Miguel Sousa Ferro, Auxílios de Estado
Miguel Sousa Ferro, Auxílios de Estado
Miguel Sousa Ferro, Auxílios de Estado
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A passagem das Comun idades Eu rope ias à União Europeia e a criação da União o::: l> ALEXANDRA GONÇALVES MARQUES
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PAULO ALVES PARDAL
Económica e Mo netária, mesmo que envo lvendo avanços no domínio po lítico, o::: r5
trad uziram -se, sobret udo, na ampliação da prob lemát ica económ ica . o::: o MIGUEL SOUSA FERRO
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LL g JOSÉ RENATO GONÇALVES
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Neste li vro, des t inado em prime iro lugar aos alunos do segundo ano da licenciatura MIGUEL MOURA E SILVA
em Dire ito, mas que se espera que possa atingir um público bastante mais vasto, ~
o MARCO CAPITÃO FERREIRA
optou -se por uma pr imei ra parte sobre a inte gração europeia, com o o NUNO CUNHA RODRIGUES
desenvo lvimento possíve l para um semestre, à qua l se ju ntaram capítu los sobre as o:::
<{ CLOTILDE CELORICO PALMA
liberdades económicas, a concorrência , os au xílios do Estado, a União Económica ::)
e Monetária, a União Bancária e a Fisca lidade Europeia, bem como , nesta segunda o COLABORADORES
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ed ição, sobre os pri ncíp ios da Un ião, sobre as relações entre o Direito da União e
as ordens juríd icas dos Estados membros e sobre o contencioso da União.
2.ª EDIÇÃO
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livraria.aafdl.pt
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AAIIDI
9 789726 297598 AAIIDI EDITORA EDITORA
\ . 217959379 EDITORA
Eduardo Paz Ferreira
(Coordenador)
Integração
e
Direito Económico Europeu
2.ª edição
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Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer processo eletrónico,
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Excetuam-se as transcrições de curtas passagens para efeitos de apresentação, crítica
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ser interpretada como permitindo a transcrição de textos em recolhas antológicas ou AAIIDI
similares, da qual possa resultar prejuízo para o interesse pela obra. EDITORA
Os infratores são passíveis de procedimento judicial, nos termos da lei. Lisboa/ 2022
Este livro é dedicado ao Professor Doutor
Paulo de Pitta e Cunha, fundador dos
estudos de Direito Europeu em Portugal
e nosso Mestre
Ficha Técnica
Título:
Integração e Direito Económico Europeu
2.ª edição
AAFDL-2022
Coordenador:
Eduardo Paz Ferreira
Colaboradores:
Alexandra Gonçalves Marques, Paulo Alves Pardal, Miguel Sousa Ferro,
José Renato Gonçalves, Miguel Moura e Silva, Marco Capitão Ferreira,
Nuno Cunha Rodrigues, Clotilde Celorico Palma
Edição:
AAFDL
Alameda da Universidade - 1649-014 Lisboa
Impressão:
AAFDL
ISBN:
978-972-629-759-8
Depósito Legal:
496405/22
março / 2022
MIGUEL MOURA E SILVA
IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
406 138 Acórdão TJ, 19.3.1992, C-202/88, França e. Comissão , EU:C:1991 :120.
407
IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
IX.1. Introdução
onde as mercadorias deveriam circular livremente, sem entraves. Mas sobre o facto de que a existência destas normas não era (e não é) uma
a criação desse mercado comum trazia muitas dificuldades, entre elas necessidade evidente. Com efeito, as mesmas dificuldades e desafios
a necessidade de garantir que os Estados e as outras entidades públicas que acabámos de referir existem no interior de qualquer mercado nacional.
não dariam vantagens às suas empresas nacionais, para lhes dar uma Uma região autónoma espanhola dá vantagens a algumas empresas que
, vantagem na concorrência contra as empresas dos outros Estados. aí se sediam, e estas concorrem sem obstáculos com as empresas das
Há uma natural tendência dos países de tentaram favorecer as suas outras regiões espanholas. Muitos municípios portugueses oferecem
empresas na concorrência com as de outros Estados. Normalmente , incentivos ao estabelecimento de algumas empresas. Um estado federado
estas práticas podem ser combatidas com práticas semelhantes dos da Alemanha ou dos Estados Unidos da América faz o mesmo. E, no
outros países, com barreiras alfandegárias, etc. 3 Mas se uma empresa entanto, não existem normas idênticas de controlo dos auxílios por
francesa pode colocar os seus produtos na Alemanha sem lhe poderem entidades públicas, a nível nacional, em qualquer outra comunidade
ser colocados quaisquer obstáculos quantitativos, qualitativos ou custos política do mundo (ou existem apenas de modo bastante rudimentar).
adicionais, a atribuição de um auxílio a essa empresa pelo Estado francês Qual o motivo para esta originalidade europeia? Não é possível fornecer
é injusta para as empresas alemãs concorrentes que não recebam auxílios uma resposta única e incontroversa, mas esta terá, seguramente, de
idênticos. Se se tivesse criado o mercado comum sem regular a atribuição passar pelo facto de estas regras terem surgido como moeda de troca
de auxílios de Estado, ter-se-ia arriscado o chamado "efeito Delaware ", para a aceitação política da criação de um mercado unificado, ao passo
uma "corrida para o fundo" ( "race to the bottom "), em que todos os que nas outras comunidades políticas a existência do mercado unificado
Estados se veriam forçados a replicar os auxílios atribuídos pelos era (mais ou menos) um dado adquirido.
restantes, sob pena de verem as suas empresas perderem no jogo da O direito europeu dos auxílios de Estado pode ser visto, portanto, como
concorrência. Esta situação seria prejudicial para todos. um instrumento do processo de construção do mercado interno. Mas é,
Para tentar impedir este resultado, o Tratado sobre o Funcionamento ao mesmo tempo, inevitavelmente, um instrumento que permite o
da União Europeia (TFUE), bem como o direito europeu secundário controlo da despesa pública, suscitando complexas questões políticas
que o implementa, criou um sistema de controlo supranacional da sobre a perda de soberania e a extensão do poder que se coloca na esfera
atribuição de vantagens financeiras a empresas por entidades públicas, da Comissão Europeia.
colocando o poder da sua implementação nas mãos da Comissão Europeia. Convém também ter presente, desde já, que a existência do regime
Mas, antes de prosseguirmos na análise desse regime, convém refletir europeu dos auxílios de Estado não garante (nem visa garantir) a completa
ausência de distorções concorrenciais no mercado único causadas pelo
3
O direito económico internacional (da Organização Mundial do Comércio) também
comportamento dos Estados-membros. Acima de tudo, como os poderes
regula a atribuição de auxílios de Estado, como modo de garantia do funcionamento da União Europeia no domínio fiscal são muito limitados, e a sua har-
do sistema de comércio livre, mas em termos diferentes. Para uma análise desta monização das políticas fiscais dos Estados extremamente reduzida, os
matéria, ver, e.g.: HERNÁNDEZ DE MADRID, G. L., Regulation of Subsidies and
State Aids in WTO and EC Law - Conjlicts in International Trade, Kluwer Law
Estados continuam a concorrer entre si a este nível, até um certo ponto,
Intemational, 2007; RUBINI, Luca, The definition and subsidy and state aid- WTO para atrair empresas para o seu território. O beneficio de condições
and EC Law in Comparative Perspective, Oxford University Press, 2009; FARINHA fiscais mais favoráveis que noutros países cria, obviamente, uma distorção
E FARIA, Tânia, Regulação das subvenções no âmbito da OMC e auxílios de Estado
no direito comunitário: estudo comparativo, Faculdade de Direito da Universidade
concorrencial, mas esta não é controlável por via das normas dos auxílios
410 de Lisboa, 2010. de Estado (desde que os benefícios sejam de âmbito geral). 411
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
O regime dos auxílios de Estado diferencia-se ainda dos outros dois ramos O direito primário é, acima de tudo, os artigos 107.º a 109.º do TFUE 5 •
do direito da concorrência por ter uma componente política mais acentuada o direito secundário divide-se em diplomas de direito substantivos e
e implicar um maior grau de insegurança jurídica. Com efeito, tanto ao de direito processual. Aqueles esclarecem os requisitos para a qualificação
nível da determinação da existência de um auxílio de Estado, como ao de medidas como auxílios de Estado, definem condições da sua legalidade,
nível do preenchimento dos requisitos para autorização de um auxílio, a etc. Já os diplomas processuais regulam o modo de notificação, avaliação
Comissão Europeia tem uma margem de discricionaridade significativamente e autorização de auxílios, os formulários a serem utilizados, a intervenção
mais ampla do que nas práticas restritivas ou no controlo de concentrações. de terceiros, etc.
Sem prejuízo do importante papel que tem vindo a ser desempanhado pelo Devido à supra referida grande margem de discricionariedade da
TJUE na integração de lacunas, aquela margem de discricionariedade está Comissão Europeia, os documentos de soft-law da Comissão ganham
sujeita a um controlo judicial muito limitado (erro manifesto de apreciação). uma especial importância no âmbito dos auxílios de Estado. Na prática,
Em consequência, os juristas que aconselhem um Estado-membro, ou um estes documentos acabam, muitas vezes, por definir parâmetros normativos
potencial beneficiário de auxílio de Estado, vêm-se, muito frequentemente, que têm de ser respeitados pelos sujeitos de direito (no mínimo, pela
colocados na posição de terem de responder que a solução "depende", e própria Comissão, por via do princípio da auto-vinculação administrativa),
a aconselhar o recurso aos contactos políticos com a Comissão Europeia. na medida em que a sua definição não exceda aquela margem de dis-
As secções que seguem são uma mera introdução, muito abreviada, ao cricionariedade do executivo europeu.
direito dos auxílios de Estado, que visa apenas ser um ponto de partida
para o estudo. Basta constatar que só as fontes de direito secundário e IX.3. Conceito de auxílios de Estado abrangidos pelo artigo 107. º(1)
de soft-law somam centenas de páginas para se concluir que este capítulo
fornecerá, forçosamente, uma visão muito superficial e incompleta da IX.3.1. Introdução
complexidade deste ramo do direito da concorrência.
