrico do que devia ser o procedimento do rapaz
lá fora. Se Clara ousava replicar, enfurecia-se, afirmando que sabia
melhor destas coisas do que ela, que também já fora moço. Clara
percebia que ele estava ressentido com o filho. Às vezes, numa pausa
mais prolongada, Jaques deixava entrever que no fundo tratava-se de
um orgulhoso, que ele era só isto e mais nada. Não podia justificar de
outra maneira os silêncios do filho, sua maneira de agir e a
incapacidade de lhe penetrar no íntimo. Exausta de dar explicações e
desfazer mal-entendidos, sentindo-se ela própria arrastada nesse
turbilhão de equívocos, Clara mergulhava num alheamento que era a
sua melhor defesa. Então Jaques olhava-a cheio de rancor, furioso por
se sentir impotente para convencê-la, como em épocas passadas.
Levantava-se, preparava as gotas para tomar, exagerando o tinido da
colher dentro do copo. Ao mesmo tempo examinava-a
disfarçadamente, enquanto Clara se conservava de olhos baixos,
extremamente pálida. Uma enorme tristeza se apoderava dele de
repente. Sentava-se com um fundo suspiro, punha-se a se queixar da
saúde e a predizer sua morte para muito próximo. Clara não respondia
nada, olhos sempre baixos. Ele continuava a se lamentar, dizendo que
jamais deveria ter voltado, que cometera um tremendo engano, que
ninguém mais precisava dele neste mundo. E repetia uma, duas, várias
vezes este último pensamento, como se lhe faltassem forças para
medir de uma só vez todo o seu terrível conteúdo.

Era sobre isto que Jaques meditava, sentado à sombra do


grande pé de acácias. O sol estava mais alto, as abelhas zumbiam,
insistentes, em torno dos cachos amarelos. Ao longe soou um pregão.
Ele fechou os olhos, dominado por um sono invencível. Durante um
minuto, tudo se aquietou miraculosamente. E decerto Jaques
compreenderia, se pudesse ver naquele instante a sua própria imagem,
não apenas no seu aspecto exterior, mas na sua projeção total entre as
pessoas. Não se tratava somente de um homem envelhecido, mas de
alguém que tivera tudo das mãos da vida, que fora amado e respeitado,
que marcara fundamente o sulco da sua passagem pelo mundo, que
experimentara de todos os prazeres e que de repente se achara só,
depois de ter perdido tudo. Era isto o que ele não compreendia ainda,
o motivo por que subitamente todos aqueles que o amavam haviam
desertado, por que ninguém mais escutava a sua voz e nem sequer
pareciam vê-lo. Que escura noite fora esta que o encobrira? É que
Jaques ainda não aceitara a sua velhice como um fato consumado;
nada, no seu coração, indicava que os seus olhos tivessem se elevado,
um minuto que fosse, dos horizontes da terra. E ali estava, solitário, o
espírito atormentado pela dúvida, à espera desse minuto em que
finalmente a realidade se desvenda, nítida, através de uma palavra
impiedosa, e que quase sempre é pronunciada por aqueles a quem
mais amamos. Então, ferida, exausta de sofrer, a alma se recolhe ao
silêncio definitivo dos que renunciaram à luta, resignados com a
consumação de tudo, até com a própria morte.

Clara desdobrou cuidadosamente a peça de linho que a freguesa


nova lhe entregara e ia medi-la, quando se deteve, julgando ter ouvido
uma voz que a chamava. De fato alguém dizia o seu nome bem
próximo, mas num tom tão abafado que ela não reconhecia quem a
chamava. Mas a porta da frente estremeceu como se um peso violento
tombasse sobre ela — então Clara abandonou tudo e correu,
pressentindo do que se tratava. Ao abri-la, encontrou-se realmente
diante de Jaques, completamente transtornado. Estava apoiado à
parede, muito pálido, os olhos dilatados e a testa coberta de suor.

– Depressa, o meu remédio — murmurou ele.

Clara hesitou um minuto, sem saber se realmente devia


abandoná-lo. Ia fazer menção de se retirar, quando Jaques segurou-a
fortemente pelo braço.

– Não, não, ajude-me, é melhor.

E apoiou-se nela, curvado, quase impossibilitado de caminhar.


Clara levou-o até uma cadeira, onde ele se deixou cair com um gemido.

– Qual é o remédio? — perguntou ela, pronta a correr.

– O da caixinha, que está na gaveta da cabeceira — disse o


doente, os olhos úmidos de lágrimas. Ela afastou-se apressadamente e
voltou pouco depois com o objeto pedido.

– É isto?

– É isto mesmo — respondeu Jaques. — Quebre uma ampola


destas no meu lenço.

Ela obedeceu, e um cheiro ativo se espalhou pela sala.


Sofregamente o doente levou o lenço às narinas, aspirando o forte
odor do remédio. Todo ele tremia. Durante algum tempo, em silêncio,
Clara contemplou aqueles olhos esgazeados, a quem a dor dava uma
tão estranha claridade. E pela primeira vez então, desde que ele
chegara, sentiu uma autêntica piedade pela sua pessoa — não uma
simples e distante piedade, mas uma fusão completa com o seu
aniquilamento e a sua triste debilidade. Toda a alma do homem
parecia concentrada naquele lenço que aspirava. E Clara, vendo-o tão
nitidamente ameaçado pela sombra que o rondava, lembrava-se mais
uma vez de que já o tinha amado.

– Está melhor? — perguntou depois de algum tempo.

Ele baixou lentamente o braço. Sua lividez tornou-se mais


acentuada.

– Melhorei sim.

Seus lábios se converteram num traço roxo. Clara aproximou-se


e pousou a mão no seu ombro:

– Como foi isto?

Jaques enxugou o suor que ainda lhe escorria da testa e fitou


Clara — ela estremeceu e recuou, compreendendo que o marido
pressentira a origem do seu gesto, e que um mundo de silenciosas
recriminações estava condensado naquele olhar.

– Não sei — respondeu ele depois de algum tempo. — Acho que


apanhei muito sol. Estava sentado e ia me levantar, quando senti a
dor.

– Venha deitar-se — tornou Clara. — É melhor ficar algum


tempo em repouso.
Jaques acompanhou-a docilmente. Clara deitou-o com cuidado,
fechou as janelas por causa da luz e colocou bem à vista a caixa de
ampolas. Depois, em silêncio, escutou na obscuridade o penoso arfar
do doente. Aproximou-se de novo, ajeitou-o contra os travesseiros, e
estendeu-lhe um cobertor sobre os pés. De novo se afastou e esperou
que ele reclamasse alguma coisa. Mas o doente continuava em
silêncio. Clara ia se retirar, mas, cedendo a um súbito impulso de
remorso, voltou-se já da porta e foi se colocar novamente à cabeceira
do doente. Sua respiração se tornara quase normal, era evidente que
ele tinha adormecido. Então, esforçando-se para não fazer nenhum
ruído, ela sentou-se a seu lado, investigando cheia de ansiedade aquela
máscara crispada pelo sofrimento. Uma onda de sentimentos
desencontrados submergia-lhe o coração. “Eu não sou culpada”,
pensou ela com amargura. Tomou cautelosamente uma das mãos do
doente entre as suas e permaneceu assim alguns instantes, o olhar
sempre fixo no rosto do homem. “Sim, eu não sou culpada”, repetiu
novamente, desta vez em voz baixa. E todos os problemas destes
últimos tempos voltaram à sua consciência. Em primeiro lugar, o mais
premente de todos, a questão do dinheiro. Não era difícil perceber que
todos os outros se originavam desse, como filetes d’água da mesma
tumultuosa fonte. O que ela constatava agora, entretanto, é que,
apesar de não ignorar tal coisa, nada se resolvia; ao contrário, tudo se
complicava cada dia mais. Desde algum tempo já que Clara sentia que
estava se encaminhando para um abismo. Meses atrás ainda era
diferente, existiam economias, os horizontes não se apresentavam tão
sombrios. Mas também Jaques ainda não tinha chegado. Com a sua
volta, fora obrigada a fazer uma série de despesas com que não
contava; assim é que mandara restaurar uma cama antiga, comprara
colchões e travesseiros novos, abrira uma conta na farmácia, que aliás
já estava bem elevada. Talvez que, se as coisas pudessem parar aí, o
mal ainda pudesse ser remediado. Mas também existia Sílvio e as suas
necessidades. Clara compreendia muito bem que ele estava numa
idade cm que essas coisas são necessárias, imprescindíveis mesmo.
Não o via cuidando da própria roupa, preocupado em esconder
manchas e obter o melhor aspecto possível? E, sentindo-o tão
humilde, enchia-se de piedade, procurando facilitar-lhe meios para
adquirir roupas melhores. E, depois, tudo isto passava tão depressa!
Neste terreno, ela se sentia inclinada a todas as complacências. Mas
Sílvio multiplicava suas necessidades, nenhum dinheiro era suficiente
para os seus gastos. Ela acabara por se assustar, pensara em voltar
atrás, defender-se melhor. Mas Sílvio se rebelara, não queria ceder em
coisa alguma. E Clara via-se perdida. Ultimamente chegara até a se
socorrer de Áurea e, se bem que esta jamais se negasse a auxiliá-la,
sentia-se envergonhada, lembrando-se de tudo o que já lhe devia. Mas,
apesar dos seus íntimos protestos, voltava sempre a procurá-la.
Semelhante situação se agravava de minuto para minuto. Clara se
tornava sombria, vivia meditando num meio de escapar àquela
ameaça. Era nesses momentos que o seu olhar encontrava o vulto de
Jaques. Vendo-o inerte e amolentado, sempre à espera de uma crise
súbita, sentia crescer no seu coração uma irritação que não conseguia
dominar. Seria possível que ele não percebesse o modo como a
sacrificava? Seria possível que fosse insensível àquele ponto? Mas, só
agora ela se lembrava, Jaques sempre fora assim, terrivelmente cego.
Nessas ocasiões, quando ele se aproximava, ela respondia de mau
modo às suas perguntas ou abandonava-o num silêncio cheio de
acusações. Mas não raro sua crueldade ia mais longe. Áurea
costumava procurá-la a fim de solucionar uma questão doméstica ou
apresentar uma conta. Às vezes, acrescentava que o credor estava
esperando à porta. Se estavam sozinhas, Clara se limitava a deixar
escapar um suspiro. Mas, se por acaso Jaques se encontrava próximo,
ela começava a se lamentar, fazendo vagas ameaças. Ele sentia que
tudo aquilo era contra sua pessoa e abaixava os olhos, à espera de que
a tormenta passasse. Mas de vez em quando costumava reagir e,
saindo do seu mutismo, respondia com palavras ásperas, gritadas,
afugentando Áurea da sala. Clara então declarava que ele estava doido,
que nunca se vira coisa igual, que estava sofrendo de mania de
perseguição. E, durante o resto do dia, pairava entre eles um ambiente
carregado de eletricidade. Ao anoitecer, porém, Clara se envergonhava
do seu procedimento e jurava a si mesma que jamais voltaria a ser tão
mesquinha.

No quarto, agora, a obscuridade era completa. Da rua, vinham


rumores surdos, passos que soavam pesadamente, um ou outro riso
abafado. Clara suspirou, abandonou os seus pensamentos e voltou a
tomar, entre as suas, a mão do homem. Sim, era visível que a morte o
rondava e que as suas derradeiras forças pareciam reunidas para o
combate decisivo. O pânico se alastrou na alma de Clara. “Meu Deus”,
murmurou ela em voz baixa, “dá-me serenidade e paciência para viver
como eu preciso.” E voltou a espreitar, ansiosa, aquela face pálida
mergulhada em tão esquisita tranqüilidade.

Naquela noite, Sílvio confessou a Chico sua intenção de


abandonar Esperança.

– Por quê? — exclamou este cheio de espanto.

E detendo-se no meio da rua:

– Uma mulher formidável, que lhe dá tudo, que o enche de


presentes! Só se estiver ficando doido de uma vez...

Sílvio baixou a cabeça, sem saber o que responder. Não tinha


dúvidas de que Chico jamais compreenderia as suas razões, ou melhor,
que ele nem sequer acreditaria na existência delas. E não ignorava
também que ele próprio, Sílvio, envergonhava-se desses sentimentos e
que se sentia tolhido por inexplicável temor. Tinha pesado muitas
vezes os fatos, antes de resolver a se confessar com o amigo. A verdade
é que, quanto mais Esperança se esforçava e os amigos lhe faziam
valer suas qualidades, mais repulsa sentia, como se um veneno
destruísse nele todas as possibilidades de gratidão e afeto por aquela
mulher. Não tardara muito a verificar que eram exatamente essas
qualidades que o repugnavam. Jogara fora ou passara adiante muitos
dos presentes que Esperança lhe dera. A esse respeito, já tinham tido
mesmo várias discussões. Lembrava-se particularmente de uma delas.
Esperança queria forçá-lo a aceitar uma quantia, afirmando que Chico
faria o mesmo em situação idêntica. Toda a natureza de Sílvio se
revoltara. Que é que ela estava pensando a seu respeito? E a mulher
retrucara que ele era um tolo, que não sabia aproveitar as
oportunidades. Mas, coisa estranha, quanto mais a repelia, mais
Esperança parecia ligada a ele. Dir-se-ia que não hesitaria em cometer
um ato de loucura, caso Sílvio o exigisse. Pelo seu lado, aquilo já não
era mais um simples caso de repulsa, transformava-se, já se
assemelhava ao ódio. Sim, havia ocasiões em que realmente Sílvio a
odiava. Certos modos de olhar, que antes achava interessante, certas
inflexões da voz, um ou outro gesto mais canalha. Não podia suportar,
levantava-se trêmulo, o rosto voltado para não vê-la. Agora passava
quinze, vinte dias sem procurá-la, indiferente aos recados e bilhetes
que ela lhe enviava por intermédio de todos os portadores disponíveis.
Vinham sempre em envelopes perfumados, que Sílvio lançava fora
ainda fechados. Até mesmo aquele perfume causava-lhe repugnância.
Assim é que chegara a concluir que não havia outra solução, senão
aquela que comunicara a Chico.

– Mas é um absurdo! — repetiu este.

Atravessavam agora uma rua deserta, cheia de árvores


sombrias. Um jasmineiro agonizava sobre um muro alto.

– Não posso suportá-la — murmurou Sílvio debilmente.

Então, segurando-o pelo braço, Chico soprou ao seu ouvido,


numa súbita inspiração:

– E seu pai, como vai ele?

Sílvio deteve-se de novo, fitando o amigo nos olhos.

– Vai bem.

E depois de um minuto, continuando a caminhar:

– Mas não pense que isto...

Inútil explicar, também aquilo ele não compreenderia. E sorriu


intimamente da absurda idéia do amigo. Atravessaram toda a rua,
absorvidos nos próprios pensamentos. E, à medida que caminhava,
Sílvio sentiu desenhar-se na sua consciência, com estranha nitidez, a
figura do pai. Vista assim à distância, essa visão causou-lhe súbita
piedade. O sofrimento dele pareceu-lhe mais próximo. E, apesar de
Chico, reviu sem hostilidade vários dos seus gestos, das suas novas
tentativas de aproximação, dos seus recuos. Sim, era evidente que
Jaques já tentara novamente aproximar-se várias vezes do filho.
Decerto não era nenhum movimento a descoberto, desses cuja
insistência ferem mais do que lisonjeiam. Mas apenas uma ou outra
palavra mais íntima, uma ligeira pressão nas sílabas ou um olhar
envolto em simpatia. Sílvio lembrava-se de que nesses momentos ele
correspondia mal ou não correspondia de todo a esses quase
imperceptíveis sinais. Não podia esquecer as suas gavetas abertas e os
papéis revolvidos. Jaques abaixava a cabeça e se perdia em profunda
meditação. Examinando-o, furtivamente, Sílvio via uma veia saliente,
quase inchada, que latejava na sua testa, os cabelos brancos,
despenteados, caindo sobre os olhos, o seu rosto magro, com a barba
crescida. Sentindo essa imagem gravada de modo tão nítido na sua
consciência, ele não podia dominar um sentimento desconhecido que
lhe agitava o coração. “É um pobre velho, como posso ser tão cruel
assim?”, pensava. Mas logo após esse pobre velho assumia aspecto
menos inofensivo. É que outras imagens se sucediam no seu
pensamento e entre elas a da sua entrada, no momento em que Jaques
conversava com Clara. Imediatamente ele se calava — e o seu olhar era
tão denunciador, tão evidente a sua cólera, que Sílvio empalidecia e
abandonava a sala o mais rapidamente que lhe era possível. E,
continuando o seu passeio em silêncio, ele sentia que dois
sentimentos, violentos e contraditórios, subjugavam seu coração,
lançando-o num mar de incertezas. Pouco adiante ele se despediu de
Chico.

– Você não quer ir até à estação? — perguntou este.

– Não, hoje não. Quero dormir mais cedo.

– Então, adeus — exclamou Chico se afastando.

Sozinho, Sílvio voltou lentamente sobre os seus próprios passos.


Lá estava de novo o jasmineiro, inclinado sobre a rua num inútil
desejo de evasão. A noite calma resplandecia. Aspirando com força o
úmido perfume da rua silenciosa, Sílvio sentiu que todas as suas idéias
e sentimentos desapareciam, para só deixar lugar a um intenso desejo
de liberdade, de paz e esquecimento. Liberdade, confiança, amplidão,
como se a obscuridade devorasse de repente todos os problemas
insolúveis, as questões sem resposta e as violências recalcadas. Foi sob
esta impressão que a imagem de Diana se apresentou ao seu
pensamento. Lembrou-se do dia da sua partida e das cartas que ela
prometera lhe escrever. “Como tudo isto se acha longe”, pensou ele,
“parece que foi um sonho.” Tentou reavivar sua voz, seu olhar, e nada
conseguiu. Todas aquelas imagens se ocultavam num inexplicável
silêncio. E nada mais lhe dizia aquela rua onde tantas vezes passara
com ela, e que um dia julgara impossível atravessar de novo, sozinho.
Na calçada abandonada, detendo-se, ele exclamou: “Diana.” Mas era
como se tivesse lançado uma pedra num abismo, nada lhe respondia,
senão um eco surdo, indistinto, qualquer coisa que era como o ondear
de uma enorme vaga do próprio silêncio. Então ele compreendeu que
o melhor meio de viver era não tentar reter as coisas — viver
simplesmente, abandonando o que nos abandona, para não ficarmos
esmagados ao peso de um mundo que já não vive.

Momentos depois, quando entrou em casa, Clara lhe contou o


que se tinha passado com Jaques. Enquanto ela dispunha na caixa as
meadas de linha, Sílvio sentou-se a seu lado, esperando novos
detalhes. Mas desta vez Clara permaneceu num inexplicável silêncio.
Era a primeira vez que ele a via recusar-se de maneira tão decidida,
pois o costume era o de deixar escapar sempre no meio da conversa
uma palavra acerba contra o marido. De olhos baixos, ela parecia
agora fugir ao olhar do filho. Sílvio indagava de si mesmo o que tinha
havido, sem poder compreender aquela mudança. Entretanto, apesar
dos seus esforços, não se lembrava de nenhuma falta que tivesse
cometido contra ela. “Todas as mulheres são assim”, pensou ele,
desviando o olhar. E por um momento, olhos perdidos ao longe,
imaginou que talvez Clara tivesse vindo a saber das suas relações com
Esperança. Durante um minuto, observando as mãos nervosas de
Clara, esteve inclinado a seguir este caminho, mas pensando melhor
viu que tal coisa não seria possível, pois conhecia bem a mãe e sabia
que nestas circunstâncias ela iria direta ao assunto. E, à força de
escavar inúteis razões, Sílvio chegou à conclusão de que o fato era
tanto mais inexplicável quanto ultimamente se tinha estabelecido
entre eles uma espécie de cordial intimidade. Já não eram aquelas
duas criaturas indiferentes, quase inimigas, que antigamente viviam à
sombra uma da outra — ao contrário, atualmente Clara possuía
sempre alguma coisa para lhe dizer e estava pronta a defendê-lo nas
discussões. Sílvio se admirara vagamente no princípio, mas sentira
que era uma nova época que se abria e que já não possuía nenhum
motivo para viver tão afastado da mãe. Lentamente ia-se formando
entre eles um curioso laço de simpatia. Muitas vezes, tentando
compreender o que se passava realmente, Sílvio tinha então a singular
impressão de que era aquele um sentimento idêntico ao de duas
pessoas lançadas numa aventura comum, uma espécie de fraternidade
contra perigos da mesma origem. Incapaz no entanto de aprofundar o
seu exame, deixava-se viver, acolhendo com idêntico interesse os
movimentos aproximativos de Clara, Áurea, que os conhecia há tanto
tempo, murmurava que aquilo era um despropósito, que Clara estava
pondo o filho a perder. Na verdade ela nunca deixava de atender ao
menor dos seus caprichos — não havia pedido que não satisfizesse ou
quantia que não fornecesse. Não raro era ela própria quem dava os
primeiros passos, oferecendo-lhe uma gravata nova ou mesmo
sugerindo uma diversão qualquer. Se Áurea protestava, escandalizada,
Clara respondia com profundo suspiro: “Mas, afinal, esta casa é tão
triste!” Sílvio sentia em todos esses atos uma intenção deliberada de
não o desagradar. Apesar de suspeitar da existência de qualquer
sentimento secreto na origem daqueles gestos, não conseguia precisá-
lo e aceitava tudo, sem conseguir entretanto apagar inteiramente a sua
desconfiança. É que as emoções da infância ainda estavam bem vivas
na sua memória. Lembrava-se dessa mesma Clara, rígida, altiva, mal
condescendendo em lhe dirigir duas ou três palavras. Aprendera
somente a respeitá-la, mas não a amá-la. Agora que ela se oferecia à
sua amizade, sentia de vez em quando renascer na sua consciência
esse mesmo sentimento de apreensão que outrora o perturbava na
presença da mãe. E fitando-a, como agora, as mãos ágeis entre as
meadas, compreendia que existia nela alguma coisa diferente, dura,
incisiva, angustiante como um mistério. Dir-se-ia que estava em
presença de um mundo inteiramente fechado. Lembrava-se bem de
que no princípio, logo que percebera em Clara os primeiros sinais de
interesse pela sua pessoa, o seu primeiro movimento fora de pânico.
Fechara-se, recusara todos os oferecimentos, defendia avaramente os
terrenos da sua intimidade. Mas devagar Clara ia se impondo — suave
e obstinadamente. Muito tempo ainda se passaria, apesar de tudo, se
não fosse o aparecimento do pai. Ele é que precipitara os fatos. Se
antes Sílvio esperava passivamente que Clara viesse ao seu encontro,
agora era ele quem, roído por secreta inquietação, vinha à sua procura,
forçando a conversa e procurando atraí-la com detalhes das suas
aventuras, que antes ela obtinha com tanto custo, e que agora ele
lançava aos seus olhos em desordenada profusão. Clara escutava-o
sorrindo e lhe fornecia conselhos e sugestões. Sua indulgência não
conhecia limites. Áurea não cessava de se admirar que os dois agora
passassem tanto tempo juntos. Clara, rindo, dizia que a companheira
estava perdendo o namorado. Por essa época Sílvio já não se recolhia
sem se deter na sala para cinco ou dez minutos de prosa com a mãe.
Clara expunha detalhadamente o que se passara durante o dia,
revivendo até os menores incidentes com os vizinhos. Enquanto ela
falava com tanta volubilidade, Sílvio olhava de vez em quando,
furtivamente, para a porta do fundo, com a íntima esperança de
deparar com a figura do pai. Clara também olhava às vezes — e, o
olhar de ambos se encontrando, a conversa tornava-se mais arrastada,
poluída por uma espécie de longínqua decepção. Uma ou duas vezes
Jaques aparecera realmente — e então Clara se calara de súbito,
abaixando os olhos, enquanto se formava um ambiente de densa
expectativa. Jaques compreendia que não o queriam ali e se afastava
devagar, como uma sombra. Sílvio tossia para afugentar o mal-estar
criado pelo inesperado silêncio de Clara. Mas isto sucedera poucas
vezes, evidentemente Jaques tomava as suas precauções para não
interromper aquele idílio cotidiano. Quando Sílvio se despedia, havia
no seu rápido “boa-noite” uma pressão carinhosa e cheia de
compreensão.

Naquela noite, entretanto, Clara parecia evitar ostensivamente


esse habitual diálogo. Com o coração abalado por um sombrio
sentimento Sílvio seguia em silêncio o movimento rápido das suas
mãos. “Que tem ela contra mim, que mal lhe fiz?”, perguntava ele a si
próprio, atônito, sem encontrar resposta. E desta vez, olhando a porta
onde Jaques costumava fazer a sua entrada, sentia uma verdadeira
onda de revolta atravessar-lhe o espírito. Apesar dos seus esforços,
sentia mais uma vez o ciúme apoderar-se do seu coração. Mas de
repente, como Clara levantasse a cabeça, ele viu seus olhos que ardiam
à luz de um vivo sofrimento e compreendeu tudo, como se alguém
rompesse ao seu olhar o véu que ocultava a realidade. Era
perfeitamente claro que ela fugia à responsabilidade do que se
passava. Dir-se-ia que não desejava mais participar de uma aliança
contra aquele homem que lá dentro agonizava na obscuridade. E
Sílvio, lembrando-se dos seus próprios pensamentos na rua, da
imagem do velho que se impusera com tanta força à sua consciência,
sentiu também uma súbita vergonha. Agora era ele quem não ousava
levantar a cabeça, temendo encontrar o olhar da mãe.

Clara terminara seu trabalho e retirava da gaveta um novo


punhado de linhas. Como o silêncio se prolongasse, ela suspirou e
disse:

— A sua doença é grave, acho que vamos ter muitos


aborrecimentos.

Então Sílvio levantou de novo a cabeça, enquanto o mesmo


denso silêncio anterior voltava a reinar na sala. Aquele sofrimento
parecia comunicar-se vagarosamente ao seu espírito. E de súbito,
inclinando-se, ele disse num tom em que era impossível disfarçar a
amarga reprovação:

— Mãe, por que é que a senhora nunca me falou a respeito dele?

Ela se deteve e fixou-o com um estremecimento.

— Não sei — respondeu —, assim me parecia melhor.

E, abandonando os novelos, as mãos sobre o peito como para


reprimir as violentas batidas do coração:

— Ele já me tinha feito sofrer tanto!

Voltou a trabalhar, as mãos sempre trêmulas. Sentia que o filho


a julgava. Sua voz, cheia de tão pungente emoção, ainda soava aos seus
ouvidos. Ao longe um relógio bateu algumas pancadas solenes. Clara
parecia absorvida no seu trabalho, dispondo as meadas umas sobre as
outras. Em breve a caixa estava cheia. Então ela se dirigiu a um
armário e retirou de dentro várias peças de linho. Ultimamente
aceitara muitas encomendas novas, na esperança de regular a situação
financeira da família. No momento em que voltava, curvada ao peso
das peças, Sílvio levantou-se para ajudá-la.

— Não é preciso — disse ela —, não são tão pesadas assim.

Mais uma vez Sílvio compreendeu que ela se esquivava. Sentiu-


se magoado, como se o tivessem enganado nalguma coisa.
Encaminhou-se para a porta e de lá, num último esforço, disse:

— Mãe, já é tarde, por que não vai se deitar?


Ela nem sequer se voltou.

— Preciso ordenar ainda hoje estas encomendas — disse.

E, realmente, passou todo o resto da noite medindo as peças de


linho. Mas fazia tudo ansiosamente, os dedos trêmulos, como se
fugisse a uma obsessão.

7
Nos dias que se seguiram Clara verificou que, apesar dos seus
esforços, o orçamento era cada vez mais deficitário. Não adiantava
acumular encomendas, pois não tinha forças para suportar um tão
pesado regime de trabalho. É verdade que Áurea a ajudava, mas Clara
não podia contar muito com esse auxílio, pois todo o movimento da
casa era regulado exclusivamente por sua companheira. Às vezes,
vendo-a suada, arrastando um móvel qualquer, Clara se envergonhava
e procurava ajudá-la. Mas não tardava muito a abandonar tudo,
caindo exausta na primeira cadeira que encontrava. “Não se importe
comigo”, dizia Áurea penalizada, “nasci para estas coisas e você não.”
Clara achava-se injusta, odiosa, mas não ia além disto. Aliás, era
visível que a sua saúde já se ressentia com este novo estado de coisas.
Emagrecera, seus olhos pareciam mais salientes, sombrios e sempre
irritados. Além disso, tinha os nervos gastos, não suportava o menor
rumor. Não raro explodia em meio de conversas insignificantes,
acusando Áurea de coisas absolutamente imaginárias, intenções que
ela nunca tivera. E, como a outra lhe fizesse ver isto, perdia-se em
contradições e acabava por abandonar tudo num gesto de incontida
irritação. Ia refugiar-se então num banquinho junto à janela, o rosto
afundado nas mãos, numa crise de desânimo. Na verdade já não sabia
mais o que tentar, julgava-se perdida, não via solução para coisa
alguma. A amargura se derramava no seu espírito como um cáustico.
Numa das vezes em que se encontrava assim imóvel, olhos fixados
num ponto invisível, Jaques apareceu e perguntou se ela estava
sentindo alguma coisa.

— Não — respondeu Clara de mau humor —, não estou sentindo


nada.

Ele hesitou durante algum tempo, examinando-a, e afinal


aproximou-se dela.

— Eu sei por que é — tornou a dizer —, não é preciso me


esconder nada.

E como Clara não respondesse e nem sequer voltasse a cabeça


afastou-se cheio de ressentimento. Ela ergueu os ombros e continuou
na sua sombria inatividade. À noite, entretanto, Jaques voltou a tocar
no assunto. Estavam sentados na sala, enquanto lá dentro Áurea
lavava a louça. Sílvio já havia saído, depois de jantar às pressas, como
de costume.

— Não adianta esconder — disse Jaques de repente, procurando


encarar a mulher —, eu sei que você está em dificuldades por minha
causa.

Clara fitou-o com evidente desgosto:

— Por sua causa?

— Sim, a despesa aumentou. Mas não posso fazer nada, Clara.


Se pudesse.. .

“Meu Deus, como são miseráveis os fatos da vida!”, pensou ela


com um suspiro. E movendo a cabeça atalhou-o com certa violência:
— Você não tem razão, Jaques, eu não me queixei de nada.

Ele abaixou os olhos, enrolando nos dedos uma franja da toalha.


Ouvia-se lá dentro o ruído forte da água escorrendo da torneira.
Depois tudo cessou, Áurea devia estar enxugando os pratos. Então,
erguendo novamente a cabeça, Jaques disse timidamente, a voz um
pouco trêmula:

— Por que é que você não manda Áurea embora?

Clara fitou-o com um espanto que não conhecia limites. E, como


fizesse um gesto para responder, ele segurou no seu braço e disse no
mesmo tom alterado:

— Pouparíamos despesas, Clara.

— Mas você está louco! — exclamou ela, atônita diante daquela


proposição. — Que é que eu iria fazer depois?

E como Clara se pusesse de pé, olhos brilhantes de indignação,


Jaques não disse mais nada, encostando-se no rebordo da cadeira e
cerrando as pálpebras. Clara ainda manifestou sua reprovação por
meio de duas ou três frases soltas, depois suspirou e acabou por
abandonar a sala. Jaques percebeu nitidamente que ela tinha ido
ajudar a companheira, numa espécie de ato de desagravo.

Sozinho, Jaques continuou a remoer os próprios pensamentos.


Para ele não existia dúvida possível, a solução era aquela. Há muito
que vinha pensando no problema e não encontrava outra saída senão a
partida de Áurea. Possivelmente havia em semelhante idéia uma forte
influência dos seus próprios sentimentos, mas Jaques só os reconhecia
transformados em hábeis argumentos a favor de uma indiscutível
razão. Muitas vezes ele nem sequer conseguia separar esta última dos
seus impulsos mais simples — erro que estava sempre na origem de
todos os desastres da sua vida. Em certos momentos era capaz de
concordar que as despesas haviam aumentado muito por sua causa,
mas nestas ocasiões lembrava-se também de que se achava no seu
direito e que não tinha para onde ir. Por bem ou por mal, aquela era
sua casa. Quanto a Áurea, aos seus olhos, não passava de uma intrusa.
Apesar dos esforços de Clara para convencê-lo, não conseguia encará-
la de outro modo. Às vezes, daquela mesma cadeira em que estava
agora, costumava acompanhá-la com os olhos. Com que segurança se
movia, como parecia estar na sua própria casa! Quando passava junto
dele, mal o olhava, cumprimentando-o de longe. Mas se ele a fitava
com insistência ela costumava se aproximar e dizer: “O senhor quer
uma xícara de café?” E parecia sorrir com uma expressão vagamente
escarninha. Com um “não” Jaques voltava-lhe as costas bruscamente,
inutilizando todo desejo de insistência. Áurea se afastava do mesmo
modo indiferente. Um dia, como surgisse à porta com uma pilha de
pratos nas mãos, Jaques disse para si próprio: “Não suporto esta
criatura.” No íntimo, vendo-a trabalhar tanto, sentia-se envergonhado
da sua inatividade. Encostado a um canto, agasalhado no seu surrado
capote, seguia aquele esforço em que Áurea parecia condensar um
febril interesse. “Ela não pode me respeitar”, pensava, “não vê em mim
senão uma coisa inútil.” E Áurea, que decerto não via coisa alguma,
passava cantarolando, sem jamais se deter sobre a figura do homem
que a examinava. Na sua simplicidade, jamais poderia perceber a que
distância era arrastada aquela consciência atormentada. Realmente
Jaques pensava descobrir a cada momento uma prova que vinha
fortalecer sua desconfiança. Ora tratava-se de um talher que ela
esquecera de pôr a seu lado, ora de um guardanapo sujo ou da comida
que ele julgava propositadamente temperada em excesso. Cruzava o
talher, repelia o prato e dizia para Clara numa voz cheia de surda
indignação: “Estas coisas acabarão por me liquidar.” Em vão ela
tentava apaziguá-lo. Certa vez em que, impaciente, respondera ao
marido de modo um pouco mais violento, ele dissera com amargura:
“No fundo, eu sei que isto é o que vocês desejam.” Clara, indignada,
indagara de que modo ele conseguia abrigar tantas suspeitas cruéis no
coração. Desde esse dia as refeições decorriam sob penoso
constrangimento. Desorientado, afogado num pessimismo que não
conseguia extravasar, Jaques sentia crescer hora a hora a sua aversão
por Áurea. Não só não podia suportá-la, como ainda a culpava de
todos os males que lhe aconteciam. Na sua mente envenenada, ela se
convertera num obstáculo que lhe tolhia todos os movimentos. Tudo o
que desejava fazer esbarrava nela. E, cego por esse desejo de encontrar
uma justificação exterior para o fracasso da sua vida, acusava-a das
piores coisas, inclusive de comprometer o resto da família nesta
espécie, de conspiração. Essa desconfiança assumia aspectos quase
mórbidos, espreitava-a em silencio, acompanhava-a na ponta dos pés,
esperando a cada momento surpreender o gesto que revelasse toda a
secreta engrenagem que suspeitava existir. Não mais dormia à noite,
atento aos menores ruídos, às palavras mais insignificantes. Às vezes
levantava-se, ia escutar à porta de Áurea. Clara não devia confiar tanto
naquela mulher, quem era ela? Afinal não era direito que todo o
movimento da casa estivesse nas suas mãos, que ela possuísse ali
dentro liberdade tão ilimitada. Tentava convencer Clara, afirmando
que tinha faro para estas coisas, que no fundo aquela criatura não valia
nada. Atônita com tamanha cegueira, e sem poder também discernir
sua verdadeira origem, Clara tentara defender a companheira. Mas,
sentindo que lutava contra alguma coisa mais forte do que simples
suspeitas, acabara se cansando e abandonando a partida. Não existiam
argumentos que convencessem Jaques. Entregue ao seu rancor, ele
multiplicava provas, descobria fatos, chegando a criar toda uma
estranha realidade. Clara evitava-o, sem defesa contra essa
monstruosa lógica.

Agora, enquanto a mulher trabalhava lá dentro, ele pensava no


melhor meio de convencê-la a despedir Áurea. Já não se tratava de
uma simples preocupação, um caso que mais cedo ou mais tarde teria
de ser resolvido com o seu próprio desenrolar, mas um ponto de honra
cuja solução não podia ser adiada. Assim é que, minutos depois, como
Clara regressasse da cozinha, ele externou mais uma vez sua opinião.
Então ela se irritou, jurando que ele estava completamente louco, que
jamais faria aquilo. Pálido, ferido pelo despeito, Jaques levantou-se,
esmurrou a mesa, afirmando que ainda haveria de pôr ordem em tudo
aquilo. Mas, percebendo o olhar de desprezo que Clara lhe lançava,
voltou atrás, deixou-se cair de novo na cadeira. “Nesta casa estão todos
contra mim’’, disse ele. E desmanchou-se em queixas contra Sílvio,
Clara e todos os que conhecia. Aquelas lamúrias duraram muitas
horas, Clara sentia-se penalizada e revoltada ao mesmo tempo. “Meu
Deus, você não tem o direito de pensar assim!”, exclamava ela de vez
em quando. Mas Jaques prosseguia na sua inexorável exposição.

— Se ao menos tivesse alguma coisa para fazer, não daria a


vocês tantas oportunidades para me desprezarem — exclamou ele
finalmente, numa cólera que o desfigurava.

— Mas você não pode, não tem forças para trabalhar! —


respondeu-lhe Clara.

— Isto é uma pura invenção — tornou ele no mesmo tom


desesperado. — É desse modo que vocês me acabam. . .

Clara fitou-o nesse instante e compreendeu com rara intuição a


extensão do seu sofrimento. Uma onda de piedade sacudiu-a. “É a sua
demissão como homem válido, é a sua derrota que ele não aceita”,
pensou ela. “No fundo, é a própria vida que ele defende de maneira tão
áspera!”

No dia seguinte, a fim de satisfazê-lo, mandou comprar madeira


para que ele pudesse restaurar as grades velhas do jardim. Ha muito
que estavam necessitadas disto. Jaques se lançou sofregamente ao
trabalho. Durante duas horas cortou e aplainou tábuas. Mas ao
entardecer ela foi encontrá-lo arquejante, a testa inundada de suor,
estendido sobre uma pilha de madeira. Vencido, não ousara chamá-la.
Clara não disse nada, transportou-o para dentro e ajudou-o
tranqüilamente a se deitar. No outro dia não tocou no assunto,
temendo parecer satisfeita com sua vitória. As tábuas ficaram do lado
de fora, expostas ao tempo. Jaques não teve coragem para voltar ao
trabalho e também não tocou mais no assunto. Assim, em vez de
diminuírem, as despesas aumentavam sempre.

Um dia, Jaques surpreendeu-a com um papel nas mãos. Ela


estremeceu, quis ocultá-lo, mas, como ele exigisse, acabou por mostrá-
lo. Era a conta do farmacêutico.

— Trata-se de uma exorbitância — disse Jaques —, não podemos


dever tanto a este homem.

Devolveu o papel, afastou-se em silêncio e foi colocar-se junto à


janela. Durante toda a tarde permaneceu mergulhado naquele
mutismo. Depois do jantar, entretanto, quando Sílvio se retirou,
voltou a falar das dificuldades que atravessavam. Não fitava Clara,
olhava para longe, falando numa voz lenta e grave. Apesar de perceber
nele uma intenção oculta, Clara ouvia-o sem nenhum interesse. Já
estava acostumada àquelas coisas e sabia que não havia nenhum jeito
para dar. Jaques percebeu sem dúvida o que se passava, pois deteve-se
de repente. Clara levantou a cabeça e encontrou o seu olhar brilhante
de indignação. Como fizesse um gesto para se desculpar, ele segurou-a
de súbito pelo braço:

— Espere, Clara, que eu ainda tenho muito para lhe dizer.

Imóvel, Clara aguardou então que o marido falasse. Sua voz era
perfeitamente calma:

— Esperei durante todo este tempo — disse ele — e creio que não
há mais nada a fazer. Não adianta — interrompeu-a com novo gesto —,
sei muito bem o que iria me dizer. Mas, Clara, já estou cansado destas
coisas.

Ela ergueu os ombros e fitou-o de modo interrogador.

— Sim, Clara, ela ou eu. Há uma pessoa de mais nesta casa. Você
consente em mandá-la embora?

Clara abaixou a cabeça, mas respondeu distintamente:

— Não.

Então Jaques se levantou, apoiou as mãos sobre a mesa e disse


em tom solene:

— Neste caso sou eu quem parte.

Ela tentou retê-lo, mas Jaques voltou-lhe as costas e abandonou


a sala. Durante algum tempo, no silêncio que se fizera após essa rápida
cena, tudo foi confusão no espírito de Clara. Aos poucos, entretanto,
subia à sua consciência uma densa serenidade. Sim, realmente ele
devia partir, não havia nisto nada de extraordinário. Já não havia
deixado aquela casa uma vez, inúmeras vezes? E talvez suas palavras
nem passassem de um simples pretexto para realizar uma idéia que
sempre acalentara. Mas imediatamente alguma coisa dentro dela
combateu com violência aquela idéia. Não, não era possível que fosse
assim. Jaques não partiria daquela vez, se não compreendesse que era
um intruso. E Clara sentiu que devia fazer alguma coisa, agir,
convencê-lo do contrário. Pelo menos, era esse o seu dever. E seria tão
fácil, bastavam algumas palavras de ternura! Mas eram essas,
precisamente, as que não conseguia articular. Nem sequer chegavam a
se formar no seu coração. Dir-se-ia que uma força poderosa a retinha
naquela cadeira, dominando-lhe a vontade e os movimentos. “Não
devo deixar partir este homem”, repetia ela. Entretanto não se movia,
o coração abalado por surdas pancadas. Ouvia Jaques tossir lá dentro,
arrastar um volume, talvez a mala. Em seguida escutou o ruído de uma
gaveta que se abria. “Deve estar empilhando a roupa”, continuou ela,
como se o estivesse vendo. Logo depois ouviu o rumor de alguma coisa
pesada que tombava ao solo. “Pode ter sido a crise”, imaginou com um
longo estremecimento. E no mesmo instante viu-o estendido no chão,
a fronte pálida molhada de suor. Um sentimento obscuro, misterioso,
alastrou-se no seu coração como uma espécie de alegria envenenada.
Via-o, via-o sempre, as mãos crispadas arranhando a madeira do
assoalho. E apesar de tudo não se levantou ainda. Conservou os olhos
dilatados, a respiração suspensa. Mas ouvindo-o agitar-se de novo,
tossir e abrir novas gavetas, recostou-se outra vez contra a cadeira,
dizendo com um suspiro: “Não, não foi a crise.” E tudo em torno dela
pareceu regressar a uma melancólica quietude. Poucos momentos
depois Jaques voltava à sala. Estava vestido com o mesmo sobretudo
do dia em que chegara, o chapéu desabado, uma pequena maleta nas
mãos. Deteve-se junto dela e disse:

— Adeus.

Então Clara sacudiu aquele torpor e segurou-o por uma das


mãos:

— Isto é uma loucura, Jaques!

Ele se libertou com um gesto ríspido, exclamando:

— Não, eu sei que não é uma loucura!

E afastou-se, tão rápido como se fugisse. Entretanto, no


momento em que segurava o trinco para abri-lo, deixou cair a mala e
levou as mãos ao peito.

— Meu Deus! — gritou Clara, pondo-se de pé.

Correu para ele, procurando ampará-lo.

— Deixe-me! — exclamou Jaques raivosamente, tentando repeli-


la.
Mas, apesar dos seus esforços, não conseguia firmar-se,
tateando aflitamente à procura do trinco. Encontrou-o afinal e abriu a
porta. Deu dois ou três passos, curvado, as mãos apertadas contra o
capote amarfanhado. Clara compreendeu num relance que, se ele
tentasse descer a escada, rolaria em falso. Com um movimento rápido
achou-se novamente a seu lado, tentando interceptar-lhe os passos.

— Deixe-me — exclamou ele de novo, no mesmo tom


desesperado.

E como Clara se obstinasse, os braços passados em torno da sua


cintura:

— Não ficarei nem um só minuto a mais nesta casa.

Fez novo esforço para se libertar. Mas desta vez empalideceu


ainda mais, e as suas mãos procuraram aflitamente um apoio
qualquer. Sua respiração, arquejante, como que se deteve um
momento. Clara teve medo de que ele perdesse os sentidos nos seus
braços. Mas, tornando a si dessa rápida pausa, Jaques voltou
novamente a lutar, gemendo. Então ela apertou-o mais fortemente
ainda, exclamando em voz baixa:

— Não é preciso isto, meu Deus, amanhã mando Áurea embora.


8
Não, compreender Áurea não compreendia. Mas arrumava a
mala, dispondo em ordem meticulosa a sua roupa, composta quase
toda de peças que nunca usava. Algumas vezes ela se detinha, um
lenço nas mãos, e punha-se a pensar de novo em tudo o que lhe
acontecera, como se fosse um sonho. O coração lhe batia mais forte,
ela sentia um travo na garganta — um soluço que não se desfazia, uma
dor que a impedia de falar e que trazia uma névoa escura aos seus
olhos sempre tão límpidos. É verdade que há muito ela percebia
alguma coisa que se passava naquela casa. Desde que aquele homem
surgira que as coisas não andavam bem. Sílvio tornara-se inteiramente
diferente, passava todo o tempo na rua, gastando quantias que ela
achava exorbitantes. E a própria Clara se tornara agitada, suspirando
pelos cantos, abafada sob aquele mundo de contas e problemas a
resolver. Mas, apesar de todas essas provas. Áurea não o culpava. Ao
contrário, tinha até uma pena infinita da sua situação. Quantas vezes
não se detivera a meio de um serviço para seguir-lhe o vulto no jardim,
temendo a cada instante que lhe sobreviesse um acidente? Parecia tão
fraco, tão necessitado de cuidados! Quando o encontrava na sala,
sozinho, o olhar perdido no vago, costumava oferecer-lhe café. Quase
sempre ele recusava com uma resposta seca. Mas ela não se importava,
tinha sempre forças para fazer novas tentativas. E, se de todas as vezes
era assim mal-sucedida, sabia encontrar motivos que o desculpassem:
sua doença, a inatividade, a solidão. Mas o que lhe era absolutamente
incompreensível é que ela tivesse de partir, que já não precisassem
mais dela. Pois não tinha olhos, não estavam ali tantas coisas que não
andavam direito? Quem cuidaria da casa, quem auxiliaria Clara na
costura (… e ultimamente ela tinha aceito um tão grande número de
encomendas!), quem olharia pela roupa de Sílvio, quem enfim poria
em movimento toda aquela engrenagem doméstica? Sim, era inútil
tentar enganá-la, o golpe partira daquele homem. Só agora
compreendia que ele não a suportava. E que lhe fizera, santo Deus,
para que ele lhe quisesse tanto mal?

Áurea atirava as peças dentro da mala, sem ver direito o que


fazia. Parou a um certo momento e circunvagou o olhar em torno,
como se tivesse perdido a noção do lugar em que se achava. Mas na
realidade apenas examinava aqueles objetos familiares, num mudo e
pungente pedido de amparo. Já que as pessoas lhe faltavam, já que
neles nada encontrava que pudesse lhe explicar a profunda
transformação das coisas, já que os olhos amigos lhe fugiam e os lábios
teciam mentiras, era a esses rudes objetos, a esses móveis grosseiros
que recorria, convicta de que jamais faltariam com o seu leal
testemunho no momento preciso. E tudo o que eles agora lhe
transmitiam era exatamente o que esperava ouvir. Ali estavam
depondo a favor desses longos anos de silêncio e de abnegação,
instalando-a com energia naquele mundo que conquistara pelo uso de
uma constante fidelidade. Ali estava a jarra de vidro, com uma das
bordas partidas, falando das antigas manhãs em que saía com Sílvio
pela mão e aproveitava a caminhada para apanhar flores do mato.
Quantos penachos de seda não trouxera, quantas margaridas
selvagens, quantos galhos de mimosas! Ali estava a cômoda escura,
cheia de grandes gavetas onde guardava toda a roupa da casa, roupa
bordada por suas próprias mãos, lavada e passada com o seu esforço.
Ali estavam seus livros de oração, gastos, revelando o número de vezes
em que se socorrera das suas páginas no afã de pedir a Deus solução
para um caso difícil. E na parede ao fundo um retrato de Sílvio quando
era pequeno, com os cabelos encaracolados e o gato ao lado. E tantas
outras coisas que falavam unicamente do tempo em que vivera ali a
sua única e verdadeira vida, seu humilde destino. Uma onda de revolta
agitou-a durante alguns instantes. Mas Áurea era dessas naturezas
para quem a revolta não é senão um movimento mais violento de
amor. Logo tudo se acalmou no seu coração, e ela voltou a colocar as
peças dentro da mala. A noite já ia avançada. Uma brisa fria entrava
pela janela. Então, à medida que arrumava a roupa, ela foi
rememorando o que se passara naquela tarde, na esperança de
encontrar finalmente explicação para o que sucedera. Logo que
acabara de jantar, Sílvio saíra como fazia habitualmente e Clara ficara
sozinha na sala. Áurea estranhou que ela permanecesse sentada assim,
olhos baixos, mãos cruzadas sobre os joelhos. “Que foi?”, perguntou. E
Clara, estremecendo, tomou-a pela mão. “Áurea.. . nem sei como deva
lhe dizer!” Então Áurea sentou a seu lado e, passando a mão pelos seus
cabelos, disse: “Mas você é tola, não somos amigas há tantos anos?”
Clara apertou fortemente sua mão e afinal, com profundo suspiro,
disse: “Lembre-se que, aconteça o que acontecer, sou sempre a mesma
para você. Além disso, estamos atravessando uma situação passageira.
Tudo voltará um dia aos seus lugares.” Aflita, sem nada compreender,
Áurea se debruçou sobre a outra: “Mas, meu Deus, de que é que você
está falando?” Clara baixou a cabeça: “É preciso que você se vá
embora, Áurea.” No primeiro momento ela nada compreendeu. “Mas…
Clara!” E a amiga confirmou tristemente: “Sim, é preciso. Áurea.”
Dessa vez ela não encontrou o que dizer, e alguns minutos se escoaram
sob denso silêncio. Reagindo, entretanto, sem querer ceder ao absurdo
daquela proposição, Áurea passou a indagar uma porção de coisas,
quem faria o café pela manhã, quem olharia por Sílvio, quem auxiliaria
Clara nos bordados, etc. Esta não encontrava nada para dizer, cabeça
baixa, mordendo os lábios. Julgando-se vitoriosa, Áurea passou a
multiplicar as ocasiões em que fatalmente seria necessária. Em todas
elas encontrava ocasião de justificar a amiga, achando que ela não
tinha nascido para serviços tão pesados, que nem sequer tinha
costume de lidar com estas coisas. Clara sentia o coração despedaçado
ante tão grande humildade. Nem um só instante ela pensou em si
própria, no que lhe faltaria, mas apenas nos encargos que deixaria
para os outros e nos serviços que não poderia mais cumprir. Quando
terminou, Clara alinhavou alguns motivos sem interesse, a cabeça
voltada para que Áurea não percebesse sua emoção. Mas a sua voz era
trêmula, velada. Áurea percebeu nitidamente que ela mentia. O único
motivo real era aquele homem que dormia no quarto. Tentou abordar
o assunto, mas compreendeu que Clara o evitava. E Áurea só não viu
que ela o evitava como um doente evita revolver a própria chaga.
Levantou-se, pálida, sem saber se ainda devia ou não continuar o seu
trabalho. Clara acrescentou nesse momento que no dia seguinte
ajustariam contas, pois decerto ela iria ter necessidade de dinheiro.
Sim, necessidade ela iria ter, mas não permitiria que lhe fizessem esse
supremo ultraje. Não deixaria que pagassem sua amizade com
dinheiro, não macularia desse modo o seu sacrifício. Não queria coisa
alguma, não se importava com recompensa de nenhuma espécie.
Sairia de manso, para que ninguém a visse. Mas aí ela se lembrou de
Sílvio, e uma dor aguda trespassou-lhe o coração. Que diria ele quando
não a encontrasse mais? Estava certa de que o rapaz ignorava tudo,
que semelhante combinação se processara longe dos seus olhos. E,
detendo-se de novo, Áurea fixou o retrato que tinha diante de si.
Lembrava-se de quando ele era pequeno e ainda precisava de todos os
seus cuidados. Descendo mais profundamente nesse passado que
constituía toda a sua história, reviu a noite em que Clara fora bater à
sua porta, trazendo o pequeno enrolado num cobertor de lã cor-de-
rosa. “Áurea, preciso que você me ajude, que tome conta desta criança
até eu voltar.” Tinham sido colegas, conheciam-se desde a infância. Na
rua, Áurea apontava aos pais a beleza de Clara. Admirava-a em tudo,
achava-a perfeita. Recapitulando esses episódios do passado, ela se
lembrava de como Clara era diferente naquela época, magra, os olhos
abertos à flor da pele. Nessa noite longínqua, tomara o pequeno sem
hesitar e levara-o junto à luz. “Meu Deus, nunca vi nada assim!”,
exclamara, extasiada ante aquela pequena face translúcida. E sentira
desde aquele momento que não teria outro destino senão o de cuidar
daquela criança. Clara partira, mas sua viagem não fora longa. Quando
regressou, Áurea não teve coragem para abandonar o menino. Clara
pedira então que ela mesma cuidasse de Sílvio, pois não sentia
nenhum interesse por ele, absorvida em negra melancolia. E assim o
pequeno tinha crescido a seu lado. Fora ela quem cuidara dele nos
períodos de doença, quem lhe ensinara a dar os primeiros passos, a
pronunciar as primeiras palavras, que o levara pela primeira vez à
escola. Era através dela que ele tinha aberto os olhos para o mundo. E
por causa do pequeno ela aceitara todo o encargo da casa, e até mesmo
a obrigação de servir às pessoas que o cercavam. Por sua causa as
penas eram fáceis de suportar. O seu amor não conhecia limites, era
uma entrega absoluta, total, um mergulho no profundo abismo do
esquecimento de si mesma. O que lhe era tão doloroso naquele
instante é que voltasse a existir depois de tantos anos de silêncio, que a
afastassem tão brutalmente do objeto da sua adoração, que a
mutilassem daquele modo. Já não estava habituada a pedir para seu
próprio uso, não sabia nem sequer como viver. E Áurea não via mais o
retrato, os olhos inundados de lágrimas. A brisa agitava as peças de
roupa abandonadas sobre a cama. Uma poeira rosada e tênue
denunciava a madrugada próxima. Um galo cantou ao longe. Ela
voltou a trabalhar lentamente, enchendo a mala tom os objetos que
sobravam. Não queria que o dia ainda a apanhasse naquela casa. Fugia
como se tivesse cometido uma falta.

— Mas não é possível, mãe. Áurea não pode ir embora assim!

Estavam no quarto que lhe pertencera, olhando a cama


cuidadosamente coberta por um lençol. Clara contara tudo ao filho,
sem omitir nenhuma circunstância. E apesar dele ter corrido ao quarto
de Áurea, de contemplar os móveis nus, tão irreais na forte claridade
da manhã, não podia acreditar no que acontecera. Havia naquilo um
absurdo que o impedia de aceitar os fatos com simplicidade.
Entretanto, como Clara erguesse os ombros e fosse colocar-se junto à
janela, compreendeu que a mãe nada mais tinha a dizer e que a partida
de Áurea era um fato irremediável. Sentou-se na cama, alisando o
lençol gelado. Pela primeira vez reparou como eram humildes os
móveis que compunham aquele aposento, móveis que, no entanto,
estava habituado a ver desde criança. E, assim como sentiu naquele
instante a pobreza que o cercava, lembrou-se de vários fatos a que
antes não dera nenhuma importância, mas aos quais a imagem de
Áurea estava indissoluvelmente ligada. Reviu cenas antigas, em que a
maltratara ou a desprezara, com essa ingênua crueldade das crianças;
ouviu de novo sua voz, com a mesma terna inflexão que sempre usava
quando se dirigia a ele; e finalmente viu desfilar a seus olhos
momentos em que se poupara, em que recusara a Áurea uma ou outra
palavra de consolo, pecados de omissão que costumam ferir tão mais
fundo do que atos cometidos. Aquela rápida alucinação fê-lo olhar
para o lençol que escondia o colchão nu, como se contemplasse a cama
de alguém que tivesse acabado de morrer. Seu coração se tornou
pesado, seus olhos se encheram de lágrimas. Sílvio compreendeu
então que era aquele o modo por que costumamos perder os seres a
quem mais amamos, sem termos tido tempo para dizer as palavras que
devíamos ou sem poder demonstrar os sentimentos que realmente
existem no fundo do nosso coração. Tudo deverá permanecer para
trás, mergulhado nesse irremediável silêncio, enquanto a vida
prossegue na triste atmosfera de recriminações que não se desfazem,
de prantos que não se esgotam, de mal-entendidos que nunca mais
cessarão de alongar sobre nós a sua sombra de remorso. Imóvel, olhos
cerrados, ele esperava que sua emoção passasse. Mas a dor persistia,
como se um espinho penetrasse lentamente na sua carne. Urgia fazer
qualquer coisa, escapar àquela fatalidade que ia absorvendo devagar
os acontecimentos. Mas apesar da sua intenção Sílvio não se movia,
incapaz de saber ao certo o que deveria fazer. Reabriu os olhos e viu
pela janela aberta o céu intensamente azul. Sua impressão de morte
tornou-se mais aguda, dir-se-ia que alguém desertara realmente
daquele quarto. No entanto era apenas uma pessoa que se tinha ido
sem se despedir, mas que ele ainda podia encontrar, reconhecer e
restabelecer assim a antiga atmosfera de carinho e compreensão. Ele
repetia isto para si próprio, tentando dissolver a escura impressão que
aquele ambiente lhe causava. Apesar de tudo, sua experiência se
alargava cada vez mais, forçando-o a descer a um desses súbitos,
enormes e inextinguíveis vácuos que deixam após a morte, não os
seres a quem cercamos com o nosso amor, mas aqueles que usamos
até às derradeiras fibras do sofrimento, cuja máscara de dor
esculpimos com a garra dos agravos quotidianos e que só no último
instante, no limiar da agonia, reconhecemos como um ser
insubstituível em nossa vida. E Sílvio compreendia que isto era
causado por essa cegueira criada pelo hábito, por essa indiferença que
no correr da vida destrói tudo o que nos pertence — seres, coisas,
recordações que são devoradas pela insondável voragem das horas,
gestos, signos que só se agitam ainda à nossa lembrança a fim de
desvendar o abismo de tantas injustiças cometidas, de tantos consolos
negados, de tanto amor inutilizado.

Clara estava de costas, as mãos pousadas no rebordo da janela.


Foi esta a primeira imagem familiar que o chamou à realidade.
Devagar ia se dissipando aquela vaga de inverossímil e os objetos
regressavam à sua fria natureza habitual. Sílvio avançou alguns passos
e distinguiu lá fora as árvores que se moviam ao sol. A essa luz matinal
o mundo parecia mais nítido. Neste momento Clara se voltou e
contemplou o filho com ar inquieto. Ele fitou-a também e disse para si
mesmo que era ela quem não devia ter permitido que Áurea partisse.
Não era possível que ela tivesse esquecido tudo o que devia àquela leal
companheira. Fitou-a de novo, tentando descobrir alguma coisa na sua
fisionomia. Clara suportou aquele exame de cabeça erguida, e Sílvio
sentiu que aquele acontecimento a fizera sofrer tanto como a ele
próprio. Abandonando o quarto, tomou a decisão de procurar Áurea
naquele dia mesmo. Sabia que ela se achava em casa de uma tia, a
mesma em cuja porta Clara fora bater anos atrás. Explicaria que não
tinha sabido de nada e que jamais permitiria que ela se afastasse. Clara
caminhava a seu lado, mergulhada em pensamentos de idêntica
natureza. Assim chegaram à sala. àquela hora do dia adormecida sob
pesada quietude. E Sílvio, fitando a mãe, uma vez mais, sentiu-se
estranhamente solidário com ela — solidário como se um perigo
comum os ameaçasse.

Apesar dos seus propósitos, Sílvio não foi procurar Áurea


naquele dia. No fundo da sua consciência sabia que era um fato
consumado. Enquanto aquele homem estivesse ali, teria de ser assim,
tratava-se de alguma coisa vital para ele. Não adiantava fazer protestos
a Áurea, ela não regressaria àquela casa. Entretanto, procurou
manifestar sua oposição de diferentes modos. Primeiro, pelo silêncio
em que se conservou durante o jantar, a cabeça baixa, indiferente
como se estivesse completamente sozinho na sala. Mesmo assim,
porém, não se sentia muito à vontade, desgostoso com aquele
procedimento e sabendo que só agia de semelhante modo porque não
tinha ido visitar Áurea. À medida que fazia tais verificações, tornava-se
mais inquieto, e, em vez de atenuar sua oposição, fortificava-a,
apoiando por meio de significativos sorrisos as raras e ácidas
observações de Clara. Todo o jantar decorreu neste ambiente de
constrangimento. Nunca os minutos pareceram mais longos àquelas
três pessoas, nem mais nítido e irritante o ruído compassado dos
talheres. Jaques comia vagarosamente, tossindo para disfarçar o mal-
estar e seguindo com olhar inquieto os movimentos de Sílvio. Irritado,
este se detinha, a faca tremendo nas mãos. Jaques voltava a cabeça
apressadamente, olhando para o fundo da sala. Só agora compreendia
que tinha comprometido a partida de maneira irremediável. Todos o
acusavam, através de palavras ou de gestos que feriam como pontas
agudas. Fora um erro elementar, mas já tinha avançado muito para
voltar atrás. E, depois, quem sabe se realmente não conseguiria
equilibrar as finanças da casa? Sem dúvida, não fora este o único
motivo que o levara a precipitar a partida de Áurea; consigo mesmo
julgara que isto tornasse o ambiente mais leve e facilitasse assim a
conquista daquelas amizades que lhe tinham sido subtraídas. Mas,
agora, não era difícil verificar que só conseguira fomentar a má
vontade existente contra ele. Naquele momento eram dois inimigos
que tinha diante de si. E por que, que fizera ele, com que direito o
tratavam daquele modo? Olhava para o prato, sem conseguir evitar
que uma nuvem escura lhe empanasse os olhos. Nunca se sentira tão
miserável, tão só, tão necessitado da indulgência dos outros. Nem
mesmo Clara lhe dirigia palavra. Apenas uma ou outra vez lhe estendia
um prato ou fazia uma tola observação a respeito da comida. Nessas
ocasiões, Jaques ousava fitá-la e dizia então a si mesmo que talvez
tudo aquilo não existisse e que semelhante situação não passasse de
mais uma criação do seu espírito. Seria fácil romper o silêncio e
estabelecer de novo uma corrente de intimidade. Lançava duas ou três
frases banais, esperando que alguém o auxiliasse. Clara fazia um
enorme esforço sobre si mesma e respondia por um intraduzível
monossílabo. Cheio de confusão, Jaques voltava ao silêncio primitivo.
Assim decorreu todo o jantar.

Os dias se arrastavam, longos e cruéis. Ele os passava quase


inteiros sentado à sombra do pé de acácias, folheando jornais velhos
ou torneando miúdos objetos de madeira. Para isto arranjara um velho
canivete que mandara amolar de novo, e dividira em pequenos
pedaços algumas das tábuas compradas para restaurar a grade do
jardim. De longe, Clara via o trabalho e não dizia nada. Sentia-se
irritada, humilhada com aquela decadência que se acelerava com o
correr dos dias. Quando o sol se escondia e a temperatura baixava,
Jaques guardava os objetos numa caixa da madeira, ocultava-a sob o
banco e encaminhava-se para casa. Uma tarde, como ele se recolhesse
mais cedo, Clara foi até ao banco e puxou a caixa para fora. O que a
movia era simples curiosidade; entretanto, ante aqueles grosseiros
dados e cubos de madeira, torneados com evidente esforço, não pôde
deixar de se comover. Fechou a caixa, os olhos úmidos de lágrimas. Às
vezes, no momento em que ele subia a escada, ela o esperava no alto.
Só em vê-lo o seu coração se confrangia, pois Jaques envelhecera
ainda mais nestes últimos tempos. Usava uma boina de lã vermelha
para se cobrir do sol ou do sereno, e um “cache-nez” encardido em
torno do pescoço.

Examinando-o enquanto ele subia, Clara não podia acreditar


que fosse aquele o homem a quem tanto amara. Apesar da sua
piedade, nada encontrava para lhe dizer. Além disso Jaques escutava-a
sempre de um modo hostil, adivinhando essa piedade que o
humilhava. Dos tempos idos, era este resto de orgulho o único traço
que ele conservava. Imóvel, Clara comparava as duas imagens. O
contraste era chocante, dir-se-ia que um mal interior havia consumido
rapidamente a criatura que agora tinha diante dos olhos. Não existia
motivo plausível para tão grande decadência. Certa vez, vendo-o
passar junto dela, Clara pressentiu o mistério dessas almas que
agonizam sem achar lenitivo, desamparadas do mundo exterior e de
toda possibilidade de socorro, despidas da ilusão que as alimentou
durante uma existência inteira. E não raro, depois de meditar
longamente sobre essa transformação, Clara se levantava e ia ao
espelho verificar sua própria fisionomia. Era indubitável que também
se tinha alterado muito, estava longe de ser a mesma pessoa,
engordara, seus olhos eram menos brilhantes, adquirira rugas em
torno das pálpebras. Mas ainda era possível reconhecer quem ela fora,
através dos cabelos negros e desse sorriso que conservara todo o
perfume da mocidade. Era evidente que não fora devorada por uma
chama interior, como no caso de Jaques. Também este, às vezes,
comparava-se a Clara. Via-a deter-se ante o espelho, ajeitar os cabelos,
mover-se de um modo lento, consciente desses derradeiros clarões da
juventude. Então um sombrio furor se apossava do seu coração. E, se
antes ele cuidava pouco da sua pessoa, exagerava agora, num descaso
que evidenciava bem a extensão do seu desespero. Andava com roupas
sujas, unhas grandes, a barba sempre por fazer. Adotara
permanentemente o capote surrado e, à luz do sol, sentado sob a
grande acácia florida, apresentava uma silhueta inquietante. Clara não
suportava aquele desmantelo, aconselhava-o, queria obrigá-lo a
abandonar o capote. Ele se defendia raivosamente, dizendo que
ninguém tinha nada com aquilo. Ela acabara por se cansar e propusera
que dormissem em camas separadas. Jaques ergueu os ombros, sem
nada responder. O lugar em que devia dormir lhe era completamente
indiferente. E Clara passara para uma cama estreita, colocada no outro
extremo do quarto. Na primeira noite Jaques brincara, perguntando
por que ela não colocava a cama no corredor, a fim de ficar mais longe
ainda. Apesar do tom, ela observou que sua voz tremia. Antigamente
conversavam sempre no momento de se deitarem; ele falava dos seus
planos e ela se queixava da vida. Agora mal trocavam uma ou outra
palavra ou então se recolhiam ao leito em completo silêncio. Deitada,
Clara tinha nítida intuição do drama daquele homem. “Meu Deus”,
pensava, “é impossível continuarmos.” Jaques tossia e se revolvia
durante todo o tempo. A cama, de madeira frágil, estalava. Ele se
levantava e ia se colocar junto à janela. Uma estrela solitária brilhava
no alto. Do lugar em que estava, Clara via o vulto debruçado no escuro,
costas arqueadas. Aquela visão causava-lhe um repentino e intenso
remorso. “Jaques”, costumava dizer, “cuidado com o frio.” Ele se
voltava e, no escuro, olhava-a com tal rancor que ela não tinha
coragem para dizer mais nada. Ao amanhecer, quando ele se sentava
na cama e procurava esmorecidamente o chinelo, ela sentia que o
marido reunia todas as suas forças para enfrentar mais aquele dia. E
ela tremia, ante aquele inferno que seu olhar revelava.

Quanto a Sílvio, mal se detinha em casa. Mas às vezes,


regressando altas horas da noite, sentia uma surda pancada sobre o
coração, avistando à janela o vulto do pai. Jaques, entretanto, fingia
não vê-lo e se refugiava na sombra. Às refeições, nunca se falavam. Um
abismo de incompreensão se abrira entre eles. E ambos tinham
consciência de que era irremediável, que jamais poderiam vencer
aquele constrangimento.

10

Conforme Clara previra, a retirada de Áurea não adiantou nada


à economia da casa. Ao contrário, sozinha para atender às numerosas
encomendas, retardava-se, arrematava mal o serviço, perdia fregueses.
Muitos já tinham vindo buscar suas peças de linho, com desculpas em
que ela não acreditava. Outros começavam a se queixar dos preços, e
amigos bem-intencionados avisaram-na de que já existia na cidade,
junto à estrada do Areal, quem bordasse tão bem quanto ela. Clara
desesperava-se, pedia prazos mais dilatados, multiplicava as vigílias.
Tudo em vão, pois o trabalho não avançava e era de qualidade
visivelmente medíocre. Além disso, quase não lhe sobrava tempo para
o resto dos afazeres. Na cozinha a vasilha suja aumentava, as refeições
eram feitas às pressas, improvisadas e mal-cuidadas. Sílvio andava
com rasgões nas camisas, e a roupa usada se amontoava no quarto
vazio de Áurea. Clara às vezes ia até lá, a fim de experimentar se tinha
forças para iniciar a tarefa, mas recuava assustada, sem coragem para
ir mais longe. Um dia em que, exausta, ela se deixara cair desanimada
no banco da cozinha, Jaques apareceu com um envelope nas mãos.

É a conta da farmácia — disse ele com voz trêmula — e o homem


insiste em receber.

– Que posso eu fazer? — indagou Clara, ríspida, sem nem sequer


estender a mão para apanhar o envelope.

Jaques permaneceu com o papel entre os dedos, contemplando-


a. Clara tinha os cabelos despenteados e o rosto sujo de carvão.

– Em todo caso... — começou Jaques.

– Meu Deus — atalhou ela com violência —, diga a este homem o


que quiser, contanto que se vá embora.

Jaques se afastou, depois de fitá-la com um daqueles olhares


enigmáticos que usava ultimamente. Clara, irritada, passou o avental
pelo rosto, imaginando que um dia lhe contaria o que outrora havia se
passado com o farmacêutico. “Sim”, disse consigo mesma, “por que
não fazê-lo sofrer com a revelação desse fato remoto?” Mas dominou
esse impulso mesquinho e levantou-se para arrumar os pratos na
prateleira. “A que estado desci”, continuou pensando. “Outrora não me
lembraria de feri-lo desse modo.” Lembrou-se então do tempo em que
desejara fugir e, olhando para a cozinha estreita, apertada e escura
como uma prisão, sentiu invadi-la o mesmo desesperado desejo de
desaparecer, de esquecer sua vida atual como quem vira a página de
um livro. Ainda agora a pergunta que surgia no seu espírito era a
mesma que a assaltara há tantos anos atrás: seria sempre assim,
jamais conseguiria escapar daquelas paredes que a oprimiam? E,
passado tanto tempo, ainda não conseguira entrever nenhuma luz no
futuro. Então, abalada por um sopro de revolta, Clara abandonou os
pratos sob a torneira aberta. Que tinha feito para merecer tão
medíocre destino? Imóvel, o coração batendo acelerado, esperou que
aquela tormenta passasse. Depois de algum tempo, como descesse à
sua consciência uma paz melancólica e pesada como chumbo, voltou a
trabalhar morosamente, olhos secos e ardentes.

Foi num estado idêntico que Sílvio a encontrou dias depois. Ao


vê-la assim, os braços torneados pela espuma, uma súbita palidez se
espalhou no seu rosto.

– Mãe, é preciso fazermos alguma coisa.

Ela se deteve, movendo a cabeça com indiferença. Ficaram em


silêncio, escutando a água que jorrava da torneira. Lá dentro soou a
tosse inquieta de Jaques. Clara, que voltou a esfregar a louça, parou
novamente e fitou o filho nos olhos. Ele estremeceu e Clara,
enxugando as mãos no avental, foi sentar-se desanimada no banco de
madeira. Neste momento, Sílvio tirou um envelope do bolso.

– É a conta da farmácia — disse.

