Teol. Da Missão

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Teologia da Missão

da Igreja
Teologia da Missão
da Igreja
Anselmo Ernesto Graff
Conselho Editorial EAD
Andréa de Azevedo Eick Honor de Almeida Neto
Ângela da Rocha Rolla Maria Cleidia Klein Oliveira
Astomiro Romais Maria Lizete Schneider
Claudiane Ramos Furtado Luiz Carlos Specht Filho
Dóris Gedrat Vinicius Martins Flores

Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que


é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a prévia autorização da Editora da ULBRA.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº .610/98 e
punido pelo Artigo 184 do Código Penal.

Anselmo Ernesto Graff é bacharel em Teologia pelo Seminário Concórdia


de São Leopoldo (1997) e mestre em Teologia Sistemática pelo Concordia
Seminary de St. Louis, Estados Unidos (2009). Atualmente, é professor auxiliar
da ULBRA e professor titular no Seminário Concórdia. Tem experiência
na área da Teologia Bíblica e Missionária. É coordenador de atividades
acadêmicas do curso de Teologia e leciona as disciplinas Teoria e Prática do
Estudo Bíblico, Teologia da Missão, Seminário de Teologia Bíblica e Cultura
Religiosa.

ISBN: 978-85-5639-106-3

Projeto Gráfico: Humberto G. Schwert Dados técnicos do livro


Editoração: Humberto G. Schwert Fontes: Minion Pro, Officina Sans
Capa: Juliano Dall’Agnol Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa)
Medidas: 15x22cm
Supervisão de Impressão Gráfica: Edison Wolf
Gráfica da ULBRA
Junho/2011
Sumário
Apresentação ...................................................................... 7
1 | A missão da Igreja no século XXI ................................. 11
2 | Justificativa para a missão.......................................... 27
3 | O Reino de Deus e a missão em duas dimensões ............. 45
4 | Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus ...61
5 | A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do
testemunho cristão.................................................... 77
6 | Jesus Cristo é o centro do Evangelho ........................... 95
7 | O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus .... 109
8 | A revelação de Deus e o testemunho cristão .................125
9 | Reflexões missionárias em Martinho Lutero...................143
10 | A missão holística da Igreja Cristã ..............................161
Apresentação
É só entrar numa livraria que vai se encontrar todo o tipo de literatura
exaltando a capacidade pessoal e natural de cada ser humano em superar seus
problemas. Livros de autoajuda, de forma especial, encabeçam esse tipo de
bibliografia.
Todas as pessoas de todos os tempos vivem como se estivessem num labirinto,
tentando encontrar o caminho de volta para uma vida com real sentido. De fato
todos precisam aprender a chamar o Deus Criador de Pai, confiar em seu cuidado
e sustento e crer no Salvador, Jesus Cristo. Mas como eles vão aprender o caminho
de volta? Qual é a verdade que precisa ser anunciada a toda a humanidade?
Imitando por um momento a Pilatos, “que é a verdade?” (Jo 18.38).1
A busca por sentido na vida é um anseio de cada ser humano. Muitos tentam
encontrar razão da sua existência olhando para si mesmos, para os prazeres da
vida, poder, posses, e outros para uma das multiplicadas religiões existentes.
Como saber onde está a verdade? A pergunta já feita por Pilatos exige uma
resposta, ainda que vivamos num tempo em que é relativizado também o
caminho que leva ao Pai.
A propósito, existe mais de um caminho? Todos os caminhos realmente
levam a Deus? A Escritura Sagrada afirma que há um só, uma só verdade e

| 1 Passagens da Escritura foram extraídas da Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida,
Edição Revista e Atualizada, 1993.
8 Apresentação

que está em Jesus, o Filho de Deus (Jo 14.6). Essa afirmação escandalizou e
escandaliza pessoas de todos os tempos e lugares. Apóstolos e cristãos foram
perseguidos, torturados e mortos por grupos que consideravam a mensagem
cristã como ofensiva e ilógica. Em pleno século XXI essa perseguição continua.
Essa situação só confirma o próprio diagnóstico divino sobre o ser humano desde
a sua concepção: pecador e inimigo de Deus. Além disso, sem a regeneração
operada pelo Espírito o homem não aceita as coisas de Deus. “Ora, o homem
natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não
pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2.14).
Porém, não é neste estado que Deus quer deixar as suas criaturas. Ele quer
repará-los e regenerá-los para uma vida de comunhão íntima com aquele que as
criou. Por isso Deus se tornou homem e habitou na Terra. Jesus, verdadeiro Deus
e verdadeiro homem, é apresentado como o caminho de volta ao Pai. “Ninguém
vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6b). Deus Espírito Santo por sua vez chama
as pessoas a confiarem e a crerem nessa boa notícia, e, assim, que todo aquele
que nele crer viva a vida em sua plenitude aqui e na eternidade lá. Esta é a nova
que compõe o cerne, a alma, o centro do cristianismo, e que é Jesus, o Senhor
e Salvador. Este também é o núcleo da Teologia da missão.
É desafiadora a tarefa de encontrar um conceito adequado para a missão
e fornecer contornos claros à Teologia da missão quanto à sua composição.
A dualidade intrínseca ao ser humano cristão (pecador por natureza e santo
em Jesus Cristo) acompanha também a tarefa missionária, desde as reflexões
teológicas até as práticas missionárias da Igreja. Há imperfeições e lacunas. Em
primeiro lugar, porém, é preciso lembrar que há um fundamento comum e pelo
qual a missão, seja em termos teológicos ou práticos, deve ser referenciada. Desse
alicerce não se pode abrir mão. O artigo bíblico/doutrinário principal e imexível
da Igreja Cristã: a justificação pela fé. O pecador é perdoado, aceito por Deus
e salvo exclusivamente pela graça de Deus através da fé nos méritos do Senhor
Jesus Cristo. “Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei,
em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado... Concluímos,
pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”
(Rm 3.20, 28). Não há lugar para o desempenho humano operar algo diante
de Deus. É graça. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem
de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8-9).
Apresentação 9

Também não há espaço para se construir outra vereda que leve o ser humano
de volta ao Pai. Jesus é o caminho.
Essa verdade permaneceu clara e óbvia para a Igreja, mas isto não significa
que não há necessidade de se lidar com problemas também na missão. O
contexto hoje é altamente complexo. Em termos teológicos há uma sutil, às vezes
aberta, tendência de afirmar a obra missionária mais, ou também, em termos
humanitários, preterindo assim a bênção da vida eterna. Está se perdendo o
caráter escatológico da missão de Deus. A ênfase é por vezes muito mais na
“terra prometida” aqui e não a na pátria celestial lá (2 Pe 3.13). A Igreja também
precisa lidar com abordagens que evidenciam ou prometem apenas crescimento
numérico ou institucional, esquecendo a própria essência da missão da Igreja
e seu alvo, o ser humano em sua individualidade. Igualmente, não há como se
esquivar frente às mais variadas manifestações do sofrimento humano, seja por
causa da maldade dos homens, falhas ou desastres naturais. Acrescido a isso,
ainda há o ressurgimento do zelo missionário entre religiões não cristãs e que
tentam sobrepor em seus ensinos a verdade de que Jesus é o caminho.
A Igreja vive num tempo de missão. Vários fatores colaboram para que ela
responda com ações, mas também com reflexões teológicas a esse contexto. A
Igreja Cristã precisa dar atenção a seu chamado apostólico, ou seja, de envio
ao mundo e missionário no século XXI, com olhos abertos para o contexto em
que está inserida e no texto das Sagradas Escrituras. Cabe à Igreja obter clareza
teológica sobre os elementos que compõem tanto os referenciais teológicos como
a prática da missão em suas variáveis e seus desdobramentos.
Essa é a proposta deste livro e desta disciplina. Promover um diálogo entre o
contexto em que a Igreja está, o ser humano e a revelação de Deus nas Sagradas
Escrituras, a fim de que se possa construir um consistente fundamento e a Igreja
consiga se mover em cima dele e levar as Boas-Novas da salvação em Cristo
Jesus a todas as nações, tribos, povos e línguas (Ap 7.9).
1

A missão da Igreja no século XXI


Introdução
Pode existir às vezes e em certas épocas uma tendência de os cristãos
evitarem o relacionamento ou o contato dentro de um contexto ou de uma
cultura mais ampla. Há um anseio, de certo modo legítimo, em buscar uma
identidade própria.
Porém, o contexto cultural, econômico, social e religioso parece que está
fazendo com que a Igreja Cristã comece a olhar um pouco mais para além
das suas fronteiras. Ou, então, ficar com os olhos mais abertos para questões
igualmente complicadas de nosso tempo. Talvez um dos maiores desafios, dentre
tantos outros, seja justamente o pluralismo religioso.
O objetivo deste capítulo é que o aluno tenha uma iniciação na reflexão
em torno de alguns dos desafios da missão da Igreja Cristã no século XXI, de
forma especial o contexto de liberdade religiosa e os avanços e retrocessos da
sociedade atual.

1.1 Navegando em questões difíceis


O desafio da Igreja Cristã é manter a identidade (a pureza bíblico-teológica),
refletindo sobre a autenticidade de sua missão especialmente nesse contexto.
12 A missão da Igreja no século XXI

No livro The Book of Lights (O Livro das Luzes)2, está narrada a história
de um rabi (mestre judaico) e seu companheiro que viajaram a Kyoto, Japão.
Lá eles viram um homem no Santuário Xintoísta com um livro na mão e
fazendo a sua oração diária. O rabi judaico perguntou ao seu companheiro:
“Você sabe se nosso Deus está ouvindo a oração desse sujeito?”. “Eu não sei.
Eu nunca pensei sobre isso”, respondeu seu amigo. A reflexão a seguir foi:
“Nem eu pensei. Se Deus não estiver ouvindo, por que ele não o faz? E se ele
ouve, o que isso significa?”.
Por um lado, essa ilustração ajuda a clarear a ideia de que precisamos
pelo menos pensar e refletir sobre esse assunto e tantos outros, e por outro,
também ilustra o dilema da evangelização da Igreja. Por que evangelizar? A
resposta está no fato de que Deus está ausente da vida das pessoas fora da
Igreja Cristã e por isso elas não têm perdão e não experimentaram o amor
de Deus? E se Deus está ausente, o que fazer com a nossa confissão de Deus
como Deus Todo-Poderoso sobre tudo e todos? Se Deus está presente, qual
é a relação da mensagem das Boas-Novas do Evangelho com a vida religiosa
de tantas pessoas?
O cristianismo tem fornecido uma resposta bem clara para todos esses
questionamentos. Jesus Cristo é o único nome dado para salvação dos que
nele creem: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu
não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa
que sejamos salvos” (At 4.12), e o único caminho que conduz ao Pai:
“Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém
vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). Também cremos que incorporação no
corpo de Cristo é pela Palavra e o Batismo, meios que Deus usa para chamar
os pecadores para junto de si. Só que este exclusivismo tem sido questionado
sempre mais e testado com maior intensidade nos últimos anos. Por causa
disso, o cristianismo tem sido acusado às vezes de arrogância e fanatismo.
Há ainda os que argumentam que o pluralismo religioso exige respeito, o
direito de escolha do cidadão deve ser preservado e cultivada a liberdade
religiosa.
O fato é que estamos expostos diária e intensamente a esse pluralismo religioso.
Seja pela TV, rádio, internet, jornal ou tantos outros recursos midiáticos, essa

| 2 POTOK, Chaim. The Book of Lights. New York: Fawcet Books, 1967.
A missão da Igreja no século XXI 13

pluralidade é manifesta e dinâmica. Isso exige reflexão e articulações claras de


todas as posições, também do cristianismo.3
Essa realidade pluralista talvez não seja completamente nova, mas um
fenômeno que sempre existiu. Porém, a questão tem se aflorado mais e a Igreja
Cristã precisa refletir sobre a autenticidade de suas argumentações e reflexões,
e assim realizar a missão de Deus no mundo.

1.2 Reflexão sobre o conceito de liberdade religiosa


É relatado que numa das sessões das Nações Unidas um orador budista
recebeu aplausos de quase mil delegados (contrários à alegação de exclusividade
da salvação em Cristo), quando ele condenou as tentativas da conversão das
religiões, especialmente o cristianismo e o islamismo.
O questionamento feito por um professor de origem coreana, conhecedor
da linguagem asiática, é se existiria alguma religião no mundo (incluindo o
Budismo) que não tenha a ideia ou a intenção da conversão.4 Segundo Ji, pode
não haver o termo “conversão” no Budismo (Kae-Jong – mudar alguém de
religião, como na Coreia), mas ele enfatiza a importância do Pokyo (proclamar
ou espalhar o ensino). Seu alvo é conduzir as pessoas à iluminação e assim
ganhar membros (Bul-ja).
De fato, todas as religiões têm esse objetivo, uns de forma mais intensa e às
vezes até agressiva e outros de maneira mais equilibrada. Cada religião alega
ter seu aspecto exclusivo, de uma forma ou de outra, para persuadir pessoas à
conversão, dependendo do sentido da palavra. Cada religião também tem seu
entendimento próprio de vida, sua origem, propósito e fim último.
Na opinião de Ji, as Nações Unidas deveriam proibir qualquer forma de
animosidade, condenação e denúncia pública e aberta contra a religião. A questão
não é controlar a liberdade religiosa, mas torná-la mais significativa.

| 3 RAJASHEKAR, Paul J. Navigating Difficult Questions. The Evangelizing Church. Richard H. Bliese
e Craig Van Gelder (editors). Minneapolis: Augsburg Fortress, 2005, p.92-96.
| 4 JI, Won Yong. A Priority Concern of the United Nations. In: Concordia Journal. Concordia Seminary,
Saint Louis, USA. Volume 27, january 2001, number 1, p.2-3.
14 A missão da Igreja no século XXI

1.3 Missão da Igreja: com que autoridade?


Dentro dessa liberdade religiosa, com que autoridade a Igreja Cristã prega o
Evangelho salvador do Senhor Jesus? Existem aqueles que defendem que todas
as religiões do mundo deveriam se unir numa causa comum e assim resolver
os problemas da fome, opressão, doença. A ideia estaria no fato de que esse
universo multifacetado de religiões acaba sendo uma ofensa contra a unidade
da humanidade.
Contrapondo esse ideal, a resposta poderia ser feita com outros
questionamentos. Por exemplo, em que a unidade de todas as religiões poderia
beneficiar na solução dos problemas sociais do mundo? Como seriam resolvidos
os problemas dos indivíduos, seu pecado, por exemplo? Ou isso seria ignorado?
Como poderia ser encontrado esse caminho de unidade?
A questão da autoridade talvez não devesse ser respondida ao tentar
demonstrar a utilidade da missão, mas analisar o fim último do empreendimento
missionário das igrejas cristãs.
A resposta geralmente dada a essa pergunta é o “imperativo apostólico”
citado pelos quatro evangelistas e também em Atos (Mt 28.18-20; Mc 16.22; Lc
24.47; Jo 20.21; At 1.8). Há ainda outros dois textos muito usados para defender
o exclusivismo da salvação em Jesus Cristo (At 4.12; Jo 14.6).5 Mas por que
alguém de outra religião deveria aceitar a autoridade das Escrituras? Lembrar
das realizações do cristianismo no passado? Os registros da história talvez não
favorecessem o argumento.
O assunto relacionado à autoridade foi levantado quando Jesus estava em
meio ao seu ministério terreno (Mt 7.29). Os escribas tinham autoridade, mas
era uma autoridade derivada. E esse não é o caso de Jesus. Sua autoridade é do
próprio Deus (Mc 11.28).
No início do evangelho (Mc 1.1-4), marcado pelo Batismo de João, é
possível perceber que os escribas não reconheceram essa autoridade, pois seria

| 5 Segundo Paul Rajashekar, esses textos não teriam tanto uma interpretação favorável ao
exclusivismo. De acordo com sua argumentação, no contexto de João o assunto estaria sendo o
caminho para a cruz e não um caminho exclusivo para o Pai. Em Atos o assunto todo se referiria
a “curar” e não à salvação. O ponto deste autor seria: não usar esses textos em comparação
com outras religiões, no sentido de anular ou denunciar a fé de outras religiões (RAJASHEKAR,
2005, op. cit., p.96-98).
A missão da Igreja no século XXI 15

incompatível com o seu comprometimento, com a lei de Moises. A autoridade de


Jesus é a última. O reconhecimento disso envolve arrependimento, mudança.
Os apóstolos também foram questionados no início de sua missão sobre
autoridade. Em nome de quem? Sua resposta foi de certa forma simples: “Em
nome de Jesus” (At 4.7-10). Para a Igreja Cristã esse “nome de Jesus” precisa ser
expandido para “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Na
verdade, a questão sobre Jesus Cristo é fundamental para a Teologia da missão,
pois isso vai determinar o Evangelho a ser pregado e como a própria missão
passará a ser entendida e praticada.6
Eu creio em Jesus também é uma confissão que pode dar suporte à questão
da autoridade em pregar o Evangelho. “Eu creio” é se colocar na posição de um
cientista que afirma sua crença numa verdade ou afirmação na Física. Todas
as afirmações que pretendem afirmar uma verdade são, em última análise,
afirmações de fé. O cristianismo firma e afirma sua fé e sentido de existência
em Jesus Cristo – encarnado, crucificado e ressuscitado. É interessante observar
que justamente o fundamento da fé cristã está baseado num fato histórico e
seus desdobramentos: o nascimento, ministério, crucificação e ressurreição do
Senhor Jesus.
A confissão de Jesus Cristo está baseada no seu senhorio absoluto. No mundo
greco-romano (contexto do Novo Testamento) havia “sociedades” oferecendo
salvação através de práticas e ensinos religiosos. No entanto, existia um caráter
distintivo na ecclesia Theou (congregação de Deus), pois suas reuniões eram
públicas e o chamado de Deus era para todas as pessoas.
A Igreja poderia ter escapado ou evitado a perseguição do império romano, se
tivesse feito como as outras sociedades e realizado cultos privatus (culto privado,
como era característico da maioria), mas pela confissão “Jesus é o Senhor”, a
implicação era realizar o cultus publicus (culto público), pois Jesus Cristo é o
Senhor de todos.
A origem da confissão em Jesus Cristo como Senhor e Salvador não é uma
escolha de caráter particular. Ela está confiada aos cristãos. Uma das tentações ou

| 6 Não se pode ignorar o fato de que na busca por tornar a mensagem cristã relevante procura-se
colocar uma “roupa moderna” no Salvador Jesus. John Stott lembra que Jesus já foi identificado
desde o “Cristo cósmico” até como “superstar”. O desafio é apresentar Jesus à nossa geração de
tal forma que corresponda ao Jesus revelado nas Sagradas Escrituras (STOTT, 1992, p.19-25).
16 A missão da Igreja no século XXI

ambições do ser humano é colocar a responsabilidade em cima de si mesmo. “Eu


decidi crer em Jesus e confessar o seu nome”. Mas a Palavra de Deus nos mostra
exatamente o contrário (Jo 15.16; Jo 6.44,65; Ef 2.8). Agostinho de Hipo escreve
que a salvação é do início ao fim a obra de Deus. Na escolha e no chamado a obra
é de Deus e esta verdade coloca em relevo outro ensino fundamental na missão
do povo de Deus nesse mundo: ele é beneficiário e portador das bênçãos de Deus.
Com que autoridade? Sou um servo do Senhor Jesus, essa é a resposta da Igreja
para continuar pregando as Boas-Novas da salvação no Filho de Deus.

1.4 Tempo bom para a missão


No livro Um conto de duas cidades,7 o autor começa seu texto assim: “Foi
o melhor dos tempos. Foi o pior dos tempos”. Por um lado, poderíamos dizer
que vivemos o melhor de todos os tempos para a missão. A educação parece
estar alcançando mais pessoas; temos a internet, celular; a ciência médica está
encontrando alternativas de curas antes inimagináveis; a economia dá sinais de
melhoras; há ampla liberdade religiosa e muitas igrejas cristãs estão abrindo as
portas de seus templos e pregando o Evangelho.
Porém, e por outro lado, temos que admitir que vivemos o pior dos tempos para
a missão. A qualidade da educação dá indícios de ter piorado, a violência parece
aumentar, o uso de drogas está atingindo níveis assustadores, o tráfico parece ser
um poder paralelo ao estado em vários lugares, o aborto tem adquirido ares de
normalidade, depressão e outras doenças vêm se manifestando (síndrome da fúria
intermitente), atividade sexual iniciando cada vez mais cedo, pobreza, banalização
da interpretação bíblica (teologias do sucesso, triunfo, prosperidade) e por aí vai.
Muitos desses paradoxos têm suas raízes na mudança filosófica do
modernismo para o pós-modernismo. No Renascimento (1300-1600) nasceu o
conceito modernista de que a verdade poderia somente ser descoberta através
da razão e está oposta à revelação divina. O ser humano era visto acima de tudo
como racional e sem importância espiritual.
O Modernismo respondia à questão “o que é a verdade” com métodos
empíricos, científicos e com processos analíticos. Qualquer verdade que não

| 7 DICKENS, Charles. Um conto de duas cidades. Círculo do Livro, 1997.


A missão da Igreja no século XXI 17

pudesse ser racionalmente observada e quantificada através de observações


empíricas e racionais, não poderia ser confiada. O supranatural era visto como
parte não integrante da vida.
Parece que esse tipo de abordagem começou a mudar no século XX. A verdade
já não era mais uma questão de objetividade, nem mesmo no Racionalismo. A
verdade passou a ser buscada e afirmada por cada cultura e indivíduo. Não há
mais verdade absoluta e a experiência pessoal de cada um passou a ser o elemento
determinante para se chegar à verdade. A revelação de Deus e a própria evidência
científica passaram a ser vistas como secundárias na defesa da verdade.
O resultado disso é multifacetado, mas, em termos de religião e fé, a
verdade passou a ser determinada como igual em todas as religiões, porque seu
fundamento está mais para a experiência de uma pessoa do que na revelação
objetiva de Deus.
Qual é o impacto desse contexto nos cristãos contemporâneos no caminho da
proclamação do Evangelho do Senhor Jesus Cristo? Pode até ser surpreendente,
mas a era pós-moderna tem algumas similaridades com o primeiro século da era
cristã. Quando Jesus inaugurou a missão no Novo Testamento, a família estava
em decadência, havia sincretismo, relativismo, desencanto com instituições e
ênfase no individualismo. Há outras características pós-modernas comuns a
todas as gerações. Mas talvez a principal delas seja a de que os seres humanos
de todos os tempos queiram definir Deus e a salvação segundo seus próprios
pensamentos.
Mas Deus não é dependente de tendências ou tempos. A relação com ele
também não é estabelecida de baixo para cima. É ele que vai à procura de seus
filhos (Lc 19.10), verdade que é tão bem sublinhada nas parábolas de Lucas
15. O cristianismo não está mudo ou impotente neste ambiente. Cristãos são
renascidos e também suas bocas são recriadas para falar, pois são criados e
recriados à imagem de Deus, cuja essência é falar. Ele começou toda a realidade
que conhecemos falando (Gn 1). Ele falou e toda a criação ganhou vida. Deus
chamou pessoas para falar, falando não muito mais do que uma promessa e
uma bênção (Gn 12.1-3). Sua intervenção decisiva na história, para realizar
sua obra da recriação, foi através da Palavra que se fez carne (Jo 1.1,14; Hb 1.2).
Jesus Cristo continuou chamando pessoas para falar. Ele formou um novo povo
para falar e “pescar gente”. A forma que isso se realiza é batizando e falando
18 A missão da Igreja no século XXI

(ensinar e pregar). O Batismo é o novo nascimento dentro da família de Deus


(Jo 3.3-6). No ensino e na pregação o povo também é regenerado pela semente
incorruptível (1 Pe 1.23), mas através deles acontece o processo de crescimento
e amadurecimento dos filhos de Deus, a fim de que eles vivam no desempenho
do seu serviço no corpo de Cristo (Ef 4.12-16).
Quando Cristo envia, ele envia para falar. O conteúdo da proclamação é
julgamento para os que confrontam e desprezam a sua palavra e paz e liberdade
para os que se reconhecem pecadores e dependentes da sua graça (Mt 16.19;
18.18; Jo 20.23). As missões encaminhadas por Jesus têm a ver com palavras de
arrependimento e vida (Mt 10; 28.16-20; Mc 6.7-13; Lc 10; 24.44-49; Jo 20.22-23).