Nos termos do artigo 107.º(1) do TFUE, "são incompatíveis com o
IX.2. Fontes do direito mercado interno, na medida em que afetem as trocas comerciais entre
os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes
O direito dos auxílios de Estado encontra-se consagrado em fontes de de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que
direito primário e secundário europeu\ bem como em documentos de falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas
soft-law da Comissão Europeia. ou certas produções".
Assim, para que urna medida pública seja considerada um auxílio de
4
Os diplomas e documentos referidos ao longo deste capítulo não serão, de modo Estado proibido (em princípio) pelo Tratado, devem estar reunidas as
algum, exaustivos. A seleção de diplomas foi feita estritamente para efeitos de estudo seguintes condições curnulativas 6 :
académico, com base nos textos mais relevantes e em exemplos de disposições
processuais e setoriais. O direito secundário é frequentemente revisto, pelo que se 5 Há outras normas dos Tratados relevantes, maxime: artigo 3. 0 do TUE; artigos 3.º a
deve sempre verificar que os diplomas referidos ao longo deste capítulo ainda se 6.º, 14.º, 42.º, 93.º, 106.º, 119.º e 346.º do TFUE.
encontram em vigor e que ainda não sofreram alterações não indicadas. Está disponível 6 Para análises destes requisitos, ver, e.g.: Comunicação da Comissão sobre a noção
uma lista completa e permanentemente atualizada das fontes de direito na página de de auxílio estatal nos termos do artigo 107.º, n.º 1, do TFUE (JO C 262/1, 19/07/2016);
intemet da Comissão Europeia: http://ec.europa.eu/competition/state_ aid/legislation/ PIERNAS LÓPEZ, Juan Jorge, The Concept of State Aid under EU Law, Oxford
412 legislation.html. 413
University Press, 2015 .
MIGUEL SOUSA FERRO IX . AUXÍLIOS DE ESTADO
(i) deve existir um auxílio, por qualquer forma, i.e., deve ser apenas prestações positivas, como subvenções, empréstimos ou tomadas
atribuída uma vantagem; de participação no capital de empresas, mas também intervenções que,
(ii) essa vantagem deve ter origem estatal; sob formas diversas, aliviam os encargos que normalmente oneram o
(iii) deve ser seletiva (pois só assim é suscetível de distorcer a con- orçamento de uma empresa, pelo que, não sendo subvenções na aceção
corrência); estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos" (incluindo
(iv) deve ser atribuída a uma empresa (ou produções); vantagens indiretas tais como "o fornecimento de bens ou serviços em
(v) deve falsear ou ameaçar distorcer a concorrência e afetar as condições preferenciais")9 •
trocas entre Estados-membros; A intenção por detrás da medida é irrelevante, releva apenas o seu efeito
ou potencial efeito 10 •
Nas secções seguintes, analisaremos, um por um, estes requisitos. A atribuição de uma beneficio para restabelecer a legalidade (e.g., res-
ponsabilidade extracontratual do Estado, devolução de impostos
IX.3.2. Vantagem ilegalmente cobrados, etc.) não é uma "vantagem", desde que esse
beneficio respeite o princípio da proporcionalidade 11 e a legalidade
No sentido do artigo 107. º( 1) do TFUE, um "auxílio" é qualquer medida reposta não seja contrária ao direito europeu 12 •
que confira uma vantagem, ou beneficio ou utilidade económica. Nas As vantagens podem ser concedidas indiretamente (ou serem uma
palavras do TJUE: "para apreciar se uma medida estatal constitui um vantagem direta para uma empresa e, em simultâneo, uma vantagem
auxilio, na aceção do artigo [ 107. º] do Tratado, deve determinar-se se indireta para outra). Em certas condições de facto ou de jure (sendo
a empresa beneficiária recebe uma vantagem económica que não teria
obtido em condições normais de mercado "7 . 9 Acórdão do TJUE de 20 de novembro de 2003, GEMO (C-126/01 ), ECLI:EU:C:2003 :622,
§§38-39 . Neste caso, por exemplo, a prestação gratuita pelas autori~ades públicas do
Caracteristicamente avesso ao formalismo e assente na abordagem fim- serviço de recolha e eliminação de cadáveres de animais e desperdícios de matadouros
cionalista, não interessa ao direito europeu a forma nem a configuração foi considerada uma "vantagem".
exata do auxílio. O que importa é que o seu beneficiário fique, direta 10 Acórdão do TGUE de 27 de janeiro de 1998, Ladbroke Racing (T-67 /94 ),
ECLl:EU:T: 1998:7, §52: o artigo 107.º(1) "não faz a distinção segundo as causas ou
ou indiretamente, numa posição económica melhor do que aquela em
os objetivos das intervenções estatais, mas define-as em função dos seus efeitos( ... ).
estaria na ausência dessa medida, por esta aumentar a utilidade económica Daqui resulta que o conceito de auxílio é um conceito objetivo e função da mera
na sua esfera patrimonial ou por diminuir a desutilidade (custos decorrentes questão de saber se uma medida estatal confere ou não um beneficio a uma ou a c~~~s
empresas". A mesma lógica implica que seja também irrelevante s_e o ?~nefic1ano
da atividade económica ou da sua regulação), por comparação à situação
solicitou ou aceitou voluntariamente o auxílio ou se este era obngatono - cfr. :
que se verificaria na ausência da medida pública em cimsa8 . Comunicação sobre noção de auxílio estatal, cit., §67 in fine.
Num resumo jurisprudencial, "o conceito de auxílio pode abarcar não 11 A título de exemplo, uma indemnização por expropriação não será, em princípio,
um auxílio, mas pode sê-lo se a indemnização for superior ao valor de mercado.
7
Acórdão do TJUE de 29 de abril de 2009, Espanha v. Comissão (C-342/96), 12 Um Estado não pode atribuir uma compensação por responsabilidade extracontratual
ECLI:EU:C:1999:210, §41. do Estado à empresa que foi condenada a devolver um auxílio de Estado ilegal. Como
8
Acórdão do TJUE de 24 de julho de 2003, Altmark (C-280/00), ECLI:EU:C:2003 :415, a concessão do auxílio foi ilegal, a empresa não tem direito a ser indemmzada. Uma
§84: "são considerados auxílios as intervenções que, independentemente da forma compensação atribuída por um tribunal em violação desta norma é um auxíl~o de
que assumam, sejam suscetíveis de favorecer direta ou indiretamente empresas( ...) Estado ilegal. Cfr.: SANTOS CONDE, Edmilson Wagner dos, "Poderão as decisões
ou que devam ser considerados urna vantagem económica que a empresa beneficiária dos órgãos jurisdicionais que atribuam indemnizações constituir auxílios de Estado?",
414 não teria obtido em condições normais de mercado". 27-28 (2016) Revista de Concorrência e Regulação. 415
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
identificável uma ligação estreita e específica), um beneficio atribuído (com operações privadas em contextos comparáveis) ou por outros
a consumidores finais pode ser um mecanismo disfarçado de beneficio métodos adequados, baseados em dados fiáveis, verificáveis e objetivos
à empresa cujos produtos ou serviços estes consomem 13 . (análises contabilísticas, avaliações independentes, análise contrafactual,
Frequentemente decisivo na identificação de uma vantagem é o "critério etc.).
do operador numa economia de mercado". Não há beneficio se a in- A Comissão adotou orientações sobre a aferição do respeito pelas
teração entre o Estado e a empresa (e.g., a compra ou venda de um condições de mercado em casos específicos, como na prestação de
imóvel, a compra de ações, a injeção de capital por um acionista, a garantias ou na venda de imóveis 15 •
prestação de um empréstimo ou garantia ou sua renegociação, etc.), o que sucede se o Estado impõe uma obrigação a uma determinada en-
ocorreu nos termos que se teriam verificado num mercado livre, aferido tidade, por a considerar necessária para garantir um interesse coletivo
em função da informação disponível no momento da transação. Nas (e.g., fornecer correio porta a porta, mesmo onde essa atividade não é
palavras do TJUE: "Para apreciar se uma medida estatal constitui um lucrativa)? Nesses casos, por força do direito constitucional, o Estado
auxílio, há ( ... ) que que determinar se a empresa beneficiária recebe tem de indemnizar as pessoas encarregues dessas missões. Será tal in-
uma vantagem económica que não teria obtido em condições normais demnização uma vantagem, para este efeito?
de mercado", sendo para tanto necessário "determinar a remuneração A questão foi e continua a ser complexa, jurídica e politicamente. Se a
normal das prestações em causa", com base numa "análise económica compensação por um serviço de interesse económico geral (SIEG)
que tenha em conta todos os fatores que uma empresa, que atua em for um auxílio, a Comissão Europeia terá o poder de controlar, em certo
condições normais de mercado, deveria ter tido em consideração ao grau, opções fundamentais dos Estados-membros sobre como organizar
fixar a remuneração " 14 . Cabe ao Estado o ónus da prova do respeito a atividade económica e o acesso a bens e serviços pelos seus cidadãos.
por este critério. Mas uma abordagem demasiado permissiva permitiria aos EMs invocarem
De modo geral, se a troca tiver ocorrido na sequência de um concurso a compensação de SIEGs como forma fácil de escapar às regras dos
competitivo, transparente, não discriminatório e incondicional, ou se auxílios de Estado, distorcer a concorrência no mercado interno e
intervierem nela entidades públicas e operadores privados pari passu privilegiar determinadas empresas (até porque a definição do que constitui
(ou seja, nos mesmos termos e condições), pode-se assumir que a um SIEG é, predominantemente, uma opção nacional).
transação ocorreu de acordo com a lógica de um operador numa economia O ponto de partida intuitivo era dizer que uma compensação que não
de mercado. Se assim não tiver sido, terá de se aferir o respeito por este fosse para além dos custos estritamente decorrentes do cumprimento
critério com base numa ou mais metodologias: por avaliação comparativa do SIEG não deveria ser considerada como uma "vantagem" ( só seres-
tabelecendo a situação económica que teria existido na ausência das
13
No Acórdão do TJUE de 28 de julho de 2011, Mediaset SpA (C-403/10 P), obrigações de serviço público) 16 . Mas cedo a realidade mostrou que
ECLI:EU:C:2011:533, o Tribunal confirmou uma situação em que um auxílio dado
pelo Estado aos telespetadores de televisão digital terrestre (para facilitar a compra 15 Cfr.: Comunicação da Comissão relativa à aplicação dos artigos 87.º e 88.º do
de descodificadores) funcionava como uma vantagem para a empresa que fornecia Tratado CE aos auxílios estatais sob forma de garantias (JO C 155/10, 20/06/2008);
serviços de TDT na área geográfica relevante. Comunicação da Comissão no que respeita a auxílios estatais no âmbito da venda de
14
Acórdão do TJUE de 11 de julho de 1996, SFEJ (C-39/94), ECLI:EU:C: 1996:285, terrenos e imóveis públicos (JO C 209/3, 10/07/1997).