E, como Clara o fitasse com indisfarçável repugnância, Sílvio


narrou o encontro que tivera momentos antes. O homem lhe
interceptara os passos e pedira para ele avisar à mãe que não havia
pressa, mandara cobrar por simples formalidade. Ela era uma freguesa
antiga, em quem tinha a maior confiança. Tendo acabado de repetir as
palavras do farmacêutico, Sílvio concluiu afirmando que se tratava de
um homem sincero e que parecia realmente disposto a esperar. Clara
não respondeu coisa alguma. Havia pressentido uma ameaça qualquer
naquela insistência. Outrora, aquele tipo nem sequer ousaria se
aproximar da sua casa. Mas as coisas haviam mudado tanto que ele já
a importunara com a mesma conta repetidas vezes, e até interceptava
Sílvio na rua. Decerto antigamente ela não recorria tantas vezes à sua
farmácia; agora Jaques estava sempre precisando de medicamentos
novos e ela não sabia a quem recorrer. Clara tomou finalmente a carta
e colocou-a fechada sobre a mesa da cozinha. Não precisava abri-la,
devia ser igual á que Jaques trouxera dias antes.

– Você vai sair hoje à noite? — perguntou ao filho.

– Vou sim — respondeu ele. — Por quê?

Clara ia responder, hesitou e acabou por erguer simplesmente


os ombros. Sílvio voltou à sala e ela se entregou de novo ao seu penoso
serviço.

Não que a rua o atraísse de um modo particular, mas habituara-


se a viver nela mais do que em casa. Era o único lugar em que
conseguia esquecer os problemas que tanto o preocupavam. Para ele já
constituía um vício freqüentar aquela roda da estação em que Chico
brilhava como figura principal. Depois, quando o grupo se dispersava,
encaminhava-se para o Areai ou em direção à casa de Esperança.
Ultimamente, porém, era raro procurar esta última, abandonava-a aos
poucos, insensível às suas cenas de desespero. Aliás, Esperança já
compreendera que não devia esperar mais nada. Sempre que se
aproximava de Sílvio, era para desagradá-lo. Nenhum dos seus gestos
eram oportunos, suas palavras tinham o dom de provocar nele uma
incontida irritação. Ela percebera afinal que Sílvio a desprezava, e isto
a humilhava fundamente. À força de ensaiar o que deveria lhe dizer,
atrapalhava-se, perdia o controle das frases e terminava debulhada em
lágrimas. Longe dele, sentia-se perdida num oceano de escura
melancolia; perto, achava-se infeliz e miserável. Apesar da sua
experiência não ser muito profunda, sentira que tinha descido a esse
estado de degradação em que nada mais é permitido àquele que ama
senão adorar em silêncio; fora desta escravidão, seus gestos eram
sempre ridículos, suas palavras falsas. Cansada deste inútil tormento,
ela própria suplicou a Sílvio que não aparecesse mais. Ele obedeceu,
com um suspiro de alívio. Mas soube que ela indagava sempre da sua
saúde, que muitas vezes rondava até alta noite na esperança de
encontrá-lo, que já chegara até às proximidades da sua casa. Queria
vê-lo, nem que fosse de longe. Essa fidelidade provocava sua vaidade e
irritava-o ao mesmo tempo. Mas no fim de algum tempo já perdera
esse fútil orgulho e se ofendia se alguém tocava em tal assunto. O
nome de Esperança diminuiu finalmente e penetrou nesse terreno de
esquecimento, para tantos mil vezes pior do que a morte. Um dia,
apesar de tudo, soube que ela se tinha mudado para outra cidade.
Atacado de repentina nostalgia, resolveu passar em frente à sua casa:
estava fechada, e um papelão preso por um barbante voava ao vento.
Sílvio sentiu o coração cerrado, lembrando-se da primeira vez em que
viera àquela casa. Como tudo passava depressa! Lembrou-se do modo
por que sofria naquele tempo, com a imagem de Diana sempre
presente ao pensamento. Tanto tempo perdido por uma miragem! E,
abalado por essas recordações, continuou a passar pela porta de
Esperança durante dois ou três dias seguidos. Mas acabou cansado,
mudou definitivamente de caminho e nunca mais se lembrou da sua
primeira amante.

A mulher do Areal absorvia-o. Nela, encontrava agora qualquer


coisa que a tornava mais bela e mais forte naquele fundo de corrupção
em que vegetava. Trabalhado por essa vida de facilidades, Sílvio
adquiria requintes, tornava-se exigente, emprestava-se ares
conhecedores, excessivos para sua idade. No fundo, tudo aquilo o
repugnava. Mas, sem apoio e incapaz de discernir qual a origem real
dos seus males, persistia naquela vida, imaginando que acabaria por se
acomodar. Entretanto, quase sempre não conseguia vencer sua
impaciência e repelia Lina, com um cansaço que parecia mergulhá-lo
numa poeira cor de cinza. Ela ria dessas coisas que não compreendia.
“Meu Deus, como você é tolo!”, dizia. Sílvio fitava-a sem responder,
tentando em vão descobrir a sombra de um tormento no seu rosto sem
nuvens. Na verdade Lina não conseguia justificar aquele desespero
que parecia acompanhá-lo em todos os gestos, mesmo nos mais
simples, naqueles que os outros levavam a efeito sem hesitação. Como
ao pai, qualquer coisa interior parecia devorá-lo. Exausta desses
esforços inúteis, ela confessava que Sílvio lhe causava medo. Ele ria, a
fim de tranqüilizá-la, mas no íntimo sentia que Lina tinha razão e que
a torturava inutilmente. Regressando cheio de tristeza da sua casa, ele
dizia consigo próprio: “É que eu não consigo estimar este gênero de
vida.” E durante alguns dias cessava de procurá-la. Apesar disto, com
o correr do tempo, a inquietação voltava a agitar-lhe o espírito. Tudo
lhe parecia odioso e vazio, as pessoas sem nenhum interesse. Era inútil
caminhar ou tentar se absorver nalgum trabalho; o mundo parecia
contaminado por um tédio invencível. Farto de remoer os próprios
pensamentos, voltava a procurar Lina. Mas antes mesmo de penetrar
na sala já sabia que não iria encontrar o que procurava. Minutos
depois, abraçado a ela, aspirando o perfume de jasmim dos seus
cabelos, suspeitava de que jamais acharia o segredo da sua
tranqüilidade. Fechava os olhos, apertava-a mais fortemente,
esforçando-se por esquecer esses tristes pensamentos. Sem encontrar
meios de fugir a esta obsessão, procurava viver uma outra vida e
misturar-se às coisas simples. Aproveitando suas dilatadas folgas,
organizava passeios idênticos aos que outrora realizara com Diana.
Lina enchia um guardanapo de doces e sanduíches, amarrava um
lenço de ramagens no pescoço, e saíam à procura de uma sombra
protetora. Quando a encontravam, saudavam-na com gritos de júbilo.
Enquanto Sílvio dobrava o paletó para usá-lo como travesseiro, ela
estendia uma toalha no chão e dispunha cuidadosamente a comida
que trouxera. Sílvio, deitado, observava seus movimentos sem
naturalidade. Apesar da sua juventude, Lina destoava do ambiente.
Havia na sua fisionomia algo de irremediavelmente dissoluto. Seus
gestos lentos, seu olhar sem vivacidade, demonstravam de modo
suficiente que ela só fazia aquilo para agradar ao rapaz. A natureza
causava-lhe um insuportável aborrecimento. Acabava por se atirar de
bruços ao lado do companheiro, seguindo as formigas que se agitavam
em torno de migalhas esparsas pelo chão. As pálpebras pesavam-lhe e
em breve ressonava livremente. Olhando-a, Sílvio sentia que
realmente ela nascera para se corromper, que esse era seu inevitável
destino, que assim seria até a morte. Mas, se examinasse bem,
descobriria certo ar de inocência vagando sobre sua pálida fisionomia.
No regresso Lina pendurava-se nele, alegando que estava morta de
cansaço. Sílvio procurava estradas mais desertas, temendo encontrar
conhecidos. Se o vissem, ninguém se enganaria com a classe da
mulher que estava a seu lado. Lina era dessas criaturas que se revelam
imediatamente, cujos gestos e movimentos são impregnados pela
consciência da vida que escolheram. Algumas vezes iam também até
ao leito da estrada de ferro, sentavam-se no alto do barranco, à espera
do trem. Animais pastavam nos campos escuros. O trem aproximava-
se rapidamente e passava junto ao barranco, expelindo enormes jatos
de fumo. Tudo parecia estremecer naquele instante. Lina agitava as
mãos, dando adeus às pessoas que viajavam. E, como estes, faziam
outros passeios, sempre em silêncio. Sílvio acabou por se cansar
daquela passividade, abandonou as caminhadas, tornou-se mais
sombrio ainda. Não deixava de procurar Lina, mas atormentava-a
como sempre. Ela se desmanchava em pranto, pedindo que ele a
deixasse, que não suportava mais aquilo.

Voltando para casa, os pensamentos de Sílvio eram turvos.


Sentia-se dono de uma força enorme, mas sem utilidade. Aos seus
olhos o mundo era um deserto. Lembrava-se de Diana e sentia-se
tomado de uma repentina saudade da sua voz, dos casos que ela
contava do Rio, da sua companhia. Que estaria ela fazendo, ainda se
lembraria dele? Ao abrir a porta, via sempre um vulto que se
esgueirava, evidentemente fugindo a um encontro. Reconhecia o pai,
pelo seu andar vacilante. Um sentimento estranho se derramava na
sua alma, forte como um corrosivo. Tudo o que procurava esquecer
com tanto afinco voltava de um só jato à sua consciência. Intimamente
comparava a dissipação da sua vida com os acontecimentos de casa e
sentia que ambos os fatos estavam misteriosamente ligados, que um
era conseqüência do outro — ou melhor, que um se erguia contra o
outro, como uma arma mortal brandida no silêncio.
11

Fazia um calor intenso e as vidraças flamejavam. Através da


porta aberta Clara via a paisagem completamente imóvel e o céu sem
nuvens, de um azul intenso e fulgurante. O almoço terminara há
pouco, e ela acumulava diante de si algumas peças de linho ainda por
medir. Há muito que perdera aquela antiga energia e trabalhava com
esforço, suspirando e olhando a cada instante para o trecho da estrada
que a porta aberta recortava. A ausência de Áurea se fazia sentir cada
vez mais fortemente. “Não posso mais”, pensava Clara desenrolando a
fita métrica, “esta vida acabará me matando.” Ia prosseguir o trabalho,
quando ouvia a voz de Jaques discutindo com alguém do lado de fora.
Clara prestou atenção durante algum tempo, surpreendida. Ninguém
procurava Jaques, ele não falava com nenhum vizinho. Já meditara
muitas vezes sobre esta estranha atmosfera que o envolvia, afastando-
o dos outros como se a solidão fosse o único elemento em que pudesse
respirar. Mas com o tempo ela se habituara a vê-lo sempre mudo,
incapaz de conservar amigos e indiferente a tudo que o cercava.
Esforçando-se por perceber de quem era a voz que falava com Jaques,
percebeu que o estranho se despedia; pouco depois ouviu passos e o
marido surgiu no limiar.
– Quem era? — perguntou ela voltando a medir o linho.

O farmacêutico — respondeu Jaques se aproximando.

Ela abandonou a peça e ergueu a cabeça.

– Quem? — tornou a perguntar.

– Aquele homem. Não sei por que se mostra tão insolente.

– Você não devia discutir com ele! — bradou Clara, exaltada.


Jaques olhou-a, estupefato.

– Por quê? Já reparei que você parece ter medo dele.

– Eu? — exclamou abandonando o trabalho e com a violência de


quem repele um insulto.

Jaques ergueu os ombros, sem responder. Clara voltou


lentamente à sua tarefa. Mas agora desenrolava as peças, desatenta,
suas mãos tremiam. Um desejo cruel latejava no fundo do seu coração:
era a mesma vontade estranha que já sentira um dia, de confessar tudo
ao marido. Por que poupá-lo, por que não devolver tudo o que ele já
lhe fizera sofrer? Continha-se a custo, desdobrando os tecidos
nervosamente. Gotas de suor brilhavam na sua testa. Jaques tossiu ao
seu lado. Aquilo aumentou a sua irritação, abandonou o linho e
ocultou o rosto entre as mãos.

– Que foi? Está sentindo alguma coisa? — indagou o homem,


inquieto.
– Não! Não! — murmurou ela surdamente. — Não estou
sentindo nada!

Mas uma onda de fel parecia ter inundado a sua alma. Devagar,
lábios contraídos como para reter aquelas palavras envenenadas que
teimavam em subir do fundo do seu coração, ela se afastou e foi cair
numa cadeira junto à janela. E como Jaques se aproximasse,
insistindo em saber o que se passava, deixou escapar tudo finalmente,
olhos fechados, como quem cede a uma vertigem. Ele escutava-a sem
ousar interrompê-la, suspenso às suas palavras, atônito e
desamparado. Quando Clara terminou, ele baixou a cabeça, sempre
em silêncio. Mas a uma exclamação da mulher, aflita e imperiosa,
respondeu num tom vago:

– Não sei o que pensar, Clara. Você fez mal em ter ido à casa
desse homem.

E num tom mais baixo, suspeitando coisas que decerto jamais


haviam se passado:

– Aliás eu já desconfiara disto.

Ela abandonou a cadeira, pronta a se defender. Mas suas


palavras eram mornas, como se ela própria não acreditasse nelas ou
não desejasse que alcançassem o fim visado. Se Jaques fosse menos
ingênuo, compreenderia que Clara usava muito pouco calor na sua
defesa para ser tão culpada quanto desejava fazer supor. Agora ela
caminhava de um lado a outro, e a cada um desses movimentos sentia
crescer no espírito do homem a sombra da dúvida. Mas era evidente
que tinha consciência do seu procedimento e achava-o indigno, se bem
que esta crueldade a embriagasse, arrastando-a como uma força
obscura. Quando afinal se deteve, ele moveu lentamente a cabeça:

– Mas… com aquele homem!

Ela compreendeu que ele não acreditava inteiramente na sua


história. Essa impossibilidade de feri-lo transtornou-a. Incapaz de se
conter, explodiu um jato de palavras duras, acusando-o de faltas que
estavam há muito sepultadas nas cinzas do seu coração. E como o
homem não se defendesse, atordoado com aquele furor que não
conseguia explicar e nem conter, pôs-se a invectivá-lo, indagando que
esperava da parte dela, se não estava satisfeito, se desejava humilhá-la
ainda mais. Jaques, ousando responder por meio de dois ou três
monossílabos, fê-la perder a cabeça completamente, acusando-o sem
piedade por todas as suas fraquezas e deficiências, relembrando, numa
raiva sempre crescente, vários episódios da sua vida passada.
Enquanto falava, passeava diante dele, agitando as mãos de um modo
frenético. Através do seu desespero isto lhe dava uma noção da sua
própria imagem, desatinada e vulgar. Sofria, mas, tendo ido longe
demais para recuar, prosseguia nessa acusação que rebentava após
tantos anos de silêncio. Pálido, Jaques contemplava-a como se a visse
pela primeira vez. Quando afinal ela se calou, ele disse simplesmente:

– Mas neste caso por que foi que você não ficou com ele?
Clara sentiu-se perdida e imaginou que aquele homem
escarnecia dela. Ele descera tanto na sua consideração que aquilo era
para ela uma insuportável humilhação.

– Não fiquei — disse ela vibrante de raiva —, mas posso ficar


agora.

–Mas… Clara!

– Quem sabe você pensa que todos os homens me desprezam


como você me desprezou?

Como resposta Jaques ergueu mais uma vez os ombros e


colocou sobre a mesa a nova conta que o farmacêutico lhe entregara.
Vendo o marido se afastar e compreendendo que desta vez ele havia
ganho a partida, uma nuvem escura passou pelos seus olhos e,
arrebatando o papel, exclamou:

– Você verá!

Tirou o avental rapidamente, deixando-o estupefato no meio da


sala. Ela não sabia ao certo o que iria fazer. Nem um só minuto a
imagem do farmacêutico lhe passou pela cabeça. Só Jaques, só o
rancor contra ele enchia o seu coração, transbordava da sua
consciência e cegava-lhe a vista. Via os reflexos da rua chisparem aos
seus olhos e caminhava mais depressa, entregue àquele impulso como
a um vento tempestuoso. Achou a farmácia vazia; tudo parecia
adormecido numa estranha quietude. Um raio de sol arrancava
reflexos afogueados das bolas de vidro. Clara bateu duas vezes com o
nó dos dedos contra o balcão, mas ninguém apareceu. Impaciente,
respiração forçada, resolveu penetrar no recinto das consultas. Mas aí
também não havia ninguém. Em vez de acalmá-la, este transtorno
excitou-a mais. Não podia regressar sem humilhar Jaques de modo
vital. Cega, as têmporas latejando com violência, dirigiu-se para os
fundos da casa. Uma porta aberta conduzia ao terreiro. Dali, ela
distinguiu o farmacêutico, que se movia no interior de um barracão,
entre vidros e garrafas vazias. Avançou resoluta, as mãos sobre os
olhos por causa do sol forte. Ouvindo passos, o homem se voltou, um
vidro nas mãos. Ao vê-la, recuou ainda mais para a obscuridade, num
inconsciente movimento de fuga. Dir-se-ia que o assustava, aquela
mulher que tanto desejara. Clara reuniu todas as suas forças e
precipitou-se ousadamente para o barracão.

– O senhor... — começou.

Mas toda aquela energia acumulada se esgotou de repente e ela


se apoiou, vencida, a um tonel vazio. Só aí o homem avançou, trêmulo,
quase dobrado em dois:

– A senhora me desculpe, mas eu precisava tanto do dinheiro!

Desta vez foi ela quem recuou e, tateando na obscuridade, suas


mãos tocaram qualquer coisa líquida. Todo o barracão recendia a
formol. Fazendo um derradeiro esforço sobre si mesma, ela baixou os
olhos e disse:
– Não foi por isto que eu vim.

Petrificado, o farmacêutico parecia não ter compreendido suas


palavras. Ela fitou-o de novo, desta vez nos olhos. Então, adivinhando,
ele pôs-se a tremer. Por detrás, no oco de um estreito orifício por onde
a claridade entrava, flutuava uma grossa teia de aranha.

– Mas, quer dizer. .. — conseguiu articular o homem.

– Sim — repetiu ela em voz baixa —, mas pelo amor de Deus,


não me olhe deste modo.

Incapaz de fazer um só gesto, ele sentia a razão fugir-lhe. Num


esforço desesperado, vencendo a distância que o separava de Clara,
lançou-se sobre a sua mão, cobrindo-a de beijos vorazes.

– Até que enfim — murmurou —, até que enfim chegou este


momento. Nem posso acreditar que seja possível!

Curvado sobre o tonel, ele roçava as faces nas mãos de Clara, em


doidas carícias. Imobilizada por uma repugnância que só agora se
manifestava claramente, ela examinava aquela cabeça de grossos
cabelos encaracolados, já grisalhos. Seus sentimentos eram idênticos
aos de outrora. Não podendo suportar mais aqueles moles lábios de
fogo, Clara retirou a mão e empurrou-o. Ele se apoiou pesadamente
contra a barrica. Na semi-obscuridade seus olhos ardiam, vermelhos e
inquietos.

– Não fuja, você não pode fugir desta vez! — exclamou,


ameaçador. Clara voltou a cabeça, temendo uma vertigem. Uma onda
de ar puro entrou pela porta aberta. Como o homem tentasse avançar
ela repeliu-o de novo, procurando fugir rente à parede. Mas o
farmacêutico interceptou-lhe os passos, abraçou-a, lutando
avidamente por lhe alcançar os lábios. Dentro dela tudo estava alerta
como na expectativa de um mortal perigo. Lutaram durante alguns
minutos, ofegantes. De repente, porém, nas trevas que se agitavam no
fundo da sua consciência projetou-se nitidamente a imagem de
Jaques. E ela cedeu, olhos fechados, a fronte molhada de suor. Na
escuridão sentiu aquela boca sugá-la com diabólico furor. Mas, não
podendo suportar a revolta da sua natureza, esmurrou-o em plena
face, procurando libertar-se a qualquer preço. Afinal o abraço relaxou
e ela se sentiu livre. No silêncio que tombou bruscamente, Clara ouviu
o homem que arquejava.

– Se me detesta assim por que é que veio me procurar? —


indagou ele com um rancor que não se dissimulava. — Vamos, fale,
não é verdade que me detesta? Não foi somente por causa da conta
que veio aqui?

– É verdade sim — respondeu ela limpando o rosto e com os


olhos cheios de lágrimas —, eu o detesto, eu o acho um miserável, uma
coisa sem nome!

– Cale-se! — gritou o homem.

Ela avançou, disposta a se empenhar numa nova luta, se preciso


fosse.

– Deixe-me passar!

– Você ainda há de se ver comigo! — ameaçou o farmacêutico,


deixando contudo a passagem livre.

Ela atravessou a farmácia correndo e ganhou a rua. O verde das


árvores lhe pareceu mais nítido, o azul mais profundo, o ar mais puro.
Respirou com força, sentindo que havia atirado fora um peso enorme.
No alto, urubus voavam placidamente no céu sem nuvens.

Quando entrou, não encontrou Jaques na sala. Estava disposta a


não dar nenhuma desculpa e deixar assim que ele acreditasse que a
sua ameaça fora cumprida. Mas Jaques não aparecia, uma perfeita
tranqüilidade reinava na casa. Ela imaginou de repente que ele podia
ter partido e dirigiu-se ao cabide, a fim de verificar se o seu capote
estava lá. Sim, lá estavam o capote e o chapéu. Voltou a sentar-se, um
lápis na mão a fim de copiar o risco de um bordado. Assim
permaneceu durante algum tempo, aparentemente absorvida no seu
trabalho. Ouvia-se lá fora o ranger metálico da roda de um amolador.
Mas dentro em pouco esse ruído cessou e o silêncio tornou-se
absoluto. Clara continuou inclinada, riscando o papel de seda. Súbito,
abandonou o lápis e escutou. Nenhum som vinha do interior, a
quietude era realmente impressionante. Então, com um gesto brusco
ela afastou as folhas de papel e dirigiu-se para o quarto. Ia verificar se
Jaques estava lá. O aposento, de janelas fechadas, estava mergulhado
em completa obscuridade. No fundo, sobre a cama desfeita, distinguiu
o vulto do marido, envolto num cobertor. Era estranho que se
agasalhasse com um calor daqueles. Imaginando que estivesse doente
ela ia se adiantar, quando ele tossiu, como se a avisasse de que não
havia nada. Aí ela se dirigiu tranqüilamente à cômoda, fingindo que
tinha vindo buscar uma peça de roupa. Remexeu um minuto na
gaveta, inclinada, o coração batendo fortemente, Jaques continuava
em silêncio. Fechou de novo a gaveta e saiu. Dali foi direto à sala,
debruçando-se novamente sobre o bordado. Só agora compreendia
que perdera toda a razão, ao acusá-lo de modo tão vulgar. E,
lembrando-se da cena, a vergonha queimava-lhe o rosto. Sílvio entrou
minutos depois. Ela notou sua palidez, seu ar cansado e doentio, e
perguntou se ele estava sentindo alguma coisa.

— Não é nada — respondeu o rapaz, sentando-se a seu lado.

Clara percebeu que ele tinha necessidade da sua companhia.


Naquele instante eles se encontravam uma vez mais, pois também ela
necessitava da presença de alguém. Apesar de tudo permaneciam
calados, incapazes de vencer a barreira dos próprios pensarnentos.
Sílvio seguia o movimento das mãos de sua mãe, mas na realidade seu
espírito estava longe. Lembrava-se da sua vida nestes últimos tempos,
e estas imagens, que não o abandonavam nunca, causavam-lhe uma
tristeza pesada como um remorso. Adivinhando a natureza daquela
melancolia, Clara tocou precisamente no assunto:
– Sílvio, que tem feito você ultimamente?

E como o rapaz se assustasse, um ligeiro brilho de desconfiança


no olhar, ajuntou:

– É preciso tomar cuidado com a sua saúde.

Ele nada respondeu, desviando o olhar. Clara pôs-se então a dar


uma série de conselhos, num tom sereno e cheio de indulgência.
Sentia-se a cada palavra que ela não desejava feri-lo e que até
examinava suas faltas do alto, considerando-as próprias de todo rapaz
daquela idade. Sílvio escutava-a com interesse, esperando ouvir
alguma coisa que diminuísse sua inquietação. Nada, entretanto,
conseguia apaziguar os escrúpulos que o atormentavam. Sem dúvida
Clara pretendia tranqüilizá-lo, fazê-lo esquecer faltas que todos
cometiam. Mas Sílvio não prestava mais atenção ao sentido das suas
frases e sim no tom sereno, cheio de concentrada ternura, com que ela
se dirigia a ele. Já não descobria aquela antiga aspereza que durante
toda a sua infância os conservara separados. Sim, mais uma vez
repetia a si próprio que tudo se tinha transformado. Não existia
realmente uma aventura em que ambos estavam comprometidos?
Quantas vezes, ao regressar durante a noite, não a encontrava
acordada, esperando-o apenas para saber se ele desejava alguma
coisa? Além disso, Sílvio tinha certeza de que Clara não ignorava que
espécie de vida ele levava, onde gastava a maior parte do tempo e todo
o seu dinheiro. Pelo seu modo de falar, pela maneira velada de aludir a
certos fatos, era evidente que ela sabia como o filho se degradava. E,
muitas vezes, não era a própria Clara quem lhe fornecia os meios?
Sentado junto à mãe, percebia que era a primeira vez em que colocava
os fatos sob aspecto tão duro. Era a primeira vez que a palavra
“degradar” vinha ao seu pensamento. Mas não era a consciência disto
que o atormentava, não era o horror por essas noites de lúcido delírio,
em que ele sentia a alma violentada e o coração pesado de um remorso
que o envenenava dias seguidos? Não precisava reavivar todos os
detalhes para ter uma perfeita visão da verdade. Não precisava reviver
o que tinham sido estes últimos dias, sua complacência com os
programas organizados por Chico, suas derradeiras noitadas com
Lina, o rompimento final. Certa vez Chico se aproximara dele e lhe
revelara a existência de “um clube, um salão fechado”, como se fazia
nas capitais, para o uso de amigos e iniciados. Como Silvio o olhasse,
incrédulo e espantado, ele se desculpava dizendo que eram os recursos
que os rapazes de boa família do interior podiam usar, a fim de não
sucumbirem de aborrecimento. Pois decerto Sílvio não esperava que
eles fossem procurar as mesmas mulheres que os caixeiros-viajantes,
as que mantinham porta aberta a todos os vagabundos. Sílvio
concordara e fora com ele a essa casa retirada, onde conhecera duas ou
três mulheres repelentes. Chico afirmava que eram as melhores que
encontrara. Na companhia de alguns amigos, havia batido todas as
cidades dos arredores. Desde o princípio aquela devassidão organizada
repugnou a Sílvio. Mas cedeu, voltando não uma vez, mas várias, com
a tenacidade de um daqueles rapazolas ricos, filhos de comerciantes e
fazendeiros, que encontrava lá todas as noites. Às vezes Chico aparecia
com gente de fora, rapazes dos arredores, que tinham vindo conhecer
a maravilha. Seus gritos, suas risadas falsamente alegres, sua
grosseria, davam àquelas tristes orgias um aspecto mais melancólico
ainda. Em silêncio Sílvio reparava como Chico se expandia, como
parecia adaptado ao ambiente. Nenhuma nuvem ensombrava-lhe a
consciência. Incapaz de participar do frenesi geral, Sílvio invejava a
tranqüilidade do companheiro e sua ascendência sobre os outros.
Algumas vezes, vendo-o surgir desalinhado, olhos brilhando de não
sabia que cruel satisfação, imaginava que não era somente o prazer
daquela espécie, mas que também todos os outros lhe estavam
vedados. Havia na sua natureza um elemento rebelde, sombrio e
recalcado, que o impedia de se misturar àquelas manifestações. Chico
não o esquecia nunca, vinha incentivá-lo a todo instante, descrevendo
com exuberância a alegria que retirava daquelas coisas. Quando se
abaixava, Sílvio via nitidamente a cicatriz vermelha que ele trazia
impressa no pescoço. Estremecia, lembrando-se de Jaques. Sem
prestar atenção às palavras do companheiro, procurava imaginar
como seria o homem que tinha vergastado o filho daquela maneira. De
vez em quando, abraçado a uma dessas mulheres, Chico olhava-o de
modo singular. À saída, adiantando-se com Sílvio, avisava-o para que
não fosse tão reservado, as mulheres podiam desconfiar: “De quê?”,
indagava Sílvio, indiferente a essas admoestações. E, como Chico
erguesse os ombros, ria e prometia se emendar,

Clara continuava a trabalhar, quase esquecida da presença de


Sílvio. Preocupava-a o silêncio que reinava na casa e de minuto a
minuto, com um suspiro, detinha-se e olhava para o fundo do
corredor. Nesses momentos, seu olhar encontrava novamente o do
filho. Percebendo que ele tinha acompanhado o seu movimento, ela
estremecia.

— Que foi? — indagou Sílvio numa dessas vezes.

Ela não respondeu, fingindo-se absorvida no seu trabalho. O


vento da noite agitava docemente as folhas de papel de seda. E como
Sílvio se despedisse, alegando súbito cansaço, compreendeu que
durante todo este tempo temera que o filho viesse a perceber alguma
coisa que ela desejava ocultar. Então sentiu pesar mais fortemente
aquele silêncio onde só palpitava o seu coração, pesado de uma falta
que ainda não reconhecera.
12
No silêncio em que repousava a casa inteira, soaram de repente
dois ou três gritos roucos, inarticulados. Clara, que já ia adormecendo,
despertou assustada, sentou-se na cama e acendeu a luz. Percebeu
então que era Jaques quem gritara, debatendo-se num pesadelo.
Levantou-se para acordá-lo e, ao se aproximar, notou que o seu rosto
estava extraordinariamente pálido e a fronte molhada de suor.
Sacudiu-o, chamando-o repetidas vezes. Depois de se debater durante
algum tempo, inconsciente, Jaques entreabriu os olhos, fitando-a com
os pupilas injetadas de sangue. Vendo Clara, sentou-se
vagarosamente, sem compreender ainda o que se tinha passado. Como
a mulher perguntasse se ele estava sentindo alguma coisa, murmurou
duas ou três palavras incompreensíveis, voltando o rosto para o lado
da parede. Ela suspirou e tornou a se deitar, convencida de que o
marido acabaria por imitá-la.

De olhos fechados, Jaques escutou o estalido do comutador. De


novo a tranqüilidade desceu sobre a casa. Agora ele ouvia o manso
ressonar de Clara e mais ao longe, no fundo da sala, o ruído de um rato
roendo madeira. Circunvagou o olhar lentamente, procurando
reconhecer as coisas que o cercavam; e na obscuridade distinguiu,
primeiro, a cabeceira alta da cama, depois o espelho ao fundo e
finalmente as vidraças da janela. Aquelas silhuetas familiares
tranqüilizaram-no um pouco. Tudo estaria perfeito se não fosse aquela
coisa impetuosa e obscura que ainda vibrava dentro dele, agitando-o
até às derradeiras fibras da carne. Dir-se-ia que era um terror enorme,
sobrenatural, que a sua vontade já não conseguia mais dominar. Sim,
por mais esforços que fizesse, a noção dessa ameaça estava
irremediavelmente presente à sua consciência. Tudo se originara
naquele estranho pesadelo, e era inútil tentar escapar à obstinação
dessa imagem terrível. Ele sabia que era a morte, que era a força com
que ela se tinha instalado na sua carne que o sacudia, que o deixava
assim de olhos abertos na escuridão. Uma ou duas vezes Jaques
passou a mão pelo rosto, procurando desvanecer aquele sentimento.
Mas, com a testa molhada de suor, foi obrigado a reconhecer que não
se tratava de uma simples impressão; apalpando lentamente os
braços, constatou que nem mesmo poderia acreditar que essa
inquietação viesse de um prolongamento da abafada atmosfera do
pesadelo dentro da realidade. O que ele sentia era a vertigem oriunda
de uma revelação instantânea, de um aprofundamento repentino e
fulminante na essência de uma verdade que costumamos repetir a vida
inteira, sem no entanto absorvê-la como um fato capital.

Silenciosamente, apoiando-se nas bordas da cama para não cair,


Jaques se levantou, dando alguns passos no escuro. Que fazer? Devia
chamar Clara ou esperar o dia? Apesar de tudo ele ainda queria viver.
Um homem não podia terminar assim, como um animal sem defesa,
olhos voltados para a terra. Era inacreditável que tudo tivesse passado
tão depressa — sua adolescência, mocidade, dias de esperança, sua
vida finalmente — e que essa existência, como um caminho aberto no
escuro, fosse terminar assim, de modo tão estúpido. Tratava-se apenas
de um pesadelo, era evidente que nada daquilo resistia a um exame
mais forte. Quantas vezes não sonhara de maneira idêntica? E,
enquanto procurava a porta, Jaques tentou reconstituir a visão que
tanto o abalara.

Vira-se sob uma noite escura, andando numa estrada deserta.


Tinha o rosto molhado de suor, pois há muito que estava caminhando.
No momento em que dobrava uma curva, dois indivíduos saltaram
inesperadamente sobre ele, passando-lhe em torno do pescoço uma
corda grossa. Apesar dos seus gritos, o laço se estreitava cada vez
mais; ele sentia fugir-lhe a vida, como se uma força enorme sugasse
sua alma para o abismo. Fora neste instante que Clara o acordara. No
princípio ele não percebera bem sua fisionomia, misturando-a a restos
de pesadelo que flutuavam ainda na sua consciência. Mas afinal,
reconhecendo a voz familiar, sentiu que aquele sonho eqüivalia a uma
espécie de aviso e que realmente sua morte seria um acontecimento
próximo.

Uma tábua estalou, um rato fugiu na obscuridade. Jaques se


deteve, temendo que Clara tivesse despertado. Mas, como tudo
continuasse tranqüilo, abriu a porta, ganhou o corredor e finalmente
achou-se na sala, onde acendeu a luz. A claridade restabeleceu a
atmosfera normal; os objetos familiares surgiram a seus olhos,
evidenciando essa vida humilde, quotidiana, onde pesadelos e
sensações violentas não conseguem se fixar. Um pequeno calor, como
um princípio de vida, renasceu no coração de Jaques. Ao mesmo
tempo sentiu fome, e encaminhou-se para o armário. Ao abrir a porta,
sentiu bater-lhe no rosto o cheiro forte da comida armazenada, o que
lhe restituiu definitivamente algumas parcelas da serenidade perdida.
Tudo ali era sólido, tranqüilo, familiar. Cortou algumas fatias de carne
fria, colocou-as entre duas fatias de pão, indo comer junto à janela.
Mas, debruçando-se sobre a escuridão, sentiu voltar a seu espírito a
mesma intensa sensação de irrealidade. Opresso, desamparado,
percebeu que todo o ambiente familiar desaparecia, deixando-o de
novo na atmosfera que vislumbrara em sonho. Já agora não se tratava
mais de um simples pressentimento, Jaques sabia realmente que tinha
atravessado determinadas fronteiras e que jamais voltaria a viver
simplesmente entre os homens. Uma força brutal o havia precipitado
além dos limites da vida. E, se ele não podia compreender ainda que
muitas vezes aceitamos a morte antes que a consciência se aperceba
disto, se não podia reconhecer ainda qual era a hóspede que naquela
noite abrigara no fundo do coração, ao menos podia sentir que a
existência comum se tinha estabelecido noutro plano e que ele vagava
como uma sombra entre os objetos quotidianos. Poderia tocar uma a
uma aquelas formas que tinha amado e usado, jamais conseguiria
restabelecer um contato direto e permanente — seus olhos já estavam
voltados para além e a visão da eternidade já se misturava às coisas
habituais.

E de repente o sofrimento de Jaques atingiu tal intensidade que


ele teve de abandonar aquela sala. Assim é que se dirigiu à porta,
abriu-a e ganhou o jardim. Como era hábito seu durante o dia,
encaminhou-se para o pé de acácias e sentou-se no banco de madeira,
àquela hora úmido de orvalho. Um doce perfume impregnava a
atmosfera. Então Jaques disse a si próprio que estava ali como já o
tinha feito tantas vezes, que todos aqueles sentimentos não passavam
de um excesso da sua sensibilidade atormentada e que decerto tudo
desapareceria com a luz do sol. Nada o condenava, era um ser vivo
entre homens vivos. Tentou aspirar o frio perfume da noite,
levantando os olhos para o céu onde brilhavam raras estrelas.
Lembrou-se do seu tempo de aventuras, quando acampava às margens
dos rios, uma pequena fogueira acesa perto, a fim de afugentar os
animais. Como gostava então de escutar os estalidos das brasas e o
surdo gorgolejar da água fervendo nas latas suspensas dos tripés!
Neste momento, como abaixasse os olhos, deparou com uma janela
iluminada e reconheceu que era a do seu próprio quarto. Clara devia
estar acordada e observava-o. Jaques estremeceu violentamente e,
ante aquela janela misteriosamente acesa, compreendeu com terrível
nitidez que alguma coisa criminosa se realizava contra ele. Levantou-
se, olhos fixos na luz que a distância empalidecia, e onde uma sombra
parecia à espreita. Decerto, ele não compreendeu o que se passava,
mas levou as mãos ao peito, tão nítida era sua impressão de que o
sangue jorrava através de uma enorme ferida aberta.

Sim, na verdade ela o espreitava, oculta atrás da cortina. Tinha


visto quando ele se levantara, apalpando os móveis, depois a porta que
se abria e o rumor na sala de jantar. Mais tarde ouvira ranger a porta
da entrada e o rumor dos passos de Jaques na areia do jardim. Então
não pudera mais se conter e saltara fora da cama, premindo
nervosamente o comutador. Quem sabe ele não estaria sentindo
alguma coisa? Já conhecia bastante o seu orgulho, para calcular que
mesmo em caso de necessidade não a chamaria depois do que se tinha
passado. Na claridade avermelhada que de repente inundou o quarto,
Clara escutou novamente, esperando ouvir um gemido, um ruído
qualquer que evidenciasse suas suspeitas. “Não tenho razão para me
assustar deste modo”, pensou ela. E apesar de tudo suas têmporas
batiam apressadas, um suor frio molhava- lhe a testa. Depois de
alguns minutos, como tudo continuasse num opressivo silêncio,
encaminhou-se para a janela e procurou distinguir lá fora o vulto do
marido. No princípio nada conseguiu, as trevas eram densas,
nenhuma estrela brilhava no céu. Mas devagar foi acostumando a vista
e afinal distinguiu ao longe uma figura que se movia na direção do pé
de acácias. Era ele, reconhecia-o pelo andar hesitante e a silhueta
curva. Durante algum tempo, inclinada, Clara esqueceu tudo,
inteiramente absorvida naquele exame. Dir-se-ia que dele dependia
alguma coisa vital para sua própria existência. Soprava um vento frio,
e ela sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Voltou-se,
apanhou um xale que estava atirado sobre uma cadeira e agasalhou-se.
No momento em que se inclinava de novo, calculou que Jaques podia
distingui- la do lado de fora e, dirigindo-se rapidamente para o
comutador, apagou a luz. Apalpando os móveis, encaminhou-se
novamente para o seu posto de observação. Agora sentia-se
plenamente segura, a mão no peitoril, por detrás da cortina. No alto, a
lua conseguiu romper penosamente uma cerrada massa de nuvens, e
uma claridade estranha, quase sobrenatural, banhou a paisagem
adormecida. Nesse instante ela percebeu Jaques completamente,
sentado sob as ramas da acacieira, de cabeça baixa como se estivesse
mergulhado em profundos pensamentos. Aquela visão não durou mais
de um segundo — e o jardim voltou à escuridão primitiva. Mas fora o
suficiente para que Clara compreendesse o que se passava. Deixou cair
lentamente a ponta da cortina e voltou à sua cama, o coração pesado
de remorso. “Que fiz eu”, disse ela para si mesma, atônita, sem
encontrar resposta, “como pude ser tão cruel para com este homem?”
E, apesar dos seus esforços, não conseguia apreender a importância do
que se tinha passado. Sentia apenas que um drama se achava em
desenvolvimento e que, consciente ou não, ela era um dos seus
personagens. “Não”, continuou ela consigo mesma, “não sou culpada
de coisa alguma. Mas não consigo reprimir essa inquietação, esse
remorso, como se devesse ter feito alguma coisa que não fiz.” E,
levantando-se de novo, Clara apertou o rosto entre as mãos. “Meus
Deus, qual é o limite do que devemos às pessoas? Como viver, sem
atentar contra os que nos rodeiam?” Sim, consciente ou não, ela agia
contra aquele homem e o ferira profundamente. Era inútil fugir a essa
opressiva descoberta, tudo o afirmava naquele quarto, o fugitivo brilho
das argolas de metal, a noite lá fora e o homem sentado sob a árvore. E
mais uma vez ela penetrou na essência de uma dessas verdades
fundamentais, numa dessas duas ou três leis que modelam para
sempre o destino das criaturas. Ao ver Jaques sozinho do lado de fora,
naquela atitude que exprimia tão surdo terror, compreendeu que
doloroso esforço exige essa luta pela vida — não a simples luta, mas
esse desesperado combate para subsistir, essa ânsia para não se abater
ante essa contínua e formidável correnteza que arrasta o homem para
a morte. Pois tudo o que existe está levantado contra ele e tenta
subvertê-lo nessa marcha para a destruição, onde tantos se perdem e
onde a maioria agoniza, semi-afogada, inconsciente desse destino que
lhe arrebata as mais lúcidas características de ser criado à semelhança
de Deus. Olhando pela janela, Clara compreendeu que aquele homem
a quem tanto amara, que enchera com a sua imagem tantos dias da
sua vida, não era mais senão uma vítima, um homem perdido,
destroço de uma existência naufragada. Como atingira aquele ponto,
como deixara se aniquilar de maneira tão lamentável, sem nenhuma
reação, sem nenhum grito de revolta? Que peso imenso fora este que
se abatera sobre ele? E, como se estivesse à cabeceira de um
agonizante, reviu vários trechos do seu passado, exumando da
memória o Jaques que vira outrora, sua voz, os atos e gestos que a
haviam levado a se unir a ele para sempre. Agora, comparando as duas
imagens, espantava-se daquela pretensão: como podiam duas pessoas
se unir para sempre, como podiam se garantir contra um sentimento
que não conseguia subsistir a esses embates da vida? Tudo é um jogo
cego e uma aventura sem probabilidades. Ela fechou os olhos na
escuridão e viu-o de novo — não a apagada e triste sombra humana
como a que estava lá fora — mas ainda moço, tal como no primeiro dia
em que se tinham encontrado. Fora numa dessas pequenas festas
familiares, uma das raras festas a que ela fora durante toda a sua vida.
Como fizesse muito calor na sala, refugiara-se na varanda, onde já se
achavam duas ou três pessoas em conversa. Jaques estava entre elas e
começou por lhe dirigir alguns galanteios. Ela respondeu, sem dar
entretanto muita importância ao fato. Não apreciava esses fúteis
elogios e sabia que eles eram imprescindíveis em festas como aquela.
Mas, em silêncio, reparou melhor no homem e sentiu que existia nele
qualquer coisa que a atraía. Quando os outros voltaram à sala,
pretextou cansaço e não os acompanhou. Continuou sentada, ouvindo
o que ele lhe dizia e, de olhos semicerrados, indagava a si mesma se
aquela voz quente, tão diferente das que estava habituada a ouvir, não
revelava uma alma mais viva, um coração menos mesquinho do que o
da maioria dos homens? Pelo menos era o primeiro que ousava se
aproximar assim e expor seus pensamentos, seus planos, suas idéias
em geral, transmitindo-as com tão seguro e nobre entusiasmo. Sim,
esta voz cheia de calor Clara a ouvia ainda, passados tantos anos; e a
essa súbita lembrança, tão viva ainda, sentia irromper na sua alma um
derradeiro clarão desse sentimento extinto, dessa admiração que a
transportara e a lançara nos braços de Jaques. Revia sua própria
imagem, sentada na varanda, enquanto a música soava no fundo. Uma
enorme serenidade parecia envolver a noite. Ela repetia a si própria
que era preciso romper aquele sortilégio e regressar ao salão, onde
decerto já teriam notado sua ausência. Mas não conseguia se mover,
presa àquela voz que despertava ecos tão profundos na sua
consciência. Quando ele acabou de falar, ela ousou fitá-lo — e só então
compreendeu quanto ele era belo, como seus olhos brilhavam, como
nele tudo resplandecia e surgia tocado de misterioso entusiasmo! Quis
levantar-se, alegando que tinha necessidade de voltar ao salão de
danças. Jaques a reteve e continuaram a conversar, até que soaram os
derradeiros acordes da música e os primeiros convidados se retiraram.
Quando se despediam, Jaques apanhou um botão de rosa e pediu que
ela o guardasse como lembrança. Acompanhou-a até perto de casa e
afinal se separaram, com a promessa de se encontrarem no dia
seguinte. No momento em que abria a porta, Clara reparou como as
estrelas brilhavam. Nunca se sentira tão feliz e nem achara o mundo
mais belo. Daí em diante se tinham encontrado sempre, até o dia do
casamento.

Eram estas as imagens que vinham ao pensamento de Clara,


sentada no escuro. A si própria, inutilmente, ela indagava agora como
tudo podia se ter modificado tanto. Lá fora uma rajada de vento frio
agitou as folhas. Ela percebeu o ruído da porta que se abria e recolheu-
se apressadamente sob as cobertas, temendo que Jaques a encontrasse
acordada. No entanto, de olhos abertos nas trevas, não podia deixar de
imaginar que tudo aquilo fora um sonho, uma simples miragem da sua
vida passada. A realidade era aquela que vivia agora. A existência
destrói vagarosamente todos os sentimentos, corrói as aspirações,
esmaga os impulsos mais nobres — nada subsiste da sua espantosa
voracidade. E era com o coração gelado, sem nenhum estremecimento
de revolta, que Clara assistia ao final daquela existência que outrora
estivera tão unida ao seu próprio destino.

13
Ao amanhecer, quando Clara se levantou, Jaques estava sentado
na borda da cama, olhando pela janela aberta. Ela notou sua intensa
palidez e perguntou, ligeiramente constrangida, se ele estava sentindo
alguma coisa. Jaques respondeu negativamente e, como Clara fizera
notar seu aspecto abatido, afirmou que era apenas conseqüência de
uma noite maldormida. Ela pensou então em aconselhá-lo a não sair,
mas como o visse examinar as paredes com ar de fadiga, sugeriu
exatamente o contrário, isto é, que talvez fosse bom ele dar uma volta
pelos arredores. Sem nenhuma impaciência ante essas contínuas
interpelações, com ar sombrio, onde era possível a olhos mais atentos
discernirem uma profunda humildade, Jaques respondeu que preferia
ficar onde estava, que a janela aberta lhe bastava para descansar das
paredes nuas do quarto. Esta atitude causou certo mal-estar a Clara.
Durante alguns segundos fitou-o com ar estranho, tentando descobrir
algo que aquele rosto cansado lhe ocultava. Mas afinal abandonou o
quarto, esforçando-se por não pensar mais nestas coisas.

Na sala, vendo a desordem que reinava, sentiu-se tomada de


repentina energia. Amarrou um lenço nos cabelos, atou um avental na
cintura e munindo-se de um espanador pôs-se a trabalhar, arrastando
os móveis para fora dos seus lugares. Há quantos anos não tinha
semelhante idéia? Como justificativa, lembrava-se de que era Áurea
quem se encarregava do serviço pesado. Agora, entretanto, notava
falhas que não vira antes, manchas que podiam ter sido retiradas, teias
de aranha, um mundo de pequenos afazeres domésticos a cumprir.
Quando Sílvio abriu a porta, encontrou a sala inteiramente
revolucionada.

– Que foi? — indagou ele, espantado.

– Nada — respondeu Clara rindo e esfregando um mármore


encardido —, levantei hoje com a mania da arrumação.

Ele contemplou-a durante algum tempo, esperando que Clara


adiantasse outros detalhes. Entretanto ela continuou o trabalho,
completamente indiferente.

– Você não quer me ajudar? — perguntou, aproveitando a pausa


para consertar o avental.

– Mas que vai haver aqui? Alguma novidade? — insistiu Sílvio.

– Meu Deus! — exclamou Clara —, então é preciso haver alguma


coisa para se limpar a casa?

– Como não é costume… — respondeu Sílvio, dispondo-se a


arrastar um dos móveis.

– Um dia sempre é dia — tomou Clara, rindo.

Sua atividade, apesar de tudo, não se deteve apenas naquele


setor. Arrumada a sala de jantar, dirigiu-se ao quarto de Áurea,
fechado desde que esta partira, abriu as janelas e iniciou idêntico
processo de limpeza. Sílvio, que ainda ali a acompanhava, exclamou:

– Pelo que vejo, temos hoje limpeza geral, não?

– Quero apenas aproveitar a disposição — explicou Clara,


sobraçando uma grossa trouxa de roupas usadas.

Sim, evidentemente Sílvio sentia que ela desejava aproveitar


aquela disposição, mas isto era exatamente o que não compreendia.
Aliás, olhando-a bem naquele instante, percebia que não era somente
naquele ponto, mas também em muitos outros, que se mostrava
deficiente o seu conhecimento de Clara. Já constatara isto uma vez e
agora compreendia que tal sentimento jamais seria alterado com o
correr do tempo. Via as ações, gestos que muitas vezes pressentia nela
apenas esboçados, ouvia palavras e até mesmo confissões que lhe
poderiam revelar muito daquela alma — e ainda ia mais longe, podia
sentir-se estranhamente solidário com ela, tal como acontecia nos
últimos tempos — mas saberia dessas correntes profundas que
ditavam esses gestos, dessas ambições secretas que orientam as
palavras e as confissões, desse mundo tumultuoso e brutal que existe
dentro dos seres e que quase sempre os governa como um senhor que
exigisse sacrifícios, oculto na sombra? A esta altura, apoiando-se na
cômoda que servira a Áurea, Sílvio sentiu uma desesperada sensação
de solidão. Clara estava de costas e o sol da manhã batia em cheio
sobre sua pessoa, iluminando-a. Em que outra ocasião poderia vê-la
tão bem? E, entretanto, nunca a mãe lhe parecera tão fechada no seu
mundo interior, tão inclinada ao impulso desse vento que vinha das
regiões mais íntimas da sua natureza e que talvez lhe fosse também
inteiramente desconhecida. Clara notou o silêncio do filho, pois
voltou-se de repente e, vendo-o mergulhado naquela meditação,
perguntou o que se passava.

– Nada — respondeu ele com um suspiro —, não estou pensando


em nada.

Clara continuou a trabalhar, mas agora seus gestos eram mais


vagarosos. Voltou a colocar todos os móveis nos seus primitivos
lugares e, lançando um último olhar ao quarto, fechou a porta. No
momento em que saíam, Sílvio indagou distraidamente:

– Quando é que Áurea voltará?

Ela estremeceu e respondeu com dificuldade:

– Não sei.

Desceram ao jardim, onde Clara resolveu podar alguns arbustos.


Justamente sob sua janela existia uma roseira coberta de ervas
daninhas. No momento em que se aproximavam dela, ouviram em
cima a tosse de Jaques. Clara se deteve, a tesoura nas mãos. Sílvio
fitou-a, e ela percebeu nitidamente uma acusação em seu olhar.
Abalou-a então um frêmito de revolta e, abandonando a tesoura sobre
o canteiro, exclamou:

– Não me olhe assim, pois não sou culpada de nada!


Sílvio continuava a examiná-la com evidente surpresa. Clara
voltou a apanhar a tesoura, dizendo em voz baixa:

– Por que é que você não vai até lá em cima? Talvez ele esteja
precisando de alguma coisa.

Sílvio sentiu que ela procurava se livrar da sua presença. E, sem


responder, dirigiu-se lentamente para dentro de casa. Clara
acompanhou-o com os olhos e depois escutou junto à janela, o coração
batendo fortemente. Durante algum tempo reinou perfeito silêncio, só
o vento agitava os galhos da roseira. Esta ligeira pausa pareceu a Clara
adquirir a extensão de um século. Afinal Sílvio surgiu de novo e, à sua
vista, ela compreendeu que alguma coisa de grave se tinha passado.

– Que foi? — indagou, abandonando novamente a roseira.

– Mãe, ele está muito mal! — respondeu Sílvio, intensamente


pálido.

Ela apertou-lhe o braço e disse simplesmente:

– Vamos!

Subiram de novo a pequena escada e se dirigiram ao quarto.


Jaques estava caído sobre os travesseiros, olhos fechados, a testa
molhada de suor. Clara aproximou-se decidida, tomando uma das
mãos do doente.

– Jaques — chamou.

Ele não respondeu e a mulher notou que sua presença nem


sequer fora percebida. Um surdo temor estreitou-lhe o coração.

– Jaques! — repetiu, desta vez num tom mais incisivo.

O homem abriu finalmente os olhos e fitou-a, a expressão


distante como se não a reconhecesse.

– Jaques! Jaques! — exclamou ela desorientada, sentindo que


alguma coisa decisiva se passava.

Ele ergueu lentamente o braço e apontou para a gaveta da


cômoda. Ela se precipitou, lembrando-se das ampolas de nitrito de
amilo. Quebrou uma num lenço e entregou-o ao homem. Agora,
observando o resultado, sentia desfilar na sua consciência, com
inquietante nitidez, todos os seus atos daqueles últimos dias. “Meu
Deus, salvai-o!”, pensou, imaginando que tivesse chegado o instante
decisivo.

Junto dela, sem ousar fazer um gesto, Sílvio acompanhava a


cena, sem deixar escapar o menor detalhe. Dir-se-ia que aquela
imagem se transpunha inteira e com tremenda força na sua
consciência, modelando até os mais recuados cantos do seu espírito
com a obscura lição que encerrava. Pois, desse grupo em que se
comprimiam no mesmo amálgama de vida e morte os seres que o
haviam gerado, ele sentia elevar-se um supremo grito de dor ante a
inexorável cegueira humana, impassível ante essas forças secretas que
trabalham as almas ao longo de uma vida inteira, separando-as nas
menores coisas, corroendo-as, até colocá-las frente a frente como dois
inimigos. Também ele, vendo-os agora reunidos, perguntava a si
mesmo se não tinha havido um outro tempo, sentimentos diferentes,
uma compreensão mais íntima, qualquer coisa enfim que desmentisse
o tremendo fracasso daquele momento? “Não souberam perdoar”,
concluiu sem tirar os olhos do grupo. E imaginou que era só por isto
que nada tinham a oferecer um ao outro naquele minuto, porque
haviam se devorado sem conhecer a piedade, destruindo assim toda
possibilidade de compreensão e sobrevivência.

– Jaques! — repetiu Clara ainda uma vez, perdida, rompendo


outra ampola.

Lentamente o homem parecia melhorar, reabriu os olhos,


aspirando de novo o lenço que a mulher lhe oferecia.

– Sílvio — disse ela observando que não obtinha resultados


muito satisfatórios —, vá chamar um médico, depressa.

Ele saiu, sem saber ao certo para onde se dirigir.

O médico, um rapazola que começava a vida no lugar, de ar


estudioso e atento, depois de examinar o doente e indagar das
manifestações anteriores, concordou que se tratava de mais uma crise
de angina. Tomando o pulso do doente, porém, verificou sua
hipertensão e, ante a situação que considerava grave, disse que seria
preciso tentar uma sangria imediata. Para isto, entretanto, precisava
de alguém que o ajudasse. Clara, apesar de bastante nervosa,
prontificou-se a auxiliá-lo. Quanto a Sílvio, depois de oferecer
timidamente os seus serviços e vê-los recusados, saiu para a sala de
jantar, sem poder ocultar o alívio que sentia. Detestava a lida com
médicos, remédios e aparelhos de medicina: consigo mesmo não podia
esconder certa dose de incredulidade que surgia sempre nessas
ocasiões, e em todas as curas que tinha presenciado julgava pressentir
sempre uma força oculta, poderosa e maléfica, esforçando-se para
romper esse obstinado invólucro terrestre, violando a todo momento
sua integridade física através de chagas e arranhões, em que o sangue
parecia romper com um grito abafado de triunfo.

Sentou-se a um canto, procurando esperar com calma o


resultado da operação que se realizava no quarto. Viu Clara passar
com um recipiente de vidro nas mãos, ouviu a porta bater e depois o
silêncio que recaía sobre a casa. Um galo cantou no terreiro, e Sílvio
entreviu pela janela o sol violento que fazia arder as telhas vermelhas.
Cerrou os olhos, procurando examinar os acontecimentos, esperando
compreender melhor as desencontradas emoções que o assaltavam.
Apesar de procurar fixar a atenção na figura do pai, esforçando-se
como já fizera tantas vezes por perceber melhor os motivos que o
tinham feito agir na vida, uma idéia renitente se impunha, relegando
para o esquecimento a figura do homem que agonizava a poucos
passos de distância. Esta idéia fixa era a de Clara, do seu rosto
recoberto por súbita e indevassável melancolia, e sobretudo a dos seus
movimentos minutos antes, tão incompreensíveis aos olhos de Sílvio.
Realmente ali estava a casa arrumada, os móveis limpos, tudo o que
evidenciava de modo tão nítido sua estranha e incontrolada agitação
interior. E lentamente uma pergunta se impôs ao espírito de Sílvio:
não saberia ela, no momento em que iniciara aquela faina, do estado
de Jaques? Ou teria sido apenas pressentimento, um desses
maravilhosos pressentimentos femininos? Que se passara à noite por
detrás daquela porta fechada? Não, não tinha direito de aprofundar
semelhante questão. Mas, apesar dos seus esforços, a imagem de Clara
voltava continuamente ao seu espírito. Foi neste momento que ela
apareceu de novo, detendo-se hesitante no limiar da sala,
extraordinariamente pálida. Sílvio levantou-se e perguntou:

– Então?

– Está melhor — respondeu Clara devagar —, mas o médico


acha que não há esperança.

Enquanto falava, examinava o filho com visível desconfiança.


“Sim”, pensou Sílvio, correspondendo àquele olhar estranho, “não
posso e nem tenho o direito de pensar deste modo.” No entanto, não
conseguia desviar a vista, julgando vislumbrar no rosto da mãe uma
sombra de secreto pânico.

– Não me olhe assim — disse Clara de repente —, que há de


mais na minha fisionomia?

Sua voz era agressiva, diferente, como se exprimisse


sentimentos que ainda não tivessem aflorado inteiramente à sua
consciência. Sílvio baixou os olhos, mas era inútil ocultar que dentro
dele um mundo violento se agitava. Clara afastou-se de novo e foi se
colocar ante a janela, esperando que o médico a chamasse. Vendo-a de
costas, Sílvio sentiu subir-lhe ao espírito um sentimento idêntico a
tantos que experimentara na sua infância, em relação à mãe, uma
verdadeira onda de rancor que ameaçava tudo submergir. Não
compreendia aquela mulher, não podia amá-la, não conseguia ouvir
suas explicações sem uma invencível repugnância. Que fizera ela
daquele homem que agonizava no quarto? Quem era ele, que se tinha
passado, em que atmosfera de luta haviam destruído assim toda
possibilidade de amor? E a impressão de Sílvio foi tão forte que ele
pôs-se a caminhar pela sala, pálido, disposto a fugir daquela casa. Mas
nesse instante o médico chamou Clara de novo e ela correu a auxiliá-
lo. Sílvio deixou-se cair na cadeira, a cabeça entre as mãos. “Não”,
repetiu mais uma vez no seu desespero, “não devo pensar assim, isto
não são sentimentos normais.” E para serenar seu coração indagava a
si mesmo se não tinham chamado um médico para comprovar a
doença que extinguia aquela vida, se Jaques não tinha regressado
doente para a casa que abandonara há tanto tempo, se finalmente tudo
não fora tentado para salvá-lo. Mas, apesar destas idéias, outras se
insinuavam: sim, era verdade que ele voltara doente para junto da
família, mas em que época começara o mal, até que ponto teria ela
forças para liquidá-lo? E lembrava-se nitidamente da chegada do
homem, do seu vulto arrasado, do seu olhar desconfiado e humilde.
Como não percebera aquilo, como pudera estar cego àquele ponto? Ao
contrário, não se unira a Clara para vibrar-lhe o golpe decisivo?
Novamente a porta do quarto se abriu e Clara apareceu com o
recipiente de vidro cheio de sangue. Sua fisionomia estava tão alterada
que se tornara quase irreconhecível. Sílvio sentiu ganhá-lo uma
vertigem e fechou os olhos, ocultando depois o rosto entre as mãos. A
visão daquele sangue, entretanto, incrustou-se à sua consciência como
uma nódoa vermelha. Quando os passos de Clara se perderam no
fundo da casa, ele sentiu desfilar no seu pensamento várias imagens
dos últimos dias, algumas dotadas de sentido inteiramente novo, nuas,
terríveis sob a luz que agora as transfigurava. Lembrou- se das
facilidades que Clara lhe concedia, das quantias que lhe fornecera, dos
diálogos truncados no momento em que Jaques aparecia, de palavras
que ele próprio ousara dizer contra o pai. Sim, palavras que ousara. E
não tinha sido encorajado no seu movimento de revolta pelas
reticências de Clara, pelas suas alusões e sorrisos velados, por tudo
aquilo enfim que havia construído aquela engrenagem que devorava
Jaques? Não era a sua demissão da vida, não era a sua derrota que se
evidenciava agora? Se não estava ali a culpa, que era então a culpa?
Não há senão uma forma de pecado, a de não saber amar. Tudo o mais
deriva daí, como de uma fonte de sangue. Por momentos, sentindo
despenhar-se nesse abismo de tristes acusações, Sílvio imaginava que
estava exagerando os fatos, que afinal muito de tudo aquilo pertencia à
vida, era unicamente conseqüência dela. Mas o pânico voltava,
envolvendo-o cada vez mais naquela rede de dúvidas e questões que
não se esgotavam.

Quando Clara regressou, deteve-se diante do filho e lançou-lhe


um olhar furtivo. Ele recuou, como se temesse aquelas frias pupilas
que procuravam desvendá-lo. Sem dúvida Clara pressentiu o que se
passava, pois no seu rosto a sombra se tornou mais densa e ela se
afastou em silêncio, a passos lentos, como se um peso enorme tivesse
tombado sobre seus ombros. Vendo-a desaparecer na obscuridade do
corredor, Sílvio murmurou de novo, numa inútil violência: “Não é
possível, não é possível!” Mas não conseguia ocultar que alguma coisa
os havia separado, atirando-os com uma força enorme a distância
maior do que aquela que tinham conhecido outrora.
14
A sangria aliviou a hipertensão, mas o doente continuou
prostrado, a testa coberta de suor. No momento em que o médico se
retirava, Clara acompanhou-o até à porta.

– Então, doutor? — perguntou, examinando a fisionomia do


rapaz a fim de não perder nenhuma das suas manifestações.

– É grave — respondeu ele, apanhando o chapéu que tinha


deixado sobre uma cadeira. — Mas, se não sobrevier outra crise, ainda
será possível consertar as coisas.

Clara agradeceu e, depois de ouvir as instruções a seguir, abriu a


porta e deixou-o partir. A tarde caía e um vento ligeiro encrespava a
copa das árvores. Ela se demorou um, minuto olhando
pensativamente a rua e afinal, com um suspiro, fechou de novo a porta
e regressou ao quarto. Sobre a cômoda encontrou a caneta que o
médico possivelmente havia esquecido — e à vista deste objeto sentiu
um frêmito singular, lembrando-se daquela fisionomia franca, onde a
vida mal deixara traços da sua passagem. Na obscuridade, ouviu o
doente gemer. A atmosfera abafada recendia a nitrito de amilo. Aquele
cheiro enjoativo causou-lhe um ligeiro enjôo e ela voltou à porta,
chamando Sílvio. Ele se aproximou devagar, olhando-a sempre nos
olhos, como se temesse a revelação de uma desgraça.
— Sílvio — disse Clara —, não posso mais, fique junto ao doente
enquanto vou dar uma volta.

Ele entrou sem dizer nada. De pé, sem coragem para se


aproximar da cama, escutou os passos que se perdiam nas
profundezas da casa. Então, aproximou-se do vulto semi-oculto pelas
cobertas, e viu que ele estava de olhos fechados, insensível a todo
movimento que se processava em torno. Vendo aquele braço pálido e
descarnado, onde eram visíveis numerosas marcas de injeções, sentiu
no peito súbita pressão, como se fosse muito forte a onda de
sentimentos que afluísse ao seu coração. Todo o passado morria junto
àquela cama, os ressentimentos desapareciam, as palavras ásperas,
tudo enfim que os tinha separado tão violentamente — só existia
aquele destroço humano, aquele pobre homem a quem a ânsia de viver
havia usado até à destruição, aquele corpo martirizado na luta contra a
morte, cujo sangue dera nascimento a ele próprio e a quem negara, no
momento em que viera bater à sua porta. Sim, o que quer que Jaques
tivesse feito contra ele nada poderia se comparar ao seu gesto de
recusa. Sílvio sentia que esta idéia não o abandonaria nunca. Jamais se
esqueceria daquela cabeça inerte, da fronte molhada de suor, dos
cabelos brancos que se empastavam nela. “Meu pai”, murmurou ele
em voz baixa, sentando-se e pousando humildemente a mão sobre a
coberta. “Sim, meu pai”, repetiu, procurando em vão reconhecer a face
pálida. Seria possível que ele voltasse a abrir os olhos e que lhe
fornecesse uma oportunidade para tentar modificar a visão daquele
filho que lhe fora tão hostil? Mas a consciência de Jaques já devia estar
invadida pelas sombras da morte. E Sílvio, deslizando a mão sobre a
coberta, pousou-a devagar sobre os dedos afilados do homem. Naquele
momento ele sentiu uma força imensa, uma claridade enorme que
vencia as trevas do seu espírito e se impunha com luminosa
onipotência. Era um sentimento de densa repulsa por tudo que o tinha
cercado até agora, uma intensa aspiração a um bem supremo, a
qualquer coisa colocada acima das misérias humanas, acima da carne
que se decompõe, da lembrança que se corrompe e do remorso que
permanece, um verdadeiro e puro jato de amor, como jamais pudera
crer que lhe fosse possível sentir. “O amor existe”, pensou. “Apesar de
o terem banido deste mundo — pois é ele um dom das almas fortes —,
apesar do mundo sufocá-lo sob suas mesquinhas necessidades e
desconhecê-lo nessa obstinada falta de compreensão e sobretudo
nessa estranha fascinação pela morte — o amor existe e só a sua
consciência nos poderá salvar do desespero e da mútua destruição.
Decerto ele hoje está tão distante que o supomos uma miragem.
Muitas vezes atravessamos a vida inteira sem conhecê-lo. Mas eu sei
que ele existe e que da miséria dos homens faz alguma coisa mais
bela.”

De novo voltou a fixar a fronte pálida. Não só a fronte, mas todo


o rosto, que tantas vezes vira devorado por uma espécie de fogo
interior, parecia agora fortemente calcinado, como se finalmente esta
chama tivesse se libertado, destruindo tudo à sua passagem. Sílvio
desceu os olhos lentamente e encontrou os pés brancos, descansando
inúteis sobre as cobertas, pés que o haviam levado a tantos retiros de
aventuras, miserável testemunho que o acompanharia agora na sua
viagem para a sombra. E, realizando afinal a imagem completa do seu
fracasso, sentiu elevar-se no seu espírito, livre da pressão imposta pelo
próprio desenrolar da vida em comum, a figura total daquele homem
desconhecido, perguntou mais uma vez a si mesmo o que se tinha
passado outrora, em que Clara seria culpada e se ele, Sílvio, possuía o
direito de julgá-la. Foi nesse momento que a porta se abriu e Clara
apareceu no limiar.

– Está dormindo — disse Sílvio, levando um dedo aos lábios.

Na penumbra, sentiu que a mãe o examinava.

– Saí porque estava ficando enjoada com este cheiro de remédio


— explicou ela, afetando displicência.

E, como Sílvio permanecesse em silêncio, indagou, esforçando-


se para dar à voz o tom mais natural possível:

– Que fez você durante este tempo?

– Pensava — respondeu Sílvio distraidamente.

Então ela não pôde se conter e invectivou-o cheia de amargura:

– Sim, pensava que eu sou culpada, não é?

Sílvio fitou-a, assustado.


– Não, ao contrário.

– Sim — exclamou ela com violência —, bem sei que era sobre
isto que pensava, mas no entanto foi ele quem me abandonou. Se você
soubesse de tudo...

Sílvio levantou-se bruscamente, disposto a não ouvir e a poupar


assim o homem que agonizava.

— Não vejo necessidade... — começou.

Mas ainda uma vez ela tinha cedido a um daqueles impulsos que
a arrebatavam ultimamente e de que tanto se envergonhava mais
tarde.

– Sim, foi ele, apesar de me deixar com um filho pequeno nos


braços. Cheguei a ir procurá-lo, mas não adiantou nada.

Neste momento o doente gemeu e Clara deteve-se bruscamente.


O eco das suas palavras ainda pairava na atmosfera abafada do quarto.
Ela se aproximou da cama e viu Jaques levantado a meio, de olhos
sempre fechados, uma das mãos procurando aflitamente um apoio.

– Meu Deus! — exclamou Clara, precipitando-se.

Mas o doente havia tombado sobre os travesseiros. Teria ele


escutado o que ela dissera? Clara procurou reanimá-lo, levantando-lhe
a cabeça o mais possível. Entretanto, reconhecendo que nova crise se
aproximava, lembrou-se das recomendações do médico e disse a
Sílvio:
– Corra, vá chamar Áurea.

Durante todo este tempo ele permanecera de lado, sem coragem


para fazer um só movimento, olhos fixos no rosto da mãe.

Quando Áurea chegou, começava a escurecer completamente e


nuvens escuras, pesadas, acumulavam-se rapidamente no fundo do
horizonte. Como Jaques tivesse caído numa espécie de sonolência,
Clara se debruçara à janela, esperando a cada momento ver surgir sua
antiga companheira. Às vezes ouvia um rumor de folhas pisadas,
numa tosse seca, como se fosse alguém que se aproximasse — mas não
tardava a verificar que tinha sido apenas o vento, arrastando papéis
velhos na rua deserta. Passado algum tempo, entretanto, dois vultos
surgiram, nos quais ela reconheceu Áurea e Sílvio. Abriram a cancela e
atravessaram o jardim, conversando em voz baixa. Clara sentiu invadi-
la uma tranqüila alegria, misturada a certo sentimento de segurança
que a presença de Áurea sempre lhe transmitia. Foi recebê-la na sala,
um dedo nos lábios a fim de avisar que o marido dormia. Ao vê-la.
Áurea sentiu-se ligeiramente contrafeita. Seu olhar, sempre tão franco,
cobriu-se com uma rápida nuvem, para voltar a brilhar depois com a
mesma serenidade. Foi ela quem se precipitou nos braços de Clara,
abandonando sobre a mesa a pequena maleta que trouxera. Depois
das primeiras explicações, Áurea sentou-se num tamborete e olhou
vagarosamente a sala, como se procurasse reconhecer os objetos com
que lidara durante tantos anos. De vez em quando, como se acordasse,
e com estranha vivacidade, perguntava de novo pelo doente,
demonstrando profundo interesse pelos detalhes da moléstia. Depois
movia a cabeça devagar, e era visível no seu rosto uma piedade que
transfigurava completamente sua habitual expressão de ingenuidade.
Nestes momentos, olhando-a, Clara sentia-se tocada de ligeiro
remorso.

Diante delas, sobre a mesa, descansava a pequena maleta em


que Áurea guardava seus pobres objetos. A um certo momento, como
Jaques fizesse lá dentro um ruído qualquer, Clara se levantou e
convidou a recém-chegada a acompanhá-la. Áurea moveu vivamente a
cabeça e, como a outra insistisse, acabou confessando que não tinha
intenção de entrar no quarto de Jaques. E como Clara, espantada,
indagasse por que, ela abaixou os olhos e confessou humildemente que
não queria que ele a visse, pois sabia que Jaques não gostava dela e o
fato poderia levá-lo a sentir-se pior. Clara fitou-a de novo, e desta vez
não foi ligeiro remorso, mas um nítido sentimento de vergonha que a
assaltou. Mandou que Sílvio levasse a maleta para o quarto e em
silêncio dirigiu-se para os fundos da casa.

