A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós
Fonte:
QUEIRÓS, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo : Ática. (Série Bom Livro)
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Marciana Maria Muniz Guedes - São Paulo/SP
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sej
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de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S.
Francisco de Assis, que
lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava “meu irmão lobo!” Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo duma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um estômago e pôr baixo um falo! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e Jacíntico! E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos reais – que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency. Ó delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, pôr mais crestada, lhe parecia ressumar uma umidade mortal. De sob cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de formas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins, domesticadas pôr longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava duma melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa espeta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto. Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória quase se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos. Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta, caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta destramente pela sua ramalheira com pétala de flores dessemelhantes, cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho. Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada gerência dos seus bens “que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas” – me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha Nini deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a flor do meu Saber Jurídico. Depois num Pós-Escrito ele acrescentava: - “ O tempo aqui está lindo, o que se pode chamar de rosas, e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos cá o abade e o Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada”. Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, pôr entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral. Assobiando o fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de direito civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade: -Para Guiães!...Ó Zé Fernandes, que horror! E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão longe da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco de corpo. “Leva uma poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspargos!...”