§§60-61. Sobre o problema específico da identificação de vantagens no contexto da 16 Era jurisprudência assente, reafirmada no Acórdão Altmark, cit., §87, que: "na
contratação púbica, ver: AMARO, Alexandra, "Auxílios de Estado e contratos públicos: medida em que uma intervenção estatal deva ser considerada uma compensação que
416 Os limites do concurso", 11-12 (2012) Revista de Concorrência e Regulação. representa a contrapartida das prestações efetuadas pelas empresas beneficiárias para 417
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
esta abordagem era demasiado simplista para evitar abusos e garantir serviço público requeridas, teria suportado para cumprir estas
segurança jurídica. Finalmente, no famoso acórdão Altmark, o TJUE obrigações, tendo em conta as respetivas receitas assim como
17
fixou quatro requisitos cumulativos que devem estar preenchidos para um lucro razoável relativo à execução destas obrigações" •
que uma compensação por obrigações de serviço público não seja qua-
lificada como um auxílio estatal (não tendo de ser notificada e autorizada A Comissão detalhou, posteriormente, a sua abordagem à aplicação
pela Comissão Europeia): destes requisitos 18 •
(i) "a empresa beneficiária deve efetivamente ser incumbida do IX.3.3. Origem estatal
cumprimento de obrigações de serviço público e essas obrigações
devem estar claramente definidas"; Como vimos, o artigo 107.º( 1) do TFUE refere-se aos "auxílios concedidos
(ii) "os parâmetros com base nos quais será calculada a compensação pelos Estados ou provenientes de recursos estatais". No entanto, a ju-
devem ser previamente estabelecidos de forma objetiva e trans- risprudência do TJUE transformou este critério alternativo num critério
parente, a fim de evitar que aquela implique uma vantagem eco- cumulativo, afirmando: "para que as vantagens possam ser qualificadas
nómica suscetível de favorecer a empresa beneficiária em relação de auxílios na acepção do artigo [107.º(1) TFUE], devem,porum lado,
19
a empresas concorrentes" (pelo que retificações indernnizatórias ser concedidas direta ou indiretamente através de recursos estatais " •
a posteriori não caem no âmbito desta jurisprudência); É necessário que resulte da medida um encargo (positivo ou negativo)
(iii) "a compensação não pode ultrapassar o que é necessário para para o Estado20 •
cobrir total ou parcialmente os custos ocasionados pelo cum- Os fundamentos desta interpretação manifestamente contrária ao sentido
primento das obrigações de serviço público, tendo em conta as literal do texto prenderam-se com a compreensão de que a alternatividade
receitas obtidas, assim como um lucro razoável pela execução dos critérios traria para o âmbito do regime europeu de controlo de
destas obrigações"; e auxílios de Estado toda e qualquer regulação económica nacional que
(iv) "quando a escolha da empresa a encarregar do cumprimento aumentasse receitas ou reduzisse custos das empresas, mesmo que a
de obrigações de serviço público, num caso concreto, não seja
efetuada através de um processo de concurso público que permita 17 Acórdão Altmark, cit. , §§89-93. Foi também muito importante na gestão das
selecionar o candidato capaz de fornecer esses serviços ao dificuldades nesta área a criação de regras de transparência contabilística para o setor
empresarial público, para facilitar a identificação de transferências financeiras públicas
menor custo para a coletividade, o nível da compensação ne-
- ver: Diretiva 2006/111 /CE da Comissão, de 16 de novembro 2006, relativa à trans-
cessária deve ser determinado com base numa análise dos custos parência das relações financeiras entre os Estados-Membros e as empresas públicas,
que uma empresa média, bem gerida e adequadamente equipada bem como à transparência financeira relativamente a certas empresas (JO L 318/ 17,
em meios de transporte para poder satisfazer as exigências de l 7/11/2006).
18 Cfr.: Comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras em matéria de
tem por efeito colocar essas empresas numa posição concorrencial mais favorável em ECLI:EU:C:2002:294, §23.
relação às empresas que lhes fazem concorrência, essa intervenção não cai sob a 2º Acórdão do TJUE de 19 de março de 2013, Bouygues (C-399/10 P e C-401/10 P),
soberania para regular essas matérias não tivesse sido transferida ou Quanto à utilização de recursos estatais, deve estar em causa a trans-
não tivesse ainda sido exercida pela UE. Assim, por exemplo, poderiam ferência de recursos ou a abdicação de receitas de qualquer entidade
ter de ser qualificadas como auxílios de Estado a regulação de preços, do Estado (ou conjunto de Estados) no sentido lato acima referido
a atribuição de direitos exclusivos, a regulação de condições laborais (Governo, região, autarquia, banco central, regulador independente ... )
e outras medidas inseridas no âmbito de políticas sociais, de segurança
' ou de empresas públicas (controladas pelo Estado24). Os fundos europeus
social, etc. Neste sentido, esta jurisprudência é um exemplo de interpretação também são considerados recursos estatais na estrita medida em que
restritiva da esfera de competências da UE. Esta posição teve depois a sua atribuição tenha sido decidida por um EM no exercício da sua
de ser clarificada em termos que impedissem um efeito excessivamente margem de discricionariedade.
restritivo do âmbito do artigo 107.º TFUE. Mas este requisito também é considerado preenchido no caso de me-
Um auxílio é imputável ao Estado (lato sensu) se for adotado por canismos indiretos de financiamento público, desde que, antes da trans-
qualquer autoridade pública21 , ainda que descentralizada ou descon- ferência direta ou indireta para o beneficiário, os recursos sejam colocados
25
centrada, ainda que com autonomia jurídica ou independência. Mas sob controlo público (não necessariamente propriedade pública) • É o
também lhe pode ser imputável, em certos casos, quando é atribuído caso da imposição de taxas ou pagamentos a consumidores ou empresas,
por urna empresa pública ou até por urna entidade privada. Com efeito, canalizados através de uma entidade (que até pode ser privada) para
"não há que distinguir entre os casos em que o auxílio é concedido benefício de urna empresa determinado pelo Estado.
diretamente pelo Estado e aqueles em que o auxílio é concedido por É frequentemente difícil identificar a fronteira precisa entre os mecanismos
organismos públicos ou privados que o Estado institui ou designa que utilizam recursos estatais ou não, sendo inegável a abertura da porta
para gerir o auxílio (... ). [O] direito comunitário não pode admitir a alguns mecanismos de beneficiação de empresas através de decisões
que o simples facto de criar instituições autónomas encarregadas da públicas que favorecem certas empresas, corno se evidenciou no caso
distribuição dos auxílios permita contornar as regras relativas aos PreussenElektra26 •
auxílios de Estado "22 . 24 Potencialmente, mesmo em casos de transferências financeiras intra-grupo (no
No caso de empresas públicas, o comportamento não é sempre imputável interior da mesma unidade económica).
2s Cfr., e.g., Acórdão do TJUE de 16 de maio de 2002, França c. Comissão (C-482/99),
ao Estado, tem de haver um exercício específico de controlo no caso
ECLI:EU :C:2002:294, §37: "o mtigo [l 07 .º( 1) TFUE] abrange todos os meios pecuniários
concreto. Mas também não se pode exigir a prova de instruções específicas que as autoridades públicas podem efectivamente utilizar para apoiar empresas, não
do Estado à empresa, porque seria quase sempre urna prova diabólica sendo relevante que esses meios pertençam ou não de modo permanente ao património
do Estado. Consequentemente, mesmo se as quantias correspondentes à medida em
e faria com que fosse muito fácil contornar o artigo 107.º, bastam indícios
causa não se encontrarem de modo permanente na posse do Tesouro Público, o facto
associados às circunstâncias e contexto do caso concrefo 23 . de estarem constantemente sob controlo público, e portanto à disposição das autoridades
nacionais competentes, é suficiente para que sejam qualificadas de recursos estatais".
21
Excluindo-se os casos em que a atribuição da vantagem resulta, estritamente (sem 26 Não há recursos estatais num esquema em que o Estado obriga fornecedores privados
margem de discricionariedade ), do cumprimento de uma obrigação do Estado imposta de eletricidade a comprar electricidade a produtores que utilizam energias renováveis,
pelo ordenamento europeu (cfr., e.g., Acórdão do TJUE de 23 de abril de 2009, Puffer com certos preços mínimos. Mas já são recursos estatais se os mesmos recursos forem
(C-460/07), ECLI:EU:C:2009:254, §70). primeiro concentrados numa entidade pública ou privada designada pelo Estado para
22
Acórdão do TJUE de 16 de maio de 2002, França e. Comissão (C-482/99), os gerir em prol de certos beneficiários. Contraste-se o Acórdão do TJUE de 13
ECLI:EU:C:2002:294, §23. de março de 2001, PreussenElektra (C-378/99), ECLI:EU:C:2001:160, com o
23
Acórdão do TJUE de 16 de maio de 2002, França e. Comissão (C-482/99), Acórdão do TJUE de 17 de julho de 2008, Essent Netwerk Noord (C-206/06),
420 421
ECLI:EU:C:2002:294, §§52-57. ECLI:EU:C:2008:413.