Sozinha, Áurea examinou de novo a sala que lhe era tão familiar.
A porta, batida pelo vento, estremecia em surdos solavancos. Ela
sentou-se com um suspiro, e foi nesta posição que Sílvio veio
encontrá-la, quando regressou à sala. Seus olhares se encontraram — e
ele compreendeu que as palavras eram inúteis, que não precisava
explicar nada do que havia se passado entre aquelas paredes. Áurea,
pela sua simples presença, havia dominado a situação e se apoderado
dos menores detalhes. Não era este um dos traços fundamentais da
sua natureza, esse dom de reter as pontas fugitivas dos
acontecimentos e trazê-los novamente à trilha natural? Não era ela
uma espécie de coordenadora do caos, um desses seres providenciais
junto de quem vão desaguar todas as vagas da discórdia, todas as
estéreis agitações que tremem no seio de tantas famílias como uma
corrente elétrica? Sim, ele não precisava informá-la de nada: sua
presença já valia por um ato de autoridade, e automaticamente todos
os mal-entendidos cessavam de existir. Era o que Sílvio pensava,
vendo-a tão tranqüilamente sentada sob a luz vermelha do abajur.
Seus gestos eram tão naturais, sua expressão tão serena, que nada
parecia se ter passado e ela própria jamais se afastado daquela casa.
Fundia-se perfeitamente no ambiente e não era possível compreendê-
lo sem sua modesta e elucidativa presença. Fora essa mesma espessa
sensação de tranqüilidade que assaltara Clara, ao vê-la do lado de fora.
E Sílvio, ainda surpreendido com essa repentina harmonia, com essa
estranha força que parecia diminuir e retirar toda a projeção hostil dos
fatos, fitava mais uma vez aqueles ombros fortes, quase masculinos, o
rosto grave, manchado de sardas, e as grossas tranças amarradas no
alto da cabeça, sem nenhuma preocupação de vaidade. Há quantos
anos a conhecia assim? Entre os privilégios de Áurea existia ainda o de
não envelhecer, sempre fora assim, esse ser sem graça, fanado,
inteiriço, fora do tempo como se estivesse além das contingências
terrenas. Vendo-a, ele admirava entretanto aquele tato que a fizera
recusar o convite de Clara para ir até ao quarto do doente. Esse
respeito, essa noção de sensibilidade alheia, esse pequeno traço, que
de um só golpe devolvia a Áurea toda a feminilidade que o físico não
lhe emprestava, estavam nitidamente impressos nos seus olhos
suaves, antigos, dotados de uma bondade que dissolvia todas as
asperezas de sua fisionomia.

Clara voltou pouco depois, alegando que o doente se queixava de


falta de ar. Tinha aberto a janela, mas realmente, a atmosfera era
abafada, o horizonte negro cortado de súbitos relâmpagos. O doente
gemia, ela não sabia o que fazer, talvez fosse melhor mandar chamar o
médico de novo. Sílvio percebeu que, sozinha, ela encontraria
facilmente uma solução para caso tão simples, mas que desde aquele
minuto já procurava se amparar em Áurea. Esta interveio,
naturalmente, dizendo que não havia necessidade de chamar ninguém,
que o melhor seria transportá-lo para outro quarto. E acrescentou que
em caso de necessidade poderiam recorrer ao farmacêutico do lado. A
essa proposição, Clara voltou-se com incontida violência e afirmou que
aquela seria a última das criaturas a quem recorreria. Áurea fitou-a,
sem nada mais dizer. Entretanto, ficou combinado que transportariam
o doente para o outro quarto, o de Áurea, que dava para um
descampado e possuía janelas mais largas. Enquanto Clara e Sílvio se
dirigiam para o quarto a fim de preparar o doente, ela correu ao seu
antigo aposento no intuito de lhe dar uma ligeira arrumação.
Encontrou tudo na mais completa desordem. Rapidamente, sem olhar
minúcias, consertou os objetos espalhados e ia afastar a cama, quando
ouviu rumor no corredor. Então encaminhou-se para fora,
escondendo-se atrás de uma porta até que o homem passasse.
Dificultosamente, gemendo por causa do peso, Clara e Sílvio
arrastavam-no numa velha cadeira de balanço. Sílvio trazia uma
lamparina nas mãos para iluminar o corredor, e as cobertas, mal
atiradas sobre as pernas do doente, arrastavam-se pelo chão. Ao vê-los
sob a dúbia luz que Sílvio levantava, Áurea não pôde impedir que um
longo estremecimento lhe percorresse o corpo. É que tinha
reconhecido ao primeiro olhar que aquele homem estava perdido.
Decerto não duraria muitas horas, talvez nem chegasse ao limiar da
madrugada. Na sua fisionomia já descansava essa qualquer coisa que
se assemelha a um fugitivo reflexo do outro mundo. Compreendendo
que o estado de Jaques era bastante grave para que pudesse lhe
permitir reconhecê-la, abandonou seu esconderijo e aproximou-se a
fim de ajudar a introduzir a cadeira pela porta aberta. Mas apesar de
tudo, por um resto de escrúpulo, não quis se aproximar, esperando
que Clara terminasse os arranjos. Pela janela aberta via o descampado
sufocado sob um céu tempestuoso, iluminado de instante a instante
pelo clarão de um relâmpago. No quarto o movimento cessou, só se
ouvia agora um arquejo prolongado, uma espécie de surdo e
continuado gemido que o doente deixava escapar. E Clara surgiu de
novo à porta, empunhando a lamparina. Durante um rápido minuto,
uma diminuta parcela de tempo em que parecia se comprimir todo um
mundo de questões inarticuladas, os olhares das mulheres se
encontraram. Clara sentiu nitidamente que também Áurea a acusava
de alguma coisa. Abaixou a cabeça, sem resistência para lutar. Então
Áurea se aproximou, pousou a mão no ombro da companheira e
afirmou que não imaginava o doente em tal estado. Clara apenas
soergueu os ombros, dizendo que sua doença era de caráter rápido e
incontrolável. Áurea moveu lentamente a cabeça e disse que não era só
isto, Jaques havia mudado muito naqueles últimos tempos.

— Em que estado esperava você encontrá-lo? — indagou Clara


irritada.

E Áurea, sempre no mesmo tom apiedado, afirmou que aquilo


não era mais um homem e sim uma coisa irreconhecível. Clara
afastou-se em silêncio, voltando a arrumar o quarto que o doente
acabara de abandonar. Um enorme silêncio desceu sobre a casa.
Ouvia-se ao longe o surdo rolar dos trovões. Sílvio reuniu-se a Áurea e
ambos regressaram à sala de jantar. Mas através do corredor,
insistente e ritmado, vinha a respiração angustiada de Jaques. De vez
em quando eles se entreolhavam, mudos, pressentindo uma noite
carregada de graves acontecimentos. O vento ainda abalava a porta,
que estremecia como se do lado de fora alguma monstruosa mão a
sacudisse.
15
Finalmente a chuva caiu, grossa, vergastando pesadamente as
vidraças descidas. Na cozinha uma goteira pôs-se a pingar,
cadenciada, enquanto rajadas cada vez mais fortes sacudiam portas e
janelas. Como sempre em situações idênticas, a luz elétrica apagou-se
e os velhos castiçais voltaram ao uso. Sentados juntos à mesa da sala
de jantar, Sílvio e Áurea esperavam que Clara aparecesse ou que os
chamasse do quarto. De vez em quando, Áurea deixava escapar um
suspiro — e Sílvio, para romper aquele silêncio que a cada minuto
parecia mais denso, fazia comentários a respeito de fatos antigos.
Áurea admirava-se de que ele tivesse tão boa memória e ainda se
lembrasse do dia em que haviam ido à festa das barraquinhas ou
passeado perto da Usina de Energia Elétrica. No íntimo, entretanto,
ambos estavam trabalhados por uma idéia que não ousavam exprimir:
o medo de que sobreviesse alguma coisa grave, sem que tivessem o
preparo necessário para afrontá-la. Sílvio lembrava-se da reduzida
farmácia que havia lá dentro e pensava na possibilidade do doente
sucumbir de um momento para outro sem os devidos socorros. Áurea,
já convicta de que não restava muito alento àquele pobre coração,
torturava-se, procurando o meio mais fácil de convencer Clara da
necessidade de chamar um padre. Que maior crime poderia haver do
que este de permitir que uma alma cheia de pecados se apresentasse
desprevenida aos olhos de Deus? Incansavelmente, ela repassava o
que tinha sido a vida religiosa de Clara nestes últimos tempos.
Lembrava-se de uma época em que a companheira parecera mais
inclinada aos mistérios da religião, quando Sílvio mal abria os olhos
para a vida. Naquele tempo distante ela se vestia com roupas escuras,
quase não falava e vivia na capela, desfiando intermináveis terços.
Áurea percebera que não existia nenhuma realidade naquele
sentimento e acompanhava-a com olhos de nítida reprovação. E, de
fato, todo aquele fervor fora desaparecendo, e a antiga Clara,
descuidada e indolente, reassumira seu habitual destaque. Agora era
aquele completo descaso que tanto a preocupava, aquela indiferença
frente às coisas da Igreja, que assustava Áurea mais do que uma
rebelião declarada. Pois a verdade é que já conversara com padre
Abreu a esse respeito — e ele, que decerto conhecia Clara muito
melhor do que ela própria, e que a seguia de longe com carinhosa
atenção, confessara que realmente há muito tempo já que temia vê-la
ingressar nesse escuro período de indiferença que agora atravessava. E
não era desse modo também que Sílvio estava sendo educado, cego,
distante da vida religiosa como se tal coisa não existisse? Ela própria,
Áurea, quantas vezes não tentara abordar o assunto, desviar a atenção
do rapaz, lançar-lhe na consciência adormecida um pequeno germe de
inquietação? Mas só recebia como resposta um sorriso de mofa. “Você
não entende destas coisas, Áurea”, dizia ele brincando ou fugindo
claramente à conversa. Sim, realmente ela não entendia muito, nunca
fora dessas devotas que amanhecem ajoelhadas nos bancos das igrejas,
como Maria Etelvina. Mas ainda assim conservava no seu coração
suficiente amor e respeito, para se sentir melindrada com o total
alheamento dos companheiros. E repetia, sem se importar com as
risadas de Sílvio: “Por que é que você não procura padre Abreu?” Ante
nova onda de comentários escarninhos, acrescentava que fora ele
próprio quem pedira para ela transmitir o recado, pois interessava-se
por Sílvio e queria vê-lo entre os seus amigos. Apesar das suas
constantes explicações, Áurea esbarrava invariavelmente com aquele
desdenhoso silêncio, aquela indiferença, aquela dolorosa falta de
sensibilidade. Não que ele ousasse negar ou atacar abertamente a
religião — mas deixava que tudo passasse, numa apatia de quem já
acha as coisas deste mundo muito complicadas para acrescê-las de
outras piores. E numa das vezes em que se queixara a este respeito
com padre Abreu, ele afirmou com ar de extrema gravidade: “São
pessoas que só um raio, um gesto inesperado e decisivo de Deus pode
arrancar de semelhante inércia.” Áurea via o tempo passar sem que
este raio surgisse, Clara e Sílvio continuavam a viver placidamente.

Seus pensamentos prosseguiriam neste sentido, se Clara não


tivesse surgido à porta. Apesar da escassa claridade, Áurea não deixou
passar desapercebido seu olhar hesitante, quase medroso, bem como a
maneira tímida com que se aproximou da mesa. E ao vê-la assim
Áurea teve a impressão de que alguma coisa da antiga Clara havia
ressurgido, daquela que conhecera outrora tão indiferente às
circunstâncias que a cercavam, sempre estranha e desconfiada. Com
voz insegura ela indagou se todas as janelas haviam sido fechadas. E,
depois de escutar durante algum tempo o pesado rumor da chuva,
disse que o doente não se sentia aliviado e que, ao contrário, queixava-
se ainda da falta de ar. Havia percebido que o tinham mudado de
quarto e exigira que o levassem de novo para o antigo. Como Clara
tentasse explicar que ele se encontraria mais a vontade naquele
aposento, balançou a cabeça, afirmando que Áurea poderia chegar de
um momento para outro. Calou-se — mas no fundo da consciência ela
sentia que aquela tranqüilidade, aquele desejo de se ver livre das
coisas deste mundo, haviam lhe causado um sombrio ressentimento.
Mais uma vez ele a enganava e partia, deixando-a entregue àquela
infindável rede de obrigações. E Clara, que contemplava o doente com
certo sentimento de inveja, revia seu passado, suas fugas,
acontecimentos tão antigos que até pareciam inexistentes. E apesar de
tudo era ela quem vivia horrorizada, temendo a cada instante trair
sentimentos e intenções que na realidade não possuía. Um sopro de
revolta abalava-a diante do homem prostrado. Entretanto, lembrando-
se de Sílvio, baixava os olhos, tentando sufocar aqueles tristes
pensamentos. E, enquanto ia buscar um copo d’água para Jaques,
indagava a si mesma qual o motivo daquela aflição, se realmente temia
tanto que imaginassem dela determinadas coisas. Não tinha sua
consciência limpa, não poderia viver tranqüila depois daquela morte?
E apesar de responder afirmativamente, de não se sentir diretamente
culpada naquele fato, compreendia que apesar de tudo já não lhe
sobravam forças para afrontar o olhar do filho. Tomada por um
remorso cuja origem não conseguia explicar, abandonava o copo
d’água ou o remédio que preparava e surgia inesperadamente na sala,
a fim de observar se Sílvio não conversava a respeito “daquilo”. Na
verdade ela começava a tomar conhecimento dessa segunda realidade,
atônita, duvidando ainda de que dispusesse de tamanha força para
realizar atos que estava longe de aprovar inteiramente. Pois agora,
mais do que nunca, ela compreendia que aquela natureza cega que
agia dentro dela não era ela, e sim uma força, um acúmulo de
sentimentos, de ambições, de fraquezas concentradas, criando esse
cego objeto de destruição que havia se levantado à margem da sua
consciência.

Ouvindo-a queixar-se de que o doente não queria mais ficar no


quarto de Áurea, Sílvio ofereceu-se imediatamente para auxiliá-la a
transportá-lo de novo. Ela concordou, sem fitá-lo. E rumaram mais
uma vez para o quarto de Áurea, colocaram o homem na cadeira e
arrastaram-no através do corredor escuro. Detendo-se Clara um
momento, enquanto Sílvio procurava rodar o trinco emperrado, Áurea
aproveitou a ocasião para sussurrar ao ouvido da companheira que ela
devia mandar chamar um padre. Clara recusou vivamente, alegando
que isto seria uma medida para mais tarde, pois não desejava assustar
o doente e além disto o caso não era tão grave quanto Áurea supunha.
Diante desta recusa, Áurea reconsiderou os fatos e acabou achando
que realmente havia exagerado, pois afinal de contas sua impressão da
dolorosa fisionomia do homem podia muito bem ser um simples efeito
da luz vacilante.

Entretanto, logo que se viu sozinha junto ao doente, Clara


meditou sobre a proposição de Áurea. Sim, era um passo precipitado,
ele julgaria que se tratava de um exagero e que provavelmente
desejavam se ver livres depressa da sua pessoa. Conhecia bastante
Jaques para poder seguir assim com tão grande perfeição o caminho
do seu raciocínio. Jamais ele perderia essa oportunidade para acusá-
la. E este escrúpulo, no entanto, apenas traía mais uma vez a natureza
dos sentimentos de Clara. Essa força com que certas questões se
transformavam em graves e insolúveis problemas exprimia bem o caos
em que ela inutilmente se debatia. Pressentindo a origem da sua
recusa, sentiu-se mergulhar num oceano de tristes apreensões, sem
encontrar saída para o seu sofrimento. Afinal, qual era o limite da sua
culpa? Que fizera realmente de tão tenebroso, que secreto crime lhe
transmitia tão amarga consciência das coisas? Não estaria exagerando,
não estaria pecando por um excesso de orgulho, julgando-se culpada
além do que lhe era permitido? Lembrou-se de que devia procurar um
padre, expor suas dúvidas, tentar esclarecer o que não compreendia.
Talvez estivesse inocente, ou fosse apenas vítima de uma imaginação
sempre pronta a deformar os fatos. Mas, lembrando-se de Sílvio,
sentiu de novo seu olhar e compreendeu que era inútil procurar um
subterfúgio, pois realmente de alguma coisa ela devia ser culpada. A
esta altura, como se levantasse para dar uma ou duas voltas pelo
quarto, reparou que a porta estava entreaberta e que um vulto se
esgueirava na sombra do corredor. No primeiro momento pensou que
fosse Áurea, mas, lembrando-se de repente que poderia ser o filho,
aproximou-se com cautela e examinou o corredor vazio. Seu coração
batia fortemente, suas mãos tremiam. “Quando terminará tudo isto?”,
pensou ela, encostando-se exausta junto à porta. E de súbito
distinguiu-o, quase defronte dela, olhos dilatados.

– Sílvio — disse ela com voz insegura —, que faz você aqui? Já
devia estar dormindo.

Ele não respondeu, e abaixou a cabeça. Clara aproximou-se


mais, abandonando o trinco que até aquele momento conservara
seguro. Sentindo-a junto de si, Sílvio procurou fugir.

– Você está louco! — exclamou ela, retendo-o apesar de tudo. —


Por que não vai descansar um pouco?

Antes de responder ele lançou um olhar à porta, que o vento


abrira completamente. No fundo via-se a cama revolvida: um dos
braços do doente pendia para fora. Sílvio voltou a fixar a mãe e
confessou:

– Não posso.

Ela compreendeu que o instante decisivo tinha chegado. Já não


era mais possível ao rapaz controlar aquela angústia que se
apresentava tão nua na sua fisionomia. Mas assim mesmo, cedendo a
essa fatalidade que arrasta certas almas, indagou:

– Por quê?

Desta vez Sílvio ergueu completamente a cabeça, um brilho de


desafio no olhar.

– Nós somos culpados, mãe.

Nem o mais leve sinal denunciou nela surpresa ou revolta. Dir-


se-ia que eram realmente estas as palavras que esperava ouvir.
Durante alguns segundos, imóvel, revolveu a acusação na sua
atormentada consciência. Assim, já não precisava mais debater tantas
questões inúteis, sabia exatamente o que o filho pensava a seu
respeito. Suas palavras se adaptavam de modo perfeito ao que acabara
de pensar, à situação misteriosamente criada entre ambos, ao sombrio
futuro que pressentia. E ainda assim, levada por esta mesma força que
parecia fasciná-la, voltou a perguntar:

– De que me julga você culpada?

Ele moveu a cabeça lentamente:

– Não é só você. Eu também, nós todos somos culpados.

E pela última vez seus olhares se encontraram. Não podendo


conter sua emoção, Sílvio voltou a cabeça e fugiu rapidamente do
corredor. Imóvel, Clara viu aquela forma branca que se distanciava e
desaparecia. Depois, ouviu o rumor de uma porta que se fechava.
Continuou parada, ainda atônita com a visão daquela consciência
ferida até os seus derradeiros fundamentos. E só naquele instante ela
compreendeu o que se passava na sua alma e pressentiu as noites que
o filho tinha passado em claro, junto à porta, o coração sangrando. A
visão da sua própria inconsciência aterrou-a. Voltou para junto do
doente e deixou-se cair desamparada a seu lado. A lamparina hesitante
lançava sombras enormes sobre o rosto do agonizante. Ela murmurou,
em voz baixa, “Jaques”, esperando que ele abrisse os olhos. Mas o
doente continuou na mesma posição, respirando com dificuldade. Ela
repetiu “Jaques”, como se chamasse uma pessoa que estivesse muito
longe, alguém que perdera em épocas passadas, em brumas que jamais
se desfariam. Quantas vezes murmurava aquela mesma palavra com
desespero e paixão, encerrando nas suas sílabas toda a glória e todo o
tormento da sua existência condenada de mulher? E agora nada mais
lhe respondia, nenhum sinal atravessava aquela treva espessa,
nenhum frêmito, nenhum adeus, nada que exprimisse a antiga vida, o
amor que tinham jurado eterno, em tantas horas de suprema
felicidade...

Pouco depois, Sílvio abandonava novamente o quarto.


Aproveitando uma ligeira pausa da tempestade que parecia abrandar,
refugiara-se na varanda ainda açoitada pelos ventos. Não podia mais
respirar o ambiente enfumaçado da sala. De vez em quando um
relâmpago fendia a pesada massa de nuvens escuras, um trovão
ribombava, rolando vagarosamente ao longe. Na barra do horizonte,
uma linha de um azul fulgurante cortava lado a lado a densa escuridão
da tormenta. Sílvio aspirou o ar frio, sentindo que não tardaria a
desabar novo aguaceiro. Mas, imóvel, resistia ao vento, imerso nas
suas cogitações. Decerto eram elas de natureza diferente das de Clara.
Agora que se aproximava o momento em que aquele homem esvaziaria
a casa da sua presença, ele sentia formar-se um estranho vácuo, como
se alguém muito caro, uma presença familiar e antiga, desertasse
subitamente do seu habitual lugar. A si mesmo ele indagava qual o
motivo que tinha dado ao pai aquela inesperada importância,
reintegrando-o numa estima que, afinal, nada fizera para conquistar.
Só o seu sofrimento, só a agonia dos últimos dias, só essa argamassa
de emoções conjuntas havia unido suas vidas — frágeis laços,
diminutas razões, mas suficientemente fortes para sustentarem toda a
engrenagem dessa existência feita de lágrimas e privações comuns. Até
aquele minuto, o que faltara ao pai fora justamente alguma coisa que o
tornasse mais humano aos olhos do filho, uma vida, não um
repositório de fatos inexpressivos, memoriais e suposições sem
fundamento. Até aquele instante ele não tinha sido senão uma figura
vazia, um ser apenas dotado de nome a atributos, sem nenhuma
projeção nessa tela secreta onde as criaturas adquirem realidade em
nossa consciência. Esta, Jaques havia obtido pelo seu profundo
sofrimento destes últimos tempos, deixando Sílvio perceber traços
inéditos, avivados pela proximidade da morte, sentimentos tornados
mais puros, emoções mais nítidas, caráter mais sólido. Pois a morte é
como a luz que brilha intensamente no fim de um caminho, e, à
medida que dela nos aproximamos, tudo o que de falso e de acessório
a vida acumula sobre nós desvenda-se, tomba no caminho, deixando
apenas defeitos e marcas oriundas do berço, estigmas da mão de Deus.

Recomeçava a chover e Sílvio entrou de novo, perguntando a


Áurea se havia notícias do doente. Ela respondeu que Clara tinha
estado ali momentos antes e nada adiantara sobre o estado de Jaques.
Apesar da hora avançada, ele sentou-se ao lado de Áurea, trocando
palavras sem importância. Via-se que esperavam o desenlace para
aquela noite. A certa altura, como o relógio batesse algumas pancadas,
Áurea indagou se Sílvio não tinha fome. E como o rapaz concordasse
foi até à cozinha preparar-lhe alguma coisa. Do lugar onde ele estava,
ouviu lá dentro o ruído familiar da louça, e aquilo pareceu-lhe
estranho, longínquo, como se tossem ruídos que se reportassem a uma
época inteiramente desaparecida. Neste momento alguém bateu à
porta. Sílvio foi abri-la e achou-se diante do médico. Vinha abrigado
num grosso sobretudo e cumprimentou-o de modo cordial, indagando
como havia passado o doente. Depois de ouvir as ligeiras explicações
de Sílvio, dirigiu-se resolutamente para o quarto, como se aquilo já
fosse um hábito.

– Foi bom o senhor ter vindo, disse Clara tomando-lhe o chapéu


e o capote. Já tentei todos os meios de aliviar o doente.

Retirando um relógio do bolso, o médico curvou-se sobre


Jaques, tomando-lhe o pulso. Enquanto isto, Clara examinava
furtivamente a expressão concentrada do seu rosto, esperando
adivinhar nele o verdadeiro resultado do exame.

– O doente passou todo o tempo neste estado de letargia? —


indagou, guardando de novo o relógio.

– Não, ao contrário — respondeu ela procurando ser o mais


exata possível —, esteve muito agitado e somente há meia hora é que
tombou nesta prostração.

O médico tornou-se pensativo e deu duas ou três largas


passadas pelo quarto.

– Acho grave seu estado — declarou ele em voz baixa, detendo-


se diante dela. — Devemos aguardar o pior.

Clara pensou em indagar quanto tempo ele ainda concedia ao


doente, mas deteve-se e voltou a consertar em silêncio as cobertas que
haviam tombado fora da cama. O médico pôs-se a preparar uma
injeção. O quarto recendia a álcool queimado, e a presença daquele
estranho causava ligeira perturbação a Clara. Ela pediu desculpas e
afastou-se, ganhando o corredor.

— Que disse o médico? — perguntou Sílvio assim que a viu.

Clara transmitiu as palavras do homem e foi colocar-se junto à


janela. Lá fora, tudo brilhava sob a umidade. Gotas de chuva, pesadas
e solitárias, ainda faziam estremecer as folhas.
Novas e lentas horas decorreram, sem que nada de anormal
sucedesse. O médico despediu-se e prometeu voltar ao amanhecer,
caso sua presença não fosse solicitada antes. Uma pesada quietude
desceu sobre a casa. Áurea e Sílvio cochilavam na sala, enquanto Clara
se mantinha à cabeceira do doente. De vez em quando Sílvio acordava
assustado e escutava, julgando ter ouvido a voz de Clara que o
chamava. Mas, como tudo continuasse mergulhado em perfeito
silêncio, readormecia. Em certo momento, como o doente se sentisse
pior e pedisse para abrir de novo as janelas, Clara pensou que tivesse
chegado o instante decisivo e correu a chamar Sílvio. Áurea ficou
encostada junto à porta, um terço nas mãos. Mas fora um rebate falso,
Jaques voltou a se acalmar e Sílvio regressou à sala. Áurea,
aproveitando o momento, insinuou novamente que se deveria chamar
um padre. Clara ergueu os ombros e disse que o melhor seria aguardar
pelo amanhecer. De fato o doente atravessou a noite sem alteração, e
foi neste estado de relativa calma que atingiu as primeiras horas da
manhã. Uma baça claridade se insinuava pelas janelas abertas. Mais
uma vez a agitação voltou a ganhá-lo, e assim, opresso, ele próprio
sugeriu que o transportassem para o outro quarto. Aquelas mudanças
traziam-lhe um estranho alívio. Clara tornou a colocá-lo na cadeira e,
ainda auxiliada por Sílvio, levou-o ao aposento que tinha abandonado
no começo da noite. Mas agora ela agia automaticamente, suas pálidas
mãos pareciam esmorecer sobre os bordos escuros da cadeira. Em
certo momento ela se deteve e, fechando os olhos, encostou-se
desalentadamente à porta. Sílvio fitou-a e só aí reparou como Clara
parecia envelhecida, olhos cavados, sob uma luz que refletia bem o seu
mortal desgosto por todas as coisas da vida.

16
Cerca do meio-dia, o doente tornando-se mais agitado ainda e
sua respiração mais difícil, Clara não teve dúvida de que o desenlace se
aproximava. Correu à sala e mandou que Áurea chamasse o padre. E,
como Sílvio quisesse acompanhá-la de volta ao quarto, pediu que ele
esperasse na sala de jantar e retivesse o visitante até que Jaques se
achasse em condições de recebê-lo. Áurea voltava dentro em pouco,
esbaforida, avisando que o padre não tardaria a vir. De fato ele
apareceu pouco depois e sentou-se num tamborete, o breviário aberto,
à espera de que o chamassem. Via-se que procurava se mostrar
indiferente ao que o cercava — e Sílvio, que não o perdia de vista,
achava-se pronto a escapulir à primeira tentativa de aproximação.
Decerto o padre percebera sua hostilidade, pois era simulado aquele
modo de folhear o livro e levantar os olhos de vez em quando, como se
estivesse mergulhado em funda meditação. Mas, percebendo que seu
ingênuo estratagema tinha sido descoberto, fechou o livro, suspirou e
com os olhos percorreu vagarosamente a sala. Como Áurea viesse lhe
trazer uma xícara de café, indagou se não seria melhor entrar logo, ao
que ela respondeu que ia verificar; voltou dizendo que o doente se
achava num estado de completa inconsciência.

Mas Clara se enganara ao informar Áurea, pois Jaques ainda


possuía um perfeito conhecimento das coisas e às vezes, olhos abertos,
fixava-a com uma expressão que a fazia estremecer. Lentamente o
tempo avançava, as vidraças flamejavam ao sol. O doente
readormeceu, mas de repente foi sacudido por longos
estremecimentos. Abriu os olhos de novo, onde uma claridade
estranha flutuava. Clara julgou então que não podia mais adiar a
cerimônia e mandou que o padre entrasse. Ele pediu para ficar sozinho
com o agonizante e, depois de alguns minutos, reabrindo a porta, fez
as pessoas entrarem e na presença de todos administrou os santos
óleos. Em seguida retirou-se, trocando em voz abafada duas ou três
palavras com Áurea.

No quarto, onde já flutuava esse odor de cera queimada e


remédios, peculiar aos aposentos dos moribundos, Clara amparava
Jaques, que parecia mergulhar nas derradeiras convulsões. A certa
distância, Sílvio e Áurea, imóveis, observavam o triste espetáculo.
Entretanto, vários minutos se escoaram, sem que o supremo instante
parecesse se aproximar. Ao contrário, uma relativa calma ganhava
lentamente o homem, emprestando à sua fisionomia gasta um novo
aspecto. Exausta, olhos ardentes, Clara pediu a Áurea que a
substituísse junto ao marido. Não podia mais, desfaleceria a qualquer
momento. Saiu, amparando-se nas paredes, inteiramente tonta.
Jaques dormia, olhos cerrados, a respiração num ritmo mais normal.
E Sílvio sentiu também que suas derradeiras forças fugiam.
Abandonou o quarto indagando a si mesmo quanto tempo duraria
ainda aquele suplício. Ganhou a rua, onde um sol forte, impiedoso,
banhava a paisagem sob uma onda metálica. Pôs-se então a andar a
esmo, vazio de qualquer idéia. Tudo lhe causava repugnância, a vida, a
morte, os homens e seus sentimentos. Atravessou a estrada,
lembrando-se de outra época, há muitos anos atrás, quando, em
situação igualmente difícil, caminhara até um grande espinheiro que
ficava junto à caixa d’água. Sentia que os dois fatos agora pareciam se
unir, criando uma idêntica e misteriosa atmosfera. No momento em
que atingia o fim da rua, achou-se de repente diante de Chico.

Na sua perturbação, não reparou no olhar de intensa


curiosidade que o companheiro lhe lançou. Depois de indagar pela sua
saúde e outras coisas habituais, Chico confessou que ia a sua procura.
Desta vez foi Sílvio quem o olhou, surpreso, pois era a primeira vez,
depois de muito tempo, que Chico condescendia em procurá-lo.
Outrora haviam andado juntos, haviam freqüentado as mesmas rodas,
possuíam amigos comuns. Ultimamente, porém, Sílvio distanciava-se,
seus caminhos se separavam. No momento em que se punham de novo
a caminhar, Sílvio reparou como o outro estava bem vestido, como
nele tudo recendia a um enorme carinho com sua própria pessoa, e
como aqueles cuidados pareciam pouco adequados à pequena cidade
que habitavam. Aliás, era bastante comentado o fato de Chico se vestir
com roupas da capital, de manter correspondência com casas de
gravatas e perfumarias, e de estar sempre em dia com as revistas de
modas. Em todo aquele capricho havia qualquer coisa de feminino; na
sua sensualidade, à flor da pele, pairava um tom adocicado e amável,
peculiar aos homens que lidam intensamente com certa classe de
mulheres. Provavelmente, foi esta impressão que impediu Sílvio de
falar, pois fechou-se num obstinado mutismo, esperando sem dúvida
que o outro se decidisse. Foi o que Chico fez, batendo de repente no
seu ombro e indagando, com uma risada, em que mundo ele estava.
Sílvio, que não apreciava este gênero de familiaridade, balançou a
cabeça e afirmou que tinha evidentes provas de que se achava neste
mesmo. Chico ergueu os ombros e deixou escapar um assovio entre
dentes. Depois, como Sílvio regressasse ao silêncio anterior, afirmou
que ele continuava o mesmo sujeito intratável, um enigma para os
outros. Ainda desta vez Sílvio julgou melhor não responder, pois sabia
muito bem que força nenhuma demoveria o amigo do seu ponto de
vista. Chico era dessas pessoas que jamais se sentem desmentidas, e
que, ao contrário, transformam todos os fatos, mesmo os mais
imprevistos, em evidentes provas do seu modo de pensar. Vendo que
não levaria o companheiro muito longe, Chico mudou de tática e,
metendo a mão no bolso, retirou de lá um papel dobrado. Antes de
entregá-lo, porém, chamou a atenção para o fato de que só tinha aceito
o encargo por simples gesto de amizade. Sílvio agradeceu e desdobrou
a carta sem interesse, adivinhando sua origem. De fato era um bilhete
de Lina, um desses bilhetes como já recebera tantos, não só dela
própria como de Esperança, e que continham as mesmas queixas, as
mesmas promessas e os mesmos erros de ortografia. Dobrou-o, sem
ocultar o seu tédio, encarando francamente o emissário. Durante um
segundo, uma parcela de tempo tão ínfima que mal daria para formar
um sentimento exato no coração de alguém, Chico titubeou e pareceu
fraquejar ante aquelas frias pupilas que o sondavam. Mas reagiu
imediatamente, acendeu um cigarro e atirou para o alto uma longa
baforada. “Que deseja ele de mim, por que veio me procurar sob
pretexto de trazer esta carta?”, perguntou Sílvio a si mesmo,
continuando a caminhar em. silêncio. E Chico, detendo-o de súbito
pelo braço, indagou:

– Então?

Sílvio ergueu os ombros e respondeu:

– Não há resposta.

– Por quê?

Mais uma vez Sílvio fitou-o, tentando descobrir o móvel que o


guiava. Chico, no entanto, afetava uma inocência que desarmava todas
as tentativas.

– Porque não há. Estou farto dessas coisas e não quero mais ver
essa mulher.

Chico deteve-se no meio da rua, exibindo no rosto um espanto


que provavelmente estava muito longe de sentir.

– Palavra que não o compreendo. Você tem tudo, é um homem


de sorte, vive com as mulheres a seus pés!

– Tudo isto não existe mais para mim — atalhou Sílvio, sombrio.
Chico continuou a caminhar enfiando a mão no braço de Sílvio.

– É a segunda mulher que você trata deste modo. Estamos


falando aqui entre homens, não sei como você vai se arranjar de agora
em diante. Confesso que não é bem este o gênero que elas preferem…

– E por que terei de viver segundo determinado modo? —


indagou Sílvio, libertando-se de Chico com um movimento de
impaciência.

O outro respondeu com um sorriso fino:

– É que afinal todos os homens têm necessidade. . .

– Não — atalhou Sílvio novamente, violento —, não vejo


nenhuma necessidade destas coisas. Acho que isto é uma mentira
inventada pelo mundo em que vivemos.

– Um moralista! — exclamou Chico, dilatando o seu espanto


além de todos os limites.

E como Sílvio o olhasse de novo, exprimindo um desprezo que já


não podia mais sufocar, Chico percebeu que não o atingiria por aquele
caminho e bateu-lhe amigavelmente no ombro.

– Não é por isto, é inútil esconder, bem sei que não é por isto
que você dá tantos passos errados na vida.

A curiosidade de Sílvio foi maior do que o seu sentimento de


desagrado.
– Por quê? — indagou.

– Oh — exclamou Chico —, você mistura outras coisas a esta.


Seu pai, por exemplo...

Sílvio sentiu subir-lhe ao rosto uma onda de sangue.

– Que tem meu pai a ver aqui?

Chico percebeu que fora precipitado.

– Evidentemente, nada. Mas pensei…

E assoviou de novo, olhando o sol que tremia nas folhas novas.


Sílvio voltou a fitá-lo e sentiu que uma nuvem esverdeada cobrira a
face do seu companheiro. Por um misterioso processo, tudo o que ele
procurava ocultar e estava soterrado no fundo da sua consciência
subiu à tona e apareceu gelado e estranho à luz do dia. Num minuto,
olhando-o, Sílvio compreendeu toda aquela vida destituída de
caridade, seus pequenos triunfos, seus sórdidos anelos. Não havia nele
nenhuma complacência para com os outros, mas só um furioso desejo
de sobrepor-se, de aproveitar todos os minutos, de saciar-se ainda que
isto perturbasse o equilíbrio do mundo e lançasse os homens, mesmo
os que lhe fossem mais caros, na escuridão do inferno. Vendo-o em
silêncio, Chico estremeceu, sentindo-se descoberto. E, tentando
justificar-se, declarou:

– Nesta história, posso dar lições, meu caro. Se a gente deixar,


“eles” acabam tomando a iniciativa e não podemos fazer mais nada.
Como ainda desta vez Sílvio nada dissesse, ele segurou-o
brutalmente e explicou:

– Não é que se oponham abertamente. Ao contrário, muitos não


ousam, são covardes.

E abandonando o amigo, afastando-se um pouco, olhos cerrados


por causa do sol forte:

– Mas pela sua simples presença.. .

– Cale-se! — bradou Sílvio, sufocado.

Agora tinha-o visto inteiramente, tinha-o visto como nunca lhe


fora possível antes, despido de todos os disfarces, enorme,
extraordinariamente forte, as mãos rudes, as veias do pescoço
inchadas como as de um touro. Realmente, nada o deteria.

– O seu destino é triste — continuou ele para Sílvio, insensível à


transformação que se operava no rosto do outro. — Verá como
acabarão por pisá-lo, já que se recusa a tomar o que lhe pertence, a
defender o que é seu por legítimo direito. Afinal, que é que você pensa
que é viver?

Sílvio se tinha detido, incapaz de avançar e de ouvir mais. Sua


vida, nestes últimos tempos, estava toda encerrada naquela questão.
Então Chico se despediu, estranho, consertando o colarinho e com um
ligeiro esgar que deixava à mostra sua hedionda cicatriz vermelha.

Quando Sílvio voltou para casa, horas depois, verificou que a


situação não se tinha alterado. A agonia de Jaques se prolongou pela
noite adentro, transformando-se num suplício de desmedidas
proporções para aquelas três pessoas. Clara não abandonava a
cabeceira do doente, enquanto Áurea, numa faina em que parecia
caracterizar todo o seu tormento, espanava e arrumava a casa inteira.
Várias vezes Clara chamou-a, julgando que o momento fatal tivesse
chegado — e várias vezes ela regressou a sua febril atividade, atenta
aos menores ruídos, às mais ligeiras manifestações vindas do quarto.
Outras nuvens se acumularam no fundo do horizonte, nova
tempestade parecia próxima. Mais uma vez o sol desaparecera, para só
deixar aquela pressão ardente, aquele vento que incansavelmente
arrastava papéis velhos dentro da tarde abafada.

– Meu Deus — disse Áurea de repente, detendo-se junto de


Sílvio, que se debruçara à janela —, quando acabará isto?

Ele não respondeu, o olhar fixo no horizonte que escurecia.


Pouco depois, Clara chamava novamente por Áurea. Julgando que o
instante tivesse chegado, Sílvio também se aproximou.

– Ele está muito melhor — afirmou Clara —, creio que nada


devemos recear por esta noite.

Áurea não dissimulou o seu espanto. Clara explicou então que


isto era um fato comum nas doenças do coração — passada a crise, o
doente melhora infalivelmente. Voltou ao quarto, acompanhada de
Sílvio. Ao ver o doente, recuou, assustado. Era inegável que ele parecia
muito melhor, havia nele certa energia, já não se entregava àquela
prostração de modo tão absoluto, conversava e distinguia as coisas.
Mas seria aquela, realmente, a face de um homem destinado a viver?
Não tinha diante de si uma máscara de cera, olhos empapuçados, com
qualquer coisa de alucinado, como se ele já tivesse entrevisto os
insondáveis segredos de além-túmulo? Não resistindo à sua decepção,
Sílvio confessou a Clara que achava sua cor muito ruim. Ela respondeu
que o doente não poderia estar muito corado depois do que havia
passado. Ao ver Sílvio, ele indagou pelas horas e quis saber se ainda
estava chovendo. Depois pediu que abrissem a janela, queria ver a
paisagem lá fora. “Que força selvagem, que poderoso e obstinado
desejo de viver!”, pensou Sílvio, que o observava. No entanto,
ofuscado, Jaques examinava as pessoas, atônito, sem poder acreditar
que ainda sobrevivesse. Tudo aquilo se assemelhava a um pesadelo,
ele não podia acreditar que ainda estivesse vivo. E esse modo de sentir
foi traduzido no tom incerto com que pediu um copo de leite. Clara
levantou-se para atendê-lo. Depois de se alimentar, afirmou que sentia
melhores disposições ainda.

– Creio que ainda não será desta vez — disse Clara, entregando a
Áurea o copo vazio.

O doente não tardou a adormecer. Seu sono era calmo, e uma


sadia tranqüilidade voltou a pairar na sua fisionomia. Sílvio, Clara e
Áurea se reuniram na sala de jantar, trabalhando como nos tempos
antigos. Mas ninguém falava, talvez por secreto temor de comentar
uma melhora de que não se achavam ainda muito seguros. Apesar do
aspecto de Jaques, nenhum deles podia acreditar numa vitória tão
rápida. Havia nela qualquer coisa de cruelmente dissimulada. Mas,
como as horas corressem sem alteração, acabaram por se render à
evidência. Clara foi visitar o doente pela última vez, encontrando-o na
mesma posição, ressonando calmamente. Esperou ainda alguns
minutos, escutando os ruídos que se amorteciam para os fundos da
casa. Em breve tudo era silêncio, só o vento morno batia de vez em
quando uma janela mal fechada. Vencida pelo cansaço, ela própria se
recolheu, não tardando a adormecer.

Na manhã seguinte, quando abriu os olhos, Jaques já estava


acordado. Só aí ela reparou como realmente sua cor era má, e sentiu
nos olhos empapuçados o mesmo pânico que Sílvio já entrevira.

– Você está sentindo alguma coisa? — perguntou.

– Não — respondeu Jaques —, estou passando muito bem.

Em seguida queixou-se de que sentia fome. Clara levantou-se


para lhe preparar qualquer coisa. Antes, deteve-se um minuto defronte
da janela aberta, olhando o jardim. Chovera durante a noite e uma
nuvem de pássaros esvoaçava entre as folhas ainda úmidas. Encontrou
Áurea na cozinha, preparando o café. Ao regressar, com uma xícara
nas mãos, deparou com Jaques sentado na borda da cama.

— Que loucura! — exclamou ela — você não devia se ter


levantado!
– Não estou sentindo nada — afirmou ele.

E, como tentasse ficar de pé, tombou de repente, como se tivesse


sido fulminado por um raio, metade do corpo fora da cama.

– Áurea! — gritou Clara, abandonando a xícara.

E no seu desatino, em vez de socorrer o homem, correu em


direção à cozinha. Mas voltou pouco depois, precipitando-se sobre o
corpo de Jaques e procurando colocá-lo na cama. Dois ou três
arquejos se elevaram daquele peito descoberto, depois ganhou-o uma
imobilidade completa. “É o fim”, pensou Clara, sentindo apoderar-se
dela uma estranha e obscura alegria. Dir-se-ia que afinal um peso
enorme fora retirado dos seus ombros. Mas imediatamente, tomada de
horror pelos seus próprios sentimentos, caiu de joelhos, o rosto oculto
entre as mãos. Durante alguns minutos lutou consigo própria,
tentando vencer aqueles miseráveis pensamentos.

– Meu Deus — exclamou Áurea entrando —, acho que ele está


morto!

Clara descobriu o rosto e segurou novamente o pulso de Jaques,


à procura de um derradeiro sinal de vida. Só o vento agitava-lhe os
cabelos brancos. Aquele coração já não batia mais, e o frio da morte
começava a avançar lentamente ao longo dos seus braços inertes.

Quando o médico chegou, constatou que seu paciente tinha


sucumbido a um colapso cardíaco. Ajudou a transportar o cadáver
para a sala e, depois de dirigir algumas palavras a Clara, retirou-se. E
toda aquela tarde, em companhia de Áurea, Maria Ernestina e outras
vizinhas, Clara e Sílvio velaram o corpo de Jaques. Quatro velas
ardiam sobre a mesa da sala de jantar. E Clara, esquecida de tudo,
esforçando-se para reencontrar na magra silhueta daquele homem
estendido alguma coisa familiar, sentia as horas deslizarem vagarosas,
enquanto se apoderava do seu coração a consciência de que afinal tudo
cessara realmente, e que o resto do drama, esse resto que permanece
sempre em nosso coração como uma antecipação, seria levado a termo
um dia, não muito longe, à luz da eternidade.

17
Realmente padre Abreu estava com a razão, quando a respeito
de Clara afirmou que certas almas só se salvariam caso um raio
tombasse dos céus e o milagre se produzisse. No dia seguinte ao do
enterro de Jaques, Clara descobriu afinal, sob a grosseira tessitura dos
fatos, não o raio inesperado e fulminante, mas a lenta e obstinada
vontade de Deus. Todos haviam saído, nenhum rumor se fazia ouvir
na extensão da casa. Ela estava sentada sob a lâmpada da sala e tinha
disposto uma peça de linho sobre os joelhos, quando, levantando a
cabeça, percebeu a luz da tarde que se despedia nas vidraças nuas.
Imediatamente sentiu a solidão pesar e, olhando em torno, mediu pela
primeira vez o silêncio enorme, definitivo, que se tinha feito em torno.
Sua impressão foi tão forte que ela julgou ouvir, como um eco
nascendo de extrema distância, uma voz que lhe transmitia uma
ordem. A ilusão era tão real que ela se levantou, inquieta, julgando que
alguém a chamava do lado de fora. Mas, aproximando-se da janela,
nada viu, o jardim adormecia às primeiras sombras da noite. No
entanto, Clara compreendeu que não se tinha enganado, e voltou a
sentar-se, o coração batendo violento. Nada perturbava aquele calmo
fim de dia, os objetos morriam sob uma penumbra deliqüescente.
Apesar dos seus esforços, ela não conseguiu retomar o trabalho, o
linho abandonado no chão, as mãos sobre os joelhos, ouvidos à escuta.
Nada mais se fazia ouvir, a misteriosa voz havia desaparecido. Não
teria sido um sonho, uma dessas alucinações que costumam nos
assaltar? O certo é que Clara não conseguiu readquirir sua serenidade,
e apanhando a peça abandonada foi guardá-la de novo no armário.
Sobre a mesinha de cabeceira deparou com os vidros de remédio que
Jaques usara, e que ela ainda não tivera tempo de jogar fora. Só aí,
diante desses objetos que pareciam ressuscitar todo o drama vivido
naqueles últimos dias, só nesse instante ela compreendeu que na
verdade nada fora esquecido e que, ao contrário, tudo permanecia
estranhamente vivo no seu coração. Olhando em torno, sentiu então
alargar-se aquela quietude como uma enorme fenda, e através dela
subir à sua consciência um terror surdo e doloroso. Sim, não podia
ficar ali sozinha, devia fazer qualquer coisa, estava ficando louca.
Dirigiu-se novamente ao armário, apanhou um xale e, cobrindo a
cabeça, saiu.

A paisagem estava revigorada pelas chuvas. Folhas novas


repontavam nos galhos, rebentavam das sebes já completamente secas
e afloravam mesmo entre as pedras do chão, num esforço de vida, num
tumulto, que por momento parecia vencer a triste imobilidade das
coisas. Clara caminhava a passos rápidos, aspirando o ar com bastante
força. Sentia a noite avançar e tinha pressa em chegar a seu destino, se
bem que ainda não soubesse direito para onde se dirigia. Um ou outro
conhecido cumprimentava-a respeitosamente olhando com inequívoca
curiosidade o seu traje de luto. Ela mal respondia a essas saudações e
não prestava nenhuma atenção aos olhares curiosos, absorvida nas
suas cogitações. Uma vizinha chegou a detê-la, desculpando-se por ter
faltado ao enterro. Clara fitava aquelas mãos maltratadas que se
agitavam diante dela, sem compreender o que a outra lhe dizia. Afinal
ela se despediu, afirmando que iria visitá-la no dia seguinte. E Clara,
chegando finalmente à praça, encaminhou- se para a pequena capela
que tanto freqüentara outrora.

Lá dentro a obscuridade já era completa e o recinto lajeado se


achava completamente vazio. Ainda devia ser muito cedo para a
bênção, se bem que algumas velas já tivessem sido acesas e
bruxuleassem na escuridão. Duas lamparinas de azeite crepitavam
fumarentas junto aos altares laterais — e outras, apagadas,
balançavam-se suspensas das colunas desenhadas a frisos de ouro.
Clara dirigiu-se para o altar de Nossa Senhora e deixou-se cair a um
canto, exausta, o rosto escondido entre as mãos. Nenhuma palavra,
nenhuma prece lhe escapava dos lábios, nenhum sinal de vida — ela
vinha tombar junto àquele altar como um destroço, um desses restos
apodrecidos que as ondas devolvem às praias. Aflita, sem
compreender ainda o que se passava no seu coração, ela tentava em
vão começar uma daquelas orações que tanto usara na mocidade, num
esforço que parecia consumi-la e torná-la mais imprecisa ainda, entre
as grandes sombras projetadas pelas pilastras. “Meu Deus, ajudai-me,
tende piedade de mim!”, exclamou, afinal, abatendo-se contra um dos
degraus que conduziam ao tabernáculo. E, durante alguns momentos,
olhos fechados, repetiu a frase, até que dentro dela tudo se foi
acalmando. E, devagar, uma das suas orações costumeiras lhe veio à
memória. Depois disto levantou-se de novo, ocultando-se um pouco
mais para o lado, a fim de escapar aos olhos do sacristão, que viera
acender novos círios. Agora, todo o altar do centro flamejava. A bênção
não tardaria a ter início. De fora, do jardim onde as flores lutavam
contra a invasão do mato, vinha o chiado estridente dos grilos. Mais
alto, por um dos vitrais abertos, ela via brilhar uma estrela solitária.

“Não é viver que é difícil”, disse ela consigo mesma, olhos fixos
na dolorosa imagem da mãe de Deus, “é viver com os nossos
semelhantes. Tudo se resume em não levantar a mão contra eles, não
feri-los, não trucidá-los em nosso cego desejo de subsistir.” Era esta
verdade que ela tinha descoberto, depois que o corpo de Jaques para
sempre havia desaparecido sob a terra escura. Ou melhor, era esta a
verdade que afinal se tinha imposto à sua consciência, vencendo tantas
e tão árduas etapas. Durante horas e horas, naquele silêncio que vira
se avolumar com tão tremenda intensidade, tão repleto de frias
sensações, e dentro do qual julgara perceber enfim uma voz que
pronunciava o seu nome, ela aprendera que nada é mais perigoso
sobre a terra do que um homem disposto a reclamar o seu direito à
vida. Verdade elementar, mas dentro da qual fora preciso ela
comprometer o seu destino, a fim de percebê-la em toda a sua
profundeza. Nada poderá controlar essa força, esse ímpeto que
secretamente se avigora, esse ódio que se concentra visando um ponto,
um destino. Sim, agora podia falar livremente, já que os fatos haviam
se esgotado a ponto de só deixarem um cadáver amortalhado no seu
eterno silêncio, derradeiro aviso traçado pela mão de Deus. Agora
podia reconhecer esses pensamentos que vinham não sabia de que
misterioso lugar, cristalizando-se em torno de uma idéia, encerrando-
a numa estreita malha e criando assim a obsessão que não tardaria a
se levantar como uma arma terrível. Esse pensamento concentrado,
essa vontade aguçada ao longo de dias e dias de vida em comum, de
pequenas misérias, de gestos apenas esboçados e palavras que muitas
vezes parecem vazias de sentido — em tudo isto ela podia reconhecer
afinal a força vitoriosa, a arma ensangüentada. Tão poderosa era essa
influência, tão real e decisiva sua ação, que muitas vezes Clara a
sentira perturbá-la como se fosse uma outra pessoa, um novo ser
agindo incontrolado no fundo da sua alma. Como uma nuvem escura
que se levanta, essa força domina a atmosfera e lentamente sua ação se
insinua até conseguir o fim visado. “Meu Deus”, repetiu ela, a mão
sobre o coração, “ajudai-me, tende piedade da minha ignorância e da
minha miséria!” E nada respondia ao seu apelo naquela pequena
capela vazia, onde o seu vulto se destacava a um canto, imóvel, negro,
projetando sobre as pilastras uma sombra que a luz das velas tornava
vacilante.

Até minutos antes ela não sabia ainda. Até segundos antes de
entrar na capela, ainda podia viver como os outros, rir e conservar-se
alheia à realidade. Mas agora ela “sabia” e nada mais lhe era possível.
Uma porta se fechara, o mundo lhe havia sido misteriosamente
vedado. Era como se uma voz lhe houvesse dito: “Basta. De agora em
diante o teu caminho será outro.” E ela se lembrava de quantas vezes
julgara se aprofundar definitivamente no conhecimento de certos
fatos, descer mais a fundo nas experiências quotidianas, revolver uma
a uma essas pequenas lições que a vida deposita à margem dos dias.
Agora, entretanto, sentia que realmente só apreendera uma coisa, e
que todas as outras nada mais eram senão detalhes, miseráveis
acessórios dessa verdade capital. Apesar dos homens que descobrem
várias verdades essenciais, ela sabia que realmente só descobrimos o
que é morrer, viver e duas ou três coisas mais que, entrevistas no seu
mais extenso sentido, transformam toda a nossa existência. “Sim”,
repetia ela sem descanso, “somos tão cegos e insensatos que
destruímos aqueles que nos são mais caros, os seres que mais
amamos. Somos nós que os matamos, como um criminoso mata no
escuro.” E lembrava-se de Jaques, dos primeiros tempos em que o
conhecera, procurando em vão associar as duas imagens, a antiga e a
nova, Jaques daqueles tempos com o homem o que vira agonizar junto
dela, cabelos brancos, sem uma palavra de revolta. É fácil destruir a
imagem de um ser que amamos, mas é extremamente difícil recolocá-
la no coração, Clara lembrava-se também dela própria, da sua ida à
casa do farmacêutico, da sua discussão com Jaques, de todos esses
pequenos acontecimentos familiares que rapidamente se tinham
convertido numa onda destruidora. Das virtudes dos homens, sem
dúvida a mais rara é a caridade. Não a simples caridade do fariseu, a
esmola dada, o supérfluo dividido, o inútil abandonado à fome dos
outros — mas a coragem de não levantar a mão contra nós mesmos,
contra a sagrada imagem que representamos neste mundo. Pois Clara
tinha chegado à conclusão de que não fora só Jaques que
desaparecera, mas que também ela própria sucumbira, arrastada pela
voragem. Era inútil procurar esconder, seu papel estava terminado,
nada mais tinha a fazer, sua vida tornara-se inútil. E assim o fim já se
desenhava. Pela primeira vez ela compreendeu o que era sentir-se à
margem, isolada, perdida, sem destino sobre a terra. Estes
pensamentos levaram-na mais longe, a conclusões mais decisivas. É
exato que o mundo é cruel para com as crianças, um inferno para suas
pequenas almas sem segurança. Nada, entretanto, poderá se comparar
ao suplício que representa para os velhos. Toda a crueldade dos
homens, toda essa satânica sabedoria adquirida numa existência de
torpes ambições e fraquezas premiadas, desenvolve-se, torna-se mais
aguçada, a fim de desferir o golpe final contra as inermes vítimas.
Nada poderá salvá-los dessa fúria que lhes nega cada parcela do ar que
respiram. Eles devem se habituar a falar sem que ninguém lhes ouça a
voz, a se contentar com as sobras dos festins dos outros, a não
atravessar jamais os limites de uma existência condenada. E tudo isto
ainda é pouco — que sabemos realmente dessas faces cansadas que
vagueiam nos fundos das casas, desses olhares apagados que emergem
das janelas, dessas ambições sem horizontes, desses ideais que já não
se prendem mais à terra, desses conselhos que ninguém mais
reconhece, dessa experiência que ninguém aceita? Sim, Clara sabia
que sua missão estava cumprida. Agora era ela quem recuava para a
sombra e cedia lugar aos que chegavam. Sílvio já era um rapaz,
precisava viver, desenvolver-se. Ela jamais se oporia a que ele seguisse
o seu caminho, com essa cegueira de tantas mães que projetam uma
sombra enorme sobre os frágeis destinos dos filhos. Não carregaria
mais nenhuma culpa desta natureza para apresentar aos olhos de
Deus. E por um instante, pensando no que seria a sua vida para o
futuro, viu Sílvio distante, inacessível, entrando em casa sem
cumprimentá-la, como fazia a Jaques. Uma dor aguda estreitou-lhe o
coração. Sabia que o filho a tinha julgado, que aos seus olhos ela não
encontraria remissão. Em vão procurava atenuantes, preparava
desculpas e desfiava difíceis razões. Sílvio jamais se demoveria do seu
ponto de vista. Tinha reparado sua faina naquela manhã, arrumando a
casa, enquanto no quarto o marido agonizava sozinho. Tinha-a visto
tantas vezes, entregue exclusivamente ao seu capricho, surda a todos
os esforços de Jaques, ao seu desejo de perdão, à sua ânsia de vida…

E ela se via nos dias vindouros, sozinha, contando as horas, os


minutos, vestida de preto, passeando de um lado para outro,
rememorando sem descanso uma vida carregada de secretas culpas.
Sua impressão foi tão forte que aquilo rompeu na sua alma como um
grito sufocado: “Meu Deus, que fiz eu da minha vida, por que perdi
dessa maneira a minha alma?” E, neste instante, elevando os olhos
deparou com a dolorosa imagem. Uma repentina e miraculosa
serenidade derramou-se no seu coração e, caindo novamente de
joelhos, ela compreendeu que, se é comum perceber que a vida é um
mistério, já é um dom sagrado desvendar suas remotas engrenagens e
sentir a sombra de Deus sobre o nosso destino. Não é só a culpa que é
imensa, a Graça também. E não era precisamente a Graça que ela
sentia irromper afinal, vitoriosa, através de tantas trevas acumuladas
na sua alma?
Terceira parte
1

— É uma vergonha — disse Áurea — que um rapaz da sua idade


ainda não saiba dar laço em gravatas.

Depois de vários minutos em que tentava inutilmente armar um


complicado nó, Sílvio, desanimado, sentou-se junto ao espelho. Era a
primeira vez que ia a um baile e se achava tão nervoso que quase
inutilizara a bela gravata de seda azul com que Clara o presenteara.
Via-se que estava próximo a abandonar tudo e a se refugiar de novo no
meio dos seus livros, único mundo em que realmente se sentia à
vontade. Aliás, só aceitara este convite por insistência de Clara, que
temia vê-lo transformado aos poucos num selvagem. “Um rapaz como
você”, dizia ela, “não pode passar a vida fechado em casa.” Como já
várias vezes tivesse se recusado aos convites que recebia, Sílvio
aceitara aquele. Mas tinha certeza de que não encontraria nenhum
prazer e que semelhante acontecimento, tão natural na vida de rapazes
como ele, se transformaria num verdadeiro suplício para sua timidez.
Além disso, Sílvio detestava o ruído e as reuniões buliçosas.
Geralmente não sabia como se manter e expressar suas opiniões,
mantendo-se num penoso estado de dúvida e inquietação, que em
breve se transmitia aos outros. No fundo, conservava um inato
desprezo por essa ânsia em “ter razão” que caracteriza a conversa da
maioria das pessoas. Não se importava que o supusessem errado ou
discordassem dele. Não sentia e não compreendia senão as longas
conversas a dois, em que expunha suas descobertas e comparava-as
com as dos outros, sempre pronto a retirar desses dados alguma coisa
que o auxiliasse a compreender a obscura engrenagem que governa o
mundo. Era um traço predominante do seu caráter esse desejo de
compreender todas as coisas. Talvez fosse este o motivo por que seus
amigos eram raros, ou melhor, inexistentes. Decerto, não encontrava
nenhum com quem pudesse conversar segundo sua predileção, todos
voltados para problemas geralmente sem importância — como a
maioria dos que preocupam: os homens naquela idade, aventuras com
mulheres, ambições mesquinhas ou essa estranha sede de diversão e
esquecimento que afeta até mesmo os espíritos mais fortes. Assim, sua
vida decorria quase que inteiramente solitária. E o seria, se não fosse
Clara, sua compreensão da natureza do filho, suas longas conversas e
leituras em comum. Não havia mistério entre eles, fosse porque Sílvio
lhe revelasse tudo o que de importante se passava na sua vida, fosse
porque Clara tivesse de todos esses fatos uma intuição segura. Muitas
vezes, pensando no que ultimamente se passava, Clara imaginava que
a morte de Jaques, que a princípio ela acreditara como destinada a
separá-la ainda mais do filho, aprofundara, ao contrário, os laços que
entre eles apenas se esboçavam. Não conseguira ainda explicar esse
mistério, mas sentia que todo o mal se achava definitivamente
afastado, e que afinal haviam entrado num largo período de calma.

Por essa época Sílvio, que já fizera vinte anos, era um rapaz
franzino, de cabelos quase louros, traços delicados e firmes. Seus olhos
não eram cor de cinza nem azuis, mas de um castanho muito claro, e
davam extraordinária vida à sua fisionomia, talvez excessivamente
pálida. Via-se ao primeiro golpe de vista que era nervoso e ágil, se bem
que controlado; às vezes, sob esta calma aparente um movimento ou
uma palavra brusca denunciavam uma violência cuidadosamente
adormecida, dilatando ainda mais seus grandes olhos claros na face
repentinamente sombreada. Sem vaidade, sua maneira de vestir
denunciava entretanto um severo cuidado. Suas roupas, pouco
vistosas, exprimiam bem essa secreta paixão pela ordem, pela
simplicidade e pela nobreza de atitudes. Toda a força da sua natureza
se concentrava numa outra espécie de paixão; a leitura. Lia tudo o que
encontrava, de preferência romances. Mas não escolhia, devorava tudo
desordenadamente, sempre às voltas com jornais e catálogos de
livrarias. Clara, que atravessara um longo período de desinteresse,
sentira reacender-se no seu espírito sua antiga paixão pelos livros e
acompanhava o filho, querendo saber suas opiniões a respeito de todos
os volumes que lhe passavam pelas mãos. Ele não se negava, desejoso
de introduzi-la nesse mundo onde se movia com tanto interesse e
liberdade. Às vezes, falava-lhe até mesmo no plano de um romance
que sonhava escrever. Chamar-se-ia “Adolescência” e trataria da vida
de rapazes e moças mais ou menos da sua idade. Clara escutava-o,
cheia de esperança. Mas, aos poucos, se para o seu espírito agitado
este modo de viver trouxera certa tranqüilidade, não deixava
entretanto de ponderar os motivos do filho e achar que lhe era
necessário um pouco mais de vida exterior. Não tardaria muito que ele
tivesse de procurar por si próprio outros meios de subsistência. E ela
não ignorava que lá fora a vida era difícil, e temia vê- lo fracassar nesse
árduo combate. Além disso, não queria vê-lo transformado num
selvagem. Até aquela data, Sílvio nunca havia penetrado num salão,
desconhecia todas as etiquetas e, segundo sua maneira de pensar,
ignorava até o modo pelo qual se devia cumprimentar uma senhora.
Freqüentes vezes Clara fazia alusões à necessidade dele travar
relações, instigando-o a freqüentar as festinhas da vizinhança ou as
reuniões do clube local. Sílvio se esquivava, encontrando sempre
razões que ela não ousava destruir, com a imagem da sua própria
mocidade sempre presente. Na verdade, não fora ela também uma
espécie de pequena selvagem?

O fato é que Sílvio, precocemente amadurecido, conservava um


enorme desencanto por coisas dessa natureza; nada do que interessava
à gente da sua idade conseguia ter realidade para ele. No seu
pensamento ressurgiam sempre as imagens de Diana, Esperança e
Lina, em quem havia corrompido muito da força e da alegria de sua
adolescência. Se às vezes as misturava, esquecendo o que há tantos
anos atrás Diana representara na sua existência, é que todas elas lhe
transmitiam a mesma sensação de dúvida e mal-estar. Não eram três,
mas as mulheres em geral, que se achavam compreendidas nesse
bizarro sentimento. Quando sonhava a respeito das possibilidades de
salvar a sua vida — porque, no fundo, ele a sentia sempre
misteriosamente comprometida — não incluía nunca a figura de uma
mulher, como se daquele lado todas as possibilidades tivessem sido
destruídas. Clara, que adivinhava os seus sentimentos e assustava-se
com a extensão desse precoce mal-entendido, procurava incentivá-lo,
na esperança de que ele encontrasse melhores oportunidades nas
reuniões que freqüentasse. Se até aquele momento ele havia se
recusado, desta última não lhe fora possível escapar e aceitara o
convite. Chico viera à sua casa, expondo os mil e um motivos que
justificavam sua entrada como sócio no clube local — e Clara, que de
ordinário não olhava o rapaz com muita benevolência, apoiara-o,
destruindo os frágeis argumentos apresentados por Sílvio. Resolvida a
questão, entretanto, ele não duvidou um só minuto de que tudo seria
um irremediável fracasso. Clara fizera questão de que ele se
apresentasse com roupa nova, ela própria cuidara dos detalhes. Ainda
na véspera do baile, com o terno cuidadosamente disposto sobre a
cama, Sílvio olhara tudo aquilo com enorme displicência. Clara,
entusiasmada, experimentava a gravata sobre o tecido, chamava
Áurea, afirmando que indubitavelmente o filho seria o rei da festa.

Era sobre isto que Áurea pensava naquele momento, vendo-o


terminar afinal o malfadado laço. Realmente Sílvio parecia ser ainda
mais moço do que era, sua fisionomia resplandecia num sadio calor,
seus cabelos brilhavam numa luz dourada. Desprendia-se dele esse
fluido de mocidade, essa força secreta que em determinada época
empresta à vida uma tão bela e significativa expressão. Como havia
crescido, como estava diferente aquele que há muitos anos atrás ela
recebera enrolado num modesto cobertor de lã... Sílvio era hoje um
perfeito rapaz, e nos seus gestos seguros, controlados, no seu olhar
franco e leal, no seu modo decidido de pisar, vislumbrava-se o homem
que marcharia até o fim de cabeça erguida, e ao mesmo tempo sob o
impulso romântico e aventureiro que herdara do pai. Rapidamente,
enquanto Sílvio ajeitava os cabelos uma última vez, ela reviu toda a
sua existência, até os mínimos detalhes, tão amalgamada à sua como
se fosse ele seu próprio filho. E de repente, vendo-o voltar-se para
melhor se olhar ao espelho, pressentiu com estranha nitidez que
naquela noite alguma coisa de decisivo se passaria, e que o simples
fato de Sílvio envergar uma roupa nova selava para sempre um
período da sua vida. Qualquer coisa começava, uma existência que ela
ainda não podia definir, mas que parecia relegar para o passado o que
até agora ambos tinham vivido em comum. Decerto ela ainda não
sentira com tanta força se impor a sua natureza de homem — até agora
vira-o mais como uma criança, um ser nascido à sua sombra,
alimentado com muito da sua limitada experiência da vida. Pela
primeira vez, diante daquele espelho, sentira que havia nele uma outra
coisa, um mundo fechado, qualquer coisa que se voltava para regiões
mais altas, onde ela já penetrara um dia e onde agora jamais
penetraria, região por onde afinal se rasgava sua estrada de homem
livre. Daquele minuto em diante seus caminhos se separavam, e
começava para ele o futuro para o qual havia se preparado. Áurea
sentia sua missão terminada e, com o coração confrangido, media a
vasta extensão do caminho percorrido.

Sílvio se afastara finalmente do espelho e sorria. Toda sua


fisionomia exprimia uma completa satisfação consigo mesmo — e era
este o traço mais pueril da sua natureza, uma brecha por onde
extravasava, ardente, todo o fulgor dos seus vinte anos. Áurea ainda
fez dois ou três comentários acerca do seu vestuário, recomendando-
lhe coisas que o obrigavam a sorrir, tanta ingenuidade havia nelas e
nessa singular maneira de encarar aquela festa como um
acontecimento decisivo na sua vida. Ela o tratava com os mesmos
cuidados e as mesmas inquietações de quem fosse vê-lo partir para
uma longa viagem. Antes de sair, Sílvio voltou a procurar Clara. Ela
abandonou o romance que estava lendo e, depois de examiná-lo da
cabeça aos pés, declarou-o impecável.

– Voltarei cedo — afirmou Sílvio, retirando-se.

Mas na sala de jantar, voltando-se para Áurea que não o


abandonava, disse cheio de emoção:

– Tenho certeza de que não vou gostar. Áurea. Já conheço


bastante essas coisas e sei que não foram feitas para mim.

Despediu-se, sem conseguir extinguir a sombra que de repente


havia descido ao seu olhar.