1.5 O desafio do falar cristão num mundo caótico


O desafio de falar como cristão em nosso tempo não é pequeno. Quando o
cristão começa um diálogo com alguém não cristão, a agenda da conversação
é estabelecida na maioria das vezes pelas experiências vividas e vistas na
sociedade. Há muitas coisas belas ao nosso redor, mas há também traumas,
tragédias, tribulações e angústias, que fazem parecer que são estas que dominam
e determinam o curso da existência humana.
Como nesse mundo caótico pode existir um Deus bom?
A vida tem sentido em ser vivida em meio a tanto sofrimento e insegurança
e no fim a morte?
Será que existem céu e inferno? E se existirem, o que devo fazer para entrar
no céu?
Eu fui batizado muito tempo atrás, esse Batismo tem algum valor?
Se eu for para a igreja regularmente, vão acabar os meus problemas?
Cometi muitos pecados em minha vida, será que ainda tenho perdão?
A essas perguntas com certeza podem ser acrescentadas outras. Algumas
vezes elas são veladas e outras vezes verbalizadas, mas elas estão no coração de
muitas pessoas e Deus nos chama a falar a esses corações e articular respostas
que possam acalmá-los e devolver-lhes a segurança e a paz.
A missão da Igreja no século XXI 19

Onde começar? Falar de Deus num mundo caótico e pluralista exige alguma
reflexão e conhecimento.
Algumas dessas perguntas listadas acima podem ser triviais e outras
profundas. Contudo, seja qual for a questão, a reação inicial do cristão pode
ser com outra pergunta: “Por que você quer saber isso”? Em princípio, uma
conversação cristã tem mais possibilidade de fluir quando o cristão sabe o
porquê do seu interlocutor querer saber algo sobre a vida. Segundo Robert Kolb
(1995), o ser humano formula suas questões de uma dessas duas perspectivas:
duma posição de autossegurança, baseado na confiança de que pode viver sem
o recurso da confiança no seu criador; ou duma posição de insegurança, de
fragilidade, talvez desespero, consequência de decisões erradas e que o levam a
almejar uma nova base para sua vida.
Talvez esse conhecimento não seja absolutamente necessário, mas é
importante saber quem está tentando administrar sua vida e até administrar o
destino eterno com suas próprias mãos; quem está vislumbrando bênçãos divinas
aqui e na eternidade baseado na sua performance dentro da Igreja e quem se
reconhece fragilizado e arruinado e assim incompetente e incapaz de administrar
sua vida e destino eterno. O testemunho cristão precisa conhecer a agenda que
está atrás das questões das pessoas. É óbvio que a simples resposta não é o fim
do testemunho. Não podemos simplificar respostas. Elas precisam de uma base
sólida para que reflitam sabedoria e habilidade para falar de Deus. “Eis que eu
vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como
as serpentes e símplices como as pombas” (Mt 10.16); “Ide! Eis que eu vos envio
como cordeiros para o meio de lobos” (Lc 10.3).

1.6 O desafio do falar cristão em uma


sociedade pluralista
Numa sociedade em que a diversidade religiosa aumenta cada vez mais, os
cristãos deveriam se tornar mais astutos e teologicamente habilidosos para falar
de Deus. Eles deveriam reconhecer como a sociedade ouve e usa o termo “Deus”
e desenvolver estratégias próprias de falar sobre Deus e modos de desestabilizar
entendimentos não cristãos sobre ele, ao mesmo tempo em que falam sobre a
revelação de Deus.
20 A missão da Igreja no século XXI

É preciso reconhecer que os cristãos vivem em duas esferas e que o ato de


falar sobre Deus pode acontecer de diferentes formas, dependendo de seus
propósitos e metas. No reino da esquerda, nós nos interessamos pela justiça civil
em favor das criaturas de Deus que vivem sobre a Terra. No reino da direita, nós
nos preocupamos com a justiça espiritual.
O objetivo é examinar os modos como a nossa sociedade fala sobre Deus nos
dias de hoje, e então explorar um modo cristão particular de falar sobre Deus
e a qual é apropriada nas duas esferas da vida.

1.7 Falar de Deus na sociedade


Na sociedade de hoje, a palavra “Deus” é usada frequentemente sem o devido
cuidado. Podemos admitir falar de uma fé geral, a qual une até certo ponto a
sociedade. Ainda que haja ateístas, existe a fé na existência de Deus.
No contexto da religião civil, homens públicos usam (intencionalmente)
a palavra “Deus” de um modo genérico. Os presidentes eleitos das nações
dificilmente deixam de usar a palavra Deus em um discurso de posse. Os
políticos, muitas vezes, introduzem em seus discursos palavras como “Deus n[os]
abençoe”. Até passagens bíblicas às vezes são citadas. Porém, com significados
nem sempre claros. Após os ataques terroristas do 11 de Setembro, o presidente
dos Estados Unidos, George Bush, citou o apóstolo Paulo, “Nada pode nos
separar do amor de Deus...” (Rm 8.38-39). Ele saltou a cláusula seguinte, “que
está em Cristo Jesus.” Poucos duvidariam que o presidente Bush creia que o Deus
de amor encontra-se somente em seu filho Jesus Cristo, mas ele omitiu isso.
Talvez isso possa ser caracterizado por “sheilaísmo”. Uma jovem mulher
chamada Sheila descreve a sua fé desse modo: “Eu creio em Deus. Eu não sou
uma religiosa fanática. Eu não posso lembrar o tempo em que eu ia para a igreja.
Minha fé tem me conduzido por um longo caminho. Ela é como minha pequena
voz interior”. Em termos de princípios cristãos, ela diz: “Tente se amar e ser gentil
com você mesma. Tomem conta uns dos outros”. Aqui Sheila está se referindo à
“pequena voz interior,” a qual serve como fonte e guia para a sua fé.
Harold Bloom, autor de The American Religion, provavelmente citaria a fé de
Sheila como um exemplo de que a religião nos Estados Unidos (e no Brasil?) não
é outra coisa senão e sutilmente o próprio cristianismo. Ele argumenta que isso
A missão da Igreja no século XXI 21

é essencialmente gnóstico, o que gera a pergunta seguinte: “Como se descobre


o íntimo de alguém?”.8
Na linguagem da espiritualidade no gnosticismo, Deus está mais para uma
força impessoal que une o universo do que um ser pessoal que age dentro da
história. De modo geral, alguns podem até pensar que muitas pessoas de nossa
sociedade não querem um Deus particular e pessoal, Deus com um nome
identificável além do título “Deus”.
Os cristãos não estão livres da grande influência da sociedade em seu contexto
maior. Deus é visto como um ser pessoal e é identificado como um ser benigno
que nos ama (ex.: tolera ou aprova aquilo que nós gostamos de fazer). Realmente,
é interessante notar que, para os norte-americanos, 97% deles estão convencidos
de que Deus os ama, enquanto apenas 3% não acreditam nessa bondade de Deus
(Bloom)9. Muitas pessoas hoje descrevem a Deus assim: “Um Deus sem ira
trouxe homens sem pecado para dentro de um reino, sem julgamento, através de
Cristo sem uma cruz”. Mesmo entre cristãos isso pode não ser muito diferente. A
palavra “Jesus” frequentemente significa um pouco mais que uma maneira para
nomear a experiência pessoal do divino. Ou então Jesus é visto como alguém de
plantão esperando atender às necessidades diárias das pessoas.
Será que nosso país pode ser considerado uma nação cristã? Antigamente,
dizia-se que nosso país era católico. Hoje, com o avanço das religiões evangelicais
(evangélicos), chega a se considerar que o país esteja se tornando “evangélico”.
Porém, uma variedade de religiões do mundo tem fixado suas raízes e tem
florescido em nosso país. É um mar de mudanças religiosas que está remodelando
a paisagem religiosa brasileira. É interessante notar que as religiões do mundo,
quase que naturalmente, reverenciam e usam o nome de Jesus e providenciam um
lugar especial para ele dentro de sua hierarquia de nomes sagrados e símbolos.
Judeus, muçulmanos, espíritas e budistas podem aceitar Jesus como um de
seus profetas ou como um exemplo a ser seguido. Tanto o judaísmo quanto
o cristianismo são religiões messiânicas. Na verdade, quase todas as religiões
operam com a possibilidade e a necessidade de salvação. Para o islamismo,
Jesus é um profeta e um mensageiro de Alá. O hinduísmo moderno equipara

| 8 BLOOM apud ARAND, Charles. Strategies for God-Talk in a Pluralistic Society. In: Witness and Worship
in Pluralistic America. JOHNSON, John F. (Editor). St. Louis: Concordia Seminary, 2003, p.15.
| 9 Idem, p.15.
22 A missão da Igreja no século XXI

o impacto de Jesus sobre o povo como o de Gandhi. Os budistas interpretam


Jesus e sua mensagem à luz de seu próprio entendimento de Buda, apontando
impressionantes paralelos entre eles.
Além dos traços de caos, o pluralismo religioso é outra característica
do presente. Será que somos uma nação de muitas “fés”? Será que entre as
igrejas existentes hoje não se desenvolve uma teologia de pluralismo, que
automaticamente propaga a ideia de que o cristianismo deve ser mais teocêntrico
e menos cristocêntrico? Colocando de outro modo, o nome de Cristo deve
diminuir, enquanto o nome de Deus aumentar?
Uma grande tentação, e em muitos casos fonte de conforto, é afirmar “ele
crê em Deus” ou “Deus é um só”. Em outras palavras, a tentação será falar sobre
Deus sem falar de Cristo, para não “escandalizar” as pessoas que são de outras
religiões. E quando Cristo é anunciado, por vezes isso é feito de modo que não
seja identificado como a revelação definitiva, normativa e final de Deus.

1.8 O falar cristão sobre Deus na sociedade e na Igreja


Em meio à cacofonia de falar de Deus na sociedade de hoje, os cristãos
precisam tornar-se mais habilidosos quando professam o Evangelho da Escritura.
Quando usamos o termo “Deus”, sabemos que se refere ao Pai de Nosso Senhor
Jesus Cristo ou à primeira pessoa da Trindade. Mas, uma vez que nós saímos
das portas de nossa teologia e entramos nos campos missionários, onde se fala
de Deus sem essa pressuposição, torna-se necessário distinguir como falar de
Deus nos dois reinos, de dois modos diferentes para dois propósitos diferentes.
No domínio do primeiro artigo, e em consideração à criação, à sociedade e
à cultura, nós precisamos falar de Deus como o Criador. Mas no domínio
do segundo e do terceiro artigos, devemos falar do Salvador que está ligado
intimamente ao Criador.
Podemos falar sobre Deus usando o recurso de falar sobre a revelação natural
(Rm 1), mesmo se a identidade de Deus não pode ser conhecida da criação. Nesta
conexão, os cristãos frequentemente têm baseado o seu entendimento da lei
como um requerimento inegociável para a vida humana e a qual foi feita dentro
da fábrica da própria criação. Para promover o direito civil dentro da sociedade,
os cristãos sabem que é possível falar de Deus de um modo genérico.
A missão da Igreja no século XXI 23

No entanto, não podemos confundir esse falar de Deus com o monoteísmo


panteísta ou o dualismo platônico. Pela Escritura Sagrada, Deus é Deus porque
Ele e somente Ele nos criou. Em outras palavras, Deus e o Criador têm a mesma
identidade. Sua divindade é definida por sua atividade criadora. O falar de Deus
que não provoca uma nítida distinção entre o Criador e a criação (todas as
formas de monoteísmo – tal como Panteísmo, Panenteísmo e teologias da Nova
Era), tem a tendência de identificar Deus com a criação, ou com nós mesmos,
ou ainda com nossos planos e propósitos. E se os cristãos precisam dizer que, se
Deus é o criador de todas as coisas e se nós somos as suas criaturas, isso acarreta
não somente uma dádiva por parte de Deus, mas também acarreta possibilidade
de resposta e responsabilidade por nossa parte. A cada menção de Deus como
criador de céus e Terra, serve para lembrar que a nossa vida não é definitiva e
que nós permanecemos dependentes do Criador.
Porém, esse falar de Deus como o Criador é insuficiente quando se deseja falar
de Deus no reino da direita. Assim, quando o assunto é sobre o que leva as pessoas
a Deus ou o que traz conforto e paz, o nosso falar de Deus deve ser, diferentemente
dos outros, um falar de Deus em Jesus Cristo, um falar cristão. Mas também é preciso
cuidar o modo como nós usamos o nome de Jesus. Mais uma vez o argumento é o
mesmo quando falamos de Deus. Nosso pressuposto é que Deus é o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo. Assim, o nosso falar sobre Cristo é um recurso taquigráfico
para Jesus Cristo, o Filho de Deus e segunda pessoa da Trindade.
E aqui é preciso mencionar que a Cristologia é o fundamento da Trindade.
A pergunta que Jesus faz para a sua Igreja (“Quem vocês dizem que eu sou?” –
Mt 16) pode somente ser dita em termos trinitários. Jesus aparece num cidadão
galileu e faz saber que o Deus do Antigo Testamento é o Seu Pai. Esse vínculo
é confessado inequivocamente no Credo Apostólico (“e Seu único Filho”), e
no Credo Niceno (“da mesma substância com o Pai”). Jesus revela que Ele,
juntamente com o Pai, enviará o Espírito de Deus. Em breve, o Pai e o Espírito
não serão conhecidos sem Cristo. Sem Cristo, nós sabemos muito pouco de Deus.
Um Deus sem Cristo é um Deus oculto. A Reforma descobriria a verdade dessa
afirmação. Se os Pais da Igreja olharam para Cristo e procuraram a sua natureza
divina, vida divina e significado divino, Lutero olhou para Cristo e encontrou
o próprio Pai na pessoa de Jesus Cristo. Jesus e o Pai estão firmemente ligados,
nós aprendemos a pensar sobre Deus somente em Cristo, que é o reflexo do
coração do Pai. Falar de Jesus Cristo assim é falar do Pai.
24 A missão da Igreja no século XXI

A doutrina da Trindade, por sua vez, responde a questão “Quem é Jesus?”. O


Filho não é conhecido sem o Pai e sem o Espírito Santo. Sem o Pai, não há Filho.
O Credo Niceno afirma que o Filho coloca a sua origem eterna no Pai eterno. Ele é
Deus. Assim como o Filho deriva o Seu ser do Pai, assim também a missão do Filho
só pode ser entendida como iniciada pelo Pai e aprovada pelo Pai. Similarmente,
sem o Espírito, não há missão do Filho. Afinal de contas é o Espírito que coloca a
Palavra no mundo. É o Espírito que impeliu a missão do Filho ao deserto e é por
força do Espírito que o Filho ressurgiu da morte. Similarmente, sem o Espírito
Santo, a morte e a ressurreição de Cristo permaneceriam ocultas e a dádiva da
redenção permaneceria sem ser anunciada. O vínculo entre o Filho e o Espírito é
tão firme que nós não podemos falar do Espírito revelando Deus fora de Cristo.
Nesse contexto trinitário, devem ser mencionados dois pontos essenciais
para o Evangelho – ambos são escândalos para aqueles que não têm fé. Primeiro:
somente em Cristo nós conhecemos a Deus. Segundo: somente em Cristo nós
podemos colocar Deus crucificado na carne por nós. Por isso, nós devemos fazer
tudo o que pudermos para que o nosso falar sobre Cristo seja algo seguro, e não
algo incorporado ao modo genérico de falar sobre Deus.

Atividades de autoestudo
1. A posição exclusivista da Igreja Cristã, salvação somente em Jesus Cristo,
tem sido questionada cada vez mais e testada com maior intensidade nos
últimos anos. Há ainda os que argumentam que o pluralismo religioso
exige respeito, o direito de escolha do cidadão deve ser preservado e
cultivada a liberdade religiosa. Faça uma breve e objetiva avaliação,
no mínimo cinco e no máximo oito linhas, sobre o atual contexto
de pluralismo religioso e o papel da Igreja Cristã em sua missão de
proclamar Cristo nessa realidade.

2. Com que autoridade, ou em nome de quem a Igreja Cristã prega as


Boas-Novas do Salvador e Senhor Jesus?
a) Como as Escrituras têm a autoridade absoluta e inquestionável e
assim todos têm a obrigação de se submeter a elas, é em nome delas
que a Igreja prega a Jesus.
A missão da Igreja no século XXI 25

b) As realizações do cristianismo no passado garantem essa autoridade


e em nome delas que a missão ocorre hoje.
c) Pela autoridade do próprio nome de Jesus, e que precisa ser
expandido para “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”.
d) A questão da autoridade é irrelevante nessa discussão e deveria ser
evitada.

3. Diante de várias possibilidades de perguntas que podem ser formuladas


num contexto caótico e pluralista, o princípio de uma conversação cristã
tem mais possibilidade de fluir quando o cristão sabe o porquê do seu
interlocutor querer saber algo sobre a vida. Nesse sentido, é interessante
ter algumas pressuposições importantes:
a) Uma pessoa pode formular suas questões duma posição de
autossegurança, baseado na confiança de que pode viver sem o
recurso da confiança no seu Criador.
b) Uma pessoa pode formular suas questões duma posição de insegurança,
de fragilidade, talvez desespero, consequência de decisões erradas e
que o levam a almejar uma nova base para sua vida.
c) Uma pessoa pode formular suas perguntas duma posição de dúvida
e desejo de obter respostas para seus questionamentos.
d) Todas as opções anteriores respondem a questão.

4. Em relação ao nome de Deus, o testemunho cristão hoje deve estar


baseado:
a) em Deus Pai, Criador.
b) no Espírito Santo, o enviado do Pai e do Filho.
c) em Jesus Cristo, reflexo do coração do Pai e no Espírito Santo, o
ensinador.
d) nenhuma das alternativas anteriores está correta.

Respostas:
2.c 3.d 4.c
26 A missão da Igreja no século XXI

Referências
ARAND, Charles. Strategies for God-Talk in a Pluralistic Society. In: Witness
and Worship in Pluralistic America. JOHNSON, John (editor). St. Louis:
2003.
BLIESE, Richard H.; GELDER, Craig Van (editors). The Evangelizing Church.
Minneapolis: Augsburg Fortress, 2005.
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today: A Theology for Evangelism. Revised
Edition, St. Louis: Concordia Publishing House, 1995.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of
Mission. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company,
1995.
RECCORD, Robert E. No Better Time for Mission. In: One Incarnate Truth –
Christianity’s answer to Spiritual Chaos. NETTO, Uwe Siemon (editor). Saint
Louis: Concordia Publishing House, 2002.

Referência comentada
Está disponível em língua portuguesa um dos livros mais completos sobre a
Teologia da missão. Seu conteúdo aborda desde a natureza do ser humano, seu
maior problema, formas de abordagem, conteúdo da proclamação, até os meios
pelos quais Deus alcança esse ser humano caído em pecado, mas recuperado
em Jesus Cristo.
KOLB, Robert. Comunicando o evangelho hoje. Tradução de Dieter Joel Jagnow.
Porto Alegre: Concórdia, 2010.
2

Justificativa para a missão


Introdução
Onde está a base teológica, ou a fundamentação/justificação para a missão
da Igreja? Por que a Igreja é missionária? Por que a missiologia é objeto de
estudo da Teologia?
O pensamento central das Escrituras é a missão?
É obrigação da Igreja?
O objetivo neste capítulo é explorar algumas ideias sobre as questões acima
colocadas, para que o aluno no final esteja apto a respondê-las e, acima de tudo,
que ele verbalize o entendimento da missão como objeto de estudo da Teologia,
o que é missão e por que se justifica a missão da Igreja Cristã.

2.1 O lugar da missiologia na Teologia


Parece que a “entrada” da missiologia como disciplina num curso de
Teologia não foi tarefa simples. Houve um lento processo para essa integração
se consolidar.
Durante vários séculos havia apenas uma disciplina teológica. Não havia
subdivisões e era designada como um habitus. É por isso, talvez, que Martin
Kähler (1835-1912) prefere definir a missão como sendo a “mãe da Teologia”,
visto que o Novo Testamento foi escrito em grande parte num contexto
28 Justificativa para a missão

missionário. À medida que a Igreja avançava, faziam-se necessários ajustes


teológicos ou sistemáticos (Atos 15, por exemplo).10 A Teologia era gerada pela
situação emergencial em que se encontrava a Igreja em missão.11
O labor teológico desse tempo tinha como alvo a salvação, unidade e
reverência com Deus, piedade pessoal que incluía conhecimento, prudência e
a prática na vida cristã diária.12
No período pré-moderno, a Teologia era entendida como:
• cognição afetiva e individual de Deus e das coisas relacionadas a Deus
– um hábito da alma humana;
• um empreendimento autoconsciente de estudo.

Porém, sob o impacto do Iluminismo, essa disciplina una se fragmentou em


duas: a Teologia como prática, visando o trabalho clerical, e a Teologia como
ocupação mais técnica. Dessa primeira fissura surgiu o modelo quádruplo: Bíblia
(texto), História Eclesiástica (História), Sistemática (verdade) e Prática (aplicação).
Houve um deslocamento da Teologia como habitus para a Teologia como
ciências teológicas. Na avaliação de Bosch, a Teologia se tornou “amissionária”13,
e Bunkowske ainda vai mais longe ao afirmar que a Teologia a partir daí passou a
ser encarada como profissão, trabalho, e não vocação ou chamado.14
O modelo quádruplo acabou se universalizando nas faculdades e seminários
de Teologia. O passo seguinte está relacionado ao como achar uma brecha para
o estudo da missão.
Schleiermacher parece ter sido o primeiro a agregar a missiologia à Teologia
prática. Uma alternativa foi considerar a missiologia como disciplina teológica

| 10 O Concílio de Jerusalém foi convocado porque aparentemente alguns judeus cristãos pensavam
que gentios eram “menos aptos a serem salvos”. Quando esse é o caso, ou quando ainda hoje
se introduz algo do “nós” ou do “eu” na equação em como Deus nos salva, está se anulando a
graciosa salvação de Deus em Jesus Cristo. Esse concílio reafirmou que a salvação é unicamente
pela graça do Senhor Jesus Cristo (At 15.11).
| 11 BOSCH, David. Missão transformadora. Tradução de Geraldo Korndörfer e Luís M. Sander. São
Leopoldo: Sinodal, 2002, p.584.
| 12 BUNKOWSKE, Eugene. Educação Teológica e Missão. In: SEIBERT, Erni Walter (org.). A Missão de
Deus Diante de um novo Milênio. Porto Alegre: Concórdia Editora, 2000, p.112-129.
| 13 BOSCH, op. cit., p.585.
| 14 BUNKOWSKE, op. cit., p.118.
Justificativa para a missão 29

independente. Contudo, foi sob a influência de Gustav Warneck, professor na


Universidade de Halle (1896-1910), que a missiologia acabou sendo incorporada
no domicílio da Teologia.15
Só que esta evolução não garantiu a devida relevância à missão. Na avaliação
de Bunkowske, por exemplo, uma vez que a Teologia era concebida como uma
coleção de verdades organizadas por uma variedade de disciplinas, estava se
criando o problema moderno de construir uma ponte que ligasse essas verdades
isoladas e disciplinas separadas, com as aplicações da vida diária.16
Bunkowske acredita que a teologia sistemática pode estar até muitas vezes
num patamar superior e ocupa o lugar de disciplina principal no currículo
teológico.17 Porém, isso não deveria ser interpretado unilateralmente, pois
nos primeiros séculos da expansão cristã o grande número de controvérsias
teológicas pode até ter sido um fator de oposição, mas eram obstáculos a serem
transpostos, para que a mensagem cristã fosse entendida e anunciada com mais
clareza e consistência e a missão de Deus continuar seu curso.18

2.1.1 Teologia ou missão?


Teologia ou missão, o que vem antes? Num artigo escrito por William
Schumacher19, o autor destaca que há um vasto reino das escolhas nos tempos
pós-modernos e que esta prática parece se estender às vezes também ao campo
da Teologia. Porém, é preciso considerar o caráter restritivo nesse processo. Há
perigos de se escolher onde não pode haver escolhas.
Na Teologia isso poderia significar pretender escolher entre priorizar o
“aperfeiçoamento e o zelo pela doutrina”, para ser uma Igreja verdadeiramente

| 15
BOSCH, ibid, p.584-595.
| 16
BUNKOWSKE, ibid., p.116.
| 17
Idem, p.117.
| 18
RUDNICK, Milton L. Speaking the Gospel through the ages – A History of Evangelism. St. Louis:
Concordia Publishing House, 1984, p.16-24. Rudnick lembra que nos primeiros séculos da Igreja
Cristã houve várias controvérsias doutrinárias que precisaram ser debatidas, ensinos falsos que
exigiram ser refutados e assim a doutrina ser purificada. Dentre as forças opostas à evangelização
nos primeiros séculos estavam as doutrinas equivocadas dos judaizantes, docetistas, gnósticos,
marcionitas, montanistas, novacianos e arianos. Colocando na prática isso: foram precisos debates
teológicos [Sistemática] para a Igreja continuar a missão de Deus [Prática].
| 19 SCHUMACHER, William W. Theology or Mission? Concordia Journal, Volume 30, july 2004, number
3, Concordia Seminary, St. Louis, p.116-118.
30 Justificativa para a missão

confessional, ou dirigir o foco sobre o que “realmente importa”, que é o amor


pelas pessoas. Nesse caso, bastaria se fixar em alguns elementos essenciais dos
ensinos de Cristo e ser acima de tudo pragmático.
Esse parece ser um exemplo em que não pode, não precisa e não deve haver
opções de escolhas. Não se pode ser “confessional” sem ser “missional”, nem se
pode ser “missional” sem ser confessional”. Não é possível colocá-las na categoria
de equilíbrio, pois qualquer Teologia que não está imbuída com o amor de Deus
em buscar e salvar o perdido não é Teologia. Qualquer prática pastoral e eclesial
só é saudável, quando ela é teologicamente pura e vir acompanhada do amor
pelas pessoas. Teologia sem uma atitude missionária não é Teologia. Por outro
lado, qualquer preocupação evangelística e o zelo missionário não podem ser
fundamentados sobre uma teologia superficial ou aguada.
Não podemos fazer a teologia das gavetas, estudar as diferentes áreas da
Teologia sem ter como alvo a missão. A área bíblica investiga a base para a
tarefa apostólica da Igreja na missio Dei, o chamado de Israel para ser luz para
as nações (Is 49.6) e a grande Comissão de Jesus Cristo (Mt 28, Mc 16, Lc 24). O
estudo histórico da expansão da Igreja Cristã deve promover reflexões sobre suas
estratégias missionárias e impacto causado nas diferentes culturas e sociedades.
A teologia sistemática busca solidificar o pensamento e a consequente clareza na
aplicação da Cristologia, Soteriologia e Escatologia na missão e a interação da
fé cristã com o mundo secular. A teologia prática deve fomentar o debate sobre
estratégias e métodos para a implementação da missio Dei no mundo.20
Além de tudo, será que é possível imaginar a comunicação do Evangelho do
Senhor Jesus Cristo, no atual pluralismo religioso, sem fazer também reflexões
teológicas? Não. Para tanto, as diferentes áreas da Teologia devem servir como
propósito último à missão de Deus através da Igreja Cristã.