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AU XÍLIOS DE ESTADO
O direito dos auxílios de Estado visa impedir distorções da concorrência Só são proibidos os auxílios de Estado que favoreçam "certas empresas
nos mercados, portanto só se preocupa com beneficios atribuídos a entidades ou certas produções". O mesmo é dizer que os auxílios têm de ser se-
que concorrem em mercados, ou seja, a "empresas", tal como definidas letivos28 . Se beneficiarem (ou puderem beneficiar), de jure e de facto,
no direito da concorrência europeu (sem especialidades relativamente ao todos os agentes no mercado, então não são suscetíveis de distorcer a
mesmo conceito na área das práticas restritivas e do controlo de concentrações). concorrência e não suscitam preocupações na ótica do funcionamento
É jurisprudência assente que é uma "empresa" qualquer entidade que do mercado interno: são medidas gerais. Mas se beneficiarem só algumas
desenvolva uma atividade económica, independentemente do seu estatuto empresas, alguns setores económicos ou (por vezes) algumas regiões,
jurídico e do modo como seja financiada27 . Isto abrange qualquer entidade os auxílios são seletivos.
que ofereça bens/serviços num mercado (em que exista ou possa Uma medida é seletiva de jure se resultar da sua configuração formal
potencialmente existir concorrência, no Estado-membro em causa). que só algumas empresas/setores têm acesso a esses beneficios. A se-
Podem ser empresas, inter alia: associações sem fins lucrativos, pro- letividade de facto resulta da análise das consequências factuais da
fissionais liberais, entidades da administração pública, etc. É um conceito medida, identificando-se, na prática, um beneficio significativo de um
funcional, o que significa que a mesma entidade pode ser empresa para determinado grupo de agentes económicos (e.g., beneficios fiscais para
umas coisas (quando atua no âmbito de uma atividade económica) e quem faça grandes investimentos estão de jure disponíveis para todos,
não o ser para outras. mas estão de facto disponíveis apenas para empresas com avultados re-
Paradigmaticamente, sempre que uma entidade atuar ao abrigo de poderes cursos financeiros). Também pode resultar da atribuição de ampla
de autoridade, não será uma "empresa" (nesse âmbito, sem prejuízo da margem discricionária às entidades que atribuem os beneficios (para
possibilidade de autonomização de atividades económicas), assim se além da aplicação de critérios objetivos, não discriminatórias e previamente
excluindo, por exemplo, atividades de forças de segurança, do sistema conhecidos).
nacional de saúde, das agências de controlo de tráfego aéreo/marítimo, Este critério revela-se, frequentemente, muito complexo e de dificil
etc. aplicação. A leitura atenta do artigo 107.º(l) TFUE permite verificar
Há jurisprudência muito extensa que delimita a fronteira entre as que não são proibidas todas as vantagens atribuídas por Estados que
atividades económicas e não económicas de sistemas de segurança distorçam a concorrência. Apenas são proibidas as que favoreçam certas
social, cuidados de saúde, serviços de educação e culturais, etc. A título empresas/setores, o que significa que os EMs podem distorcer a con-
de exemplo, um sistema de segurança social que não seja obrigatório, corrência, desde que o façam através de medidas gerais. Ou seja, muitas
assente no princípio da capitalização, tenha uma natureza lucrativa e medidas estatais (de natureza fiscal, segurança social, etc.) favorecem
implique o pagamento de prestações complementares dos direitos de- um universo seleto de pessoas e, no entanto, não são consideradas "se-
correntes de um regime básico, será normalmente considerado uma ati- letivas", porque decorrem da aplicação dos objetivos intrínsecos ao
vidade económica.
28Para uma análise específica desta questão na doutrina portuguesa, ver: CRUZ
VILAÇA, José Luís da, "Seletividade e afetação da concorrência em matéria de
27Cfr., e.g., Acórdão do TJUE de 1Ode janeiro de 2006, Cassa di Risparmio di Firenze auxílios do estado", in Estudos em homenagem ao Prof Sérvulo Correia, Vol. 3,
422 (C-222/04), ECLI:EU:C:2006:8, §107. Coimbra Editora, 2011. 423
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
sistema. Isto leva a três principais dificuldades: identificar corretamente via de regra, é seletiva a medida que só se aplique a uma parte do
o sistema de referência (de base), relativamente ao qual se compara a território de um Estado-membro. Assim será sempre que a medida for
medida em causa (e.g. o regime de tributação de sociedades); identificar adotada por uma autoridade pública central (nacional). Mas se a medida
o espírito e objetivos intrínsecos ao sistema; identificar situações de be- é tomada por uma autoridade infranacional, no quadro de poderes des-
neficias seletivos disfarçados, baseados em critérios tendenciosos que concentrados, a sua seletividade só pode ser aferida em relação ao quadro
só em aparência seguem a lógica do sistema. de referência aplicável nessa área infranacionaP 1•
Uma medida geral não deixa, necessariamente, de o ser só por ser uma
exceção relativamente a uma regra geral e se aplicar apenas a um de- IX.3.6. Distorção da concorrência entre os Estados-membros
terminado setor ou grupo de empresas. Pense-se no caso da tributação
fiscal acentuada para atividades com efeitos mais adversos sobre o am- O artigo 107.º(1) TFUE só proíbe os auxílios de Estado "que afetem
biente: trata-se aqui da promoção de um objetivo geral integrado na as trocas comerciais entre os Estados-Membros" e "que falseiem ou
lógica do sistema, sendo que o tratamento diferente destas situações di- ameacem falsear a concorrência". Embora conceptualmente diferentes,
2
ferentes, na medida dessa diferença, não constituirá um auxílio seletivo29 . estes dois requisitos tendem a ser analisados de modo indissociáveP •
Tipicamente, não são seletivos os beneficias que resultam da estrita É jurisprudência constante que há um efeito distorcivo da concorrência
aplicação de características do sistema tais como a natureza progressiva "quando um auxílio financeiro concedido por um Estado ou através de
e objetivos redistributivos do imposto sobre o rendimento, ou o combate receitas de Estado reforça a posição de uma empresa relativamente a
33
à fraude e evasão fiscal, desde que se garanta a coerência sistemática. outras empresas concorrentes nas trocas comerciais intracomunitárias" •
Um problema especial na aplicação deste requisito, e para o qual Portugal Trata-se de um teste funcional e muito pouco exigente.
(através dos Açores) contribuiu decisivamente para esclarecer, é o da Se o auxílio for prestado a uma empresa que atua num monopólio legal
identificação de seletividade no caso de medidas adotadas por autoridades - estabelecido legitimamente, sem concorrência no mercado nem pelo
regionais (ou Estados federados) no exercício da sua autonomia30 . Por mercado (e.g. concursos periódicos para concessão) e sem sucenadeidade
próxima com outros bens/serviços - não pode haver impacto distorcivo
29
Cfr., e.g., o Acórdão do TJUE de 8 de setembro de 2011 , Paint Graphos (C-78/08 da concorrência nesse mercado. Ainda assim, pode haver um efeito
a C-80/08), ECLI:EU:C:2011 :550, §69: "uma medida que constitui uma exceção à
aplicação do sistema fiscal geral pode ser justificada se esta medida resultar diretamente distorcivo reflexo noutros mercados, se essa empresa estiver ativas em
dos princípios fundadores ou diretores do referido sistema fiscal. A este respeito, deve mercados concorrenciais, pelo que tem de se garantir a ausência de
fazer-se uma distinção entre, por um lado, os objetivos de um dado regime fiscal, que
lhe são exteriores, e, por outro, os mecanismos inerentes ao próprio sistema fiscal, 31 O supra referido caso português esclareceu que, nos países com desconcentração
que são necessários para a realização de tais objectivos". assimétrica de poderes fiscais (como é o caso de Portugal, com as suas duas regiões
30 Veja-se o famoso Acórdão do TJUE de 6 de setembro de 2006, Portugal c. Comissão autónomas), a seletividade geográfica da medida dependerá do grau de autonomia da
(C-88/03), ECLI:EU:C :2006:511. Sobre esta temática, na doutrina nacional, ver: autoridade regional relativamente à administração central (tem de se verificar autonomia
CRUZ VILAÇA, José Luís da, "Fiscalidade e auxílios de Estado: quando é que um institucional, processual e económica e financeira) . Um Estado-membro não pode ser
regime fiscal adotado por uma autoridade regional deixa de ser seletivo?: o caso dos prejudicado na aplicação do regime europeu dos auxílios de Estado pelo facto de se
Açores"; e PEREIRA, Liliana Ivone da Silva, "As medidas fiscais seletivas e o regime ter legitimamente organizado, a nível constitucional, com regionalização parcial.
dos auxílios de Estado na União Europeia: selectividade regional e capacidade fiscal 32 Acórdão do TGUE de 15 de junho de 2000, Alzetta Mauro (T-298/97 etc.),
dos entes infraestatais no «caso Açores»", ambos in Estudos em homenagem ao ECLI:EU:T:2000:151, §81.
Professor Doutor Alberto Xavier: economia,finanças públicas e direito fiscal, Almedina, 33 Acórdão do TJUE de 17 de setembro de 1980, Philip Morris (730/79),
subsidiação cruzada entre as atividades. O efeito pode ser direto ou desde que seja logo calculável com precisão (transparente) e não esteja
indireto, atual ou potencial, o que significa, inter alia, que não é sujeito a qualquer condição de quantidades mínimas de exportações ou
necessário que exista, de facto, concorrência no mercado afetado, basta de aquisição de produtos nacionais, e sem prejuizo das obrigações de
que se verifique concorrência potencial (e.g., um auxílio pode contribuir registo e monitorização 35 •
para dificultar a entrada de concorrentes).