E tudo tinha sido como ele imaginara. Sentado junto às


pequenas palmeiras que enchiam a varanda, Sílvio via deslizar os
pares enlaçados, na sala fortemente iluminada. Iam e vinham junto à
janela aberta, e através da música ele conseguia distinguir os
cochichos e os risos abafados. Um ou outro empregado surgia, com
bandejas nas mãos, oferecendo doces e bebidas aos convidados.
Vendo-os, Sílvio pudera medir afinal o quanto odiava aquelas pessoas,
seu modo de vida e sua maneira de encarar as coisas. Diante deles
tudo o que sabia perdia sua razão de ser; segundo a superficial lição
que exprimiam não só os gestos mas até mesmo a sede de diversão
daquela gente, a vida é um acontecimento que atravessamos de olhos
fechados, sem consciência da sua profundidade, num esforço para
esquecer a origem e jamais lembrar do fim. E Sílvio sentia-se
deslocado, sufocado naquela multidão, excessiva mesmo para a sala
espaçosa, ávida e cruel. Flutuava em meio à algazarra, sem meios para
fugir ou pactuar com ela. No princípio ainda fizera alguns esforços,
dançara uma ou duas vezes com uma pequena que conhecera na
estação. Mas o seu rosto sardento, aureolado de cabelos ruivos,
exprimia tão grande superficialidade que ele acabou por se cansar
daquele prolongado silêncio, abandonando-a de súbito a um canto da
sala. E, como embaralhasse desculpas, ela fitou-o com indisfarçado
rancor. Sílvio compreendeu então que havia adquirido uma inimiga.
Desalentado, sem saber como devia agir, colocou-se de lado,
procurando ouvir o tom das conversas, a fim de se orientar melhor
para a próxima vez. Mas parecia-lhe impossível repetir as futilidades
que ouvia, mal acreditava que existissem pessoas que se interessassem
por coisas daquela natureza. Uma senhora gorda aproximou-se dele,
iluminada por um enorme sorriso de ternura. Desculpou-se, agitando
um leque cravejado de miúdos pedaços de madrepérola. Via-se que
sua mocidade estava bem longe, mas sem dúvida a mulher julgava
retê-la ainda, acumulando sobre sua pessoa um mundo de objetos
faceiros, laços, broches e pentes cravejados de pedrinhas coloridas.
Pôs-se a falar sem interrupção, criticando todas as pessoas que se
achavam na sala. Enervado ante aquela onda de tolice e ao mesmo
tempo cego pelo excesso de brilhos causados pelos movimentos
frenéticos da mulher, Sílvio despediu-se, encaminhando-se para a
extremidade oposta. No caminho tropeçou, ia jogando um vaso ao
chão e prendeu a manga do paletó nas franjas do vestido de uma
senhora de idade. Ela deixou escapar um gritinho e imediatamente
uma roda solícita se formou em torno dela. “Meu Deus!”, exclamou
sem poder se conter, “que estouvamento!” Vermelho, Sílvio tentou se
desculpar — e ao longe a senhora do leque ria, sentindo-se vingada.
Não podendo mais suportar a sala, ele correu para a varanda,
deixando- se cair num banco com um profundo suspiro de alívio. A
brisa soprava e trazia do jardim um perfume ácido de magnólia. Ele
ouviu alguém que se movia no fundo da varanda, escondido sob um
enorme vaso de begônia. Inclinou-se como para apanhar um objeto no
chão e deparou com uma mulher alta, magra, de óculos escuros, uma
expressão amarga no rosto destituído de graça. Ela deitou ao rapaz um
longo olhar de cobiça, e ele voltou apressadamente à sua primitiva
posição. Ouviu que a mulher suspirava, e aquilo lhe causou um penoso
sentimento de mal-estar. Lá dentro a música havia se detido
momentaneamente, pares cochichavam junto à janela. Alguém
reclamava um sorvete em voz alta e uma moça loura, meio tonta, ria
amparada por dois rapazes de cabelos cuidadosamente frisados. Sílvio
fitava-os, sem conseguir sufocar o seu desgosto. Junto à pilastra, sob o
vaso de begônia, a mulher de óculos suspirou de novo. Ele não pôde
mais, levantou-se, desceu a escada, ganhou o jardim. A música
recomeçara, na sala o burburinho se extinguia. Sílvio ganhou uma
alameda que conduzia ao caramanchão. Era o único lugar iluminado,
todo o jardim se achava às escuras. Dálias surgiam inesperadas e
brancas dos canteiros bem cuidados. Ao se aproximar do
caramanchão, Sílvio ouviu vozes e se deteve: através das trepadeiras
mal trançadas, percebeu dois vultos unidos, um par que se beijava.
Afastou-se envergonhado, sentindo a areia rangir escandalosamente
sob seus pés. Antes de voltar a atingir a escada, porém, deteve-se de
novo: os dois rapazes bem penteados desciam os degraus, cercando
uma jovem que ria olhando alternadamente para seus admiradores.
Pareceu-lhe menos loura do que quando a vira na sala, seria a mesma?
E recuou, esperando que os três passassem, mas o grupo tomou outro
caminho, dirigindo-se para um tanque que ficava no fundo do jardim.
Do lugar em que estava, Sílvio ouviu o repuxo cantar; qualquer coisa
mágica parecia flutuar dentro da noite serena. Neste minuto ele sentiu
pesar sua solidão e invejou os vultos que passeavam na sombra. Uma
densa melancolia estreitou-lhe o coração, teve a impressão de que
jamais sairia daquele círculo fechado em que vivia. Fora da sua
consciência o mundo era tão diferente, tão leve e cheio de
esquecimento! Ganhou a escada, sentindo o perfume que a moça
deixara no ar. Sentiu seu coração palpitar mais forte, lembrando-se do
radioso vulto que deslizara junto dele. Coisa estranha, a moça não lhe
pareceu inteiramente desconhecida. De longe, não pudera perceber
quem fosse, ofuscado pelo esplendor do seu vaporoso vestido branco.
No momento em que sentava no banco que já ocupara momentos
antes, reparou que o grupo voltava, ouvia-se distintamente a risada da
moça. E mesmo esta risada, plena, de uma força sadia resplandecente,
evocava nele qualquer coisa de íntimo, ainda não identificada.
Desejando vê-la melhor, ocultou-se junto às folhas de uma palmeira. O
grupo se aproximava lentamente, a moça ainda ria. No momento em
que ela pisava o primeiro degrau, Sílvio reconheceu-a: era Diana. Seu
coração pareceu estacar de repente e uma nuvem escura passou-lhe
pelos olhos. Sim, era Diana, reconhecera-a pelos cabelos soltos, os
mesmos que vira há tantos anos atrás na festa do carrossel. Ela subia,
olhos baixos, segurando a saia com uma das mãos. No alto, deparando
com a figura do rapaz semi-oculta pelas folhas, deteve-se um minuto,
como se fosse cumprimentá-lo. Mas, erguendo a cabeça, afastou-se
devagar, em direção à sala. “É ela”, murmurou Sílvio consigo mesmo,
perdido, acompanhando-a com o olhar. Diana perdeu-se na sala cheia
de gente. No ar, entretanto, errava o mesmo suave perfume. Sílvio
julgou reconhecê-lo, também, num esforço que parecia reimplantar de
um só jato, na atmosfera nova, o antigo mundo dos seus sonhos. Mas
não teria ela compreendido o seu olhar? Seria possível que não
voltasse, que não lhe estendesse as mãos como no passado?
Aproximou-se da janela, tentando distingui-la entre a multidão. Não
conseguiu no primeiro minuto, atordoado com o mundo que
rodopiava ao som da valsa. Mas afinal, no fundo, entreviu-a encostada
displicentemente a uma coluna, acompanhada somente por um dos
rapazes. O primeiro movimento de Sílvio foi o de atravessar a sala e
falar com ela, mas a timidez o reteve. De longe julgou perceber uma
sombra no rosto da moça, o cansaço já parecia dominá-la. Diana
estava mais frágil, mais bela. E a luta entre sua timidez e o desejo de
procurá-la converteu-se para ele num atroz sofrimento. A moça de
óculos tossiu, procurando sem dúvida fazer notada a sua presença. E
ele ia se decidir quando viu Diana despedir-se do companheiro e
atravessar lentamente a sala. “Compreendeu o meu olhar, vem falar
comigo”, pensou ele, num alvoroço. Mas ainda desta vez a moça se
deteve na outra extremidade da sala, conversando com a senhora do
leque de madrepérola. Então ele se lembrou do que lera a respeito da
vontade transmitida pelo pensamento e concentrou o seu,
ingenuamente, na idéia de obrigá-la a vir até à varanda. Coincidência
ou não, Diana despediu-se da senhora e encaminhou-se realmente
para o lado de fora. E, vendo que agora o encontro era inevitável,
Sílvio sentiu o ânimo fugir-lhe e uma espécie de pânico se apossar do
seu espírito. Ela o teria reconhecido, ainda se lembraria do passado,
seria a mesma? Mas antes que pudesse responder a tais questões viu-a
diante de si, imóvel, um sorriso nos lábios. Ele disse “boa-noite” numa
voz insegura, ofuscado pela sua extraordinária beleza. A moça devia
ter compreendido a impressão que causava, pois aproximou-se ainda
mais, respondendo ao cumprimento. Mas pelo brilho curioso dos seus
olhos — os mesmos que ele tanto amara na sua infância — Sílvio
percebeu que ela não o tinha reconhecido. Só naquele minuto ele se
lembrou de que também podia se ter modificado fisicamente. Não
estava ante uma outra Diana, apesar de tê-la identificado
imediatamente? Ao mesmo tempo uma voz cheia de amargura
segredou-lhe “não” — e ele compreendeu que após tantos anos era
somente ela quem não conseguia reconhecê-lo. Diana parecia esperar,
e, realizando um esforço supremo, ele disse:

– Decerto não se lembra mais de mim. . .

A moça examinou-o, procurando inutilmente se lembrar.

– Não, não me lembro — confessou depois de algum tempo.

Brincamos juntos quando esteve aqui da outra vez.

– Então, você… — disse ela, hesitando.


– O meu nome é Sílvio — esclareceu ele, sem tirar os olhos do
seu rosto.

– Sílvio! — exclamou ela, iluminada. — Agora me lembro. Mas


você está tão diferente!

Tomou-o pela mão, sentaram-se no banco. E durante algum


tempo, olhos nos olhos, desfiaram um mundo de recordações
adormecidas. Diana pediu desculpas por não o ter reconhecido.
Lembrava-se bem das caminhadas, dos passeios junto ao rio, do que
acontecera no dia da sua partida. Ele ficara segurando umas caixas de
chapéu, não era verdade? E ainda trazia bem nítido na memória que,
conversando com o padrinho, sentira um brusco solavanco e percebera
que o trem já se achava em movimento. Inclinou-se para fora e agitou
o lenço, até que perdeu de vista a pequena estação. E, à medida que ela
falava, Sílvio sentia que

à varanda. Coincidência ou não, Diana despediu-se da senhora e


encaminhou-se realmente para o lado de fora. E, vendo que agora o
encontro era inevitável, Sílvio sentiu o ânimo fugir-lhe e uma espécie
de pânico se apossar do seu espírito. Ela o teiia reconhecido, ainda se
lembraria do passado, seria a mesma? Mas antes que pudesse
responder a tais questões viu-a diante de si, imóvel, um sorriso nos
lábios. Ele disse “boa-noite” numa voz insegura, ofuscado pela sua
extraordinária beleza. A moça devia ter compreendido a impressão
que causava, pois aproximou-se ainda mais, respondendo ao
cumprimento. Mas pelo brilho curioso dos seus olhos — os mesmos
que ele tanto amara na sua infância — Sílvio percebeu que ela não o
tinha reconhecido. Só naquele minuto ele se lembrou de que também
podia se ter modificado fisicamente. Não estava ante uma outra Diana,
apesar de tê-la identificado imediatamente? Ao mesmo tempo uma voz
cheia de amargura segredou-lhe “não” — e ele compreendeu que após
tantos anos era somente ela quem não conseguia reconhecê-lo. Diana
parecia esperar, e, realizando um esíorço supremo, ele disse:

Decerto não se lembra mais de mim. . .

A moça examinou-o, procurando inutilmente se lembrar.

Não, não me lembro — confessou depois de algum tempo.

Brincamos juntos quando esteve aqui da outra vez.

Então, você. .. — disse ela, hesitando.

O meu nome é Sílvio — esclareceu ele, sem tirar os olhos do seu


rosto.

Sílvio! — exclamou ela, iluminada. — Agora me lembro. Mas


você está tão diferente!

Tomou-o pela mão, sentaram-se no banco. E durante algum


tempo, olhos nos olhos, desfiaram um mundo de recordações
adormecidas. Diana pediu desculpas por não o ter reconhecido.
Lembrava-se bem das caminhadas, dos passeios junto ao rio, do que
acontecera no dia da sua partida. Ele ficara segurando umas caixas de
chapéu, não era verdade? E ainda trazia bem nítido na memória que,
conversando com o padrinho, sentira um brusco solavanco e percebera
que o trem já se achava em movimento. Inclinou-se para fora e agitou
o lenço, até que perdeu de vista a pequena estação. E, à medida que ela
falava, Sílvio sentia que a moça estava apenas revivendo uma banal
recordação da infância. Não passara de um companheiro, um amigo
nessas férias provincianas, qualquer coisa de vago, que o imprevisto
traz de novo à tona. A voz era a mesma, ele a ouvia, revivendo um por
um seus minutos perdidos. Na verdade reencontrava aquela estranha
sensação que sempre o assaltara junto dela, semelhante à angústia dos
que não sabem direito onde pisam, como se ele amasse apenas um
fantasma, um ser fictício e transitório, uma imagem apagada, uma
bolha de espuma. E no entanto, sem ouvir suas desculpas banais,
indagava a si próprio quantos namorados ela devia ter tido,
passageiros como ele, esquecidos agora como um brinquedo
inutilizado. Como os sentimentos eram efêmeros, como tudo se esgota,
como as emoções fenecem ao desenrolar da vida! E Sílvio sentiu que
aquilo subia lenta e dolorosamente ao seu coração. Enquanto Diana
vivia e se divertia, ele, fiel à sua imagem, não a esquecera durante um
só dia, a ponto de agora reatar o passado, como se tudo tivesse sido
uma só vida. Diana notou o seu silêncio e calou-se também.

– Você também está muito diferente — disse ele —, mas ainda


assim eu a reconheceria.
Diana fitou-o com certa estranheza. Qualquer coisa de
nostálgico surgiu à tona do seu olhar. E, como Sílvio, inquieto, olhasse
para o salão, ela afirmou que se lembrava muito bem de tudo o que se
tinha passado, melhor talvez do que ele imaginava. E para provar
indagou a queima-roupa e com um sorriso ligeiramente irônico se ele
ainda era muito romântico.

– A gente muda com a idade — respondeu o rapaz, perturbado.


— Mas não se muda a ponto de perder completamente defeitos tão
graves!

Vendo sua confusão, Diana desculpou-se, imaginando que suas


palavras fossem a causa de tudo. Mas na verdade era a beleza da moça
que o perturbava. A consciência da proximidade daquele ser feminino
e radioso penetrava-o de maneira lenta e profunda. Todo ele ia sendo
envolvido pela estranha sedução que se desprendia dos seus gestos
harmoniosos, do seu riso claro e da sua voz cheia de misteriosas
nuances. Como Diana se queixasse de sede, ele prontificou-se a
apanhar dois copos de um refresco misturado a vinho que o criado
trazia à varanda. Ela sorveu a bebida com uma avidez que o inquietou.
Não havia ali apenas sede, mas uma espécie de evasão. Em seguida os
olhos de Diana se tornaram mais brilhantes e ela discorreu com maior
facilidade sobre assuntos variados. Sílvio nem sequer compreendia
direito suas palavras, preso à estranha vida daqueles cabelos
ligeiramente avermelhados. Quando acabou de falar, Diana exigiu um
segundo copo, queixando-se que a noite estava quente e que ela sentia
uma sede anormal. De novo Sílvio saiu à procura do criado, mas
refletiu que, ao contrário, a noite era quase fria. “Há nela qualquer
coisa de vulgar”, pensou ele, entregando-lhe a nova dose de bebida.
Enquanto Diana erguia o copo, ele reparou na grande quantidade de
anéis que faiscavam nos seus dedos. Pela primeira vez percebeu o
quanto ela estava presa à vida, aos seus prazeres e ao seu tumulto.
Como para confirmar o que ele imaginava, Diana pôs-se a falar sobre
os companheiros do Rio. Ouvindo-a, ele se lembrava do seu antigo
sofrimento, quando ela discorria nesse tom sereno e nostálgico. Dir-
se-ia que exprimia tudo o que existia na sua alma. E de repente, sem
que pudesse explicar por que, Sílvio compreendeu que a odiava. Sim,
odiava aquela voz, sua maneira de falar e de escolher os episódios que
julgava mais interessantes. Jamais poderia confundir com aquela
criatura o pequeno ser que amara na sua infância. Havia nela uma
sede de vida que a desfigurava. De longe, do salão cheio de gente,
alguém chamou-a. Ela respondeu com um gesto, rindo e agitando a
mão cheia de anéis.

Neste momento, Sílvio julgou entrever um vinco amargo na sua


face, primeiro estigma na sua beleza. Diana voltou a conversar, mas
era visível que não conseguia afastar a atenção da sala. A música surda
agia sobre ela como um ópio. Detinha-se, voltava a olhar pela janela
aberta. No seu esforço para ver alguma coisa seus olhos se fechavam
quase, a luz verde se apagava sob os cílios longos e sedosos. Mas de
repente, lembrando-se do companheiro, ela suspirava, ria, voltava a
contar os casos do Rio. Sílvio sentiu ainda que ela procurava esquecer
alguma coisa. Sem dúvida, o silêncio em que se mantinha
incomodava-a, pois queixou-se do frio, levantou-se, pediu que ele
buscasse uma nova dose de bebida. Sílvio ia obedecer sem protesto,
quando o seu companheiro de dança apareceu na varanda. Ela reteve
Sílvio com um sorriso encantador e disse:

— Deixe. Amanhã nos encontraremos, não?

E deu-lhe o endereço da casa onde morava. Sílvio concordou,


acompanhando-a com o olhar. Reparou como o seu vestido parecia
exagerado para um lugar como Vila Velha. Ela se afastava com a
cabeça inclinada sobre o ombro do rapaz, um pouco tonta. No
momento em que entrava na sala e antes de ser absorvida pelo
turbilhão, deteve um dos criados, apoderou-se de um novo copo e
ingeriu a bebida de uma só vez. Durante alguns instantes Sílvio ainda a
viu rodar, desaparecer, surgir de novo a um canto e afinal mergulhar
definitivamente no seio da multidão. Ele se aproximou da janela,
tentou encontrá-la, julgou entrever ainda uma vez o vestido branco
que girava. Mas tudo desapareceu novamente, o rodamoinho fechou-
se, a orquestra atacou nova música com violência. Sílvio pensou em
demorar-se um pouco mais e procurou ganhar a sala. Mas o calor
sufocava-o, voltou à varanda. O vento frio trazia da noite o mesmo
ácido perfume de magnólias. Galos cantavam. A mulher magra ainda
se achava lá, e assim que o viu tossiu discretamente. Então Sílvio
compreendeu que a noite estava terminada e, descendo a escada,
ganhou a rua deserta.

Àquela hora Clara ainda estava acordada e esperava Sílvio, um


livro nas mãos. Ao ouvir-lhe os passos pensou em ir ao seu encontro,
mas, como olhasse o relógio de cabeceira, verificou que era muito
tarde e preferiu aguardar. Se ele visse luz, não hesitaria em empurrar a
porta. Foi o que realmente aconteceu, pouco depois. O rapaz entrou
timidamente, perguntando se não a incomodava. Clara afirmou que se
achava exatamente à sua espera e se encolheu para lhe dar um lugar
na beirada da cama. Sílvio aproximou-se e ela reparou como seus
olhos brilhavam. Os cabelos desfeitos tombavam-lhe pelo rosto. E
como o silêncio se prolongasse, cheio de questões da parte de Clara e
de hesitações do lado de Sílvio, ela indagou do tempo, se estava
chovendo realmente ou se aquele rumor que ouvia era apenas o vento.
Ele respondeu maquinalmente, olhos voltados para a janela.
Reparando melhor, Clara compreendeu então que ele devia ter
encontrado alguém e quê era a impressão desse encontro que tanto o
perturbava.

– Havia muita gente? — perguntou ela, procurando facilitar a


conversa.

– Muitas — respondeu Sílvio. — Várias pessoas mandaram


lembranças.

E depois de um novo minuto de pausa:

– Também havia gente nova do Rio.

Clara esperou, sentindo que ele se aproximava do fim desejado.

– Moças? — tornou a perguntar, depois de um instante de


espera.

– Acho que sim — disse ele, corando.

E incapaz de ir mais longe:

– Reconheci pelos vestidos. São diferentes, mais bonitos.

E a pausa que se seguiu foi tão profunda que eles chegaram a


ouvir o surdo tique-taque do relógio de cabeceira.

– Mas já é tarde — disse Sílvio. — Acho que é hora de dormir,


não?

Clara mostrou-lhe o romance aberto.

– Estava lendo, não tenho sono.

E à guisa de desculpa:
– Esta noite abafada…

Sílvio levantou-se e suspendeu a vidraça. No céu limpo algumas


estrelas brilhavam. Ele contemplou a imensidão escura com um fundo
suspiro, sentindo que sua alma readquiria novo vigor. Toda a cidade
jazia em completo repouso, só um cão latia ao longe, numa distância
que parecia infinita. Dirigiu o olhar para os lados do clube onde Diana
certamente ainda estaria. De repente, teve a impressão de que fizera
mal e que a não devia ter abandonado. Tudo poderia acontecer
naquela noite, era possível que um destino inteiro se modificasse. E
quem poderia saber se ele perderia ou não Diana para sempre? Nada
deixara que não a deixasse esquecê-lo, que fizesse sua imagem ser
lembrada com um pouco mais de ternura e de calor, tudo se
consumara em gestos rápidos, banais, idênticos aos gestos de todo
rapaz que se encontra de novo com uma antiga conhecida. E devia ter
feito qualquer coisa, tomado uma de suas mãos e nela depositado um
beijo, arrancado ou dito uma palavra de compromisso ou de amor.
Este pensamento causou-lhe uma estranha aflição, pensou em sair de
novo e voltar ao baile. Mas que diria Clara? Abandonou a janela e
voltou a sentar-se na cama. A mãe o observava, esperando uma
explosão a cada instante. Realmente ela veio, mas sob uma forma
inesperada. Pousando sua mão ardente sobre a dela, ele se inclinou e
disse:

— Mãe, nunca soube como você e meu pai se conheceram.


Ela fitou-o e respondeu devagar:

— Também você nunca me perguntou nada a este respeito.

E como Sílvio esperasse, a mão sempre pousada sobre a dela,


rememorou sem esforço tudo o que se passara. Ele tinha razão em
suspeitar, fora num baile também, num rodamoinho idêntico ao que
presenciara hoje. Tudo se repete, a vida é uma cadeia de
acontecimentos já vividos, de emoções já experimentadas, de gestos
esboçados há muito, no silêncio e na sombra de existências
consumadas. Clara ainda trazia bem presente na memória o som da
viola e da sanfona, doce, envolvente, enchendo a noite de singular
magia. Nenhum detalhe se perdera, nenhuma dessas imagens fugidias,
desses nadas que são como as âncoras da memória, um botão que
brilha, algumas notas de uma valsa, uma flor que se desfolha na
obscuridade, parcelas diminutas que servem no entanto de alicerce
para um mundo inteiro de sonhos jamais abandonados. Falava sem
esforço, pois ultimamente havia repassado muitas vezes estes fatos
longínquos. Com os olhos perdidos no vago, o próprio Sílvio parecia
rememorar também o acontecimento esfumado na distância — e via,
com esses olhos que abraçam não só a paisagem mas a extensão e a
profundidade dos sentimentos que a projetam, o pequeno par
deslizando sob o caramanchão armado especialmente para a festa,
coberto de trepadeiras que pareciam fremir e romperem-se aqui e ali,
a um golpe mais forte do luar. De que palavras tinha nascido o desejo
de se unirem na luta contra a fúria da vida, de que sorriso apenas
esboçado, de que gesto mal entrevisto na sombra? E tudo o que mais
tarde os separara, aquela indiferença, aquela incapacidade de perdoar
e esquecer, não teriam nascido ali também, não surgiram naquele
minuto, lado a lado com a primeira visão e a primeira esperança de
felicidade? E Sílvio não percebeu que agora seguia apenas o fio do seu
próprio pensamento, Clara já se calara, olhos fixos nele. A esta altura,
ela pensou em tocar diretamente no assunto que o preocupava, pois
sentia que já o havia adivinhado. Mas, conhecendo o temperamento do
filho, receou ser precipitada.

— Afinal — disse com um suspiro — é realmente tarde, amanhã


poderemos acabar de conversar nestas coisas.

Sílvio sentiu-se apanhado, estremeceu e protestou com


veemência:

— Não! Eu estava ouvindo, conte tudo hoje.

Clara sorriu, vendo sua fisionomia perturbada. No fundo do seu


coração uma outra imagem se levantou, quase idêntica, um pouco de
calor, um átomo de luz, uma faúlha ainda acesa na escuridão de tantas
cinzas revolvidas… E, apesar de tudo, não pôde deixar de imaginar
como tudo no filho ainda era moço, quantas ilusões ainda palpitavam
naquela alma precoce, aparentemente tão despida, tão grave ante os
sonhos, os eternos sonhos da vida.

— Não, Sílvio, é tarde e eu me sinto cansada.


Então ele se despediu, enquanto Clara apagava a luz, entregue
às emoções que aquelas lembranças haviam lhe causado.

No quarto, Sílvio despiu-se vagarosamente e envergou o seu


velho pijama de listas azuis. Depois de ajeitar os travesseiros, apagou a
luz e deitou-se, esperando que o sono chegasse. Mas este não veio, um
sangue diferente, agitado, batia-lhe nas têmporas. “Devo estar
doente”, pensou ele, sem encontrar motivos que justificassem
semelhante excitação. Ouvia os menores ruídos, e todos os seus
sentidos pareciam misteriosamente aguçados. Lá fora o vento arrastou
uma nuvem de folhas secas e o vidro da janela estremeceu. À distância
soaram algumas surdas badaladas. Ele fechou os olhos, procurando se
esquecer de tudo. Mas era assim que parecia ver a moça de um modo
mais nítido, os cabelos soltos, olhos brilhando na obscuridade. “É
impossível que eu ainda a ame”, imaginou ele, revolvendo-se na cama.
“Tudo se passou há tanto tempo, não é possível que ainda exista
alguma coisa.” Mas, apesar disto, sentia a imagem nova confundir-se
com a antiga, e a força de ambas renovar seus adormecidos
sentimentos. “É impossível”, repetiu ele, lembrando-se da sua voz, dos
seus olhos verdes, das palavras que haviam trocado. E a obsessão
dessa imagem aumentou de tal maneira que ele teve a impressão de
que alguma coisa lhe queimava o espírito. Levantou-se de repente,
atirou as cobertas para um lado e foi até à janela. Abriu-a e debruçou-
se no peitoril, olhando as estrelas que agora surgiam mais pálidas e
mais distantes no céu imenso. Qualquer coisa se agitou no fundo do
seu coração, algumas palavras subiram aos seus lábios, um princípio
de oração esfacelada pelo esquecimento. A paisagem era tão grandiosa
no seu imenso abandono que lhe trazia uma sensação diferente e
morna, como se do céu alguém lançasse um olhar bondoso e calmo
sobre o sono dos homens. Mas do fundo, do extremo limite onde a
noite se confundia com o nada, vinha um estranho e forte sentimento
de terror. E foi daí, desse mundo espesso e sobrenatural, que ele viu se
elevar de novo a imagem perdida da menina que amara na infância.
Ela se aproximava com os cabelos soltos e sorria, os olhos brilhando
nas trevas. Sílvio passou as mãos pela fronte, procurando afastar a
obsessão daquela face. “Que se passa comigo?”, indagou em voz alta.
Um perfume doce e frio chegava através da brisa. Ele fechou os olhos,
absorveu-a com volúpia, sentindo sua febre diminuir. E apesar de
tudo, olhando a noite, compreendeu que na realidade um sentimento
novo havia dado uma existência nova às coisas. Não era um antigo
amor que reaparecia, era uma paixão recente que começava a crescer.
Reabriu os olhos e sentiu que pela primeira vez a noite era realmente
noite aos seus olhos, profunda, amortalhando a cidade que respirava
num sono pesado e fecundo. Sílvio abandonou a janela e deu alguns
passos pelo quarto. “Há quanto tempo se passou tudo isto?”, tornou a
perguntar em voz alta. E desde aí foi impotente para reprimir a onda
de questões que se avolumava na sua alma: que viera ela fazer em Vila
Velha, que esperava dele, por que o convidara a ir vê-lo no dia
seguinte? E outras, mais surdas e mais graves, se insinuavam na sua
consciência: que fizera ela durante este tempo, qual fora sua vida, a
quem amara? Pois era evidente que não se tratava de uma criatura
sem experiência. Tudo nela indicava a paixão e o desejo contido. E
aquelas jóias, aquele luxo, quem lho havia dado? E foi nesse instante
que a grande, a tremenda questão surgiu das camadas mais fundas da
sua consciência: afinal, quem era ela? Poderia confundi-la com a
menina que conhecera na sua infância, poderia supô-la tão preservada
como a vira outrora nos seus braços? E Sílvio caminhava de um lado
para outro, indiferente ao tempo. De vez em quando, detinha-se e
contemplava os objetos na obscuridade. Aquele mundo familiar
acentuava sua inquietação. Voltou a se deitar, olhos fechados,
esforçando-se por mergulhar num sono que teimava em lhe fugir. Ao
certo, quantas horas seriam? E de novo o tropel de perguntas
reaparecia na sua consciência: como o receberia Diana no dia seguinte,
de que modo conduziriam suas relações dali em diante? Era evidente
que ela já não se lembrava de mais nada — e, se lembrava, considerava
aquelas coisas como um incidente da infância. Mesmo assim não
deixaria passar aquela nova oportunidade sem tentar investigar o que
ela ainda conservava do passado. Ter-se-ia desenvolvido adormecida
como tantos seres sem interesse, vazios de todo conteúdo da infância,
voltados para algumas pobres misérias da vida, desfigurados como
todos aqueles a quem a existência modela no mesmo cadinho vulgar?
Teria crescido simplesmente, transformada numa “pessoa grave”,
olhos fechados para a verdadeira realidade? Mas era inútil repisar tais
coisas, o futuro resolveria todas aquelas questões. Sílvio abriu a porta
e foi até ao banheiro, onde molhou o rosto com água fria. Sentiu-se
mais aliviado e regressou ao quarto. Mas aí, como os pensamentos se
acumulassem de novo, pensou em sair e caminhar pela rua. Se ao
menos pudesse escapar sem que Clara percebesse! Chegou mesmo a ir
até à porta, mas voltou, tendo ouvido ruído idêntico ao de alguém que
se remexe na cama. Escutou na obscuridade e de fato ouviu a mãe
tossir. Não, o melhor era permanecer dentro de casa. Se a encontrasse,
não saberia explicar o seu gesto. Mas, como olhasse as paredes nuas,
sentiu-se sufocado. Foi novamente até à janela e ouviu o canto dos
galos, que nascia alternado dos quintais distantes. A manhã surgia
devagar. Na penumbra azulada a paisagem readquiria contornos,
coloria-se, úmida como se viesse de um estranho dilúvio. Sílvio
aspirou o ar com sofreguidão, sentindo que afinal seu coração se
apaziguava.

Clara também não dormiu naquela noite. Ouviu Sílvio caminhar


de um lado para outro e sentiu-se preocupada. Mas ao amanhecer,
quando se levantou, todos os seus receios se dissiparam.

Foi até à cozinha, conversou com Áurea e depois encostou-se


junto à porta, olhando o sol que brilhava sobre as folhas verdes e
novas.

Clara envelhecera muito nestes últimos tempos. Ela própria se


assustava, quando deparava no espelho com a imagem daquela
senhora gorda, de cabelos já completamente brancos nas têmporas, de
olhar resignado e sereno. Se antigamente ela quase não usava adornos,
agora seu aspecto ainda era mais severo. Nenhum enfeite, nenhuma
dessas pequenas jóias femininas, nada que lhe perturbasse a rígida
dignidade da aparência, o que em geral causava certa inquietação às
pessoas menos atentas, levando-as a julgá-la de um modo que não
condizia com a realidade. Realmente, quando ela passava silenciosa e
simples, todos diziam que se tratava de uma criatura fechada no seu
orgulho inacessível à boa vontade dos outros, inteiramente destituída
de interesse pelo resto da humanidade. Muitos fatos pareciam
comprovar tais asserções, sua falta de amigas, seu desinteresse pelas
reuniões do “Comitê das Mães de Famílias de Vila Velha”, sua maneira
de viver à parte como se fosse uma estrangeira. Além disso temiam-na,
cumprimentavam-na de longe e na igreja jamais se aproximavam dela.
Mas Áurea, que participava ativamente de todas as reuniões e
comparecia a todas as rodas, costumava transmitir à companheira os
conceitos que no lugar corriam a seu respeito. Clara sorria, indiferente
a esses pobres rumores. Mas aos poucos tornava-se mais distante
ainda, não saía nunca, ia à igreja ao raiar da madrugada. Jamais
punha os pés na estação e evitava as festas que periodicamente se
realizavam nos terrenos da igreja. Somente em casos decisivos visitava
os vizinhos, quando alguém nascia, um casamento era realizado ou um
parente morria. Mas, como não faltasse nunca nos momentos em que
tinham necessidade dela, as más línguas foram se calando e acabaram
por poupá-la, num vago e inexprimível receio. Entretanto, às vezes,
antes do sol baixar completamente, Clara ganhava o caminho do
cemitério e ia até à sepultura de Jaques. Uma roseira brava vicejava
sobre a cova rasa. Ela se ajoelhava na terra escura e, de olhos baixos,
rezava algumas orações, perturbada pelas recordações que lhe
chegavam insistentes e caudalosas. Na quietude do cemitério o sol
morria, chispando em derradeiros reflexos vermelhos sobre as folhas
de metal das coroas. Uma ou outra andorinha passava, a noite descia
mansamente. Ela invejava o repouso de Jaques, revendo sua própria
vida como um longo rio que viesse através de paisagens áridas. Para
ele tudo havia cessado, era hoje apenas um nome sobre uma cruz de
madeira, livre de tantas paixões sem remédio, agasalhado à sombra de
um silêncio que jamais se romperia. À volta sentia-se cansada e parava
um instante sob um espinheiro, a fim de descansar. As juntas lhe
doíam e ela pensava na velhice. “É o começo do fim”, murmurava. No
vale aberto junto à estrada, um veio d’agua cintilava. Bois desciam a
encosta, um grito de aboio soava longe. Clara retomava o caminho,
suspirando. Distante ainda, entrevia Áurea, que a aguardava à porta.
Sílvio aparecia logo depois e vinha ao seu encontro. Como indagasse
onde ela tinha ido, Clara lhe mostrava a folha de malva que ainda
trazia entre os dedos. “Mãe”, dizia ele, “encontrei padre Abreu e ele
pediu para a senhora ir até lá.” Ela indagava o que o padre queria e,
como Sílvio erguesse os ombros, movia a cabeça, com ar preocupado.
A terrina de sopa já fumegava sobre a mesa. Áurea multiplicava-se,
indo de um lado para outro, cantarolando. Um cheiro de rosas entrava
pela janela aberta. Sílvio lembrava que era preciso mandar consertar o
jardim. E Áurea, que sonhava com canteiros novos onde pudesse
plantar margaridas dobradas, dizia que Maria Etelvina havia cercado o
seu com conchinhas que mandara vir do Rio. Clara prometia que para
o mês mandaria procurar o jardineiro. Mas adiava sempre, pois as
encomendas não eram numerosas e a despesa subia cada vez mais.
Sílvio falara mesmo em procurar um emprego, mas Clara se opusera,
dizendo que ele precisava terminar os estudos. Se ele insistia, ela
afirmava então, misteriosamente, que “possuía os seus planos”. E
Sílvio adivinhava que a mãe sonhava em se transportar para uma
cidade maior. Fora sempre esse o seu desejo. Mas, suponho que ela
pensasse nestas coisas apenas por sua causa, temendo sacrificá-la
nunca tocava diretamente em tal assunto. Se o fazia, afirmava que não
tinha nenhuma vontade de abandonar Vila Velha. No íntimo,
continuava a imaginar nas possibilidades de um emprego. Quando
acabava o jantar, Sílvio despedia-se, ia dar uma volta. ]á não andava
com Chico, e os rapazes da sua idade não eram muitos em Vila Velha.
Caminhando, sentia pesar mais fortemente a solidão do lugarejo e o
seu coração se estreitava. Clara, depois de trocar mais algumas
palavras com Áurea, abria um livro ou desdobrava alguma peça ainda
por cortar. Ultimamente fazia flores artificiais, aperfeiçoava-se,
mandava buscar arame e seda na capital! A casa vivia cheia de miúdos
pedaços de cetim, ramalhetes estranhos e variados enchiam as caixas
prontas a serem oferecidas aos fregueses. Trabalhavam em silêncio,
ouvindo o pesado tique-taque do relógio. Quando Clara se inclinava
para reunir algumas pétalas de seda, a luz iluminava fortemente seus
cabelos brancos. E Áurea, vendo-a tão serena, costumava imaginar que
nela todas as paixões haviam desaparecido e que essa calma era uma
conquista definitiva, uma espécie de prêmio da velhice.

Na realidade aquele coração, outrora varrido pelo vento de


tantas paixões irrealizadas, ainda não encontrara sossego. Era verdade
que mergulhara numa calma pesada, num silêncio que bem podia ser a
conseqüência de tantos dias agitados. Mas no fundo ainda sangrava.
Clara vencera, mas não possuía nenhuma estima pela sua vitória.
Agora que já se achava tão longe no percurso da vida, agora que talvez
as tentações jamais voltassem a se apresentar com tão desesperado
encanto, ela indagava a si própria se não teria sido melhor perder
algumas vezes, se não teria sido mais belo conquistar aquele posto
com lutas mais árduas, de ter por memória não um imenso e desolado
terreno branco, mas uma seara algumas vezes manchada de sangue.
Sangue autêntico, sangue de uma vida lançada à luta. E, realmente,
quem pode afirmar que o mal está vencido sem ter conhecido a sua
verdadeira face, quem pode se vangloriar de tê-lo espezinhado sem o
ter conhecido jamais na sua intimidade, quem pode dizer que a pureza
é tudo, se não sentiu o mal em toda a sua onipotência? E não fora ela,
ao contrário, auxiliada pela sua natureza, não constituía aquela
repulsa um movimento natural da sua alma originalmente orgulhosa?
E ultimamente Clara ia mais longe, costumava pensar até mesmo que
a sua luta fora originada não por atração, mas, ao contrário, por
absoluta incapacidade de romper o círculo criado pela sua repulsa e
pelos seus preconceitos. Estas descobertas trouxeram nova luz ao
conhecimento da sua própria natureza. Procurou a igreja com maior
fervor, tentando descobrir nos sermões de padre Abreu alguma coisa
que a elucidasse em tão difícil encruzilhada. Mas o padre, de espírito
simples e incapaz de compreender tais sentimentos, nada lhe fornecia
capaz de aclarar dúvidas daquela natureza. Em vão multiplicava ela as
idas ao confessionário, escrevia detalhados exames de consciência e
procurava semelhanças suas com heroínas de romance. Uma chaga,
uma pequena chaga se abrira na sua alma e ia crescendo com o tempo.
Decerto Áurea não suspeitava do que se passava, mas vendo-a tantas
vezes imersa naquelas cogitações declarava que Clara ia se tornando
excessivamente melancólica. Clara procurava reagir, ria ou contava
um caso. Mas durante todo o dia conservava o coração pesado,
olhando continuamente pela janela e suspirando. Às vezes acordava à
noite, o coração em sobressalto. Nessas ocasiões percebia com terrível
lucidez que a partida estava perdida e que sua vida era uma existência
miseravelmente falhada. Algumas lágrimas subiam-lhe aos olhos, tudo
se diluía nessa penumbra molhada. Com o correr do tempo ela se
tornava sentimental, e aquelas emoções, outrora tão habituais,
encontravam hoje um coração vulnerável, olhos que se umedeciam
facilmente. Clara estava longe de ser a mulher forte que fora em
tempos passados. Ao amanhecer, olhando-se ao espelho, sentia se
dissiparem afinal suas tristes inquietações. Chegava a rir, vendo seus
cabelos brancos. "Na minha idade!”, dizia. Mas, com o avançar das
horas, o inimigo voltava a se apossar do seu espírito. Novas e
insistentes dúvidas lhe surgiam, estragava as pétalas de seda ou
fechava o livro, olhos perdidos na distância. “Você tem ido à igreja?”,
perguntava ela a Áurea, a fim de dissipar aqueles amargos
pensamentos. “Tenho sim”, respondia a outra invariavelmente. Então
Clara suspirava e dizia que padre Abreu não a compreendia muito
bem, gostaria de encontrar outro menos idoso, com quem pudesse
conversar livremente. “E que espécie de conversas são estas?”,
indagava Áurea, rindo. Clara erguia os ombros. Os minutos se
tomavam densos, ela suspirava, levantava-se, ia remexer as gavetas.
Áurea, que a tinha visto suspirar e levantar-se, indagava o que estava
ela procurando. A própria Clara não sabia. Queria apenas ver-se livre
daquela pressão, agitar-se, viver. Todas as coisas falavam daquela vida
que não tivera, daquele amor, tão intenso e profundo, que não
utilizara. À força de sentir o ambiente pesar como uma secreta
condenação, sofria a presença de tudo como um perpétuo
esfacelamento. Não havia repouso, cada minuto era implacavelmente
absorvido por um abismo de gelo e indiferença.

Era sobre isto que ela pensava, caminhando aquela manhã pelo
jardim. Abelhas voavam em torno das rosas abertas, pesadas,
oscilando sobre os canteiros maltratados. Ela se encaminhou para a
grade semi-arruinada e se deteve, olhando a areia da rua que faiscava.
Foi neste momento que viu uma carroça subir lentamente do fundo da
rua. O carroceiro fustigava os animais, imprecando. O veículo veio se
arrastando pesada e barulhentamente e afinal, com um solavanco,
parou defronte da farmácia. A placa de metal onde se lia o nome da
casa, presa à parede por uma seta de ferro, oscilava ao vento frio da
manhã. Clara se inclinou, interessada. O homem desceu, colocando o
chicote junto ao banco e acertando o avental de couro que usava. O
farmacêutico surgiu à porta e ambos penetraram dentro da casa.
Decorreram alguns minutos, em que Clara se manteve na expectativa.
Viu depois que o carroceiro arrastava um móvel para o meio da rua e
reconheceu facilmente a mesa em que se apoiara outrora, quando o
homem procurara beijar-lhe as mãos. Seu coração batia fortemente e
ela não conseguia desviar o olhar da carroça. O homem entrou de novo
e outros móveis vieram para o meio da rua. Ao sol, conservavam um
aspecto mesquinho e ofuscado. No primeiro instante Clara não quis
acreditar no que via, achava impossível que o farmacêutico se
mudasse. Para ela, sua casa fazia parte das pedras da rua, dos muros,
de tudo o que compunha a inalterável fisionomia do mundo que a
cercava. Não podia conceber o fato de passar ante aquela porta sem
vislumbrar a placa de ferro: “Farmácia São Geraldo”. Nunca soubera o
nome do farmacêutico, mas naquele minuto imaginou que fosse
Geraldo. Entretanto, como o visse ressurgir, ativo, esfregando as mãos
e indo rapidamente de um lado a outro, compreendeu que realmente o
farmacêutico partia. Sentiu-se vagamente irritada e, como no seu
coração alguma coisa antiga, escura e imprecisa a atormentasse,
indagou a si mesma que lhe importava aquilo, se afinal não era um
descanso ficar livre daquela vizinhança. “Mas não, não!”, bradou
dentro dela uma outra voz estranha e autoritária. E Clara se inclinou
um pouco mais, examinando a figura do farmacêutico, a quem não via
há muito tempo. Envelhecera também, os cabelos estavam
completamente brancos, se bem que ainda fosse ágil, como nos
tempos passados. Como naqueles dias em que… E Clara fechou os
olhos durante um minuto. Sabia agora que nunca havia lhe perdoado o
fato de amá-la. E o sabia pela melancolia que sua deserção lhe
causava. Não era ele seu escravo, não devia acompanhá-la para onde
se dirigisse, não devia seguir fielmente a sua sombra? Não cometera
um crime, levantando a vista para ela? Clara reabriu os olhos e julgou
perceber certa alegria nos movimentos do farmacêutico. Dir-se-ia que
ele realizava afinal um gesto pensado durante anos, que saía daquela
rua como quem foge de uma prisão. Uma idéia repentina atravessou o
pensamento de Clara. Foi até à porta da cozinha e chamou Áurea.

— Que é? — perguntou esta, aparecendo.

— Corra, dê um pulo à farmácia — disse Clara.

— Para quê?

Ela ergueu os ombros, sorrindo:

— Curiosidade. Acho que o farmacêutico está mudando-se.

— Será possível? — exclamou Áurea, retirando apressadamente


o avental.

E saiu correndo, enquanto Clara voltava a se esconder detrás de


uma roseira. Não queria que o homem a visse, e daquele posto poderia
observá-lo à vontade. Seu coração batia num ritmo cada vez mais forte
e, no íntimo, ela se achava envergonhada da sua fútil curiosidade.
Durante algum tempo o silêncio foi completo no jardim, apenas um
besouro voava sobre algumas rosas desfolhadas. Ao longe, o carroceiro
tentava colocar o veículo numa posição mais adequada, e estalava o
chicote no lombo dos animais. Áurea voltou pouco depois:

— É verdade sim, ele disse que o negócio vai mal e que já está
muito velho.

— Mas não vai reabrir a casa noutro lugar?


— Não vai, não. Disse que tenciona visitar uns parentes perto
daqui.

E, como visse Clara imóvel, olhos no chão, indagou:

— Mas você vai ficar aqui neste sol?

— Vou — respondeu Clara. — Entro mais tarde.

Áurea se afastou, pensando que Clara estava cada dia mais


estranha. Sozinha, esta continuou a seguir as peripécias da mudança.
Já com a carroça cheia, o carregador procurava amarrar os objetos
com uma grossa corda. E Clara pensava reconhecer alguns trastes,
umas cadeiras, alguns vidros bojudos, as bolas coloridas que ficavam
sempre sobre o balcão. Sua tristeza aumentava. Qualquer coisa que lhe
pertencia, profunda e íntima, desfazia-se, desaparecia para sempre no
ar lavado daquela manhã. Lembrando-se dos episódios acontecidos
com o farmacêutico, concluía que não poderia haver solução mais
banal, desfecho mais sem importância. A sua grande aventura
terminava como uma pantomina de circo, relaxada e cheia de ironia. O
carroceiro subiu à boléia, estalou o chicote, e o veículo pôs-se em
movimento. As bolas de vidro faiscaram de repente ao sol, cobrindo os
móveis rústicos com fulgores inesperados e estranhos. Devido ao peso,
as rodas rangiam ainda mais nos eixos secos. Assustadas, algumas
andorinhas levantaram vôo do fio em que se achavam pousadas. E
lentamente a carroça recomeçou a descer a rua. Oculta sob a roseira,
Clara acompanhava-a com o coração apertado, compreendendo que
uma solidão maior, mais profunda e definitiva, estabelecia-se na sua
vida. E era como se perdesse um amigo, um desses entes obscuros a
quem não damos muita importância, mas que sentimos sempre à
disposição dos nossos caprichos.

4
Só quando atingiu a estrada grande é que Sílvio reparou quanto
pesava aquele silêncio entre ele e Diana. Caminhavam há vários
minutos, e ainda não tinham trocado meia dúzia de palavras. Aliás, a
maneira com que a moça o recebera desfizera muito do entusiasmo
com que ele a fora procurar. Apesar da noite agitada que passara,
certamente não esperava que ao primeiro contato se refizesse o antigo
ambiente de familiaridade, mas também estava longe de esperar
aquele ar surpreso, estranho e vagamente cômico com que Diana o
atendeu. Dir-se-ia que não esperava ver tão prontamente aceito o
convite que lhe fizera na véspera. Examinava-o furtivamente,
procurando surpreender na sua fisionomia alguma coisa que lhe
revelasse a razão daquele interesse. Diana não acreditava nesses
movimentos gratuitos e Sílvio desconcertava-a. Não seria excessivo
afirmar que, desde o primeiro instante, ela se sentira chocada com
esse ar de pureza e tranqüilidade que descansava sobre sua fisionomia,
esse aspecto de extrema mocidade que lhe afastava toda sombra de
malevolência, e que ela jamais havia encontrado nos homens. Além
disto, sentindo-o alheio à maioria das coisas do mundo, tornava-se
constrangida e irritada ao mesmo tempo. Voltando a examiná-lo,
como naquele instante, chegava a pensar que estava perdendo o tempo
com uma criança, detinha-se, pensava em voltar, suspirava de tédio e
fixava-o novamente com indisfarçada melancolia. Sílvio não percebia
muito bem o que se passava, completamente aturdido com a presença
da moça. Ela o dominava inteiramente, subjugava-o até às mais
recônditas fibras do ser. Mas, apesar de tudo, sentiu desde o primeiro
minuto, com essa espécie de segundo sentido que tantas vezes nos
revela a verdadeira essência dos fatos, que Diana era uma criatura
completamente diferente dele e que jamais teria acesso ao mundo em
que ela transitava e que iluminava com seu entusiasmo. Mas o destino
de certos homens é o de se obstinarem ante obras em que jamais
conhecerão a vitória. Assim como havia chegado àquela conclusão,
compreendeu que nenhuma força deste mundo o obrigaria a
abandoná-la. Havia nela um perigo que o atraía. Na verdade Diana
apenas aceitara seu convite para dar uma volta porque era esta sua
única esperança de se ver livre mais rapidamente, e depois porque
ainda não restabelecera contato com a vida agreste que lhe fora tão
recomendada. Ao atingirem a estrada, Sílvio admirou uma vez mais
seu talhe esbelto, que a roupa leve e esportiva realçava ainda mais.
Diana se tinha detido e, saltando o fosso cavado à margem da estrada,
procurava apanhar uma flor azul que irrompia através da cerca de
arame farpado. Quando voltou, estava extraordinariamente pálida.
Sílvio lembrou-se que ela parecia estar doente e indagou por que
motivo escolhera Vila Velha para repouso. Antes de responder Diana
aspirou o perfume da flor e depois, colocando-a nos cabelos, indagou
se ele estava lembrado da pessoa que a acompanhara da outra vez.

— Era sua mãe, não? — respondeu Sílvio.

— Sim, era minha mãe — concordou Diana.


E contou que ela morrera há pouco tempo, do mesmo mal que a
trouxera há anos passados àquele lugar. Sílvio apenas se lembrava de
uma visão cinza e rosa, que da janela do trem acenava com um lenço.
Diana prosseguiu dizendo que, depois daquele triste acontecimento, o
padrinho exigira que também ela fizesse um exame. A verdade é que já
andava tossindo e se achava muito fraca. Fora um médico da família
quem lhe aconselhara aquela estação de repouso. No princípio ela
tentara recusar, lembrando-se das obrigações que a retinham no Rio.
Não só obrigações, mas os prazeres também, a companhia dos amigos,
tudo. Mas, como realmente estivesse se sentindo bastante fraca,
esgotada pelos excessos daquela vida agitada, acabara por aceitar. E o
padrinho a tinha trazido para ali, onde já estivera uma vez e onde sua
mãe havia obtido bons resultados. Enquanto ela falava, Sílvio tentava
reajustar o som dessa voz com a que conhecera, sem no entanto obter
nenhum resultado. A boca que pronunciava tais palavras era a mesma,
mas o som era áspero, feria mais do que afagava. Quando terminou,
Diana percebeu a distração do seu companheiro. E, interessada por
aquela face subitamente sombreada, pediu que ele também falasse a
seu respeito. Queria saber agora o que se tinha passado com ele, como
vivera durante esse tempo, quais tinham sido suas aventuras. No
entanto Sílvio compreendeu que ela se interessava apenas como
alguém que se interessa de repente por um desconhecido, jamais como
quem tenta refazer os contornos de uma imagem perdida. E que tinha
ele de novo que pudesse lhe oferecer? Conservara-se terrivelmente
idêntico ao que sempre fora no passado. Só diante dela, frente a frente
com a realidade que ela representava, pudera sentir a profundeza
desta verdade. Tinha medo de que Diana não chegasse a se interessar
por espetáculo tão conhecido. No fundo, devia causar-lhe tédio. Talvez
— mas Sílvio não sabia naquele instante que realmente não
estacionamos nunca, que, se no âmago conservamos algumas
características essenciais, mudamos intensamente em relação às
pessoas. Nunca somos o mesmo filho, o mesmo irmão, o mesmo amigo
ou o mesmo namorado, mas alguma coisa que evolui sempre, cada vez
mais sozinhos, levados exatamente pela força dessas características
fundamentais que não se alteram. Mas naquele minuto, ao iniciar sua
história, teve medo de já ter perdido tudo, de estar lavrando num
terreno estéril. Diana notou pela sua voz trêmula que alguma coisa se
passava. Tocada por essa sensibilidade ferida nalgum ponto obscuro,
voltou-se para ele, no seu primeiro esforço real por adivinhá-lo.
Entretanto o sol já ia alto e ardia nas sebes secas e nuas. Diana sentiu-
se cansada e propôs ao amigo sentarem-se à sombra de uma árvore.
Justamente em face deles se elevava um grande espinheiro, coberto de
miúdas flores cor-de-rosa. Saltaram o fosso e se acolheram sob seus
galhos protetores. Toda a paisagem cintilava, alguns urubus pairavam
num céu que parecia condensar todo o azul disperso sobre a terra.
Diana cerrou os olhos, a testa molhada de suor.

— Fizemos mal em ter caminhado tanto — disse ele, vendo-a tão


pálida.
— Não! Não! — afirmou ela com veemência, pousando uma das
mãos no seu braço. Nem pode imaginar como isto me fez bem!

E aspirava o ar de olhos fechados, com estranha volúpia, como


se absorvesse um tônico que a fizesse reviver tão sã, pura e cheia de
entusiasmo como nos dias da sua infância. Depois reclinou-se numa
grossa raiz, apoiou a cabeça ao tronco e disse:

— Vamos, acabe sua história.

Sílvio narrou tudo o que podia interessá-la, omitindo


cuidadosamente qualquer circunstância que se referisse a Esperança
ou Lina. Quando terminou, ela sorriu:

— Você é curioso — disse, depois de algum tempo.

— Por quê?

— Não sei. Conheço muitos homens, mas ainda não vi nenhum


que se assemelhasse a você.

Pela primeira vez fitava os olhos claros do rapaz e achava-os


belos. Eram dois lagos tranqüilos e dourados, duas verdadeiras pupilas
de criança. Percebia-se que pertenciam a alguém que fora preservado
de certas misérias do mundo; ainda não sabiam mentir e nem
disfarçar, e traíam tudo o que palpitava nos limites da sua consciência.
E ela, Diana, que tão cedo possuía o privilégio de já conhecer todas
essas misérias, simpatizava com aquela juvenil claridade, sentia-se
melhor junto dela.
—É porque talvez eu nunca tenha saído daqui — disse ele,
confuso.

— Não — redargüiu Diana —, mesmo noutro lugar você seria


diferente.

E não falaram mais nada, ambos perdidos num oceano de


melancolia. Apesar de se sentir distinguido pela admiração da moça,
Sílvio compreendera que aquela distinção o afastava ainda mais da
antiga namorada. Instantaneamente, teve intuição de que ela só
amava nos homens o que era exatamente oposto: fora educada num
mundo em que essas coisas eram contadas como valores, sabia
perdoar tudo, desde que a falta fosse cometida com elegância ou
inteligência. Era fácil perceber que se achava precocemente esgotada
por uma vida de contínuas emoções e recorria agora aos prazeres mais
violentos, como doentes a certas drogas venenosas. Não seria muito
tarde para salvá-la? Não estaria ela definitivamente perdida, para
certo gênero de vida, não seria inútil tentar roubá-la a esse mundo que
a corrompera? Para Sílvio, tudo o que Diana representava significava
corrupção; não podia tolerar que uma moça conhecesse determinadas
coisas, que ele reprovava até mesmo nos homens. Não gostava de vê-la
fumar ou beber. Suas roupas, suas sandálias que deixavam à mostra as
unhas pintadas, suas jóias que tilintavam continuamente, tudo isto lhe
causava impressão de pertencerem a um mundo devorado pela
imoralidade. E pela primeira vez, examinando-a, ele indagou a si
mesmo se ela gostaria de alguém. Olhou-a bem: de olhos baixos, ela
esmagava lentamente a pobre flor azul. Então atravessou-lhe uma
rajada de força: se amasse, ele saberia destruir no seu coração aquela
imagem. Diana não poderia pertencer a outra pessoa, constituía para
ele um mundo, a terra de amor que lhe fora destinada por Deus.
Devagar, para não assustá-la, pousou a mão sobre a sua. E, no íntimo,
jurou que haveria de transformá-la numa criatura inteiramente nova.

No primeiro instante não viram senão uma nuvem de poeira,


uma grossa nuvem que ia crescendo ao longe. Depois ouviram o ronco
surdo do motor e afinal o carro surgiu inteiro, brilhando ao sol como
uma folha de aço. Era um “Chevrolet”, último modelo. Vinha em
disparada, e à sua passagem os pássaros fugiam das sebes.

— Olha, é Chico! — exclamou Diana.

Silvio ia perguntar de onde ela o conhecia, mas não teve tempo.


A moça correu para o fosso, colocou-se à margem da estrada,
acenando com o chapéu. A máquina se deteve com um longo
estremecimento de ferragens. A poeira subia lentamente, como um
rolo de fumaça.

— Você! — exclamou Chico, abrindo a portinhola.

— Eu é que me espanto — disse ela —, não o sabia tão


madrugador assim.. .

— Preciso de exercício — tornou ele —, vou à cachoeira. Passei


até por sua casa, a fim de apanhá-la. . .

E deparando com Sílvio, de pé sob a árvore:

— Mas, pelo que vejo, já se acha acompanhada.

— Vocês não se conhecem? — perguntou ela.

— Aqui todo mundo se conhece — respondeu ele, friamente.

E estendendo a mão para o antigo companheiro:

— Você como vai?

Diana percebeu que havia qualquer coisa entre eles; ao frio


cumprimento, sucedeu uma pausa cheia de mal-estar. E afinal, como
ninguém se decidisse a falar em primeiro lugar, ela tomou Chico pelo
braço:

— Venha, sente-se um pouco conosco. Ainda terá muito tempo


para chegar à cachoeira.

Chico já se dispunha a saltar o fosso, quando deparou com a


fisionomia sombreada de Sílvio. Então se deteve, receoso, e disse:

— Mas, em vez disto, por que não vêm vocês comigo? O passeio
à cachoeira é maravilhoso!

Diana murmurou um pálido “não”. E como Chico insistisse, a


mão nos olhos por causa do sol e afirmando que depois lhe
agradeceriam pela idéia, ela olhou timidamente para o companheiro.
Sílvio fitou-a também e sentiu nos olhos da moça o desejo que não se
ocultava.

— Sim, podemos ir — disse ele.

E como Diana ainda tentasse recusar:

—Além do mais você está cansada, a volta é longa e podemos


aproveitar a condução.

Ela concordou afinal e, para agradecer-lhe, deu-lhe o braço.


Entraram no carro, mas Chico exigiu que alguém viesse com ele na
direção. Não queria que o imaginassem um chofer. Diana sentou-se
então a seu lado e o carro pôs-se em marcha. No primeiro momento
foram envolvidos por uma nuvem de poeira, mas o pó desapareceu
rapidamente e a paisagem brilhante e regular recortou-se nítida de
ambos os lados. Casebres, paineiras e ranchos sucediam-se
vertiginosamente. Sem tirar os olhos da direção, Chico orientava a
conversa, afirmando que a zona havia sido destinada pela natureza
para o plantio do algodão, mas que infelizmente no Brasil tudo andava
errado e que tratavam como terras de pastagem um solo cem por cento
fértil. E, como Sílvio ousasse dizer que a criação era praticada ali desde
uma época imemorial, tornou-se vermelho, embrulhou-se numa
explicação científica e acabou afirmando:

— Em São Paulo sim, todos estes problemas estão resolvidos. Há


órgãos competentes, há interesse, o povo trabalha.

Diana não prestava atenção à conversa, preocupada com os bois


que de vez em quando fugiam assustados do meio da estrada. Ela ria,
segurando o chapéu com as mãos.

— É melhor andar mais devagar — sugeriu Sílvio, que não tinha


muita confiança na habilidade do chofer.

— Devagar nunca chegaremos — respondeu Chico.

E, pisando o acelerador, aumentou a velocidade, levantando


novo rodamoinho de poeira. Durante um minuto tudo foi confusão,
Sílvio mal podia abrir os olhos, o rosto açoitado pelo vento. De raro em
raro entrevia ranchos que passavam, bois correndo junto às cercas, um
milharal que ondulava por uma encosta como uma enorme vaga que
se movesse ao sol. E desse caos surgiam as risadas de Diana,
entrecortadas e nervosas. O rio apareceu de súbito numa curva,
irrompendo através de plantações cerradas, luminoso e tranqüilo.
Chico diminuiu a velocidade e, abrindo completamente os olhos, Sílvio
verificou que atingiam o cotovelo da estrada. A subida tornava-se mais
íngreme, atingiam o ponto mais elevado e via-se lá embaixo,
acocorada, junto às plantações de milho, a povoação do Anta. Daquele
ponto, os casebres de palha se assemelhavam a miúdas casas de
formigas, amontoadas na vastidão luminosa da paisagem. Chico freou
o carro e avisou:

— Saltemos. A cachoeira é perto.

Todos saltaram, olhos vermelhos de poeira.


— Queria viver sempre assim — afirmou Diana, apoiando-se no
braço de Sílvio.

Olhava-o como à espera de uma aprovação às suas palavras.


Mas o rapaz não disse nada e rumaram para a cachoeira, cujo estrondo
abafado já se fazia ouvir. À medida que se afastavam da estrada e
ganhavam o mato, as árvores se tornavam mais compactas, formando
aos poucos uma verdadeira abóbada. O ar era úmido e tufos de
parasitas brotavam nos troncos prateados pelo mofo. Borboletas
surgiam cegamente da obscuridade. O ruído da queda se fazia cada vez
mais próximo e, de repente, Diana deixou escapar uma exclamação:

— Que maravilha!

Estavam ante a cachoeira. Uma poeira fina, subindo das


profundezas, dava à atmosfera um aspecto crepuscular. As próprias
árvores se tornavam cinzas, indecisas ante o abismo, agitadas por um
frêmito de expectativa e de medo. Diana, auxiliada por Chico, subiu a
uma pedra rente ao abismo. A água represada entre enormes lascas de
granito precipitava-se surdamente de algumas dezenas de metros. Mas
ao longe, depois de algumas derradeiras convulsões que iam morrer na
areia branca das margens, voltava a deslizar serenamente. Durante
algum tempo, pensativa, Diana contemplou as águas que fugiam. Seu
rosto se umedecera com a poeira d’água, e se tornara mais sombrio do
que de costume. Sílvio, indiferente à paisagem, examinava-a de longe
— e julgou perceber, na sua face, a nítida revelação desse tormento
interior que parecia envenená-la. Instintivamente lembrou-se da face
sem sombras de Lina e não pôde deixar de compará-las, uma se
sobrepondo à outra, como se a máscara marcada pelo sofrimento
sucedesse naturalmente àquela que evidenciava tão grande silêncio de
alma. Ao seu lado, Chico acendia um cigarro, satisfeito consigo próprio
e consciente do prazer que causara à moça. Quando ela desceu,
precipitou-se, exigindo uma declaração formal do seu triunfo,
convidando-a a ir a outros lugares, detalhando maravilhas de que só
ele tinha notícia.

— Outro dia — respondeu Diana, olhando a fisionomia severa de


Sílvio. — Outro dia irei com você.

Percebendo o motivo por que ela recusava tais convites, Chico


mordeu os lábios e, em represália, traçou imediatamente um vasto
programa para os dias seguintes, abrangendo todas as horas e minutos
livres da moça. Ela prometia cumpri-los com certo calor, a fim de
atenuar sua recente recusa. Mas no regresso, durante todo o tempo,
Sílvio percebeu o quanto Chico se sentira atingido. Não o poupava de
nenhum sarcasmo e exigia dele uma constante atenção nas respostas.
Às vezes, abandonando-o nessa inútil batalha, Sílvio imaginava o
quanto realmente se detestavam. Tudo em Chico lhe desagradava,
desde os sapatos brancos que pisavam maciamente o acelerador, até
suas calças de flanela cinza e a camisa esporte, apetrechos de um
verdadeiro “dandy” da cidade. Mas não seria exatamente isto que
agradaria a Diana? Não encontraria ela nessas coisas um reflexo da
sua vida no Rio, um eco dos seus namoros passados? E, fitando-a de
novo, Sílvio achava-a vazia, sem interesse, leviana como todas as
outras. Chegava mesmo a se sentir inteiramente deslocado,
arrependia-se de ter vindo, odiava não só a moça, mas também Chico,
o automóvel, a paisagem inteira. Preocupada com seu silêncio, Diana
voltava-se para ele, sorria-lhe, e Sílvio sentia-se restabelecido na sua
primitiva atmosfera, banhado por uma onda de ternura, de calor, de
qualquer coisa muito doce e íntima. Todo o seu mau humor
desaparecia, o mundo voltava a existir, as árvores farfalhavam à
passagem do automóvel. No momento em que desciam, Diana indagou
se ele também não viria no dia seguinte. Acrescentou que, juntos, os
três poderiam formar um “bom grupo”. A idéia de completar um grupo
com Chico horrorizou Sílvio. Respondeu afoitamente que não poderia
sair nestes dias próximos, tinha muita coisa a fazer. E Diana, com o
mais límpido dos seus sorrisos, insistiu:

— Em todo caso...

Despediram-se. E Sílvio rumou para casa, com a firme intenção


de não reaparecer durante aquela semana.

5
Apesar dos seus propósitos, Sílvio voltou a procurar Diana
algumas vezes. Mas aquela idéia que passou a dominá-lo só apareceu
na última em que tinha estado com ela, quando fora deixá-la em casa.
Ou melhor, surgira antes, no momento em que se dirigiam à estação.
Ela, que já aprendera a adivinhá-lo em tão poucos dias, só notara
porém o seu silêncio quando lhe estendeu a mão para se despedir.

— Que tem você? — perguntou.

Sílvio ergueu os ombros, tomando molemente, entre as suas,


aquela mão que se abandonava.

— Nada.

E Diana, que o fitava nos olhos:

— Mas é evidente que há alguma coisa. Eu é que não quero


forçar os seus segredos.

Não era um segredo. Na realidade carecia muito de importância


para assumir tal aspecto. O certo é que, de volta para casa, Sílvio
sentiu uma vez mais que sua idéia era verdadeira e, mais importante
ainda, que pertencia não à categoria das simples idéias, mas a dos
pressentimentos. Existem pressentimentos para todos os
acontecimentos da vida; os homens é que não os aceitam ou não os
compreendem. Mas é este o significado exato dessas auras que nascem
de repente em torno de fatos banais, esses choques bruscos e essas
visões que muitas vezes se antecipam à realidade ainda distante. Era
sobre o que Sílvio pensava naquele instante, olhando a areia que
fulgurava ao luar. Em redor tudo se achava entregue ao sono e ele
escutava o eco dos próprios passos, nítidos, pesados, reboando
finalmente ao longe como um grito que se despede. “Sim”, repetiu ele
mais uma vez, “hoje ainda é tempo, amanhã talvez seja tarde e…
depois serei um homem perdido.” Ainda era tempo de fugir, agora que
sabia a respeito de Diana tudo o que desejava saber. Naquela noite
ainda possuía autonomia, podia romper facilmente esses laços mal
atados, desfazer uma partida em que o único jogador a sair
prejudicado seria ele. Não era esta a lição entrevista nestes últimos
dias? A cada gesto relembrado sentia suas suspeitas se confirmarem.
Ela não o amava, nunca o tinha amado. Por mais doloroso que lhe
fosse confessar aquilo, sentia que não havia nele suficientes motivos
de interesse para uma moça fútil como Diana, criada nos ambientes
artificiais do Rio. A cada momento ela se lembrava dos amigos que
deixara, suspirava, rememorava casos, ria ou se tornava triste,
conforme as recordações que lhe chegavam. Não era preciso somente
obrigá-la a se voltar para ele — era preciso criar-lhe uma alma nova.
Enquanto caminhava, Sílvio se lembrava de todos os passeios
realizados nestes últimos tempos, os encontros rápidos, em que seus
olhos se cruzavam, a evidente e constante fuga da moça. Era fácil
perceber que Diana só sabia viver em bandos, como que procurando
inconscientemente atordoar-se com a alegria dos outros. Às vezes
Sílvio encontrava-a de lado, presenciando melancolicamente a
algazarra dos companheiros. E sentia, como outras vezes, que aquela
alma ferida sangrava por secreto motivo. Aproximava-se, procurando
confortá-la sem indagar a causa. Entretanto Diana assustava-se,
olhando-o com uma estranheza que o desconcertava. E às suas
perguntas suspirava sem dar resposta. Se ele insistia, afastava-se,
esforçando-se por se misturar ao grupo, com o único intuito de
escapar à sua pressão. Ora, naquele dia todo o bando havia ido a um
sítio distante, onde a fazendeira os esperava com um almoço ao ar
livre. A idéia partira de Chico, que se encarregara também de
organizar o pessoal. Durante a viagem Sílvio notara quanto Diana se
mostrava reservada. Nos seus olhos, descansava uma sombra de um
verde mais profundo e mais estranho do que habitualmente. No carro,
inclinando-se ligeiramente para fora, o vento desatou-lhe os cabelos
presos. E Sílvio, que prosseguia no seu exame em silêncio, reconheceu
que nunca a vira mais bela do que naquele instante, nem mesmo nos
dias longínquos da sua infância. Finalmente havia encontrado alguma
coisa da sua antiga namorada: dessa pensativa atitude desprendia-se o
mesmo mistério feminino, a mesma graça e a mesma paixão que
sentira um dia, ao vê-la no carrossel. Todos os sintomas de cansaço ou
de amargura haviam se dissolvido, só restava uma grande serenidade,
que dava ao seu rosto pálido qualquer coisa de mármore. Chico, que
acelerava o carro, aconselhou-a a prender os cabelos. Diana obedeceu,
amarrando um lenço vermelho na cabeça. E assim se convertera de
novo na Diana que ele viera encontrar agora — a outra não fora mais
do que um reflexo, uma fugitiva visão.

No sítio, enquanto o bando se dissolvia no terreno requeimado


pelo sol, Diana se distanciou lentamente à procura de uma sombra.
Sentou-se sob um limoeiro, a cabeça encostada ao tronco. Sílvio veio
procurá-la e sentou-se junto dela. A árvore estava aberta em flor, e o ar
fortemente perfumado causava-lhe ligeira sonolência. Como fechasse
os olhos, sorvendo na palma da mão o perfume de uma flor que
tombara do alto, Sílvio perguntou-lhe se ela não estava lembrada.
Durante um minuto, em silêncio, ela pareceu refletir. Depois, voltando
para ele os olhos álgidos, perguntou a que se referia. Sílvio riu: tinham
estado naquele mesmo lugar há muitos anos passados. Com o olhar ela
percorreu a paisagem vagarosamente. Era um quintal bem plantado,
com árvores frutíferas e cafeeiros cheios de frutos miúdos e vermelhos.
Sílvio, aproveitando a ocasião, quis saber se ela se lembrava de outras
coisas.

— De quê, por exemplo? — indagou Diana.

Então ele trouxe à baila uma porção de lugares em que haviam


estado juntos, flores colhidas nos caminhos, águas da fonte, matas
devassadas com o coração trêmulo do receio, todos os fantasmas do
mundo colorido e sobrenatural da sua infância. Olhos fixos nos da
moça, procurava não perder nem o mais leve sintoma de emoção. Mas
Diana continuava impassível, nenhum nome, nenhum lugar parecia
ter o dom de trazer à tona uma centelha desse passado submerso. A
cada minuto o seu silêncio parecia mais profundo. A cada evocação ela
parecia tornar-se mais distante. Sílvio, incansavelmente, reavivava os
detalhes mais insignificantes, numa exuberância que chegava a
assustá-la.

— Meu Deus, que memória! — exclamava ela de vez em quando,


vexada.

Ele se deteve, afinal. Diana volveu para ele os olhos admirados,


incapaz de vislumbrar sob essa onda ardente de palavras o desespero
que lhes tinha dado origem. Sílvio aguardava, desamparado.

— Realmente, lembro-me de alguma coisa — disse ela


timidamente e quase a contragosto. — Mas tão pouco! Uma estrada
em que fomos, certa vez...

Melancolicamente ele reavivou os traços dessa tarde famosa,


tarde de que ele jamais se esquecera, como tudo o mais que se referia a
Diana e que permanecia isolado no seu espírito, fechado entre altos
muros, um país de sonhos de que perdera as chaves há muito. Ao
concluir, acrescentou:

— Sempre desejei saber isto, Diana. Você não pode imaginar a


importância que tem para mim esta conversa.

Ela ia indagar por que, mas fitou-o de novo e baixou a cabeça.


Pássaros voavam entre as ramas baixas do limoeiro. Sentindo que não
reencontrariam outras palavras para dissolver aquele silêncio que se
tinha feito, Diana propôs que se juntassem aos outros. Sílvio
concordou, ajudou-a a levantar-se, acompanhando-a lentamente até
ao grupo que se reunira em torno das mesas postas sob as árvores.

Assim, verificara que a paixão da sua infância não fora mais do


que uma ilusão, um simples delírio da sua parte. E todos aqueles
gestos, as palavras de carinho, os signos de secreta concordância?
Procederiam assim todas as criaturas, seria este o jogo utilizado pelas
mulheres? Como podiam conquistar, ferir e desprezar impunemente
almas cândidas como fora a sua?

— Em que está você pensando? — perguntou Diana,


pressentindo neste silêncio alguma coisa desfavorável à sua pessoa.

— Em nada — respondeu ele.

E depois de um minuto:

— Afinal você partiu, viu novas paisagens. Eu fiquei aqui, diante


das mesmas coisas, frente aos mesmos cenários. É natural que para
mim nada morresse.

Ela apenas sorriu e deu-lhe o braço. Ficaram assim alguns


momentos, mal escutando as conversas que se travavam em torno e
aspirando com força o perfume forte que se exalava dos limoeiros.
Sílvio não conseguia sufocar sua amargura, perguntando a si próprio o
que restaria mais tarde daquele instante que viviam. Não havia
nenhuma significação, tudo devia morrer como uma nuvem de pó que
se desfaz? E aquela foi a primeira vez em que ele teve consciência de
que não existe uma realidade comum, total, mas apenas partes que
subsistem ou não na consciência dos homens — um gesto para nós,
silêncio para outros, uma punhalada para alguns, risos para o resto.
Diana desprendeu-se dele a fim de cumprimentar alguém — e Sílvio
sentiu de repente uma vertigem, teve a brusca intuição de que nada
existia, nem ela, nem ele próprio, nem a longa mesa forrada de branco
e coberta de talheres, nem as lembranças e sentimentos que o
agitavam.