2.2 Conceituação de missão


O que é missão? Houve tempos em que missão era entendida de pelo menos
quatro maneiras: 1ª: salvar indivíduos da condenação eterna (Soteriologia); 2ª:

| 20 GRAFF, Anselmo Ernesto. Introdução. In: GRAFF, Anselmo Ernesto (org.). O Testemunho cristão
num contexto de diálogo inter-religioso. Porto Alegre: Concórdia, 2007, p.17.
Justificativa para a missão 31

expansão da Igreja Cristã ou denominação cristã (Eclesiologia); 3ª: missão às


vezes era entendida como história da salvação ou processo de transformação
para o Reino de Deus (História); e 4ª: apresentar às pessoas do Oriente e do Sul
as bênçãos do Ocidente cristão (Cultura).
De forma geral missão sempre foi essencialmente entendida como o envio
de missionários a outro território e as atividades empreendidas por eles naquele
lugar. Ou então missão era vista como propagação da fé, expansão do reinado
de Deus, conversão dos pagãos e a fundação de novas igrejas.21
Na verdade, o termo missão é relativamente recente. Até o século XVI, missão
era usado exclusivamente com referência à doutrina da Trindade, ou seja, o Pai
envia o Filho e que enviam o Espírito Santo. Foram os jesuítas que primeiro
usaram o termo se referindo à difusão da fé cristã entre pessoas que não eram
membros da Igreja Católica.22
Nós estamos acostumados a chamar “missão” a atividade de chamar outras
pessoas à fé no Salvador Jesus. Porém, é preciso notar que há outros termos
usados para descrever a mesma tarefa. Expandir o Reino de Deus; fazer
discípulos; plantar igrejas. Há ainda os que usam o termo “missão” no singular e
“missões” no plural. O primeiro é designado para descrever a atividade de Deus
em reconciliar a humanidade pecadora com Ele, enquanto que “missões” são
as ações das diferentes denominações, visando realizar a missão de Deus.23 Por
isso, uma compreensão mais precisa da missão e seus possíveis desdobramentos
envolvem a familiarização e o entendimento do conceito teológico de missio
Dei (Missão de Deus).

2.2.1 A caminho da missio Dei


David Bosch aponta para a Conferência de Brandemburgo, em 1932,
como ponto de partida para os desdobramentos de uma nova ideia de missão
e consequentes implicações para sua conceituação e Teologia. Lá, Karl Barth
começou a apresentar a missão como atividade do próprio Deus. Em 1933,

| 21 BOSCH, op. cit., p.17.


| 22 Idem, p.17.
| 23 SCHULZ, Klaus Detlev. Mission from the Cross – The Lutheran Theology of Mission. St. Louis:
Concordia Publishing House, 2009, p.13.
32 Justificativa para a missão

Karl Hartenstein manifestou posição parecida. Porém, foi em Tambaram, em


1937, na reunião do Conselho Missionário Internacional, que uma delegação
alemã alavancou o desenvolvimento dessa nova compreensão de missão. Estava
formado o embrião da missão como um ato criativo de Deus24 e a missão passou
a ser colocada na doutrina da Trindade.
O auge foi em 1952, na Conferência do CoMin em Willingen. Lá, a ideia, não
necessariamente o termo missio Dei, foi esculpida com maior precisão. A missão
passou a ser entendida como derivada da própria natureza de Deus. Se até 1952
houve progressos para se chegar à compreensão de colocar a missão no contexto
da Trindade, a partir daquele ano outro movimento foi acrescido: a Trindade
enviando a Igreja para dentro do mundo. A missão da Igreja não tem vida própria25
nem pode ser terceirizada, pois a Igreja Cristã e cada membro individualmente
são coparticipantes da ação missionária de Deus que visa à salvação do mundo.
Missão não é uma dimensão independente da Igreja e nunca deve soar como Lei,
mas ser empreendida de acordo com o Evangelho. Em outras palavras, missão, do
ponto de vista de Deus, é mandato, mas do ponto de vista dos cristãos não, pois
é privilégio e honra estar a serviço do Senhor na sua missão.26
O conceito de que a origem da missão está além de nós mesmos é descrito
assim de um ponto de vista católico: “A missão é uma resposta ao plano do Pai;
é a continuação da missão do Filho; é a colaboração com o Espírito Santo”.27
A Igreja é missionária por sua própria natureza, porque esta se origina da
Missão de Deus. Missão não é só e simplesmente expandir e implantar igrejas
ou a salvação de almas, mas é representar a Deus no mundo, apontar para Deus,
revelar a Deus.

2.2.2 Conceito de missio Dei


O primeiro interessado em missão é o próprio Deus. A origem está nele. O
primeiro missionário foi o próprio Deus PAI (Jo 3.16-17); que enviou o FILHO
com a missão de buscar e salvar o perdido (Lc 19.10); que enviam o ESPÍRITO,

| 24 BOSCH, op. cit., p.467.


| 25 Idem, p.467.
| 26 JI, Won Yong. A Lutheran Understanding of Mission: Biblical and Confessional. Concordia Journal,
Volume 22, Number 2, April, 1996, p.141.
| 27 COPPI, Paulo De. Por uma Igreja toda missionária. São Paulo: Paulus, 1994, p.15.
Justificativa para a missão 33

para convencer o mundo do pecado, que há salvação em Jesus Cristo, para


converter, para ensinar (Jo 14.26) e apontar para o próprio Cristo. “Quando,
porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da
verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim” (Jo 15.26).
E a Trindade envia a Igreja (Jo 20. 21-23). Missão como mandato e ato divino
é levar o Evangelho da salvação de Jesus Cristo às pessoas em todos os lugares,
através de palavras e ações. É um privilégio e honra coletivamente e dos seus
membros individualmente.
Não existem três épocas, só existe a época de Cristo, que precisa ser anunciado
a todos. A função da Igreja é realizar a missão de Jesus: consolar, pregar o
Evangelho, batizar, perdoar, cuidar. Missão não pode ser vista nem soar como
Lei. Missão é a fé em ação com a impulsão do Espírito Santo.
A Igreja é participante da missão do Filho. Esse fundamento verticaliza a
missão (At 2.47; 16.14), porque a missão é de Deus. Deus quer salvar a todos e
para tanto quer dispor de todos os crentes para esse empreendimento. A Igreja
repete o que Deus fez e faz e aponta para o que ainda será feito.
Missão passou a ser entendida como participação na missão do Deus triúno,
nos cuidados da criação divina e no estabelecimento do senhorio de Cristo sobre
toda a criação redimida.28 É o envolvimento de Deus no mundo e no qual a Igreja
tem o privilégio de participar. Missão é olhar para o mundo com os mesmos
olhos que Deus olhou e olha, com amor e atenção.
Portanto, missão deve ser entendida como sendo a atividade geral de Deus
no mundo e, quando o termo envolve a Igreja, ela deve ser entendida como a
sua ação global em pregar, administrar os sacramentos (Batismo e Santa Ceia),
nutrir, testemunhar, ensinar, cuidar de enfermos, idosos e demais necessitados,
promover a comunhão e o serviço social.
Já o termo evangelização, por sua vez, pode ser entendido como sendo a tarefa
específica de despertar ou reanimar a fé no Salvador Jesus onde ela não existe.
Evangelizar é chamar pessoas ao arrependimento e anunciar-lhes o perdão dos
pecados em Jesus Cristo. Assim, missão não pode ser identificada somente com

| 28 VICEDOM, Georg F. A Missão como Obra de Deus. Introdução à Teologia da Missão. Tradução de
Ilson Kayser. São Leopoldo: IEPG/Sinodal, 1996, p.15.
34 Justificativa para a missão

evangelização, porém é decisivo e fundamental afirmar que a evangelização é


uma dimensão decisiva e essencial da missão e da Igreja.
Assim, missão, quando aplicada à Igreja, pode ser entendida como agir
dela com a intenção específica de testemunhar as Boas-Novas do evangelho do
Senhor Jesus Cristo.29

2.3 Missão: “Mãe” da Teologia


Martin Kähler, professor em Halle e Bonn, afirma que a “a Missão é a mãe
da Teologia”.30 Os escritos do Novo Testamento não foram produtos de pesquisa
acadêmica, ou somente num contexto de controvérsias doutrinárias, mas foram
escritos no contexto de uma Igreja em movimento. Quando a Igreja se encontrava
com o mundo, então era feita Teologia.
A observação dos evangelhos sinóticos já aponta para esse aspecto missionário
do Novo Testamento. Mateus foi escrito para convencer os judeus de que Jesus é
o Messias prometido no Antigo Testamento. Marcos quer convencer os romanos
de que Cristo é o verdadeiro Deus e o verdadeiro homem. Lucas escreve para
um oficial romano para contar a história do nascimento do Salvador de todos
os gentios. E João parece sublinhar essa verdade de maneira muito relevante:
“Na verdade fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão
escritos neste livro, estes porém foram registrados para que creiais que Jesus
é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo tenhais vida em seu nome” (Jo
20.30-31).31
Não há um termo abrangente para definir missão/evangelização no Novo
Testamento, mas há alguns conceitos que carregam consigo uma dimensão

| 29 SHERER, James A. Gospel, Church, & Kingdom. Comparative Studies in World Mission Theology.
Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1987, p.37.
| 30 BOSCH, op. cit., p.34.
| 31 Uma interessante discussão sobre esse versículo é sobre a intenção de João com as palavras
“para que creiais”. Uns dizem que ele é evangelístico, ou seja, esse livro foi escrito para não
cristãos chegarem à fé. Outros afirmam que esse livro é para os já cristãos continuarem a crer
e serem confortados e consolados com essas palavras. O debate gira em torno da forma verbal
do verbo crer na língua grega. Presente do subjuntivo ou aoristo, “para continuarem a crer” ou
“que venham a crer”. A diferença está apenas na presença ou não da letra sigma¸ correspondente
ao s na língua portuguesa. O detalhe até pode ser minúsculo, mas é significativo, na medida
em que torna possível dizer também a partir disso que esse evangelho carrega tanto o alvo
evangelístico como o fortalecimento e o conforto daqueles que já são cristãos.
Justificativa para a missão 35

missionária significativa. “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5.13-14); “perfume


de Cristo (2 Co 2.15); “exemplos” (1 Pe 2.12) e “sacerdotes” (1 Pe 2.9). Há pelo
menos uma referência, mesmo que num contexto específico, mas interessante
em que os cristãos são estimulados a falar da esperança que orienta suas vidas.
“Antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre
preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que
há em vós” (1 Pe 3.15).

2.3.1 Da ressurreição a Antioquia, de Antioquia para mundo


A missão no sentido de comunicar o Evangelho do Senhor Jesus Cristo
começou logo após a sua ressurreição (Lc 24.9; At 2.22-24; 4.18-20; 8.4, 26-
40). Antioquia foi o primeiro grande centro missionário da Igreja Primitiva.
Esta foi a comunidade que inaugurou o cristianismo sem barreiras raciais ou
cerimoniais, tornando-se o primeiro grande centro de propagação da fé cristã
(At 11.19-26).32
Podem ter havido várias razões para a expansão do cristianismo, mas a precoce
entrada e adoção da cultura helenística parece ter sido um fator significativo
para o Evangelho ser espalhado de Antioquia para outras regiões.
Sendo um importante polo comercial e político, Antioquia foi um ponto
de partida significativo para as viagens missionárias do apóstolo Paulo, bem
como de outros possíveis empreendimentos missionários. Edessa (cidade das
águas), por exemplo, supõe-se ter sido um lugar com forte presença de uma
comunidade cristã33, e como sua linguagem era predominantemente Siríaca,
dali o cristianismo se espalhou para a Mesopotâmia e a Pérsia.34
Baseado em Rm 15.19-20, é defensável o pensamento de que havia outros
missionários na área da Palestina e Ásia Menor. É provável que o apóstolo Paulo
houvesse sido impedido de pregar em algumas regiões, porque outros cristãos
missionários o haviam precedido nesses lugares (At 16.6-10).35

| 32 LATOURETTE, Scott Kenneth. A History of the Expansion of Christianity (Volume I). New York:
Harper & Brothers Publishing, 1937, p.72.
| 33 NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of Mission. Grand Rapids,
Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1995, p.3.
| 34 LATOURETTE, ibid., p.102.
| 35 Idem, p.82.
36 Justificativa para a missão

Alguns dos lugares para os quais o cristianismo foi espalhado: 1 Pedro 1.1; Atos
15.41; 21.1-6; 27.3; 28.13-14; Tito 1.5; 1 Coríntios 1.1-2; 1 Tessalonicenses 1.1.36

2.4 Igreja e missão


Este foi um começo extraordinário da Igreja Cristã. Porém, a história das
missões revela posteriormente uma fratura exposta entre a Igreja e a missão.
Diferente do que o livro de Atos e os primeiros anos do cristianismo mostram,
quando Igreja e missão eram praticamente sinônimos, ou ações sobrepostas, a
prática missionária do século XIX exibe um quadro diferente e insustentável
para a Igreja e a missão.
Um dos aspectos que desempenhava grande influência na missão era
a doutrina da Igreja. Ela era considerada mais como uma organização
administrativa, do que como uma criação divina.37
Separar a Igreja da Missão resultou em consequências estranhas. Missionários
eram formados em instituições especiais e sua terminalidade não era reconhecida
pela Igreja. A ordenação era feita por uma sociedade missionária, para uma
atividade missionária, entendida como sendo um envio para além-mar e não
para ser um despenseiro do Ofício da Palavra e dos Sacramentos.38
O cerne da questão parece ter estado no conceito de Igreja, como no próprio
conceito de missão, ou mesmo em ambas.
Para Neill, o fato mais grave era de que a maioria dos missionários protestantes
não eram homens de Igreja. Muitas missões eram empreendidas pelo esforço
pessoal de cristãos e não sob a responsabilidade da Igreja.39 Na avaliação de

| 36 Latourette ainda menciona o cristianismo alcançando a tribos árabes, Índia (p.107), Armênia
(p.105), Espanha (p.97) e Itália (p.96). Informa que na carta escrita na metade do século II,
por Plínio de Bitínia, para o Imperador Trajano, ele está dizendo que o cristianismo se espalhou
pelas cidades e mesmo na área rural (p.88-89).
| 37 NEILL, Stephen. História das Missões. Tradução de Fernando Barros. São Paulo: Vida Nova, 1964,
p.522.
| 38 Idem, p.522.
| 39 Aqui se pode mencionar o movimento estudantil cristão. Num deles, em 1886, mais de 250
alunos se reuniram em Massachusetts para uma conferência missionária, e o lema foi: “Todos
devem ir e ir a todos”. Na época, cem estudantes se comprometeram à obra missionária. O alvo
era a evangelização do mundo nesta geração e em 1887, mais de 2 mil estudantes aderiram ao
convite da missão num país estrangeiro (SHERER, op. cit., p.13).
Justificativa para a missão 37

Coppi, a evangelização da América Latina foi um processo comandado pelas


Coroas espanhola e portuguesa. O trabalho eclesial dependia da aprovação e
manutenção real. “É quase nulo o contato com Roma.”40
Porém, o desenvolvimento e a consolidação do conceito de missio Dei foram
decisivos para formulação de uma Teologia missionária verticalizada, mas com
implicações horizontais. Ou seja, a missão é exclusiva e primariamente a obra
de Deus, mas a Igreja é seu instrumento para efetivação dela.

2.4.1 Por que é necessário um portador das Boas-Novas?


O “escândalo” da particularidade
Deus deseja a salvação de todos (1 Tm 2.4; 2 Pe 3.9) e por isso ele quer que
o Evangelho seja pregado em todo o mundo (Mc 16.15). Por que é necessário
um agente ou um portador das Boas-Novas? O “escândalo” da particularidade é
um problema? Um indiano, por exemplo, poderia perguntar: por que não posso
ser salvo a partir da minha experiência particular?
O “escândalo” da particularidade é um dos aspectos importantes na missão.
Como relacionar o universalismo com as obras e escolhas particulares de Deus?
Israel, um povo selecionado entre muitos? Josué, uma pessoa entre várias? “Vós
adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação
vem dos judeus” (Jo 4.22). “Muita, sob todos os aspectos. Principalmente porque
aos judeus foram confiados os oráculos de Deus” (Rm 3.2). A universalidade
da salvação está lado a lado com a necessidade de missionários. “Porque: todo
aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele
em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como
ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados?
Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!”
(Rm 10.13-15).
A Palavra de Deus apresenta, ao mesmo tempo, o propósito da salvação
universal, levado a efeito através de escolhas e ações particulares.
• Abraão, o pioneiro da fé, um indivíduo, para nele as bênçãos de Deus
alcançarem todas as famílias da Terra (Gn 12.3).

| 40 COPPI, op. cit., p.35.


38 Justificativa para a missão

• Moisés é o agente escolhido para guiar o povo de Israel à sua libertação;


Josué, para encaminhar o povo à terra prometida (Êx 3.7-10; Js
1.1-2).
• Israel é a nação escolhida para ser um reino de sacerdotes por toda a
terra (Êx 19.5-6).
• Os discípulos são escolhidos para serem “pescadores de homens” (Mc
1.17).
• A Igreja também é um reino de sacerdotes (1 Pe 2.9) para pregar, batizar
e ensinar (Mt 28.16-20). Um/poucos, em favor de muitos; particular –
universal. Deus escolhe alguns para serem bênçãos para mais e muitas
pessoas.

Por que olhar para um agente? No caso dos indianos, salvação é a libertação
de um mundo/universo que se confunde, para ser diluído no ser supremo. Há
uma convicção de autonomia, o destino nas mãos de cada indivíduo, por que
há necessidade dessa intermediação?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o ser humano criado por Deus
só existe em relacionamento com outras pessoas. Na criação começa a missão
(Gn 1.28; 2.15). A real vida humana na concepção de Deus é uma vida de
relacionamento com o Criador. Na real vida humana há responsabilidades
com a criação e com as outras criaturas. A Bíblia nos convida a ver o real ser
humano numa vida de mútua responsabilidade pelo mundo criado, natureza
e criaturas.
Além disso, o Deus Criador é Deus das relações. Ele se revelou em seu Filho
Jesus Cristo (Hb 1.1-2) e não há salvação exceto pelo relacionamento pessoal
com Cristo através da fé. A salvação não vem de forma direta, mas é necessário
um portador (Rm 10.14). A primeira ação salvadora de Deus foi na eternidade
(Ef 1.3-4) e em Cristo todos foram escolhidos para serem salvos. Não há eleição
fora de Cristo, também não há salvação sem os meios da graça, a saber, Palavra,
Batismo e Santa Ceia.
Essa trajetória de portadores aconteceu desde o início. A primeira aliança de
Deus é com todos, sem condições (Gn 9.17); quando a humanidade perde esta
bênção com seu imperialismo na torre de Babel (Gn 11.1-9), Deus escolhe uma
das famílias para ser portadora das bênçãos em favor de todos (Gn 12.1-3). Essa
Justificativa para a missão 39

família, como nação, é superior? Não. Essa escolha foi baseada puramente no
amor. (Dt 7.6-8). Vale notar que a conduta pagã às vezes é superior (Gn 12.10-20;
26.1-11; Gn 27 e 33). O povo de Deus por vezes tem a ilusão de que desfruta de
uma posição privilegiada diante de Deus. Com derrotas, destruição e exílio, Israel
precisa aprender que eleição não é para conforto, mas para instrumentalidade,
o que pode significar sofrimento e humilhação.
O povo da aliança também precisa aprender que aliança não é contrato
bilateral, mas graça de Deus. O verdadeiro sinal de ser o povo da aliança não é o
cumprimento da Lei, mas o poder regenerador do Espírito Santo (Rm 2.17-29).
A Lei destrói qualquer possibilidade de construção de uma justiça própria diante
de Deus. Ela fecha portas e só Deus por sua graça as abre. A Lei foi adicionada
para revelar a condição original de propensão para o mal do ser humano (Gl
3.19; Rm 5.20).

2.4.3 Por que a Igreja faz missão?


Pode ser válida ainda a resposta de que a razão de se fazer missão está no
desejo de Deus em salvar a todas as pessoas. No entanto, essa também acaba
sendo uma promessa de tantas outras religiões, que oferecem ajuda e soluções
existenciais e eternas.
A pergunta que poderia ou deveria então ser feita é por que Deus quer salvar
os seres humanos? Que resposta temos a dar às outras religiões? Porque Deus
é o Senhor! A missão assim passa a ter seu fundamento no senhorio régio de
Deus. E este conceito pode ser conciliado com a missio Dei, pois, embora não
seja o mesmo processo, há pontos em comum.
Deus quer a missão, porque ele é missionário, e assim à Igreja não é permitido
optar entre fazer missão ou não fazer, mas em decidir se ela quer ser Igreja. “Não
há participação em Cristo sem participação em sua missão neste mundo.”41 E,
ainda, “Igreja que não é uma Igreja em missão, nem Igreja é”.42 Vicedom reforça
esse ponto de vista afirmando que “não cabe à Igreja decidir se quer fazer missão,
mas ela só pode decidir se quer ser Igreja”.43

| 41 NEWBIGIN, op. cit., p.1.


| 42 Idem, p.2.
| 43 VICEDOM, op. cit., p.16.
40 Justificativa para a missão

A própria Igreja é o resultado da atividade missionária de Deus e não o ponto


de partida. Por isso, não há missão da Igreja, mas missão de Deus em que a
Igreja é instrumento imprescindível. Deus está constantemente enviando para
salvar. Ele envia forças impessoais que apontem para seu senhorio (as pragas
no Egito, a fome, o azeite...), ele envia profetas, fez o envio especial em Jesus
Cristo, e agora é a Igreja que é enviada ao mundo para apontar e ser a portadora/
testemunha do Reino de Deus.

2.5 O senhorio de Deus


Em conexão com o conceito do Deus missionário, também como resposta
ao porquê da missão, existe ainda a possível reflexão em torno de um assunto
numa outra perspectiva. Aqui é preciso deslocar para um território um tanto
desconhecido, mas ainda tentando fundamentar a resposta à pergunta: por que
temos que fazer missão? Sem desconsiderar a resposta acima, mas visualizando
um novo horizonte cunhado por Vicedom44, de que talvez já é possível perceber
em Lutero na sua explicação da segunda petição do Pai-Nosso.