O impacto nas trocas entre Estados-membros também pode ser meramente IX.4. Auxílios compatíveis com o Tratado
potencial (desde que previsível) e verificar-se em mercados onde as
trocas até então são exclusivamente entre pessoas desse EM. Ou seja, IX.4.1. Introdução
não é necessário demonstrar efetivas importações/exportações, ou a
presença de concorrentes de outros EMs, apenas essa potencialidade Mesmo que uma medida seja qualificada como auxílio de Estado e preencha
(e.g. entrada de um concorrente estrangeiro). Normalmente, os apoios todos os requisitos do artigo 107 .º(1) TFUE, tal não significa que ela seja,
com efeitos em mercados de âmbito local não terão efeitos nas trocas necessariamente, incompatível com o Tratado. Um auxílio pode ser com-
entre EMs, mas já se verificaram exceções. patível com o Tratado por beneficiar: (i) de uma isenção de jure, ao abrigo
Tal como nas práticas restritivas da concorrência, também aqui se do 107 .º(2); (ii) de uma isenção categorial, ao abrigo de um regulamento
considera que só relevam para efeitos da proibição do artigo 107.º(1) europeu; ou (iii) de uma isenção individual, ao abrigo do artigo 107.º(3)36 •
TFUE as medidas que tenham um efeito sensível na concorrência entre Verificando-se sucessão de normas no tempo, aplicam-se aos auxílios
Estados-membros, excluindo-se, por isso, do seu âmbito os auxílios de existentes, para o futuro, as novas regras de compatibilidade37 •
minimis. Diversamente dos artigos 101.º e 102.º TFUE, o critério de
minimis no plano dos auxílios de Estado encontra-se consagrado nor- is Cfr. artigos 1.º(l)(d) e (e), 3.0 (1) e (2), 4 .. 0 (1) e 6. 0 do Regulamento (UE) n.º
mativamente, num regulamento que fixa valores e critérios específicos 1407/2013 .
36 Para doutrina nacional sobre esta matéria, ver: ZENHA MARTINS, João, "Consultoria
que devem estar preenchidos para afastar a aplicação da proibição 34 . em inovação e o redesenho dos apoios ao emprego e à formação no Regulamento
A título de exemplo, em consequência deste Regulamento (UE) n.º (UE) n.º 651/2014", 20-21 (2015) Revista de Concorrência e Regulação; SILVA PE-
1407/2013, um auxílio (ou conjunto de auxílios) concedido por um mu- REIRA, Liliana Ivone, "A aplicação do regime dos auxílios de Estado na União
Europeia ao fenómeno desportivo: enquadramento e análise do caso particular dos
nicípio a uma empresa industrial, em troca da sua instalação nesse auxílios concedidos pelo Estado espanhol a determinados clubes de futebol" , 8(3)
concelho, em valor total inferior a EUR 200.000 ao longo de três anos, (2015) Revista de finanças públicas e direito fiscal; NOGUEIRA DE ALMEIDA,
João José, Sobre o controlo dos auxílios de Estado na União Europeia: conteúdo,
sentido e limites da análise económica na avaliação da compatibilidade dos auxílios
34
Regulamento (UE) n. º 1407/2013 da Comissão, de 18 de dezembro de 2013, relativo de Estado com o mercado interno, Almedina, 2014; GOMES DE ANDRADE, Ana
à aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFUE aos auxílios de minimis (JO L 352/1, Rita, "As energias renováveis - Uma luz verde aos auxílios de Estado?", 3 (2010)
de 24/12/2013). Ver também o Regulamento (UE) n.º 360/2012 da Comissão, de 25 Revista de Concorrência e Regulação; CUNHA RODRIGUES, Nuno, "Auxílios de
de abril de 2012, relativo à aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFUE aos auxílios Estado com finalidade regional", in Estudos em homenagem ao Professor Doutor
de minimis concedidos a empresas que prestam serviços de interesse económico geral Paulo dePitta Cunha, Vol. 1, 2010, p. 885; BOLONHA GONÇALVES, Cátia Sofia,
(JO L 114/8, 26/04/2012). Sobre este tema, na doutrina nacional, ver: PEDRO, Ricardo, Auxílios de Estado e a política de emprego, Faculdade de Direito da Universidade de
"Auxílios de Minimis 2014-2020: notas à luz do regulamento (UE) nº 1407/2013", Coimbra, 2009; DIAS SOARES, Cláudia, O direito fiscal do ambiente: o enquadramento
in 17 (2014) Revista de Concorrência e Regulação; ALBUQUERQUE MATOS, comunitário dos auxílios de Estado a favor do ambiente, Almedina, 2003.
Nuno, Auxílios de estado:financiamento dos serviços de interesse económico geral, 37 Cfr., e.g., Acórdão do TJUE de 9 de junho de 2011, Territorio Histórico de Vizcaya
426 Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015. (C-465/09 P etc.), ECLI:EU:C:2011 :372, § 120 et ss. 427
IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
MIGUEL SOUSA FERRO
São de jure compatíveis com o mercado interno os auxílios de Estado Resulta dos artigos 109.º e 108.º(4) do TFUE que a Comissão pode,
que se enquadrem num dos 3 casos previstos no artigo 107.º(2): (a) dentro dos limites definidos pelo Conselho 42 , adotar Regulamentos de
auxílios sociais atribuídos diretamente a consumidores individuais (que isenção categorial. Estes Regulamentos têm por efeito declarar a com-
não discriminem consoante a origem dos produtos); (b) auxílios para patibilidade com o mercado interno dos auxílios de Estado que cumpram
remediar danos causados por calamidades naturais ou acontecimentos os requisitos neles definidos, dispensando-os do mecanismo de notificação
extraordinários; e (c) auxílios para apoiar o convergência económica prévia à Comissão Europeia, sem prejuízo de deveres de informação
dos Lãnder da Alemanha oriental3 8 . (os EMs devem manter a Comissão informada dos auxílios que adotaram
Enquanto exceções, têm de ser interpretadas restritivamente 39 . Embora no âmbito das isenções categoriais).
haja múltiplos exemplos de autorização de auxílios em reação a cheias, Atualmente, a grande maioria de isenções categoriais está reunida no
terramotos ou erupções vulcânicas, a Comissão tem entendido que só Regulamento Geral de Isenção Categorial43 , que define requisitos gerais
se verifica uma "calamidade natural" se os danos tiverem sido substanciais e específicos para diferentes tipos de auxílios: com finalidade regional,
(e.g., destruição de pelo menos 20% da produção em período normal) 4º. a PMEs (em geral ou para facilitar o seu acesso a financiamento), para
A Comissão já aceitou como "acontecimento extraordinário" derrames fomentar investigação e desenvolvimento ou formação, para auxiliar
extensos de petróleo, ataques terroristas, etc. trabalhadores desfavorecidos ou com deficiência, para proteger o ambiente,
Os auxílios só beneficiam desta isenção na medida em que se limitem para remediar danos de calamidades naturais, para apoiar custos de
a compensar os danos que tenham resultado diretamente da calamidade transporte de habitantes de regiões periféricas, desenvolver infraestruturas
ou acontecimento extraordinário41 . de banda larga, infraestruturas desportivas e recreativas ou locais,
Embora os Estados-membros continuem a ter de notificar estas medidas, aeroportos ou portos, para defender a cultura ou o património.
a Comissão Europeia só pode verificar se estão preenchidos os requisitos Para dar uma ideia do nível de complexidade envolvido na aplicação
destas alíneas. Se estiverem, a Comissão está vinculada a adotar uma deste regulamento, imagine-se, a título de exemplo, que o Governo por-
decisão de isenção, não tem qualquer margem de discricionariedade tuguês pretende introduzir uma medida (seletiva) de apoio a empresas
(ao contrário do que se verifica no artigo 107.º(3)). que invistam, dentro de determinados parâmetros, em investigação e
desenvolvimento. Em tal caso, sucintamente, essa medida só beneficiará
da isenção categorial prevista neste Regulamento se respeitar as condições de auxílios ou da não contabilização de outros auxílios (cumu-
gerais (capítulo I) e especiais (capítulo III) 44 : lação) (artigos 4.º(2) e 8.º);
j) respeitar as exigências de transparência dos auxílios (artigo
a) não cair num dos fatores de exclusão do artigo 1.º(2) (e.g., não 5.º); e
estar subordinado à utilização de produtos/serviços nacionais); k) respeitar as obrigações de divulgação de informação pública,
b) não se enquadrar em nenhum dos setores económicos referidos de transmissão de informação à Comissão Europeia e de ma-
no artigo l.º(3) (e.g. apoios ao setor da transformação/comer- nutenção de registos completos (artigos 9.º, 11.º e 12.º)46 .
cialização de produtos agrícolas) , e assegurar-se a devida
separação de atividades e custos da beneficiária se (também) Cada Estado-membro deve avaliar, por si, se as medidas que pretende
estiver ativa num desses setores; adotar preenchem os requisitos do regulamento de isenção categorial.
c) não ser um auxílio ad hoc para uma empresa específica nem Mas a Comissão Europeia pode vir a discordar e a exigir a notificação
se tratar de um auxílio a uma empresa insolvente ou em difi- de urna determinada medida. Prevê-se também, em jeito de mecanismo
culdades (artigo 1. º(4)); sancionatório e de reação a urna prática abusiva, que a Comissão possa
d) não estar dependente de exigências que violam as liberdades retirar, num caso concreto, o beneficio da isenção categorial se um EM
do mercado interno (artigo l.º(5)); tiver alegado, incorretamente, que um determinado auxílio estava
e) ser um dos tipos de projetos de investigação previstos e só se abrangido pelo regulamento (cfr. artigo 10.º).
financiarem os custos autorizados e que estejam estritamente
associados ao estudo em causa (artigo 25.º(2) a (4)); IX.4.4. Isenções individuais ao abrigo do 107.º(3) (e artigo
f) não exceder os limiares indicados (e.g. 80, 40, 20, 15 milhões 106.0 (2))
de EUR), por empresa e por projeto, consoante o tipo de projeto
de investigação em causa e, sendo o caso, respeitar as regras Sempre que um auxílio de Estado, que caia na proibição do artigo
adicionais para auxílios concedidos sob a forma de adiantamentos 107.º(l), não se enquadre no artigo 107.º(2) nem goze da proteção de
reembolsáveis (artigo 4.º(l)(i) 45); urna isenção categorial, pode ainda beneficiar de urna isenção individual,
g) respeitar os limites e as regras de cálculo da intensidade do ou seja, ser o caso concreto apreciado e autorizado pela Comissão
auxílio e dos custos elegíveis, consoante o tipo de investigação Europeia ao abrigo de urna das alíneas do artigo 107.º(3), se visarem
(artigos 7. 0 e 25.º(5) a (7)); (na verdade, se for provável que tenham por efeito):
h) demonstrar-se que o auxílio tem um "efeito de incentivo" (artigo
6.º); a) promover o desenvolvimento de regiões com nível de vida anormal-
i) garantir-se que não se contornam as regras de limiares e de in- mente baixo ou grave subemprego ou de regiões ultraperiféricas;
tensidades máximas de auxílio através da separação artificial bl) fomentar projeto importante de interesse europeu comum;
44 b2) sanar perturbação grave da economia de um Estado-membro;
Cfr. artigo 3.º do Regulamento (UE) n. 0 651/2014.