— Que foi? — indagou Diana voltando-se e vendo-o


empalidecer.

Ele sorriu a fim de tranqüilizá-la. A vertigem passou, a realidade


amarga ou indiferente reassumiu o seu domínio. Mas durante algum
tempo ele não pôde se impedir de detestar Diana. Não podia nem
mesmo escutar-lhe a voz ou o riso. Causavam-lhe mal, feriam-no como
se fossem pontas agudas. E chegou a detestar até a si próprio, por ser
tão fraco e permanecer num lugar que abominava. “Coloquei muito
alto uma imagem que não vale nada”, pensava ele. E não podia
conceber como todos tivessem passado, evoluído, avançado tão
rapidamente na vida, quando ele ainda era o mesmo e guardava as
mesmas ilusões da infância. “Sim”, repetia consigo próprio, “desprezei
todas as mulheres por ter criado um ideal que não existe. No alto de
uma torre, coloquei um ídolo de cera.”

– Não queria magoá-lo — disse Diana, oferecendo-lhe um


sanduíche.

– Oh, não, não estou magoado! — exclamou ele, numa


veemência que o desmentia.

Ela permaneceu um instante com o prato estendido para ele.

– Por que você não faz como os outros?

– Obrigado — disse ele, retirando um sanduíche.

Diana se afastou, erguendo os ombros. Sílvio permaneceu


sozinho, olhando os grupos que riam e conversavam em torno da
mesa, devorando sanduíches, doces e copos com refresco. O sol
filtrava-se através das ramas do limoeiro e arrancava cintilações dos
talheres espalhados sobre a toalha branca. Abelhas voavam sobre
restos de bolos. Sílvio sentiu-se desamparado como se estivesse numa
ilha deserta. É que ainda não tinha compreendido de que espécie de
solidão era feita sua natureza, e naquele momento ainda lutava, bem
longe ainda dessas tréguas que afinal se concederia um dia, quando
em torno dele tudo estivesse realmente morto — não pela inexistência,
como sua fugaz impressão de minutos antes, mas pela carência de
importância, por tédio, pela compreensão de que tudo isto pertence a
um domínio a que não é mais possível voltar quando se saiu um dia,
ou melhor, quando Deus nos escolheu para caminhar do lado de fora.
Da sua convicção de que Diana não o amava e nunca o tinha
amado, resultou uma imperiosa necessidade de isolamento. Já não
possuía forças para suportar Chico, seus ditos engraçados, a constante
narração dos seus sucessos com as mulheres. Chegara à certeza de que
jamais poderia viver como eles viviam e regressou aos livros, coração
desafogado. Arrumou de novo as estantes abandonadas durante tantos
dias, comprou vários volumes de que precisava e cuja aquisição adiava
sempre, dispôs-se a fazer um largo período de leitura. Além disso,
secretamente, pensava em escrever um romance. Há muito que vinha
sonhando com o assunto e chegara mesmo a rabiscar um plano. Mas
apesar de tudo, passado o primeiro movimento de rebeldia, sentiu
falta das horas que passara junto a Diana, das conversas
monossilábicas, dos passeios que haviam feito sozinhos ou na
companhia de todo o grupo. Clara, que o via com os olhos perdidos no
vago, indagava pela sua saúde. Ele afirmava que não tinha nada e
baixava de novo os olhos para o livro que não lia. Clara não o
importunou outra vez, mas teve certeza de que alguma coisa
importante se passava. Lembrando-se do dia do baile, chegou à
conclusão de que havia uma namorada em cena. E concluiu que mais
cedo ou mais tarde ela viria a saber de tudo. Entretanto, o entusiasmo
de Sílvio pela solidão arrefecia a olhos vistos. Não conseguira ler
nenhum dos livros que comprara, as estantes já se achavam
definitivamente arrumadas, o plano do romance não se desenvolvia.
As horas se sucediam lentas e pesadas, a quietude da casa enervava-o,
a falta do que fazer trazia-lhe sono. “Preciso de um emprego”, pensava
consigo próprio, caminhando no jardim e chutando a esmo as pedras
que encontrava. E este pensamento, que costumava embalá-lo tantas
vezes, levou-o a considerações mais extensas: quando estivesse
empregado, que faria do dinheiro, onde iria, como passaria suas horas
de descanso? O mundo pareceu-lhe um abismo de tédio. A soalheira
ardia além das árvores imóveis, nenhum rumor chegava da cidade. E
certa vez, não resistindo mais, foi até à estação à hora da chegada do
expresso. Sua aparição causou certo rumor entre as moças; seu
aspecto misterioso e grave intrigava as mulheres. Além disso,
consciente da impressão que causava e ao mesmo tempo vaidoso disto,
ele forçava um pouco mais essa gravidade, mal olhava para os lados,
cumprimentando cerimoniosamente os conhecidos. Mas não
encontrou Diana como esperava, um amigo informou-o de que a moça
havia estado lá e que fora com Chico até à represa. O ciúme, sufocado
até aquele instante, surgiu em sua plena onipotência. Sílvio perdeu
instantaneamente sua segurança, sentiu-se infeliz e atormentado. Para
ele já não existiam dúvidas a respeito das relações de Chico e Diana.
Pensou inutilmente em desprezá-la, indagando como podia ela
suportar semelhante tipo. Ao mesmo tempo arquitetou as mais
sombrias vinganças, imaginou escrever-lhe uma carta ou arranjar
outra namorada. Olhou as moças, que, de longe, dirigiam-lhe sorrisos.
Eram todas rústicas, incapazes de compreender o menor sentimento.
Diana devia ter certeza de que estava acima de todas aquelas
camponesas. Imaginando as carícias que os dois deveriam trocar nos
recantos propícios da mata que rodeava a represa, chegou-lhe um
estranho remorso de haver se desvendado de tal maneira. Diana
jamais devia conhecê-lo de maneira tão íntima. Devia guardar-se mais,
era um erro simplório pensar que suas complicadas engrenagens
interiores interessavam aos outros. Não era esta a única vantagem real
que Chico levava sobre ele? Voltou para casa desiludido e cansado.
Mas à noite saiu de novo, foi até à praça, onde as famílias gozavam a
fresca. Uma banda militar tocava um dobrado no coreto central. Novos
conhecidos deram-lhe notícias de Diana, havia passado ali com umas
amigas. Ele sentou-se à sombra de uma árvore, esperando vê-la passar
de novo. O céu, cheio de estrelas, era azul como uma tarde de verão.
No escuro, grandes rosas se abriam nos canteiros bem tratados.
Grupos passavam de um lado para outro, rindo e conversando. Sílvio
examinava atentamente a multidão, esperando a cada instante
descobrir Diana. Mas o tempo passava, a banda atacava outra marcha.
Os metais brilhavam no coreto mal iluminado. Nos cantos mais
escuros, soldados conversavam com suas namoradas. Cansado de
esperar, Sílvio levantou-se e deu algumas voltas. Um cheiro forte de
jasmim errava na atmosfera morna. Ele teve vergonha de passear
sozinho e voltou lentamente para casa. Trazia o coração pesado e o
pensamento amargo. “Que tolice”, imaginava, “jamais devia tê-la
abandonado.” E imaginava que Chico não devia ter deixado escapar a
ocasião e possivelmente arrastara Diana a um compromisso com ele.
Deitou-se e dormiu mal. No dia seguinte voltou à estação, pois ainda
não tinha coragem para procurá-la diretamente em casa. Não a
encontrou, mas ouviu que falavam a respeito dela num dos grupos.
Aproximou-se, a fim de não perder palavra. Comentavam os modos
desenvoltos de Diana e sua maneira de montar a cavalo. Prosseguiu a
caminhada e mais adiante percebeu que nova roda tratava do mesmo
assunto. Estes comentavam o modo por que Diana fumava, e
criticavam sua educação excessivamente livre. Sílvio compreendeu que
ela era o escândalo da cidade. Sentiu que devia procurá-la e não
hesitou mais, correu alegremente ao hotel, onde foi atendido pelo
padrinho. Diana estava no banho, chegaria em poucos minutos. Sílvio,
a fim de dominar sua impaciência, trocou duas ou três palavras com o
homem. E ouvindo sua voz arrastada, mole e sem eco, voz de homem
culto, viajado e cheio de tédio, sentiu a desconfiança morder-lhe o
coração e duvidou de que ele fosse realmente o padrinho da moça.
Neste caso, que representaria junto dela? Teve vergonha de
aprofundar semelhante questão. E Diana apareceu finalmente,
esvoaçante num “négligé” cor-de-rosa. Toda ela recendia, como uma
enorme flor desabrochada na penumbra da sala.

– Que novidade! — exclamou assim que viu Sílvio.

Perturbado pela sua presença, pela vaporosidade da “toilette”


que mal parecia vestir o corpo exuberante, ele articulou algumas
palavras contrafeitas à guisa de explicação. Diana fitava-o com os
olhos úmidos e brilhantes. Sílvio sentiu que ela havia se transformado,
mostrava-se diferente, mais interessada, presa às suas palavras.
Queria saber o que ele tinha feito nesses dias, por que desaparecera, se
andava com outros amigos. Ele deixou escapar a primeira desculpa
que lhe ocorreu: trabalhos. Ela riu, sem acreditar. E a fim de encobrir
sua capitulação ele confessou que estava escrevendo um livro.

– Um livro! — exclamou ela. — Era exatamente o que eu


pensava.

Em seguida, com ar misterioso, afirmou que ela e Chico haviam


conversado muito a respeito dele. Sílvio sorriu. Imaginando as
histórias que Chico devia ter relembrado. Entretanto, mostrou-se
grato àquele interesse, sentindo que o cordial acolhimento desfazia um
pouco sua primitiva impressão. Como silenciasse, sempre ofuscado
pelo esplendor daquele corpo que mal se ocultava sob o “négligé”,
Diana detalhou os lugares a que tinha ido com Chico. E, para reforçar
sua descrição, dizia de vez em quando: “Junto à ponte, lembra-se?” E,
como Sílvio não se lembrasse, ela descrevia minuciosamente a ponte,
afirmando que haviam estado lá quando meninos. Nesse esforço, o
rapaz percebia uma secreta intenção de agradá-lo. A voz de Diana era
morna e cariciosa, o ambiente perfumado. E Sílvio acreditava em tudo,
sentindo se desfazerem suas suspeitas anteriores, seus ciúmes e seus
inúteis ressentimentos. Como o padrinho a chamasse, ele quis se
retirar. Mas Diana o reteve, que esperasse, sairiam juntos.

Voltou com um cigarro aceso, sorrindo. Seus cabelos, ainda


molhados, brilhavam com estranhos reflexos. Uma onda de paixão
invadiu-o, tal como nunca sentira antes. Ao vê-la mover-se de um lado
para outro, não podia acreditar na sua felicidade. Diana o amava,
naquele instante ele sentia que a moça o amava realmente. Sua
maneira de agir não era um claro desmentido ao que se passara no dia
do almoço no sítio? Era este um dos traços que Sílvio herdara de
Jaques: passar rapidamente de um extremo a outro, do mais completo
abatimento ao mais vivo entusiasmo. A noite caía rapidamente, Diana
acendeu a luz e pediu licença para se vestir. Sílvio, a fim de passar o
tempo, pôs-se a folhear um álbum de fotografias. Gente estranha,
faces que não lhe revelavam nada, olhos vagos e nostálgicos. De
repente encontrou um rosto conhecido: era o da mãe de Diana, tal
como a vira outrora. Admirou-se de que naquele tempo não as achasse
parecidas, pois atualmente Diana assemelhava-se extraordinariamente
a ela. Eram os mesmos cabelos, a mesma graça frágil, o mesmo
encanto feminino e voluptuoso.

— Que é que você encontrou neste álbum? — perguntou Diana já


de volta, trajando uma “toilette” tão vaporosa quanto a que acabara de
abandonar.

— Olhava para o retrato de sua mãe.

— Somos parecidas, não? — perguntou.

— Muito. E têm o mesmo gosto pelos vestidos extravagantes —


concluiu ele, rindo.
Ela não riu; ao contrário, tornou-se séria, uma sombra desceu
ao seu rosto. Explicou que fora realmente a mãe quem lhe transmitira
aquele gosto pelas coisas leves, brilhantes e artificiais. E concluiu o seu
sumário retrato:

— No fundo era do que ela gostava. Detestava até mesmo os


sentimentos fortes e qualquer ruído agitava-lhe os nervos. Tudo em
torno dela havia de ser pálido e frágil: os tecidos eram brancos, azuis
ou róseos, os perfumes suaves, as vozes ciciadas. Também eu sou
assim, o que sai disto é um excesso, arrasa-me.

Sílvio fechou o álbum e dispôs-se a sair. Diana deu boa-noite ao


padrinho, que viera assistir à saída. Na rua ela enfiou o braço no dele e
puseram-se a caminhar lentamente, a moça com a cabeça quase no seu
ombro. Ela tinha a impressão de que as estrelas brilhavam mais
nítidas e esforçava-se para dominar as batidas do coração, rápidas,
descontroladas, intermitentes como as de alguém que, depois de um
profundo desmaio, regressa finalmente à vida.

6
Nos dias que se seguiram eles andaram sempre juntos. Não era
somente Sílvio quem a procurava, Diana não podia passar sem os seus
conselhos, mesmo para os fatos mais banais e as atitudes mais
insignificantes.

– Você acha que me vai mal este vestido de listas? — dizia ela.

Era um vestido tipo esporte, branco e de grandes listas


vermelhas. Diana mirava-se ao espelho, rodando de um lado para
outro.

– É claro — respondia Sílvio —, que é que não lhe vai bem?

Ela afirmava que ele era um mentiroso e que aqueles galanteios


já estavam se tornando batidos. Ia buscar um chapéu de palha e saíam
juntos, a caminho da usina ou da represa. Estavam no mês de janeiro e
os pendões vermelhos apontavam ao longo das cercas. Como outrora,
Diana se detinha a cada passo, indagando, querendo saber a origem de
tudo, extasiando-se com as descobertas mais sem importância. Mas às
vezes, pálida, apoiava-se no braço de Sílvio e queixava-se de cansaço.
“Estou exausta”, dizia. Ele notava sua fisionomia alterada, assustava-
se, propunha até mesmo carregá-la. “Não, isto passa”, murmurava
Diana. Fechava os olhos, esperando que a tonteira se fosse. Quando
melhorava pedia para fazerem uma trégua na caminhada. E iam se
abrigar a uma sombra qualquer, Diana respirando ainda com certa
dificuldade, pálida pelo esforço que fizera. Nesses momentos é que
Sílvio compreendia o quanto era realmente profunda a sua fragilidade.
Um sopro do vento poderia destruí-la. Propôs que suspendessem
aqueles passeios, Diana precisava mais de repouso do que outra coisa.
Ela afirmou o contrário, que lhe faziam bem e lhe abriam o apetite. Foi
num desses passeios, sentados à sombra da igreja, como no passado
haviam feito tantas vezes, que o nome de Chico surgiu acidentalmente
entre duas frases banais. Nesta ocasião, Sílvio, que já não duvidava
mais de que era correspondido no seu amor, calou-se, desviando o
olhar.

– Que foi? — indagou Diana, inquieta.

Ele ergueu os ombros, sem responder. Mas como a moça


voltasse ao caso, descrevendo com entusiasmo uma proeza de Chico e
citando uma das suas opiniões — aquelas opiniões que Sílvio conhecia
bastante e que cheiravam a um ranço particular, como objetos
guardados em certas gavetas —, ele não se conteve e pousou a mão
sobre as suas:

– Diana, por que não falarmos francamente? — perguntou.

– O quê? — fez ela, admirada.

– A respeito desse tipo... — sugeriu ele, sem pronunciar o nome


do outro.

– Meu Deus! Ciúmes? — exclamou Diana, rompendo numa


risada.
– Não, não são ciúmes — disse ele gravemente. — Mas não
posso compreender como vocês se conheceram, que espécie de
amizade é esta.

E como Diana ainda relutasse, tentando converter o caso numa


brincadeira, Sílvio tornou-se mais sério ainda. Afinal Diana se conteve,
vencida pela gravidade que ele emprestava à sua atitude.

– Se pergunto estas coisas — explicou Sílvio novamente — é


porque afinal...

Hesitou e concluiu num tom mais baixo, olhos fixos nos dela:

– Representamos alguma coisa um para o outro, não?

Era a primeira vez que tocavam diretamente naquele assunto.


Diana fitou-o de maneira expressiva e concordou por meio de ligeira
pressão numa das suas mãos. E, como Sílvio aguardasse sempre,
revelou que conhecia Chico por intermédio do padrinho. Era este
último negociante em acessórios para automóveis, e, como desejasse
abrir uma agência em Vila Velha, alguém lhe aconselhara a procurar
Chico. No momento se achavam em negociações, e era este o motivo
por que ela o via constantemente. Sílvio pensou de repente em indagar
alguma coisa a respeito do padrinho, mas lembrou-se de que aquilo
poderia parecer excessivo. Na realidade ainda não tinha nenhum
compromisso com a moça. Fez apenas mais duas ou três perguntas
sobre Chico e, satisfeito com as respostas, deu o assunto por
encerrado. Naquele dia, ao regressarem, Diana pareceu mais amorosa
do que nunca. Pediu que ele contasse coisas a respeito da sua vida e
indagou das pessoas com quem morava. Sílvio sentiu-se feliz por
poder falar em Clara, descreveu-a e acabou propondo à namorada que
fossem juntos visitá-la. “Outro dia”, respondeu Diana. “Aliás já ouvi
falar muito a respeito dela e gostaria de conhecê-la.” Sílvio lembrou
que poderia jantar lá numa tarde próxima. Ficou combinado que ele
falaria com a mãe e depois avisaria à moça. Depois disto, como Diana
continuasse a insistir, discorreu sobre o seu futuro, seus planos,
narrou-lhe até mesmo o enredo do romance que pretendia escrever.
Finalmente Diana perguntou-lhe se ele jamais pensara em abandonar
Vila Velha. “É claro”, respondeu Sílvio, “o meu sonho é viver no Rio.”
Então foi a vez dela falar, e mais uma vez descreveu a vida na capital,
as noites nos cassinos, os bailes dos clubes e as partidas de tênis. Sua
voz era impregnada de nostalgia, surda, carregada de soluços
abafados. Sílvio sofria, sentindo que essas recordações ocupavam a
maior parte da sua alma. Vila Velha não existia, o passado era apenas
um sonho esfumado na sua consciência. Como passassem junto à
represa, detiveram-se para escutar o ruído das águas que se
despejavam no reservatório, através de grossos canos. Folhas secas
flutuavam sobre o azul do líquido. Sílvio lembrou-se mais uma vez dos
tempos passados, quando Diana anunciou que voltaria com a mãe
para o Rio. O seu sofrimento fora idêntico ao daquele minuto
instantâneo e profundo. Num segundo reviveu todo o calvário da sua
infância, esquecido de que após tantos anos havia finalmente
recuperado o seu amor. Mas dentro dele uma outra voz indagava se
realmente ele havia recuperado alguma coisa. Na verdade a chaga da
infância não estava sempre aberta? Não recuperamos nada, nenhum
ser permanece idêntico a si mesmo através do tempo, nenhum amor
continua como a música interrompida que se reinicia, mas adquirimos
sentimentos novos, amores diferentes, seres que não são mais os seres
que tanto amamos no passado. Diana era um novo amor, uma outra
criatura que ele conhecera agora, bem diferente daquela que transitara
pelo mundo da sua infância. Só a experiência era idêntica, só os fatores
poderiam se repetir. Diana poderia partir novamente, deixá-lo e
envenenar assim a sua mocidade, como já perdera a sua infância. O
poder estava nela; entre todas as pessoas do mundo, só ela possuía
aquele dom de feri-lo, de inutilizá-lo, de despedaçá-lo de tantas
maneiras diferentes quantas desejasse. Mas a cada vez que se voltasse
para ele seria uma nova experiência, uma outra vida, e não o fim de
um acontecimento já morto. A esta idéia subiu-lhe um enorme terror e
ele segurou-a fortemente pelo braço, como se temesse vê-la
desaparecer naquele minuto mesmo. Ela deixou escapar um pequeno
grito, olhando-o com estranheza. Sílvio sorriu e explicou que tivera
medo de vê-la cair dentro d’água.

– Você é maluco — disse ela —, pensa que eu quero suicidar-me?

Eram mais ou menos assim todos os passeios que faziam. Às


vezes eram surpreendidos pela noite e Diana corria ao longo da
estrada, gritando que não gostava da escuridão. Uma onda de
vagalumes brotava misteriosamente do mato. Vagas de luz agitavam-
se inquietas sobre os charcos. Ela era tomada de louca euforia,
dançava, cantava, agitando um lenço no meio da estrada. Graves
tropeiros que passavam olhavam-na espantados. Diana dizia que tinha
perdido o juízo, pulava o fosso, escondendo-se de Sílvio. Ele demorava
propositadamente a encontrá-la e cobrava a vitória com um beijo
roubado. Diana se defendia, dizendo que ele era muito ousado para
um rapaz da província. Mas cedia, o coração batendo em fortes
pancadas. Outras vezes, porém, voltavam lentamente e Diana não
conseguia disfarçar sua melancolia. Nestes momentos, Sílvio sentia
elevar-se na sua alma o mesmo terror que já sentira junto à represa.
Diana caminhava de cabeça baixa, odiando aquelas árvores agressivas
e roxas, o coaxar soturno dos sapos, o perfume das flores selvagens, a
vida rústica e tudo mais que a separava do Rio. Certa vez, como
aludisse vagamente à sua volta, Sílvio se deteve e tomou-a
repentinamente pelas mãos.

– Escuta, Diana.. .

Ela já se acostumara com os seus arroubos e fitava-o à espera


das palavras. Então Sílvio disse que ela poderia partir, que era natural
que não gostasse de Vila Velha, mas que desta vez não regressaria
sozinha. E como Diana o fitasse, sem compreendê-lo, ele propôs de
repente que se casassem. Durante um minuto, um ligeiro minuto que
pareceu a ele um século, ela permaneceu silenciosa, uma sombra no
olhar. Então ele insistiu, procurando beijá-la nos lábios.
– Não — disse Diana —, você merece coisa melhor, uma moça
que o compreenda. Eu…

– Meu Deus, você tem tudo que eu preciso. Quer?

– Não sei, não sei, vou pensar! — disse ela com um suspiro.

Mas ele beijou-a de novo, ela riu, debateu-se e acabou


prometendo que daria o sim. Sílvio ainda esperou que ela entrasse e
depois, aspirando o ar com delícia, voltou para casa assoviando.

No dia seguinte, ao se levantar, Sílvio comunicou a Clara que


tinha alguém para lhe apresentar qualquer dia. Clara perguntou quem
era e ele respondeu que se tratava de uma moça do Rio. Desciam a
escada a caminho do jardim. Ela deteve-o num dos degraus e fitou-o:
Sílvio sorriu, abaixou a cabeça e ela compreendeu tudo. Aliás, já
andava desconfiada, pois o sistema de vida do rapaz se transformara
completamente. Se antes não saía, entregue aos livros, agora nunca
ficava em casa, mal tendo tempo para almoçar ou jantar, os livros
esquecidos a um canto. Clara acreditava sinceramente que isto
significasse a vitória dos seus planos; não fora ela quem o aconselhara
a sair e divertir-se? No fundo, entretanto, não acreditava em
conseqüências sérias. “Está na idade, precisa destas coisas”, pensava
com indulgência. Fora sempre este o maior dos seus pecados para com
Sílvio: a indulgência. Ainda agora perdoava-lhe tudo, auxiliava-o a
gastar inutilmente o tempo, fechava os olhos às suas extravagâncias.
Áurea costumava dizer que ela fazia agora o que devia ter feito na
infância dele; se naquela época não lhe perdoava nada, no presente
não lhe via defeitos. Julgava-o possuidor de todas as qualidades,
seguro de si, nobre, inteligente, apto a enfrentar as mais árduas
situações. Clara, cuja vida matrimonial fora um fracasso, inclinava-se
agora a transformar o filho num pequeno deus familiar. Apesar de
tudo, enquanto podava uma roseira atacada pelas ervas daninhas, não
podia deixar de se sentir levemente assustada. Aquela expressão
“moça do Rio” causara-lhe certo mal-estar. Para ela, moças do Rio
eram sempre levianas — e nisto se refletia sua irredutível natureza
provinciana.

– Por que você não a traz aqui para jantar? — propôs, afastando
malvas e begônias, a fim de atingir outra roseira mais ao centro do
canteiro.

– Foi justamente no que eu pensei. Mas quando? — indagou


Sílvio.

– Qualquer dia destes.

– Amanhã?

Ela sorriu, vendo a pressa do rapaz.

– Amanhã não, tenho uma novena para ir. Depois de amanhã.

– Ótimo — disse Sílvio, afastando-se.

Na verdade não havia novena de espécie alguma: Clara apenas


queria ganhar tempo a fim de refletir e obter algumas informações
para seu próprio uso. Não lhe seria difícil realizar um inquérito entre
as conhecidas. Começou-o naquele dia mesmo, por Áurea. À sua
pergunta, esta afirmou que não conhecia especialmente nenhuma
pequena do Rio. Sabia que existiam atualmente duas ou três na
cidade, pois comentava-se que naquele ano o calor no Rio estava
muito forte. Mas ainda não as tinha visto, mal enxergava as pessoas na
rua. E aproveitou a ocasião para queixar-se da vista que baixava
muito, alegou que precisava ir a um médico se não quisesse ficar
completamente cega dentro em pouco. Clara prometeu mandá-la a um
conhecido e afastou-se, preocupada. No dia seguinte, ao entardecer,
quando o sino bateu chamando às novenas, colocou um xale na cabeça
e ganhou a rua, depois de avisar a Áurea que não se demoraria muito.
No caminho encontrou duas ou três conhecidas e chamou uma delas
de parte. Como Áurea, também aquela não sabia de nada. Aproximou-
se de outra: esta lhe afirmou que conhecia todas as moças do Rio e
descreveu-as imediatamente, de cigarro à boca, levianas e perigosas às
desprevenidas famílias do lugar. Exagerou de tal maneira que Clara
chegou à conclusão de que na verdade ela não conhecia nenhuma
moça do Rio. A outra ainda lhe transmitiu uns derradeiros conselhos e
afastou-se, fazendo o sinal da cruz. Durante um minuto Clara se viu
perdida, sem saber a quem devia recorrer. Encontrou afinal uma
antiga companheira e expôs suas dúvidas.

– Mas sei muito bem de quem se trata! — exclamou esta.


Passam todos os dias junto à minha porta. É uma pequena bonita, de
olhos claros, muito elegante.

Evidentemente não eram estes os detalhes que mais


interessavam a Clara. Continuando a indagar, veio a saber que a moça
era afilhada de um negociante de acessórios para automóveis. Voltou
para casa mais tranqüila. Podia ser que ainda lhe sobrassem
qualidades, mas já não era pouco o fato de ser bonita e ter meios de
vida. Entretanto, seriam estes os motivos que haviam interessado a
Sílvio? Não, ela não o acreditava. Por detrás disto devia haver alguma
coisa mais importante. Enquanto caminhava, veio-lhe ao pensamento
o silêncio que durante todo este tempo o filho conservava a respeito do
assunto. E não pôde deixar de se sentir impressionada, vendo abrir-se,
nesta vida que ela julgava conhecer nos seus menores detalhes, uma
fenda por onde extravasavam tão largos e poderosos sentimentos. Por
um instante, abrindo a cancela do jardim, pensou na estranheza
dessas existências que se dissolvem ao longo dos anos, entre paredes
fechadas, sem que jamais percebam uma das outras a secreta realidade
que transportam. Não seria uma espécie de acordo, uma cláusula
nesse tácito contrato que as famílias estabelecem entre si para
evitarem a mútua destruição? Afinal a vida seria um inferno se
soubéssemos de tudo o que se passa na alma dos outros. No jardim
que atravessava agora, Clara se deteve, a fim de examinar um
crisântemo que começava a desabrochar. Depois continuou em direção
à porta, imaginando ainda como tudo aquilo fora rápido, como Sílvio
crescera depressa, como os dias haviam passado ligeiros. Uma visita
como a que lhe seria feita já significava um compromisso — e Clara
imaginava quanto ainda era cedo, pois realmente Sílvio não passava de
uma criança. Além disto, que sabia ao certo sobre aquela moça?

No dia do jantar, como o rapaz examinasse extasiado a mesa


coberta com uma fina toalha bordada — a obra-prima de Clara —, esta
aproveitou a oportunidade e manifestou sua admiração pela rapidez
com que tudo aquilo se processava.

– Ao contrário — respondeu ele, rindo —, conheço-a desde


menino.

E narrou à mãe toda a história de Diana. Ela escutou-o


atentamente, admirando-se cada vez mais de que até aquela data não
soubesse de nada. Às vezes interrompia a narração, a fim de pedir
esclarecimento sobre um ponto obscuro — e depois movia a cabeça
lentamente, lembrando-se de coisas antigas (sua melancolia em certa
época, certas respostas de que não se esquecera, algumas conversas
dos vizinhos…), fatos que agora se completavam, revelações que afinal
se desvendavam. E não podia deixar de suspirar, lembrando-se
exatamente da atmosfera daquela época. Mas lá fora alguém tocou a
campainha, e Sílvio suspendeu sua narração.

– Deve ser ela — disse.

Correu em direção à porta. Clara também se levantou, um pouco


pálida, indo espiar através do vidro da janela. Dali, viu Diana, que se
aproximava. O sol ainda não se ocultara completamente e a moça
trazia uma sombrinha aberta, uma leve e vaporosa sombrinha que
emprestava à sua silhueta certa graça antiga. Como sempre, vestia
também um vestido esvoaçante, o que dava ao conjunto a impressão
de uma aparição vesperal e rósea, estuante de vida, calor e mocidade.
Ao ver o filho conduzi-la pela mão, Clara compreendeu muito dos seus
sentimentos: Diana era realmente bela. Clara reparou ainda como a
moça caminhava devagar, olhando para todos os lados, detendo-se
ante uma rosa ou um crisântemo, como quem espera não perder
nenhum detalhe da casa e do jardim. Como já subissem a escada, Clara
retirou apressadamente o avental que trazia e dispôs-se a ir ao
encontro da visitante. A porta se abriu e elas se acharam face a face,
pálidas, nessa atitude mista de expectativa e indecisão, peculiar a duas
pessoas movidas por grande curiosidade e que não desejam manifestá-
la. Foi Clara quem se adiantou, estendendo-lhe ambas as mãos:

— Entre, a casa é sua. Além disto, já a conheço muito de nome.

Diana agradeceu, sorrindo e procurando um lugar onde


depositar a sombrinha. Seus gestos eram simples e ela se movia com
naturalidade, sem grande esforço para se aclimatar àquele ambiente
em que pisava pela primeira vez. A noite começava a se insinuar
docemente dentro da sala, os objetos perdiam seu brilho e quedavam
mudos, atentos na sombra. Clara levou a moça para sentar-se a um
canto, enquanto Sílvio ia providenciar o jantar. Sozinhas, as duas
mulheres se entreolharam de novo, ansiosas por praticarem o
reconhecimento desse terreno desconhecido que se rasgava diante
delas, e onde certamente procurariam lançar as bases de um futuro
acordo, baseadas no interesse do mesmo objeto, como duas plantas
que se abraçam ao mesmo tronco vigoroso. Foi sobre este objeto que
recaiu a conversa, como se ambas desejassem comparar as imagens
que haviam criado no seu espírito, ambas feitas de dados diferentes,
ambas perfeitas visões ou projeções da mesma realidade adorada. Pelo
menos era o que Clara supunha, pois nem um só minuto lhe passou
pela cabeça que aquela mulher não amasse Sílvio. Aos seus olhos,
Diana não devia ter outra preocupação na vida. Entretanto, à medida
que a moça falava, o desapontamento desenhava-se no seu rosto.
Havia no modo por que Diana se exprimia qualquer coisa forçada, um
ar fictício e indiferente, como se na verdade ela ainda não o
conhecesse com segurança. Faltava-lhe esse conhecimento
instantâneo e profundo que o amor traz, essa ousadia em adivinhar
que é o resultado da cega e contínua aspiração de um sentimento que
não se oculta. Mas não seria um engano? Clara teve medo de que esta
impressão fosse apenas uma cilada do seu próprio ciúme. Procurou
esquecer tais pensamentos e continuou a conversa. Diana voltou a
falar e a serenidade da sua voz contrastava com o brilho dos seus
olhos, verdes e sensuais. Enquanto isto Clara examinava melhor sua
fisionomia, descobrindo traços que lhe tinham passado despercebidos
ao primeiro relance. “Realmente é muito bela”, pensava, “mas há nela
algo que não me agrada. É excessivamente vivida para sua idade. Creio
que não há nada que desconheça.” E sentia que em Diana tudo
respirava cansaço prematuro, hábitos de luxo e gosto pela ociosidade.
Seus dedos cheios de anéis faiscavam quando ela levantava as mãos,
enquanto seus olhos também ardiam, num brilho nascido de
estranhos e soterrados desejos. Além disto, sua estranha maneira de
vestir, seus cabelos mal presos num estudado abandono, seus lábios
pintados, tudo feria a severa modéstia de Clara. A certa altura Diana
abriu a carteira e retirou de dentro um cigarro. Sorriu, pediu licença a
Clara e acendeu-o. Seus olhos se fecharam um instante, enquanto
atirava uma baforada para o alto. “Sim”, continuou Clara a pensar, “é
uma mulher difícil, de hábitos modernos e complicados.” De súbito
notou que a voz da moça esmaecia, tornava-se cansada, ameaçava
desaparecer como um fio d’água. Assustou-se, imaginando que ela
devia estar mais doente do que Sílvio supunha. Diana percebeu pelo
olhar incisivo da outra que qualquer coisa nela causava estranheza;
calou-se, correndo os olhos pela sala modestamente mobiliada. Clara
sentiu que o ambiente a desapontava. Talvez imaginasse antes de
entrar ali que tudo fosse pobre, mas de aspecto confortável — e vinha,
no entanto, encontrar uma sala quase nua. “Habituar-se-ia ela a viver
aqui?”, indagou mais uma vez a si própria. E pôs-se a falar, contando
como sempre vivera ali, como naquele lugar nascera Sílvio e ali
crescera.

— No entanto — concluiu — detestei esta casa a princípio. Mas a


gente precisa aprender a conhecer as coisas para poder amá-las, não
é? Hoje não saberia mais viver sem estes móveis, estas paredes e este
jardim plantado por minhas mãos. Para cada momento da vida, sei
exatamente o lugar que me convém, se a janela, o quintal ou certos
recantos em que posso ficar sozinha para pensar ou ler uma carta.

Diana escutava-a friamente, quase sem interesse. Então pela


primeira vez Clara sentiu elevar-se no seu espírito aquela questão que
tanto a obsedaria mais tarde: teria ela algum amor por Sílvio? Diana
pairava na atmosfera sem nenhum dom para penetrá-la ou
compreendê-la. A cada minuto parecia distanciar-se mais, inquieta
como alguém que se aventura num lugar, ignorando os meios de saída.
Sílvio voltou neste momento, dizendo que Áurea estava ocupada, mas
que viria dentro em pouco a fim de conhecer Diana. Esta pareceu se
animar um pouco mais com a presença do rapaz. Seus olhos tornaram-
se mais brilhantes e encontrou duas ou três palavras para intercalar na
conversa. Clara aproveitou a oportunidade para permanecer em
silêncio.

– Você não deve fumar tanto — disse Sílvio.

Ela riu, triturando no cinzeiro a ponta do cigarro:

– Por quê? Estou acostumada desde há muitos anos.

Olhou para Clara, como se quisesse advertir que também


possuía hábitos. Era como se procurassem desde já marcar o terreno
de onde não recuariam, de onde não fariam nenhuma concessão,
altivas e intolerantes.
Mas Áurea surgiu, cumprimentou Diana e, sentindo talvez que
era acolhida sem grande entusiasmo, pretextou uma desculpa e voltou
a cuidar dos seus pratos.

– Quando era pequeno eu a chamava de “tia” Áurea, explicou


Sílvio.

E Clara contou um ou dois casos a respeito da companheira. O


jantar, que foi servido logo depois, decorreu no mesmo ambiente
morno e vagamente inquieto. Sílvio, sentindo-se incapaz de dissolver
aquela atmosfera onde agiam forças tão antagônicas, procurando em
vão um assunto que sobrevivesse ao pálido interesse dos
circunstantes. Mas quando o café foi servido Diana readquiriu alguma
coisa da sua primitiva naturalidade, a sombra se dissipou do seu rosto.
Ela ria, contando casos observados entre os caboclos do lugar. Vendo-
a tão bela, nessa súbita flama de entusiasmo, Clara não pôde deixar de
admirá-la.

– Ainda pretende se demorar muito tempo aqui? — indagou,


percebendo que Diana não se entusiasmava muito com Vila Velha.

– Não sei ainda — respondeu ela, acendendo novo cigarro. —.


Depende do meu padrinho.

Mas afirmou em seguida que gostaria de voltar o mais cedo


possível, pois sentia falta do ambiente e dos amigos com quem fora
criada. Clara, como julgasse perceber nesta afirmativa um pouco de
orgulho e de desdém, concluiu seu exame julgando-a uma criatura
superficial. E desta vez seus olhos se voltaram para a face sombreada
do filho. Durante o tempo em que ainda durou o jantar não falou mais,
sentindo avolumar-se entre ela e Diana o inevitável silêncio que
vislumbrara desde o princípio — não o silêncio de uma harmonia
conseguida através de lutas e reconhecimentos, mas esse silêncio
denso e repleto de hostilidade que antecede irremediáveis mal-
entendidos.

Quando Diana se retirou, Clara acendeu a lâmpada e dispôs


sobre a mesa seus apetrechos de trabalho, disposta a aproveitar o
tempo, já que nada fizera durante o dia. A noite era quente e insetos
entravam pela janela aberta. Clara trabalhava de costas para a porta
dos fundos, simulando, naquele trabalho de recortar cetim e forrar as
hastes de arame, um interesse que na verdade se achava longe de
sentir. Mas queria escapar por esse meio a uma provável conversa com
Sílvio, convicta de que o seu casamento redundaria num irremediável
fracasso. Talvez que pelo seu silêncio ele compreendesse qual era o seu
modo de pensar. Mas Sílvio, que já pressentia o desapontamento da
mãe, parecia não ter muita vontade de sair naquela noite e viera
rondar o trabalho de Clara. Ela recortava o cetim nervosamente, sem
levantar os olhos, sentindo aquela presença que se impunha
silenciosamente. Afinal o rapaz não se conteve e indagou:

— Mãe, qual foi sua impressão?

Clara levantou para ele os olhos calmos. Sabia que precisava se


dominar e pesar uma a uma as palavras que ia dizer, pois o filho não
as esqueceria mais. Durante um segundo pensou no melhor modo de
se exprimir, sem magoá-lo e ao mesmo tempo fiel à impressão que
Diana lhe deixara.

– A impressão foi boa — respondeu afinal, com um suspiro.

E, como sentisse o olhar de Sílvio fixado nela, concluiu devagar,


voltando a se inclinar sobre o trabalho:

– Realmente bela. Uma criança ainda, não?

Sílvio compreendeu suas reticências. Girou um minuto em torno


da mesa e explodiu afinal, desapontado:

– Só isto? Não viu outra coisa em Diana?

– Meu Deus! — exclamou Clara —, mal a vi pela primeira vez!


Ainda não tenho tempo para esboçar um retrato completo!

E voltando ao cetim, irredutível:


– Com o tempo...

Sílvio compreendeu que não devia insistir mais. Incapaz de


reprimir sua emoção, sentindo-se dividido entre dois afetos
igualmente fortes, separado de Clara pela força do seu amor e deste
pela inabalável confiança que mantinha nas opiniões daquela,
debruçou-se à janela, enquanto tudo lhe parecia instantaneamente
vago e impreciso, o terreno fugia-lhe sob os pés, como se estivesse sob
a ameaça de qualquer obscura catástrofe. “Não”, pensava ele,
procurando readquirir equilíbrio, “é natural o que se passa, elas não se
podem amar, jamais se compreenderão.” Imaginava que o movimento
de Clara fosse ciúme e, refletindo no que se passara durante o jantar,
julgava vislumbrar agora certa frieza na atitude de Diana. Entretanto,
como Clara ainda fizesse uma derradeira observação, respondeu
distraidamente, os olhos perdidos lá fora:

– Sim, com o tempo ela se tornará sua amiga.

Aquele tom conciliatório desagradou a Clara, pois abandonando


a tesoura ela aproximou-se do filho.

– Mas Sílvio — disse —, eu não quero que você a force. Saberei


muito bem adaptar-me à sua maneira de viver.

Ele reconheceu que não fora hábil e, vivamente, procurou


desfazer a impressão causada pelas suas palavras.

– Não, mãe, Diana é quem terá de lhe fazer sacrifício de tudo o


que lhe desagradar nela. É muito inteligente para não compreender
que seu dever é este.

Clara ergueu os ombros e voltou ao trabalho. Durante algum


tempo só se ouviu o ranger da tesoura recortando o cetim. Uma rajada
de vento elevou-se lá fora e um morno perfume de rosas entrou pela
janela aberta. Um besouro veio se abater pesadamente sobre a mesa e
se debateu um minuto, até que Clara o atirou de novo ao jardim. Ao
longe elevou-se a música de uma sanfona. Tudo parecia adormecido
sob o calor da noite. Clara, vendo ainda que Sílvio não se retirava,
voltou ao assunto e indagou de que esperavam eles viver. Sílvio
declarou que também vinha pensando nisto e que só via uma solução:
empregar-se.

– Sim, mas como? — tornou Clara, que não via naquilo


nenhuma solução.

– Não sei — tornou Sílvio —, mas terá de ser assim.

Só neste minuto, contemplando-o furtivamente através da luz


que batia em cheio no seu rosto, compreendeu ela o quanto aquele
amor era profundo, solitário e desesperado. O destino do filho causou-
lhe um súbito terror, pressentindo-o uma dessas estrelas cegas que
viajam eternamente na cauda dos grandes astros luminosos. Lembrou-
se dela própria, do seu amor por Jaques, do tempo em que saíra à sua
procura, indiferente ao que lhe pudesse suceder. Naquela época, que
lhe importava o resto do mundo? Também o sentimento de Sílvio era
sombrio e desatinado como o seu, não havia para ele a menor
possibilidade de repouso — o que seria para outros um paraíso, para
ele era o inferno. Sua natureza era dessas para quem a felicidade
estava irremediavelmente banida. E, apesar de sentir o coração
pesado, nada encontrou para lhe dizer e compreendeu-o melhor,
sentindo-se mais próxima e mais solidária com sua aventura.

Alguns dias depois, como fosse noite de São João, o prefeito


local ofereceu um baile nos jardins da sua residência. Não era
propriamente um jardim, mas uma chácara antiga e confortável,
cortada por largas aléias que haviam sido previamente cobertas com
areia fina e engrinaldadas com bandeirolas de papel. Das árvores, altas
e solenes mangueiras, pendiam lanternas coloridas. Havia sido
armado um tablado de dança junto ao caramanchão do fundo e neste
tocava uma orquestra caipira. Foi esta a primeira ocasião que Sílvio
encontrou para falar com Diana a respeito dos problemas que tanto o
preocupavam. Ela estava vestida à sertaneja, uma fita vermelha nos
cabelos soltos, e aos olhos do rapaz parecia mais bela do que nunca,
dessa beleza imaterial e fugidia que em determinados momentos
transfigura certos tipos, numa espécie de conivência com o ambiente,
extraindo deste elementos de harmonia que lhe dão instintiva e
rapidamente o primeiro lugar entre quantos transitam àquela hora na
mesma atmosfera. Sílvio tinha a impressão de que ela sempre, vivera
ali, à sombra das arvores centenárias, entre lanternas, tão perfeita era
a visão da sua silhueta junto à efêmera magia daquele cenário de festa.
Além disto, via-se que para Diana aquilo não era uma simples reunião,
uma brincadeira sem conseqüências, mas um autêntico
acontecimento, algo de grande e decisivo em que ela comprometia a
maior parte da energia e do entusiasmo que lhe vibrava no ser.
Agradava-lhe girar naquele tablado rústico, sentindo acompanhá-la
nessa vertigem as lanternas vermelhas e amarelas. Via-se ainda que
gostava de se sentir viva dentro da noite, olhando as estrelas que
brilhavam no alto. Talvez que fosse esta euforia que lhe impedisse de
prestar imediata atenção às palavras de Sílvio. Mas, como este
insistisse, acabou compreendendo do que se tratava.

— Mas... Sílvio!

Duas ou três voltas mais e ela explicou o que pensava. Ainda não
decidira nada, era cedo para falar em casamento. E, se tal acontecia,
por que então se preocupar com emprego e outras coisas
desagradáveis? Ouvindo-a, Sílvio percebeu pela primeira vez o que
existia nela de aventureiro e infixado; nenhuma coisa grave, de
importância para a vida simples de todos os dias, chegava a assumir
aspecto real a seus olhos. Diana gostava de divagar sobre as coisas,
aérea, colhendo o mel azul e superficial da existência, apenas
prestando atenção às batidas do seu próprio coração, fechando os
olhos para criar um jogo caleidoscópico com o brilho das lanternas,
aspirando o perfume das flores, sorrindo e dançando. A vida para ela
era realmente uma vertigem — mas uma vertigem de sensações
amenas e atitudes inconseqüentes. Durante um minuto, enquanto
girava, Sílvio desejou ver-se livre daquela criatura que se revelava tão
frívola a seus olhos. Odiou o conhecimento que ia tendo da sua
natureza, mas, como a visse sorrir e fechar os olhos, tonta como um
pássaro perdido no azul, sentiu uma estranha pressão sobre o coração
e atirou a culpa sobre si mesmo: ele é que não devia investigar as
coisas tão a fundo.

— Afinal, Diana — disse ele enlaçando-a mais fortemente numa


das voltas da dança —, qual é a sua resposta ao que lhe propus?

Ela pareceu acordar da sua vertigem:

– Que resposta?

– Meu Deus, este baile está perturbando-a. Sobre o casamento,


lembra-se? Ou será que já se esqueceu disto também?

Ela riu:

– Lembro-me muito bem. Mas é tão difícil pensar nestas


coisas…

– Por quê? Você não é livre, não pode agir como quiser?

Ela suspirou e cerrou os olhos de novo:

– Quem pode dizer que realmente é livre?

– Não, Diana — continuou ele, inabalável —, eu sei que se você


quiser...

Ela riu de novo, a cabeça um pouco inclinada para trás,


sorvendo com voluptuosidade o frio perfume da noite. Depois,
voltando à posição normal e reabrindo os olhos, respondeu
gravemente:

– A verdade é que acho muito cedo para pensar nestas coisas,


Sílvio.

– Cedo? — e ele moveu a cabeça, desapontado.

Durante alguns minutos giraram em silêncio, ele procurando


um meio seguro de convencê-la. Já não lhe importava a noite e nem a
orquestra. Tudo se resumia agora naquela pequena criatura com quem
dançava e no meio de obter dela um assentimento mais rápido. Diana
parecia ter voltado à sua intencional vertigem. Mas, se ele reparasse
melhor, veria que ela estava um pouco mais pálida e que já não se
abandonava tão livremente, possivelmente preocupada com um
pensamento que não podia ou não desejava exprimir. De qualquer
modo, sentindo-se incapaz para encontrar a fórmula desejada, Sílvio
voltou a fitá-la e viu-a, não diferente do que a vira minutos antes, mas
completa, como uma visão que já não se esconde ao olhar inquiridor,
feita dessas duas partes de luz e sombra, que dão relevo e forma, nessa
profundeza que de repente nos revelam alguns seres não como simples
imagens, mas como criaturas humanas, completas e decisivas na sua
mistura de sol e de mistério. Pois percebera de súbito que Diana
ocultava um segredo e que era este que transmitia sombra à sua face.
E, girando sempre, debateu-se mais uma vez ante essa porta fechada,
lembrando-se de tudo o que ela já lhe dissera sobre a sua vida no Rio,
atormentado, sentindo cristalizar-se neste ponto, como um
rodamoinho que retém no seu cerne a força das águas, o irrevelado
que lhe arrebatava o espírito da namorada, a porta por onde jamais
penetraria, a outra vida, a Diana que ele não conhecia e que na Diana
de agora ocupava tão largo espaço. Que palavras, que confissões, que
conversas ao longo de horas e horas, que intuições lhe poderiam
transmitir um conhecimento exato dessa fugidia realidade, situando-o
afinal em pleno conhecimento dessa criatura que tanto amava e que
lhe escapava por tão numerosos pontos?

– Mas Diana — voltou ele a dizer com um suspiro —, você me


prometeu que decidiria favoravelmente…

Ela fitou-o durante um minuto, como se procurasse apreender


exatamente a natureza dos seus sentimentos. Depois, numa voz lenta e
grave, indagou:

– E esta resposta é assim tão importante para você?

Sem parar de dançar, Sílvio afastou-se um pouco, como se não


tivesse compreendido o significado das suas palavras.

– Importante? Como você pode duvidar disto?

E ela, no mesmo tom velado:

– Mas Sílvio, de que iríamos viver?

Ele ergueu os ombros e voltou a vista para o lado. Na


extremidade oposta do tablado, algumas moças riam, experimentando
queimar fogos.

– Poderia empregar-me — sugeriu Sílvio.

Diana não respondeu — e, como a música cessasse,


encaminharam-se lentamente para o fundo do jardim. O dono da casa
veio ao encontro deles e ofereceu um dos fogos a Diana. Ela tomou-o,
agradeceu e refugiou-se no canto para queimá-lo. Sílvio riscou um
fósforo e chegou-o à ponta do morteiro. Ouviu-se um ligeiro chiado e
de repente, na obscuridade, um jato prateado se elevou e tombou ao
longe em mil faúlhas coloridas.

– Que beleza — exclamou Diana, acompanhando a queda lenta


das lágrimas. Mas, reparando no silêncio de Sílvio, voltou-se para ele
com ar ligeiramente cômico:

– Sílvio, o emprego poderá ser arranjado por meu padrinho. Se


esta vida não lhe causa repugnância…

Ele tomou as mãos dela entre as suas:

– Então?

Diana sorriu, encarando-o bem no fundo dos olhos:

– Está combinado, seja o que você quiser.

No seu entusiasmo ele se esqueceu onde estava e beijou-a: perto


espoucou uma risada. Ele se voltou cheio de confusão, mas não
conseguiu distinguir ninguém: como num delírio, uma enorme roda de
faúlhas vermelhas girava no centro do canteiro, girassol fantástico
brotando miraculosamente do silêncio da noite.

Diana fechou lentamente a porta e se encaminhou para o


comutador. Mas, no momento em que ia acender a luz, verificou que o
quarto se achava suficientemente iluminado pelo luar que fazia lá fora.
Apesar das vidraças descidas, a claridade atravessava o vidro e vinha
abater-se no chão como uma grande mancha leitosa. Diana não a tinha
visto ainda, se bem que tivesse dançado toda a noite ao ar livre.
Encaminhando-se para a janela, deixou-se envolver pela claridade
com singular volúpia. Depois suspendeu o vidro, aspirou o ar
profundamente, sentindo que aos poucos seu cansaço desaparecia com
aquele úmido perfume que se desprendia dos tinhorões e das
samambaias agasalhadas na sombra. Acendeu um cigarro, lançou uma
longa baforada para o alto e, depois de olhar uma última vez para o
jardim submerso na treva, veio estender-se no divã. Ainda trazia no
pensamento os últimos ecos da orquestra caipira, o cheiro dos
crisântemos, a voz insistente e carinhosa de Sílvio. Afinal, mais uma
vez, constatara que o mundo era feito de coisas agradáveis e sensações
amenas. Só assim ela o compreendia, feito como um hino de louvor à
sua graça, verdadeira apoteose em torno dos seus movimentos
maravilhados. Mas seria esta a única impressão que lhe deixara aquela
noite, apenas som e perfume, como todas as outras em que também
dançara e bebera um pouco? Não, evidentemente não, Sílvio existia.
Apesar de tudo, compreendera que aquela era uma noite decisiva no
seu destino. Tudo estava feito, já não lhe era possível fugir ao
compromisso assumido. E não era isto o que a conservava desperta,
atenta em pleno silêncio da noite? Diana não tinha o costume de
pensar longamente e nem o de detalhar impressões noturnas. Mas
agora era impossível não compreender que existia dentro dela esse
banal terror de se sentir comprometida, esse desespero que a maioria
das pessoas sente quando o véu se rompe ante a face secreta do
destino. Deus do céu, não que tudo isto deixasse de estar previsto há
anos, desde o tempo em que era criança ainda, mas não podia deixar
de constatar certo desencanto nesse modo banal de chegar ao termo
da viagem. No fundo, nesse terreno onde jamais morre completamente
a infância, nesse último e obscuro refúgio da inocência, talvez ela
ainda contasse com o príncipe das histórias que ouvira tantas vezes.
Ou talvez apenas sonhasse com sorte melhor do que aquela de se casar
numa cidade do interior, atrasada como Vila Velha.

Vinha pensando muito sobre Sílvio nestes últimos dias e, se bem


que desejasse encontrá-lo vulnerável nalgum ponto que o tornasse
menos digno da sua estima, era obrigada a se confessar que em quase
tudo ele era igual aos rapazes do Rio e em alguns bastante superior. A
única coisa que nele lhe causava certo constrangimento era aquela
espécie de selvageria que o caracterizava, violência ou não sabia o que,
tão fácil de ser percebida nos seus movimentos bruscos ou nas suas
decisões violentas e irrevogáveis. Mas fora disto admirava-o
sinceramente, acreditava nele, respeitava-o. Não que o acompanhasse
naqueles transportes a respeito das suas lembranças de infância, pois
na verdade julgava aquelas coisas mais como um sonho do que como
fatos realmente vividos. Uma vez chegara até a falar com Chico sobre o
assunto, e o rapaz, que conhecia Sílvio muito bem, dissera com um
sorriso fino: “Literatura. Conheço-o há muitos anos e sei que ele tem a
mania de bordar sobre as coisas mais insignificantes.” E Chico,
segundo Diana, era alguém que sabia pesar suas opiniões. Mesmo
assim, como as pessoas grandes admiram certas ilusões das crianças,
ela apreciava a força com que Sílvio acreditava em semelhantes mitos,
transfigurando fatos banais, detalhes sem importância, gestos
esquecidos, num entusiasmo que parecia desencadear à sua volta toda
uma vaga de ardente poesia. Se Diana pensava assim é que na verdade
existiam muitas coisas que ela ainda ignorava. Por exemplo, que
existem amores diferentes, como todas as coisas do mundo. Existem
os que nascem de um olhar, ardem, consomem o ser inteiro numa
chama furiosa. Existem os que descem a regiões menos profundas e
demoram mais; são feitos de ternos contatos que adormecem como
uma corda musical longamente vibrada. E existem os que não passam
nunca, que são feitos das parcelas de todos esses amores juntos, que
ardem, esmorecem, mas nunca deixam sossego ao coração. Este é o
amor que Deus destinou a certas criaturas e é composto da
inquietação, do sofrimento e do sonho de todos os que nasceram para
sofrer, na carne e no espírito, a nostalgia de outra carne e de outro
espírito semelhante. O amor de Sílvio era dessa espécie, e Diana não o
compreendia porque na realidade ela não o amava e jamais seria capaz
de amar alguém completamente. Se o tinha aceito, é porque outras
razões profundas trabalhavam-lhe a consciência.

Os fatos ainda estavam bem presentes na sua memória, não a


abandonavam, constituindo sua permanente e secreta chaga. Como
todas as pessoas que da vida desejam retirar até a última gota, como
esses que vivem exclusivamente com os olhos e os sentidos, como os
que só colhem o verniz e a luz dos acontecimentos, ela tinha horror de
perder a existência e achava-se aprisionada a ela com o furor dos
condenados. Mas um dia a doença surgira na sua carne. Ela a sentira
fremir no âmago do seu peito, como uma carícia estranha e morna.
Pedira ao médico que não lhe ocultasse nada, queria saber de tudo, se
ainda podia esperar ou se tudo estava irremediavelmente perdido. O
médico mostrou-lhe a radiografia: a doença estava em começo, alguns
remédios começariam o trabalho e um bom clima faria o resto. Diana,
com aquele tom autoritário e desesperado que herdara da mãe,
recusara-se a princípio, jurando que jamais abandonaria o Rio. Mas,
como nas semanas seguintes os sintomas parecessem mais graves,
cedera, numa crise de lágrimas. Passada a primeira tormenta,
concordara com o padrinho em que Vila Velha seria o melhor lugar
para uma estação prolongada. Preferia uma cidade do interior a um
sanatório. Preferia tudo a ter de viver isolada numa casa de saúde.
Diana era dessas criaturas para quem a vida monótona, entre horários,
regimes e corredores brancos, seria a melhor maneira de aniquilar.
Não tinha nenhum dom para viver sozinha e precisava da alegria dos
outros para sentir a sua. Assim, tinham partido para Vila Velha. E
Diana não se dera mal, encontrara Sílvio, Chico e outros
companheiros. Já começava a sonhar com nova vida brilhante e social,
quando começaram a lhe chegar notícias do Rio, festas, cassinos e
teatros. O abismo se abriu novamente, voltou ao médico local,
exigindo novo exame. O resultado obtido não foi satisfatório: com a
vida que levava, Diana não podia apresentar nenhum sinal concreto de
melhora. Indignada, indagara do médico, com voz trêmula e
lacrimosa, se jamais ficaria boa, se para ela todas as esperanças
estavam definitivamente arruinadas. Ele movera a cabeça e dissera
que estava longe de ser Deus para afirmar tal coisa, mas que
possivelmente sua cura seria muito difícil. E sem meios-termos
indagara qual era o gênero de vida que ela julgava mais apropriado
para curar um mal rebelde como aquele?

Recolhendo-se ao leito depois do baile caipira, Diana


compreendeu pela primeira vez o que significava morrer. As palavras
do médico ainda estavam bem vivas na sua memória. E enquanto
fechava os olhos, como última e frágil visão da sua consciência, sentia
revolutear num derradeiro espasmo o girassol de faúlhas vermelhas.
Depois, com estranha força, sentiu apoderar-se dela a noção do que
era desaparecer desta terra — não de um modo simples, como já
pensara tantas vezes, mas como quem sente o silêncio descer quando
tudo ainda permanece, quando ainda continua o azul do céu, luminoso
e infinito, vibram risadas claras e a vida prossegue indiferente. Esta
era a morte verdadeira, desligada dos outros, solitária e indefesa, a
morte sem perdão. Uma série de visões rápidas passou pelo seu
pensamento, viu lá fora as árvores que deitavam grandes e poderosas
sombras, e sentiu no rosto a brisa impregnada pelo cheiro de mofo e
umidade. Viu- se mais tarde deitada sob a terra escura, mãos cruzadas
sobre o peito, distante de toda fadiga e toda luz da vida. Diana era
romântica, gostava de sonhar e visualizar fatos e sentimentos pelos
quais certamente jamais passaria ou que na realidade ainda estava
muito longe de atravessar. Aquelas idéias causaram-lhe um súbito nó
na garganta, levantou-se sufocada, julgando compreender como sua
vida era solitária e destituída de interesse.

De novo recordou tudo o que se tinha passado naquele dia, após


novo exame com o médico local. Viera para casa pensando no
padrinho, sempre ocupado, deixando-a viver como bem entendesse,
voltado exclusivamente para seus interesses. Nem sequer podia
conversar com ele, todo o vocabulário que empregava estava cheio de
termos apropriados ao negócio de automóveis e só entendia o que se
referia a dinheiro e transações. “Meu Deus, como é horrível a vida das
mulheres!”, pensava Diana. E ao jantar, como o velho tocasse no
assunto da doença, ela confessou que havia feito outro exame. “Sei
disto”, respondeu, “o médico me afiançou que não poderemos sair
daqui tão cedo.” Diana não pôde acabar o jantar, uma dor de lado, os
olhos cheios d’água. O Rio parecia perder-se através de um insondável
nevoeiro. Pensou então que não se furtaria aos prazeres que lhe
oferecessem e que naquela noite compareceria ao baile que o prefeito
oferecia. Pensou também em confessar tudo a Sílvio, mas resolveu
calar-se, acovardada diante de tudo o que sentia, julgando melhor
viver e esquecer coisas tão deploráveis. Na verdade nunca se divertira
tanto. Sílvio parecia mais amável do que nunca e ela adorava a música
ingênua das sanfonas. O jardim tinha a seus olhos um aspecto
fantástico, com as negras samambaias recortadas na claridade
sulfúrea, artificialmente criada pelos morteiros. E ela perguntara a si
própria se poderia viver feliz em Vila Velha. Não era a primeira vez
que se colocava ante essa questão, tentando construir planos,
visualizar cenas futuras, domesticar afinal algo dessa fugidia felicidade
que tanto ambicionava? Sim, naquele instante o coração dizia-lhe que
era possível, que em Vila Velha poderia reconstruir algo que lembrasse
o paraíso deixado para trás, no Rio, agora transformado numa porta
fechada aos seus sonhos. Para isto contava com amigos, Chico, Élcio,
Susana. . . A vertigem continuava, lanternas dançavam aos seus olhos
semicerrados. Sílvio insistia, queria uma resposta definitiva. Aceitara.
As luzes giravam sempre, num suave pesadelo. Casar-se-iam dentro
em breve. Depois Sílvio viera trazê-la até à porta, beijara-a, enquanto
ela se queixava que ainda estava um pouco tonta. O vinho e o perfume
da noite. . . Deixava-se arrastar por essa sugestão como por uma
correnteza, entrefechava os olhos, via as árvores faisca- rem úmidas de
orvalho, julgava ouvir notas de música nos lugares desertos. Sílvio ria,
dizendo que ela estava ficando doida. “Não! Não!”, respondia ela,
sentindo que realmente a vida devia ser um sonho e que desse sonho
jamais se deveria despertar.

Mas agora, no silêncio do quarto, enquanto o luar entrava pela


janela aberta, Diana sentia a ilusão se desvanecer, a cabeça doía-lhe, a
realidade voltava a se impor, implacável. Galos cantavam ao longe, o
dia não tardaria a raiar. O efeito do vinho se dissipava. “Meu Deus”,
dizia ela a si própria, “que vou fazer? Estou estragando
miseravelmente a minha vida.” Ao mesmo tempo sentia a testa
molhada por um suor frio, pegajoso, a língua seca e uma dor aguda,
persistente, como se alguma coisa sangrasse no seu peito. Um gosto de
sangue inundava-lhe a boca. Então, na sua consciência já
completamente alerta, soprou um surdo vento de terror, vindo das
regiões mais primitivas da sua natureza. Tentou caminhar,
procurando aflitamente os chinelos. “Não, não”, continuava a se
debater, “nem tudo está perdido ainda, casar-me-ei, serei feliz, estarei
finalmente aprisionada ao mundo, deixarei de ser um fantasma como
o tenho sido até agora.” Mas a testa continuava a lhe doer, o mesmo
gosto de sangue umedecia-lhe a língua. A brisa fria soprava,
levantando a cortina de cassa. Diana voltou a se estender, enquanto
seus olhos, pesados, se fechavam. Seu sono era agitado, parecia que
algumas vezes ela ia se levantar, falar ou gritar por socorro. No
derradeiro reduto da sua consciência, nessa última região onde o sono
penetra de modo lento e quase que sem forças, ela ainda pensava que
no dia seguinte deveria procurar o padrinho a fim de providenciar
sobre o emprego de Sílvio. Por um instante a imagem do noivo ainda
passou no seu pensamento, vaga, inconsistente, com algo de
semelhante a um porto longínquo, onde ela fosse afinal lançar os
destroços da sua vida naufragada.

“Curioso tipo de homem”, pensou Clara, fixando


demoradamente o padrinho de Diana. Não havia dúvida de que era o
mais animado da reunião, contando casos, atraindo a atenção de todo
mundo, discutindo com padre Abreu sobre dogmas da Igreja. Clara
pressentia na sua maneira de falar e nos seus gestos esse brilho de
homem acostumado a salões e rodas importantes, brilho que Jaques
jamais tivera e que sempre desdenhara como coisa inferior. Apesar
disto, não lhe escapara também certo verniz artificial que parecia
impregná-lo; no fundo, toda aquela graça era muito consciente e
estudada. Mas salvava-o o desinteresse com que recebia as
homenagens dos ouvintes cativados. Dir-se-ia que até os desprezava
um pouco, vendo-os tão aprisionados à música das suas palavras. No
caso de Clara, soubera agradá-la de modo particular, pedindo
desculpas, em primeiro lugar, por só ter vindo conhecê-la no dia do
casamento. Em seguida passara a elogiar a casa, examinando
cuidadosamente as reformas feitas para a cerimônia, atacando as
habitações modernas e afirmando que ela, Clara, evidenciava ser
ótima administradora, pois o prédio possuía todas as vantagens de
uma casa moderna, aliadas às garantias das construções antigas.
Enquanto o homem falava, Clara se comprazia em imaginar romances
a seu respeito, situando-o como o herói de um caso amoroso mal-
sucedido, talvez, quem sabe, com a própria mãe de Diana. Ainda
haveria de perguntar a Sílvio por isto, talvez ele soubesse de alguma
coisa a respeito. Mas, como se fizesse tarde e os noivos não
aparecessem, resolveu ir ao quarto de Diana. Era o mesmo que havia
sido de Áurea durante tantos anos, agora pintado de novo, enfeitado
com outros móveis e cortinas, ligado diretamente ao quarto de Sílvio
por uma porta. Áurea passara a dormir no quarto de Clara, ocupando a
cama que Jaques deixara vaga. Clara afirmava que preferia assim, pois
ultimamente andava com sonhos e pesadelos, acordando assustada e
com medo de morrer. Insensivelmente ela repassava estas pequenas
questões na memória — e, enquanto se dirigia para o quarto da noiva,
perguntava a si mesma se Áurea não teria ficado ressentida e como iria
ela encarar os novos acontecimentos. No caminho consertou mais uma
vez os círios do altar, armado no fundo da sala, ajeitou as “corbeilles”
carregadas de lírios e ainda deu uma ligeira espiada à mesa de doces
que havia sido armada na copa. Estava tudo em ordem. No centro,
enorme, o bolo de noivos, muito branco e coberto de miúdas pérolas
prateadas, aguardava a hora do lanche. Os talheres, esfregados até se
converterem em objetos cintilantes como vidro, descansavam nos
ninhos formados entre as pétalas de rosas que cobriam a mesa.
Atraídas pelo cheiro, moscas voavam sobre os pratos cobertos. Ainda
havia flores pelos cantos, enviadas por amigos, conhecidos e parentes
de Diana. Castigadas pela longa viagem, as rosas pendiam das hastes
de arame, pálidas, enchendo o ar com esse forte perfume que exalam
às vésperas da morte. Satisfeita com seu exame, Clara dirigiu-se
finalmente para o quarto, a fim de apressar a noiva. Diana estava
sentada numa banqueta e discutia com Áurea. Já estava coberta com o
véu e esta última procurava colocar-lhe o diadema sobre os cabelos,
ajeitando-o segundo as indicações da noiva. Era evidente que esta se
achava nervosa, nada lhe parecia bastante perfeito, e a cada momento
alegava que, se estivesse no Rio, o caso seria diferente. Entretanto,
mesmo com os pobres recursos de Vila Velha, sua beleza esplendia
entre tantas rendas, fitas e ramos de flores. Sentada, ela parecia
colocada no centro de uma onda prestes a se desmanchar em espuma,
túmida, já se desencadeando, inquieta e prateada, através do véu que
se acumulava aos seus pés. No íntimo, examinando-a e comparando-a
consigo mesma — seu pobre casamento, às pressas, sem luxo e sem
convidados… —, Clara reprovava aquilo que considerava um excesso
de mau gosto, olhando aqueles detalhes com desprezo. Na verdade
Vila Velha não comportava aquele espetáculo, e além do mais tratava-
se de uma cerimônia estritamente familiar. A cada momento Diana
pedia o aspergidor de perfumes, borrifava-se, sacudia depois a esponja
em torno, levantando uma nuvem de pó-de-arroz. Insatisfeita, gritava
pela caixinha de “rouge”, ao mesmo tempo queixava-se da modista,
retirava o véu, tornava a colocá-lo, impacientava-se, chamava Áurea,
despedia-a de novo, queixava-se da sorte e afirmava que nunca se
sentira tão infeliz. Sim, Clara tinha razão, realmente não havia
necessidade de tudo aquilo: sob o diadema de flores de laranjeira, seus
grandes olhos verdes ardiam solenes e misteriosos, trazendo à sua
beleza, tão viva, um tom mais inquietante ainda. Não era possível
duvidar de que existia certo descontrole nervoso na sua atitude. E
Clara, que apreciava tirar conclusões dos fatos, imaginava o que seria o
futuro de Sílvio, preso a uma criatura que se dominava tão pouco...

Diana tinha se levantado e subira à banqueta, a fim de que


Áurea pudesse consertar a longa cauda de seda do seu vestido. Sob a
gaze estendida, tênue como imperceptível vapor, a faixa branca vinha
ondulando até à porta, coalhada de miçangas que brilhavam entre
botões de laranjeira. “É o dia mais feliz da sua vida”, pensava Clara, “e
ela não compreende isto. Preocupa-se somente com perfumes, flores e
outras tolices, quando devia imaginar que uma nova porta se abre ao
seu destino.” Diana discutia agora porque desejava aparecer com um
ramo de orquídeas pálidas nas mãos e não havia em Vila Velha senão
orquídeas roxas. Este simples detalhe tornava-a rubra de cólera. Como
Clara se aproximasse para avisar de que já se fazia tarde, ela pôs-se a
gemer, dizendo que ainda queria tirar retratos. Clara mandou chamar
o fotógrafo e durante este intervalo Diana ensaiou várias poses. Clara
observou que havia um brilho febril nos seus olhos, que os seus
movimentos eram rápidos e descontrolados. “Que terá ela?”,
perguntou mais uma vez a si mesma, sem acertar o motivo. “Terá sido
sempre assim?” E, como o fotógrafo surgisse com a máquina e
procurasse o melhor ponto para adaptar o tripé, Diana tornou-se mais
nervosa ainda, começou a discutir em voz alta, achando que o homem
não entendia do seu ofício. Ele a olhava, espantado, sem ousar
discordar daquela vaporosa criatura afogada em espumas e rendas.
Como Diana se tornasse quase agressiva, Clara procurou escapar a fim
de não presenciar mais semelhante cena.

Embaixo, o padrinho fazia as vezes de dono da casa, atendendo


os convidados que chegavam. Clara agradeceu-lhe com um sorriso,
sentindo que voltava a penetrar no seu verdadeiro mundo. No canto de
uma janela enfeitada com folhas de tinhorão, Maria Ernestina
conversava com padre Abreu, muito apertada num vestido escuro e
fora da moda, ostentando um raro chapéu bordado a vidrilhos, que
estivera em moda há vinte anos atrás. Quase todas as criaturas que
enchiam a sala haviam obedecido a idênticas noções de bom gosto;
desprendia-se delas certo perfume antigo, como o que exalam malas
fechadas durante muito tempo. Depois de examinar os convidados
durante um minuto, Clara atravessou silenciosamente a sala,
examinou as “corbeilles” que estavam do lado de fora da varanda e,
avistando Sílvio ao longe, junto à cerca, desceu ao seu encontro.
Hesitou ao se aproximar, pois Sílvio parecia em meditação, sentado
sobre uma pedra, o queixo apoiado nas mãos. Ao vê-lo, Clara sentiu
seu coração confranger-se mais uma vez, compreendendo que ele não
era feliz. Como parecia sozinho em momento tão importante! E ela
repetiu para si mesma que realmente o mundo é inabitável para certa
classe de pessoas. Falta-lhes esse gosto para deixar passar as coisas
sem compreendê-las a fundo, essa inconsciência e esse
desconhecimento dos outros que para tantos é uma espécie de
armadura contra os golpes da vida. E ela reviu o filho pequeno,
correndo no jardim, perseguindo um pobre gato ou amarrando
gravatas de papel nas galinhas. E mais tarde, sentado na escada,
esperando a hora de ir para o colégio. E depois, ainda em tantas
imagens sucessivas, uma vida inteira que vinha desaguar ali numa das
suas etapas decisivas, numa das três ou quatro que dividem as vidas
como marcos solitários. Clara correu os olhos, tão grande era a
emoção que se apossava do seu espírito: compreendia que não era só o
seu papei como mãe que estava praticamente terminado, sua vida
também se achava paralisada, sem motivo, gratuita e vaga. Mas não
era este o sentimento que envenena o coração de tantas mães e as leva
a prosseguir num papel que acabará por matar a vida do próprio filho,
como certas plantas que fenecem por não poderem arrebentar o vaso
estreito em que agonizam? E movendo a cabeça ela se aproximou
devagar, chamando-o para não assustá-lo.