Mas o que significa Reino de Deus? Que Deus enviou ao mundo a


Cristo, seu Filho, nosso SENHOR, para que nos redimisse e libertasse
do poder do diabo e nos levasse a ele e nos governasse como rei da
justiça, da vida e da bem-aventurança, contra o pecado, a morte e
má consciência.45

De acordo com Vicedom, a resposta para o porquê da missão está no senhorio


de Deus. “O alvo da missio Dei é incorporar os seres humanos na Basileia tou
theou, no senhorio de Deus, e transmitir-lhes seus dons”.46 Assim, a mira da
missio Dei é transferir os seres humanos para o domínio do Senhor Jesus: “Ele
nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do
seu amor, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados” (Cl 1.13-14), onde

| 44 Idem, p.20.
| 45 Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. Catecismo Maior, p.463.51-52.
Tradução de Arnaldo Schueler, 4.ed. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal e Concórdia, 1993.
| 46 VICEDOM, ibid., p.21.
Justificativa para a missão 41

há redenção e remissão dos pecados. O fim último então não seria a justificação
pela fé, mas é a partir dela que o cristão é bem-vindo de novo no Reino de Deus,
tendo de volta a relação correta com seu criador. Se a contaminação original do
pecado rompeu essa comunhão, a justificação pela fé a restaura.
Assim, o alvo da missio Dei nos faz olhar de volta ao paraíso que já era, mas
que pode ser restabelecido parcialmente através de Cristo, e para o paraíso
futuro, esse a ser manifestado em sua plenitude. Aqui está o grande diferencial
entre a missio Dei e a “missão” das religiões não cristãs. Enquanto o cristianismo
leva a sério o pecado e suas consequências, pois rompe a comunhão original
e paradisíaca de Deus com os seres humanos e os afasta do Reino de Deus, as
outras religiões oferecem, quase sempre através de esforços próprios, a absorção
numa divindade e a fuga de um ciclo reencarnacional, que não soluciona o
problema da culpa, da rebelião contra o senhorio de Deus e a vivência pacífica
com toda a criação de Deus.
Embora o paraíso eterno seja “o alvo” da missio Dei, outro objetivo, não menos
importante, é recolocar o ser humano na correta relação com o seu criador,
através de Jesus Cristo, por meio da justificação pela fé.

2.5.1 O outro reino


A queda em pecado resultou num abismo enorme entre Deus e as pessoas.
Enquanto essa relação não estiver completamente restabelecida, sob qual
dominação o ser humano está submetido?
A Palavra de Deus pode não revelar detalhes sobre a origem da existência
do mal, mas descreve sua ação: opor-se a Deus e aos seres humanos (Mt 12.26;
13.19; Mc 4.15; Lc 8.12; 22.31-32; Jo 8.44; Ef 6.11).
O diabo é o maior inimigo do Reino de Deus. Onde Cristo é proclamado, há
a oposição do “outro reino”. O objetivo do senhorio de Deus e o que dá sentido
ao seu envio é destruir as obras do diabo e julgar o príncipe do mundo (1 Jo 3.8;
Jo 16.11). É preciso contar com essa realidade, ainda que considerando sua ação
limitada por causa de Cristo (Ap 20.1-2), para sermos capazes de executar as
tarefas na missio Dei. Fora de Cristo o mal está presente e vem mascarado nas
mais diversas formas (2 Co 11.7-15).
42 Justificativa para a missão

Esse “outro reino” exerce força sobre as pessoas. Deus precisa resgatá-los e
transportá-los para o seu Reino e comunhão com Cristo (Cl 1.13; At 26.16-18),
o que é de fato a missão da Igreja de Cristo.

2.5.2 O agir salvífico de Deus


A Bíblia revela tudo aquilo que é importante para a salvação de todos os seres
humanos. Essa revelação acontece na intenção de salvar a humanidade. A missio
Dei é o governo de Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Há a missio Dei especial em
Jesus Cristo e no dom do Espírito. Há o envio de profetas e apóstolos. Mas Deus
também se utiliza de forças impessoais para afirmar seu governo, bem como
anunciar sua graça e seu juízo. Deus envia a espada (Jr 9.16), mas também o
cereal, o vinho (Jl 2.19). Deus envia a fome da Palavra (Am 8.11), mas também
a redenção (Sl 111.9). É um envio constante e que visa reafirmar seu governo
(Am 4.6-13).47 Nesse sentido, a missão emana de Deus e fazer missão é falar do
senhorio de Deus.

Atividades de autoestudo
1. O termo missão foi sendo moldado e aperfeiçoado ao longo do tempo.
Hoje, missão deve ser entendida como sendo a atividade geral de Deus no
mundo, e, quando o termo envolve a Igreja, ela deve ser entendida como
a sua ação global em pregar o Evangelho, administrar os sacramentos
(Batismo e Santa Ceia), nutrir seus membros com a Palavra, testemunhar,
ensinar, cuidar de enfermos, idosos e demais necessitados, promover
a comunhão e o serviço social. Escreva de cinco a oito linhas sobre as
implicações decorrentes dessa definição à Igreja hoje.

2. Quando o assunto envolve a Teologia (reflexões sistemáticas) e a Missão


(prática), o certo é afirmar:
a) que qualquer prática pastoral e eclesial só é saudável quando ela é
teologicamente pura e vem acompanhada do amor pelas pessoas.

| 47 As pragas no Egito também tinham como alvo revelar o Senhor como Deus, em contraste com
os deuses egípcios (Êx 7.17; 9.14, 27; 10.2).
Justificativa para a missão 43

b) que é preciso colocar a Teologia e a missão na categoria de


equilíbrio.
c) que o mais importante é o amor pelas pessoas.
d) que a Teologia sempre teve e sempre terá primazia sobre a
missão.

3. O “escândalo” da particularidade é um dos aspectos importantes e


desafiadores na Teologia da missão. O que é importante saber na relação
do universalismo (o desejo de Deus em salvar a todos) e as escolhas
particulares de Deus?
a) As escolhas de Deus sempre foram baseadas puramente no amor,
tendo em vista o caráter instrumental e não em algum sinal de
favoritismo.
b) O ser humano criado por Deus só existe em relacionamento com
outras pessoas e há responsabilidades com a criação e com as outras
criaturas.
c) Em Jesus Cristo todos foram escolhidos para serem salvos.
d) Todas as afirmações acima são importantes.

4. O que pode ser válido responder à questão “por que a Igreja faz
missão”?
a) Porque Deus quer salvar a todas as pessoas, essa é a resposta que
basta.
b) Porque Deus é missionário e Senhor e seu desejo é recolocar o ser
humano na correta relação com o seu Criador, através de Jesus
Cristo, por meio da justificação pela fé.
c) Porque é um mandato irrevogável de Deus.
d) Nenhuma dessas respostas é satisfatória do ponto de vista
bíblico.

Respostas:
2. a 3. d 4. b
44 Justificativa para a missão

Referências
BOSCH, David. Missão Transformadora. Tradução de Geraldo Korndörfer e
Luís M. Sander. São Leopoldo: Sinodal, 2002.
BUNKOWSKE, Eugene. Educação Teológica e Missão. In: A Missão de
Deus diante de um novo milênio. SEIBERT, Erni Walter (org.). Porto Alegre:
Concórdia, 2000.
COPPI, Paulo De. Por uma Igreja toda missionária. São Paulo: Paulus,
1994.
NEILL, Stephen. História das Missões. Tradução de Fernando Barros. São
Paulo: Vida Nova, 1964.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of
Mission. Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1995.
SHERER, James A. Gospel, Church & Kingdom. Comparative Studies in World
Mission Theology. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1987.
SCHULZ, Klaus Detlev. Mission from the Cross – The Lutheran Theology of
Mission. St. Louis: Concordia Publishing House, 2009.
VICEDOM, Georg F. A Missão como Obra de Deus. Introdução à Teologia da
Missão. Tradução de Ilson Kayser. São Leopoldo: IEPG/Sinodal, 1996.
3

O Reino de Deus e a missão


em duas dimensões
Introdução
O reino do mundo ou do diabo exerce força sobre as pessoas. Elas estão
como que sequestradas e incapazes de se libertar. Elas precisam ser resgatadas.
Deus as resgata para o Reino de Deus e sua comunhão através de Jesus Cristo
(Cl 1.13). Essa é sua missio.
O Reino de Deus é a manifestação abrangente de Deus sobre tudo e sobre
todos, mesmo que nem todos se deixem chamar para dentro dele. Tudo está sob
o domínio do Senhor. Não existe um poder paralelo. Em última análise, até o
reino do diabo tem que servir ao alvo do Reino de Deus. “Teu reino e teu poder”
são paralelos no Salmo 145.11. No mundo inteiro e sobre o mundo inteiro o
Senhor reina (Sl 93.1; 99.1; 103.19; Mt 6.13).
No Reino de Deus não existem diferenças raciais e os contrastes sociais estão
superados (Mt 8.11; Lc 13.29). O Reino é o alvo de Deus (Mt 6.33; Rm 14.17).
Quando perguntado sobre o Reino, Jesus Cristo respondeu a seus discípulos
que, enquanto comunidade no mundo, eles pertencem ao Reino na medida em
que vivem e caminham pela fé (Lc 17.20-21). Essa foi a caminhada do povo
de Deus no Antigo Testamento. Deus “satisfez” ao seu povo com as promessas
messiânicas no Antigo Testamento. Se por um lado o Reino de Deus abrange todo
46 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

o agir do Deus Triúno no mundo, é na obra salvífica de Cristo que ele encontra
um portador. O Messias é o portador do Reino de Deus e a sua realização.
O objetivo deste capítulo é possibilitar ao aluno a compreensão sobre o Reino
de Deus, conteúdo, alcance e presença, bem como identificar a missão em sua
bidimensionalidade, a saber, a missão como obra exclusiva e primária de Deus
e a responsabilidade humana nesse projeto divino.

3.1 Jesus Cristo, conteúdo do Reino


O que é “novo” em e com Cristo? João Batista e os profetas também
proclamaram o reino. Falar sobre Jesus é falar sobre o Reino de Deus. Reino de
Deus agora tem nome e tem face, o próprio Cristo.
Como sabemos que Jesus Cristo é o conteúdo ou a presença do Reino de
Deus?
O Reino se realizou com o Messias, embora não tivesse sido da maneira
esperada. Continua sendo tropeço, ou então graça e julgamento.
Quando João Batista manda perguntar se Jesus era aquele que deveria vir
(Mt 11.2-3), sua resposta é a profecia de Isaías 35.5-6 e 61.1-2.
A descrição do Dia do Senhor é salvação (Is 10.20-23; Jr 29.10-14) e
julgamento (Am 3.1-2; Jr 16.10-13). Os profetas quando falam do “Dia do
Senhor” podem falar da visitação breve, messiânica, ou final. E essa expectativa
e anúncio dos profetas do Antigo Testamento se cumpriram em Cristo. Com
Jesus o “Dia do Senhor” está presente. Ele próprio afirma isso (Mt 12.28) e sua
presença é ao mesmo tempo graça e julgamento (Is 2.9-11; Sf 1.2-3 – Mt 28.4;
Jo 18.6). A própria criação entrou em convulsão (Is 10.10-13; 24.19-20 – Mt
27.45, 51).
Em Cristo há salvação e ruína, bênção e escândalo, libertação e possibilidade
de ofensa (Mt 9.2; Lc 2.34; 4. 21, 29; 20.17-18). Esse caráter de graça e julgamento
também é percebido na proclamação do Reino. Anunciar sua presença significa
realizar obras que o autenticam (Mt 10.32-33), mas também significará
julgamento, pois alguns não receberão a mensagem.
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 47

3.1.1 O Evangelho do Reino de Deus


Se a missão da Igreja é proclamar o Evangelho, isso diz respeito a proclamar o
Reino de Deus, sinônimo no Evangelho de Mateus de Reino dos céus, linguagem
do próprio Evangelho.
Qual é o conteúdo do Evangelho do Reino? A expressão he basileia tou theou
(Reino de Deus) no Novo Testamento designa o governo real de Deus no fim dos
tempos, antecipado e prometido no Antigo Testamento. O anúncio desse governo
real no fim dos tempos pressupõe uma estrutura de duas épocas: a presente geração
má e o futuro período santo. Poderes do mal usurparam a boa criação de Deus.
Morte, pecado, o diabo e seus anjos conspiraram a fim de governar o mundo e
escravizar as criaturas humanas de Deus, as quais caíram em pecado. A vinda do
governo real no fim dos tempos significa que o Criador reivindica para si a sua
criação, expulsa os usurpadores maus e dá vida eterna com Deus. Quando esse
tempo chegar, haverá uma guerra contra o pecado, a morte e o diabo, e somente
Deus pode vencer esses senhores maus. Criaturas humanas caídas em pecado não
são capazes de subsistir diante de tais poderes mais fortes.
É instrutivo investigar a linguagem que os evangelhos sinóticos usam para o
Reino de Deus. O Reino de Deus chega próximo às pessoas e Deus o concede.
Porém, elas não o dão para outros. Pessoas o recebem, entram nele, herdam-no,
mas não podem estabelecê-lo, construí-lo ou antecipá-lo através de suas ações.
Pessoas podem dizer não para ele, mas não podem destruí-lo. Elas trabalham
em favor do Reino, mas não podem exercer influência sobre ele. É o reino e o
governo de Deus e que não está sujeito a palavras e ações dos seres humanos.
Antes de Jesus entrar em cena, o tempo do reinado de Deus estava longe,
antecipado e prometido no Antigo Testamento, mas ainda não “próximo”.
Entretanto quando Jesus entrou em cena, o prometido Reino de Deus recebeu
contornos visíveis. Toda a obra de Jesus aponta para a inauguração do Reino de
Deus dos últimos dias (Mt 12.28).
O último dia ou futuro Reino de Deus apareceu “antes da hora” na história
com a vinda de Jesus. A prometida mudança da “presente geração má” para a
futura “geração santa” invadiu a presente era através do ministério de Jesus. Este é
o prometido e glorioso reinado do fim dos tempos do próprio Deus e que chegou
antecipadamente, mas numa maneira abscôndita (oculta), no humilde Jesus de
Nazaré. Esse é o mistério do Reino que veio através de Jesus, numa presente e
48 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

contínua geração má. Aos olhos humanos pecadores, parece que nada mudou
com a vinda de Jesus Cristo, mas os olhos da fé veem em Jesus o verdadeiro
Reino de Deus antecipado e prometido no Antigo Testamento.
O livro de Daniel nos mostra que há uma básica e fundamental distinção entre
o Reino de Deus final e os reinos deste mundo (Dn 2.44). Essa distinção continua
no Novo Testamento. Os reinos deste mundo não têm autonomia, mas estão sob
o governo de Deus, que preserva o mundo através de reinos terrenos.
Nós vivemos num tempo entre a antiga era e o governo final de Deus, entre os
reinos do mundo e o reino final de Deus. Esse período de “sobreposição” permanecerá
até a Parousia de Cristo. Vivemos num tempo de cumprimento das promessas, mas
ainda não a consumação. Quando Cristo virá em glória, nossas vozes entoarão as
palavras de Apocalipse 11.15 e ouviremos o convite de Jesus Cristo (Mt 25.34).

3.1.2 O Reino de Deus presente hoje


Onde está o Reino de Deus hoje? De acordo com o Novo Testamento, ele
está onde Jesus está. Somente Deus pode estabelecê-lo e ele o faz através do seu
Filho Jesus Cristo. E onde está Jesus Cristo? Ele está onde o Evangelho do Reino
é pregado de forma pura, onde o seu Batismo e sua Ceia são celebrados. Lá está
o glorioso reinado de Deus do fim dos tempos.
O fundamento da Igreja Cristã é Cristo Jesus. Uma vida continuada significa ter
o Filho de Deus como o fundamento (1 Co 3.11). Proclamando o Evangelho (Rm
10.17), celebrando a Ceia do Senhor (1 Co 11) e batizando (Rm 6). A obra salvífica
só pôde ser levada a efeito por Cristo, mas no Batismo e Ceia há uma contínua e
renovada participação no seu morrer e vencer (2 Co 4.10; 1 Pe 4.12-14).
A continuação da missão de Cristo está na Igreja. Os cristãos foram
consagrados para essa missão. Para tanto, a Igreja é chamada a exercitar o que
Cristo espera dela: serviço humilde (Jo 13.1-20) e amor mútuo (Jo 13.34-35).
A Igreja tem a promessa da companhia do Espírito (Jo 20.21), para que ela seja
proclamadora e portadora da paz e do perdão (Jo 14.12-31; Rm 5.1), para que a
oposição seja oportunidade para testemunho (Jo 15.18-27) e seja sempre guiada
à verdade (Jo 16.8-15).
A Igreja é um movimento enviado para dentro da vida do mundo a fim de
conduzir os dons de Deus. A Igreja proclama e é portadora em sua vida do Reino.
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 49

Não há explicações populares para Deus confiar esse tesouro a um povo pecador e
teimoso (Êx 33.5), apenas reparar que a fé cristã está centrada na cruz. Lá, o Reino de
Deus está manifestado e oculto ao mesmo tempo. O poder de Deus está na fraqueza,
a sabedoria de Deus na loucura. “Eu creio que o Reino de Deus está presente no meio
de um povo pecador, fraco e fragmentado. Não através de algum poder ou bondade
gerados de si mesmo, mas porque Deus chamou e escolheu a companhia de pessoas
para serem portadoras do presente da salvação em favor de todos.”48
Enquanto isso, a missão da Igreja é proclamar o Evangelho do Reino de Deus
a todas as nações, é fazer discípulos de todas as nações batizando-os e ensinando-
os. Nesta missão Jesus está conosco até a consumação dos séculos.

3.2 Missão de Deus e responsabilidade humana49


A afirmação que a missão e todas as atividades desdobradas dela devam ser
uma prioridade das igrejas não é nenhuma novidade. Há um consenso bastante
significativo sobre isso. Dr. C. F. W. Walther, o primeiro presidente da Igreja
Evangélica Luterana nos Estados Unidos, por exemplo, sistematizou uma das
mais claras afirmações acerca da necessidade da missão e da evangelização.

Como vocês veem, queridos irmãos... nós não estamos reunidos aqui
por nossa própria causa. Nós estamos na fé, e por meio desta fé nós
temos a esperança de ser salvos! Mas, ainda existem muitos milhões
que não têm fé! Esta é a razão de estarmos aqui... a fim de que
possamos trazer salvação para o máximo de pessoas possível, para
que esta triste situação na Cristandade, a corrupção dos pobres e
cegos pagãos possa ser remediada... Somente por esta razão nosso
Deus gracioso permite que os cristãos vivam na Terra, para que eles
tragam outros à fé salvífica. De outra forma, Deus levaria o cristão
ao Céu tão logo ele fosse convertido.50

| 48 NEWBIGIN, op. cit., p.54.


| 49 PETER, David J. A Framework for the Practice of Evangelism and Congregational Outreach. In:
Concordia Journal, Volume 30, julho de 2004, número 3, p.203-216.
| 50 WALTHER, C. F. W. Essays for the Church: Duties of an Evangelical Lutheran Synod. St. Louis:
Concordia Publishing House, 1992, Volume II, p.60-62.
50 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

A concordância geral sobre a primazia da missão evangelística não


significa que discordâncias e até controvérsias sobre a prática da evangelização,
especialmente pessoal, estiveram ausentes dentro da Igreja Cristã. Nas décadas
mais recentes estas controvérsias focaram principalmente na influência
do Movimento de Crescimento da Igreja, cuja ênfase é num triunfalismo
missionário e que por sua vez está condicionado a planejamentos bem elaborados
e execuções competentes.
Esse tipo de abordagem gerou controvérsias. E uma razão significante para tal
discordância é que, enquanto a prática da evangelização é executada em uma matriz
bidimensional (vertical e horizontal), missão de Deus/responsabilidade humana,
muitos a reduzem a uma só dimensão. O conflito surge quando se enfatiza uma
única dimensão e se exclui virtualmente a outra, enquanto outros reduzem a prática
da tarefa missionária à dimensão que é negada pela primeira posição.
Essa seção propõe um modelo, no qual ambas as dimensões serão abordadas
e tidas como complementares (não excludentes), enquanto se reconhece que
uma permanece primária e a outra secundária. Espera-se que a partir deste
modelo o estudante tenha um guia para diálogo sobre o controvertido tópico da
prática evangelística e saiba, acima de tudo, discernir entre a dimensão primária
e secundária da missio Dei e as implicações decorrentes desse conceito.

3.2.1 Um modelo para entender a prática da tarefa


missionária
Normalmente, podem-se identificar duas posições contrárias (e errôneas) na
prática missionária da Igreja. Uma pode ser denominada de “reducionismo da
dimensão horizontal” e a outra de “reducionismo da dimensão vertical”. É claro,
a não ser que os significados de “dimensão horizontal” e “dimensão vertical”
sejam definidos antes, elas permanecerão sem sentido nesta discussão. Para se
fazer isso, um padrão para a compreensão da prática da Teologia em termos mais
amplos terá que ser considerada, para que depois isso seja aplicado na prática
da missão e evangelização da Igreja.
Esse modelo é construído sobre a compreensão dos dois tipos de justiça
articuladas por Martinho Lutero e Filipe Melanchthon. Entretanto, essa proposta
de reflexão está baseada primariamente em um molde providenciado por Joel
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 51

Biermann em sua dissertação de doutorado.51 O documento de Biermann foca


o assunto na dimensão da prática de virtudes da ética, mas o exemplo pode
também ser aplicado à prática missionária e evangelística da Igreja.
Essencialmente, este modelo distingue entre justiça coram hominibus (justiça
diante dos homens) e justiça coram deo (justiça diante de Deus). A justiça diante
de Deus é visualizada como a dimensão vertical, envolvendo nosso relacionamento
com Deus. A justiça diante dos homens é visualizada como a dimensão horizontal,
representando nossa interação com outros seres humanos. A justiça horizontal é
uma justiça ativa – nós estamos ativamente envolvidos na busca desta justiça aos
olhos de outras pessoas por meio de nossos bons e sábios atos. A justiça vertical
é uma justiça passiva, pois ser encontrado justo diante de Deus é ato recebido
passivamente pela fé na obra consumada de salvação por causa de Cristo. A justiça
horizontal é, como Melanchthon disse, “a justiça da razão”, pois é produzida pela
razão humana conforme o homem estuda a ordem criada. A justiça vertical,
entretanto, não pode ser alcançada através da razão humana, pois, como Lutero
mesmo declara: “Eu creio que não posso por minha própria razão ou força crer no
Senhor Jesus Cristo ou vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho,
iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé”.52
Biermann apresenta uma representação visual deste modelo e providencia
um comentário sobre ele:

1 = justiça 1 (governadora)
2 = justiça 2 (justificadora)
3 = justiça 3 (santificadora)
A = realidade da criação
a = conexão entre 2 e 3

| 51 BIERMANN, Joel. Virtue Ethics and the Place of Character Formation within Lutheran Theology.
Saint Louis: Concordia Seminary, 2002.
| 52 LUTERO, Martinho. Livro de Concórdia. Catecismo Menor. Tradução de Arnaldo Schüler. São
Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993, p.371-6.
52 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

Nesta figura, os três tipos de justiça estão presentes. Justiça 1 é a justiça


governadora, a moralidade de todos os povos perante os homens, e encontra sua
fundação na ação de Criação de Deus. Justiça 2 é justiça justificadora. É aqui,
na dimensão vertical, coram deo, que a realidade da dualidade Lei/Evangelho
reina sozinha. A justiça vertical é declarada pelo Segundo Artigo do Credo
Apostólico e conferida no Terceiro Artigo. Ou seja, a reconciliação com Deus é
unicamente pelos méritos de Jesus Cristo, e quem convence os seres humanos
dessa verdade é o Espírito Santo. Justiça 3, justiça santificadora, cresce do ato
monergista divino da justiça 2 e deve juntar-se a ela. O terceiro tipo de justiça é
unicamente cristão e direcionado pelas verdades do Segundo Artigo. Esta ainda
volta ao mundo criado do Primeiro Artigo. Aqui, neste caso, o cristão persegue
uma vida virtuosa coram hominibus, diante dos homens, mas uma vida que
é também agradável a Deus. Tanto o amor de Deus quanto a necessidade do
próximo são fontes de motivação. Finalmente, circunscrevendo todo o esquema,
está a realidade da Criação (Primeiro Artigo). O fato de o círculo englobar todo
o esquema representa a verdade que todos os tipos de justiça são alcançados ou
praticados dentro da estrutura do mundo criado de Deus.
É evidente que a prática missionária ou evangelística da Igreja encaixa-
se no terceiro tipo de justiça, porque o ato do testemunho do cristão é uma
manifestação de sua vida de santificação. Neste sentido, o testemunho é exercido
na dimensão horizontal, porque envolve a interação do cristão com outras
pessoas, especialmente não crentes. Mesmo assim, a prática missionária e de
testemunho não é exclusivamente uma faceta da dimensão horizontal. É claro
que o ato de conversão por si só (que é o resultado pretendido pela evangelização)
encaixa-se exclusivamente sob o segundo tipo de justiça, a dimensão vertical,
pois a conversão é realizada por Deus Espírito Santo e unicamente por Ele.
Ao viver a vida santificada (que inclui a vida de testemunho), o cristão age em
ambas as dimensões, vertical e horizontal. Problemas surgem quando o cristão
vê a si mesmo (ou a denominação vê a si mesma) como algo que funciona em
uma só dimensão.
O erro de muitos hoje é que eles aglomeram a prática da evangelização e
tarefa missionária em uma das duas dimensões, em vez de mantê-las em ambos
os eixos perpendiculares. Assim, alguns reduzem a dimensão horizontal como
o contexto único para a missão e a evangelização e outros reduzem a dimensão
vertical para essas tarefas da Igreja.
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 53

3.2.2 Reducionismo da dimensão horizontal


Problemas surgem quando a prática da tarefa missionária da Igreja é reduzida
apenas à dimensão horizontal. Isso ocorre quando a prioridade é colocada na
atividade humana que acontece em programas e esforços evangelísticos. O ponto
de referência para esta abordagem é similar àquela estratégia de marketing:
o público-alvo “compra” o produto. Em outras palavras, o que se afirma ser
eficiente no programa evangelístico da Igreja é sua sensibilidade e maestria em
cultura humana, comunicação, publicidade e dinâmica organizacional. Sucesso é
definido e medido de acordo com valores dos negócios e comércio (isto é, aquilo
que parece ser bem-sucedido coram hominibus, diante das pessoas).
É difícil imaginar que uma Igreja Cristã não afirme o papel do Espírito Santo
na missão de forma mais ampla e mais especificamente na evangelização (isto
é, a dimensão vertical). Entretanto, o serviço missionário praticado por alguns
indica um colapso na dimensão horizontal. Esta abordagem monodimensional
é manifestada pela preocupação ou enfatuamento com conceitos vindos da
publicidade, técnicas de comunicação, administração e posição estratégica que
predomina acima da proclamação do Evangelho.
Richard John Neuhaus identificou sete proposições que podem caracterizar
o que se refere aqui como reducionismo da dimensão horizontal:
1. o propósito controlador da Igreja é a evangelização definida como
estratégia de marketing para o recrutamento de novos membros;
2. a Igreja não é uma comunidade normativamente moldada no tempo,
mas um projeto cujo produto deve ser desenvolvido e negociado pelas
pessoas;
3. o estilo ou formas da vida da Igreja podem ser dispensáveis se o alvo
de marketing da Igreja assim o requerer;
4. os meios da graça são definidos como meios de eficácia, ou seja, a
Palavra, Batismo e Santa Ceia são vistos como meios para apenas
“melhorar” os seres humanos pecadores e não necessariamente conferir
o perdão de Deus, a vida e a salvação;
5. eficácia do trabalho missionário é medida pela resposta da audiência
apenas na forma de experiências ou sentimentos espirituais;
54 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

6. a pregação da cruz é comprovada pelo sucesso em experiências pessoais


e crescimento institucional;
7. a confiança no relacionamento com Deus é baseada em experiências
que os cristãos podem identificar como experiências com Deus.