45
Para cada tipo de auxílio, tem de se trabalhar também com as definições dos vários 46
Na verdade, consoante o tipo de projetos ou infraestruturas de investigação que se
conceitos gerais e específicos no artigo 2.0 - neste caso, as definições especiais estão a apoiar, poderão ser aplicáveis, consoante o caso, um dos conjuntos de regras
430 constam do artigo 2.º(83) a (98).
especiais dos artigos 25.º a 30.º. 431
MIGUEL SOUSA FERRO IX . AUXÍLIOS DE ESTADO
c) facilitar desenvolvimento de certas atividades ou regiões eco- Comissão poder aplicar esta norma e se entender que ela tem margem
nómicas, desde que o seu impacto nas trocas comerciais não de apreciação da própria compatibilidade da medida com o mercado
contrarie o interesse comum47 ; interno, num exercício que tem, manifesta e inevitavelmente, muito de
d) promover a cultura e conservar património, desde que o seu político.
impacto nas trocas comerciais não contrarie o interesse comum Por detrás da aplicação de qualquer isenção individual está a ponderação
dos efeitos positivos e negativos de uma medida, ao nível dos objetivos
Podem ainda ser autorizadas "outras categorias de auxílios determinadas prosseguidos e do funcionamento do mercado interno, e a aplicação do
por decisão do Conselho, sob proposta da Comissão" (artigo 107 .º(3)(e) teste da proporcionalidade. Mas isto implica formação de juízos previsivos
TFUE) 48 . e valorativos sobre o impacto das medidas e a importância de cada
Note-se que a Comissão pode autorizar auxílios individuais (ad hoc) 49 questão. E esses juízos são os da Comissão Europeia, não os do respetivo
ou regimes de auxílio (esquemas gerais ao abrigo dos quais, desde que Estados-membro. Na prática, tal significa que é a Comissão que decide,
preenchidas todas as condições, poderão ser concedidos auxílios indi- não apenas se um auxílio promove, efetivamente, um destes objetivos
viduais). Se a Comissão autorizar um regime de auxílio, é usual que legítimos, mas também quão importante é a promoção desse objetivo
se suscitem dúvidas sobre se uma determinada medida posterior se en- por contraste à proteção do funcionamento do mercado interno.
quadra, plena e verdadeiramente, nesse regime (se não se enquadrar, A Comissão Europeia goza de uma ampla margem de discricionariedade
não beneficia da autorização concedida ao regime e tem de ser notificada na aplicação do artigo 107. º(3 ). Isto, não só no que respeita à integração
a título individual). numa das alíneas, mas também na aferição do teste de proporcionalidade,
Apesar da semelhança da letra das duas normas, há uma grande diferença que tem de se aplicar independentemente do fundamento de isenção
na abordagem jurisprudencial aos artigos 101. 0 (3) e do 107.º(3). Os invocado 50 .
acordos restritivos da concorrência podem ser isentos se preencherem E se é verdade que o TJUE tem imposto alguns limites, normalmente
os requisitos de isenção, mas esses requisitos têm efeito direto, podem fá-lo por adesão aos critérios previamente estabelecidos pela própria
ser apreciados por qualquer autoridade, incluindo tribunais nacionais. Comissão. Assim, por exemplo, o Tribunal seguiu a Comissão em
Isto significa que o Tribunal só confere margem de discricionariedade estipular que os auxílios ao funcionamento de empresas (que reduzem
à Comissão na medida em que, ao aplicar esses requisitos a um caso custos da operação normal do negócio) só podem ser isentos excecio-
concreto, faça juízos económicos ou técnicos complexos. Já nos auxílios nalmente, ao abrigo do artigo 107. º(3 )(a) ou se compensarem a prestação
de Estado, a este nível de discricionariedade acresce o facto de só a de um SIEG51 . E também que um auxílio regional que, normalmente,
47 Ver: Comissão Europeia, Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade 50 A jurisprudência sobre esta questão tem-se focado, sobretudo, na necessidade -
regional para 2014-2020 (JO C 209/ 1, 23/07/2013). ver, e.g.: Acórdão do TJUE de 15 de abril 2008, Nu ova Agricast (C-390/06),
48
Ver, e.g.: Decisão do Conselho de 10 de dezembro de 2010 relativa aos auxílios ECLI:EU:C:2008:224, §§68-69. Decorre deste teste que um auxílio só pode ser
estatais destinados a facilitar o encerramento de minas de carvão não competitivas compatível com o Tratado se tiver algum efeito de incentivo - se o resultado visado
(JO L 336/24, 21/12/2010). já era assegurado de outro modo (e.g., por haver uma obrigação legal de adotar o
49 Na linguagem do direito dos auxílios de Estado, os "auxílios individuais" são auxílios comportamento em causa)-, a medida não era necessária.
a uma empresa específica concedidos ao abrigo de um regime de auxílios, e os "auxílios 51 Cfr., e.g.: Acórdão do TJUE de 9 de junho de 2011, Comitato " Venezia vuole vivere "
ad hoc" são auxílios a uma empresa específica concedidos fora do âmbito de um (C-71/09 P etc.), ECLI:EU:C:2011 :368, § 168 (tratou-se da proclamação jurisprudencial
432 regime de auxílios. de algo previamente definido em documentos de soft law da Comissão Europeia). 433
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
poderia ser autorizado, não o será se beneficiar um setor onde se verifica A Comissão não é obrigada a ponderar, de sua iniciativa, fundamentos
sobrecapacidade (excesso de oferta), por se estar a incentivar atividades de compatibilidade de um auxílio. Cabe ao Estado-membro (e a terceiros
económicas precárias 52 . interessados) o ónus de alegação e de prova do preenchimento dos
A dimensão política da autorização de auxílios de Estado traduz-se requisitos para beneficiar de uma isenção.
ainda, como elemento potencialmente limitador da discricionariedade Enquanto não for autorizado, um auxílio de Estado abrangido pelo artigo
da Comissão Europeia, na previsão de um direito de recurso do EM em 107.º(1) do TFUE é ilegal (e é-o definitivamente a partir de uma decisão
causa para o Conselho de Ministros da UE. Nos termos do artigo de incompatibilidade).
108. 0 (2)(§3), os Estados-membros podem, por unanimidade, autorizar Diferente da aplicação do artigo 107.º(3), mas potencialmente conducente
um auxílio proibido (ou que poderia vir a ser proibido) pela Comissão a um resultado equivalente, é a aplicação do artigo 106.º(2) do TFUE,
Europeia, mesmo em derrogação ao artigo 107.º do TFUE. segundo o qual as "empresas encarregadas da gestão de serviços de
A Comissão tem vindo a concretizar o seu entendimento sobre as situações interesse económico geral (... )ficam submetidas ao disposto nos Tratados,
que podem beneficiar destas isenções em documentos de soft-law ho- designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação
rizontais ou setoriais (aplicáveis a todos ou alguns setores da economia) 53 . destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou
Algumas das orientações horizontais são específicas para certas situações de facto, da missão particular que lhes foi confiada". Quando os
ou para certo tipo de medida de auxílio 54 . requisitos Altmark não estiverem preenchidos (ver secção 3.2), a com-
52
pensação do serviço público é classificada como auxílio, mas pode be-
Cfr. , e.g., Acórdão do TJUE de 14 de janeiro de 1997, Espanha e. Comissão
(C-169/95), ECLI:EU :C: 1997: 10. neficiar desta exceção. Enquanto exceção, esta regra tem de ser interpretada
53
Ver, e.g.: Comunicação da Comissão sobre orientações comunitárias sobre os auxílios restritivamente e está sujeita ao teste de proporcionalidade.
estatais às empresas de transporte ferroviário (JO C 184/13, 22/07/2008); Comunicação À partida, parece decorrer desta norma a inaplicabilidade das normas
da Comissão sobre orientações comunitárias sobre auxílios estatais aos transportes
marítimos, tal como atualizada (JO C 13/3, 17/01 /2004; JO C 120/10, 13/04/2017);
de auxílios de Estado quando tal obstruir o desempenho do SIEG atribuído
Comunicação da Comissão sobre orientações relativas aos auxílios estatais a aeroportos à empresa. No entanto, o TJUE parece ter interpretado a disposição no
e companhias aéreas (JO C 99/3, 04/04/2014); Comunicação da Comissão sobre o sentido de que não se trata de tomar os artigos 107. º a 109. º TFUE (e
enquadramento dos auxílios estatais à construção naval (JO C 364/9, 14/ 12/2011);
Comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras de concorrência ao setor
direito secundário) inaplicáveis, mas de obrigar a uma isenção individual
postal e à apreciação de certas medidas estatais referentes aos serviços postais (JO C ao abrigo dos critérios do artigo 106.º(2)55 . Consequentemente, embora,
39/2, 06/02/1998); Comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras em em geral, o 106. º(2) tenha efeito direto, no plano dos auxílios de Estado,
matéria de auxílios estatais ao serviço público de radiodifusão (JO C 257/1, 27/10/2009);
Comunicação da Comissão sobre orientações da UE relativas à aplicação das regras
a Comissão retém o seu monopólio de aferição individual da compati-
em matéria de auxílios estatais à implantação rápida de redes de banda larga (JO C bilidade de um auxílio com o Tratado.