– Oh, mãe — exclamou o rapaz, assim que a viu.

Ela julgou notar que seus olhos estavam molhados e assustou-


se, pois sabia que o filho não era pessoa de derramamentos fáceis.
Durante algum tempo, imóvel, procurou ansiosamente o que deveria
lhe dizer, a palavra que ao mesmo tempo não o ferisse e o aliviasse,
mas nada lhe vinha ao pensamento, ou, antes, faltava-lhe coragem
para dizer duas ou três palavras banais, quando sentia o momento
carregado de tantas questões urgentes e insolúveis. Mas resignou-se,
percebendo que esta palavra só Diana poderia encontrá-la naquele
instante. Continuou a fitá-lo em silêncio, sentindo o sol arder nos seus
cabelos. Sílvio sentia também que nada poderia dizer e que uma
sombra mais forte se tinha colocado entre eles. Não que a estimasse
menos; ao contrário, sua impressão era a de que as palavras já não
valiam como antigamente e que por mais esforços que fizesse não
saberia exprimir senão sentimentos vazios, sem importância diante do
que se passava.

– Já estão todos aí? — perguntou afinal.

– Todos — respondeu Clara, pressentindo a repugnância que se


apoderava dele, por ter de enfrentar um mundo que considerava hostil
e sem interesse.
– Entremos — propôs Sílvio, levantando-se e dando o braço à
mãe.

Clara sentiu-o tão desamparado, tão visceralmente unido a ela


naquele instante que lágrimas lhe vieram aos olhos também. “Que
loucura”, pensou, “ele ainda é uma criança!” E indagou mais uma vez a
si própria, com essa obstinação das mães ciumentas e que fora de suas
vistas não vêem nenhuma felicidade para os filhos, o que Diana
realmente significava na sua vida. Que a amava não lhe era possível
duvidar; no entanto, era visível que ele criara uma espécie de mito
sobre aquela criatura tão vazia. Não era o que ela realmente
representava que aprisionara o rapaz, mas qualquer coisa fluida,
distante e impossível de ser localizada, uma espécie de segunda e
misteriosa presença, como essas que sentimos muitas vezes, atentas,
junto a seres despreocupadamente adormecidos.

O padrinho veio recebê-lo na escada. Os convidados já se


mostravam impacientes, alguns consultavam o relógio. Clara resolveu
procurar novamente a noiva. Um silêncio embaraçado pesava na sala.
Um pouco desorientado, Sílvio sorria, para os visitantes, sem
encontrar nenhuma palavra amável que viesse salvar a situação.
Desamparado no meio da sala, ele percebeu de repente que havia
naquilo tudo algo de comédia; o ato pareceu-lhe pueril e estúpido, as
pessoas odiosas, o casamento uma cerimônia sem explicação. Seu
próprio amor, tão profundo, diminuiu e revestiu-se de uma cor
ligeiramente ridícula. Dir-se-ia que nada resistia aos olhares curiosos e
ao ambiente abafado da sala. Diana surgiu, finalmente, acompanhada
por Clara. Um murmúrio percorreu os presentes e o padrinho
adiantou-se para conduzi-la ao altar. Sílvio fitou-a e sentiu de maneira
mais forte ainda que havia um desajuste naquilo tudo e que Diana
representava a comédia de uma grande cerimônia, olhos baixos sob as
longas rendas do véu. Pálida, lábios cerrados, desprendia-se dela um
perfume sensual e morno. O padre colocou-se no seu lugar e Sílvio
avançou também, contemplando fixamente os círios que ardiam com
ruído quase imperceptível.

Nos dias que se seguiram, Clara verificou que se enganara em


parte no que imaginava sobre Diana. Ela não era tão fútil assim e nem
se mostrara muito deslocada do novo ambiente. É verdade que
passava a maior parte da manhã ocupada em pentear seus cabelos,
coisa que Clara não podia lhe perdoar. Além disto, os vestidos lhe
tomavam maior atenção do que as outras coisas e Diana apreciava os
passeios acima de tudo. Mas, contra os prognósticos de Clara, ela não
se isolara no ambiente e, ao contrário, procurara se aproximar o mais
possível daquilo que a cercava. Enquanto Sílvio passava a maior parte
do dia no escritório, tratando de negócios com o padrinho da moça,
esta vinha sentar- se ao lado de Clara e Áurea, procurando também
aprender a fazer bordados e flores artificiais. Mas via-se que não tinha
jeito, as pétalas saíam grandes e desajeitadas. No princípio Clara ria,
imaginando que Diana acabaria por adquirir experiência com o tempo.
Mas acabou se convencendo de que não havia nela nem interesse e
nem persistência para melhorar. Foi do que se convenceu a própria
Diana, que abandonou as flores pelo bordado. Áurea, com infinita
paciência, ensinava-lhe os pontos mais difíceis. Entretanto, após duas
ou três lições, Diana abandonou o novo trabalho, alegando que lhe
faltavam qualidades para coisas tão delicadas. Os dias pareceram-lhe
então maiores e mais monótonos. Andava o dia todo pela casa,
suspirando, arrumando papéis velhos, relendo cartas do Rio ou
forçando Clara a exumar casos de Vila Velha, que ela nem sequer
chegava a ouvir até o fim. Suspirava a todo momento e, quando Sílvio
chegava, queixava-se de que ele vinha muito tarde, que estava
abandonada e que acabaria por morrer de tédio. Queria obrigá-lo a
prometer que viria mais cedo, pensando até em falar no assunto com o
padrinho. Sílvio pediu-lhe que não falasse nada, e, como agora Clara
se recusasse a lembrar outros casos, os dias se alongaram
desmesuradamente para Diana. Um secreto desespero começava a
trabalhá-la, o mundo parecia-lhe um infindável deserto. Sentindo-se
escorregar lentamente nesse abismo de cinza, procurou aflitamente
com que se entreter e acabou descobrindo os livros de Sílvio. Passou a
devorar romances, foi atacada de uma crise de literatura. A todo
propósito citava um herói de novela, imaginou escrever um ensaio
sobre poesia, discutia horas inteiras com Clara, a respeito de autores e
livros. Mas, como não tinha realmente nenhum pendor muito sério
para a literatura, cansou-se depressa dessa nova ocupação, atirou os
livros para o lado, voltou a caminhar pela casa, tamborilando com os
dedos na vidraça, abrindo a boca, remexendo em fitas e retratos
antigos. Mas isto não lhe bastava, passava horas debruçada à janela,
olhando a rua deserta, queimada pelo sol, e o céu desesperadamente
azul, onde asas longínquas e sonolentas transitavam. Um dia resolveu
reatar suas antigas relações com os conhecidos do Rio, pôs-se a
escrever cartas, rasgou quase todas, enviou algumas e obteve apenas
uma resposta. Mesmo esta única atirou-a num oceano de melancolia,
chorou trancada no quarto e apresentou-se à hora do jantar com olhos
vermelhos. Sílvio afligiu-se, quis vê-la disposta como antigamente,
rindo e conversando. Realmente a crise passou, ela esqueceu a
resposta, atou as cartas velhas num só maço, atirou-o no fundo da
mala, dizendo: “Fique aí no cemitério.” Depois disto, voltou a procurar
o que fazer. Lembrou-se do jardim, imaginou uma paixão pelas flores,
comprou dezenas de pacotes de sementes, revolveu os canteiros todos,
acabou contratando dois jardineiros para acabarem o serviço que
começara. Clara via, com tristeza, seu pobre jardim ser reduzido aos
poucos a um montão de terra informe. Secretamente, para que Diana
não a visse e não se sentisse tolhida, recolhia apressadamente
sementes de dálias e crisântemos, transportava mudas para debaixo da
janela, desejando salvar ao menos alguns espécimes da sua coleção de
begônias, que lhe causava tanto orgulho e lhe custara tanto trabalho
através dos anos. No entanto, Diana não tardou a abandonar também
o jardim, pretextando que o cheiro da terra lhe fazia mal. Agora nada
mais lhe restava fazer, já havia tentado tudo e fracassara. Quando
imaginava alguma coisa e vinha propô-la a Clara, esta tremia,
lembrando-se das suas plantas sacrificadas. Com o correr do tempo,
Diana conseguiu alterar todos os hábitos da casa. Imaginando que esta
não estava sendo bem dirigida, resolveu organizar “menus” e alterar as
horas das refeições. O resultado é que ninguém se entendia, nada
estava pronto na hora, faltava sempre alguma coisa ao jantar ou no
almoço. Em vista disso, Clara, que silenciara apenas em atenção a
Sílvio, resolveu retomar a direção de tudo. Os “menus” foram abolidos,
o horário voltou a ser o mesmo de sempre. Diana teve uma crise de
nervos, disse que não prestava para nada, que sabia muito bem disto
mas que não precisava que ninguém lhe atirasse à cara. E lamentou-se
horas seguidas, jurando que o melhor seria morrer de uma vez. Clara
assustou-se com semelhante reação e compreendeu que não era bem
porque o horário voltara a ser o mesmo de antigamente, mas porque
Diana precisava deixar extravasar o seu desespero de alguma forma.
Mas na verdade ela parecia estar bem longe de morrer ou mesmo de
estar gravemente doente: estava até mais gorda, olhos brilhantes, sem
a antiga sombra a empanar-lhe a fisionomia. Nunca fora tão bonita
quanto nesta época, e todos os que a viam afirmavam a mesma coisa.
Diana consultava-se ao espelho o dia inteiro, pretextando doenças
imaginárias e lamentando sem cessar a vida que sonhara. Onde
estavam as festas, os companheiros, a existência brilhante que pensara
levar? Ao contrário, com o casamento tudo isto havia desaparecido, os
amigos abandonavam-na. Farta de procurar motivos para se entreter e
acuada pelo tédio como um animal ao fundo da sua grota, sua atenção
convergiu inteira sobre Sílvio. Não que fosse tomada de repentino
amor, mas acreditou que assim fosse e passava o tempo a se preparar a
fim de que o rapaz reparasse nela. Ia esperá-lo à grade, uma rosa
vermelha nos cabelos úmidos, fazia-lhe gatimonhas e carícias.
Inventara um alfabeto carinhoso e infantil, respondia a Sílvio nessa
linguagem estranha, rindo quando ele não a compreendia. Inventou-
lhe apelidos, imaginou uma ilha onde ambos vivessem isolados,
queixava-se de viver na companhia dos outros e suspirava à janela,
olhando o horizonte distante.

Sílvio, cujo amor era cada dia mais profundo, sofria à medida
que ia tomando conhecimento desse caráter bizarro. Clara não lhe
dizia coisa alguma, mas o rapaz sentia que no fundo ela desaprovava
essa estéril agitação e temia pelo futuro de ambos. Diana mostrava-se
cada dia mais absorvente, queria saber onde ele tinha estado a tal
hora, o que fizera, se pensara nela, por que não viera mais cedo, se não
podia faltar ao serviço no dia seguinte, a fim de acompanhá-la a um
piquenique. Sílvio fugia a essa cascata de palavras e interrogações
dizendo que não podia, que o seu papel era trabalhar e dedicar toda
atenção ao escritório, se quisesse prosperar nos negócios. Então ela
voltava a se lamentar, olhos marejados d’água, dizendo que ele não a
amava e que ambos haviam cometido um engano. Sílvio protestava,
assustado com aquela sensibilidade exacerbada. Aos poucos Diana
multiplicava suas extravagâncias, queria provas decisivas do amor do
marido, fugia, refugiava-se na casa do padrinho, exigia que ele fosse
buscá-la, indagava de tudo o que ele sentia, se a sua falta fora muito
grande. E, como Sílvio lhe respondesse com certa frieza, ameaçava
suicidar-se, fingia interessar-se pelas maneiras de morrer sem dor,
comovia-se com seu próprio destino, chorava e passava horas em
completo silêncio. Uma vez, irritada com esses despropósitos, Clara
chamou a atenção do filho. Ele respondeu simplesmente que eram
conseqüências da doença de que Diana sofria. Não tardou muito que
outra espécie de preocupação viesse absorvê-la: passou a desejar um
filho, explicou a Sílvio que lhe haviam aconselhado aquilo como
remédio, passava o tempo a idealizá-lo. Sílvio temia que ela não
suportasse tamanha responsabilidade. Mas, obstinada, ela criava em
torno dele uma atmosfera cada vez mais densa, onde existia todo o
maquinismo de uma perfeita situação amorosa, exceto o próprio
sentimento do amor. Nunca se achava bastante bela para o marido,
mandava sempre fazer novos vestidos e “négligés”, todos quase
absolutamente iguais, que se iam amontoando no fundo do guarda-
roupa. Como este gênero de vida acabasse por cansá-la e o filho
cobiçado não desse sinais de vida, passou a ler revistas, detendo-se nas
crônicas sociais, cerrando os olhos e sonhando com uma grande vida.
Via-se nos salões que conhecera outrora, entrando pela mão do
padrinho, aclamada pela sua beleza. Todos se curvavam à sua
passagem, havia cochichos, as mulheres empalideciam de inveja.
Quando voltava desses sonhos, a vida lhe parecia mais horripilante do
que nunca. Odiava aquela casa que julgava muito pequena, escura e
malcheirosa; odiava suas janelas com cortinas de cassa, seu jardim
maltratado e seus móveis escuros e sem graça; odiava Vila Velha, as
pessoas que conhecia, tudo. A vida parecia-lhe uma doença
monstruosa. Voltou aos romances, deparou com heroínas assim
devoradas pelo tédio, imaginou-se uma grande alma destinada a uma
sorte mesquinha. A idéia do suicídio reapareceu com maior força e
incrustou-se na sua alma como um crustáceo ao rochedo. A obsessão
cresceu, acordava à noite pensando no melhor meio de acabar com a
vida; procurou o médico, quis saber quais eram os sintomas da morte
por asfixia, envenenamento ou produzida por arma de fogo. Acabou
decidindo atirar-se na caixa d’água, e uma tarde, depois de ler sua
carta de despedida, ostensivamente deixada sobre a mesa da sala,
Sílvio foi encontrá-la junto à represa escura e profunda, o rosto entre
as mãos, numa crise de desespero. O lodo denso e esverdeado que
percebera no fundo causara-lhe horror. Desorientado, acreditando
naquele drama sem alicerces, Sílvio acabou prometendo que no ano
seguinte iriam para o Rio. Diana se animou e passou a considerar
aquilo motivo suficiente para que não cuidasse de mais nada, medindo
toda a sua vida pelo ponteiro desta recuada e problemática
possibilidade. E a esse respeito se exprimia com tal convicção que
Clara se assustou, interpelando Sílvio a respeito. Ele afirmou que sua
promessa de ir para o Rio só fora feita para acalmá-la. Na verdade não
via nenhuma probabilidade de se mudarem para o Rio. Entretanto
Diana nunca mais mandou fazer vestidos, tornou-se relaxada, vestia-
se mal, não penteava os cabelos, imaginando que nada mais tinha
importância, desde que em breve começaria uma nova vida. Contava
os meses, as semanas e os dias, suspirando, gemendo, queixando-se
incansavelmente do tempo. Voltara a viver debruçada à janela,
olhando a paisagem e conversando com as raras pessoas que
passavam. Dizia a todo mundo que ia regressar ao Rio e chegou
mesmo a comprar algumas malas grandes, onde atirou a maior parte
dos seus vestidos. Ficou apenas com o essencial para se vestir e, como
Sílvio lhe fizesse uma observação a respeito, alegou que ele não
ganhava o suficiente para que ela pudesse estragar suas melhores
roupas naquele brejo. Mas, como o tempo ainda assim custasse a
passar, voltou mais uma vez aos romances, atirou-os definitivamente
de lado e, tendo esgotado assim tudo o que existia dentro de casa,
passou a sair, sob pretexto de ir ao encontro de Sílvio. No princípio
saía como se achava em casa, mas aos poucos foi ganhando interesse
pelo divertimento, voltou a tratar dos cabelos e a vestir-se com apuro.
Agora, quando ia ao encontro de Sílvio, dando longas voltas pela praça
e pelas estradas próximas da estação, levava a mesma sombrinha com
que visitara Clara pela primeira vez. Como estivesse mais bem
disposta do que nunca, sua beleza causava admiração, provocando
murmúrios à sua passagem. Por essa época ela se enfeitava muito e,
como os enfeites lhe fossem bem, assemelhava-se assim, na estrada
deserta e poeirenta, a uma estranha e deliciosa visão a caminho de
uma festa. Aos poucos, no seu esforço para reagir contra Vila Velha e
aquilo a que chamava “sua sufocante opressão”, Diana exagerava,
vestia-se diferente de todo mundo, com roupas brilhantes,
inadequadas, onde era possível discernir qualquer coisa de febril e
alucinado.

Esta desordem toda havia preparado o escuro caminho que ela


não tardaria a palmilhar. Na sua alma vazia, sem a menor sombra da
presença de Deus, o drama ia progredir com a violência dos vendavais
que se desencadeiam nas planícies abertas. Ela ainda não sabia, mas
naquele momento já sua alma se achava a dois passos do abismo,
descrente do amor e aberta a todas as misérias da terra. Numa tarde
quente de novembro ela se vestiu como de costume, com roupas leves
e esvoaçantes, os dedos cheios de anéis. Abriu a sombrinha a fim de se
abrigar dos últimos raios do sol e ganhou a estrada, pondo-se a
caminhar lentamente, com aquela expressão vaga e melancólica que
ultimamente transfigurava sua fisionomia. O tédio continuava sua
marcha destruidora, emprestando-lhe à máscara alguma coisa de
sardônico e desesperado ao mesmo tempo. Foi nesse instante que viu
uma baratinha aproximar-se, e reconhecendo Chico fez-lhe sinal com
a mão. Ele obrigou o carro a recuar em marcha à ré e aproximou-se da
moça.

– Há quanto tempo! — exclamou.

– E você nem me reconheceu... — respondeu Diana, ameaçando-


o com a mão faiscante e com a fisionomia aberta no mais cativante dos
sorrisos.

Ele também sorriu lembrando-se dos tempos passados:

– Também você está tão diferente!

– Mais feia, não? — indagou, consciente de que apenas havia


melhorado.

Mais feia não, ao contrário. Mas veste-se de um modo diferente.

– Oh — disse ela enrubescendo —, não quero perder meus


costumes do Rio. Vivo como se realmente não estivesse em Vila Velha.

Chico compreendeu que estava diante de uma rara


oportunidade para reatar antigos laços de amizade.

– Sim, é esta a única maneira de se viver num lugar como este —


arriscou. — Estamos cercados de gente que nunca viu nada, uma corja.

Assim, ao mesmo tempo que a separava dos outros, ligava-a a si


próprio, por uma espécie de eleição: eram os únicos que conheciam o
resto do mundo, e isto os aproximava numa repulsa comum àquele
infame lugarejo. Diana agitou-se um instante, os olhos cheios de
nuvens melancólicas.

– Você nem sabe o que tenho sofrido... — disse num tom


confidencial.

– A culpa é sua, que abandona os amigos! — alegou Chico,


pensando já em convidá-la para dar uma volta até à cachoeira.

– Não o abandonei — explicou ela —, mas quando a gente se


casa a vida é diferente.

– Será que proíbe até mesmo uma voltinha com velhos


conhecidos? — tornou ele, já com a mão na porta do carro.

Diana sorriu, rósea e sedutora debaixo da sombrinha. Seus


olhos cintilaram de prazer. Entretanto, por um resto de escrúpulo,
murmurou ainda:

– Impede sim. Que diriam os outros? Não se esqueça de que não


estamos no Rio.

Chico atirou-se vorazmente à clareira que se abria:

– Sim, lá é diferente. Mas não foi você mesma quem disse que
estava vivendo uma vida à parte, como se não estivesse em Vila Velha?

– Você é terrível — disse Diana, fechando a sombrinha.


– Vamos num pulo até à cachoeira — disse Chico. — Você não
sabe o quanto lá é bonito ao cair do sol.

Diana entrou e ele pisou o acelerador. O carro pôs-se em


movimento e num instante a estrada principal foi devorada. Ela
conservava os olhos semifechados, os lábios cerrados e o coração
batendo em surdas pancadas, pois sabia que estava praticando alguma
coisa que Sílvio jamais lhe perdoaria. Ao mesmo tempo, lembrando-se
da infindável série de dias em que se consumira fechada naquela casa,
sem o menor acidente para diverti-la, atirava-se cegamente, numa
volúpia de aproveitar o momento que se apresentava, numa dolorosa e
frenética ânsia de viver. O sol avermelhava a planície como se toda ela
estivesse em fogo. E mesmo Chico, sob esta luz, adquiria um tom
sinistro, quase escarlate, como se estivesse sob a claridade de um dia
sobrenatural, fora do calendário humano.

– Vá mais devagar — sugeriu Diana, que se sentia amedrontada.

Mas Chico, cuja consciência não lhe doía em nada e que tinha
certos planos em mente, voava cada vez mais rápido.

– Que volúpia de velocidade tem você! — exclamou Diana, cega


pelo rodamoinho de poeira que escurecia a estrada. Ao mesmo tempo
sentiu passar-lhe pelo rosto um vento frio e, percebendo que a noite
começava a nascer, temeu resfriar-se e aconchegou-se um pouco mais
no fundo do carro. Chico, que a examinava de lado e no fundo
desprezava um pouco aqueles trajes leves e aquele excesso de jóias —
não parecia ela um fantasma no meio da estrada? —, interpretou mal
semelhante movimento e disse com voz velada:

– Você verá que sombras protetoras há junto à cachoeira...

De fato, junto a água, sombras azuis se alastravam como


verdadeiras ilhas na paisagem avermelhada pelo sol. Arvores cobertas
de flores agasalhavam uma multidão de pássaros à procura de abrigo.
Qualquer coisa pungente parecia se despedir na paisagem
transfigurada. Diana sentou-se numa pedra, colocando a sombrinha
ao lado. Chico sentou-se perto, fitando-a longamente nos olhos.

– Não me olhe assim — disse ela. — Guarde isto para outra.

Mas era visível que toda ela fremia, na expectativa de um perigo


próximo. Ternas rolas arrulhavam no mato próximo. A voz de Chico se
fez cariciosa, e ele se aproximou um pouco mais, num gesto ousado.
Diana sentiu subir até ela aquele adocicado perfume de cigarros caros
que conhecia tão bem nos rapazes do Rio e cerrou os olhos, os seios
alteados pela emoção.

– Como pode ser tão cruel assim? — disse ele, procurando ferir a
nota exata.

– Em que sou cruel? — tornou Diana, com um estremecimento


que ela própria não sabia se era de temor ou de frio.

– Oh, bem sabe que vivemos num deserto e que para mim você é
a única companhia que posso tolerar... Há meses que a venho
procurando, desiludido e triste. Vamos, não é isto uma crueldade?

Diana, que temia fitá-lo nos olhos, volveu a cabeça enquanto


respondia:

– Ao contrário, sempre o vi distante, como se a minha pessoa


não o interessasse.

– É que você vivia tão absorvida!

E Chico mudou outra vez de posição, colocando-se ainda mais


de frente; assim, Diana não podia fugir ao seu olhar. Pediu licença
para acender um cigarro, ofereceu outro à companheira, atirou uma
baforada para o alto, depois, com jeito terno e cheio de malícia,
pousou uma das mãos nas suas:

– Você sabe, afinal podemos ser amigos. Temos muitas coisas


em comum e não nos será difícil fazer uma espécie de aliança contra o
resto do mundo. Compreendo sua solidão…

A esta altura Diana sentiu-se tocada até o âmago. Todo o


sombrio terror desses últimos dias de inércia surgiu a sua memória
com inesperada força. Viu-se sozinha junto à represa, olhando o limo
escuro que se agitava no fundo como um traiçoeiro veludo. Foi com
voz trêmula e olhos marejados que respondeu ao rapaz:

– Ah, se você soubesse de tudo!

Chico sentiu que era aquela a nota justa e tomou a outra mão da
companheira. Ela não relutou, sentindo uma estranha dormência
subir-lhe pelo corpo. Além disto, aquele ar frio e nebuloso que subia
da cachoeira causava-lhe uma espécie de vertigem. E Chico, tão
próximo já que parecia debruçar a cabeça no seu colo, continuou:

– Nem todos os ambientes são propícios a certas almas. A sua,


por exemplo, vive em estranha ansiedade, sem encontrar os horizontes
que procura. Só eu sei do que necessita. Alguns poderão dizer que é
um ambiente familiar e calmo, cercada de livros e outras coisas deste
gênero. Mas não é nada disto, no fundo somos irmãos, temos gostos
semelhantes, precisamos de ar e de liberdade. De liberdade sobretudo,
não nascemos para apodrecer em casas fechadas.

Diana escutava-o fascinada, sentindo que ele descrevia


exatamente seu atual estado d’alma. Nunca pessoa alguma lhe falara
com aquela lucidez, com tão segura noção das suas mais íntimas
aspirações, com tanta convicção e ao mesmo tempo tão grande
ousadia. Possivelmente que noutra época, menos abalada pelos
acontecimentos, saberia reagir e até poderia se rir daquelas palavras
que Chico usava com uma ênfase bastante suspeita. Mas naquele
instante, perdida, sem encontrar saída para o seu desespero, arrimava-
se nelas como numa legítima tábua de salvação.

Chico, que já sentia metade da vitória nas mãos, afastou-se um


pouco e contemplou-a. Pela primeira vez, desde que conhecia Sílvio,
sentiu que afinal estava cumprindo o seu destino, começado há tanto
tempo, quando ainda estava no banco da escola. Sim, era verdade,
antes não se tinha aproximado de Diana porque ela não o interessava.
Achava-a bonita, mas não era o seu tipo, faltava-lhe uma dose
qualquer de corrupção. Não compreendia senão certa classe de
mulheres. Mas agora era diferente, tudo se tornava possível, era a
própria Diana quem vinha se atirar nos seus braços. Talvez tivesse
pressentido antes que o momento ainda não tinha chegado. Agora, o
fruto estava maduro e Chico surgira para iniciar a comédia. Oh, como
se divertiria, que prazeres estranhos e novos haveria de apreciar com a
iniciação de uma mulher daquelas! Estava farto de pequenas misérias,
de sórdidas escaramuças com companheiros sem brilho, de miúdas
espertezas que não lhe davam nenhuma sensação violenta de triunfo.
Lembrando-se de Sílvio, sentia que sua imperiosa natureza reclamava
uma vítima à sua altura. Com os olhos perdidos no vago, já esquecido
da mulher e das frases que lhe dissera minutos antes, Chico meditava:
seu pai estava morto há muito, e esta força obscura que ele trazia
armazenada no fundo do ser acumulava-se sem encontrar válvula de
saída. Há muito que não praticava um daqueles famosos atos que
arrancavam aplausos dos membros do seu “grupo”, freqüentadores do
“clube”. Mas agora sentia nitidamente a oportunidade nas mãos e
olhava Diana com certo desafogo, sentindo-se maior do que de
costume, pronto a agir, ou, como ele próprio dizia com tão sombrio
fervor, a viver.

– Você nem pode imaginar como os seus cabelos são belos nesta
sombra! — voltou ele a dizer.
Ela moveu a cabeça, agitando a cabeleira ruiva. Seus olhos
brilhavam de gratidão e desejos contidos.

– Não precisa me elogiar — disse ela. — Basta o que já disse.

Num transporte, Chico quis beijá-la. Ela recuou, defendendo-se


com as mãos. Ele abandonou-a de novo, desapontado.

– Não, não devemos fazer isto — disse ela, olhos baixos. —


Podemos ser amigos e não devemos envenenar esta amizade.

Ele assoviou entre dentes e ergueu os ombros, como a


demonstrar que aquilo lhe era indiferente. Ela ergueu-se, tomou a
sombrinha e com um suspiro afirmou que precisava voltar, fazia-se
tarde. Ele concordou, pressentindo que não devia se adiantar muito.
Sabia como conduzir o caso, a fim de não estragá-lo.

Sílvio ainda não voltara completamente a si, depois daqueles


acontecimentos que lhe tinham transformado a vida. Inicialmente
perdera contato com todas as coisas, como se o casamento houvesse
lhe cortado as amarras da existência comum. Vagando entre os
destroços da sua antiga vida, dizia a si mesmo que ainda não se
adaptara, mas que tudo viria a ser normal, como o era na vida de todas
as pessoas. Mas o que mais o preocupava era o fato de ter abandonado
a tranqüilidade da vida familiar para trabalhar num escritório. Agora
passava os dias em mangas de camisa, lidando com livros de
contabilidade e aturando as intermináveis questões, quase sempre
inteiramente destituídas de senso, que lhe eram feitas por dois
morosos auxiliares. Era a primeira vez que se via obrigado ao contato
forçado com pessoas que lhe eram estranhas, e isto causava-lhe
insuportável mal-estar. Além do mais, sofria pelo fato de ser obrigado
a permanecer o dia inteiro naquela sala fechada, entre móveis que
nada exprimiam, cuidando de cifras e ditando uma correspondência
que de tão absurda chegava a provocar-lhe o riso. No princípio ainda
sentira despontar nele ligeiro interesse, debruçara-se sobre aquele
gênero de vida com certa curiosidade, esperando encontrar no fundo
alguns raros e inesperados resíduos de poesia. Mas pouco a pouco fora
compreendendo que sua imaginação, sempre tão pronta a transfigurar
mesmo os aspectos mais mesquinhos da existência, não lhe poderia
fornecer auxílio naquele terreno. Não tardou muito que começasse a
sentir que aquele trabalho, longe de o elevar, aviltava-o. Desprendera-
se lentamente daqueles arquivos cheios de cartas mortas, aprendera a
conhecer a mentalidade estreita dos seus auxiliares, compreendera
que aquilo que exigiam dele qualquer outro o poderia fazer, desde que
se resignasse a agir como simples peça de uma máquina. Dentro em
pouco, nada lhe parecia mais idoso do que o escritório. “Como posso
trabalhar com elementos que desprezo tanto?”, indagava ele a si
próprio, folheando catálogos de automóveis. E assim como no início se
entregara de corpo e alma àquele serviço, esperando criar da matéria
sem vibração um elemento de beleza e entusiasmo para sua vida,
agora tornava-se relaxado, demorava a correspondência, respondia de
mau humor às questões dos auxiliares. Não era possível ocultar aos
outros que não tinha nascido para aquela vida e que não acreditava na
gravidade daquele gênero de trabalho. Sentia que não o suportavam
por vê-lo tão indiferente às possibilidades que se abriam, desdenhando
as oportunidades de subir, meta a que aspiravam todos aqueles que o
cercavam. Aos poucos Sílvio foi aperfeiçoando seu conceito e passou a
considerar não apenas aquele gênero de trabalho, mas o trabalho da
maneira por que era aceito geralmente, como uma tremenda mentira.
Não era por essa falsa noção de responsabilidade — nenhuma
daquelas coisas eram criadas, o homem apenas auxiliava a máquina,
como um acessório, sem nenhuma intervenção direta — que se podia
medir bem a chaga lavrada na alma do homem do nosso tempo? Tudo
aquilo era o símbolo de uma escravização comum. Nada podia
subsistir naquelas salas fechadas, nem sentimentos, nem desejos, nem
ideais e nem esperanças. Tudo era terrivelmente limitado, os
movimentos mais íntimos e mais pessoais esbarravam na porta do
“chefe”, espécie de entidade misteriosa e aterrorizadora que subjugava
não só a ação dos seus escravos como os anseios das suas almas,
plantas ressequidas em vasos estreitos. Não eram homens completos,
eram invólucros desabitados, casulos sem vida que se debatiam numa
existência fictícia.

Mas apesar de tudo Sílvio era obrigado a trabalhar, precisava


ganhar a vida e assim vinha ao escritório todos os dias. Foi esta a
primeira concessão que ele fez ao casamento. Outras se sucederam, de
importância idêntica e aparência menos decisiva. Quando voltava para
casa, costumava encontrar sempre uma transformação qualquer; ora
deparava com o jardim revolvido ou com as refeições alteradas no
horário, ou então achava os móveis fora do lugar ou qualquer outra
invenção do gênero. Nada ousava dizer, esperando que no fim algumas
daquelas coisas dessem certo. Tudo estaria salvo, se ela conseguisse
levar avante ao menos um dos seus planos. Mas com o correr dos dias
foi obrigado a reconhecer que Diana não tinha persistência para levar
avante o trabalho de consertar o que ela atrapalhava. Clara também
não dizia coisa alguma, olhos baixos, procurando fugir a toda espécie
de explicação. Sílvio, que a acompanhava e a via fugindo sempre com
seus cabelos repartidos em dois bandos bem cuidados — agora, com a
presença de Diana, a simplicidade de Clara ressaltava mais forte, suas
roupas pareciam mais severas e mais antigas —, desejava no fundo que
ela o auxiliasse a solucionar aquele problema. Certa vez em que a
interpelou a esse respeito, Clara afirmou que não desejava viver em
disputas. Ele compreendeu que a mãe já tinha o seu partido e não mais
voltou a tocar no assunto. Se bem que nenhuma das loucuras de Diana
lhe passasse despercebida, não ousava enfrentá-la. À força de falar
sobre o Rio e no modo pelo qual vivia antes de vir para Vila Velha,
Diana conseguira criar nele certo complexo de inferioridade. Este era o
motivo por que Sílvio desculpava todos aqueles excessos, achando que
não poderia oferecer à mulher o conforto e o sistema de vida a que ela
estava habituada desde a infância. Abandonava-a aos seus desatinos,
convicto de que não podia e não tinha o direito de se intrometer.
Talvez que, se um dia chegasse a casa e declarasse peremptoriamente
que tudo aquilo era simples e rematada loucura, Diana melhorasse um
pouco. Havia também certa infantilidade na sua atitude, misturada a
coisas mais graves e mais profundas. Cada dia ele a amava mais, de
um amor forte, absoluto e doloroso. O casamento, fixando-a junto
dele, acabara por desvendar a verdade de que há tanto tempo ele
suspeitava: Diana não o amava, nada significava na sua vida. Sentia
que ela poderia passar dias sem vê-lo, que nunca se preocupava com
seus interesses, ou, se tomava conhecimento de alguma coisa que o
tocava de perto, era com uma frieza que o humilhava. Em vão
procurava uma fórmula para solucionar essa questão que o
acabrunhava; sempre que se aproximava da mulher, sentia elevar-se
por detrás dela, enorme e ameaçadora, a sombra dessa vida que não
conhecia. Jamais pudera vê-la sob a luz de um dia completo: em todos
os gestos, Diana trazia a lembrança dessa noite já vivida e que deixara
para trás. Quando a vira interessar-se pelos livros, sentira reacender-
se nele diminutas esperanças, pensando em confiar-lhe o manuscrito
do romance que estava escrevendo. Não era este o melhor meio de
aproximá-la? Mas não tardou muito que Diana se declarasse inimiga
dos livros, atirando-os para o lado num desprezo de criança. Enquanto
Sílvio tentava explicar-lhe as idéias que dirigiam sua projetada novela,
Diana bocejava, queixava-se de sono e de doenças imaginárias. Sílvio
guardou o manuscrito, convencido de que aquela ainda não era a
sonhada oportunidade. E Diana tomava-se cada dia mais bela, seus
olhos brilhavam num verde líquido e matinal, no rosto claro e sem
sombras. De súbito, sem que coisa alguma parecesse justificar uma
mudança de atitude, ela passara a esperá-lo na estrada, fazia-lhe
carinhos, queria saber como e em que ele trabalhava o dia todo. Sílvio,
sem voltar a si do espanto, detalhava-lhe aquilo que chamava de
“pequenas misérias do escritório”. Se bem que ela nem sempre o
escutasse até o fim, insistia entretanto para que ele repetisse os casos,
forçava conclusões, quase sempre absurdas, achava-o magro e ao
mesmo tempo consultava livros sobre alimentação, queria vê-lo mais
sadio e mais apto para lutar lá fora. Sílvio sentia que tudo aquilo era
falso e sofria em silêncio. A atitude de Diana apenas lhe revelara o que
podia ser uma perfeita harmonia — e a cada momento crescia dentro
dele essa sede de uma felicidade que até agora não conhecera e que só
se manifestava através de um terrível sentimento de ausência. Não
tardou muito que a mania de Diana passasse; ele se viu de novo
abandonado, enquanto ela passava a evoluir noutra órbita. Cheio de
amargura, sem nenhuma complacência para com a própria debilidade,
tentava sondar que estranho sentimento era o que o aprisionava
àquela criatura leviana. E era o que Clara também perguntava a si
própria, infindáveis vezes, percebendo que o filho gastava o melhor da
sua sensibilidade e dos seus nervos com um fantoche que nada
exprimia. Para ela não havia engano possível: Diana era um perfeito
símbolo de mediocridade. Não era somente a Sílvio, mas a nenhum
homem ela seria capaz de amar. Diana não compreendia senão os
sentimentos sem realidade. O desastre que Clara previra antes do
casamento fora mais extenso e mais profundo do que imaginara.
Supunha que se tratasse de uma pessoa mais ou menos inquieta e
vinha encontrar uma louca. Era o que repetia a si própria,
incansavelmente, aterrorizada com o rumo que as coisas tomavam.
Sentindo-se mergulhar numa solidão sem remédio, Sílvio atravessava
os dias fechado num completo mutismo, pensando na sua vida e não
vendo nenhuma solução para o futuro. Nas longas horas em que
passava no escritório diante da paisagem que a janela aberta
recortava, comparava sua vida com a dos outros e achava-a
estranhamente diferente. Nenhuma daquelas criaturas possuía suas
dificuldades, tudo nelas respirava facilidade e satisfação em viver.
Nele, não existia um só sentimento que não exprimisse desespero.
Mesmo que Diana o amasse, ainda assim seria o desespero. O mundo
estava penetrado de lado a lado pelo desespero, e tudo o que se fizesse
para salvá-lo seria perfeitamente inútil. E, com o coração cerrado pela
noção dessa bruma que lhe velava toda possibilidade de felicidade,
voltava seu pensamento para Diana, escrevia o nome dela dezenas de
vezes sobre uma folha de papel branco, tal como fazia outrora, no
colégio, sonhava com a melhor maneira de surpreendê-la ou de
causar-lhe uma alegria. Ao mesmo tempo, ouvindo a voz de alguém
que falava perto, revoltava-se, julgava que todos os seus pensamentos
eram simples conseqüência de uma visão errada das coisas, imaginava
que havia destinos melhores e que a felicidade era possível sobre a
terra. Voltava a olhar os homens que o cercavam e suas vidas o
horrorizavam: eram apenas pobres almas vazias, dentro de um oceano
de mediocridade. Que vale realmente uma pessoa, quando já não
projeta nenhuma sombra sobre as coisas que toca? Pois na verdade
que somos nós quando o sofrimento já não tem razão de ser e a vida
nada mais é senão um largo e tranqüilo estuário onde vai encalhar
essa nau que já não vibra ao sopro das tempestades? Que fazemos
quando já perdemos a graça de sermos infelizes, quando já nada mais
nos resta senão o caminho trilhado por todos, a dose dessa inglória
felicidade quotidiana, os vícios e os hábitos de uma sociedade
devorada pelo câncer do tédio e da mediocridade? E esta foi outra
concessão que Sílvio fez ao casamento: a da sua paz interior.
Instalando Diana definitivamente na sua vida, criara junto dele uma
fonte permanente de veneno. Ela não o deixava tranqüilo um só
minuto, enchia-lhe os momentos de inquietação e dúvida, separava-o
de Clara, demonstrava-lhe a todo instante, com uma habilidade
consumada, que ele não era amado e que provavelmente jamais o
seria.
10

Ao regressar, no dia em que encontrou Chico pela primeira vez,


Diana sentiu desde a porta o ambiente de estranheza formado pelo seu
procedimento.

– Oh — disse ela assim que viu a mesa posta para o jantar e


Clara à sua espera —, encontrei uma velha conhecida e estivemos
conversando.

Depois, como vislumbrasse Sílvio no outro canto da sala, os


olhos inquietos pousados nela, ajuntou levando uma das mãos à testa
e cerrando os olhos:

– Mas o pior é que estou com uma terrível dor de cabeça.

– Quer um remédio? — perguntou Clara friamente.

– Não — respondeu ela —, vou apenas me recolher.

E, depois de trocar mais duas ou três palavras com Sílvio,


fechou-se no quarto. Ele jantou em silêncio na companhia da mãe,
impotente para dissolver aquela atmosfera pesada que se criara com a
saída da moça. Entretanto, no fim, quando já tomavam o café, ousou
fazer ligeira observação sobre o assunto. Clara fitou-o e disse
tranquilamente:
– Acho que seria conveniente você mandá-la passar algum
tempo fora.

– Onde? — indagou Sílvio admirado.

– No Rio — por exemplo.

Ele ergueu os ombros e não respondeu. Se bem que no íntimo


concordasse com Clara, adivinhando o motivo por que ela lhe dera
aquele conselho — no fundo, o vago terror de um escândalo numa
cidadezinha como aquela… —, temia que se Diana partisse jamais
voltaria a Vila Velha. Nada a retinha ali, só lembranças cruéis nasciam
para ela daquele lugar. E não podia deixar de se sentir humilhado,
compreendendo que usava de um subterfúgio para retê-la. Com a sua
consciência, porém, desprezava-se por causa desse amor que não
conseguia superar. Mas o que o ligava agora a Diana era um
sentimento diferente, doloroso e vulgar. Não se sentia culpado para
com ela em coisa alguma e sofria apenas por si próprio, porque já não
conseguia estimá-la como antes e nem podia se libertar do seu
domínio. Mas, enquanto sorvia as últimas gotas de café, imaginava
que era por esta fenda entrevista agora que passaria mais tarde o
sopro da sua liberdade. Clara pousara a xícara e examinava-o em
silêncio. Dir-se-ia que para ela o assunto ainda não estava terminado.
E Sílvio, percebendo que nenhuma razão o abalaria, que nada o faria
separar-se da mulher, abandonou a xícara, levantou-se, alegou que ia
verificar se Diana precisava de alguma coisa e abandonou a sala. Foi
encontrá-la estendida no escuro, a janela aberta, quase despida.

– Meu Deus, você não está se excedendo? — perguntou,


encaminhando-se para fechar a janela.

– Não! Não! — gritou Diana —, preciso de ar, sinto-me sufocada


aqui dentro!

Ele estranhou o tom da sua voz e aproximou-se dela.

– Que há, Diana? — indagou, sentando-se a seu lado.

Ela se agitou como se procurasse fugir à sua proximidade. No


escuro, entretanto, ele distinguiu suas grandes e sombrias pupilas que
ardiam, bem como os cabelos desmanchados sobre a testa. Vendo-a
assim no leito desalinhado, Sílvio sentiu subir-lhe ao espírito aquela
mesma perturbação que nestes últimos tempos o assaltava sempre
diante dela, encerrando-o no anel de fogo de um desejo que jamais se
aplacava. Lembrou-se de tudo o que tinha acontecido nestes últimos
tempos e, em especial, na escravidão a que o reduzia o mistério do
corpo daquela mulher. Sentia-se envergonhado e ao mesmo tempo
diferente: era como se outro ser o habitasse.

– Não está se sentindo bem? — perguntou com voz terna.

Ela moveu-se de novo e contemplou-o irritada, como se aquelas


palavras lhe desagradassem. Depois, apertando a cabeça entre as
mãos, exclamou num tom estranho e abafado:

– Não sei, não sei de nada. Parece-me que tenho febre.


Sílvio experimentou-lhe o pulso. Achou-o agitado, assustou-se,
propôs que chamassem um médico. Diana, enervada, não soube
conter um movimento ríspido.

– Meu Deus, não tenho doença nenhuma! Se você quer saber, é


apenas vontade de sair, encontrar outras pessoas, viver enfim!

Sílvio compreendeu aquele grito que se escapava de sua alma.


No escuro olhou-a de novo e, vendo-a ofegante e agitada, teve medo e
ao mesmo tempo o pressentimento de que Diana estava sendo
devorada por um mal desconhecido. O brilho do seu olhar não era o de
uma pessoa normal.

– Por que não repousa uns dias? — sugeriu ele, sentindo que
aquelas palavras nasciam independentes da sua vontade.

– Repousar! — exclamou ela com um desdém que parecia


fulminá-lo. — E que faço desde que pisei nesta cidade?

E como Sílvio procurasse suas mãos, desejando retê-las entre as


suas, ela foi tomada por uma onda de emoção e pôs-se a soluçar,
ocultando o rosto entre os travesseiros. Aflito, ele tentava afagá-la,
enquanto Diana procurava fugir cada vez mais ao seu contato. E como
Sílvio afinal desistisse, chocado com aquela repulsa que se manifestava
tão cruamente, Diana soluçou alto durante algum tempo, o rosto
voltado contra a parede. Assistindo-a naquele desespero, os ombros
nus sacudidos pelos soluços, ele achava-a ainda mais bela, com
qualquer coisa de cruel nos cabelos desfeitos e no aspecto martirizado.
Enquanto isto, pensava consigo mesmo: “Amei esta mulher mais do
que tudo, de um amor diferente e raro, de um amor profundo e que
consumiu toda a minha vida. Nela encarnei tudo o que de belo e nobre
existe sobre a terra. Mas ela própria destruiu tudo e reduziu este
sentimento superior a uma paixão de escravo. Não sei agora se a odeio
ou se a amo ainda. Mas decerto preferia vê-la morta a sentir-me tão
degradado.” Diana, sentindo-se aliviada, voltou a cabeça, enxugando
as derradeiras lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Vendo que Sílvio
permanecia mudo a seu lado, explicou que realmente não estava
passando bem e que aquele gênero de vida, vazio e rotineiro, estava lhe
pondo os nervos em frangalhos. Sílvio sugeriu uma porção de
remédios, mas nenhum deles agradou a Diana. Como Sílvio insistisse,
sondando cautelosamente o terreno perigoso, ela confessou que já não
podia mais, que estava acima das suas forças suportar aquele gênero
de vida. Sílvio temeu se achar diante da explicação que há tanto tempo
deferia; sabia que não possuía elementos para ganhar a partida e vinha
procurando evitá-la a todo custo. Diana continuava a se lamentar,
alegando que não tinha sido feita para viver em casa. As palavras de
Chico ressurgiram intatas nos seus lábios. Sílvio compreendeu que,
apesar de ter vindo a Vila Velha por causa da sua doença, Diana agora
culpava-o de tudo, nesse cego desejo das pessoas de lançarem sobre
um motivo imediato a causa dos seus males. Em Diana aquilo não era
uma simples necessidade, mas uma força profunda que parecia
reverter completamente a realidade. E Sílvio compreendeu que, para
extinguir esse mal, seria necessário empregar a violência; de outro
modo não conseguiria extirpar do seu coração aquela semente de
injustiça. Mas não era exatamente dessa violência que ele tinha medo?
Qual seria a reação de Diana num caso desse? Fitando-a mais uma vez
na sombra, sentiu crescer, mais forte e mais selvagem, aquela paixão
que o subjugava. Não era uma paixão pura, desejava-a brutalmente, se
bem que às vezes fosse tomado por um certo desprezo, vendo-a como
naquele instante, tão nua, bela e miserável ao mesmo tempo.
Lembrando-se de como a amara na sua infância, sentiu mais uma vez
que eram duas paixões diferentes. Naquela não havia desejo, era uma
paixão branca, um desses mistérios que elegem a infância como berço.
Nada perturbaria a calma desse primeiro sentimento, ainda mesmo
que ela viesse a desprezá-lo, ainda que o abandonasse, como tinha
feito. E só aí Sílvio compreendeu por que ela mal se lembrava desse
episódio do passado: é que o seu sentimento se tinha exprimido por
uma linguagem que ela não compreendia, inexistente para o seu
coração acostumado às paixões da terra. Com o tempo tudo se tinha
transformado, ela trouxera a esse sentimento ingênuo a consciência do
mal. Agora, escravizado à sua imagem por todas as fibras da carne,
tudo nele doía e sangrava ao menor dos movimentos. Mas outro
elemento se impunha nesse caos criado pelo desejo e pelo desespero:
essa revolta que ia crescendo aos poucos e que lhe transmitia a certeza
de que ainda a desprezaria e que nada mais de sagrado havia na sua
paixão. Nesse terreno profundo onde os sentimentos ainda são como a
semente que não rompeu o invólucro e não se transformou em folha,
nessa região onde tudo se processa lenta e dificultosamente, como se
não tivesse forças para ganhar a luz do dia, ele já sentia alguma coisa
que lhe anunciava a morte do seu amor, imposta pelos sentidos
longamente experimentados e pela sensibilidade enfraquecida. Apesar
de tudo, esta longínqua consciência nada mais era, naquele momento,
do que uma minúscula claridade tentando se elevar através de um
oceano de escuridão. Já ele se voltava de novo para ela, indagando se
estava precisando de alguma coisa ou o que tencionava fazer. E Diana,
com a voz úmida de soluços, respondeu:

— Não sei, não sei bem o que eu quero. Sinto apenas que não
tenho liberdade, e isto me envenena. Quero viver, preciso sentir que
tenho direito a outras coisas que não estas que me cercam, que para
mim tudo não está terminado ainda.

Ele examinou-a mais uma vez, estupefato. Por um instante,


enquanto ela se agitava sobre as cobertas, pensou em Chico e
comparou suas frases: ambas possuíam um tom comum, eram frases
de doentes. Havia ainda outra coisa que Sílvio aos poucos ia
reconhecendo, essa maneira de falar em “liberdade” como de alguma
coisa suprema, essa ânsia de viver, esse sonho que parecia destruir
mais do que acalentar. Que espécie de liberdade era esta, qual a vida
que sonhavam com tanto desespero? Ainda não teriam percebido que
tudo isto se tratava de uma simples miragem, que não havia liberdade
como aquela que sonhavam, que nesta febre de viver estavam
trabalhando apenas pela própria destruição? E não só eles, mas quase
todo mundo reclamava liberdade; que cega luz era esta que as pessoas
exigiam com tão áspera veemência, que estranha divindade era esta
por que alguns sacrificavam até a última gota de sangue? Não, Diana
jamais compreenderia que ela poderia se salvar de outro modo. Ela era
dessas para quem a verdade só existe no fim de uma catástrofe;
precisava ir até o fim para esgotar aquela sua profunda nostalgia da
destruição, aquela sede, maior do que todos os seus sentimentos, que a
atirava aos limites da morte. Pensando novamente em Chico, Sílvio
compreendeu então que ambos estavam marcados pela mesma febre,
tão semelhante ao tédio e ao desconhecimento das coisas que também
o havia assaltado antes da morte de Jaques. Pensou em explicar tudo a
Diana e arrancá-la daquele abismo. Mas não receberia ela suas
palavras com gelada prevenção? Não julgaria que estavam
mascarando apenas a mesma comédia antiga, não fugiria revoltada e
não desceria mais fundamente nesse erro que a ia consumindo? E,
depois, talvez fosse tudo inútil, Diana estava destinada a desaparecer.
É verdade que havia entre ela e Chico uma diferença; aquele escolhera
livremente o seu caminho, como um príncipe escolhe os domínios em
que vai residir. Diana fora apanhada desprevenida pela tormenta;
sentia-se levada, mas não sabia para onde ia. Mas ainda seria tempo
para salvá-la? E, enquanto repetia semelhante pergunta, Sílvio sentiu
penetrá-lo a noção da sua própria inutilidade. Seu coração tornou-se
pesado como se fosse de chumbo. Nada podia fazer por Diana porque
entre eles não existia um amor verdadeiro, uma compreensão que se
pudesse transformar num escudo contra os golpes do mundo. E este,
ele bem o sabia, era o único meio peio qual se pode auxiliar alguém.
Como salvá-la, se apenas tinha o direito de apresentar um amor que
lhe degradava? E Sílvio ocultou o rosto nas mãos, desejoso de tudo
esquecer, de libertar-se daqueles pensamentos como quem se liberta
de uma carga inútil.

Apesar de tudo, não era só Diana que ignorava o que realmente


queria. Foi esta a constatação a que Sílvio chegou, com os dias que se
sucederam. Pressentiu que na sua alma havia uma insuficiência
qualquer, um vácuo que ainda não compreendia. Nada lhe bastava,
sua vida estava sempre como que lacerada ao meio, como se lhe
houvessem arrebatado uma parte desgraçadamente vital. Ele se movia
dentro dos acontecimentos da própria existência como entre quatro
paredes fechadas — e sua sede de transformação, ou melhor, sua
necessidade de romper estas paredes e participar de destinos
diferentes era tão poderosa, naqueles últimos tempos, que chegava a
causar-lhe uma dor física. Nada lhe parecia impossível, nenhum lugar
e nenhuma situação deixavam de ter raízes e referências na sua
própria existência. Sentia-se como um centro, um foco de onde tudo
partia e para onde tudo convergia. Se era tão segura essa noção do que
existia de diabólico nesse desejo com que muitos reclamavam tão
duramente o direito de viver, no entanto o desenrolar da vida dos
outros causava-lhe uma sombria inveja. Fora dele, as vocações mais
humildes assumiam o aspecto de uma apoteose. Sonhava
possibilidades, via-se em todas as situações, nada, nada lhe bastava.
Dir-se-ia que um fogo interior o consumia, essa mesma ânsia
desesperada que um dia, afinal, havia marcado sobre o rosto de Jaques
os sinais do seu mortal triunfo. Não raro, sentado à noite, na cama,
sentia que existia no seu espírito uma parte de heroísmo inaproveitado
— e o que faltava parecia ser um desses atos decisivos e viris, em que
comprometesse tanta força inútil, tanto desejo de luta e tão acerbo
gosto pelo triunfo. Mas ao mesmo tempo imaginava-se através de
várias existências diferentes, como marinheiro, salteador ou um
simples boiadeiro perdido pelo sertão adentro. Aquela estranha
viagem pela vida dos outros embriagava-o como uma vertigem;
exaltava-se, via-se em situações de graves perigos, curtindo
dificuldades, atravessando noites em claro, em rudes e saudáveis
trabalhos. E era este o único modo que julgava possível para que sua
alma encontrasse repouso, livre afinal da sua pesada carga de sonho e
de ambição. Outras vezes, como também Jaques sonhara tanto no
passado, pensava em fugir, ganhar o sertão adusto, mudar de
identidade, evadir-se do destino que o aguardava como alguém foge de
uma prisão. E apesar disto, à medida que essa febre se avolumava,
Sílvio chegava à conclusão de que tão violenta e dolorosa inquietação
nada mais era senão uma terrível atração pela quietude da morte, esse
derradeiro refúgio onde se abrigam as ambições sem destino e os
heroísmos sem asas para vencer o mundo.
Em vez de sonhos, a vida reservava-lhe um duro papel, e Sílvio
já não tinha tempo para desejar com tanta violência a febre de outras
vidas. No escritório, durante todo o dia, pensava agora exclusivamente
em Diana e na sua estranha atitude nestes últimos tempos. E sentia
aquela paixão como um mal estranho à sua natureza, uma debilidade
que não podia suportar, uma espécie de erva daninha que se agarrara
à sua alma. Precisava de libertar-se daquilo, se queria viver, precisava
arrebentar aquelas cadeias que lhe tinham sido impostas, respirar,
voltar a ser ele mesmo. Apesar de tudo, uma sombra cada vez mais
densa se insinuava no seu espírito. “Onde irei eu, se continuar assim?”,
indagava Sílvio a si próprio, rabiscando um papel inútil diante dele.
“Sim, onde irei?” Mas a sombra se alargava de minuto a minuto,
ameaçando apoderar-se de todo o seu ser. E, baixinho, ele repetia um
nome: Chico. Não ousava perguntar, mas sentia-o presente nas
palavras de Diana, nos seus silêncios e nos seus longos passeios. Agora
se admirava de que ainda não tivesse pensado nele. Tentara lutar e
sufocar o ciúme que começava a envenená-lo. Dir-se-ia que já não era
amor ou desejo o que sentia por Diana, mas uma cólera fria, misturada
a um penoso sentido de inferioridade. Como aquilo começasse a
corroê-lo, pôs-se a fazer indagações, queria saber onde ela ia, proibia-
lhe que se afastasse de casa. Diana respondia-lhe de mau humor,
ameaçava fugir, demorava mais tempo ainda na rua. E agora
disputavam todas as noites, atravessando-as em claro. No dia seguinte
Sílvio ia para o serviço arrasado, abandonava a correspondência,
esquecia-se das ordens a dar, causando assombro a todo mundo com
os seus modos estranhos. Tentava emendar-se e pedia a
correspondência para colocá-la em dia. Mas de repente lembrava-se de
que Diana podia não estar em casa, abandonava tudo, vestia o paletó e
corria à casa a fim de ver se suas desconfianças se confirmavam. Se a
encontrava, sorria, mentindo que viera buscar um papel ou outra coisa
qualquer. Às vezes Diana estava no quintal, lendo um livro à sombra
de uma árvore ou olhando as nuvens que passavam no céu. Ao vê-lo,
seu rosto tornava-se sombrio. Certa vez, entretanto, Sílvio realmente
não a encontrou em casa. Percorreu toda a cidade, indagando se a
tinham visto, desesperado, olhos ardentes, o coração avassalado por
um sentimento cruel e frio. Diana, sabendo dessas coisas, irritava-se,
dizia que ainda não era sua escrava e que ele não tinha o direito de
expô-la assim ao ridículo perante a cidade. Com o correr dos dias as
disputas se tornavam mais ásperas, Diana exaltava-se, saía dessas
discussões ofegante e revoltada. Certa vez trocaram palavras mais
violentas e passaram três dias sem dirigirem palavra um ao outro.
Sílvio veio afinal pedir-lhe desculpas, humilhado, consentindo afinal
em vê-la sair sozinha. Mas um sofrimento novo se tinha introduzido
no seu coração, uma espécie de ponta envenenada que a desconfiança
não deixava adormecer nunca. A qualquer momento, onde quer que
estivesse, debruçado sobre um trabalho ou caminhando na rua, sentia
de repente aquele espinho ferir-lhe a carne, uma nuvem cobria-lhe os
olhos, o mundo parecia-lhe irrespirável. Clara não intervinha nunca,
se bem que seguisse atentamente tudo o que se passava. Aos poucos
Diana ultrapassava os limites, cometia excessos que Sílvio não podia
lhe perdoar e sobre os quais julgava ouvir comentários na rua. As
discussões voltaram ao primeiro plano, Diana queixou-se de que os
ciúmes de Sílvio a matavam. E mudou-se para a sala, negando-se a
continuar no quarto com ele. Nenhum argumento parecia ter o dom de
convencê-la; Sílvio agora apenas a contemplava, mudo e sombrio.
Assim é que, certa noite, voltando para casa, ele chegou à conclusão de
que dera um passo em falso e que não tinha nascido para o casamento.
Talvez tivesse sido este o caso de Jaques. Ao chegar, fez várias
perguntas a Clara sobre o assunto, sentindo-se mais próximo do pai,
como que vivendo dentro de um círculo de emoções que já fora, há
muitos anos atrás, o que ele próprio vivera. E, como Diana não
melhorasse, pensou então em abandoná-la e fugir de casa. A sombra
de Jaques apoderava-se dele de um modo lento e seguro. À força de
investigar sobre a origem dos seus males, Sílvio chegou à conclusão de
que não era apenas o seu caso que lhe desagradava em particular, mas
a idéia do matrimônio em geral. Nutria por ele um desgosto
fundamental, não pelo fato de duas vidas se unirem através de um
sacramento, mas porque sentia essa aliança como uma espécie de
contrato lavrado contra o mundo. Lembrava-se do que sentira certa
noite, há muitos anos atrás, quando Jaques regressara. Via-se de novo
junto à porta, ardendo em ciúme, consciente de que havia entre aquele
desconhecido e Clara uma espécie de aliança da qual jamais
participara. Além do mais, existia na sua repugnância uma parte
imponderável, que ele ainda não conseguira identificar direito. Sim,
percebia que havia alguma coisa de obscuro e vagamente repelente na
convivência dessas pessoas e, por que não dizer, até mesmo na criação
dos filhos. Não podia ver um casal sem irreprimível estremecimento.
Com a força dessas pessoas que sempre descobrem nos gestos alheios
um símbolo do próprio destino, sabia que jamais participaria daquela
vida. jamais seria igual aos outros, jamais faria uma aliança contra os
seus semelhantes, jamais adormeceria suas forças na quietude de um
lar. O que tentara construir, esse mundo que tentara erguer regido
pelas leis ordinárias da vida, sentia-o agora como uma triste caricatura
da existência forjada pelos outros.

11

Se aparentemente Clara se mostrava preocupada com outros


afazeres, não deixava entretanto de observar o que se passava com
Diana. Nenhuma observação lhe escapava dos lábios, pois sentia que o
desfecho viria por si mesmo e que, se não podia evitá-lo, também não
tinha nenhuma força para retê-lo ou precipitá-lo. Quando Sílvio lhe
apresentara a moça, imaginara logo, com grande lucidez, o que se
achava reservado para o seu filho. Agora, no entanto, era obrigada a
confessar a si mesma que estava longe de imaginar que seus
pressentimentos se realizassem tão depressa. A violência com que se
anunciava o temido desfecho ultrapassava muito suas mais
pessimistas expectativas. “Não é somente leviana”, pensava ela, “mas
há algo de desatinado na sua pessoa.” Via Diana escrever longas
cartas, rabiscar inúmeros rascunhos e depois destruir as folhas de
papel, sem enviar coisa alguma. Via-a tentar inúmeros serviços, sem
levar nenhum a termo. Sem dúvida faltava-lhe certa persistência — e
Clara, vendo-a caminhar o dia todo, consumindo-se nessa agitação
estéril, imaginava que um pouco mais de força de vontade talvez a
salvasse. Mas, com o correr do tempo, verificou que não era somente
persistência o que lhe faltava: Diana não tinha consciência nenhuma
do que fazia e, mais ainda, aquelas coisas não possuíam realidade
suficiente para interessá-la. “Que espécie de criatura é esta?”, indagava
Clara a si própria, perplexa. E vendo-a deslizar pela casa como uma
sombra, sem encontrar repouso e completamente desligada do mundo
exterior, estremecia como se estivesse na presença de um fantasma.
Na verdade, Diana possuía atualmente qualquer coisa de uma fria
aparição. Esta semelhança ia se acentuando rapidamente, pois
qualquer coisa fluida, distante e sobrenatural parecia envolvê-la e
separá-la irremissivelmente dos outros. Já não era apenas a maneira
de vestir, mas também seus gestos, sua voz, sua maneira de pensar e
de sentir, tudo parecia desajustado à maneira real em que devia viver.
Se Clara levasse mais a fundo o exame, compreenderia que Diana se
achava apenas devorada pelo sonho de uma existência diferente. Não
era um simples desejo, mas uma imensa e poderosa paixão que
invadia e subjugava toda sua natureza; não eram simples vagas, como
as que outrora tinham sacudido a própria Clara, mas um abandono
total, uma descida, completa nessa voragem que é a doença mortal de
tantas almas fracas e visionárias. Apesar de pressentir a força desses
secretos distúrbios — e ela própria, de vez em quando, não sentia
sacudi- la um desses ventos estranhos e carregados de loucura? —,
Clara não ousava abordar o assunto com Sílvio. Uma única vez, como
ele se aproximasse e aludisse tristemente à vida que levava, Clara
ousou sugerir-lhe que falasse abertamente com Diana. Tudo valia mais
do que aquela existência terrível. Sílvio olhou-a com os olhos cheios de
sombria reprovação e afirmou que não podia e não tinha nenhuma
vontade de fazer aquilo. Como Clara erguesse os ombros, concluiu com
voz baixa que “para Diana não havia nenhum remédio”. Clara
abandonou-o, penalizada. A fim de poupá-lo, abstinha-se de comentar
o que presenciara durante o dia. Tolerava tudo, com essa fraqueza das
mães que constroem um mundo de facilidades irreais para os filhos.
Que adiantava apresentar provas contra um amor que resistia a tão
duros embates? Pressentia que a corda não tardaria a arrebentar e que
a tensão atingia o máximo. Mas às vezes, quando Diana se excedia, ela
abaixava os olhos, lamentando que a cegueira de Sílvio o arrastasse a
tais extremos de humilhação. De quem teria ele herdado aquela alma
dócil, aquele coração sem forças para lutar contra a sua escravidão?
Remoía suas próprias lembranças, procurando se recordar do modo
por que amara Jaques. Sim, bem sabia que o amor era uma fuga à
realidade, que algumas vezes construímos os nossos mais belos sonhos
sobre criaturas que não merecem nada. Mas havia um limite para
tudo: que sentimento era aquele que cegava Sílvio daquela maneira? E
ela se esquecia de que também já fora assim e suportara tudo por
causa de um homem que a desprezara tantas vezes. E, à força de
examinar e pesar semelhantes questões, sentia apoderar-se dela uma
espécie de pânico. A obstinação não lhe parecia um simples caso de
cegueira, mas um completo envenenamento. Estava perdido, nada
poderia salvá-lo daquele abismo. Mais tarde, entretanto, julgou
verificar certos detalhes que lhe tinham passado despercebidos. A
tristeza do filho revelou aos seus olhos alguma coisa do que se passava
no fundo da sua alma. E Clara suspirou, aliviada. Mas, como os dias se
sucedessem sem que nenhum acontecimento viesse romper a densa
monotonia dos acontecimentos, ela compreendeu que Sílvio aceitava
aquela vida como um fato consumado, indiscutível. Ele se sacrificava,
com essa cegueira de certas almas excessivamente orgulhosas e
nobres, que não se sentem com direito para impor sacrifícios aos
outros. Esta descoberta devolveu-lhe o seu antigo e penoso sentimento
de mal-estar. Sentindo que sua convivência com Diana se tornava cada
dia mais difícil, procurou evitá-la nos dias que se sucederam. Estava
farta daquela negligência, aquele mórbido relaxamento em que ela se
mantinha, fumando cigarro após cigarro, lendo revistas velhas ou
caminhando de um lado para outro, presa de incontrolável agitação
nervosa. Nada parecia contentá-la, amontoava pilhas de livros que
nem sequer abria, permanecia à janela durante horas, deitava-se e
levantava-se a todo instante. Não raro surgia à mesa com os olhos
vermelhos de chorar. Quase não dirigia palavra a Sílvio, ou se o fazia
era sempre de modo acerbo e violento. Vendo-o cabisbaixo, Clara
imaginava então que o seu mal era um amor que tinha extravasado os
próprios limites. Talvez Diana não fosse tão culpada assim ela é que
não seria feita para suportar o que Sílvio exigia da sua natureza. Sim,
ele a amava com o furor dos que renunciam até mesmo à felicidade.
Para que um casamento fosse bem-sucedido, havia necessidade de um
meio-termo, uma sabedoria, uma espécie de pacto entre a força do
amor e a força do mundo. Sílvio perdera de vista o objeto amado, e o
seu sentimento se convertera não no segredo de dias felizes, mas numa
chaga sempre disposta a sangrar. Era o que Diana sentia e o que não
podia suportar de forma alguma. Sílvio exigia dela toda a sua
capacidade de sofrer, e sua natureza de mulher era um instrumento
frágil, feito para vibrar com melodias mais ternas. Via-se que para
Diana tudo era demais, extravasava os limites e se convertia em
terrível carga. “O dever das mães é acompanhar os filhos, mas não
entrar em suas vidas”, pensava Clara. “Ninguém tem o direito de se
imiscuir na vontade alheia, até mesmo Deus abandona os filhos à sua
espontânea decisão.” Mas, silenciosamente, sua inimizade por Diana
crescia, sem que ela tivesse forças para reprimi-la. Não podia perdoar-
lhe o sofrimento de Sílvio, via-a demais na sua mediocridade para
achar justo semelhante sacrifício. E não era só isto, ela própria se
sentia atingida com a vaidade da outra. Diana olhava-a com desprezo
porque ela não se pintava como todas as mulheres que conhecia, e não
o escondia, exibindo-se com um orgulho que segundo Clara nada
justificava. Com sua rápida e segura intuição feminina, Diana não
tardou muito a compreender o quanto sua atitude desagradava à
outra. E passou a rir mais fortemente, com atitudes mais relaxadas e
um abandono nos gestos que feria o pudor sempre alerta de Clara.
Apesar de tudo observava-a disfarçadamente, com uma repulsa onde
havia entretanto uma quase invisível parcela de curiosidade dir-se-ia
que ela examinava a mulher que não tinha coragem de ser, aquela que
não hesitaria em sacrificar tudo pela ilusão de uma aventura. Diana ria
sempre, olhos iluminados. Nela, tudo era gritante, desde as unhas
cuidadosamente pintadas até os pequenos laços, as rendas que
embebia em perfumes e os anéis que polia em demasia. Se Áurea, na
sua ingenuidade, demonstrava alguma admiração pelo seu gosto em
arear e cuidar tanto daqueles pequenos e miseráveis objetos, Diana
suspirava e confessava que era tudo o que lhe restava de uma vida
perdida. Quando transitava pela casa, macia e silenciosa nas suas
sandálias de seda como uma grande gata sonolenta, desprendia-se
dela uma onda de intenso e morno perfume. Onde passasse, deixava
após si um rastro de essência cheirando a rosa e a jasmim. Clara corria
a abrir as janelas, tossindo, deblaterando contra aquela atmosfera
viciada pelos perfumes e pelos cigarros. E, se bem que o vento entrasse
de vez em quando numa rápida e purificadora rajada, todas as coisas
pareciam ainda recender a jasmim. Os próprios móveis, que Diana
roçava à sua passagem, exalavam um odor de madeira velha misturado
a perfumes caros. Certa vez Clara pensou em falar com o padrinho da
moça, mas lembrou-se que ela devia ter sido sempre assim e que sem
dúvida fora exatamente a educação que a estragara, ou melhor, os
excessos da mãe e do padrinho. Desistiu, aturando o ambiente viciado.

Foi por esta época que a vista de Áurea começou a baixar


definitivamente e todo trabalho lhe foi impossibilitado. Clara fazia
tudo sozinha, lamentando-se, enquanto Áurea passava longas horas ao
sol, muda e ainda consternada com a desgraça que lhe sobreviera.
Sentindo-se imprestável e compreendendo que o ambiente não lhe era
favorável — Diana não a suportava —, manifestou a Clara o desejo de
acabar o resto dos seus dias junto à tia que vivia nos arredores da
cidade. Clara tentou dissuadi-la, mas, sem encontrar uma desculpa
que tornasse imprescindível sua presença, e ao mesmo tempo levada
interiormente pelo desejo de precipitar as coisas numa catástrofe final,
cedeu, indo ela própria comprar passagem para a amiga. Choraram
juntas ao se despedirem, e Áurea prometeu voltar se melhorasse. Clara
acompanhou-a até à estação e no caminho, abalada por uma crise
nervosa, desabafou nos braços da companheira, dizendo que sua vida
estava perdida e que via com temor a sempre crescente influência de
Diana. Áurea consolou-a como pôde, asseverando que havia certo
exagero naqueles temores. Mas no fundo sabia que a situação era
exatamente aquela e o seu coração tornou-se pesado. Despediu-se
afinal e partiu.