Christian Schwarz identifica esta abordagem monodimensional como


paradigma “tecnocrata” no qual “o significado de instituições, programas,
métodos, é superestimado”, e a missão como obra de Deus, subestimada. O termo
“tecnocrata” é útil aqui porque abrange a compreensão que o poder real para
conversão nos esforços missionários é encontrado na técnica empregada e não
na ação de Deus Espírito Santo. Samuel Nafzger descreve este reducionismo de
evangelismo horizontal como segue:

O Velho Inimigo Maligno constantemente procura perverter o


precioso Evangelho tentando-nos a confundir os meios de se levar
o Evangelho [identificado neste ensaio como a dimensão horizontal]
com os meios da graça [dimensão vertical]. Ele vem a nós com
sua voz mais orgulhosa dizendo que é o nosso uso dos meios que
ganham o perdido para Cristo e que faz a Igreja crescer. Algumas
vezes esta tentação aparece na crassa forma de tentar nos convencer
que são nossas técnicas, nosso planejamento, nossos meios, nossa
habilidade de persuasão, nossas boas intenções e nossas estratégias
que fazem a diferença. Quem nunca em algum momento acreditou
nesta “grande mentira”?53

A prática missionária não é exclusivamente interesse da dimensão horizontal.


É claro que o ato de conversão (o resultado desejado da evangelização) encaixa-
se na justiça coram deo e, assim, na justiça vertical. Isso é verdade, visto que a
conversão é efetuada por Deus Espírito Santo e somente por Ele. A evangelização
acontece na dimensão vertical porque envolve a ação de Deus que traz vida ao
indivíduo que estava perdido. Embora ideias oriundas da comunicação e da
interação humanas (ideias que se originam na dimensão horizontal) podem

| 53 NAFZGER apud PETER, op. cit., p.211.


O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 55

beneficiar a prática da evangelização, é apenas a ação do Espírito Santo por


meio do Evangelho que efetua a conversão. Da mesma forma, a dimensão
vertical possui a função primária no objeto da tarefa missionária da Igreja de
Cristo – a conversão do perdido. Quando esforços humanos ou técnicas são
identificados como tendo a função primária, o Evangelho é obscurecido. Esta
é a razão por que o reducionismo da dimensão horizontal é tão mortal para a
prática da missão evangelística.

3.2.3 Reducionismo da dimensão vertical


Embora o erro do reducionismo da dimensão horizontal caracterize algumas
denominações em sua prática do trabalho missionário da Igreja, há ainda
outro erro que é tão perigoso quanto o reducionismo horizontal. Este erro
frequentemente resulta de uma reação contra o reducionismo da dimensão
horizontal. Ele ocorre quando se engloba toda prática da evangelização na
dimensão vertical, desconsiderando e até menosprezando aspectos da dimensão
horizontal. Quando isso acontece, a dimensão vertical torna-se a única matriz
para a prática de missão.
O reducionismo da dimensão vertical ocorre quando a prática da evangelização
é entendida puramente como a ação de Deus (vertical) com uma negação (ou
minimização) do papel humano (horizontal). A missão e a evangelização ficam
reduzidas à aplicação dos meios da graça, só que esta aplicação é desprovida
– e até se rejeita – do uso de estratégias de comunicação e métodos que são
providos pelo estudo do comportamento humano, relacionamentos interpessoais
e distinções culturais. Na verdade, um programa de missão eclesial que utiliza
ideias e reflexões da comunicação humana e da dinâmica organizacional,
sociologia ou antropologia cultural é visto por esta abordagem como algo
suspeito (na melhor das hipóteses) e, provavelmente, até pecaminoso.
Um exemplo de aderência a esta posição é quando se evitam as reflexões das
ciências sociais por medo de que o uso delas seja uma acomodação a influências
“mundanas”. Quando há relutância em participar na cultura temendo que a
cultura adultere a Igreja. Da mesma forma, quando se hesita em mover a Igreja
a esforços missionários, porque tal tarefa requer participação na cultura. Sua
prática na tarefa missionária é limitada a proclamar a pura Palavra para aqueles
que participam do culto, administrar o Batismo e catequizar aqueles que se
56 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

apresentam para o ensino. Entretanto, pouco se faz (ou nada) no sentido de


expressar, em formas sensíveis à cultura, a mensagem do Evangelho para aqueles
que não estão na Igreja.
Aqueles que afirmam que “o Espírito Santo faz tudo agindo por meio da
Palavra e Sacramentos, por isso, não faça nada”, indica o colapso de se aglutinar
tudo na dimensão vertical. A prática de missão neste caso limita-se somente à
ação de Deus, independente da atividade humana, separado do planejamento
humano, estratégias, programação que usam os recursos da sociologia,
antropologia cultural e teoria da comunicação e organização.
No entanto, este reducionismo da prática missionária e evangelística na
dimensão vertical é perigoso para a missão da Igreja. Isso porque a prática
da tarefa missionária da Igreja não é exercida exclusivamente na dimensão
vertical, mas também na dimensão horizontal. A missão ou a evangelização são
praticadas na realidade humana criada, no Primeiro Artigo do Credo Apostólico,
ou seja, no reino da criação de Deus Pai Todo-Poderoso. Mas eles são também
exercidos no Terceiro Artigo, do Espírito Santo, porque é uma manifestação da
vida santificada. O cristão é motivado para evangelizar pelo amor de Deus que
o regenerou e pela necessidade do próximo descrente, que está espiritualmente
perdido e destinado para a condenação eterna. Mesmo assim, como Biermann
deixa claro, santificação (Terceiro Artigo) é vivida na realidade da Criação
(Primeiro Artigo).
Assim, desconsiderar algumas das ideias das ciências sociais e de especialistas
em questões culturais é atrapalhar os esforços da Igreja em comunicar o
Evangelho. É claro que estas ideias devem ser avaliadas criticamente para que
elas exerçam um papel instrumental (não judicial) ao Evangelho, para que “nós
tornemos todo o pensamento cativo e obediente a Cristo” (2 Co 10.5). A forma ou
o método de evangelização é mais efetivo quando considera ideias que estão de
acordo com a maneira que Deus criou o mundo e os seres humanos, ideias que
podem ter sido descobertas mesmo por não cristãos (tais como um sociólogo
ou um teórico de organização). Robert Kolb afirma:

Conhecer o texto bíblico não é suficiente para o testemunho cristão


eficaz. A tarefa de construtor de pontes demanda um conhecimento
de nossos semelhantes que estão ao nosso redor, e precisamos utilizar
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 57

as ferramentas de disciplinas acadêmicas modernas que são também


produtos da mão criativa de Deus, para compreendermos o mundo que
nos cerca. Os cristãos precisam reconhecer que aqueles que praticam
essas disciplinas sempre deixam seu trabalho ser influenciado por
suas próprias pressuposições e visão de mundo. Não podemos nos
enganar achando que existe alguma verdade “objetiva” em cada
ideia de cada cientista social. Mesmo assim, sejam quais forem
as ideologias que possam influenciar os modernos estudiosos de
psicologia, sociologia ou antropologia, por exemplo, estas disciplinas
ainda oferecem os meios de captar certas categorias de pensamento
dos nossos contemporâneos, bem como algumas ideias sobre os
caminhos em que as criaturas humanas andam. Esses conhecimentos
são úteis e necessários para a análise sobre o motivo pelo qual a vida
não está funcionando para a pessoa a quem estamos testemunhando,
bem como para a formulação da mensagem do dom da vida de Deus
em Cristo para essa pessoa.54

Dessa forma, a razão humana serve como um reforço evangelístico à medida


que é fiel ao Evangelho. Isso reflete o uso instrumental da razão no Terceiro
Artigo. Melanchthon reconheceu que a justiça horizontal, a “justiça da razão”, é
produzida quando o homem emprega sua razão para estudar a ordem criada e
usa isso para o propósito desejado por Deus. E, certamente, um dos propósitos
principais de Deus para seu povo redimido é alcançar a todos os que estão
perdidos e distantes do Evangelho.

3.2.4 Conclusões: tarefa da Igreja dentro das duas dimensões


Samuel Nafzger observa: “Sempre haverá algo misterioso sobre como a Igreja
cresce. Quanto mais eu estudo Teologia, mas eu me convenço que erro é resultado
de se ensinar uma verdade fora do contexto, pegar um pedaço da verdade e agir
como se isso fosse a verdade toda...”. É verdade que a evangelização é praticada na
dimensão horizontal, na realidade e no contexto da interação humana. Mas isso
não é toda a verdade. Igualmente, a tarefa missionária é exercida na dimensão

| 54 KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today: A Theology for Evangelism. Revised Edition, St. Louis:
Concordia Publishing House, 1995, p.15.
58 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

vertical, na interação entre Deus e o povo. Isso é verdade, mais ainda não é toda
a verdade. A verdade inteira é que tarefa missionária eclesial é executada em
ambas as dimensões: horizontal e vertical. Eliminar uma ou outra é ensinar a
verdade fora de seu contexto, o que acaba resultando em erro.
O erro é englobar todo o trabalho missionário e evangelístico em uma das
duas dimensões, em vez de mantê-los em ambos os eixos. Da mesma forma,
alguns reduzem a missão da Igreja à dimensão horizontal e dependem do
“último método aprovado” para fazer publicidade da Igreja sem se importar
com as implicações teológicas de tudo isso. Outros reduzem a evangelização
à dimensão vertical e rejeitam o uso instrumental que os esforços humanos
(incluindo estratégias correspondentes a culturas e contextos mutantes) possuem
na tarefa missionária. Esta dicotomia falsa atrapalha o trabalho da missão que
agrada a Deus e que é capacitada pelo Espírito Santo. Uma abordagem holística
à tarefa da evangelização incorporará ambas as dimensões.
Nesse ponto também se deve afirmar que uma dimensão serve a outra. A
dimensão horizontal é instrumental da dimensão vertical. Ideias do Primeiro
Artigo oriundas da sociologia ou teoria da comunicação (dimensão horizontal)
são usadas também para expor ao povo a mensagem do Evangelho que o Espírito
Santo usa para converter (dimensão vertical).
O trabalho do Espírito Santo na dimensão vertical é primário. Nossas ações,
ou nosso “querer e realizar”, que são efetuadas na dimensão horizontal, são
secundárias. Mesmo assim, a atividade humana é necessária para introduzir a
Palavra do Evangelho dentro do contexto nos quais os descrentes a ouvirão e
pelo qual o Espírito Santo operará a fé. Nesse sentido, a dimensão vertical – os
divinos meios da graça – é essencial. Mas a dimensão horizontal – o uso de
métodos de missão e estratégias guiadas por uma compreensão da cultura, da
comunicação e dos relacionamentos humanos – é também valiosa como auxílio
instrumental.
Esta compreensão bidimensional da tarefa missionária eclesial nada é mais
do que uma abordagem encarnacional. Ela reconhece que o trabalho de Deus
Espírito Santo na conversão é efetuado dentro da moldura da criação e da
natureza criada dos seres humanos, que são tanto objetos da redenção de Deus
como agentes de Sua missão.
O Reino de Deus e a missão em duas dimensões 59

Atividades de autoestudo
1. Pode-se afirmar que a prática missionária da Igreja é executada em
uma matriz bidimensional (vertical e horizontal), missão de Deus/
responsabilidade humana. Porém, muitos a reduzem a uma só dimensão,
acarretando equívocos teológicos e práticos. Faça uma avaliação dessa
abordagem em aproximadamente oito linhas, destacando o que é
primário e o que é secundário nesse modelo.

2. A respeito da proclamação e presença de Cristo, é certo afirmar que:


a) onde Cristo é pregado só a graça de Deus é manifestada.
b) a presença de Cristo é ao mesmo tempo graça e julgamento,
pois nele há salvação e ruína, bênção e escândalo, libertação e
possibilidade de ofensa.
c) a presença de Cristo nunca significará julgamento, pois todos
aceitam a sua mensagem.
d) onde Cristo é pregado é impossível não haver salvação.

3. É interessante observar a linguagem que os evangelhos sinóticos usam


para o Reino de Deus, sinônimo para a presença do próprio Cristo. Quais
as afirmações abaixo são verdadeiras quanto ao Reino de Deus?
a) O Reino de Deus chega próximo às pessoas e Deus o concede.
Porém, elas não o dão para outros.
b) Pessoas recebem o Reino, entram nele e o herdam, mas não podem
estabelecê-lo, construí-lo ou antecipá-lo através de suas ações.
c) Pessoas podem dizer não para o Reino, mas não podem destruí-
lo. Elas trabalham em favor do Reino, mas não podem exercer
influência sobre ele, pois não está sujeito a palavras e ações dos
seres humanos.
d) Todas as afirmações acima estão corretas.

4. Qual das afirmações abaixo não se aplica ao reducionismo horizontal?


a) A Igreja não é necessariamente criação de Deus, mas um projeto
cujo produto deve ser desenvolvido e negociado pelas pessoas.
60 O Reino de Deus e a missão em duas dimensões

b) O estilo ou formas da vida da Igreja podem ser dispensáveis se o


alvo de marketing da Igreja assim o requerer.
c) A prática da evangelização é pura e tão somente desenvolvida pela
ação de Deus.
d) Os meios da graça, Palavra, Batismo e Santa Ceia, são vistos como
canais para apenas “melhorar” os seres humanos pecadores e não
necessariamente conceder o perdão de Deus, a vida e a salvação.

Respostas:
2. b 3. d 4. c

Referências
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today: A Theology for Evangelism. Revised
Edition, St. Louis: Concordia Publishing House, 1995.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of
Mission. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company,
1995.
PETER, David J. A Framework for the Practice of Evangelism and
Congregational Outreach. In: Concordia Journal, Volume 30, julho 2004,
número 3.
RAABE, Paul. The Gospel of the Kingdom of God. In: Concordia Journal,
Volume 28, julho 2002, número 3.
4

Pressuposições e afirmações
teológicas da missão de Deus
Introdução
Pressuposições teológicas e afirmações teológicas de missão não decidem e
nem motivam por si só para a missão. No entanto, elas são necessárias para serem
a base de participação da Igreja em sua ação na obra salvadora de Deus em Jesus
Cristo. Elas também refletem a natureza da participação da Igreja, como agente
de Deus capacitado pelo Espírito Santo. Elas afirmam a fonte motivacional da
Igreja, o amor de Deus revelado no Evangelho do Senhor Jesus.
Pressuposições teológicas da missão visam gerar reflexões teológicas e que por
sua vez têm como alvo manter a Igreja saudável teologicamente na orientação e na
prática missionária nos novos tempos. As afirmações teológicas da missio Dei55, por
sua vez, colocam em relevo o real inicializador da missão, sua necessidade, conteúdo,
energizador, alcance, responsabilidade, fonte de poder e época de execução.
O objetivo deste capítulo é que sejam proporcionados ao aluno avanços na
capacidade de avaliação da Teologia e da prática das novas tendências na missão,
segundo princípios sadios extraídos das Sagradas Escrituras. Que ele ainda seja
instigado a compreender e discernir fundamentos teológicos e decorrências

| 55 As afirmações teológicas serão vistas a partir deste capítulo e depois uma por uma até o capítulo
7 deste material.
62 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

práticas da missão da Igreja, bem como perceber o alcance objetivo, na primeira


afirmação teológica da missão e que está relacionada ao componente principiador
da missão: o coração de Deus.

4.1 Pressuposições teológicas na missão da Igreja56


Missão é um assunto em debate cada vez mais intenso em muitas denominações
cristãs. Diversos movimentos, métodos e estratégias são usados visando cumprir
o grande comissionamento do Senhor Jesus: “Jesus, aproximando-se, falou-lhes,
dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na Terra. Ide, portanto, fazei
discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que
estou convosco todos os dias até a consumação do século” (Mt 28.18-20).
Este mandato do Senhor Jesus converge também para o debate e a
compreensão teológicos do assunto. A proposta agora é apresentar e refletir
sobre alguns princípios escriturísticos fundamentais e que devem orientar a
missão da Igreja. Quais são os pressupostos teológicos na missão da Igreja? O
que antecede à reflexão teológica da missão da Igreja?

4.1.1 A missão da Igreja é fazer discípulos de todas as nações


De acordo com as Escrituras, a Igreja Cristã tem um objetivo em todas as suas
ações: fazer discípulos do Senhor Jesus Cristo. Na Igreja Primitiva, um discípulo
era simplesmente um cristão: “Tendo-o encontrado, levou-o para Antioquia. E,
por todo um ano, se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão.
Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos” (At
11.26; cf. ainda 16.1; 18.27).
Por outro, os meios pelos quais a Igreja deve cumprir este seu propósito estão
claramente expressos na Bíblia. A tarefa de fazer discípulos é para ser cumprida:
batizando e ensinando (Mt 28.19-20).

| 56 A estrutura básica das pressuposições teológicas da missão está orientada num documento
elaborado pela Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da Igreja Evangélica Luterana – Sínodo
de Missouri, Estados Unidos. Evangelização e Crescimento da Igreja, com especial referência ao
movimento “Church Growth”. O referido texto foi traduzido por Eleonora Íris Rehfeldt Kautzmann
e revisado pelos Revs. Ari Lange e Daltro Kautzmann, p.6-20.
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 63

O evangelista Lucas fala do conteúdo da mensagem que deve ser anunciada


quando escreve: “Assim está escrito... e que em seu nome se pregasse
arrependimento para remissão de pecados, a todas as nações, começando de
Jerusalém” (Lc 24.46-47).
A responsabilidade da Igreja não termina quando alguém se torna discípulo e
se filia a uma denominação cristã. No grande comissionamento de Jesus Cristo a
Igreja é também enviada para “ensinar todas as coisas que Cristo tem ordenado”.
O particípio presente do verbo grego “ensinar” (didáskontes) em Mt 28.20,
implica que “a instrução cristã seja um processo contínuo... com a perspectiva
de capacitar discípulos a caminhar dignamente em sua vocação”. Um discípulo
é descrito nas Escrituras como um que confia no Senhor; que está disposto a
tomar a sua cruz e segui-lo (Lc 14.26-27), que permanece na palavra e, deste
modo, evidencia o seu discipulado (Jo 13.35).
A Igreja tem, portanto, a responsabilidade de guiar e alimentar (educar) seus
membros, em sua vida de discípulos, ensinando-lhes todo o conselho de Deus
(At 20.27). A Igreja tem por responsabilidade não somente animar e motivar
os seus membros a tomarem a sério a ordem de Cristo e confessar o seu nome
perante aqueles que não ouviram a Boa Nova, mas também a sublime tarefa de
admoestar, exortar, censurar o cristão negligente e indiferente, mas também
alimentar os cristãos afastados e buscar os que se extraviaram.

4.1.2 A missão da Igreja pressupõe que a Bíblia


é inspirada por Deus e a Palavra inerrante
No estudo da Teologia da missão estão envolvidos pelos menos três fontes
de reflexão e aprendizado. A revelação de Deus, a pesquisa e o raciocínio. As
três, porém, estão sujeitas à autoridade da Escritura Sagrada.
Desde a época da Reforma, as Sagradas Escrituras, o Antigo e o Novo
Testamentos, foram reposicionadas como a única fonte e norma de doutrina. Elas
são a divinamente inspirada57 e inerrante58 Palavra de Deus. Por conseguinte, ela

| 57 Autores foram “movidos” pelo Espírito de Deus a escrever os textos bíblicos como nós os temos
hoje (2 Pe 1.21).
| 58 As Sagradas Escrituras são inerrantes, ou seja, livres de erros, no sentido de que seus autores foram
completamente fiéis aos propósitos pretendidos por eles e a Palavra de Deus é verdadeira.
64 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

é autoritativa e absolutamente fidedigna em toda a matéria de fé e vida, como


também de história. Igualmente, ela é a fonte normativa para o Evangelho, que
é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16).
O que é autoridade da Bíblia para a missão? Como ela deve se tornar
normativa para a prática missionária/evangelística da Igreja? Há um consenso
até certo ponto. A Escritura é a autoridade por excelência, mas seu uso pode ser
diversificado e às vezes controverso e pode variar em formas muito significativas.
Por isso é muito importante que todas as questões relacionadas à Teologia da
missão da Igreja sejam abordadas com princípios hermenêuticos adequados. O
simples pragmatismo59 na missão, bem como o tradicionalismo na Teologia da
missão, pode representar uma traição à norma de que só a Escritura é a fonte
primária de todos os aspectos de fé e de vida da Igreja de Cristo. Quando toda
a base, motivação, novos contextos operacionais da missão, metodologia e alvo
final da missão estiverem ancorados rigorosa e fielmente às Escrituras, então a
prática missionária da Igreja será em conformidade com a Palavra de Deus.60

4.1.3 A missão da Igreja pressupõe o eterno plano


da salvação de Deus através da fé em Jesus Cristo
A história da queda de Adão e Eva no jardim do Éden não é um mito nem
uma alegoria. Ela é a narração divinamente inspirada de uma ocorrência real
e histórica que resultou no fato de que toda a humanidade foi condenada e
colocada sob a ira de Deus. A redenção do mundo, por isso, exigiu um Salvador
que fosse ao mesmo tempo Deus e homem. Ele precisou ser verdadeiro homem
a fim de que pudesse assumir o lugar da humanidade debaixo da Lei. Ao mesmo
tempo, tinha que ser verdadeiro Deus para que cada ato seu tivesse um valor
infinito. Desde a eternidade, o próprio Deus providenciou a solução para a
condição perdida do mundo, planejou e enviou seu amado e unigênito Filho
para ser o Salvador de toda a humanidade.
Como resultado da vida perfeita de Cristo e de sua morte sacrificial na
cruz, Deus reconciliou consigo o mundo, “não imputando aos homens as

| 59 O princípio que permeia o pragmatismo é o de que a ideia, no caso aqui a teologia a ser empregada
na missão, seja determinada pela prática e não vice-versa. Em palavras simples, quando alguma
prática “demonstra ser de sucesso”, então ela está correta
| 60 SHERER, op. cit., p.243.
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 65

suas transgressões” (2 Co 5.19). A ira de Deus foi apaziguada. A sua justiça foi
satisfeita. O pecado foi expiado. Toda a humanidade foi redimida. A Igreja tem
agora o privilégio e a responsabilidade de oferecer este convite a todo o mundo:
“deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Co 5.20).
A Palavra de Deus ensina que a salvação acontece somente pela graça,
por amor de Cristo, através da fé. Por isso deve-se questionar, se não rejeitar,
qualquer visão sobre a missão da Igreja que ignora essa verdade. Questiona-se
e se rejeita:
• quem nega as doutrinas básicas da Escritura, como a divindade de
Cristo; sua verdadeira natureza humana; seu nascimento da Virgem
Maria; sua total e suficiente expiação; sua satisfação vicária, sua
ressurreição e ascensão aos céus e o seu retorno para o julgamento;
• quem sustenta a verdade de que uma pessoa pode ser salva sem crer
em Cristo;
• quem considera a tarefa da evangelização cumprida quando uma
sociedade teve a oportunidade de observar o estilo de vida dos cristãos,
como eles mantêm esperanças e apoiam os esforços daqueles que lutam
por justiça e igualdade de condições na vida;
• quem confunde fé salvadora com conhecimento apenas de fatos
históricos da vida de Jesus.

