01. A Cidade e as Serras Autor Eça de Queiroz-5

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de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S.

Francisco de Assis, que


lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava “meu irmão lobo!” Toda a intelectualidade, nos campos, se
esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do animal duas únicas funções se mantêm
vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar,
sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de
alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois instintos
surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo duma semana rural, de todo o seu ser tão
nobremente composto só restava um estômago e pôr baixo um falo! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava
correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e
ressurgir reumanizado, de novo espiritual e Jacíntico!
E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos reais – que eu testemunhei, que muito me
divertiram, no único passeio que fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency. Ó
delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame,
qualquer chão que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, pôr mais crestada, lhe
parecia ressumar uma umidade mortal. De sob cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de
víboras, de formas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo. Não
tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um ato
degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins,
domesticadas pôr longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava duma
melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa espeta e vã dos regatinhos, a careca dos
rochedos, todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.
Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado,
experimentando já esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou
quando penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória quase se despedaçou contra um ônibus retumbante,
atulhado de cidadãos. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela
materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro
das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficara dos melros
cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos
velhos Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma mobilidade inquieta, como se
andasse fariscando perfumes, pertencia às delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das
eras rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta, caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e
frisar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz
das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta
destramente pela sua ramalheira com pétala de flores dessemelhantes, cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na
mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso
Fernandes, em que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada
gerência dos seus bens “que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas” – me ordenava que recolhesse à nossa
casa de Guiães, no Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha Nini deixara um
espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de
desabrochar, a flor do meu Saber Jurídico. Depois num Pós-Escrito ele acrescentava: - “ O tempo aqui está lindo, o
que se pode chamar de rosas, e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta
e seis anos que casamos, temos cá o abade e o Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada”.
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a
provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas do
nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que outro não
há tão lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres
e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, pôr entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e
cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando o fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calças e peúgas
um Tratado de direito civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os
homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo
gemido de espanto e piedade:
-Para Guiães!...Ó Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse
conservar, nos ermos silvestres, tão longe da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco de corpo. “Leva uma
poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspargos!...”

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