25/1, 26/01 /2013); Comunicação da Comissão relativa aos auxílios estatais a filmes
e a outras obras audivisuais (JO C 332/1 , 15/11 /2013). da Comissão sobre o enquadramento dos auxílios estatais à investigação, desenvolvimento
54
Ver, e.g.: Comunicação da Comissão sobre orientações relativas aos auxílios estatais e inovação (JO C 198/1, 27/06/2014); Comunicação da Comissão sobre critérios para
de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade a análise da compatibilidade com o mercado interno dos auxílios estatais destinados
(JO C 249/1, 31/07/2014); Comunicação da Comissão sobre critérios para a análise a promover a realização de projetos importantes de interesse europeu comum (JO C
da compatibilidade dos auxílios estatais a favor de trabalhadores desfavorecidos e 188/4, 20/06/2014); Comunicação da Comissão sobre orientações relativas a auxílios
com deficiência sujeitos a notificação individual (JO C 188/6, 11/08/2009); Comunicação estatais à proteção ambiental e à energia 2014-2020 (JO C 200/1 , 28/06/2014).
da Comissão sobre critérios de análise da compatibilidade de auxílios estatais à 55
Cfr., e.g. : Acórdão do TJUE de 15 de março de 1994, Banco de Crédito Industria l
434 fonnação sujeitos a notificação individual (JO C 188/ 1, 11/08/2009); Comunicação (C-387/92), ECLI:EU:C:1994:100, §16-17. 435
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
Encontramos no direito secundário europeu dois atos normativos i) auxílios preexistentes à adesão de um EM (e exceções pre-
principais que regulam a aplicação das normas de auxílios de Estado vistas nos tratados de adesão), que perduram
no âmbito da prestação de SIEGs 56 . ii) auxílios autorizados, por decisão expressa ou tácita da
Comissão (ou medidas individuais adotadas estritamente
IX.5. Procedimento administrativo de notificação e aferição de nos termos de um regime de auxílios autorizado);
auxílios iii) auxílios cuja obrigação de recuperação prescreveu;
iv) medidas que só se tomaram auxílios após a sua execução,
O procedimento administrativo de notificação e aferição de auxílios devido a uma evolução (externa) das circunstâncias (exceto
encontra-se regulado no artigo 108.º do TFUE e no Regulamento (UE) na caso da liberalização de mercados);
n.º 2015/1589 57 e no Regulamento (CE) n.º 794/2004 58 . b) auxílios novos (que não são "existentes", incluindo alterações
Os auxílios de Estado dividem-se em: de auxílios existentes):
i) notificados: que foram notificados à Comissão Europeia e
a) auxílios existentes (legais, não têm de ser notificados, sem não foram implementados antes de uma decisão favorável;
prejuízo de deveres de informação 59 ): é aplicável o processo previsto nos artigos 2.º a 11.º do
Regulamento (UE) n.º 2015/1589;
56
Decisão da Comissão de 20 de dezembro de 2011 relativa à aplicação do artigo 106.º, ii) não notificados: executados sem notificação ou antes de
n.º 2, do TFUE aos auxílios estatais sob a forma de compensação de serviço público decisão favorável- são ilegais (inválidos) e nunca produzem
concedidos a certas empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico
geral (JO L 7/3, 11/01/2012); e Regulamento (UE) n. 0 360/2012 da Comissão, de 25 de efeitos nem podem criar expectativas legítimas nos seus
abril de 2012, relativo à aplicação dos artigos 107.º e 108.º do TFUE aos auxílios de beneficiários; é aplicável o processo previsto nos artigos
minimis concedidos a empresas que prestam serviços de interesse económico geral (JO
12.º a 16.º do Regulamento (UE) n.º 2015/1589.
L 114/8, 26/04/2012). Ver também: Comunicação da Comissão relativa à aplicação das
regras em matéria de auxílios estatais da União Europeia à compensação concedida Em ambos os casos, após notificação completa à Comissão,
pela prestação de serviços de interesse económico geral (JO C 8/4, 11/01/2012); esta decidirá (anão ser que a notificação voluntária seja retirada
Regulamento (CE) n.0 1370/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de
pelo EM, i.e., que este "desista"; e sem prejuízo do prazo de
outubro de 2007, relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário
de passageiros (JO L 315/ 1, de 03/12/2007); e Comunicação da Comissão sobre orientações prescrição de dez anos 60):
para a interpretação do Regulamento (CE) n. 0 13 70/2007 relativo aos serviços públicos a. que o auxílio é incompatível com o mercado interno -
de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros (JO C 92/1, 29/03/2014).
57
neste caso, o Estado-membro é proibido de conceder o
Regulamento (UE) n.º 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece
as regras de execução do artigo 108.º do TFUE (codificação) (JO L248/9, 24/09/2015). auxílio, ou obrigado a recuperar do beneficiário todo o
Substituiu o Regulamento (CE) n.º 659/1999, de 22 de março de 1999. beneficío que lhe foi atribuído, acrescido de juros61 ; ou
58 Regulamento (CE) n.º 794/2004 da Comissão, de 21 de abril de 2004, relativo à
aplicação do Regulamento (UE) n.º 2015/1589, que estabelece as regras de execução No entanto, a conclusão de incompatibilidade para um regime existente só produz
do artigo 108.º do TFUE (JO L 140/1, 30/04/2004), revisto em último lugar pelo efeitos para o futuro (não há obrigação de recuperação de auxílios anteriormente
Regulamento (UE) n.º 2016/2015 da Comissão, de 1 de dezembro de 2016 (JO L concedidos ao abrigo desse regime), exceto no caso de utilização abusiva do regime
327/19, 02/12/2016). (cfr. artigo 20.º do Regulamento (UE) n. 0 2015/1589).
59
No te-se que a Comissão pode e deve reapreciar regimes de auxílios de Estado 6°Cfr. artigo 17.º do Regulamento (UE) n.º 2015/1589.
existentes para confirmar que continuam a ser compatíveis com o mercado interno 61 Ver artigos 9.º a 11.º do Regulamento (CE) n.º 794/2004; e Comunicação da Comissão
436 -ver artigo 108.º(1) do TFUE e artigos 21.º a 23.º do Regulamento (UE) n.º 2015/1589. para uma aplicação efetiva das decisões da Comissão que exigem que os Estados- 437
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
b. que o auxílio é compatível com o mercado interno - O) fase opcional 64 de pré-notificação (contactos informais entre
neste caso, o auxílio pode ser atribuído ou, no caso dos EM e Comissão);
não notificados, o auxílio em si não tem de ser recuperado, 1) 1ª fase: investigação preliminar, com prazo de 2 meses (prazo
mas tem de se recuperar do beneficiário os juros relativos não se aplica a investigações ex officio de auxílios ilegais )65;
ao período durante o qual beneficiou do auxílio enquanto 2) 2ª fase: investigação formal: não está sujeita a prazo (embora
este ainda era ilegal. uma duração excessiva possa violar o princípio da boa admi-
nistração); o seu âmbito e fundamentação podem ser relativamente
Nos termos do artigo 108.º(3) TFUE e artigos 2.º e 3. 0 do Regulamento vagos, mas têm de identificar as questões que, a final, serão
(UE) n.º 2015/1589, sempre que um Estado-membro pretenda conceder decididas.
um novo auxílio, ou adotar um novo regime de auxílios, deve primeiro
notificar a Comissão Europeia, atempadamente e com toda a devida in- Ao contrário do que sucede no direito das práticas restritivas da con-
formação (utilizando os formulários aprovados para o efeito), ficando corrência, no procedimento administrativo de aplicação das normas de
proibido de implementar (executar) o novo auxílio antes de receber uma auxílios de Estado a interação e as relações jurídicas são entre a Comissão
decisão de compatibilidade (ou antes de passar o prazo de decisão; ob- Europeia e o Estado-membro em causa, com a consequência de que se
rigação de "stand still "). Em certos casos, pode-se recorrer a um pro- verifica uma lógica muito próxima à dos processos por incumprimento,
cedimento de notificação simplificado, que dispensa a apresentação de com direitos reduzidos de outros EMs e de terceiros interessados (be-
um grande número de informações 62 . neficiários do auxílio, seus concorrentes, etc.) 66 • Estes só podem intervir
Se um Estado-membro entende que uma medida não é um auxílio de na 2ª fase, mediante submissão de observações escritas e respostas a
Estado, no sentido do artigo 107.º(1) do TFUE, não é obrigado a noti- pedidos de informação da Comissão (sem prejuízo da opção de consulta
ficá-la, mas corre o risco de a Comissão discordar dessa qualificação. do beneficiário na 1ª fase). Podem também, em certos casos, recorrer
Por esse motivo, é frequente a notificação de medidas "por cautela", de uma decisão de 1ª fase ou 2ª fase da Comissão Europeia que conclua
apesar de se entender que não constituem auxílios de Estado 63 . não existir um auxílio ou existir um auxílio compatível ou incompatível
O procedimento de análise de um auxílio notificado divide-se em três (ou de uma decisão de avançar para a 2ª fase). É muito frequente a apre-
fases: sentação, por terceiros interessados, de denúncias à Comissão Europeia
relativas a auxílios de Estado ilegais 67 , sendo este o principal ímpeto a) decisões que põem termo a uma análise preliminar;
para a deteção de auxílios não notificados. b) decisões que dão início a uma investigação formal;
Os EMs devem manter a Comissão Europeia informada do status quo c) decisões sobre a compatibilidade de um auxílio de Estado, que
dos auxílios concedidos, nomeadamente através da submissão de relatórios o autorizam/ proíbem / obrigam à recuperação.
anuais sobre os auxílios existentes 68 .
Como se referiu acima, a única consequência da identificação pela Estas decisões são sempre endereçadas aos Estados-membros, que têm
Comissão de um auxílio de Estado incompatível que foi ilegalmente também o direito de recorrer contra atos gerais e abstratos, incluindo
implementado é a obrigação do EM de recuperar esse auxílio na sua documentos e soft-law da Comissão, na medida em que estes têm efeitos
integralidade (com juros). Tem-se entendido que o regime dos auxílios externos imediatos, ao vincularem a Comissão a decidir futuros auxílios
de Estado é uma !ex specialis que derroga as regras gerais do TFUE de acordo com os critérios aí definidos. Mas os terceiros interessados
sobre o processo por incumprimento. Isto cria uma falha importante no - beneficiários e concorrentes que tenham participado no processo
sistema, ilustrada no caso Apple: a Irlanda concedeu praticamente uma (maxime, os denunciantes) - também poderão ter direito de recurso
isenção fiscal à Apple durante muitos anos, beneficiando da presença de decisões concretas, na medida em que têm um efeito negativo direto
da sua sede europeia e prejudicando os interesses fiscais dos outros e imediato sobre os seus direitos ou interesses, aplicando-se os requisitos
EMs. No entanto, após deteção do auxílio ilegal, a Irlanda não perde gerais do artigo 263. 0 do TFUE (recursos de anulação). O conceito de
os benefícios que lhe advieram dessa presença, não lhe é aplicada ato recorrível, no âmbito dos processos de auxílios de Estado, tem vindo
qualquer sanção e ainda é obrigada a recuperar os biliões de EUR em a ser alargado pelo TribunaF 0 . Pode também haver lugar a recursos por
causa ("o crime compensa") 69 . omissão (tipicamente, falta de reação a queixas) e a recursos que invoquem
a responsabilidade extracontratual da UE por danos causados por estas
IX.6. Controlo judicial das decisões da Comissão Europeia decisões.