4.1.4 A missão da Igreja pressupõe que a Igreja


foi instituída por Deus
Deus trouxe a Igreja à existência quando criou Adão e Eva conforme a
imagem divina, estabelecendo com eles uma perfeita relação no jardim do Éden.
Quando este relacionamento foi destruído pelo pecado, foi Deus quem tomou a
iniciativa para restabelecer a relação com o mundo inteiro, enviando o seu Filho
Jesus para que vivesse uma vida perfeita em lugar dos pecadores e morresse por
eles na cruz. Tendo subido ao céu, Cristo, agora, governa “como cabeça de todas
as coisas da Igreja, que é seu corpo” (Ef 1.22-23; 5.23-24). Como Senhor que nos
remiu, ele agora nos habilita “a viver submissos a ele em seu reino”, e servi-lo. O
Senhor e Salvador, assunto ao céu, é quem, através do Espírito Santo, constrói,
protege e preserva a sua Igreja.
66 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

O que a Escritura afirma sobre o senhorio de Cristo tem importantes


implicações para a missão da Igreja. A Igreja falha na compreensão de sua missão
quando pensa em si mesma, em primeiro lugar, como uma organização humana
e não do ponto de vista do corpo de Cristo.

4.1.5 A missão da Igreja pressupõe a necessidade e a


centralidade dos meios da graça (Palavra e sacramentos)
São os meios da graça que mantêm a perspectiva do perdão ao pecador, e
realmente proclamam e conferem a graça de Deus em Cristo. O Evangelho nos
assegura que, onde quer que a mensagem da reconciliação é lida ou ouvida, ou
de muitas formas anunciada, o Espírito Santo está ativamente agindo para criar
a fé nos corações humanos e anunciar o perdão dos pecados. O Evangelho é
mais do que uma mão morta estendendo a graça de Deus ao pecador ou “panos
quentes” para encobrir pecados, mas é o poder de Deus para perdão, salvação,
transformação de vidas e testemunho (Lc 24.47; Rm 1.16; 1 Ts 1.5-10; Fp 1.27).
O Evangelho é a mensagem criativa de Deus, agindo para modificar o desejo
do pecador e fazê-lo voltar a Deus em arrependimento e fé. Este evangelho é o
impulso principal de toda a Escritura. Tudo na Escritura se refere a esse tema.
Este princípio básico tem importantes implicações para a Igreja quando ela
cuida da sua missão. Quando os cristãos compreenderem a centralidade do
Evangelho, saberão que a Lei nunca teve a intenção de mostrar aos pecadores o
caminho da salvação. Ao contrário, o propósito da Lei é levar a raça humana ao
reconhecimento de sua pecaminosidade e consequente condenação, precisando
haver reconhecimento da necessidade de um salvador, e que começa com o
arrependimento, que em outras palavras é se reconhecer pecador e olhar com
confiança para Deus. A testemunha cristã igualmente entenderá que o Evangelho
não tem a intenção de lançar o pecador penitente diante de ordens, ameaças ou
chamadas de obediência. Seu propósito, ao contrário, é o de oferecer o perdão
e a graça de Deus.

4.2 A missão começa no coração de Deus


A missão começa no coração de Deus. Essa é a primeira afirmação teológica
da missão da Igreja. Esta verdade é possível ver de duas formas. Primeiro,
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 67

quando Deus é o sujeito no envio. Desde o “vai” de Abraão, até o “ide”, e seus
desdobramentos em Mateus 28. Segundo, quando ele expressa todo seu amor
e preocupação pela humanidade caída em pecado e desconectada com seu
Criador. “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Como te
faria como a Admá? Como fazer-te um Zeboim? Meu coração está comovido
dentro de mim, as minhas compaixões, à uma, se acendem. Não executarei o
furor da minha ira; não tornarei para destruir a Efraim, porque eu sou Deus e
não homem, o Santo no meio de ti; não voltarei em ira” (Os 11.8-9).
Quando Adão e Eva pecaram, eles corromperam e romperam a relação entre
criatura e criador. Um enorme abismo foi aberto e só o amor de Deus poderia
reconstruir uma aproximação da humanidade com Deus Pai. As Escrituras
apontam frequentemente para esse amor interessado de Deus por suas criaturas.
Desde as palavras a Adão e Eva no jardim do Éden, até o envio dos discípulos
às nações (Gn 3.8-9,15; Lc 24.45-47; Ef 1.13-14).

4.2.1 O que Deus fez e faz?


• Deus chamou Abraão para ser uma bênção a todas as famílias da Terra.
“Ora, disse o SENHOR a Abrão: Sai da tua terra, da tua parentela e da
casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei; de ti farei uma grande
nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!
Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem;
em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3);
• Deus fez de Israel seu “reino de sacerdotes”, para mediar sua intenção
salvadora a todos os povos. “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes
a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha
propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha;
vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras
que falarás aos filhos de Israel” (Êx 19.5-6; cf. ainda: Is 43.10-12, 21;
44.8; 49.3; 61.6; 66.19-21);
• Deus enviou profetas para chamar seus filhos infiéis de volta a Ele.
“Ainda assim, agora mesmo, diz o SENHOR: Convertei-vos a mim de
todo o vosso coração; e isso com jejuns, com choro e com pranto. Rasgai
o vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao SENHOR,
vosso Deus, porque ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em
68 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

irar-se, e grande em benignidade, e se arrepende do mal” (Jl 2.12-13;


cf. ainda Am 5.4-6; Ez 34.11);
• Deus enviou na plenitude do tempo o seu Filho, o Bom pastor, para
buscar, cuidar e salvar o perdido. “Vindo, porém, a plenitude do tempo,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para
resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção
de filhos” (Gl 4.4-5; cf. ainda: Jo 3.16; 10.10-18; Lc 15; 19.10);
• Deus envia a Igreja para o mundo, para que todos conheçam e creiam em
sua obra salvadora. “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco!
Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo dito
isso, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se de
alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes,
são retidos” (Jo 20.20-23);
• Deus envia pregadores do Evangelho de Cristo, para criar e sustentar a
fé salvadora. “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo
mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a
saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não
imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra
da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo,
como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo,
pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. (2 Co 5.18-20; cf. ainda:
Jo 17.20; Rm 10.13-17; 1 Co 1.18-2.5, 13; 15.10-11);
• Deus age com paciência, pois quer que todos cheguem ao arrependimento.
“Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada;
pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que
nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Pe
3.1; cf. ainda: 1 Tm 2.4; Ez 33.11; At 3.19-20).

4.2.2 Missão como fé em ação


A missão começa no coração de Deus, mas o conceito de aliança no Antigo
Testamento tem mais do que benefícios pessoais ou aspectos unilaterais
envolvidos. Quando Deus elege um de seus filhos, seu objetivo é tornar deste
um portador de bênçãos e não necessariamente e somente beneficiário.
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 69

Na aliança com Noé é possível detectar essa disposição de Deus. “Eis que
estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos
os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os
animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da Terra” (Gn 9.9-
10). A aliança é com Noé, mas a promessa de bênçãos é para seus descendentes.
Quando o modelo do imperialismo se manifesta na torre de Babel, Deus intervém
para se precaver contra males maiores no futuro, revelando que não há lugar
para ninguém se confinar e se tornar um mero favorecido de suas bênçãos. “E
o SENHOR disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto
é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer.
Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda
a linguagem de outro. Destarte, o SENHOR os dispersou dali pela superfície da
terra; e cessaram de edificar a cidade”.
Com paciência Deus faz o recomeço. O foco agora é sobre a descendência
de Héber. Um de seus filhos, Abrão, é escolhido. Não para ser um privilegiado,
mas mais uma vez ser um portador da bênção divina. O fim último da bênção
conferida ao pai dos crentes não está nele, mas para todas as famílias da Terra.
“Sê tu [“tu serás”] uma bênção”, disse o Senhor (Gn 12.2).
Os filhos de Deus são portadores, não somente beneficiários. A eleição divina
não é apenas para privilégios, mas responsabilidades. O processo da eleição em
si revela esse detalhe.

4.2.3 Princípios na eleição de Deus


Uma eleição na esfera humana geralmente implica reflexão e avaliação.61
Tecnicamente o termo revela que há um escolhido dentre várias possibilidades.
Até certo ponto, também foi assim com a escolha de Israel como povo de Deus.
“De todas as famílias da Terra somente a vós outros vos escolhi” (Am 3.2). A
diferença é que, nesse ato de selecionar, Deus não usou como referência padrões
humanos. Não foi escolhido o povo mais numeroso, nem o maior, nem o mais
poderoso (Dt 4.38), mas o menor de todos. “Não vos teve o SENHOR afeição,
nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois

| 61 Por exemplo, Ló em Gn 13.11 e Davi em 1 Sm 17.40. Mas em Is 48.10 há envolvido o sentido


de examinar ou testar também na esfera divina.
70 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

éreis o menor de todos os povos, mas porque o SENHOR vos amava e, para
guardar o juramento que fizera a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão
poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito”
(Dt 7.7-8). E nessa preferência divina fica claro que não há mérito algum nas
pessoas que compunham essa nação, mas a graça pura de Deus os alcançou.

As imagens da eleição
A graciosa eleição é o ato inicial pelo qual Deus entra em relacionamento
com seu povo. Há uma série de imagens que tornam evidente essa relação. Mas,
mais do que isso, elas expõem a realidade de que, após esse ato divino, há uma
relação mútua entre o selecionador e o escolhido.
A figura mais comum no relacionamento entre Deus e o seu povo é a da
união matrimonial (Os, Jr 2.1-7; 3.11-22; Ez 16 e 23; Is 50.1; 54.5, 8, 10; 62.4-5).
A lei israelita confere ao marido o papel de prover prosperidade à esposa, que
por sua vez lhe deve obediência e fidelidade. A infidelidade é a recusa em
reconhecer-se recipiente da graça da eleição. Mas há outras representações que
evocam essa verdade. A imagem do pai e do filho (Êx 4.22; Is 63.16), do barro
e do oleiro (Is 64.8).
Essa última referência em princípio poderia sugerir que a eleição é arbitrária,
no entanto isso parece que tão somente reitera a soberania graciosa de Deus e a
própria flexibilidade de seus planos, visto que, na medida em que há mudança
de atitude nos escolhidos (Is 64.8; Jr 18.7-8), pode haver alteração nos planos do
oleiro. “Se a tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também
eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe”. Esse aspecto também é
possível perceber no povo de Deus retratado como herança do SENHOR (Êx
34.9; Jr 12.7-9).
A vinha é outra figura que manifesta que a obra vertical de plantio é
iniciada e completada unicamente por Deus62, mas que há frutos e vivência
horizontal sadia como resultados, bem como condenação quando não há essa
correspondência (Is 5). Além desses exemplos, há ainda outros que qualificam

| 62 Essa total dependência de Deus é percebida de maneira mais clara ainda na imagem do pastor
e das ovelhas, a qual se materializou no êxodo (Is 63.11; Os 11.1-4).
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 71

o povo de Deus. É o povo próprio de Deus (Dt 26.18), é do SENHOR (Êx 4.22)
e é o povo resgatado (Is 62.12).
Cada um desses símbolos expressa em suas próprias características a
eleição divina como obra exclusiva de Deus, mas que parece conferir ao povo a
capacidade de resposta, responsabilidade ética e de serviço.

4.2.4 A eleição da Igreja


Jonas foi um servo portador da mensagem divina. Pode até haver uma
discussão sobre o conteúdo de sua mensagem, Lei ou Evangelho, visto que em
sua pregação parece estar saliente muito mais a ameaça da destruição, mas o
fato é que sua reação teve que sofrer reparos de quem o enviou. Primeiro, ele
foge da missão incumbida, depois ele dorme profundamente, mas a tempestade
o acorda. Em meio ao toró, a missão de Jonas começa. Ele confessa ao Senhor
e reconhece sua culpa. Porém, é preciso o trigo ser lançado na terra e morrer,
depois é que vêm os frutos.
Jonas se escandalizou com a absurda generosidade de Deus, como na parábola
dos trabalhadores na vinha (Mt 20.1-16). Ele pregou destruição, mas houve
conversão e reconstrução. A misericórdia de Deus é a causa de não sermos
destruídos, confessou o profeta Jeremias (Lm 3.33). Nesse sentido, a missão
também é “do coração misericordioso de Deus”. Porém, o princípio “portador
das bênçãos e não só beneficiário”, ficou mantido. Jonas foi o escolhido, mas a
bênção é das nações. Numa outra tempestade esse princípio fica claro. Paulo é
o condutor da bênção, os abençoados, os moradores de Roma (At 27-28).
No processo de eleição de Deus há um afunilamento inevitável. Depois
do Antigo Testamento é Cristo. Poucos são escolhidos para serem portadores
do segredo. Agora é o Senhor Jesus. Com Ele o Reino de Deus está presente.
Sua eleição segue um caminho de sofrimento, rejeição e morte. É a cruz. O
testemunho da presença do Reino não é em poder, mas em fraqueza. A vitória
vem com a dor e, por isso, o Reino é ao mesmo tempo revelado e oculto (Is 6.9-
10). A suprema revelação de Deus e ao mesmo tempo ocultação foram na cruz.
Quem pode crer nisso? (1 Co 1.24; 2.13).
A ressurreição posterior sela a vitória. Depois dela, mais uma vez Cristo se
manifesta a alguns para serem os portadores, não beneficiários. Ao contrário do
72 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

que se poderia imaginar, o Cristo ressurreto não se manifesta só para os que já


eram seus (At 10.40-41), pois Saulo também teve esse favor (At 9.1-18).
Mais do que vitória, a ressurreição do Filho de Deus aponta para os primeiros
frutos, depois vem a colheita final. “Visto que a morte veio por um homem,
também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como,
em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo. Cada
um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as primícias; depois, os que são de
Cristo, na sua vinda” (1 Co 15.23).
Toda a obra redentora de Jesus foi um mistério. Especialmente seu
nascimento, sofrimento e morte na cruz. É misterioso porque os reinos deste
mundo irrompem e se impõem pelo seu brilho e aparente poder. O brilho da
presença do Reino de Deus em Jesus Cristo é de outra ordem. Ele é reconhecido
pelos olhos da fé. Poderia se afirmar que o mistério da encarnação continua com
a Igreja. Ela é o corpo visível de Cristo, do Senhor invisível que reina nos céus
e na Terra. Por que é um mistério? Porque nela podemos ver Deus “descendo”
mais uma vez, permitindo que um corpo enfermo e pecador, a sua Igreja, seja
seu embaixador sobre a Terra, proclamando perdão, consolo, vida e salvação.
O Senhor da glória, Jesus, escolheu ainda mais uma vez a fraqueza da carne
humana para nela se manifestar. Como corpo visível do Senhor Jesus, a Igreja é
portadora das Boas-Novas da salvação, mas antes terá que morrer continuamente
para si mesma, talvez sofrer, sem nem sequer se espantar, como ocorreu com o
próprio Jesus. “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros,
me odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como,
todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo
vos odeia. Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: não é o servo maior do
que seu senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros;
se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15.18-20; cf.
ainda: Fp 3.10). Cabe à Igreja seguir os passos de Cristo e ressuscitar para a
missão que lhe foi confiada.63 Porém, é bom que se diga que é a cabeça, Jesus
Cristo, que sustentará todos os combates e a missão de ser portador das Boas-
Novas da salvação, com a força da ressurreição e a vitória já obtida na cruz e
no túmulo vazio.

| 63 DIETRICH, Suzanne, D. O Desígnio de Deus. São Paulo: Loyola, 1977, p.182.


Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 73

Nesse sentido há também o mistério da Igreja na perspectiva de sua dupla


condição. A condição humana do cristão individualmente e, por conseguinte
da Igreja, afirmada pela Teologia como sendo simul justus et peccator, ou seja, o
crente em Cristo é ao mesmo tempo justo diante de Deus (santo) e pecador. A
Igreja tem a Jesus Cristo como seu Senhor e possui as garantias da companhia do
Espírito Santo, no entanto ela é uma assembleia de homens pecadores. “Estranho
misto de grandeza e de miséria”.64
Ao afirmar que a Igreja é o corpo de Cristo e portadora da graça salvadora
de Deus, está se reconhecendo que é pela existência da Igreja que Jesus Cristo
se manifesta ao mundo, na medida em que esta é fiel à proclamação do puro
Evangelho, pela Palavra, Batismo e Santa Ceia. A Igreja é a boca e a mão de
Cristo. Se ela se cala e encolhe a sua mão, o mundo pode morrer na ignorância
e no desconhecimento do amor de Deus revelado a toda a humanidade. Se ela
se deixa atrofiar, o mundo pode não conhecer o coração do Pai, o qual deseja
que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (1 Tm 2.4).

Atividades de autoestudo
1. Afirmações teológicas de missão não decidem e nem motivam por si
só para a missão. No entanto, elas são necessárias para serem a base
de participação da Igreja em sua ação na obra salvadora de Deus em
Jesus Cristo. Elas também refletem a natureza da participação da Igreja,
como agente de Deus capacitado pelo Espírito Santo. Elas afirmam a
fonte motivacional da Igreja, o amor de Deus revelado no Evangelho
do Senhor Jesus. A primeira afirmação teológica diz respeito à missão
como originada no coração de Deus. Discorra de cinco a oito linhas
sobre as duas formas em que esta afirmação pode ser percebida.

2. O que significa pressupor que a missão da Igreja é fazer discípulos de


todas as nações?
a) A responsabilidade da Igreja termina quando alguém se torna
discípulo e se filia a uma denominação cristã.

| 64 Idem, p.221.
74 Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus

b) No comissionamento de Jesus está explícito que a instrução cristã


seja um processo contínuo e com a perspectiva de capacitar os
cristãos a caminhar dignamente em sua vocação.
c) A Igreja não tem a responsabilidade de guiar e alimentar (educar)
seus membros em sua vida de discípulos, pois isso é responsabilidade
individual de cada cristão.
d) À Igreja igualmente não cabe admoestar, exortar, censurar o
cristão negligente e indiferente, nem se preocupar com os cristãos
afastados.

3. A missão da Igreja pressupõe que o eterno plano da salvação de Deus


é através da fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus? Qual é a implicação
dessa afirmação?
a) Que Cristo, nascido da Virgem Maria, é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem. Que somente Nele está a total e suficiente
expiação dos pecados e, pela sua ressurreição e ascensão aos céus,
é o Salvador, aguardado para o fim dos tempos.
b) Essa afirmação sustenta a verdade de que uma pessoa pode ser
salva apenas crendo em Cristo.
c) A tarefa da evangelização não é cumprida quando uma igreja
considera seus esforços por justiça e igualdade de condições na
vida como suficientes na missão.
d) Todas as afirmações acima são verdadeiras.

4. A missão da Igreja pressupõe a necessidade e a centralidade dos meios


da graça, ou seja, a missão está ancorada na pregação da Palavra
(Evangelho) e administração dos sacramentos. Qual é o alcance dessa
afirmação?
a) São os meios da graça que realmente proclamam e conferem a graça
de Deus em Cristo.
b) Onde quer que o Evangelho é lido ou ouvido, ou de muitas formas
anunciado, o Espírito Santo está ativamente agindo para criar a fé
nos corações humanos e anunciar o perdão dos pecados.
c) Como “o vento sopra onde quer”, o Espírito Santo pode operar a
fé e a vida regenerada fora da Palavra e dos Sacramentos.
Pressuposições e afirmações teológicas da missão de Deus 75

d) Os enunciados a e b estão corretos, enquanto a afirmação da opção


c carece de fundamentação bíblica.

Respostas:
2. b 3. d 4. d

Referências
A THEOLOGICAL Statement of Mission. Comission on Theology and Church
Relations of the Lutheran Church – Missouri Synod, 1990.
EVANGELIZAÇÃO e Crescimento da Igreja – com especial referência ao
movimento “Church Growth”. Comissão de Teologia e Relações Eclesiais da
Igreja Evangélica Luterana – Sínodo de Missouri, Estados Unidos. Tradução
de Eleonora Íris Rehfeldt Kautzmann e revisão dos Revs. Ari Lange e Daltro
Kautzmann. Porto Alegre, 1987.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of
Mission. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company,
1995,
SHERER, James A. Gospel, Church & Kingdom. Comparative Studies in World
Mission Theology. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1987.
VICEDOM, Georg F. A Missão como Obra de Deus. Introdução à Teologia da
Missão. Tradução de Ilson Kayser. São Leopoldo: IEPG/Sinodal, 1996.
5

A realidade do pecado: a urgência


e o conteúdo do testemunho cristão
Introdução
Fala-se que o nível de consciência do mal está mais baixo do que costumava
estar. Porém, quando se observa o que acontece ao nosso redor, não há como
descartar sua existência e influência, o que nos incomoda e contraria nossas
esperanças. Problemas familiares, dependências químicas, violência em lares e
nas ruas, descompromisso ético nos relacionamentos e negócios e tantas outras
amostras que reimprimem à força em nossa consciência a verdade que o mal
está logo ali.
Porém, nem todos admitem que algo está errado e evitam confrontar o mal,
de maneira especial o pecado e suas funestas consequências. Banir ou camuflar
a realidade do pecado não é banir o próprio Deus? Não é ele que diz em sua
palavra que aquele que negar o pecado faz de Deus mentiroso? (1 Jo 1.10).
A tarefa evangelística principal da Igreja sempre foi e sempre será conduzir
as pessoas à percepção de que elas estão espiritualmente mortas (Ef 2.1) e
irremediavelmente dependentes da graça de Deus revelada em Jesus Cristo (Ef
2.8). Nossa missão é desconstruir os deuses internos da autossuficiência e buscar
identidade, sentido e perdão em Deus e assim serem transformados por ele em
instrumentos de serviço em suas mãos.
78 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

O objetivo deste capítulo é escanear algumas das facetas sobre definições,


origem e influência do pecado no mundo, com vistas ao testemunho cristão
e à pregação da fé cristã, e assim preparar o aluno a compreender tanto
efeitos da realidade do pecado na vida dos seres humanos, bem como refletir
sobre princípios que podem nortear nesse contexto a pregação da Lei e do
Evangelho.