Clara, de volta, vendo a desordem que reinava em casa, pensou


em reagir e lutar contra Diana. Não podia tolerar que ela deixasse
roupas espalhadas sobre as cadeiras da sala, gavetas abertas, sapatos e
outros objetos pelos cantos, como se habitasse um pardieiro. O
insuportável cheiro de jasmim impregnava todas as coisas como um
óleo invisível. Além do mais, a ausência de Áurea se fazia sentir como
um vácuo insuportável. Clara começou a trabalhar com furor, atirando
os objetos espalhados no meio da sala, vermelha e desorientada.
Sílvio, que entrava naquele momento e que ainda não sabia da partida
de Áurea, perguntou por que motivo trabalhava ela àquela hora. E
Clara, friamente, sem nenhuma explicação, respondeu, apontando as
roupas de Diana:

— Preciso dar um jeito nesta sujeira.

Duas ou três vezes mais Diana se encontrou com Chico, sem que
suas relações ultrapassassem os limites de uma simples e cordial
amizade. Reuniam-se junto à caixa d’água, passeavam a pé ou de
automóvel, trocavam idéias ou delineavam planos para o futuro.
Algumas vezes, percebendo quanto Diana era sincera e com que
extraordinário entusiasmo se entregava a essas divagações, Chico
fitava-a com ligeira ponta de receio. Dir-se-ia que temia ver explodir
dentro dela um perigo insuspeitado. Realmente aqueles olhos verdes e
profundos, aquela face que parecia conter e projetar sobre as coisas a
luz de uma alma atormentada e viva, revelavam uma dessas criaturas a
quem Chico costumava tachar de “cacetes sem remissão”. Tinha
horror às mulheres muito sensíveis. Gostava de dominá-las, usá-las e
abandoná-las depois, sem entraves e complicações. Detestava
demorar-se em casos de solução difícil, fugindo apressadamente ao
sintoma de todo sentimento menos superficial. As paixões eram para
ele sinal de desequilíbrio ou apenas uma “trapalhada”, que resolvia
desaparecendo inesperadamente. Mas, como finalmente nenhum sinal
prenunciasse em Diana um desses incômodos contratempos, e como
sobretudo ele se sentisse ligado a ela por um estranho e sobrenatural
desejo de contrariar a Sílvio, aceitava tudo, sem descer a minúcias.
Mas no fundo já não tinha mais o que dizer à moça — sua alma vazia
estancara seu parco estoque de emoções e agora atravessavam longos
períodos de silêncio, só cortados pelos finos assovios entediados de
Chico. Aquelas longas caminhadas sem proveito começavam a causar-
lhe um mortal aborrecimento. Pouco tempo depois ele já se lamentava
abertamente, encurtando o tempo em que deveriam estar juntos, sob
pretexto de um negócio importante, ou chegando atrasado, sob a
desculpa de mil pequenos detalhes sem importância. Já não conseguia
esconder que achava Diana sem grande interesse. Observava-a e
chegava à conclusão de que ela se vestia mal, usava perfumes muito
fortes e não tinha senso de medida para coisa nenhuma. Alguns dos
seus amigos, possivelmente aqueles a quem mais prezava e admirava,
não hesitariam em classificá-la sumariamente no tipo “histérico”, isto
é, exatamente o tipo de mulher com quem se deve estar sempre pronto
para desaparecer. Vendo-o mais distante e mais silencioso, temendo
perdê-lo sem dúvida, Diana voltava a falar nos seus ideais de “almas
irmãs”, “sonhos comuns” e outras tolices que Chico lançara naquela
tarde apenas para sondar em que terreno devia deixar cair a âncora.
Entretanto, um sopro de paixão parecia realmente animar Diana.
Vendo-a transfigurada daquele modo, Chico se assustava ainda mais,
fitava-a de modo mais incisivo ainda, e admirava-se de que ainda
pudesse existir quem acreditasse naquelas frioleiras. Segundo ele, a
paixão era um mito. E um dia, sob o grande espinheiro da estrada,
junto ao vale que se abria em largas e brancas vagas de penachos
ondulantes, tentou beijá-la. Diana recuou vivamente e protestou de tal
maneira que ali mesmo ele resolveu dar o caso por terminado. Que
estaria ela pensando a seu respeito? Não tinha vocação para andarilho
e nem pretendia escrever poesias. Além do mais detestava essas
conversas de “almas irmãs”. E sentiu-se abalado por uma rajada de
revolta. Mostrou-se frio durante o resto do tempo em que
permaneceram juntos e no momento de se despedir, como Diana
indagasse se ele viria no dia seguinte, afirmou que não podia, pois
tinha um trabalho a terminar. E, vendo-a suspensa às suas palavras,
acrescentou que ia fazer uma curta viagem e que avisaria quando
regressasse. Sem outra explicação arrancou com o automóvel,
deixando-a parada no mesmo lugar, olhos baixos, o coração pesado
ante o pressentimento das duras conseqüências que acarretaria sua
recusa de minutos antes. E, enquanto o carro desaparecia ao longe
numa nuvem de poeira, o mundo pareceu-lhe de repente vazio,
mortalmente vazio. Sentiu-se abandonada e compreendeu que Chico
nunca mais voltaria. A poeira se aquietava lentamente no fundo do
horizonte. Pôs-se a caminhar em direção à casa, olhando as grades que
separavam os jardins bem tratados e onde se aninhavam grandes e
escuras rosas vermelhas. Sua alma estava de novo cheia desse
sentimento de amargura e solidão que ultimamente a visitava com
tanta freqüência. “Sim, nunca mais o verei”, repetiu ela para si
própria, olhos nublados pelas lágrimas. Ao entrar em casa, toda uma
vaga de sentimentos desencontrados assaltou-a e, imóvel, as mãos
apoiadas a uma cadeira, esperou que se amainasse no fundo da sua
alma aquele furioso vento de rebelião. Nunca suspeitara que ali dentro
fosse tudo tão pobre e vulgar. Atravessou finalmente a sala e, no
corredor, passou por Clara sem cumprimentá-la. À hora do jantar
declarou que não tinha nenhum apetite e continuou deitada,
esforçando-se em vão para acalmar aquela dor que parecia se
derramar pelo seu corpo inteiro. Sílvio veio vê-la, indagando se ela não
precisava de alguma coisa. Diana respondeu negativamente, e, como
ele já a conhecesse bem, julgou mais prudente não insistir e se retirou.
As horas se alongaram então para Diana, lentas e cheias de
impenetrável escuridão. Nada mais a interessava, o mundo se diluíra
num imenso deserto. Apesar de tudo, levantou-se no dia seguinte,
penteou os cabelos, vestiu-se de maneira apressada e ganhou a
estrada. Tinha esperanças de encontrar com Chico e pensava em
solucionar tudo. Farta de remoer seus próprios pensamentos durante
a noite, chegara à conclusão de que Chico não a interessava apenas
como “alma irmã”, mas que encarnava para ela uma espécie de ideal.
Além do mais, admirava suas roupas feitas na capital, o carro que
usava, sua maneira de aproveitar a vida e tratar com desdém o resto
do mundo. Para ela, isto significava um modo de se colocar acima de
questões que julgava mesquinhas. Uma vez Chico dissera mesmo que
jamais se resignaria a trabalhar num escritório como Sílvio, e que
sabia de outros meios mais inteligentes para se ganhar dinheiro. Sim,
aquele sabia viver.

Diana perambulou assim muito tempo pela estrada deserta,


exaltando-se a cada ruído de motor que ouvia e julgando vislumbrar o
carro de Chico em cada nuvem de poeira que se elevava no fundo do
caminho. Mas era apenas um tropeiro ou um carro desconhecido que
demandava o povoado. E, como o tempo passasse e ele não desse o
menor sinal de vida, Diana acabou imaginando que talvez aquela
viagem não fosse uma ficção. Podia ser que ele estivesse realmente
tratando de negócios — e ao pensar assim ela procurava derramar um
bálsamo na sua pobre alma assustada. Voltou para casa mais calma,
conversou com Clara e depois refugiou-se no quarto, procurando ler
um romance. E lá, mais uma vez, com os olhos fixos nas páginas que
não lia, repetiu para si mesma, em voz baixa, incansavelmente: “Sim,
ele deve estar em viagem.” Esta idéia tranqüilizou-a completamente
durante metade do dia. Mas, quando a tarde caiu e se aproximou a
hora em que costumavam se encontrar, sacudiu-a um verdadeiro
frêmito e ela compreendeu que de maneira alguma poderia
permanecer naquela incerteza. Vestiu-se de novo, penteou os cabelos e
voltou a ganhar a estrada. O sol ainda não desaparecera e, do alto das
montanhas recuadas, derramava sobre o vale uma densa luz escarlate.
Cigarras cantavam nos troncos altos e solenes. Diana caminhava
rapidamente, a sombrinha aberta, arrastada pelo violento impulso dos
sentimentos que ameaçavam submergir-lhe o coração. “Sim”, repetia
apertando nervosamente o cabo da sombrinha, “não podia ser, Chico
estava ali e iria aparecer de um momento para outro.” E, alimentada
por essa louca esperança, ela caminhou até à represa. Na sombra, as
cigarras chiavam mais fortemente ainda e folhas secas flutuavam
sobre a água verde e profunda. Diana fechou a sombrinha com um
profundo suspiro e sentou-se na borda da represa, olhos fixos na água
que se abria em largos e vagarosos círculos às folhas que tombavam do
alto. Devagar, como invisível neblina, a noite ia baixando ao vale.
Então Diana se levantou de novo e retomou lentamente o caminho de
casa, a alma esmagada sob a consciência do seu cruel destino. Tudo
parecia fugir-lhe misteriosamente das mãos, um mal secreto a
condenava. E Diana sentiu que para ela a vida era odiosa,
insuportável. Novamente não jantou e, recolhendo-se ao quarto,
passeou todo o tempo de um lado para outro, procurando em vão
solucionar aquele difícil problema. Felizmente Sílvio ficara retido no
escritório, dando andamento a um serviço urgente. Clara costurava na
sala e um silêncio denso pairava sobre a casa. De vez em quando,
ferida pela opressiva quietude do ambiente, Diana se detinha e
escutava: longe, perdido no mato, um grilo solitário chiava. Ela voltava
a caminhar, a cabeça apertada entre as mãos. Quando Sílvio chegou
ela já se achava deitada, olhos fechados como se estivesse dormindo.
Na verdade remoía ainda seus inúteis pensamentos, fixando a
obscuridade como se esperasse ver surgir dela um raio de luz
inesperado e salvador.

Na manhã seguinte resolveu procurar Chico. Era o único modo


de saber se realmente ele tinha partido. Caso não o tivesse feito, e
fosse tudo apenas um mal-entendido, aproveitaria a ocasião para
desfazer o que se passara. Vestiu-se com apuro e encaminhou-se para
a casa do rapaz. Chico morava no sitio que pertencera ao pai, uma
especie de chácara entre grandes arvores sombrias. Diana tocou a
campainha e foi ele próprio quem veio atendê-la.

– Você! — exclamou ao vê-la.

– Sim, sou eu — disse Diana, penetrando na quinta cheia de


árvores antigas.

– Sentemo-nos aqui mesmo — propôs Chico, indicando um


banco semi-arruinado, e ao mesmo tempo procurando impedir que ela
penetrasse dentro de casa.

Diana circunvagou o olhar pelo terreno, aspirando com força o


perfume úmido das folhas apodrecidas que cobriam o chão. Ao longe,
junto ao muro cheio de rombos, jaziam dois ou três tonéis de vinho,
evidentemente vazios.

– Por que você não foi ontem? — indagou ela, sentando-se e


apoiando as mãos sobre o cabo da sombrinha.

– Não pude — murmurou ele cinicamente. — Pretendia viajar,


mas...

Assim à sombra das árvores, Diana parecia mais bela e mais


misteriosa, seus olhos adquiriam uma cor estranha e profunda
enquanto ela o fitava, um pálido sorriso nos lábios.

– Meu Deus, se tinha intenção de fugir de mim, não precisava


disto — tornou ela negligentemente, riscando o chão com a ponta da
sombrinha.

Chico notou ainda que se desprendia dela um “charme”


desconhecido, um calor que a envolvia numa atmosfera nova e
perigosa. Reparou também como seus braços eram belos, rodeados
pelas rendas das mangas curtas.
– Não pretendia fugir, Diana, apenas queria evitar. . .

Ela não o deixou terminar a frase. Inclinou-se para ele e,


colocando a sombrinha sobre o banco, murmurou numa voz diferente,
incisiva e apaixonada:

– Chico, se você me ama, fujamos daqui, fujamos depressa para


outro lugar.

Toda ela fremia, ardente, olhos inflamados. Ele recuou,


assustado, percebendo afinal que ela deixava tombar a máscara. E
num relâmpago pressentiu onde aquela mulher o levaria se deixasse ir
avante aquela doida aventura. Já transpunham os limites do razoável e
certamente, mais tarde, ele teria muito de que se arrepender.

– Mas não é possível, Diana, você…

– Então é porque você não me ama — tornou ela, com um


suspiro de desalento.

Chico tomou-lhe as mãos entre as suas. Durante algum tempo


sentiu estremecer como dois pássaros aprisionados aquelas pequenas
e ardentes mãos cobertas de anéis.

– Precisamos pensar — sugeriu ele, vagamente subjugado pela


onda de paixão que se desprendia dela.

– Pensar! Estou farta de pensar — respondeu Diana, retirando


as mãos com um gesto vivo e autoritário.

– Dê-me ao menos alguns dias — falou ele de novo,


contemplando a nuca onde os cabelos mal presos se desfaziam.

– Como você quiser — respondeu ela friamente —, mas acho que


devíamos fazer tudo de repente. Quem sabe o que ainda pode
sobrevir?

Dir-se-ia que ela o ameaçava com a sombra de um perigo. Chico


pensou em Sílvio e ergueu os ombros — depois, olhou-a com vago
temor. Pálida, lábios apertados, Diana mal parecia ocultar sua
decepção, sua impaciência e ao mesmo tempo seu desprezo por Chico.
Decerto ele não compreendera nada — e ela jogara com a sua própria
vida!

– Em todo o caso espere até amanhã, está bem? — propôs Chico,


sempre hesitante e temendo a cada momento vê-la ultrapassar os
limites que ele marcara.

– Está bem — disse ela, levantando-se.

Apesar de concordar, Diana não podia deixar de se mostrar fria


e reservada. Sabia que mais tarde, no silêncio do seu quarto, havia de
chorar e de se arrepender por ter precipitado tudo ou por não lhe ter
feito propostas mais loucas. Olhou ainda uma vez a chácara
sombreada e deteve-se um minuto na casa de janelas vermelhas que se
avistava ao longe, escondida entre as árvores. Depois, com um
profundo suspiro, ganhou vagarosamente a rua, sentindo aprisioná-la
ainda àquele lugar não sabia que estranha e poderosa atração.
12
Há uma época em que as desilusões, o cansaço da luta e uma
íntima convicção de que afinal a vida não vale tão grandes esforços
convertem-se para determinados espíritos numa nuvem que aumenta
aos poucos até obscurecer todo o horizonte. O jogador sente então que
a partida está definitivamente perdida e examina, sem saber o que
fazer delas, as cartas que ainda lhe restam nas mãos. Não é
exatamente este o sentimento dos velhos, ou melhor, daqueles que
lutaram a vida inteira por uma tranqüilidade de que sempre se
sentiram cada vez mais distantes?

Clara não sabia exprimir perfeitamente o que era esta sensação


de cansaço e quase de plenitude, mas sentia que suas forças se
achavam esgotadas e que já não possuía elementos para criar de novo
isto a que a maioria das pessoas chama um programa de vida. Tudo
desaparecera, nada mais lhe restava das riquezas com que tanto
sonhara no passado, pelas quais lutara tão acerbamente. Só o deserto
se abria agora ao seu olhar, não um deserto como o que trazem em si
aqueles que envelheceram felizes, mas uma longa e triste extensão sem
alma e sem calor para ser relembrada. Na verdade ela se sentia velha,
incapaz de voltar a combater pelos seus direitos, como o fizera no
tempo de Jaques. Inútil, com as mãos apoiadas ao rosto, sondava
durante horas o seu coração sem desejos. Era evidente que a vida não
lhe interessava mais. Levantava-se, tentava começar um trabalho,
abandonava-o, passeava pela casa ou ia colocar-se tristemente à
janela. Por mais que investigasse, não conseguia encontrar, entre os
fatos acontecidos naqueles últimos tempos, nada que justificasse seu
atual estado de espírito. Decerto ainda sofria com a partida de Áurea
— mas seria este um motivo suficiente para cair naquele desânimo? E,
olhando as peças que já não tinha forças nem sequer para desenrolar,
Clara indagava a si própria se na verdade tudo aquilo já não estava
previsto há muito, e se aquela crise, tão estranha e sombria, não era
apenas uma fatalidade, uma espécie de termo de jornada, a que lhe
seria impossível fugir.

Da cama em que agora se tinha estendido, ela contemplou a


vidraça descida. Era uma tarde chuvosa e, naquele princípio de
inverno, a casa pareceu-lhe singularmente úmida e desagradável. Uma
névoa cinza vinha se esbater contra o vidro, depois de sepultar lá fora
a paisagem já bastante castigada pela chuva persistente. E veio-lhe de
repente, como a luz de misteriosa inspiração, que não passaria ali toda
a fria temporada que estava para vir, que não teria forças para tanto.
Ao mesmo tempo, entrevia uma série de dias monótonos e infindáveis,
bem como a ameaça crescente dos trabalhos que não se desenvolviam.
“Não”, pensou ela de súbito, pressentindo que havia nos seus
pensamentos qualquer coisa do hálito gelado da morte, “é preciso
reagir e encontrar um interesse qualquer para viver.” E, se bem que
procurasse ansiosamente, nada encontrou que lhe parecesse digno de
atenção. Todos os seus caminhos se achavam fechados, sentia que já
vivera tudo o que lhe era destinado, com essa pressa e essa desatenção
das criaturas que provocam a morte antes do tempo fixado. Mas seria
realmente antes do tempo fixado? E Clara mediu o espaço percorrido,
tentando avaliar o futuro que lhe estava reservado. E novamente,
como um cego que experimenta um caminho vedado, compreendeu
que se achava cansada e que na verdade seu destino se aproximava do
termo. Quanto a Sílvio, último laço que a prendia às coisas da terra,
seguia o seu próprio destino e se apartava dela cada vez mais. E
ninguém poderia auxiliá-lo, a menos que o amassem com um amor
dotado de forças suficientes para arrebatá-lo à estrada que lhe fora
traçada. E mais uma vez, em voz baixa, Clara repetiu que para ela tudo
estava terminado. Levantou-se sob a pressão deste pensamento e
percorreu vagarosamente a casa, à procura de alguma coisa que lhe
transmitisse uma noção mais forte da existência real. Talvez que suas
idéias não passassem de fantasmagorias ditadas pelo seu espírito
atormentado. Mas também aqueles aposentos só falavam de uma vida
extinta, de emoções esgotadas há muito de desejos e palavras que ao
longo de tantos dias haviam já perdido todo 0 sangue. Sim, seu tempo
se fora, aqueles móveis assistiam agora a um segundo drama, do qual
ela era apenas espectadora. E também aquele teria um dia o seu
desenlace. Não restaria senão um punhado de cinza, um pouco de
poeira a ser atirada ao vento. Talvez ela também estivesse ali para
assistir ao final de tudo, como essas pessoas que, cessada toda vida
particular, vivem dos acontecimentos alheios e retiram deles um falso
calor para sobreviver. Sim, quem sabe não se transformaria num
desses obscuros fantasmas familiares? Este pensamento causou-lhe
súbito terror, voltou ao quarto, disposta a fazer qualquer coisa para
afugentar aquelas tristes idéias.

Ao abrir a porta, sentiu vir até ela aquele cheiro particular a


remédio, que desde a morte de Jaques parecia impregnar os móveis.
Dir-se-ia que ainda não se desfizera aquela atmosfera de agonia — e
mesmo qualquer coisa dos seus antigos sentimentos, das suas inúteis
revoltas, pareciam sobreviver naquele ambiente, como certas plantas
que, secas, revivem em determinados climas. E Clara sentiu-se, mais
uma vez tomada por aquele sentimento de impossibilidade, como se
não tivesse mais forças para se mover e todas aquelas formas
agasalhadas na sombra tramassem contra ela uma surda conspiração.

A chuva vergastava silenciosamente as vidraças. Ela voltou ao pé


da cama, acendeu a lâmpada e aproximou-se da cômoda. No momento
em que ia se abaixar para abrir uma das gavetas — procurava um
bordado começado — perdeu o equilíbrio, escorregou e bateu com o
peito na quina da gaveta aberta. A dor violenta arrancou-lhe um grito
involuntário. Durante alguns minutos, cega, apoiou-se fortemente
contra o móvel, esperando que a dor passasse. Depois, vagarosamente,
encaminhou-se para a cama, onde se estendeu. A dor amortecia aos
poucos, mas o lugar continuava sempre dolorido. Naquele dia, ela se
levantou e continuou a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Mas
no dia seguinte, entretanto, verificou que havia sobre o seu seio
esquerdo uma enorme mancha escura. Apalpou-a levemente e
estranhou que a encontrasse alta, como um enorme calo sob a pele.
Aquilo causou-lhe certo mal-estar. No entanto, julgando o acidente
passageiro e que o lugar estivesse apenas um pouco inchado, devido à
pancada, nada falou a esse respeito. Dois ou três dias depois a mancha
se tornara mais escura ainda, e, apalpando-a um pouco mais para
baixo, Clara descobriu novos gânglios espalhados em torno. Mas ainda
desta vez ela não imaginou realmente qual fosse o perigo que corria e
tentou curar-se com alguns remédios caseiros. Uma vizinha
aconselhou-lhe uma aplicação de pomada de losna. Outra, dizendo-se
experimentada em tais casos, sugeriu um emplastro de hortelã e
outras ervas refrescantes. Mas, como Clara não gostasse de lidar com
remédios e pomadas, acabou abandonando o tratamento. Viveu assim
durante mais alguns dias, completamente esquecida do caso. A
mancha já não a incomodava e ela sentia sua atenção presa a outros
acontecimentos.

Dias depois, entretanto, ao tirar a roupa para se deitar, levou um


susto: a mancha se convertera num largo círculo negro, de bordos
arroxeados como uma chaga mal curada. Só neste instante a idéia
terrível atravessou-lhe o pensamento: seu terror foi tão grande que
sentiu uma ligeira tonteira e caiu sentada, o rosto oculto nas mãos.
“Meu Deus, meu Deus!”, exclamava ela.

No dia seguinte resolveu procurar um médico. Alguém lhe


aconselhou a ir diretamente ao hospital local. Foi o que Clara fez,
vestindo um dos seus modestos vestidos e cobrindo a cabeça com um
xale. A lembrança da chaga trazia-lhe uma súbita e profunda
humildade. Nada existia no seu espírito que denunciasse o desespero,
mas uma dor imensa, calma e concentrada. Só ao se aproximar da casa
de saúde é que ela se lembrou do quanto detestava aquele ambiente.
Era fraca, não suportava gritos, sangue e nem coisa alguma que se
referisse a doenças. Num dos degraus da escada deparou com um
mendigo que trazia a perna enrolada, enquanto outro, mais longe,
coçava-se ao sol. Toda a atmosfera recendia fortemente a formol. Mas
Clara se resignou, lembrando-se de que precisava mostrar aquela
mancha ao médico.

Deteve-se na sala de espera, uma pequena câmara escura e


fétida, onde já aguardavam duas mulheres. Ambas tinham o aspecto
doentio e gasto. Via-se que a vida não lhes fora amena, e nas suas
fisionomias, na realidade absolutamente diversas, havia esse mesmo
ar familiar das pessoas dominadas pelo tédio, pelo cansaço e pela
preocupação com miúdas questões materiais. E de ambas, como um
invisível vapor amarelado, desprendia-se a mesma desconfiança e a
mesma humildade dos animais sacrificados. Mal Clara acabara de
entrar, quando uma delas foi chamada. A porta se fechou por detrás do
seu vulto hesitante, e a que ficara, visivelmente enervada com a longa
espera, ajeitou-se na cadeira e cerrou os olhos. Clara examinou-a
durante alguns instantes, reparando que toda sua energia parecia
acumulada em duas mãos grosseiras e ávidas, que seguravam
fortemente uma bolsa de pano preto bordada a vidrilhos. No entanto,
assim de olhos fechados, qualquer coisa longínqua parecia ressuscitar
na sua fisionomia — e dir-se-ia que era a memória do tempo em que
fora mais feliz, criança ainda, longe de preocupações e da rude faina
pela vida de cada dia.

Não tardou muito que a porta se abrisse de novo e a primeira


consulente reapareceu, tossindo e ajeitando a blusa desabotoada. A
mulher da bolsa preta levantou-se, esperou que a chamassem e a porta
cerrou-se por detrás dela. Agora Clara estava sozinha, diante dessa
porta por onde penetraria também e de onde sairia, para uma nova
fase, talvez a final, da sua existência. Sim, compreendia perfeitamente
que várias coisas da sua antiga vida terminavam ali, desapareceriam,
como no encontro de dois rios certos destroços desaparecem
bruscamente sob a correnteza. Lá fora era o sol, a paisagem macia e
verde, o rio que agora rolava apenas para os outros. Para ela, a grande
porta do mistério se abria ali. E a si própria perguntava: “Que fiz eu,
quais os atos de bondade que cometi nesta vida, de que maneira
encarei o bem e o sentido da existência?” Durante muito tempo
permaneceu naquela imobilidade, o coração batendo em lentas e
fortes pancadas. Viu a porta de vidro se abrir mais uma vez, a mulher
da bolsa preta passar de cabeça baixa e alguém mandá-la entrar.
Levantou-se com esforço, as pernas dormentes, e atravessou o limiar
sob um duplo sentimento de angústia e resignação. A porta de vidro
cerrou-se por detrás dela e um homem alto, louro, vestido com um
avental branco, recebeu-a com olhar severo. No alto da cabeça trazia
uma pequena lâmpada presa por um aro de metal. Clara sentou-se no
lugar que ele lhe indicava e expôs seu caso com voz trêmula. Quando
terminou, o homem pediu que ela desabotoasse a blusa. Hesitou, mas
ante o olhar firme do médico obedeceu docilmente. Ele acendeu uma
lâmpada mais forte e, com dedos delicados, macios e curiosos, apalpou
a mancha escura, os gânglios mais abaixo e finalmente todo aquele
lado. Depois fez uma porção de perguntas, escutou as respostas
atentamente, passeou de um lado para outro e afinal, detendo-se
diante dela, disse:

– O meu diagnóstico já se acha completamente feito. Mas tenho


necessidade de uma radiografia para fazer a constatação.

Ela ia falar, objetar alguma coisa, admirada de que tudo fosse


tão simples e tão rápido, ele lhe causava um inexplicável temor. Dir-
se-ia que sabia mais do que os outros homens e que podia decretar a
vida e a morte com um simples gesto. O médico, vendo-a em silêncio,
concluiu com doçura:

– A senhora não terá muito trabalho. Poderá tirá-la aqui


mesmo, no hospital.

E, ajudando-a a vestir-se, convidou-a a acompanhá-lo até o


laboratório.

Enquanto Clara sentia alongar-se sobre os seus dias a sombra de


tão dolorosa ameaça, Sílvio ia sendo absorvido rapidamente pela
situação criada com os últimos acontecimentos. No entanto, até aquele
momento, ainda não lhe chegara nenhum rumor aos ouvidos, tudo se
passava nos limites da casa, entre paredes que não transmitiam
nenhum eco. Mas certa tarde, quando saía do escritório, encontrou
Maria Ernestina na rua. Era a mesma pessoa que outrora lhe ensinara
catecismo, com o mesmo olhar hostil e rápido, a mesma voz
anasalada. Não envelhecera, conservava- se ágil e autoritária como
sempre fora, apreendendo com segurança e sutileza todos os detalhes
da vida alheia. No modo por que deteve Sílvio no meio da rua, este
percebeu que ela tinha alguma coisa de essencialmente desagradável a
lhe transmitir. Seus olhos miúdos brilhavam cheios de malícia e a
sombra que o xale negro transmitia ao seu rosto era solene e
ameaçadora.

– Você! — exclamou ela como se o acusasse de alguma coisa. —


Já não reconhece mais sua velha professora?

Ao mesmo tempo, sem esperar resposta, continuou:

– Não o vejo nunca, mas em compensação tenho visto sempre


sua senhora.

Sílvio sentiu uma pancada sobre o coração e tentou adivinhar


através dos seus olhos a natureza do golpe que se avizinhava. Como
esperar que semelhante criatura o poupasse? E, lembrando-se da sua
antiga silhueta, entre barras e lacre fumegante, Sílvio pensou pela
primeira vez nessas criaturas que encontramos um dia, quase
anônimas na sua rápida passagem pela nossa vida, mas que são
destinadas a nos cravarem alguns dos espinhos mais dolorosos,
conscientes ou não do mal que fazem.

– Sim — continuou Maria Ernestina com volubilidade —, é uma


moça forte, não tem medo de subir aquela estrada pedregosa em que
moro. Como muitos que eu conheço — concluiu incisiva, rindo e
ameaçando Sílvio com o dedo.

– Ela gosta de excursões — respondeu este debilmente, e


procurando provar que se achava perfeitamente a par do que se
passava.

– Oh, além disto ela é muito bonita — continuou Maria


Ernestina sem escutá-lo, com essa cegueira das pessoas que estão
perfeitamente conscientes do modo pelo qual podem ferir e cujo golpe
adivinhamos no escuro. — Já disse mesmo que por aqui não há moça
mais bonita. Se eu fosse você, não a deixaria andar com aquele tipo...

E, fitando de novo o antigo aluno, deixou escapar uma risada


breve e artificial. Despediu-se de repente, como que pretendendo
deixar após suas palavras um hiato de sombra, propício à meditação, e
abandonando Sílvio atônito, no meio da rua. Ele ainda acompanhou-a
com o olhar durante algum tempo, vendo dilatar-se a silhueta curva da
mulher ao longo do muro branco. Agora um silêncio pesado envolvia a
rua. “Aquele tipo…" , repetiu Sílvio consigo próprio, sentindo crescer
no seu coração o veneno oriundo daquela ponta envenenada. Durante
segundos, enquanto se punha de novo a caminho, tentou afastar
aquele sentimento pensando em coisas mais simples e imediatas.
“Amanhã devo providenciar o pagamento da fatura de Rocha & Cia.”,
pensou ele, automaticamente, compreendendo que, apesar dos seus
esforços, não havia nenhuma realidade naquelas palavras. Um
conhecido cumprimentou-o e ele respondeu com maior firmeza do que
de costume. “Devo escrever também aos Irmãos Baldrini, de São
Paulo”, continuou, no esforço do náufrago que tenta em vão agarrar
uma tábua escorregadia. Mas de repente, como dobrasse a rua e visse
ao longe a grade verde-escuro da sua casa, tudo aquilo desapareceu e
Sílvio foi impotente para reprimir aquele grito que irrompia na sua
alma: “Meu Deus, com quem será que ela sai todos os dias? Que mais
ainda me estará reservado? Como não tinha percebido ainda que ela
sai com alguém? Sim, como pude ser cego a este ponto?” E
insensivelmente pôs-se a caminhar mais depressa, o coração também
acelerado, o pensamento em lebre. Três ou quatro nomes lhe vieram
ao pensamento, e entre eles o de Chico. Sim, Chico, naturalmente.
Quem poderia ser senão ele? Mas afastou-o logo depois, imaginando
que entre todos talvez fosse o único que Diana não escolhesse. Sabia
que eles se achavam de relações quase rompidas e não ousaria
mostrar-se tão abertamente com um homem daquela qualidade. Sílvio
ainda acreditava em Diana e imaginava que ela não teria coragem para
ir tão longe. Mas não tardaria muito a verificar que se tinha
cruelmente enganado; e naquele momento nada lhe demonstrava que
Chico fosse a pessoa indicada. Um instintivo horror afastava-o dessa
suposição, como alguém que fecha os olhos para fugir a uma imagem
que lhe causa náuseas.

Mas as palavras de Maria Ernestina haviam-no deixado imerso


num mar de dúvidas. Com esse concentrado rancor das pessoas que se
sentem dominadas por uma idéia que desejam repelir, Sílvio
examinou uma a uma todas as probabilidades que lhe surgiam, pesou
os nomes que conhecia e chegou mesmo a imaginar a possibilidade da
vinda de algum amigo do Rio. Mas, à medida que esgotava o terreno
das suposições, só o nome de Chico voltava a brilhar, solitário,
aumentando sua agitação e sua angústia. Além do mais, que lhe
importava o nome, se tudo realmente estava perdido? Era uma
desgraça completa, um fracasso total dos planos que tinha idealizado.
Seu sacrifício, sua atual vida, modesta e de horizontes fechados, nada
valiam para Diana, eram gestos que ela nem sequer media, incapaz de
compreendê-los. Assaltou-o um fundo e inesperado rancor. Ao mesmo
tempo abrindo a grade do jardim, dizia consigo próprio: “Não, não,
com aquele não é possível.” E sentia que, apesar de tudo, o nome da
pessoa tinha importância decisiva no caso.

Ao entrar, foi direto ao quarto de Diana. Ela estava sentada


defronte do espelho e alisava os cabelos ruivos com gestos lentos e
medidos. Sílvio beijou-a na testa e indagou o que ela tinha feito
durante o dia. A moça ergueu os ombros e suspirou. Pelo modo por
que andava em torno dela, torcendo as mãos e atrapalhando-se nas
frases, Diana percebeu que ele desejava dizer-lhe alguma coisa.
Lembrou-se de Chico e adivinhou que alguém devia ter falado àquele
respeito com Sílvio. Teve medo do que poderia suceder e, procurando
fugir ao assunto que se aproximava, indagou do que se passara no
escritório. Vendo-a tão diferente, Sílvio perguntou a si próprio se não
havia em tudo aquilo um terrível engano. Seria possível mentir com
tamanha serenidade? Podia ser que Maria Ernestina o tivesse
enganado — de que não são capazes essas velhas beatas? E nunca,
desde que a conhecia, Diana lhe parecera mais bela — havia nela
qualquer coisa de uma flor acetinada e rara. Todas as ligeiras
imperfeições que costumava descobrir na sua face haviam
desaparecido e uma só tonalidade, como a vibração contínua e
melodiosa da mesma nota musical, cobria-lhe os traços com a luz de
uma alegria misteriosa e profunda.

Continuaram a conversar algum tempo, enquanto ela polia as


unhas. A fim de tranqüilizá-la, num súbito rasgo de ternura, Sílvio
prometeu-lhe que muito breve se mudariam para o Rio. Ela apenas se
inclinou para ele, beijou-o, dizendo:

— Oh, Sílvio, como você é bom para mim!

E naquele instante ele julgou que o mal tivesse sido sanado.


Entretanto, à noite, enquanto ela se debruçava à janela, pálida,
submersa numa inesperada e invencível melancolia, ele sentiu que
suas suspeitas reapareciam. O ciúme, novamente vivo, latejava no
fundo do seu coração. E naquele minuto, com dolorosa nitidez, Sílvio
pressentiu a sombra de uma terceira pessoa entre eles. E compreendeu
também que, tendo perdido o impulso inicial, já não tinha coragem
para indagar a Diana coisa alguma. Sentado junto à mesa, fingia ler
um jornal, acompanhando todos os movimentos da mulher à janela.
Através da noite, soou o apito distante de um trem. E Sílvio pensava
em vão num meio de escapar àquela lama que ameaçava submergi-lo.
O seu próprio amor já não lhe importava — detestava-o agora,
sentindo-se preso a ele como a um vício abominável. Além do mais,
sentia-se também envelhecido e pesado. Diana parecia lhe ter sugado
uma força vital, algo que a tornava mais forte e mais bela, enquanto ele
se ia tornando envelhecido e miserável. Atualmente a idéia do
casamento causava-lhe ódio. E, fitando Diana inclinada à janela,
procurava delinear com precisão o seu pensamento. A mulher
representa para o homem a parte da terra, as amarras que o retém no
seu vôo para o infinito, a força que se opõe a tudo o que nele é sonho,
pensamento ou desejo de evasão. Ela é que extingue essa chama que
dá aos moços o seu efêmero brilho de heroísmo. É a mulher que
interdita ao homem a porta aberta para o espaço mais alto. Segundo
sua vontade e seus caprichos — esse amálgama de sentimentos que as
transforma em mães ou prostitutas — ela não deve compreender senão
aquilo que gira dentro do seu âmbito: o lar, os filhos, o jardim, o
espaço onde reina livremente e onde não pode penetrar o mistério que
lhe arrebata a alma do homem.

Sim, ao lado de Diana, ele se sentia roubado nalguma coisa.


Uma vontade mais poderosa parecia lhe ter lacerado a natureza,
cindindo-a no que ela tinha de mais puro e de mais sagrado. E todo o
mundo em torno, aquele mesmo mundo que ele conhecera desde
criança, aqueles objetos que o acompanhavam, aquelas paredes e os
vultos familiares, tudo se achava impregnado dessa energia maléfica,
transfigurado sob a luz dessa poderosa sede de domínio. E, pesando
estas coisas, ele sentiu pela primeira vez que tudo terminaria um dia,
que talvez já tivesse terminado. Seu raciocínio arrastava-o mais longe,
não era um simples ato de revolta, mas um movimento completo de
libertação. Não mais permaneceria como um escravo; não tinha
vocação para o matrimônio, e a doçura e a facilidade, que a tantos
pareciam o supremo encanto da vida, nada representavam a seus
olhos.

Naquela noite não conseguiu conciliar o sono. Apesar das suas


idéias, tão lúcidas, não conseguia esquecer o nome de Chico. Parecia-
lhe que estava cedendo a um movimento de despeito. Uma dor
profunda e persistente lacerava-lhe o coração. Uma ou duas vezes
julgou escutar Diana falar durante o sono e apoiou-se aos travesseiros,
procurando perceber o que ela dizia. Talvez deixasse escapar o segredo
durante o sono. Mas envergonhou-se da sua atitude e voltou a
mergulhar a cabeça nas almofadas. Pensou depois em levantar-se e
acordá-la, a fim de exigir imediatas explicações. Mas essa atitude
pareceu-lhe exagerada e pueril. O melhor seria esperar pelo dia. E,
tentando em vão conciliar o sono, lembrou-se do tempo em que se
tinham conhecido, os passeios que haviam feito juntos e os nomes de
plantas que ele lhe ensinava. E aos poucos, sem que ele próprio o
percebesse, ia sendo invadido por uma nova, profunda e amarga onda
de amor. “Que é o amor?”, indagava em voz baixa, sem ousar formular
uma resposta. E tudo lhe parecia inexistente, os sentimentos uma
simples comédia representada pelos homens. No escuro, ouvia a chuva
bater contra a vidraça. Onde estaria Chico naquele instante?
Lembrava-se dos tempos em que andavam juntos e da sua repugnante
cicatriz vermelha. Um galo cantou ao longe. E de repente, erguendo a
cabeça nas trevas, Sílvio teve a intuição de que sua vida se achava
inteiramente sacrificada. Perdera tudo, como um mau jogador
desperdiça um jogo de possibilidades. Lágrimas ardentes lhe subiram
aos olhos, lágrimas de despeito e raiva. Através do vidro viu algumas
gotas brilharem e percebeu que a manhã nascia. Escutando o calmo
ressonar de Diana, sentiu uma vez mais que alguma coisa decisiva os
tinha separado, não um simples mal-entendido, uma rusga fácil de ser
apaziguada, mas uma visão intensa e poderosa dessa luta que desde o
princípio o homem trava contra a mulher, esse combate sem tréguas
onde a tantas aparências de amor se misturam tão fortes parcelas de
ódio.
13
O médico estendeu o envelope a Clara e disse:

– É grave. Acho que a senhora tem bastante força de espírito


para suportar uma notícia destas, não?

– Sim — respondeu Clara, apertando o envelope e muito pálida.

Já não é recente, continuou o médico, está muito ramificado e


será preciso uma operação longa para extirpar todos os gânglios. A
meu ver, a senhora deve embarcar imediatamente para o Rio.

– Sim — repetiu ela maquinalmente.

– Se quiser, posso lhe dar uma carta para um colega,


recomendando-a. Mas o essencial é que viaje o mais depressa possível,
amanhã mesmo, se não lhe for difícil.

Clara escutava-o um pouco inclinada para a frente, como se


estivesse inteiramente absorvida pelo que ele dizia. No entanto, aquilo
lhe parecia estranhamente vago, e ela se lembrava de Sílvio, das suas
preocupações naqueles últimos tempos, na sua própria vida. Mas,
como o médico parecesse esperar alguma coisa, suspirou e disse:

– Sim, posso partir amanhã. Mas não conheço ninguém no Rio,


o melhor será levar a carta, não?

Ele concordou e girou a cadeira, procurando o bloco sobre a


mesa. Vendo-o de costas, ela pensou quanto ele ainda era moço e
quanto ainda tinha por viver. Dias e dias que se seguiriam como as
contas de um infindável rosário. O silêncio em torno era profundo, só
se ouvia o ranger da pena sobre o papel. Dois ou três minutos depois
ele lhe estendeu o envelope, um sorriso nos lábios. Como Clara se
levantasse, disposta a sair, os dois envelopes na mão, o médico se
levantou também e, batendo carinhosamente no seu ombro, concluiu:

– Ânimo. Poderá ficar completamente boa, não tenho dúvidas a


este respeito.

E abandonou-a junto à porta. Clara ganhou a estrada onde o sol


frio arrancava das folhas um brilho azulado. Não, ficar completamente
boa ela tinha certeza de que jamais ficaria. Também que lhe
importava? Morrer era tão fácil! O difícil é viver. Ao mesmo tempo,
olhando as flores azuis que se abriam na cerca da estrada, sentiu que
não era tão fácil assim e que havia algumas coisas pelas quais a vida
valia a pena de ser vivida. Encaminhou-se vagarosamente para casa,
imaginando o que deveria dizer a Sílvio. Mas não, o melhor seria não
lhe dizer nada, deixar que tudo corresse normalmente, sem aumentar
assim a dose de aborrecimentos que já lhe pesavam. Ao atravessar o
jardim, que ela tanto amava e de que cuidara durante tantos anos,
sentiu pela primeira vez uma ponta acerada e fria rasgar-lhe as
entranhas. Aproximou-se de um dos canteiros, contemplou os lírios,
as dálias e as petúnias, apalpando lentamente as pétalas novas, numa
ternura quase maternal. Depois, com um suspiro, sentindo
acompanhá-la o cheiro ainda úmido que se desprendia da terra,
ganhou a escada e penetrou dentro de casa. Diana estava dormindo e
Sílvio já se achava no escritório. Ela atravessou a sala cautelosamente,
dirigindo-se para o quarto. Lá, instantaneamente, foi invadida pela
idéia da morte, não como simples lembrança, mas numa visão
absoluta, como outrora Jaques também a tinha percebido. Levou a
mão ao seio e apalpou o tumor misterioso que lá se encontrava. Veio-
lhe uma espécie de repugnância por aquela “coisa” que vivia assim na
sua carne, sugando-lhe aos poucos toda a vitalidade. “Meu Deus”,
pensou ela, “dá-me ânimo para atravessar este transe.” Abriu a gaveta
e pôs-se a arrumar sua roupa. Uma dor longínqua e aguda estreitava-
lhe o coração — e só a imagem de Sílvio enchia o seu pensamento, não
o Sílvio de agora, mas o de antigamente, um Sílvio que ela julgava não
amar mas que na realidade jamais havia saído do seu coração. As
lágrimas empanavam-lhe os olhos. Pouco depois ouviu movimento na
sala e, abandonando a tarefa, veio ver do que se tratava. Encontrou
Diana, ainda meio tonta de sono, vestida com um “peignoir” verde-
claro.

– É muito tarde, não? — perguntou a moça, olhando a casa em


desordem.

– Não — disse Clara —, acho que ainda não são nem onze horas.

E, como Diana fizesse menção de se afastar, num gesto lasso e


indiferente, Clara disse em voz baixa, como se fizesse uma confissão:
– Parto amanhã para o Rio.

Diana deteve-se a meio caminho, voltou-se e fitou-a com


assombro.

– Amanhã? Para o Rio?

Clara moveu a cabeça afirmativamente.

– Negócios? — tornou a indagar Diana, atônita.

– Vou consultar um médico — explicou Clara com um suspiro.

A moça fez um movimento como se fosse tomar as mãos da


outra, murmurou algumas palavras como se pretendesse explicar-lhe
alguma coisa, mas recuou e voltou à sua primitiva atitude. Tudo neste
movimento parecia exprimir: “Que me importa? Se ao menos fosse eu
quem partisse...” Quando Sílvio chegou, Clara comunicou-lhe sua
decisão. A surpresa deste foi menor do que ela esperava.

– Sozinha, mãe? — foi a única pergunta que ele fez.

Levo uma carta de apresentação do médico daqui. Além do


mais, não tenho intenção de me demorar muito tempo.

Sílvio ainda objetou alguma coisa, mas sem calor, acabando por
abandonar o assunto. Ferida por aquele desinteresse que ela estava
longe de esperar — e ao mesmo tempo imaginava que o filho não
poderia adivinhar o perigo que ela realmente corria —, Clara procurou
compreender o que se passava. Sílvio não conseguia afastar por muito
tempo os olhos de Diana e na sua fisionomia, de ordinário tão límpida,
estampava-se um obscuro sofrimento. “Esta mulher não se cansará de
sugá-lo?”, imaginou Clara. E pensou também que talvez não fosse bom
abandoná-lo naquela circunstância, mas lembrou-se do que o médico
lhe dissera e resolveu não adiar o assunto. Ficaria livre depressa e
voltaria para cuidar do filho. Ao mesmo tempo, como uma nuvem
escura que aumenta até cobrir todo o céu, sentiu invadi-la um surdo
terror à idéia de morrer longe, numa cidade desconhecida, entre
pessoas indiferentes. Ela, que detestava tanto o ambiente de hospitais!

No dia seguinte o tempo escoou-se velozmente. Clara passou as


horas aprontando a mala e a cada instante fitava o relógio, temendo
perder o trem e vendo o tempo esgotar-se com o coração cerrado.
Nunca sua casa lhe parecera mais tranqüila e acolhedora. Sentira
crescer-lhe de repente um estranho e profundo amor por todas
aquelas coisas, e dir-se-ia que abandonava amigos, companheiros, e
não objetos sem cor e sem expressão. Cada móvel, cada um desses
pequenos e indiferentes objetos que todos os dias vemos
desatentamente, recordava-lhe alguma coisa, uma passagem da sua
vida, um sofrimento vencido. E não apenas lembranças dela própria,
mas de Jaques, de Áurea, da infância de Sílvio, de tudo aquilo que hoje
ela considerava como seu “período feliz”. Ao abandonar a casa, fê-lo de
olhos fechados, sem se voltar para trás, temendo não possuir forças
suficientes para partir. Caminhava depressa, o coração batendo
desordenadamente. Também, há tanto tempo não saía de casa! E, à
medida que se aproximava da estação, reparava com um encanto
novo, particular, a luz que parecia transfigurar todas as coisas. Nunca
as flores lhe pareceram tão belas, de cores tão vivas, nem Vila Velha
tão calma, tão impregnada dessa suave claridade das cidades antigas...

Na estação encontrou Sílvio que já a esperava e que lhe


anunciou estar também à espera de Diana. Tinham combinado se
encontrar ali, mas a moça já estava em atraso.

— Como sempre — concluiu ele, sorrindo.

Mas Clara percebeu que havia uma estranha amargura naquela


maneira de sorrir. Achou o filho envelhecido, pensou em fazer-lhe
algumas recomendações, mas teve medo de feri-lo e conservou- se em
silêncio.

– Cuidado durante a viagem, mãe, não se aproxime muito da


janela — disse ele, passeando com Clara de um lado para outro.

Ela sorriu, comovida com aqueles pueris cuidados. Uma senhora


alta, magra, vestida de preto, que também embarcava naquele trem,
cumprimentou-a com um gesto condescendente. Clara respondeu com
certo calor, feliz por encontrar alguém com quem pudesse trocar duas
ou três palavras durante a viagem. Entretanto, o tempo se esgotava e
Diana não aparecia. A campainha da estação soou longamente, a
máquina deixou escapar um ligeiro apito e Clara estremeceu, fixando o
olhar na face do filho. Este olhava para a plataforma, na esperança de
ver Diana surgir de um momento para outro. Dentro de Clara o ciúme
derramou-se como uma onda escura; voltaram a caminhar, olhando os
caixotes e os volumes que um empregado da estrada arrastava para o
vagão de carga.

– Quanto tempo você pretende demorar-se? — indagou Sílvio


distraidamente.

– Não sei — respondeu ela —, mas acho que no máximo uma


semana.

Novo sinal ecoou na estação e Clara, beijando Sílvio


rapidamente, correu para o carro.

– Ainda é cedo, falta um sinal! — gritou o rapaz.

Mas Clara queria fugir àquela situação, já não podia suportar o


olhar ansioso que a todo instante Sílvio dirigia para a rua. Ele se
aproximou lentamente e, enquanto Clara se arrumava na poltrona,
sorriu-lhe palidamente, como se pedisse desculpas pela sua fraqueza.
O sol morria sobre as touceiras de capim que margeavam a estrada.
Soprava uma brisa fina e morna, impregnada pelo cheiro próximo do
mato. Afinal soou o derradeiro apito e um estremecimento agitou a
composição.

– Adeus! Adeus! — gritou Clara, debruçando-se à janela.

Sílvio beijou-lhe a mão e acompanhou o carro até o fim da


plataforma. O trem ia ganhando velocidade aos poucos. Uma réstia de
fumo negro se diluía no ar.

Com os olhos embaciados pelas lágrimas, Clara via o vulto do


filho diminuir aos poucos. A estação parecia um pequeno ponto, um
oásis naquele deserto verde e vermelho que a tarde agasalhava. Ela se
inclinou sobre o banco fronteiro, sentindo uma dor violenta sobre o
coração. A paisagem ia se alargando aos poucos e o mundo lhe parecia
enorme, um cenário caótico e gigantesco, onde decerto jamais
reencontraria sua cidadezinha perdida. Qualquer coisa no seu espírito
parecia dilacerá-la como um grito. Cerrou os olhos e viu a si própria
naquele canto do vagão, humilde, com roupas gastas e sem gosto,
cabelos brancos, o rosto sulcado por duas profundas rugas,
abandonada de todos e caminhando para um destino misterioso,
possivelmente adverso. Reabriu os olhos e viu a poucos passos adiante
a mulher de preto que a examinava. Então, incapaz de reprimir por
mais tempo as lágrimas que lhe saltavam dos olhos, escondeu o rosto
nas mãos e durante algum tempo soluçou livremente, esquecida de
tudo o que a rodeava.

Naquela mesma noite, deitado ao lado de Diana, e escutando


seu ligeiro ressonar, Sílvio imaginava que não lhe era mais possível
esperar e que devia dizer tudo a ela, a fim de acabar com aquele
sofrimento. O seu amor dividia-o de maneira terrivelmente dolorosa e
ele se sentia como que desmoralizado sob o domínio daquela força que
não conseguia controlar. “Sim, como o amor é amargo, difícil e
sobretudo solitário”, repetia a si próprio, incansavelmente. E só agora
podia compreender o drama que o seu sentimento representava nas
suas diferentes etapas, desde aquela paixão sem desejo que conhecera
na sua infância, até aquele momento de plenitude e finalmente a
descida no abismo. Não existe o amor como coisa em si, mas seres
dotados de amor, almas satélites que giram em torno das outras, até
tombarem na poeira do esquecimento — almas sem repouso, sem
consolo, sem outra alternativa senão essa combustão que as leva para
o irremediável aniquilamento. Seres dotados de amor, almas voltadas
a uma perpétua danação neste mundo, devoradas por uma sede que
nenhuma água extingue, que nenhum carinho ou recompensa acalma,
que nenhuma força desta terra consegue adormecer, almas voltadas
para o trágico silêncio de si mesmas, à procura de um acorde ouvido
em lugar distante e inacessível, para quem o amor não é a forma, nem
a cor, nem coisa alguma que pertença a este mundo, mas algo que
transcende o próprio amor, sombra, sofrimento ou mistério que só à
morte pertence.

A esta altura do seu pensamento, como ele se movesse na cama,


ouviu um soluço que partia da cama ao lado. Escutou novamente e
percebeu realmente qualquer coisa sufocada, como se Diana chorasse,
o rosto contra o travesseiro. Aquilo apagou de repente todos os seus
ressentimentos, e uma dor nova, aguda e persistente penetrou no seu
coração. Seu primeiro movimento foi de se levantar e indagar o que ela
estava sentindo, mas, lembrando-se da frieza com que ela o tratara
durante todo o dia, da indiferença com que o abandonara na estação
no momento da partida de Clara, e mil outros pequenos fatos, resolveu
não se mover e esperar que tudo aquilo passasse. Diana devia supor
que ele estivesse dormindo, pois percebeu em certo momento que ela
levantava a cabeça, enquanto o mesmo soluço, profundo e abafado,
soava no canto em que ela se achava. Sílvio se agitou e imediatamente
ela mergulhou de novo a cabeça no travesseiro. Foi neste momento
que uma idéia estranha lhe atravessou o pensamento, ou melhor, que
uma pergunta simples e penetrante se colocou no seu espírito: por que
chorava Diana? Durante alguns minutos, sem conseguir conciliar o
sono, examinou a questão de todos os lados. E, como lá fora um galo
cantasse e ele sentisse de repente a pressão surda e tempestuosa da
noite, as palavras de Maria Ernestina voltaram subitamente à sua
memória, não mais como simples calúnia ou uma insinuação sem
grande importância, mas como um véu que se fende ante toda uma
estranha, negra e dolorosa realidade. De novo ele se agitou na cama,
procurando distinguir se ela chorava ainda. E mais uma vez, no
silêncio, percebeu aquela coisa estrangulada que se assemelhava a um
soluço, não um soluço humano, mas um ruído animal, subterrâneo,
como um grito que não pode escapar e se debate entre as paredes
mortais que aprisionam a alma. Desta vez sua impressão foi tão forte
que ele se levantou, sentou-se na cama e procurou acender a luz. A
claridade inundou de repente o quarto e Diana, que não o tinha visto
se mover, levantou para ele uma face vermelha, sulcada pelas
lágrimas, com os cabelos desfeitos e um brilho de espanto no olhar.

— Meu Deus, que tem você? — indagou ele, aproximando-se.

Ela voltou-se violentamente e ocultou o rosto entre as mãos.


Como Sílvio insistisse, exclamou numa voz sufocada, trêmula como
uma corda esticada até os derradeiros limites da força:

– Deixe-me, deixe-me, não se preocupe comigo!

– Mas como posso não me preocupar, Diana, se a vejo tão aflita?

Agora ela chorava francamente, a cabeça voltada para a parede e


apoiada ao encosto da cama. Sílvio, de pé, esperava que aquela crise
passasse. E de repente, contemplando seus ruivos cabelos desfeitos
sobre os ombros brancos, Sílvio compreendeu que ela chorava por
alguém, que todo o seu ser vibrava numa apaixonada nostalgia. O
ciúme envenenou-lhe o coração de um só jato, como uma onda de
espuma suja que rompe através de um estreito dique. Aproximou-se
ainda mais e inclinou-se sobre ela, como se desejasse arrebatar-lhe o
segredo que ela tanto se esforçava por ocultar.

– Diana — disse ele —, não é possível continuar assim, esta


situação precisa terminar.

Diana volveu para ele aqueles olhos verdes que Sílvio tanto
amara na sua infância, e onde agora só existia um desespero surdo e
sem nome.

– Sim — continuou ele —, tudo isto precisa acabar. Sei que você
se encontra todos os dias com alguém.

Calou-se e fitou-a com um longo estremecimento.

– Esta pessoa é Chico? — continuou, os lábios contraídos pelo


esforço feito para pronunciar aquela palavra.

Ela não respondeu e voltou novamente a cabeça para o lado da


parede. Sílvio compreendeu que tinha atingido a verdade e uma
opressiva angústia se apoderou dele. Não era mais um sofrimento
definido, mas uma só impressão de desmantelo, de impotência e de
esmagamento, sob o afluxo daquelas coisas. Baixo, num tom violento e
rápido, insistiu:

– É Chico?

Ela moveu a cabeça, sem fitá-lo.

– Deixe-me!

– Não, Diana, preciso saber de tudo. É Chico, não é?

– Sim, é Chico — respondeu ela, sempre voltada para a parede.

E ele repetiu para si próprio, uma, duas vezes: “Sim, é Chico.”


Afinal, ali estava a verdade que tanto temera e de que tanto procurara
fugir. Ali estava o segredo, tal como tantos sabiam e só ele ignorava. E
como não esperar aquilo, como pudera pensar em reter Diana, em
conservá-la para si próprio? Não sabia que tudo aquilo lhe estava
vedado? Mas no momento em que ia ganhar de novo sua cama viu-a
de novo, viu-a integralmente, com a camisa descida sobre os ombros
brancos e cheios, as formas firmes e inquietas, de onde emanava
aquele perturbador perfume de jasmim e de heliotrópio. Uma
vertigem se apoderou do seu pensamento e ele voltou a se debruçar
sobre ela, perdido, olhos fechados.

– Diana, você o ama, será possível?

Então, docemente, ocultando o rosto nas mãos, ela respondeu:

– Sim, eu o amo.

Ele voltou afinal à sua primitiva posição, fitando-a com


estranheza, como se a visse pela primeira vez. O silêncio pareceu-lhe
de repente bizarro, profundo, o ar pesado. Encaminhou-se até a janela,
abriu-a, aspirando com força o perfume saudável que vinha da mata e
dos brejos. Vagalumes cintilavam na escuridão. Diana, que o fitava da
cama, vendo-o curvado para fora, não pôde reprimir a piedade que a
invadia. Afinal, nestas vagas de sentimentos humanos, quem é a
vítima, quem é o algoz? Tudo se confunde inexplicavelmente, o algoz é
muitas vezes vítima, a vítima é afinal o verdadeiro algoz. Quando
Sílvio voltou para a cama, Diana ainda se conservava sentada e
observava-o ansiosamente.

– Meu Deus, apesar de tudo…

Ele fitou-a como se não a reconhecesse mais.

– Você não compreende — começou ela nervosamente, como se


escaldasse em febre. — Eu sei que você não compreende, mas não
posso, não sei viver assim. Preciso de ar, encontrar conhecidos,
divertir-me. Vivo atirada aqui, contando os dias sem nenhuma
esperança.
– Mas não vejo em que... — começou Sílvio.

– Oh, na verdade não sei se o amo — continuou ela, detendo


Sílvio com um gesto. — Acho-o muitas vezes ridículo, suas roupas me
fazem mal, tudo aquilo, comparado com o que eu conheço, é grotesco,
risível. Sei também que é um homem desprezível, mas representa no
entanto tudo o que foi meu, o mundo que eu deixei, as pessoas que
conheci. Escuta-me, quer saber coisas do Rio, dá-me notícias do que se
passa lá…

Decerto não era aquilo, exatamente, o que ela pretendia dizer.


Queria apenas explicar que na verdade não o amava tanto como
dissera, que o amor era demais para ela e que o seu gesto, dias antes,
indo procurá-lo, fora um excesso que arrebentara nela todas as futuras
possibilidades. Diana era fraca, achava-se moralmente dilacerada.
Noutra época, jamais iria à casa de Chico — e o fato de ter ido
evidenciava um desespero que não lhe fora possível controlar. Mas
aquele gesto não lhe pertencia, nada mais subsistia dentro dela após
esta violência, um grande e irremediável silêncio começava a se fazer
na sua alma massacrada.

Sílvio, que a fitava pensativamente, começava também a


compreender o que se passava. Pela maneira febril por que Diana
falara, pelas suas palavras entrecortadas, sabia qual a espécie de
perigo que a rondava. Chico constituía um simples mito para ela.

– Mas Diana, isto é uma loucura, você não vê…


De novo ela rebentou em soluços.

– Pelo amor de Deus — continuou entre lágrimas —, não me


faça falar mais. Tenho a impressão de que você está me cortando, isto
é horrível!

Ele não disse mais nada e apagou a luz. Diana permaneceu na


mesma posição soluçando. Sim, um mito. Sílvio sentia que tudo aquilo
era uma simples miragem. Mas quase sempre não é a morte a única
força que pode destruir as miragens dos homens? E ele sentiu renascer
no seu espírito alguma coisa do antigo amor com que a amara. Mas,
enquanto imaginava novos meios de salvá-la, compreendia ao mesmo
tempo que a partida já estava completamente perdida. Poderia
destruir aquele mito não com amor, mas com raiva, com ódio,
cegamente. Poderia destruí-lo como quem destrói um objeto
inutilizado. Mas como reconstruir dessas cinzas um novo amor, como
criar uma outra vida? Tudo estaria então definitivamente morto.
Assaltou-o uma fúria de destruição: viu-se perdido, ele, Chico, Diana,
afogados na mesma suja e tormentosa correnteza.

Na sombra, tentando divisá-la, Sílvio sentiu penetrá-lo uma


dessas vagas contrárias, um desses sentimentos alternados que tanto o
subjugavam outrora, uma dessas inesperadas ondas de rancor, que
pareciam medir o abismo futuro que iria separá-los e ao mesmo tempo
revelar a extensão exata da violência do seu caráter.
14
Infelizmente certos sentimentos são passageiros, como
relâmpagos que apenas denunciam a face encoberta da realidade
vindoura. Extintos, volta a reaparecer o mesmo antigo estado de
abatimento e indecisão, e isto era o que se dava presentemente com
Sílvio. Naquele dia, no escritório, ele contemplava as cartas sobre a
mesa, as consultas a responder e os problemas de ordem técnica a
solucionar, com uma indiferença que se assemelhava
extraordinariamente ao desespero. Meio-dia acabara de soar e todos
os empregados tinham saído para o almoço. Só ele ficara, batendo
ritmadamente com uma pequena espátula sobre a mesa de vidro e
olhando o cinza denso do céu, entrevisto pela janela aberta. Era um
dia escuro e abafado, sem a mais leve aragem para amenizar o calor.
Tudo em torno de Sílvio repousava da faina diária, das lutas e dos
atropelos em que aqueles seres se consumiam no combate pela
existência. E ele compreendia que estava ali como uma excrescência,
que jamais conseguiria se interessar por aquelas cifras e aquela
linguagem de comércio e que até agora o seu sacrifício tinha sido
completamente inútil. Foi esta lembrança que o fez se levantar, fechar
a janela e ganhar a rua. Lá, pôs-se a caminhar a esmo, ora detendo-se
sob as árvores frondosas, ora seguindo os passos das pessoas no outro
lado da calçada. De vez em quando, um apito abafado cortava os ares
— e ao longe, no leito da estrada de ferro, elevava-se lentamente uma
coluna de fumo, que aos poucos se diluía no ar pesado. Veio-lhe uma
intensa vontade de viajar, de escapar a todas as suas preocupações e
esquecer assim aquele triste período da sua vida. Ao mesmo tempo,
seguindo a grade que separava a calçada da estrada de ferro,
imaginava que entre ele e Diana tudo estava irremediavelmente
acabado e que era inútil ocultar por mais tempo esta verdade. E ele
ainda a amava, com esse amor dos que não podem se libertar do uso
de um tóxico que lhes traz a morte. Mas, no fundo, admirava-se de que
tudo se processasse com tanta calma, que o “veridictum” fosse aceito
com tão nítida resignação. Examinando bem, havia outro motivo: é
que ele se achava cansado e sabia que já não existia nenhuma
possibilidade de equilíbrio naquelas coisas. E, afinal, tudo devia ser
assim mesmo. Era uma espécie de plano previamente estabelecido,
algo que acontecia porque devia ser assim e não comportava nenhuma
revolta ou discussão. Coisa curiosa, naquele momento, andando
calmamente junto à grade de ferro, ele indagava a si próprio o que
faria, caso Diana o amasse. Era estranho que nunca tivesse pensado
nisto. Se tentara equilibrar os fatos, se procurara viver como todo
mundo vive, no íntimo sabia muito bem que nada seria possível para
ele naquele terreno, e que o seu caminho era outro.

Mas, à medida que avançava, a figura de Diana parecia


aumentar na sua consciência — e reaparecia também aquele
sofrimento lento e fino, como se ao ar faltasse qualquer parcela que lhe
fosse vital, ou se dentro dele existisse uma ferida a descoberto que,
segundo os movimentos que fazia, lhe causasse uma dor continuada.
Via-se de novo sozinho, entrando no quarto que já não cheirava a
jasmim ou heliotrópio, via-se debruçado sobre os livros como
antigamente, vazio do seu amor como alguém que se cura de uma
chaga. E chegava-lhe dessas imagens uma súbita nostalgia, como um
vapor gelado e cinza que subisse de um monte de trapos remexidos.
Sílvio apressava insensivelmente os passos, sem saber ao certo para
onde se dirigia. “Tudo é o hábito”, dizia consigo próprio, sentindo que
nesta paixão envenenada já se introduzira uma parcela de morte e que
o esquecimento, esse ácido de que só o tempo sabe o segredo, já
começava a corrompê-la. E, no entanto, seu sofrimento parecia mais
intenso, ao verificar quanto era fácil destruir dentro de nós uma
imagem adorada — pois ainda mesmo que ele o quisesse, ainda
mesmo que lutasse para salvar aquele amor do naufrágio, já não seria
possível arrebatá-lo da corrupção que o devorava aos poucos. Que
subsiste então dessas tormentas que tantas vezes trazem em si o calor
da eternidade? Ó morte, ó esquecimento sem remédio! E, à medida
que ele caminhava, sua dor tornava-se mais nítida e mais intensa ao
mesmo tempo, como se os minutos acumulassem sobre ela uma
sobrecarga que a tornava mais difícil de ser transportada.

Foi assim que atravessou todo o dia. Ao escurecer, sem ter


voltado ao escritório, achou-se de novo diante da praça da estação. O
sol já se ocultara e, com a noite, começara a escorrer uma chuva mansa
e triste. As casas pareciam afogadas numa névoa gelada e as árvores,
escuras, tornavam-se mais altas nessa sombra esbatida e móvel. Ele
sentiu que não podia regressar à casa e continuou a caminhar,
passando de novo ao longo da grade da estação. Novamente um apito
surdo cortou a neblina e Sílvio escutou um trem que se punha em
marcha. Lembrou-se de Clara, mas a imagem se apagou de novo e
Diana, mais uma vez, absorveu-lhe completamente o pensamento.
“Sim, estava tudo perdido. Ó dor, ó esquecimento!”, murmurou ele de
novo, como um doloroso refrão. E mais adiante repetiu novamente
aquelas palavras, como se lhe fosse difícil apreender o seu conteúdo
uma só vez ou como se apenas o fosse possível em sorvos lentos, tal
como alguém que ingere uma bebida amarga. Aliás que significava
estar tudo perdido? Para ele, tudo não estava perdido desde o berço? E
imediatamente alguma coisa se rebelou na sua alma: não, é verdade
que é muito fácil ser feliz, mas também não é difícil ser desgraçado. A
obrigação do homem é ser feliz tendo plena consciência do que
significa a desgraça neste mundo. Feliz não como toda a gente o é, mas
de uma felicidade plena e triunfante, enriquecida com os atributos de
quem pôde atravessar o inferno sozinho.

Neste momento ele atingiu o café, de onde vinham vozes e


risadas. Sentiu fome e pensou em entrar. Ia empurrar a porta, quando
percebeu que um carro parava mesmo por detrás dele e que algumas
pessoas saltavam. Voltou-se e reconheceu entre elas a figura de Chico.
Vinha acompanhado por dois amigos, e ao ver Sílvio recuou
ligeiramente, hesitando talvez se devia cumprimentá-lo ou não. Sílvio
também recuou — e ambos compreenderam que tudo estava
descoberto e que já não era mais preciso ocultar coisa alguma. Durante
um minuto, sob a chuva, eles se defrontaram — e Chico, afinal,
erguendo os ombros de modo quase imperceptível, ganhou a dianteira
e entrou no café. Os outros dois acompanharam-no. Um deles era um
conhecido estroina e o outro, quase menino ainda, filho de um
fazendeiro local. Sílvio não ousou segui-los e foi se colocar na esquina
mais próxima. Assim, era impossível Chico não o encontrar de novo à
saída. Apesar de tudo, sentia-se humilhado por ter recuado e, detido
por uma força invisível, não tinha coragem para abandonar o local.
Um lampião iluminava-o fracamente e, através da sua luz melancólica,
a chuva caía cerrada como um véu. Daquele ponto, Sílvio lia
perfeitamente a placa que o vento sacudia: “Café e Bilhares do
Martinho”. Sacudiu-o inesperadamente uma onda de revolta e
resolveu aguardar a saída de Chico. Mas durante este tempo, como
fizesse frio e a chuva parecesse umedecê-lo até os ossos, pôs-se a
caminhar de um lado para outro, esfregando as mãos. Do café
continuavam a vir risadas, e um cheiro morno de café impregnava a
atmosfera, o que excitava a fome e o rancor de Sílvio.

Pouco depois, entretanto, Chico reaparecia. Estava só e se tinha


detido à porta, olhando a rua como se estivesse à procura de alguém.
Pela primeira vez Sílvio percebeu alguma coisa em que até agora
nunca tinha reparado, isto é, na singular beleza que parecia
transfigurar a fisionomia do outro, aquela fisionomia que ele
conhecera tão destituída de graça nos tempos de colégio. Havia nele,
agora, qualquer coisa de marcial; talvez os cabelos completamente
raspados, ou mesmo a sua fisionomia pálida, onde os olhos pareciam
maiores e mais profundos, talvez apenas o fino bigode que ocultava o
tom cruel dos lábios estreitos. Ou talvez não fosse nada disto e sim a
atmosfera que se desprendia dele, de homem ousado e que não recua
diante de coisa alguma, de alguém habituado a mandar e a ser
obedecido. Assim de pé junto à porta, envolto num longo capote
escuro, tinha alguma coisa de um oficial em serviço. Procurou durante
algum tempo com o olhar e, distinguindo Sílvio afinal, levantou a gola
do sobretudo e atravessou a rua, lentamente, ganhando a grade da
estação. “Talvez vá se encontrar com ela”, pensou Sílvio, dispondo-se a
acompanhá-lo. Chico examinava a rua cautelosamente, evitando as
poças d’água, e de vez em quando olhava para trás, a fim de verificar se
era ou não seguido. De longe, a silhueta de Sílvio se confundia com a
sombra projetada pelas árvores e pela massa dos edifícios. “Espera que
eu vá conversar com ele”, disse Sílvio a si próprio, vendo-o afastar-se
cada vez mais dos lugares freqüentados. E de repente pensou em se
deter, recuar e fugir àquela possível cilada. Mas na sua consciência
uma outra voz se elevou: iria mostrar-se fraco mais uma vez? Não.
Cegou-o um ímpeto estranho e furioso. Continuou a caminhar, agora
mais depressa, como se temesse perder o outro de vista. Seus pés
chapinhavam nas poças d’água e produziam um ruído surdo.
Insensivelmente Chico diminuía os passos. Já estavam a uma altura
em que a grade não separava mais o leito férreo da rua, e onde o mato
crescia em touceiras livres e desiguais. De repente Chico se deteve e,
voltando-se, esperou que Sílvio se aproximasse.

— Que me quer você? — perguntou ele, num tom frio e quase


desdenhoso.

Ao mesmo tempo, fitava-o com uma espécie de acentuado


desgosto. Sílvio não soube o que responder e só naquele instante,
contemplando a face pálida do antigo companheiro, pôde medir o
extraordinário poder que emanava da sua pessoa.

— Se é por causa de...

— Não pronuncie o seu nome — gritou ele, frenético, libertando-


se do peso que o subjugava.

— Acaso tenho culpa do que aconteceu? — indagou Chico no


mesmo tom escarninho.

— Não me interessa saber o que aconteceu e nem quem é o


culpado — respondeu Sílvio rapidamente. — Mas posso afirmar que
você é um crápula.

— Foi para dizer isto que me seguiu? — continuou o outro no


mesmo tom frio como se o insulto estivesse longe de atingi-lo.

— Sim, foi para isto. E se não basta — continuou Sílvio


raivosamente — poderemos decidir a questão de outra maneira.
Só neste instante um relâmpago pareceu atravessar as pupilas
frias de Chico.