Nos termos gerais, os poderes de pronúncia do Tribunal estarão limitados
Existem, sobretudo, três tipos de decisões da Comissão Europeia no pelo pedido (com a exceção da análise ex ojficio de vícios de funda-
âmbito do regime de auxílios de Estado que podem ser sujeitas a mentação), e a legalidade da decisão só pode ser aferida à luz das in-
controlo judicial (primeiro, pelo TGUE e, eventualmente, em recurso, formações disponíveis à data da sua adoção (sem prejuízo do dever de
pelo TJUE): diligência na recolha de informação).
Maior impacto tem a limitação do âmbito do controlo judicial. Em
67 Ver artigo 11 .º-A do Regulamento (CE) n. 0 794/2004. A Comissão Europeia teoria, o Tribunal exerce um controlo pleno da qualificação de uma
disponibiliza na sua página de intemet formulários de denúncia de auxílios de Estado medida como auxílio de Estado, ao abrigo do artigo 107. º( 1) do TFUE,
ilegais - ver: http://ec.europa.eu/competition/forms/intro_pt.html.
68 Cfr. artigos 5.0 a 7.º do Regulamento (CE) n.º 794/2004.
e um controlo limitado à identificação de erros manifestos de apreciação IX.7. Papel dos tribunais nacionais
na aplicação dos artigos 107.º(2) e (3) do TFUE. Mas também a iden-
tificação de um auxílio envolve juízos técnicos e económicos complexos, Enquanto tribunais comuns da ordem jurídica da União Europeia, os
que levam o Tribunal a permitir, também aí, uma ampla margem de dis- tribunais nacionais têm um papel importante a desempenhar na garantia
cricionariedade à Comissão Europeia (e.g., o Tribunal hesitará bastante do respeito pelas regras dos auxílios de Estado. A atuação dos tribunais
em substituir a sua própria opinião sobre a da Comissão quanto ao cum- nacionais, que se enquadra no conceito do "private enforcement", por
primento do critério do investir privado). Isto significa que, na prática, se iniciar em reação a pedidos de particulares, pode ser, essencialmente,
o domínio dos auxílios de Estado é a área do direito da concorrência de três tipos (incluindo medidas provisórias) 72 :
em que a Comissão está sujeita ao menor grau de controlo judicial do
exercício dos seus poderes, o que se compreende também face à natureza a) Pedidos de suspensão de decisão/ recuperação de um auxílio
eminentemente política de muitas das decisões em causa7 1. de Estado ilegal (garantia do respeito pela obrigação de stand
Outra característica do controlo judicial neste domínio, que o distingue still);
dos outros ramos do direito da concorrência é a maior relevância e apego b) Pedidos de indemnização por danos causados por auxílios de
judicial aos documentos de soft-law da Comissão Europeia. Enquanto Estado ilegais;
que noutras áreas a soft-law não pode definir o direito, nos auxílios de c) Pedidos de revisão da legalidade de uma decisão de recuperação
Estado pode frequentemente fazê-lo, na medida em que autovincule a de um auxílio ilegal.
Comissão a uma determinada interpretação e modo de aplicação do
direito dentro da sua margem de discricionariedade.
O Tribunal tende, frequentemente, a compensar a limitação do seu poder 72 Para mais sobre esta matéria, em geral, ver: Comissão Europeia, Comunicação
de revisão substantiva das decisões com maior exigência na fundamentação relativa à aplicação da legislação em matéria de auxílios estatais pelos tribunais
nacionais (JO C 85/1, 09/04/2009); PASTOR-MERCHANTE, Fernando, The Role
das decisões, que lhe permite ordenar a anulação com base em motivos of Competitors in the Enforcement of State Aid Law, Hart, 2017; NEMITZ, Paul F.
processuais. (ed.), Ejfective Application of EU State Aid Procedures: The Role of National Law
Se uma decisão da Comissão for anulada com base em vícios substantivos, and Practice, WoltersKluwer, 2007; CRUZ VILAÇA, José Luís da, "O papel dos
tribunais nacionais na aplicação das regras do Tratado sobre auxílios de Estado: até
esta fica impedida de readotar a decisão com o mesmo conteúdo e fica onde devem ir em virtude da última frase do nº 3 do artigo 88º TCE?", in Estudos
obrigada a atuar de modo a cumprir a legalidade europeia. Diversamente, jurídicos e económicos em homenagem ao Prof Doutor António de Sousa Franco,
se uma decisão for anulada por motivos processuais, a decisão pode Vol. 2, Coimbra Editora, 2006; LOPES PORTO, Manuel & NOGUEIRA DE ALMEIDA,
João, "Controlo negativo, controlo positivo ou ambos?", 3 (2010) Revista de Concorrência
ser readotada com o mesmo conteúdo (sentido), corrigindo-se o vício e Regulação; QUINTAS, Ricardo, "A incongruência judicativa de uma deliberação
processual. positiva de compatibilidade de um auxílio de Estado não notificado", 27-28 (2016)
Revista de Concorrência e Regulação. Para uma análise da realidade judicial nacional
71
O cenário de controlo judicial é ligeiramente diferente no caso da aplicação dos neste domínio, ver: LOPES PORTO, Manuel Carlos & NOGUEIRA DE ALMEIDA,
critérios da jurisprudência Altmark, acima descrita. Como nesses casos a própria João José, "State aid - a focus on the Member States experience in recovering illegally
Comissão Europeia tem de respeitar a margem de discricionariedade dos Estados- granted state aid: questionnaire - Portuguese report", in APDE, Estudos de Direito
membros, o Tribunal tem de fazer um controlo pleno do exercício dos poderes da Europeu : Congressos da FIDE (Federação Internacional de Direito Europeu):
Comissão. O Tribunal encontra-se aí vinculado pela margem de discricionariedade relatórios portugueses - 1990-2008, Principia, 2009; e MAIA CADETE, Eduardo
nacional, mas não pode permitir espaço para margem discricionária da instituição & MELCHER, Philipp, "Portugal", in SOLTESZ, Ulrich (ed.), State Aid, Getting the
442 europeia. Deal Through, Law Business Research, 201 7. 443
MIGUEL SOUSA FERRO IX. AUXÍLIOS DE ESTADO
Os primeiros dois tipos são, normalmente, intentados por empresas que na adoção de múltiplos instrumentos jurídicos (maioritariamente de
estão a ser ou foram prejudicadas pela atribuição de um auxílio de soft-law)7 5, mas também no modo como os critérios definidos em abstrato
Estado a uma sua concorrente, enquanto o terceiro tipo é intentado pelo vieram a ser aplicados na prática.
beneficiário do auxílio, destinatário da ordem de recuperação. A análise da aplicação das regras de auxílios de Estado a casos concretos
Estas ações são intentadas contra o Estado (ou entidade do "Estado", portugueses, durante a crise financeira, fornece-nos vários exemplos
lato sensu, na como definido na jurisprudência europeia), o que significa da motivação política de decisões da Comissão, quer no sentido de
que, normalmente, elas correrão os seus trâmites junto dos tribunais ad- permitir um auxílio defendido pelo Estado português que muito dificilmente
ministrativos. Mas podem também surgir noutros contextos, e.g. em parecia passar nos requisitos europeus (e.g. na identificação de um risco
processos tributários contra a Fazenda Pública ou em processos de in- sistémico criado pela falência de um pequeno banco), ou sendo pouco
solvência nos juízos de comércio. exigente no controlo desses requisitos (e.g., decidindo sobre um auxílio
Este poder-dever dos tribunais nacionais assenta no efeito direto dos extremamente complexo no espaço de um fim de semana), quer no
artigos 107.º(l) e 108.º(3) do TFUE, que significa que podem e devem sentido de promover agendas políticas europeias (como o fomento da
decidir sobre a qualificação de uma determinada medida como um concentração da banca europeia, favorecendo-se a aquisição de bancos
auxílio de Estado e sobre a eventual violação do dever de notificação portugueses por bancos de outros Estados-membros) 76 .
prévia, protegendo os direitos reflexos dos particulares. Mas já não
podem julgar a compatibilidade nos termos do artigo 107.º(2) ou (3),
que só pode ser decidida pela Comissão Europeia73 .
Existem mecanismos de cooperação entre a Comissão Europeia e os
tribunais nacionais neste tipo de ações, fundamentais, nomeadamente,
para garantir o respeito pelo primado do direito da UE 74 .
ágil e permissivo de apoio pelos Estados-membros, em especial, às suas crisis and the Community efforts to deal with it", 3 (2010) Revista de Concorrência
e Regulação; SANTOS, António Carlos dos, "Crise financeira e auxílios de Estado
instituições financeiras em dificuldades. Esta agilização expressou-se - risco sistémico ou risco moral?", 3 (2010) Revista de Concorrência e Regulação;
CAPITÃO FERREIRA, Marco, "Decisão da Comissão Europeia relativa à garantia
73 Cfr., e.g.: Acórdão do TJUE de 5 de outubro de 2006, Transalpine Ôlleitung in estatal concedida pelo Estado português ao Banco Privado Português", 3 (2010)
dsterreich (C-368/04), ECLI:EU:C:2006:644, §§36-39. Revista de Concorrência e Regulação; SEIFERT GUINCHO, Luis, "State aid and
74 Ver: Comissão Europeia, Comunicação relativa à aplicação da legislação em matéria
systemic crises: appropriateness of the European State aid regime in managing and
444 de auxílios estatais pelos tribunais nacionais (JO C 85/1, 09/04/2009), §77 et ss. preventing systemic crises", 27-28 (2016) Revista de Concorrência e Regulação. 445