5.1 O pecado e sua “eliminação” gradual


Existe uma tendência moderna de se eliminar ou evitar o termo e o próprio
conceito de pecado. O psiquiatra Karl Menninger é citado por Robert Kolb
e Russel Shedd65, e ambos tratam o assunto de um mesmo ponto de vista.
Menninger escreveu o livro “O que aconteceu com o pecado”, para ilustrar
como o nível de consciência da existência do mal está baixando cada vez mais.
O homem moderno é levado a pensar e a agir como não sendo mais responsável
perante Deus, e a consequência disso é que o mal está perdendo sua dimensão
vertical. Ofensas, por exemplo, geram ansiedade, desconforto, mas diante das
pessoas e não diante de Deus. Um exemplo talvez seja Saul: aparentemente, em
seu arrependimento, sua preocupação maior tinha a ver com as consequências
dos seus atos diante das pessoas e não diante de Deus (1 Sm 15.30).
Existe uma negação de que algo está errado e que se manifesta geralmente
em buscar a alegria fora de Deus, desenvolver uma autossuficiência e encontrar
o mal sempre fora de nós. Kolb lembra Menninger ao dizer que ninguém nem
sequer está mencionando o pecado. Uma palavra comum e que estava na mente
de cada pessoa, quase que naturalmente, agora é raramente ouvida. Pecados
desapareceram e o curso dos acontecimentos gerou um processo de domesticação
gradual do assunto.
Muitas coisas estão erradas pelo desaparecimento do sentimento de culpa
e a habilidade de lidar com ela. Nega-se a responsabilidade pessoal. Um olhar
para o mal que sou responsável, mas também uma honesta confrontação com
o mal que potencialmente poderia praticar revelará que o mal não está só fora
de nós, mas muito mais próximo do que eu imaginaria.

| 65 KOLB, op. cit., p.71. SCHEDD, Russel P. Fundamentos Bíblicos da Evangelização. Tradução de
Antivan Guimarães Mendes. São Paulo: Vida Nova, 1996, p.26.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 79

5.1.1 Uma definição de pecado


O que é pecado e o que é o mal? Talvez esse devesse ser o começo. Definir o
que é pecado. Geralmente, é cometido algum tipo de equívoco em sua definição.
Um deles é a tentativa de escapar da responsabilidade pessoal. O que está errado
é identificado como algo que está fora de nós e além da nossa responsabilidade
ou controle. Não foi esse o primeiro jeitinho que Adão quis dar? “A mulher que
me deste por esposa, ela me deu da árvore e eu comi” (Gn 3. 12).
Uma definição de pecado interessante é desenvolvida pelo psiquiatra cristão
Paul Tournier. Em seu livro Os Fortes e os Fracos, o autor compara o pecado a
uma planta que tem raízes e produz frutos (maus). A mentira, o furto, os vícios,
o adultério, o orgulho são os frutos. Jesus pode arrancar alguns desses frutos e
eles não voltarem mais, mas podem insistir em aparecer, porque a raiz do pecado
continua a existir e a completa libertação só ocorrerá na eternidade.66
No tempo de Agostinho, em seu debate com os Donatistas, ele insistia que a
Igreja, como noiva imaculada e descrita em Efésios 5, é somente uma realidade
escatológica e impossível de ser alcançada nesta existência.
Como normalmente se age com a realidade do pecado? Os que só pensam na
raiz não veem o Evangelho como poder de Deus para mudar situações e viver
uma vida, cujos frutos serão gerados pela presença de Cristo. É verdade que este
é o real problema, mas, quando a ênfase é só nesta dimensão, isso pode conotar
uma atitude derrotista ou levar alguém a viver sem perspectiva e desespero, em
face de inúmeros frutos indesejados da raiz pecaminosa.
Para os que pensam só nos frutos, existe o perigo de cair num otimismo, até
salutar, mas ilusório, pois se desconhece a força do pecado e sua impossibilidade
de erradicação completa nesta vida. Assim, isso também pode levar ao desespero,
pois o “bem que eu prefiro, eu não faço, e o mal que não quero, esse acabo
praticando” (Rm 7.19). Além disso, há um risco real de conectar a fé com êxito
terreno e implantar já aqui um paraíso impossível.

| 66 TOURNIER, Paul. Os Fortes e os Fracos. Tradução de Yara Tenório da Motta. São Paulo: ABU Editora,
1999, p.228.
80 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

5.1.2 O que é pecado?


O Salmo 32 apresenta três sinônimos para o pecado. O primeiro termo é
pachá, que é traduzido por transgressão, rebelião (tem a ver com confrontar,
desafiar). No Novo Testamento seria o equivalente a anomia, que tem a ver com
ausência ou lei não cumprida (Rm 6.19; 2 Co 6.14; 1 Jo 3.4). O segundo é hatáh e
tem o significado de errar o alvo, não estar onde deveria estar. O terceiro é haon,
que significa culpa (Is 59.12; Sl 51.5). Podemos chamar de iniquidade, pecado
ou transgressão, mas é o mal que se manifesta a começar por mim.
Pecado é descrito normalmente como sendo a natureza e a essência corrupta
do homem. É algo inato e está nos genes dos seres humanos. O resultado disso
é que o homem é morto espiritualmente e completamente dependente da obra
regeneradora do Espírito Santo. O aspecto controverso do pecado diz respeito
à sua verdadeira dimensão. Alguns afirmam que pecado é apenas uma mancha
e isso não impediria ou desabilitaria o homem de buscar coisas boas, inclusive
sua própria conversão e regeneração. Mas não é isso que a Bíblia afirma. Ela
usa expressões como “mortos” nos pecados (Ef 2.1) e que o “homem natural
não aceita as coisas do Espírito de Deus” (1 Co 2.14), para expressar o completo
estado de dependência do homem diante de Deus. Esse é o pecado original.
Não é algo que se comete, mas é herdado. É pecado original, porque sua origem
está em Adão (Rm 5.12) e é origem de todos os males (Sl 51.5; Rm 7.17-20; Tg
1.14-15).

5.1.3 Justo e pecador


O texto de Romanos 7 é o texto clássico para dar suporte à proposição de
que o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador. Um argumento contrário a
esse conceito teológico, com referência específica a esse texto de Romanos, seria
de que o apóstolo Paulo estaria falando do antes e do depois de sua conversão.
Em outras palavras, que depois da conversão ele seria somente santo em Cristo
Jesus. Porém, uma observação nos tempos verbais empregados pode corroborar
o conceito da simultaneidade, justo e pecador. Em Romanos 7.7-13, Paulo usa
o verbo no passado, enquanto que nos versículos seguintes ele passa a usar o
presente, ou seja, essa é a situação atual e que pode ser resumida no versículo
20: “Mas, se eu faço o que não quero, já não sou quem o faz e, sim, o pecado que
habita em mim”. A solução para esse mundo de contradição está em Romanos
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 81

7.24-25: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta


morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. De maneira que eu, de
mim mesmo, com a mente, sou escravo da lei de Deus, mas, segundo a carne,
da lei do pecado”.

5.2 O que deu errado com Adão e Eva?


O que afinal deu de errado no episódio Adão e Eva a respeito do pecado? O
texto de Gênesis 3 pode fornecer interessantes pistas sobre o que não deu certo.
Tudo começou com a dúvida. “É assim que Deus disse...”? (Gn 3.1) Eva sabia
a resposta (Gn 2.16-17; 3.3), mas o diabo semeou sementes venenosas em seu
coração. Não tomar as palavras de Deus tão a sério (não seria um caso de vida
ou morte) e alimentar a dúvida sobre o amor e o cuidado de Deus.
Ao dar conversa ao diabo, Eva já não estava mais tão certa se poderia confiar
nessa Palavra. Ela até adicionou uma parte “nem tocareis nela”. “Ela estava
querendo garantir que a Palavra a poderia defender, assim como ela a estava
defendendo, deste modo ela fez um pequeno acréscimo”.67 Ela já tinha começado
a duvidar se Deus realmente tinha dado a ela e a Adão a verdade sobre a estrutura
humana moldada por Deus para eles viverem. Ela não estava certa se a bondade
absoluta estava na Palavra do Senhor. Eva começou a vacilar se era necessário
confiar, amar e temer a Deus acima de todas as coisas. Aí que reside o núcleo
do pecado original. Cada ser humano desde o seu nascimento compartilha da
mesma recusa de Eva: reconhecer Deus como Deus, depender do seu poder que
sustenta e descansar na confiança de sua contínua presença.
O cerne do pecado, o mal, e seu domínio sobre o ser humano, são vistos
segundo o ensino bíblico, “não tanto como uma corrupção de sua essência física,
psicológica ou racional, e por essa razão uma fraqueza mórbida e inaptidão para
o bem, mas, antes, é na perversão da vontade, em apostasia, no usurpado ‘não’ a
Deus, e de querer ser igual a Deus”.68 A atitude humana descrita e normalmente
sumarizada pelos escritores bíblicos na palavra “carne”, não é o corpo com seus
desejos baixos, mas o livre exercício dos mais altos poderes da mente, coração

| 67 KOLB, op. cit., p.76.


| 68 DANTINE, Wilhelm, apud KOLB, p.76.
82 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

e vontade do homem, em antagonismo ao Criador que ele é ordenado a confiar


e a amar.69
Quando Jesus entrou no jardim que virou deserto para encarar o enganador mais
uma vez, o script já tinha sido escrito. Ele foi tentado em sua carne, em sua fé e em
sua fidelidade a Deus. Todas as três resumidas na tentação – separar Jesus da Palavra
de Deus.70 Pecado original pode não ser um conceito popular, mesmo entre muitos
cristãos. Além disso, parece ser injusto. Mas esse é o diagnóstico. No testemunho cristão
não precisamos defender o vocábulo “pecado original”, mas convencer as pessoas da
realidade do pecado, suas manifestações e a cura que existe em Jesus Cristo.
Deus se revelou a Adão e a Eva ao falar com eles no jardim. Eles pensaram
que poderia haver algo a mais do que esta palavra. E assim eles a colocaram em
dúvida e procuraram por um Deus oculto. Ao fazer isso eles deram de cara com
um vazio e no qual eles tinham que criar seus deuses. Cada ser humano desde
então tem repetido inevitavelmente essas mesmas experiências. As estatísticas são
claras. O potencial de cada pecador herdeiro de Adão e Eva tem sido realizado
nos pecados atuais da vida diária. A começar pela dúvida, herança genética dos
primeiros seres humanos.
É verdade que algumas dúvidas até podem ser saudáveis e inevitáveis. Às
vezes e até para a maioria dos cristãos não existe uma certeza absoluta em sua
fé. Pode-se resvalar e nutrir pensamentos que Deus nos deixou escapar das suas
mãos e nós duvidamos. Esta até pode ter resultados salutares. Mas isso não
altera o fato de que a dúvida é má. Nós fomos criados para confiar, não para
duvidar. Dúvidas também podem ser sinal de incerteza e às vezes podem ser
confundidas com orgulho.

Incerteza não é humildade, mas um orgulho inteligentemente


mascarado. Incerteza se torna um lugar de refúgio, no qual uma
pessoa se recusa a ouvir a Deus e procura ser protegido das chamas
das questões mais calorosas da vida. A irmã gêmea da dúvida não é
a humildade, mas o orgulho.71

| 69 KORBY Kenneth F., apud KOLB, p.76.


| 70 KOLB, p.76.
| 71 Idem, p.76.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 83

Em termos de testemunho cristão, é interessante notar que a incerteza de certa


forma remove a responsabilidade nas decisões relacionadas a Deus. Esta dúvida
pode levar alguém a negar o direito que Deus tem de determinar a maneira
própria de viver. Eva sabia muito bem a vontade de Deus. Ela até explicou (com
acréscimos) para o enganador o que Deus lhe pediu. Mas ela também estava
pronta para ouvir a proposta do maligno. “Vocês serão como Deus.” Quando a
dúvida gera a negação do direito de Deus em dizer algo para o ser humano, então
se nega a Ele como nosso Deus, Criador e Senhor, fonte de segurança, sentido
de vida e identidade. Há uma quebra do relacionamento mútuo de amor e favor,
de paz e alegria, a que Criador e criatura experimentaram no começo.

5.2.1 Prejuízos verticais e horizontais


A negação de Adão e Eva produziu neles uma surdez letal. A Palavra
ainda pode ser ouvida, mas agora ela também julga e acusa. “Isso não foi um
divórcio amigável.”72 Houve prejuízos verticais e horizontais. O problema do ato
pecaminoso reside não somente em ter deixado o comportamento adequado,
mas na fuga de Deus e do restante da humanidade.
Eva sentiu a impossibilidade de administrar essa situação. Ela não conseguiu
se adaptar à falta de identidade, segurança e sentido de sua existência. Como
criaturas de Deus, eles tinham o senso de dependência e urgia a eles agora
estabelecerem essa nova referência e ter um novo objeto de dependência. Assim
eles moldaram um deus em sua própria imagem: eles mesmos.73 Ao aceitar o
convite de ser igual a Deus, Adão e Eva pensaram em serem melhores do que
foram criados. Porém, em vez de adicionar, eles subtraíram deles mesmos o
cerne do ser humano, seu amor e confiança no seu pai. O resultado disso é o
orgulho, o qual é definido como a raiz do pecado de Satanás e do pecado original
do ser humano.
A dúvida é certamente um sintoma relacionado a não confiar na Palavra de
Deus e um produto da rebeldia contra Deus. Com Deus destronado de nossas
vidas, o nosso culto é transferido para nós mesmos. O orgulho que me exalta
acima de Deus e das outras criaturas é originado no complexo de inferioridade

| 72 Idem, p.79.
| 73 Idem, p.80.
84 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

que deve ser mascarado a todo custo, se eu quiser manter a “brincadeirinha”


comigo mesmo e com o próprio Deus. O orgulho me coloca numa escada e
faz necessário a todo custo chegar ao seu topo. Nada e ninguém podem me
atrapalhar. A harmonia inicial com o Criador e criaturas foi anulada e se formou
um vácuo abismal e primevo.

5.2.2 Tentando controlar o incontrolável


Preencher essa lacuna e atender ao desejo de segurança e sentido nos consome
até encontrar um, dois ou três deuses. Nós passamos a pensar que nossos desejos
são os meios para buscar e controlar o que nós queremos e precisamos. Nossos
desejos nos controlam. Sem o Criador não descansamos nunca. E nosso desejo
principal não é morrer, mas ser igual a Deus e adquirir a independência que a
imortalidade promete. Mas o nosso desejo nos tira das mãos do Autor da Vida e
nos coloca em nossas próprias mãos, onde a vida verdadeira não pode começar
nem ser sustentada.
O culto a si funciona, mas só por um breve tempo. Aos poucos os pecadores
reconhecem que seus deuses não funcionam tão bem assim. Ao fracassarmos em
nossa busca de identidade, segurança e sentido em nós mesmos, o alvo passa a
ser as outras pessoas. Em vez de amor mútuo, há exclusão mútua.
O ato de desobediência de Eva ao pegar o fruto e o comer não foi a raiz do
seu pecado, nem é o pecado original, mas foi a distração em não ficar no lugar
que Deus tinha estabelecido para a vida.
A dúvida originou a desobediência. A rebeldia interna adquiriu expressão
exterior. Adão e Eva queriam governar suas próprias vidas. Mas isso foi a
mesma coisa que querer se estruturar em cima de areia movediça. Ao querer
ultrapassar os limites da estrutura de vida colocada por Deus, eles estavam de
fato afundando abaixo deles mesmos. Eles viraram sub-humanos. Eles fizeram
o que lhes agradou, sem perceber que, ao fazer aquilo que lhes agrada, eles não
puderam, em última análise, produzir a satisfação que almejavam.
Seu desejo de se tornar igual a Deus foi uma vontade insaciável de
independência do Criador e das criaturas. O caráter individual se tornou
individualismo. A estrutura original da criação foi afetada, o que resultou em
divisão entre as criaturas de Deus.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 85

Ao dizer “a mulher que me deste” Adão culpou a Deus e a Eva. Negar que Deus
é o meu Deus traz consigo a negação de que a esposa possa exercer seus direitos
sobre o marido; que meu irmão é meu irmão e que há uma responsabilidade
mútua envolvida (Gn 4.9). A quebra da relação vertical entre o ser humano e
Deus mutilou o relacionamento horizontal.74
O prejuízo foi grande, porque nós perdemos a habilidade original de
exercer domínio sobre nós mesmos e sobre a criação, quebrando o plano e o
status original de Deus (Gn 1.26,28). “Agora eu penso que devo também me
aproveitar e dominar o meu próximo para encontrar segurança para minha
própria vida.”75
Essas desobediência e separação não podem ser apartadas da dúvida da
Palavra de Deus e a rebelião contra seu senhorio. O pecado que me separa de
Deus o Doador fica num falso isolamento de Deus e num falso isolamento do
próximo. “Medo de perder a vida” é uma parte da incredulidade (em relação
a Deus) e reprime qualquer benevolência que eu teria que oferecer ao meu
próximo e me força a me submeter e buscar outra coisa da boa criação de Deus
para me satisfazer (idolatria).

5.2.3 Mal é mal


Desobediência contra Deus tem como consequência abandonar ou
abusar dos relacionamentos considerados próprios e adequados ao nosso
redor, através do ódio, inveja, ciúme, cobiça, homicídio, fornicação, roubo.
Essa “listinha” é apenas ilustrativa, não completa. Através de todas as formas
possíveis, nós tendemos a extrair o sentido de vida, muitas vezes em prejuízo ao
próximo, ou buscar segurança para a vida usando outras pessoas para a nossa
conveniência ou abusando da natureza e do meio ambiente para nossa satisfação.
Nós desobedecemos a Deus. Por exemplo, a grande maioria das pessoas
provavelmente usa o dinheiro muito menos para amar seu próximo do que elas
usam seu próximo para obter e assegurar o dinheiro que tanto amam.76

| 74 Idem, p.82.
| 75 Idem, p.83.
| 76 Idem, p.84.
86 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

Mal é mal. Pode ser monstruoso como foi o Holocausto, como também é nas
pequenas barganhas (competições) que visam o favor do chefe para obter mais
segurança e talvez sentido para a vida. Esse tipo de atitude não vai providenciar
o fundamento definitivo em se tratando de sentido e segurança, pois isso só
pode vir de Deus.
Nossa formatação original foi corrompida e agora, em vez de olharmos
para Deus, nós nos curvamos sobre nós mesmos. “Nós contraímos um caso
terminal de egocentrismo crescente.”77 Tentamos a todo custo evitar essa doença.
Cultuamos a nós mesmos e o que vamos cultuar por nossa própria e autônoma
decisão.

5.3 Mãos e olhos criados para servir a Deus


Deus criou os seres humanos para confiar nele como um Pai amoroso. Ele
os colocou em cima de sua mão para cuidá-los e supri-los em todas as suas
necessidades. Mas, através de um inexplicável ato de rebeldia de Adão e Eva,
eles saltaram de sua mão e, em busca de liberdade, se tornaram escravos do
pecado. Com o rompimento da comunhão com o Pai, eles passaram a olhar por
segurança em outras fontes.
Deus nos criou com os olhos voltados para ele e as mãos dirigidas para sua
criação, por isso, quando olhamos para nós e não para Deus, nós nos tornamos
egocêntricos e não conscientes de que Deus é o nosso Senhor e nossas mãos se
afastam do próximo para servir de proteção para nós mesmos. Essa cena é a de
Adão e Eva logo após a queda.
Adão e Eva notaram que estavam nus quando olharam para si mesmos.
Naquela hora eles precisaram pela primeira vez algo que os protegesse, pois eles
não mais permitiram Deus cobri-los. Isso fez com eles passassem a adotar uma
atitude defensiva de um para com o outro.
Este é mais um sinal de que toda a harmonia projetada por Deus na criação
foi comprometida, pois as criaturas rejeitaram fazer a sua parte na estrutura de
vida que Deus criou. Independência e individualismo são dois componentes
que até podem soar bem no atual contexto social e cultural, mas isso também

| 77 Idem, p.84.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 87

pode gerar desespero, que por sua vez pode levar à busca por uma e contínuas
novas fontes de identidade, segurança e sentido de vida. Novas necessidades
irão demandar novos deuses. Às vezes essa postura pode ser consciente, outras
vezes, negada, mas ela faz parte de cada ser humano caído em pecado.

5.3.1 O medo da morte é o fim da linha


Por fim tem o último inimigo, a morte (Rm 6.23), o inevitável fim. A vida foi
idealizada para ser vivida em comunhão com o Autor da Vida. Mas a primeira
dúvida da sua Palavra; a primeira negação do senhorio de Deus; a primeira
desobediência e o primeiro desejo de provocar dissonância com Deus e as suas
criaturas, levam à marca fatal da morte. Quando se perde a referência que Deus
tinha estabelecido para viver, começando com o relacionamento do amor mútuo
com Ele, nós perdemos a própria vida. A necessidade da autopreservação, e que
força o ser humano a procurar por ídolos, nasce da ameaça da morte e do medo
que esta produz no ser humano. Na confrontação com Deus, os seres humanos
querem ser a luz do mundo, mas o resultado é a escuridão em choro e ranger
de dentes (Mt 22.13).78

5.4 Nossa queda – nossa culpa


Adão e Eva deram um passo maior que suas pernas. Ao desejo de
independência eles sucumbiram, e uma das formas de olhar para si é não olhar
com senso de responsabilidade, mas atribuir a responsabilidade de nossos atos
a outros. Ao olhar para a queda no Jardim do Éden e para nós mesmos, há pelo
menos três coisas que precisam ser observadas.
1º. O ato foi inconcebível e por isso não tem desculpa e nem explicação. O
motivo deste acontecimento não pode ser descoberto nem na natureza
do ser humano, nem da criação, nem da serpente. Isso é importante no
testemunho cristão. Não há explanação para a queda em pecado. Não
há como responder à questão em como pôde a boa criação de um Deus
Todo-Poderoso ser invadida pelo mal.

| 78 Idem, p.86-87.
88 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

2º. Do ponto de vista do homem esse ato é completamente irreversível.


Não tem como voltar atrás. O caminho é o renascimento como filho
de Deus através do banho regenerador e renovador do Espírito Santo
(Tt 3.5), Batismo e Palavra.
3º. Essa ação foi um ato da humanidade e do qual ninguém pode se
absolver. A culpa se tornou de todos. Carregamos o peso do pecado
individualmente, mas, assim como a culpa de Adão caiu sobre todos,
em nosso egocentrismo e atitude defensiva, provocamos as mesmas
reações em outros. Somos responsáveis e não podemos fugir culpando
Adão e Eva, pais, sociedade.79 Todos estão sob a ira de Deus (Rm 1.18),
porque todos somos pecadores.

5.5 As estruturas de Deus para a vida humana


A estrutura que Deus criou para o ser humano viver harmoniosamente está
revelada nas Escrituras, através dos Dez Mandamentos. Deus deixa claro nossas
responsabilidades nas diversas situações ou estados, ou ainda vocações da vida:
lar, trabalho, sociedade, igreja e suas variáveis.
Essa estrutura funciona como a lei de Deus e Deus a criou para servir para o
nosso benefício. Por causa de nossa afronta contra Deus e seu bom plano para
a vida humana, sua Lei se tornou uma expressão de sua ira (KOLB, p.90). Ela
mostra que somos responsáveis pelo mal. O pecado virou tudo de cabeça para
baixo. No Éden os homens estavam sobre a estrutura da Lei e olhando somente
para Deus. Ao querer suplantar a Deus, fomos tragados por nossa petulância
e ficamos debaixo da Lei. Com essa reviravolta a Lei agora também nos acusa
e oprime.80

5.5.1 Funções da Lei


Manter o ser humano na linha. Essa é a primeira função da Lei. Ela restringe
nossas ações para não sairmos muito longe da estrutura de vida estabelecida por

| 79 BONHOEFFER, Dietrich apud KOLB, p.88.


| 80 KOLB, p.90.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 89

Deus. O que foi designado para funcionar como um instrumento da liberdade


humana, agora é uma ferramenta para restringir a responsabilidade humana.
Esta função da Lei serve somente para o relacionamento horizontal. A Lei
não pode fornecer nenhum indício de amor e confiança com o Pai. Ela somente
pode nos compelir ou induzir a nos conformar exteriormente com o plano de
Deus em nossas relações horizontais. Às vezes, a motivação em cumprir a Lei
é meramente por temor, atitudes altruístas, o que até pode ser bom, à medida
que constroem uma sociedade humana melhor. Porém essa função “social” da
Lei não pode fazer absolutamente nada com o pior de todos os males, a ruptura
de nossa relação vertical e separação de Deus.81

Aqui está a origem comum de toda a religião falsa: nós não podemos
adquirir o favor de Deus ao praticar o bem aos outros. Deus criou sua
estrutura; ela é uma criatura. Essa estrutura em relação à criatura
humana, codificada como Lei, funciona como um instrumento de
execução e avaliação. Ela não é capaz de motivar o verdadeiro serviço
a Deus e ela certamente não pode exercer a função de dar a preservar
a verdadeira vida com ele, pois isso está reservado exclusivamente
ao próprio Criador.82

Ainda que houvesse uma obediência perfeita, a boa nova vida só se torna
em realidade por causa da graciosa vontade do nosso gracioso e misericordioso
Deus.
A segunda função da Lei é “esmagar”. Como um martelo esmiúça grão e o
faz em pedaços, assim funciona a Lei. Ela acusa e condena em nossa relação
vertical. Ela é como um espelho que é segurado diante de nossa face e exibe
os sintomas de nossos relacionamentos horizontais e sua causa, nossa ruptura
com o Criador.
A Lei não para de nos avaliar, censurar e condenar. Ela literalmente provoca
o pecador e promove o ressentimento com Deus. É especialmente o apóstolo
Paulo que percebe esse caráter mais negativo da Lei. Quando o pecado está

| 81 Idem, p.90-91.
| 82 Idem, p.92.
90 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

num estado de incubação, a Lei o faz virulento. Assim, ela tem a função de um
impulso inicial (Rm 7.5,8).