— Se eu quisesse, poderia esmagá-lo — murmurou ele,


aproximando-se um pouco mais. — Bastaria um simples empurrão...

Sílvio ergueu a mão e deu-lhe uma bofetada. Chico aparou-lhe o


golpe, enlaçaram-se, e durante alguns segundos lutaram em silêncio.

— Isto é uma estupidez — disse Chico ofegante, esforçando-se


para dominar o outro.

Mas Sílvio, que era franzino, sentia-se invadido por uma força
sobrenatural. Acertou o outro num dos olhos e, quando este ia se
defender, derrubou-o. Chico agarrou-o por uma das pernas e ambos
rolaram na lama, lutando sempre em silêncio, ferozes, como duas
bestas selvagens. Sílvio não poderia dizer quanto tempo tinha durado
aquilo. Sentia apenas que uma força estranha lhe conduzia a mão e
aplicava golpes cegamente, sentindo que às vezes feria a lama e outras
o adversário, em cheio, arrancando-lhe gemidos e pragas. Da luta fria
que se iniciara, o combate aqueceu e em breve se tornou violento,
rolando os dois homens até o leito da estrada de ferro. Não tardou
muito para que Chico, sentindo a lama escorrer-lhe pelos olhos e pela
boca, compreendesse que não lhe seria possível dominar o adversário.
Apesar da sua força — naqueles últimos tempos tão aperfeiçoada em
treinos e ginásticas — o outro ganhava-o em agilidade. Procurou então
escapar, agarrando-se aos arbustos, aos dormentes e até mesmo ao
ferro do trilho — mas o cego furor de Sílvio ia procurá-lo de novo e ele
regressava ao ponto de partida, inutilizado. Certa vez conseguiu
arrimar-se a uma touceira e levantou-se a meio corpo, esperando
fugir, mas Sílvio atracou-se de novo com ele e voltaram a rolar sobre
os trilhos, sujos e ofegantes. Enquanto batia o companheiro, Sílvio
compreendia ao mesmo tempo que não lutava apenas por Diana, mas
por fatos mais antigos, por Esperança, por Camilo, por tudo o que
Chico sujara e corrompera. Na sua febre, julgava mesmo entrever a
face de Camilo, aquela face infantil e resignada que parecia dizer ao
seu algoz: “Bata-me, nada lhe acontecerá se o fizer, aqui estou para
isto.” E ele vingava assim o seu passado, até que o outro, vencido,
permaneceu imóvel sobre a lama. A chuva parecia ter cessado, um ou
dois vagalumes apontavam na escuridão. De joelhos, Sílvio enxugou o
rosto, arquejante. Contemplou o homem deitado, sacudido por uma
respiração pesada, como se estivesse adormecido. Havia nele uma
claridade estranha, como a que se irradia da face de um anjo abatido
sob implacável castigo.

Sílvio levantou-se com dificuldade e ganhou o caminho da


estação. De vez em quando voltava a cabeça, procurando divisar a
forma que deixara estendida junto à touceira de capim. De longe, viu
que Chico também procurava levantar-se. Continuou a caminhar em
direção à casa, satisfeito, livre, sentindo que um peso enorme o
abandonara e que ele se achava despido da maior parte dos seus
sofrimentos. O gesto físico fora como uma comporta aberta, por onde
se escoara toda a suja vaga que se comprimia dentro dele. Aquela luta
rompera as derradeiras amarras que o retinham a Diana. Agora
pensava nela com certo desprezo e sentia que podia afrontar sem
temor o brilho desdenhoso dos seus olhos.

Alguns dias depois, Clara viajava novamente, de regresso à sua


pequena cidade. No vagão sujo e cheio de gente ela procurava uma
posição melhor, esforçando-se para se ajeitar com o braço e todo um
lado imobilizado, devido à recente e profunda operação. Apesar de
extraordinariamente abatida, sua fisionomia revelava uma alegria
quase comunicativa. Pensando no que ia encontrar ao seu regresso, ela
sorria, lembrando-se das horas terríveis que acabara de passar. Nunca
se sentira tão deslocada e nem se percebera mais aprisionada ao
pequeno mundo em que sempre vivera. Os médicos, os vidros de
remédio, o aparelho de raios X, tudo isto fazia parte do mesmo
pesadelo, que agora ela ia deixando para trás. Apenas uma pequena e
escura nuvem ao ao longe. No seu pensamento desfilavam uma a uma
as lembranças de casa, desde a cancela do jardim, as flores, os
gerânios que semeara pouco antes, a torneira do fundo que precisava
ser consertada, até Sílvio, Diana e as complicações sobrevindas
recentemente entre os dois. Sim, eram estas as coisas que ela
compreendia e entre as quais podia se movimentar, pois formavam o
seu mundo, o seu pequeno mundo que ela não trocaria por nenhum
outro. Nada lhe causara maior estranheza e tédio do que esta visita ao
Rio, o Rio que ela vira apenas no dia da sua chegada, através da janela
do hospital, recortado nos morros distantes e no céu azul, azul, azul,
tão semelhante ao de Vila Velha. Mas fora necessário esta viagem para
compreender realmente o que era a morte, essa separação brusca e
dolorosa de tudo o que amamos e com que convivemos uma vida
inteira, essa cessação de todos os sinais, de todas as correspondências
amigas, esse mergulho no esquecimento. Oh, como se sentia viva,
como se sentia miseravelmente aprisionada às coisas da terra! E ela
sabia que era este sentimento a força que nos retém às coisas, que nos
impede de morrer realmente, que nos conserva como um ser intacto
entre os outros. Decerto ela ainda se sentia ameaçada, existia aquela
“coisa” num dos seus flancos, enorme e estranha. O médico dissera
que ela ia sentir como que um vácuo, como se alguém lhe tivesse
subtraído uma parte do ser. E ela sentia exatamente o contrário, um
peso enorme, como se lhe tivessem acrescentado alguma coisa.
Quando ela confessara esta impressão, o médico rira. E Clara julgara
ter dito uma tolice, calara-se, mergulhando na leitura de um dos seus
romances prediletos. De vez em quando, nas longas horas do hospital,
erguia os olhos e reparava como em torno tudo era estranho, as faces,
os homens e os seus gestos. Como todas aquelas fisionomias
exprimiam um cansaço prematuro e uma doentia, secreta ambição!
Viver assim devia ser terrível, cada minuto devia constituir um
suplício, cada derrota um inferno. Ela pensava na sua casinha, nos
últimos dias de Jaques, na obediência e na fidelidade de Áurea.
Assaltava-a uma grande ternura e prometia a si própria que iria
procurá-la assim que estivesse de volta.

Clara não sabia que todos estes pensamentos nasciam da sua


íntima certeza de ter escapado a um grande perigo. Tudo lhe parecia
mais fácil e ela se sentia devolvida milagrosamente ao mundo dos
homens. Não era somente um destroço, um ser condenado, mas uma
criatura viva e que ainda sabia sentir as coisas. Mas não tardaria muito
em que ela percebesse que afinal era sempre a mesma vida que
continuava, aquela de que se achava tão cansada e que já não lhe
oferecia mais nenhum interesse. Naquele momento, entretanto, ela
sentia as emoções de uma ressurreição. A lembrança de Sílvio,
sobretudo, despertava-lhe uma profunda ternura. Via-o sem culpa,
arrastado por um sentimento que desprezava. E lembrava-se também
de que ele projetava sair de Vila Velha, e a si própria prometia
descrever-lhe o Rio de tal maneira que Sílvio jamais voltaria a falar em
abandonar sua pequena cidade. A seu lado, vendo-a com expressão tão
feliz, uma senhora gorda tocou-lhe o braço:

— Vem do Rio?

— Venho — respondeu ela, sorrindo e mostrando o lado


enfaixado.

— Ah — fez a outra —, saiu do hospital, não?


E Clara, animadamente, descreveu-lhe toda sua doença. A outra
escutou-a, mastigando qualquer coisa. Quando Clara acabou,
perguntou pela sua vida, se era casada, onde morava. Clara explicou-
lhe que era viúva e tinha um filho, já rapaz.

— No Rio? — indagou a outra, sempre mastigando.

— Não! Não! — exclamou ela com certo orgulho — na


cidadezinha em que moro. Ele é como eu, prefere não sair, gosta de
viver retirado.

A mulher moveu a cabeça aprovativamente. E, como não


desejasse indagar mais nada, Clara voltou a cabeça e mergulhou o
olhar na paisagem. De novo os pensamentos afluíam ao seu espírito.
Sim, quando chegasse em casa, mudaria completamente de vida. Não
queria mais isolar-se, viver fechada dentro de si mesma, como se o
resto do mundo não existisse. Falaria com Sílvio, procuraria auxiliá-lo,
faria esforços para convencer até mesmo Diana, e trazê-la mais uma
vez aos trabalhos caseiros. Ser feliz era um dever, ser feliz não como
sonha a maioria das pessoas, mas com elementos novos, diferentes,
com a humildade dos que realmente sabem pesar o valor da vida. E
Clara sentia-se abrasada de um repentino amor pelos seus e não podia
compreender como julgara um dia — tão distante, tão esfumado no
passado! — poder abandonar aquilo que a cercava. Seu entusiasmo se
dilatava, abrangia até mesmo os que a rodeavam naquele instante, o
mundo inteiro. Não era um simples sentimento, mas um impulso
poderoso, que parecia revigorar de modo extraordinário a face
experimentada das coisas. Nunca o verde lá fora lhe parecera mais
verde, o azul mais sereno e belo. Contemplando alguns bois que
desciam mansamente uma encosta, sentia os olhos úmidos de
lágrimas. Como a vida era bela, como era bom estar viva! O amor se
derramava dentro dela como um líquido morno. Decerto jamais se
esqueceria daquela manhã, do seu perfume e da sua claridade. Mesmo
as vozes em torno, os gritos de uma criança no fundo do carro, aqueles
homens grosseiros que fumavam, mesmo em tudo isto havia um
encanto particular, ressumava não sabia que espécie de fascinação
humilde e profundamente humana. E Clara se agitou, procurando se
apoiar contra o encosto do banco.

– Também tenho uma filha — tornou a dizer a mulher que ia a


seu lado, debruçando-se sobre uma cesta que sobraçava, a fim de lhe
dirigir a palavra.

– Moça? — perguntou Clara, procurando interessar-se pela


conversa.

– Sim, moça — confirmou a velha. — É professora de piano e vai


se casar no princípio do ano que vem.

E de súbito, íntima, numa voz ciciada de quem revela segredos


importantes:

– É um moço importante, de posição. Mas eu não queria o


casamento.
– Por quê? — indagou Clara, pensando de um modo
compadecido sobre aqueles problemas distantes.

– O rapaz bebe — concluiu a mulher gravemente.

Clara permaneceu em silêncio. De novo, rápida como uma


faúlha que sobe e desaparece na escuridão, a imagem de Sílvio
atravessou-lhe o pensamento. Durante um minuto, um rápido minuto
em que ela fechou os olhos e as trevas pareceram se apossar de novo
do mundo, Clara pressentiu que a desgraça talvez fosse irremediável.
Para ela, para Sílvio, para todos. Mas logo, reabrindo os olhos, sentiu
que a luz lhe transmitia nova dose de confiança. Não, a felicidade era
possível, no caso de Sílvio, o auxílio seria preciso. Se ela não tivesse
forças para fazê-lo feliz, como ousaria ostentar livremente o título de
mãe?

– E a moça gosta dele? — perguntou à velha, sentindo que esta


esperava uma palavra da sua parte.

– Gosta. O pior é isto, a moça gosta dele.

E deixou escapar um suspiro fundo. Clara voltou a fechar os


olhos e fingiu que dormia. É estranho, um nada, a brisa que passa ou
um raio de sol é o bastante para nos fazer feliz, tão grande é dentro de
nós a vocação da felicidade. E para sermos desgraçados é preciso toda
uma vida perdida, um ato irremediável cometido, qualquer coisa
sumamente grave e dolorosa. E mesmo assim, como alguém que
momentaneamente caminha à sombra de uma nuvem escura, não era
possível mais tarde penetrar em regiões claras, tal como se dera com
ela própria, durante tanto tempo desgraçada e naquele momento feliz,
feliz apenas porque o céu era azul e voltava para casa? Meu Deus,
como os homens complicam as coisas! Nada existe de decisivo, nem o
bem, nem o mal, nem a desgraça, nem a felicidade — tudo se dissolve e
desaparece, nada é eterno sobre a terra, só o desespero corrompe e
mata. Não era exatamente isto que lhe dizia sempre padre Abreu,
naquela linguagem simples que ela desdenhava tantas vezes e que,
afinal, continha uma profunda verdade? Clara sentiu-se também mais
próxima de Deus. Uma paz enorme e branca desceu ao seu coração.
Mais uma vez seus olhos se encheram de lágrimas e, consigo própria,
ela jurou de novo que sua vida jamais seria como antigamente. Um
novo sol se levantava na sua existência.

Ao anoitecer o trem chegou a Vila Velha. Clara levantou-se com


dificuldade, carregando a maleta com a mão esquerda, por causa do
lado operado. E nesta sua nova maneira de caminhar, curvada,
hesitante, havia qualquer coisa estranha, pesada, como se uma outra
forma, sombria e gigantesca, se houvesse apoiado nela.

15
Clara queria aproveitar a manhã para tratar do jardim, mas
Sílvio viera procurá-la e, como ainda não tivessem tido oportunidade
para conversarem a sós, abrigaram-se sob o pé de acácias. As últimas
chuvas haviam carcomido o banco e este ameaçava ceder, motivo pelo
qual o rapaz, a fim de permitir que a mãe ocupasse a melhor posição,
sentou-se sobre uma pedra ao lado, apoiando-se no tronco da árvore.
Clara nunca o vira tão carinhoso. Parecia até mesmo que tinham
regressado aos antigos tempos, quando Diana ainda não aparecera e,
juntos, conversavam sobre romances e coisas da vida. Mas,
observando a fisionomia do filho, ela se sentia inquieta, achava-o
excessivamente pálido, nervoso, torturado por idéias e problemas que
se esforçava por ocultar. E Clara adivinhava tudo, vendo-o tão
silencioso ao lado de Diana, olhos baixos, como se fugisse a uma
explicação. A si mesma ela perguntava: ele ainda a amaria com a
mesma intensidade? E, à força de observar ambos, chegara à
conclusão de que uma transformação importante se produzira na sua
ausência. Aliás, desde que ela penetrara em casa sentira ruir todos os
seus planos: havia ali dentro qualquer coisa hostil e pegajosa que
inutilizava todo ato de boa vontade. Não era uma simples atmosfera de
incompreensão, mas algo de mais profundo e fundamental, o sopro da
própria desgraça consumada. Na mesma noite vira Diana passar junto
dela, abatida, os olhos dentro de dois círculos escuros. Seus
movimentos eram automáticos como os de uma pessoa adormecida.
Clara sentiu que ela estava diante de alguém que caminhava
abertamente para o abismo, uma pobre alma que rejeitava toda
espécie de salvação. Pela primeira vez teve pena da moça — e a sua
piedade se acentuou, quando ouviu, através da porta fechada, o rumor
de um pranto abafado. Sílvio, que entrara pouco depois, ao olhar que a
mãe lhe dirigiu, ergueu os ombros. E, indo colocar-se distraidamente à
janela, parecia querer indicar a Clara que daquele lado já não havia
nenhum recurso a tentar. Assim mesmo logo se levantou e aproximou-
se dele, sem indagar coisa alguma. Sentia apenas que sua proximidade
lhe faria bem. Foi o próprio Sílvio que, abaixando a cabeça, contou-lhe
tudo o que se passara na sua ausência. Clara ouviu-o sem dizer palavra
e, depois, pretextou que era muito tarde e que no dia seguinte
continuariam a conversa. Na verdade apenas queria ganhar tempo
para meditar sobre o sucedido. Já agora, não podia evitar a enorme
piedade que sentia por Diana — e, indo de um lado para outro, cabeça
baixa, indagava qual o melhor meio de auxiliá-la. Não era possível
abandonar uma pessoa sozinha naquele transe. Diana se assemelhava
a um pássaro perdido, com as asas molhadas e arrebentadas pela
tempestade que se abatera de repente.

No dia seguinte, pela manhã, continuavam a conversa sob o pé


de acácias. Enquanto Sílvio falava — sempre as mesmas queixas, tão
idênticas às anteriores que ela até já adivinhava as palavras que ele iria
empregar —, Clara examinava-o furtivamente e pensava quanto o filho
se tinha modificado nestes últimos tempos. Perdera muito do seu
aspecto juvenil, e nos seus traços, todos tão nobres, parecia haver
sempre um pouco de sombra. E apesar de tudo ela o sentia tão moço,
tão inexperiente para certas coisas da vida, que o seu coração se
confrangia, imaginando tudo o que ele ainda teria de sofrer e quanto
lhe seria inútil a sua limitada experiência de mulher.

– Que pensa você em fazer? — indagou-lhe Clara, finalmente.

– Por enquanto nada — respondeu ele distraidamente, riscando


o chão com um pau de fósforo.

E depois de algum tempo:

– Creio que ela vai embora amanhã ou depois.

– Talvez eu possa conversar com ela a este respeito, sugeriu


Clara com certa dificuldade.

Não — respondeu Sílvio afoitamente —, não vale a pena. Se não


quer ficar, o melhor é partir mesmo. Afinal, isto teria de se dar, mais
cedo ou mais tarde.

Clara levantou a cabeça, suspirando. Viu ao longe as roseiras


que o vento agitava e que enchiam o ar com um perfume doce e
primaveril. Lembrou-se dos seus pensamentos no trem e chegou à
conclusão de que havia no mundo um elemento hostil ao homem. Ele
não podia construir nada muito alto, sem que interviesse um obstáculo
estranho.

– Só uma coisa não compreendo — tornou Sílvio, levantando a


cabeça e fitando também as roseiras que se balançavam ao longe.

Clara percebeu que não devia interrompê-lo. Aquietou-se, a


cabeça encostada ao tronco da árvore.

– Por que se casou ela comigo? Por que, se devia fazer tudo isto
depois?

– Oh, Sílvio! — exclamou Clara, juntando as mãos.

E, enquanto Sílvio continuava a se lamentar, ela se lembrou de


tudo o que se passara quando conhecera Diana, das suas
desconfianças e dos seus pressentimentos. Jamais pudera imaginar
que todos eles se realizassem em tão curto espaço de tempo. E ainda
agora, com o filho sentado a seus pés, indagava a si própria se
realmente ele já tinha descido à última realidade, aquela que
encontramos no fim do caminho, como uma paz cinzenta e fria. Nada
existe, só a solidão. O homem jamais poderá sair de si mesmo, fugir ao
seu destino de encarcerado, apesar de todas as ânsias que o revolvem.
Inúteis, trágicas tentativas de evasão! Ela própria, quantas vezes
tomara o caminho errado? “Quem quiser salvar sua vida...” Olhou
Sílvio a seus pés e passou a mão de leve sobre a sua cabeça. Sim,
poderia dizer, mas não estaria avançando demais num terreno em que
precisava usar de todas as cautelas? Não seria muito cedo? Mas de
repente, fitando-o, compreendeu que na verdade entre ele e Diana
tudo estava acabado. Então, lentamente, moveu a cabeça e disse:

– Acho que nunca me enganei a este respeito, Sílvio.

Ele sorriu com amargura:

– Você não se enganou em tantas coisas, mãe!

Clara suspirou e concluiu:

– Pode ser que me engane, afinal tudo isto são simples


suposições. Mas passei tantas noites pensando. . .

– E então?

– Não sei, mas a meu ver Diana cometeu um engano ao se casar.


Ela julgava-se perdida.

– Perdida?

– Sim, que o seu mal não tivesse cura e que ela não pudesse
viver noutro lugar.

– Mas em nenhuma época... — insistiu Sílvio, desamparado.

Clara não quis responder e olhou para o outro lado. Sim,


também ela bem sabia que Diana nunca o tinha amado. Aliás, que
sabia aquela mulher a respeito do amor? Sob este aspecto não podia
sentir em relação a ela senão um profundo desprezo. Não — e de novo
Clara pousou a mão, levemente, sobre a cabeça do filho. Não era o
destino dele idêntico ao seu, não assistia agora ao desenrolar de uma
vida nascida da sua, e como a sua semelhante em tantos pontos?
Naquele mesmo dia, Sílvio resolveu interrogar Diana sobre o
assunto. Não queria conservar aquela dúvida no coração e ao mesmo
tempo tinha medo de que Clara estivesse exagerando os fatos. No
fundo, ele ainda repetia como antigamente: “Mulheres...” Para isto,
esperou que ela se achasse no quarto. Já no fim do dia, vendo-a bater à
porta, foi ao seu encontro. Achou-a de bruços sobre a cama, os cabelos
desfeitos, fumando um cigarro. Seus olhos estavam vermelhos como se
ela tivesse chorado, e tudo na sua pessoa respirava uma completa
indiferença por si e pelo mundo. Assim que o marido abriu a porta,
estremeceu e procurou ocultar o rosto nos travesseiros.
Evidentemente queria fugir às conversas. Mas assim que o viu sentar-
se a seu lado atirou o cigarro fora e dispôs-se a ouvi-lo, sem disfarçar o
enfado.

– Diana — começou Sílvio —, é preciso que esclareçamos certos


pontos. Em tudo isto há muita coisa obscura.

Ela ergueu as sobrancelhas, como se dissesse: “Para quê?” E


Sílvio se calou, sentindo de repente que nada havia de obscuro em
tudo o que se passara e que, ao contrário, o fato principal revelava
todos os outros: ela não o amava e nisto se resumia toda a história. E
apesar de tudo, enquanto pensava assim, sentia alguma coisa
amortecer vagarosamente no fundo da sua alma. Dir-se-ia que naquele
instante ele quase já não a amava e até a contemplava como se
estivesse diante de uma estranha. O tempo, poderoso e fatal, lançara
ao seu espírito mais uma dessas profundas e lentas vagas de
esquecimento.

– Por exemplo — continuou ele, retomando o assunto com certa


vivacidade —, que motivo levou-a a se casar comigo?

– Não sei — respondeu Diana devagar, acendendo novo cigarro.

Sílvio notou que o olhar da moça estava perdido ao longe. “Sim,


não há dúvida”, pensou ele, “eu a odeio atualmente.”

– Um esforço, Diana — insistiu. — Não é verdade que naquela


época você estava muito doente?

– Sim — concordou ela —, estava muito doente. Tinha ido ao


médico e ele me dissera que eu não podia sair daqui de maneira
alguma. Agora...

– Então, foi por isto? — repetiu Sílvio, atônito.

Ela fitou-o de maneira estranha. Depois ocultou o rosto nas


mãos e um soluço sacudiu-a.

– Não sei se sou culpada ou não — continuou depois de algum


tempo —, mas vivia desesperada. Meu padrinho dissera que não
sairíamos daqui de modo algum.

Calou-se de repente, toda ela pareceu fremir sob uma onda de


revolta:

– E depois de tudo isto o médico vem me dizer que não tenho


mais nada, que posso partir quando quiser!
– Ele disse isto?

– Disse — respondeu Diana, levantando para Sílvio o rosto


banhado em lágrimas.

Ele levantou-se bruscamente, encaminhou-se para a janela,


voltou e, batendo a porta, abandonou o quarto. Diana quis detê-lo,
chegou a levantar-se, mas caiu de novo sobre a cama. Compreendera
que o tinha ferido pela última vez. Dentro dela, também, algo pareceu
se dilacerar. Pensou em voltar atrás, chamá-lo, explicar-lhe que não
era só aquilo, que evidentemente existiam outras coisas, a infância, os
passeios ao longo da estrada, uma porção de coisas que a tinham
levado a preferi-lo sobre os outros. Mas, realmente, existiriam outras
coisas? Durante algum tempo, sozinha, ela se debateu entre aquelas
recordações como num mar de cinzas. Depois compreendeu que tudo
estava definitivamente envenenado e continuou sentada, arrancando
longas baforadas do cigarro.

Naquela noite sobreveio um acontecimento importante. Clara


preparava-se para visitar Áurea, quando de repente sentiu-se mal e
para não cair foi obrigada a se estender na cama. Pela primeira vez,
desde que saíra do hospital, a idéia da morte atravessou-lhe o
pensamento. E, ao mesmo tempo, qualquer coisa muito antiga,
estranha como uma visão que emergisse das brumas, levantou-se no
seu espírito: viu-se menina, na casa dos pais, descalça e com os cabelos
amarrados em trança, olhando os bois que passavam do outro lado da
cerca. Tinha sido há tanto tempo... Dessa visão parecia desprender-se
uma névoa sutil e perfumada, que naquele instante impregnava todo o
ambiente. Dir-se-ia que a vida reunia suas pontas extremas e, num
esforço gigantesco, através de tantos dias passados, conseguia isolar
aquele destino dentre tantos destinos perdidos.

Clara não sabia ainda se estava sonhando ou se estava acordada.


Um som confuso, longo, distante como uma campainha que vibrasse
num descampado, perfurava-lhe os ouvidos — e através das pálpebras
cerradas via se levantarem outras visões, seu pai, de barbas brancas e
apoiado a uma bengala, sua mãe e o irmão pequeno que morrera de
tifo. Ela quis fugir à pressão dessas imagens e agitou-se na cama,
enquanto seus lábios chamavam debilmente: “Jaques! Jaques!” Pois
agora era a figura do marido que surgia na sua consciência, não o
Jaques do fim da vida, mas aquele que amara e que perdera, o Jaques
moço, que vira um dia no comício de gado, com um lenço amarrado ao
pescoço, distante e altivo. “Jaques, Jaques!”, repetia ela, tentando em
vão soerguer-se no leito,' afinal a atmosfera em que vivera o seu antigo
amor. Durante alguns momentos tudo se confundiu como num
pesadelo, enquanto Clara se debatia na mesma luta inútil. Algumas
vezes a imagem de Jaques desaparecia, sufocada por outras
lembranças que chegavam do fundo da memória, repetindo gestos que
ela vira esboçados há muitos anos atrás, em épocas que já não podia
mais precisar. Era como se um dique tivesse se rompido e tudo o que
existisse dentro dele rolasse sobre a sua consciência como um rio
caudaloso. Mas de novo ela chamava baixinho: “Jaques!”, e ele surgia,
chamando-a, amparando-a nesse derradeiro transe. Neste instante
alguém se debruçou sobre ela e Clara reconheceu Sílvio, não um Sílvio
de sonho, afogado em névoa como aquele que acabara de entrever,
mas um Sílvio real, um Sílvio de olhos aflitos, que indagava o que ela
estava sentindo. Clara quis responder que não era nada, que tudo
estava bem e que tinha reencontrado Jaques. Sim, no limiar dessa
estrada cheia de sombras que ia começar a percorrer, descobrira que
nem tudo morre, mas que algumas coisas da terra prosseguem além o
seu maravilhoso destino. Ela queria dizer-lhe isto e não podia — no
entanto, seria tão fácil tranqüilizá-lo! Que força era esta que a retinha
apartada dele, quando uma palavra, uma só palavra bastava para lhe
revelar todo o mistério? Ao mesmo tempo, sentia as mãos ardentes do
filho sobre sua testa, alisando-lhe os cabelos molhados de suor.

Não, não era um sonho. Sílvio ouvira um rumor no quarto e


viera saber do que se tratava. No corredor, ainda preocupado com os
seus problemas, ouvira aquele gemido surdo e o sangue se tomara
gelado nas suas veias, lembrando-se de que também poderia perdê-la,
a ela, a única criatura que lhe restava nesta vida. Enquanto abria a
porta, lembrou-se com inesperada e terrível lucidez que nem ao menos
sabia ao certo qual era a sua doença. Qual teria sido o diagnóstico do
médico do Rio? Como podia perder assim de vista um ser que tanto
amava, com quem vivera toda a sua vida e de quem conhecia os
menores acidentes? A lembrança da sua própria cegueira embriagou-o
como um vinho perigoso. Avançou desatinado e encontrou-a caída,
não sobre a cama, mas no chão, as mãos agarradas nos pés de
madeira.

– Mãe! — exclamou ele sentindo-se perdido, revolvido até o


âmago pelo espetáculo daquela decadência.

E só agora reparava quanto Clara tinha envelhecido, com


aqueles pobres cabelos brancos empastados no rosto úmido de suor. E
aquelas faces cavadas, aquelas rugas terríveis, aquela pele acinzentada,
cansada e áspera, ardendo aos derradeiros lampejos de uma vida
ameaçada…

– Deus, Diana! — gritou ele, tomando-a nos braços.

Neste momento, sentiu que suas mãos tocavam uma parte dura,
artificial, como se metade do corpo de Clara tivesse sido convertido em
gesso. Tateando-a, Sílvio compreendeu então que ela tinha retirado
todo aquele lado, e o seu espanto foi tão grande que deixou escapar um
grito abafado. Era como se uma parte da própria Clara já tivesse
morrido, uma parte que ele conhecera, que beijara talvez, algo que já
não existia mais, como dentro em pouco não existiria mais nada.
Depositou-a na cama, os olhos embaciados pelas lágrimas.

— Mãe! Mãe! — exclamou aflitamente, tentando trazê-la de novo


à vida. Mas nada se movia naquela máscara de cera, naquela trágica
máscara de sofrimento, onde tantos sinais tinham sido esculpidos
pelos agravos do próprio Sílvio, com essa crueldade com que ferimos
aqueles que na vida nos são mais fiéis. Todo ele tremia, sem saber o
que fazer. Imagens rápidas e diferentes passaram pelo seu
pensamento, Chico, a luta no charco, o cigarro de Diana, uma visão
estranha e inesperada de Esperança. Por que tudo aquilo naquele
momento? De que o acusavam aquelas disparatadas visões? Que
fazer? Sair?

Olhou novamente o rosto de Clara e compreendeu que não devia


abandoná-la em hipótese alguma. Uma cor esverdeada, ameaçadora,
subia-lhe até os olhos, como se quisesse afogá-la em sombra. E vendo-
a naquele instante, tão diferente do que fora em dias passados, Sílvio
compreendeu quanto a amava, quanto Clara lhe era necessária à vida,
revivendo assim, e com inesperada força, tudo o que existira entre eles
e que fora olvidado nestes últimos tempos. Sim, o que fora esquecido
pela intromissão de Diana, seu afastamento, a partida de Clara, a
operação. Oh, seu olhar no trem, quando este já se afastava… Esse
olhar de que só agora se lembrava e de que decerto jamais se
esqueceria, cheio de uma luz que já continha toda a nostalgia da outra
vida, como o olhar de alguém que se despede para sempre, o rosto
ainda voltado para a paisagem que se afasta.

Não a esquecera por Diana, não trocara o seu amor simples e


cheio de força pelo de alguém que afinal não merecia nada? Ah, se
ainda fosse tempo, se tudo pudesse ser recomeçado! Quantos enganos
não seriam reparados, quantas pequenas e humildes venturas seriam
alegremente celebradas! E, à medida que ia compreendendo o que
Clara significava na sua existência, Sílvio descia a indagações mais
amplas, ao motivo por que ela ocultara sua doença, aos seus últimos
dias, num esforço desesperado para reconstituir uma realidade que se
fragmentava nas suas mãos. Como devia ter sofrido sozinha no
médico! E no Rio como se sentiria, pobre velhinha abandonada, entre
gente que não conhecia, ameaçada por um mal que podia levá-la de
um momento para outro! Viu-a encolhida e pequenina, caminhando
através de ruas escuras e esbarrando nos transeuntes indiferentes. E
ao mesmo tempo, com terrível acuidade, pensou em dias longínquos,
na sua mocidade, na sua infância, em épocas que não conhecera. Sua
lembrança mais antiga, aquele vulto parado junto à porta, a que idade
se reportava? E mais longe, quando ainda não se tinha casado, como
seria? Criança, com que brinquedos havia brincado, quais teriam sido
suas amigas, como aprendera a falar, como abrira os olhos para o
mundo? As perguntas se atropelavam na sua consciência. Enquanto
isto, Sílvio pensava como era terrível a nossa ignorância dos outros,
como transitamos juntos numa noite escura, como tudo permanece
inacabado e desconhecido, ulcerado até o fundo por uma série de mal-
entendidos, de ambições, de desejos que nada exprimem!

Mas urgia fazer qualquer coisa. Ele abandonou-a com os cabelos


desatados sobre os travesseiros e procurou ansiosamente em torno.
Algo, depressa, que a fizesse despertar daquele sono letárgico. Algo
que a trouxesse de novo à vida! Sílvio, durante um ou dois minutos,
girou em torno do quarto, abrindo gavetas, remexendo objetos,
sacudindo ampolas imprestáveis. Sentia que cada segundo era
decisivo. Bem defronte dele, sinistro e ameaçador, um relógio marcava
horas. Pensou em sair de novo, procurar alguém, mandar chamar
Áurea. Ah, se Áurea estivesse ali, tudo estaria salvo!

Voltou para junto de Clara. O rosto dela estava completamente


cinza e uma ligeira espuma azulada aflorava-lhe aos lábios. Mais uma
vez ele olhou em torno de si desesperado: o vento agitou algumas
flores murchas esquecidas numa jarra. Então, sentindo-se perdido ele
se lançou sobre ela, soluçando. Tentou levantá-la, mas a cabeça
descaiu molemente para trás. Teria morrido? Não, não era possível
que a perdesse assim. Colou o ouvido aos seus lábios e ainda ouviu
uma palavra, um sopro murmurado através dos lábios cerrados:
“Jaques...” Que desejaria ela dizer? E, enxugando as lágrimas, Sílvio
examinou o rosto impenetrável. De novo, como um sopro, a palavra se
formou: “Jaques...”

Num derradeiro esforço, ele se abraçou a ela, esperando reter


aquela vida que fugia. Deitado assim, via através da janela aberta o céu
imenso, negro, onde algumas estrelas faiscavam. Veio-lhe então a idéia
de oferecer a Deus alguma coisa fundamental em troca da vida de sua
mãe. Mas que poderia ofertar a fim de que fosse restituído àquele
corpo vencido o sopro da vida? Sua própria felicidade, seu destino
neste mundo? Tudo o que ele já sabia sacrificado, mas pelo qual ainda
lutaria, tentando construir uma imagem da vida, com restos de uma
existência naufragada? Seus dias vindouros, suas esperanças e seus
desastres?

Mas, quando ergueu os olhos para o céu, percebeu que um


derradeiro estremecimento sacudia Clara e que de repente um vácuo
imenso parecia se fazer no quarto. Qualquer coisa fugia, sugada por
um enorme abismo invisível, enquanto uma nova presença, terrível e
silenciosa, enchia o aposento com sua força sobrenatural. O corpo
tombou molemente para trás. O vento suspendeu a cortina da janela.
E dir-se-ia que realmente uma coisa qualquer passava naquele
instante sobre a cabeça de Sílvio, um sopro desconhecido, misterioso,
como se o ar se deslocasse à passagem de alguém.

16
Dois dias depois do enterro de Clara, sentados na sala vazia e
triste, Sílvio e Diana conversaram. Ela se tinha abatido muito nestes
últimos dias; além disto, o vestido preto que usava acentuava ainda
mais a finura quase imaterial dos seus traços. Sílvio examinava-a e em
certos momentos parecia não a reconhecer — é certo que naquela face
lisa, sem pintura e com os cabelos repuxados para trás, havia certa
beleza, mas era uma beleza diferente, dura, a beleza de uma mulher
que toma o partido da vida contra a vontade de Deus. Apesar de tudo,
os traços da antiga Diana não haviam desaparecido, até os olhos
pareciam maiores, ardendo sobre a face pálida com um brilho
singularmente sereno.

Toda a questão estava resolvida, ela partiria dentro em pouco


com o padrinho, não como inimiga, mas como alguém que tentara um
empreendimento e não tivera forças para levá-lo avante. Era isto, aliás,
o que Sílvio dizia a si próprio, vendo-a tão quieta no seu traje de luto,
as mãos pousadas sobre os joelhos. E qualquer coisa da sua antiga
admiração ainda vibrava no seu espírito. Diana alisara os cabelos e os
amarrara de lado, na displicência adequada a quem deve trazer luto
por algum tempo; além disto banira toda pintura e isto como que a
fizera perder aquele ar ligeiramente febril que a caracterizava naqueles
últimos meses. Assim, esse tom fugidio da infância, que afinal todos
nós conservamos e que só às vezes reaparece à superfície das faces
gastas, esse nada, essa luz que apenas um instante rompe as trevas e
ressurge à tona dos olhos maravilhados, iluminava de novo a
fisionomia de Diana. Sílvio sabia que se ela se movesse, falasse ou
exprimisse seus sentimentos, tudo desapareceria, a Diana recente
voltaria a reaparecer. Mas a moça se achava muito cansada, o trabalho
daqueles últimos dias tinha-a prostrado, seus olhos pareciam se fechar
apesar dos esforços contrários — e era nisto talvez, nesse abandono e
nessa indiferença, que residia o seu maior encanto.

Também ela tinha chorado muito nestes últimos tempos.


Primeiro, por causa daquele amor que a arrastara a Chico e que
moralmente a aniquilara; depois por não poder amar a Sílvio e
finalmente pela morte de Clara, que lhe causara inesperado abalo.
Desarvorada, compreendendo que procedera mal, arrependera-se de
tê-la desdenhado tanto e de tê-la conhecido tão mal. Agora que tudo
estava acabado, interessava-se pela sua vida, queria saber detalhes,
remexia suas gavetas e experimentava até mesmo seus pobres vestidos
usados. Certa vez Sílvio surpreendeu-a diante do espelho, tentando
pentear-se com os bandós de Clara. Ele sorriu e Diana suspirou — no
fundo imaginava que devia existir certo encanto nessa vida
provinciana, tão isenta de paixões, tão distante da sede de viver. E
decerto seria um choque para ela, se pudesse imaginar tudo o que
Clara tinha vencido e todas as ambições que sufocara no fundo da
alma. Acabou por abandonar os trajes de Clara, pois era evidente que
não tinha nascido para aquilo; se bem que o vestido preto lhe fosse
bem, só as roupas vaporosas e artificiais pareciam feitas para ela.

Sílvio continuaria e examiná-la indefinidamente, se Diana não


tivesse voltado para ele os olhos inquietos:

— Não me olhe desse modo, Sílvio.

— Por quê?

— Bem sei o que quer dizer quando me olha assim.

Sua voz era diferente, mais áspera e decidida. Sílvio moveu a


cabeça, sem nada responder. Diana voltou a fitá-lo e disse, calma como
se estivesse dizendo alguma coisa muito simples:

— Ultimamente venho pensando que talvez não seja eu,


exclusivamente, a culpada de tudo. Você não teria escolhido errado,
você não exigiria de mim…

— Sei disso — atalhou Sílvio. — Também já pensei muito a esse


respeito e sei que você não é exclusivamente culpada. Somos ambos
culpados, por não termos sabido realizar a vida que esperávamos.

Ela concordou com um aceno de cabeça.

— A que horas você parte? — perguntou Sílvio, displicente.

— Às cinco. Padrinho ficou de vir buscar-me aqui. Acho que


vamos primeiro a São Paulo, não sei ao certo.
Ficaram de novo em silêncio. O vento lá fora arrastou algumas
folhas secas e um perfume de rosas entrou pela janela aberta. Sílvio
lembrou-se de Clara e a dor cerrou-lhe de novo o coração.

— Ultimamente também tenho pensado noutra coisa, Diana.

Pelo tom da sua voz, ela compreendeu que se tratava de alguma


coisa importante. Aquietou-se, fixando nele os olhos interrogadores.

— Fico acordado às vezes e me vem à cabeça uma porção de


coisas; por exemplo, que o amor existe, mas eu é que exijo das pessoas
o que elas não podem dar. Se eu aceitasse a vida que os outros
aceitam, não seria feliz igualmente, não teria a mesma oportunidade
que eles?

Ela fitou-o com espanto.

— Você nunca aceitaria viver uma vida como todos vivem —


disse.

— Sim, eu sei disto, sei de mais até. Não há remédio para mim; o
meu único caminho é o da solidão.

Ela baixou a cabeça, sem saber por quê. O cheiro de rosas


persistia. A sombra da tarde ia invadindo vagarosamente a sala, uma
sombra dourada, que arrancava dos móveis estranha vibração, como
certas formas inanimadas que parecem palpitar ao crepúsculo.

— Não se ria, Diana — continuou ele —, se eu lhe confessar uma


coisa. Mas esta é muito grave: outro dia, tentei fazer um poema.

— Um poema? — fez ela, fitando-o ligeiramente espantada.

— Que há de mais nisto? Ando imaginando que talvez a coisa


não tenha saído muito errada. Deve haver uma compensação, não
acha?

— Você tem qualidades demais, este é o seu mal — respondeu


ela sempre no mesmo tom calmo.

E, como Sílvio voltasse a ficar silencioso, perguntou:

— Qual era a idéia do poema?

— Eu saberia melhor se não o tivesse rasgado. Mas é isto mais


ou menos: antigamente, no Paraíso, os anjos flutuavam numa
atmosfera de amor. Desse amor que sonhamos para o mundo. Ora,
havia uma região onde existia outra atmosfera e, dentro desta, só Deus
reinava. Alguns anjos ambiciosos invejaram-no e resolveram penetrar
nesse terreno proibido. Deus precipitou-os do alto e nesta terra eles se
multiplicaram, sem jamais encontrar sossego, o coração mordido por
uma ambição que é uma espécie de reflexo dessa antiga revolta. São os
homens que certas mulheres repelem, alegando que não
compreendem o que eles buscam. Outras, mais lúcidas, afirmam que
eles desafiam o castigo de Deus.

Diana não respondeu nada e continuou olhando o vácuo. Não,


estas coisas decerto ela não as compreendia, eram excessivas para o
seu pensamento, sempre às voltas com os pobres sentimentos da terra.
E Sílvio, enquanto falava, pensava nisto também e ao mesmo tempo
em outras coisas. A sala já estava quase em completa obscuridade. Um
ou outro raio de sol ainda dourava a quina dos móveis, grandes e
pesados na penumbra que se dilatava.

Assim tudo estava terminado, sem que nada mais tivessem para
dizer um ao outro, vencidos, sem nenhum consolo além daquele
irremediável silêncio que parecia submergi-los. Mas não, alguma coisa
ficava: Sílvio ainda queria guardar uma derradeira imagem, uma
última visão, como quem tenta arrebatar do naufrágio o olhar de
adeus da pessoa prestes a desaparecer. Queria mais uma vez vê-la tal
como a via agora, sentada, as mãos pousadas sobre os joelhos, toda de
negro, o sol ardendo num último reflexo sobre os seus cabelos. Já
havia nela qualquer coisa de morto, uma atmosfera antiga e
sobrenatural, como a que contemplamos em certos retratos do
passado. Toda vida parecia ter desaparecido da sua face, assim como
todo desejo, toda secreta inspiração, todo tumulto, os fantasmas e os
desesperados anseios: ela nada mais era senão um espírito aquietado
pelo sofrimento, e era assim que ele queria revê-la mais tarde, quando
tentasse reviver a tormenta desta fase da sua vida. Teria ela
compreendido tudo o que havia significado para ele? Decerto não, pois
aqueles a quem mais amamos nunca penetram na obscura realidade
em que vivemos, nesse país de treva e sofrimento, nesse mar de
nostalgia pela imagem que nos obseda. “Sim”, dizia ele a si próprio,
“nem de longe esta mulher poderá saber quanto eu a amei. Ela tem
razão, eu a destruí, eu a arranquei do seu mundo como se arranca uma
planta da terra mole. Por causa dela teria feito tudo, fui seu escravo,
teria matado, abandonado os meus e renegado a Deus. Não se ama
desta maneira senão uma só vez na vida, e também eu, de agora em
diante, serei uma criatura semimorta.

E Sílvio, vendo-a tão diferente agora, compreendeu que


finalmente o seu amor estava definitivamente acabado. Acabado e não
esquecido, pois Diana continuava a viver no seu pensamento. Mas
apenas como uma lembrança, resignadamente, como a desses seres
que nos são caros e que uma doença obriga a fazer uma longa viagem,
deixando-nos entregues a outras preocupações. Tudo nele ainda
respirava a mesma paixão que conhecera na infância; nele ainda
vibravam as mesmas correntes que a sua passagem revelavam-lhe o
terreno conhecido e sonhado, o seu deserto de desespero e de amor.
Mas era como as derradeiras notas de uma música que se extingue, um
motivo lembrado ao longe, a ária que volta através do tempo
esquecido, solene, imutável, viva, apesar de nada mais ser senão a
poeira de uma recordação que persiste através dos anos…

Assim que Diana entrou no carro, Sílvio deixou cair a cortina e


abandonou a janela: não queria vê-la partir. Apesar dos seus
pensamentos, momentos antes, apesar das palavras ásperas trocadas
tantas vezes, apesar daquilo a que ele chamava a traição de Diana,
apesar de tudo isto e de muitas outras coisas que ainda o faziam sofrer,
Sílvio sentia que naquela hora alguma coisa se rompia dentro dele,
talvez esse derradeiro elo que é como o último vestígio da esperança
que se apaga, gemido final ante a irremediável catástrofe e as trevas
completas que se aproximam. De agora em diante seria realmente a
noite completa, não a noite simplesmente sonhada ou temida, mas a
noite espessa em que os seres desaparecem dentro de nós, símbolo da
vida que se esgota, dos dias perdidos e gastos sem que saibamos como,
enorme bloco, monstruoso coágulo de sangue que vem abaixo, como o
teto de uma casa após um abalo sísmico: acontecimentos que se
resolvem em passado.

Na sala, sozinho, ele compreendeu que não tinha forças para


afrontar a obscuridade. Diante dele, monstruosos, solenes e lívidos, os
móveis pareciam gritar numa vida solitária e triunfante — e eram os
mesmos móveis que o tinham acompanhado desde menino, a mesa
junto da qual se sentara tantas vezes, sobre a qual vira Clara estender
o bordado durante tantas noites de calma e felicidade, as mesmas
cadeiras, os mesmos fantasmas queridos e familiares. Mas não, não
podiam ser os seus móveis essas sombras grotescas, ameaçadoras, em
cujo corpo o uso deixara indeléveis estigmas, não de amor, mas de
castigo e sofrimento. Que lhe exprobravam eles, de que o acusavam
nessa absurda linguagem cujo doloroso significado só o remorso
consegue traduzir? Sim, ele não soubera viver, não soubera impor-se
neste ambiente familiar, era expulso agora como um intruso. E de
repente, fixando-os na obscuridade, Sílvio compreendeu que não
podia mais viver ali, que nenhum sentimento, nenhuma emoção o
retinha àquela casa. Precisava viver, ganhar o ar livre, construir uma
nova vida.

Abriu a porta e ganhou a estrada. A noite, vagarosamente,


começava a nascer no fundo do horizonte. Mas o sol ainda não se tinha
oculto inteiramente e, do outro lado, derramava-se incendiado sobre a
silhueta negra das árvores. Sílvio caminhava devagar, examinando as
faces envelhecidas das casas — e nunca sua pequena cidade natal lhe
pareceu mais estranha, mais gasta, mais inútil para sua vida futura.
“Devo partir”, pensava ele, escutando o som que os seus próprios
passos arrancavam das pedras, “devo partir o quanto antes, amanhã
mesmo, se for possível.” À medida que caminhava sentia esta decisão
tornar-se mais forte. Como atingisse a estrada que conduzia para fora
da cidade — a mesma que Diana palmilhara tantas vezes —, lembrou-
se de Clara e resolveu, já que partia no dia seguinte, fazer-lhe uma
visita de adeus. Tomou um atalho e encaminhou-se para o cemitério.
Àquela hora, a quietude parecia derramar-se sobre as sepulturas como
uma límpida neblina. Uma ligeira brisa movia os ciprestes altos. E ao
longe, além da cerca que rodeava o cemitério, um trem em manobras
apitava.

Clara estava enterrada junto de Jaques, numa sepultura ainda


coberta de terra fresca e com algumas flores murchas esparsas em
cima. Jaques, ao lado, dormia sob uma simples lousa de granito bruto.
Sílvio deteve-se ante o humilde monte de terra, cabeça baixa, o
coração assaltado por uma vaga de sentimentos desencontrados. Ali
estava ela, a alguns palmos apenas, tal como tinha sido em vida — e,
através das lágrimas que lhe nublavam os olhos, ele procurou
visualizá-la como nos tempos antigos, rindo, olhando-o daquela
maneira expressiva e profunda com que costumava fitá-lo às vezes.
“Mãe”, murmurou ele em voz baixa, esforçando-se em vão por
demorar aquela visão que lhe era tão cara. Mas tudo se desvaneceu e
só a terra escura reapareceu aos seus olhos, fria, impenetrável no
segredo que abrigava para sempre. Foi neste instante que ele ouviu
alguém se mover a seu lado. Levantou a cabeça e deparou com Áurea.
Ela estava modestamente vestida e trazia um pequeno ramo de
violetas na mão.

– Oh, Áurea, você! — exclamou ele, com um sorriso de


indisfarçável felicidade.

– Sim, eu — disse ela aproximando-se timidamente. — Não me


esperava, não é?

Olhava-o hesitante. Sílvio moveu a cabeça, afirmando que aquilo


não lhe importava. E, depois de tanto tempo, fitava-a como se a visse
pela primeira vez, percebendo na sua fisionomia alguma coisa de
amargo e de vencido, restos sem dúvida da antiga Áurea.

– Que se passa? — perguntou ele. — Por que você nunca mais


apareceu?

Ela ergueu os ombros, sorriu e baixou os olhos. Durante algum


tempo ficaram em silêncio, ele atormentado por aquela imagem de
resignado sofrimento que contemplava. Áurea tinha envelhecido
extraordinariamente nestes últimos tempos: seus cabelos haviam se
tornado quase completamente brancos e duas rugas profundas
marcavam-lhe a face. Vendo como os seus olhos outrora tão vivos
tinham perdido o brilho natural, Sílvio sentiu derramar-se dentro dele
uma profunda piedade. Não era só piedade, mas um misto de ternura
e remorso. “Como está usada’’, pensava ele, “como se gastou,
esquecida de si própria e inteiramente voltada para os outros! E no
entanto como parece tranqüila, como se preocupa pouco com o que
possa lhe advir da vida!”

Áurea ajoelhou-se sobre a terra, retirou uns óculos da bolsa e,


colocando-os, espalhou sobre a terra úmida as violetas que trouxera. E
Sílvio continuava a pensar: “De que modo exprimir a minha gratidão,
que posso fazer a seu favor?”

– Áurea, vou-me embora amanhã, por que você não vem


comigo?

Ela se levantou, limpando as mãos num lenço. Durante algum


tempo fitou-o e o seu olhar parecia estranho, diferente, através do
vidro grosso dos óculos. Também sua fisionomia era mais severa,
como a de certas pessoas que pretendem seguir um plano
anteriormente traçado e que temem a intervenção dos outros.

– Não, Sílvio — respondeu ela, movendo a cabeça —, não posso.


Muito obrigada, mas não posso.

– Por quê?

– Tenho uma tia doente que precisa de mim. Sei que agora você
está livre e já não precisa dos meus cuidados.

Deteve-se olhando para o chão. E naturalmente ainda queria


dizer mais alguma coisa, confessar que desde aquele dia longínquo do
baile, quando o ensinara a dar laço na gravata, que os seus caminhos
se tinham separado. Já não lhe dera tudo, já não fizera por ele tudo o
que uma mãe estranha pode fazer por um filho que não lhe pertence?
E ainda não era isto: talvez ela quisesse dizer simplesmente que Sílvio
já não precisava dela e que ela, Áurea, não sabia viver sem se dedicar a
alguém. Ainda agora possuía em casa uma tia entrevada, um pobre
destroço que não podia viver sem os seus cuidados. E nem mesmo era
apenas isto. Suspirando, ela fitou o chão e disse:

– Depois, quem ficaria aqui para tomar conta “dela”?

Sílvio concordou, olhando também a terra escura. Ao longe, o


trem apitou de novo; e através do vento, misturando-se às ervas verdes
do cemitério, chegou até ele o cheiro forte do carvão queimado.

– Mas Áurea, se você precisar de alguma coisa…

– Não, não preciso de nada — tornou ela. — Se precisar, não me


esquecerei de você.

Fitou-o de novo com aquele estranho olhar sob os vidros grossos


e sorriu:

– Depois, tenho certeza de que você não ficará muito tempo.

– Não, Áurea, é para sempre.

Ela moveu a cabeça devagar:

– Você nunca se esquecerá daqui. Além disto, é preciso que me


venha ver de vez em quando.

E, enquanto Sílvio sorria, abaixou-se, ajeitou as flores uma


última vez e, levantando-se de novo, convidou-o a sair. As sombras
ganhavam o cemitério e as cruzes pareciam mais brancas nesse
princípio de noite. Ainda conversaram durante algum tempo, sobre
Clara e os seus últimos dias. Áurea não se podia perdoar por ter
ignorado sua doença e por não ter assistido aos seus últimos instantes.
Exigiu que Sílvio detalhasse tudo de novo e, conversando assim,
chegaram à praça da estação.

– Adeus, Sílvio — disse ela, estendendo-lhe a mão.

Sílvio inclinou-se rapidamente e deu-lhe um beijo na testa.

Áurea se tornou vermelha e, escondendo o rosto nas mãos,


afastou-se quase correndo. Ele ainda permaneceu durante algum
tempo no mesmo lugar, olhando o vulto que se afastava. E, apesar de
tudo, como ainda era moça, quanta agilidade existia nos seus
movimentos!

A noite caíra completamente e ele regressou à casa a fim de fazer


os preparativos para a viagem.

17
O vagão estremecia de modo violento como se, chegando o fim
do dia, o trem fizesse um derradeiro e desesperado esforço para atingir
o seu destino. No ambiente esfumaçado e sujo, cabeças sonolentas
rolavam no dorso dos bancos, enquanto ao fundo, junto à porta,
sacudida em longos e pesados estremecimentos, uma criança chorava
convulsivamente. A mãe tentava sossegá-la, balançando-a nos braços
— e do lugar onde estava sentado Sílvio distinguia apenas aquele
monte de flanela cor-de-rosa que gritava e esperneava. Mas às vezes
tudo se confundia aos seus olhos, um nevoeiro espesso, irreal,
aglutinava na mesma densidade cinza o invólucro cor-de-rosa, a
lâmpada presa no alto, os capotes nos cabides e as faces mais
próximas. Sílvio fechava definitivamente os olhos, sentindo pesar-lhe
sobre o coração um estranho e doloroso sentimento de inquietude.
Tudo o que fizera parecia-lhe então uma loucura, a razão fugia
misteriosamente dos seus atos, suas decisões se apresentavam como
gestos confusos, vagos e irreais. Com o espírito vazio, sem conseguir
sufocar aquele sentimento de inutilidade, procurava esquecer o lugar
em que se achava, dormir um pouco. A si mesmo, perguntava quanto
tempo ainda duraria a viagem. Quando reabria os olhos, via de novo a
vidraça descida, abalada pelo fragor do carro em movimento. O
ambiente sufocava-o; agitava-se, voltando a examinar com olhos
vermelhos e ardentes o mundo estremunhado e sujo que o cercava.
Faces gordas, vermelhas e suadas sucediam-se em fila regular e
oscilante, até perder-se no fundo da porta envidraçada, como no fundo
de um lago enfumaçado. Não resistindo mais, ele abaixou
bruscamente a vidraça: o campo surgiu imenso, adormecido na
sombra, uma onda de ar frio varreu a atmosfera morna do vagão.
Faúlhas brotavam do leito da estrada, dançavam um minuto junto à
janela e iam morrer ao longe, sobre as touceiras de capim. De vez em
quando, numa visão rápida, uma ou duas casas emergiam de repente
da escuridão, juntas, solitárias, iluminadas por uma luz fumarenta e
triste. Mas o trem as devolvia de novo à escuridão e o deserto voltava a
dominar, coalhado de vagalumes que se alastravam sobre a vegetação
rasteira. Não raro a máquina apitava surdamente e todo um povoado
surgia, fábricas apontavam, chaminés de usinas, luzes que a distância
parecia tornar mais débeis. O trem diminuía a marcha, suspirava
longamente, detinha-se aos poucos, vencido afinal nessa corrida que
durava desde o amanhecer. O ruído de ferros morria, enquanto vozes
se elevavam na estação. Bandos de moças e rapazes ofereciam, numa
voz gritada e aflita, bandejas de bolos e copos com limonada. Um
cheiro forte de café impregnava a estação. Novo apito surdo e, com um
profundo estremecimento, o trem se punha em marcha. O carro
deslizava junto à caixa d’água, de onde pendia um grosso tubo de
borracha que ainda escorria. A pequena estação ia desaparecendo no
silêncio da noite e o campo reaparecia solene, impenetrável, aberto em
soturnos brejos onde os sapos coaxavam. Sílvio voltava a fechar os
olhos, sentindo que o pesadelo se apoderava da sua consciência.
Sim, este rapaz abrigado junto à janela, enrolado num capote
escuro e com a cabeça inclinada a fim de não ver os outros passageiros,
esta criatura franzina e tímida seria realmente ele? Teria realmente
deixado Vila Velha, não era aquilo apenas um sonho, tivera forças para
tanto? Mas aquele coração desconhecido e atormentado não o
enganava, há muito estava acostumado a conhecer-lhe todas as
batidas, a distinguir as menores nuances da sua alegria, das suas
tristes, rápidas e humildes alegrias. Era realmente a ele que pertencia
aquela área devassada nos seus mínimos segredos. E, coisa curiosa,
quanto mais se aproximava do Rio, menos distante sentia o lugar que
vinha de abandonar, onde nascera, crescera e aprendera a conhecer o
mundo. Como que a distância tornava essa imagem mais forte, mais
nítida, devolvendo-a afinal isenta da neblina com que sempre
vislumbramos as coisas que nos são mais próximas. Vila Velha se
achava revelada e definitivamente cristalizada na sua consciência,
como algo irremovível, eterno, como se fosse parte dele mesmo, dos
seus sentimentos, talvez ele próprio.

De olhos fechados, Sílvio realizava um estranho mergulho no


passado. Toda sua antiga vida brotava da sombra com impetuosa
força, nos mínimos detalhes, extravasando em seu espírito como um
líquido escuro, ocupando-o em todos os recantos, moldando para
sempre a fisionomia dessa região onde só ele poderia penetrar.
Naquele instante, reabrindo os olhos e contemplando seus
companheiros, uma série de faces grotescas e balofas, compreendeu
com surpreendente nitidez qual a força que o tinha guiado até agora,
ou melhor, qual o sentido dos atos da sua vida. Todos eles tinham sido
uma desesperada tentativa para equilibrar no mesmo clima alguns
seres amados, para modelar com o mesmo metal de silêncio e
adoração algumas faces amigas, isolando-as do resto do mundo e com
elas constituindo sua única, verdadeira e insubstituível realidade.
Lentamente surgiam das brumas as imagens conhecidas: primeiro
Áurea, sobre quem convergira seu entusiasmo nascente, que lhe
transmitira as primeiras graves noções da existência, talvez única e
poderosa imagem da sua infância. Lá estava ela, irremovível,
ocupando orgulhosamente o seu lugar. E depois Clara, com quem
lutara durante tanto tempo, fugindo, negando-se, incapaz de se
desprender do seu próprio mundo, girando como uma estrela
alucinada, até vir finalmente a se abater junto dele, tonta, perdida,
imagem fragmentada de uma ambição jamais recompensada. E
durante todo esse tempo Jaques não fora senão um mito, não existia
para sua infância, seu nome nem sequer fora pronunciado uma única
vez. Mas vieram Diana, Camilo, outras sombras menores, vultos mais
pálidos, delimitando ao longe as fronteiras do mundo vazio. Sim,
agora Sílvio sabia que essa harmonia sonhada só fora conseguida
durante um certo momento, rápido fulgor no céu da sua infância,
diminuta fração de tempo em que todos os desacordos haviam se
calado e as estrelas haviam consentido em arder silenciosas e grandes
na abóbada levantada pelo seu entusiasmo. E depois fora tudo um
esfacelamento, os seres se desajustavam nas órbitas sonhadas, Jaques
surgira, correntezas opostas começaram a arrastá-lo, Esperança, Lina,
todo o caos que afinal estabelecia o seu melancólico domínio. Mas há
pessoas que jamais se curam dos seus próprios sonhos: quanto mais
violenta é a queda, mais alto voltam a colocar suas aspirações. Onde
quer que fosse, em que mundo extraordinário e novo penetrasse, Sílvio
carregaria sempre o ideal desse horizonte perdido, desse mundo
perfeito criado à imagem do outro, sem as suas arestas e os seus
abismos. Mas os homens não amam as alturas, e o destino das estrelas
causa-lhes vertigens. Explodiam, tombavam do alto, como se fossem
sopradas por um vento maléfico. E Sílvio se encontrara só, com
imagens que nada mais exprimiam, incapaz de reajustar aqueles
fragmentos, sem poder reconhecer, nesses vultos absorvidos a meio
pela noite do esquecimento, os seres que tanto amara. E um gemido se
elevou do seu coração: que subsiste realmente dessa implacável
destruição que o tempo opera sobre os seres e as coisas que mais
amamos? Que resiste a essa corrupção lenta e invisível, a esse fogo que
não poupa coisa alguma?

Sílvio agitou-se no banco e reabriu os olhos, fitando de novo a


paisagem. O mundo pareceu-lhe de repente mergulhado numa
incurável e mórbida tristeza. As pessoas que o cercavam surgiram ao
seu olhar numa realidade inquieta e profunda, almas ressecadas pela
falta de amor, pela ânsia de prazer e por uma diabólica obstinação no
erro. Ali estava precisamente uma imagem desse mundo devorado
pelo sofrimento e pela vulgaridade: a senhora do fundo ainda lutava
com a criança pálida, descabelada, procurando em vão sufocar o
acesso de tosse que lhe causava a fumaça do charuto do vizinho. Como
ao mesmo tempo procurasse desembaraçar uma pequena mala sob o
banco, Sílvio levantou-se para ajudá-la, sem conseguir reprimir a
densa irritação que se apoderava dele. A mulher agradeceu-lhe no
entanto com um olhar tão úmido e caloroso que ele se sentiu
envergonhado. No momento em que ia se retirar, um gesto menos
hábil da mulher fez a mala rolar e abrir-se no chão, deixando à mostra
uma porção de miudezas, pentes, escovas, meadas de fitas que se
desenrolavam no assoalho sujo do vagão. Sílvio abaixou-se para ajudá-
la, suas mãos se confundiam, enquanto ela ria, procurando se
desculpar. E da mulher se desprendia um cheiro morno e familiar,
uma mistura de suor e sabão barato. Depois de recolocar os objetos na
maleta, agradeceu ao rapaz, voltando suada e vermelha a cuidar da
criança que esperneava.

Sílvio ia voltar ao seu primitivo lugar, quando o trem apitou.


Uma estação devia estar próxima, ele abriu a porta envidraçada e
colocou-se junto à balaustrada. O vento forte agitava-lhe os cabelos. E
realmente um povoado surgiu ao longe, solitário como um pequeno
oásis de luz no deserto da noite dilatada. O trem deteve a marcha e
Sílvio ouviu o guarda-freios que batia nas rodas. Depois de alguns
minutos, a viagem se reiniciava.

Agora voavam de novo em pleno campo. Sílvio reparou que do


outro lado, do ponto onde a noite parecia menos densa, alargava-se
ainda uma enorme réstia vermelha. Sombras espectrais de árvores e
montanhas se recortavam contra esse fundo cor-de-rosa. Durante
algum tempo ele aspirou com força o úmido perfume da campina,
reconhecendo alguns odores que lhe eram bastante conhecidos, odores
que o acompanhavam desde a infância, misteriosos, persistentes,
rebentando inesperadamente de gavetas fechadas, das ervas
umedecidas pela chuva, do ar primaveril onde se diluía a respiração
acre das magnólias. Tudo aquilo lhe fazia lembrar coisas
desaparecidas há muito, imagens que no momento não pareciam
destinadas a permanecer, mas que agora ressurgiam intactas. Revia
Áurea inclinada sobre a grade do jardim — essa grade que estava em
quase todos os seus sonhos, verde-escuro e semi-arruinada, onde se
debruçavam tantos vultos queridos, junto da qual tantos momentos
graves e belos se tinham perpetuado — conversando com Maria
Ernestina que agitava os braços do lado de fora. Falavam a respeito de
flores e esta última mostrava à amiga uma grande orquídea branca que
fora colher no campo. Via Clara também, a tesoura nas mãos, podando
a erva daninha que ameaçava as roseiras. Quantas vezes a vira
cumprindo o rito humilde e familiar? E Jaques também, e Jaques
sobretudo, com essa nítida constância com que costumava vê-lo
ultimamente, sentado à sombra do pé de acácias, trançando no
pescoço o velho xale. E dia a dia não sentia ele se tornarem mais vivos
seus pontos de contatos com o pai, mesmo nas atitudes mais
desprevenidas e nos momentos mais destituídos de importância? Não
sentia hora a hora crescerem essas semelhanças vindas de tão longe?

Mas surgiam outros tempos, um vento escuro e tempestuoso


soprava de longe. Revia Diana, aspirando uma flor no meio da estrada,
o rosto pálido, já devorada por essa sede de viver que ainda a levaria à
destruição. Junto dela, Chico, com seus sapatos brancos, seu ar
esportivo, sua falsa e perigosa mocidade. E mais longe, como um
pálido fantasma emergindo de eras remotas, Lina surgia cravando nele
os olhos interrogativos e admirados. E tudo isto permanecia isolado,
fechado na sua consciência como um terreno autônomo, um bem que
não se perde mais. Onde quer que fosse, sentiria sempre a presença
dessa infância, dessa verde ilha de felicidade, desse terreno que a vida
misteriosamente preservara como um dom da sua natureza.

Mais uma vez o trem apitou, e Sílvio viu uma fieira de luzes que
surgiam na escuridão. Eram os subúrbios do Rio, a viagem se
aproximava do seu término. Qualquer coisa obscura agitou-o, seu
coração pôs-se a bater com pancadas mais fortes, enquanto ele se
debruçava, a fim de ver melhor o lugar a que chegavam agora. Casas se
amontoavam umas sobre as outras e, de vez em quando, no meio das
suas sombrias fachadas apontava a face iluminada de um cinema.
Uma fieira de lâmpadas coloridas balançava-se ao vento. Nas
esquinas, um lampião solitário espalhava uma luz arroxeada. A cada
um desses detalhes, Sílvio murmurava: “É o Rio”, não com o interesse
de quem vê a cidade pela primeira vez, mas como quem descobre
finalmente uma imagem perdida há muito, um rosto esquecido e
apesar de tudo cordial e familiar. Pois era de Diana que ele ainda se
lembrava, não a Diana que deixara em Vila Velha, mas a que perdera
um dia — não a criatura inconseqüente com quem se casara, mas
aquela que vira pela primeira vez no carrossel, sua primeira
namorada. Sim, apesar de tudo, aquela imagem ainda estava viva
dentro dele, viva como no primeiro instante, quando no carrossel ela
inclinara a cabeleira que voava ao vento. Qualquer coisa enorme se
dilatou na sua alma — algo subsistia, uma pequena e sagrada parcela
escapava à fúria da morte. À medida que se aproximava do Rio,
parecia-lhe ouvir de novo a voz da companheira, denunciando na
paisagem desconhecida semelhanças com os lugares outrora tão
amplamente descritos. Era assim que aquela casa de fachada
vermelha, aquele jardim de luzes espaçadas, as chaminés altas e até
mesmo os vultos dos transeuntes, tudo trazia à memória de Sílvio a
imagem de Diana, não uma imagem fragmentada, mas uma criatura
afinal, sem parcelas na sombra, sem fugas, sem mistérios na vida
passada. E, ao penetrar finalmente nesse terreno que lhe fora roubado
durante tanto tempo, sentia a figura ideal levantar-se dos seus
próprios escombros, eterna, inflexível, não mais encarnando o fracasso
de uma união impossível, mas como o símbolo intangível da mulher
que nos foi destinada, que procuramos sempre e não encontramos
nunca. “Não tentei colocar muito alto um ídolo que não merece”,
pensou ele, reportando-se a fatos antigos. “O meu erro foi ter tentado
fazer baixar do alto um ídolo que não pode viver entre os homens.”
Agora, ele a possuía como sempre devia ter sido: uma visão, um sopro
inspirador, alguma coisa de muito puro e frágil, acima de nós mesmos,
dos nossos erros e das nossas paixões, livre da destruição imposta pelo
tempo. Só desse modo a imagem da mulher podia durar em nossa
alma, não visível, presente e mortal às lutas da vida, mas como o
próprio símbolo do amor, alto e melodioso como uma música
sobrenatural.

O trem ainda avançava velozmente, com apitos roucos,


prolongados. Através da porta envidraçada, Sílvio.via as pessoas que
se agitavam no interior do vagão, algumas sobraçando embrulhos e
capotes, outras amolentadas pela viagem e pelo cansaço, preparando-
se devagar para a descida. Entretanto, uma força desconhecida
retinha-o naquela balaustrada, o rosto sujo de carvão, cabelos revoltos,
enquanto a cidade ia crescendo, tomando formas, surgindo inteira aos
seus olhos ávidos.

Uma réstia de campo ainda sobrava no fundo do horizonte — e


no céu já completamente escuro, nítida e solitária, brilhava uma
enorme estrela. Sílvio indagava a si próprio se Diana também não a
tinha visto um dia — e aquela cerca de arame que separava a rua da via
férrea, o viaduto de cimento e a guarida do chefe da estação. Sua
impressão era tão real que ele chegava a ouvir-lhe a voz, dizendo:
“Você nem imagina como lá tudo é bonito!” E tentava descobrir novos
detalhes do panorama, indiferente ao vento e ao carvão, cego pelo
desejo de confrontar o sonho com a realidade. Enquanto o trem
avançava num ímpeto cada vez mais surdo, ele sentia reinstalar-se no
seu íntimo, poderosamente, o mito da sua infância. O Rio, que tanto
odiara, devolvia-lhe afinal a Diana que conhecera nos tempos
passados, uma Diana sem segredos, perfeita nos seus menores
fragmentos, nos detalhes mais íntimos. Era com uma estranha sede
que ele se apossava de tudo aquilo que desconhecera e por cuja razão
tanto sofrera. Dir-se-ia que tentava reter alguma coisa prestes a
desaparecer na correnteza, nessa terrível e insondável correnteza que
nos leva aos poucos tudo o que possuímos, dias, horas, minutos,
desejos, emoções, lembranças e pressentimentos, com a pressa e a
indiferença das águas que arrastam destroços para o tempo remoto,
senhor absoluto de todas as coisas perecíveis deste mundo.

Seria apenas uma ilusão? Sílvio sabia que não podia viver sem
criar dentro de si a imagem de alguns deuses terrenos e insuflar-lhes
alguns sentimentos que julgava imprescindíveis à existência sobre a
terra. Ele sabia disto e tinha a impressão de que alguma coisa se
salvara do imenso naufrágio. Experimentava a si próprio e duvidava
ainda. E, enquanto o trem penetrava ruidosamente na gare cheia de
gente, lançou um derradeiro olhar à estrela que ficava ao longe, alta,
solene, brilhando azul no imenso silêncio da noite. Fazia isto como
quem sonda o futuro, à procura de uma força qualquer que o
auxiliasse a enfrentar o que ainda lhe estava reservado. E
compreendeu que não se enganava e que uma luminosa imagem
existia no fundo da sua alma. Calmo, descia de novo à luta,
procurando preservar dos homens o seu grande segredo.
Table of Contents

1.
DIAS PERDIDOS

2.
Primeira parte

3.
1

4.
2

5.
3
6.
4

7.
5

8.
6

9.
8

10.
9

11.
10

12.
11

13.
12

14.
13

15.
14

16.
15

17.
16

18.
17

19.
Segunda parte

20.
1
21.
2

22.
3

23.
4

24.
5

25.
6

26.
7

27.
8
28.
9

29.
10

30.
11

31.
12

32.
13

33.
14

34.
15

35.
16
36.
17

37.
Terceira parte

38.
1

39.
2

40.
3

41.
4

42.
5
43.
6

44.
7

45.
8

46.
9

47.
10

48.
11

49.
12

50.
13

51.
14

52.
15

53.
16

54.
17

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