Para Martinho Lutero o uso próprio da Lei, seu ofício real, é que
através dela o pecado deveria aumentar e se tornar grande e que
o ser humano deveria assim ter revelado: seus pecados, fraquezas,
cegueira, morte, inferno, os trovões e relâmpagos da ira de Deus.83

5.6 O testemunho na prática


Quanto ao pecado, por onde se deve começar um testemunho cristão? Com
a raiz do problema, o pecado original e cuja implicação é a separação de Deus?
Ou com os sintomas do pecado e que se manifestam “a olho nu” e que significa
estar sob a ira de Deus?
Em termos práticos, um testemunho cristão raramente deveria iniciar pelo
aspecto da dúvida, como causa fundamental da interrupção do curso da boa vida
criada por Deus. Também não podemos começar a tratar dos problemas dos
descrentes ao colocá-los no contexto do ressentimento contra Deus. Primeiro é
preciso ficar no campo das pressuposições, depois na educação cristã.
O testemunho cristão geralmente começa com os sintomas, ou os pecados
atuais, o mal tangível e perceptível. O pecado original só deveria ser abordado
mais tarde e com o fundamento da Palavra de Deus. Como lidar com essa
situação? Na verdade, isso deveria ser visto mais em termos teológicos do que
cronológicos. O que quer dizer isso? O cristão deveria falar ou desenvolver o
aspecto de que há algo errado com o ser humano e assim enfatizar o julgamento
de Deus? Não, quando o assunto está no nível do relacionamento pessoal, ou
ainda num período em que está sendo desenvolvido um relacionamento de
confiança. Sim, quando o assunto é debatido teologicamente. Para os dois casos
o remédio é o mesmo: encontrar o perdão em Jesus Cristo. Em Jesus o velho
sistema de segurança será substituído e uma nova identidade em Jesus Cristo
será impressa.

| 83 LUTERO, Martinho, THIELICKE, Helmuth apud KOLB, p.93.


A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 91

Há os que afirmam que “a vida já é uma lei” e que não haveria mais
necessidade de se falar em julgamento de Deus. Sim e não. O problema existe
quando os sintomas são tratados e não a raiz. Outros dizem que o julgamento só
pertence a Deus (Mt 7.1) e até sugerem uma atitude mais simpática. No entanto,
esta também é a missão da Igreja (Mt 16.19; 18.18; Jo 20.23). Cabe a ela perdoar
e reter pecados. Enquanto os velhos sistemas de segurança continuam operando
como fontes de identidade, segurança e sentido, Deus não encontrará lugar na
vida de uma pessoa.
Vale ainda lembrar que nem sempre é tão óbvio na vida de muitas pessoas que
o núcleo da nossa vida é que está em pedaços. Os sintomas do pecado podem ser
suprimidos e maquiados por longos ou períodos curtos. “O testemunho cristão
deve muitas vezes pacientemente gastar tempo diagnosticando os defeitos letais
e fatais dos antigos deuses de seus ouvintes.”84
Por isso os cristãos são comissionados a falar da Lei para o pecador, a fim
de quebrar seus ineficazes deuses e o Evangelho da cruz de Cristo conceder a
fé verdadeira. Somente com a cruz de Cristo e conscientes da proteção que ela
nos garante é que podemos admitir nossas dúvidas, confrontações, negações do
senhorio de Deus, em última análise, o pecado que em nós habita.
No testemunho cristão temos diante de nós vítimas da dúvida, da perpetuação
da confrontação, experts em negar seu desespero e medo. Ouvido sensitivo e
conversação simpática são formas que podemos usar e esperar frutos, ainda
que o Espírito Santo possa operar algumas vezes através de reações insensíveis e
antipáticas. Esta simpatia, que vira empatia, é nascida de um honesto olhar para
nossa própria pecaminosidade, pois também nós somos vítimas da dúvida e da
negação. Nós continuamos, em maior ou menor intensidade, mas continuamos
a mentir para nós próprios e negar o senhorio bondoso de nosso Pai Celestial.

| 84 KOLB, p.95.
92 A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão

Atividades de autoestudo
1. Tem existido uma negação de que algo está errado como as pessoas e
com a humanidade. Isso geralmente tem se manifestado em buscar a
alegria fora de Deus, desenvolvendo uma autossuficiência e encontrar
o mal sempre fora de nós. Há pouca menção ao pecado, como origem
dos males. Uma palavra comum e que estava na mente de cada pessoa,
quase que naturalmente, agora é raramente ouvida. A palavra “pecado”,
bem como pecados, têm desaparecido, e o curso dos acontecimentos
gerou um processo de domesticação gradual do assunto. Pondere sobre
o assunto em aproximadamente oito linhas para avaliar objetivamente
a questão.

2. A segunda afirmação teológica da missão diz respeito ao pecado. Qual


é a posição teológica que se aplica ao cristão, tendo como referência o
apóstolo Paulo e suas palavras em Romanos 7?
a) Regenerado por Cristo, o cristão é ao mesmo tempo justo e
pecador.
b) Que o apóstolo Paulo foi considerado pecador apenas antes da sua
conversão, logo um cristão é apenas santo.
c) Uma vez na fé, o cristão está sujeito a ser pecador, mas pode anular
essa condição em sua batalha pessoal.
d) Pecador é uma expressão e condição do passado para quem vive
na fé em Cristo.

3. Quais foram alguns dos prejuízos nos seres humanos resultantes da


queda em pecado e que cabe à Igreja em missão considerar?
a) A dúvida da Palavra e perda da habilidade original de exercer
domínio sobre nós mesmos e sobre a criação, quebrando o plano
e o status original de Deus.
b) Uma autonomia e independência saudáveis.
c) A quebra da relação vertical entre o ser humano e Deus,
comprometendo também o relacionamento horizontal, com o
próximo e com a criação.
d) As opções a e c respondem à questão.
A realidade do pecado: a urgência e o conteúdo do testemunho cristão 93

4. Quanto ao pecado, por onde se deve começar um testemunho cristão


(pregação, conversação)? Com a raiz do problema, o pecado original
ou com os sintomas do pecado e que se manifestam “a olho nu”?
a) O testemunho cristão nunca deve começar com os sintomas, ou
os pecados atuais, o mal tangível e perceptível.
b) O pecado original não deveria ser abordado, pois seria
incompreensível e inaceitável.
c) Quando o assunto está no nível do relacionamento pessoal, fala-
se dos sintomas, quando o assunto é debatido teologicamente, do
pecado original.
d) Um testemunho cristão jamais deveria mencionar o pecado.

Respostas:
2. a 3. d 4. c

Referências
A THEOLOGICAL Statement of Mission. Comission on Theology and Church
Relations of the Lutheran Church – Missouri Synod, 1990.
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today: A Theology for Evangelism. Revised
Edition, St. Louis: CPH, 1995.
SCHEDD, Russel P. Fundamentos Bíblicos da Evangelização. Tradução de
Antivan Guimarães Mendes. São Paulo: Vida Nova, 1996.
TOURNIER, Paul. Os Fortes e os Fracos. Tradução de Yara Tenório da Motta.
São Paulo: ABU Editora, 1999.
6

Jesus Cristo é o centro


do Evangelho
Introdução
Quando Pedro respondeu à pergunta de Jesus sobre sua identidade, Cristo lhe
garantiu que essa confissão não tinha se originado de sua própria investigação
racional ou deduções pessoais. Foi o Pai que o revelou. “Mas vós, continuou
ele, quem dizeis que eu sou? Respondendo, Simão Pedro disse: Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo. Então Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão
Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelou, mas meu Pai que está
nos céus” (Mt 16.15-17).
O pecado deixou defeituosa também a capacidade de investigação racional
sobre o significado do homem de Nazaré. “Somente a voz de Deus, através de seus
profetas e discípulos, pode revelar quem é Jesus de Nazaré e o que ele significa
para as criaturas humanas caídas em pecado.”85 Por isso, para que haja um
testemunho cristão mais efetivo, é necessário e útil quando há um engajamento
no estudo racional do texto bíblico e cuidado na formulação de nossas palavras
a respeito de Cristo.
Dois são os objetivos básicos deste capítulo. O primeiro é proporcionar
reflexões sobre a singularidade da pessoa e obra de Jesus, com o fim de

| 85 KOLB, op. cit., p.123.


96 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

compreender as formulações doutrinárias a respeito de Cristo e assim identificar


eventuais heresias relacionadas à cristologia. Em conexão com o primeiro,
o segundo alvo é examinar algumas das categorias dos títulos cristológicos,
visando a um testemunho e a uma pregação mais efetivos e relevantes ao povo
do século XXI.

6.1 A pessoa de Cristo


Por que é preciso conhecimento mais acurado sobre a pessoa de Cristo?
Primeiro, porque existem variados graus de conhecimento e diferentes
impressões sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Jesus é visto por alguns
como uma pessoa que planejou sua própria morte; ou como um revolucionário,
mágico e até alguém muito envelhecido antes de sua morte.86 Ainda há aqueles
que, na ânsia de tornarem Jesus Cristo relevante para os tempos modernos,
tentam modernizá-lo, retratando-o como “o Cristo Cósmico” (para contrastar
com Jesus Sofredor), um guia popular para a moral humana, um especialista
da Economia e socialista.87
Na verdade, esse problema de definir a pessoa e a obra de Jesus não é novo.
Embora se possa pensar na utilidade dos Credos Ecumênicos dos primeiros
séculos como algo opcional, suas formulações doutrinárias têm em sua
composição a essência do ensino trinitário, mas de uma forma especial verdades
a respeito da obra e da pessoa de Jesus Cristo. Havia disputas teológicas que
precisavam afirmar com clareza quem era o Deus Triúno e de maneira específica
quem era Jesus Cristo. Ora se questionava Jesus como verdadeiro Deus, ora
como verdadeiro homem.
Os Credos da Igreja Cristã sistematizaram a doutrina das três pessoas da
Trindade, mas não impediram ao longo dos anos o surgimento de mais de uma
confissão sobre Jesus Cristo. Por isso é importante verificar com clareza o que o
Pai continua a nos revelar sobre a pessoa e a obra do seu Filho.

| 86 MAIER, Paul L. Jesus: Verdade ou Mito? Tradução de Paulo R. Warth. São Paulo: Cristo Para Todas
as Nações (CPTN), 2007, p.11-12.
| 87 STOTT, John. Ouça o Espírito, Ouça o Mundo – Como ser um cristão contemporâneo. Tradução de
Silêda Silva Steuernagel. São Paulo: ABU Editora, p.19-25.
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 97

6.1.1 A contemporaneidade dos “adocionistas”


No século III, uma doutrina ensinada por Paulo de Samósata, o adocionismo,
sustentava que Cristo era apenas um ser humano. É comum em nossos dias
encontrar pessoas que creem em Jesus como sendo um “grande homem”, um
“grande mestre”, ou um “grande exemplo” para a humanidade. No testemunho
cristão o desafio é apresentar para essas pessoas o testemunho bíblico de que
Deus se tornou uma criatura humana como Jesus de Nazaré.
Há ainda o arianismo, que apresenta Jesus como uma subdivindade, sem o
atributo da eternidade e que não compartilha da essência de Deus. Além disso,
em seu crer eles afirmavam que Jesus era sujeito a praticar o mal, porém, também
para o progresso moral, caminho este que Jesus teria seguido. Nos últimos anos,
tem crescido muito o número de proponentes em inserir Jesus em seu sistema
religioso, todavia, nem como verdadeiro Deus nem como verdadeiro homem.

6.1.2 Jesus, Deus e homem


Por que Deus teve que se tornar homem? Uma das explicações foi dada
filosoficamente por St. Anselmo de Cantuária. Em seu livro Por que Deus se
tornou homem, ele argumenta com o princípio de que a justiça exige que, onde há
uma ofensa, haja uma satisfação ou compensação. A satisfação deve ser feita pelo
transgressor e a recompensa deve ser ao mesmo tempo igual e oposta à ofensa. A
grandeza de uma ofensa por sua vez é julgada pela importância da pessoa ofendida
e a grandeza da compensação pela importância da pessoa realizando o ato.
O pecado de Adão: uma ofensa infinita, pois foi contra Deus.
Se a satisfação seria feita pelo próprio homem, a recompensa seria finita,
pois seria feita por criaturas finitas.
Por isso, seria impossível o homem tornar completa a satisfação. Satisfação só
poderia ser adequada e plena, se ela fosse feita por alguém que é humano (um herdeiro
de Adão) e alguém que fosse divino (e que por isso pode oferecer uma recompensa
infinita). Consequentemente, a encarnação de Deus se tornou necessária, a fim de
tirar a culpa do pecado original e a raça humana ser redimida.88

| 88 KENNY, Anthony. A Brief History of Western Philosophy. Malden, Massachusetts, USA: Blackwell
Publishers, 1998, p.121.
98 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

Deus resgatou a humanidade do poder do pecado e da morte. Ele optou por


fazer a restauração de sua criatura caída em pecado, enviando à Terra seu Filho,
Jesus Cristo, tornando-se carne e sangue e assim preencher as exigências da lei
e carregar a culpa e a maldição dos seres humanos.
Por que Jesus? Clássica e clara é a resposta dada pelo apóstolo Paulo em 2
Coríntios 5.19: “Porque Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
não imputando (não colocando na conta) aos homens as suas transgressões”.
Com a escalada do pluralismo religioso e as consequentes ofertas de cura fora
de Cristo, é interessante uma reflexão a partir da antropologia hebraica, segundo
Claus Westermann.
O ser humano foi criado por Deus para interagir essencialmente em três
relacionamentos. Esses relacionamentos serão identificados aqui como R1, R2 e
R3. O R1 é o relacionamento para com as outras pessoas; o R2 é o relacionamento
para consigo mesmo e o R3 é para com Deus, o seu Criador.
Pressupondo os estragos gerados pelo pecado, houve prejuízos que
comprometem toda a estrutura humana e nas três dimensões. Mas foi a ruptura
no relacionamento com Deus (R3) que desencadeou todos os estragos na
relação do ser humano para consigo mesmo e com os outros (R2 e R1). Em
outras palavras, a raiz do problema está no R3. E qual é a cura para a “raiz” do
problema e que produziria resultados positivos no relacionamento com outras
pessoas e consigo mesmo? O cristianismo não tem outra resposta senão Jesus,
o Filho de Deus. Ao dialogar com outras correntes religiosas ou teológicas
sobre esse assunto, será possível perceber que a diferença fundamental está
na origem do problema do ser humano. Alguns o colocam no R2 e/ou no R1,
como se o maior problema fosse a falta de frutos ou como se houvesse algo
errado com a pessoa.89 De fato, há algo de muito errado no ser humano, mas
o diagnóstico da Palavra de Deus remete o problema para o R3, e o único
remédio e a única medicina para sua cura estão em Jesus Cristo, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem.

| 89 SCHROEDER, Edward H. O desafio do pluralismo à missão cristã: por que, afinal, Jesus? In: Igreja
Luterana, Volume 55, Número 2, 1996, p.181-185.
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 99

6.1.3 Jesus: verdadeiro Deus


Já no século II da era cristã havia rejeição de que Jesus de Nazaré é Deus em
carne humana. Afirmando a absoluta distinção do Criador e de suas criaturas, os
ebionitas90, se recusaram a crer que Deus se revelou em Jesus. Seu ensino era de
que Deus adotou Jesus em seu Batismo, fazendo dele um filho especial de Deus,
e com status superior, por causa da sua superior obediência à lei. Que implicação
há em remover Deus da pessoa de Jesus Cristo? Uma delas é que se remove o
escândalo da cruz e seu significado para a salvação da humanidade.91
O evangelista João confessou a Jesus como verdadeiro Deus em carne humana
através do termo Verbo. Todo o seu evangelho está formatado para ressaltar
a confissão de que Deus veio como homem (Jo 1.1). A confissão de Tomé no
final do evangelho reforça essa verdade: “Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e
Deus meu!” (Jo 20.28). É interessante observar que os judeus evitavam o santo
Yahweh transitar por lábios impuros. Tomé estava utilizando linguagem hebraica
para afirmar que estava reconhecendo neste homem Jesus, o Deus vindo em
carne humana. A Igreja Primitiva usava as palavras de Isaías 45.23, “Por mim
mesmo tenho jurado; da minha boca saiu o que é justo, e a minha palavra não
tornará atrás. Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua”, que
descrevem o culto a Yahweh, para serem cantadas a Jesus: “para que ao nome de
Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua
confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.10-11). O livro
de Hebreus atribui a Cristo a descrição do poder criador e sua eterna natureza
encontrada nos salmos (Sl 102.25-27; Hb 1.10-12).
Confessar a Jesus como Senhor era significativo para os gentios, pois eles
usavam o título Senhor para indicar que o imperador era divino. É óbvio que
Jesus não poderia ser considerado da mesma forma que um imperador era
designado, mas chamar este Jesus como “Senhor” era para os ouvidos gentios a
afirmação que significava chamá-lo de divino.

| 90 Termo aplicado a judeus cristãos em Jerusalém. Mais tarde foi aplicado também a um grupo mais
extremado do judaísmo que professava fidelidade à Lei de Deus (Torá), e, embora reconhecesse a
Jesus como o Messias, não o confessavam como Deus e nem que ele nasceu da Virgem Maria.
| 91 KOLB, op. cit., p.125.
100 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

Enquanto o termo Senhor poderia se referir a líderes humanos, não há dúvida


de que, quando Paulo designa Cristo de “Senhor da Glória”, ele está confessando
que esse homem é Deus em carne humana (1 Co 2.8; 1 Co 12.3; At 2.36).92

6.1.4 Jesus: verdadeiro Homem


A passagem clássica nas epístolas da Escritura Sagrada que ensinam que
Deus veio como verdadeiro homem é Gálatas 4.4. “Vindo, porém, a plenitude
do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei.” Também
em Filipenses Jesus é retratado como o servo que se esvaziou até as últimas
consequências (Fp 2.7-8). Porém, também a doutrina da verdadeira humanidade
de Cristo não escapou dos ensinos contrários.
Um dos principais erros foi do docetismo, que argumentava que Jesus apenas
parecia humano. Isso foi ao encontro da perspectiva gnóstica, que faz uma
distinção de valor entre matéria, que é má e inferior, e o espírito, bom e superior.
Eles não entenderam como um ser infinito e perfeito pudesse ser conectado à
matéria. Deus se tornar homem. Do seu ponto de vista isso era inconcebível.
Talvez pudesse se afirmar que o princípio por detrás desta filosofia confirma
o que o apóstolo Paulo escreveu aos coríntios: “certamente, a palavra da cruz
é loucura” (1 Co 1.18-23). O testemunho cristão deveria estar preparado para
assessorar seus ouvintes a refletirem sobre passagens bíblicas que apontam para
Jesus como homem e Deus e as implicações desse crer.
É interessante observar que, ao apresentar a pessoa e a obra de Cristo, não há
como separar as duas naturezas, nem os dois estados, comumente denominados
de humilhação e exaltação. Isso é observável de maneira especial ao olhar o texto
que ensina de maneira mais clara esses dois estados (Fp 2.6-11).
Tão logo observarmos as descrições bíblicas de Jesus, vamos ver que, por
mais úteis que elas possam ser para distinguir sua pessoa como Deus da sua
obra redentora, não pode haver separação entre sua pessoa da obra realizada
na cruz. O Cristo Jesus, que é verdadeiramente e completamente Deus, está
conectado com a obra de reconciliação e com todas as coisas pelo sangue da
sua cruz (Cl 1.19-20).93

| 92 Idem, p.125.
| 93 Idem, p.130.
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 101

6.2 O testemunho cristão através de títulos


cristológicos
Quando Deus falou através de Jesus e da pregação de profetas e apóstolos no
século I, Ele não se expressou em formulações usadas para afirmar a doutrina da
Trindade. Ele usou títulos para falar. No começo do século XXI, Deus Espírito
Santo também pode usar títulos cristológicos para proclamação e aplicação
da Palavra de Deus e sua consequente presença na vida das pessoas. Alguns
desses títulos bíblicos podem ser bem claros para as pessoas compreenderem e
assimilarem, outros talvez exijam explicação mais detalhada.
No século XVI, João Calvino usou três títulos bíblicos para Cristo. Seu
objetivo era resumir neles sua pessoa e sua obra. Profeta, Sacerdote e Rei. Todas
as descrições bíblicas a respeito de Jesus eram agrupadas em torno desses três
temas centrais. Oscar Cullmann, exegeta contemporâneo, classificou os títulos
de Cristo em quatro categorias: aqueles que se referem à sua preexistência; os
que dizem respeito à obra terrena; os que aludem à presente obra de Jesus e sua
futura obra no fim dos tempos.94
Robert Kolb sugere quatro categorias95 para auxiliar na formulação da
mensagem de Jesus para situações de testemunho pessoal. Jesus como aquele
que revela; nosso substituto na cruz; o vitorioso sobre o mal; e nossa companhia
e orientação.96 Aqui é importante observar que esse testemunho também pode
ser aplicado perfeitamente em todas as oportunidades que surge na Igreja, na
homilética inclusive.

6.2.1 Jesus revela o coração do Pai97


a. Jesus é Senhor: alguém que exerce o supremo poder. “Esteja
absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que
vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (At 2.36; cf. Rm 10.9; 1
Co 12.3; Fp 2.11). Jesus é Senhor como autor da vida. Ele governa, não
como um déspota ou ditador, mas como um amoroso Senhor.

| 94 Idem, p.131.
| 95 Idem, p.130-159.
| 96 Idem, p.130.
| 97 Jo 1.18; 20.28; Cl 2.9 (cf. 1.19); 2 Pe 1.1.
102 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

b. Jesus a imagem de Deus: Jesus oferece uma reprodução fotográfica


da imagem de Deus e sua disposição a nosso respeito. “Ele, que é o
resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas
as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação
dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas” (Hb 1.3;
cf. 2 Co 4.4; Cl 1.15; Jo 1.14). Jesus não é designado como pai, mas ele
exerce sua missão com amor paternal. “Jerusalém, Jerusalém, que matas
os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu
reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo
das asas, e vós não o quisestes” (Mt 23.37).
c. Jesus a Palavra: o uso do termo Logos é muito significativo. No contexto
gentio o Logos era identificado como aquele que sustentava a ordem
existente; para os neoplatonistas era o agente da criação gerado pelo ser
absoluto ou último. Para os judeus a Palavra do Senhor era o agente da
sua criação (Gn 1) e preservação (Sl 107.20; 147.18; Is 55.11).
d. Jesus o Profeta: os judeus sempre esperaram alguém que lhes ensinasse
com autoridade, eles não queriam um representante ou um agente (Dt
18.15-18). Jesus veio e falou com autoridade, “porque ele as ensinava
como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7.29; Lc 11.51;
Mc 3.28; Jo 7.46).
e. Jesus a Luz: luz é uma das imagens mais simples para descrever o Filho
de Deus, mas ao mesmo tempo muito profunda na anunciação de Jesus
Cristo. O evangelista João principia seu evangelho apresentando a Jesus
como sendo a luz de todas as pessoas. “A vida estava nele e a vida era a luz
dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram
contra ela. Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João.
Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a
fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas
veio para que testificasse da luz, a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao
mundo, ilumina a todo homem” (Jo 1.4-9). Jesus é a luz que dá vista
aos cegos (Mt 11.5) e ilumina o caminho no qual as pessoas andam (Mt
4.15-16; Is 9.2).
Em nível horizontal, diante da escuridão e da possibilidade dos
tropeços e quedas, Jesus é a luz que vai à frente para amparar e guiar
por terreno plano. Jesus também é a fonte de luz no sentido vertical,
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 103

pois, sendo o Caminho, a Verdade e a Vida, ele nos faz voltar ao trilho
do relacionamento correto com o pai celestial.
Luz produz e provê conhecimento. Na medida em que a luz de Jesus
brilha na vida das pessoas, ele revela o que está errado quando se vive
nas trevas e na escuridão98, mas também mostra o que está correto no
relacionamento com Deus através de Jesus, e assim leva essa luz a outras
pessoas (Jo 12.46; Mt 4.15-16; 11.5; Lc 1.78; 23.44-45; 2 Co 4.6).99
Luz gera segurança. Diante do temor da escuridão, Jesus pode iluminar a
vida dos que jazem por alguma razão nas trevas do pecado ou do engano.
Ele pode revelar tanto a origem de todas as forças e influências hostis
como pode acolher com sua luz e calor a todos os que Nele se achegam.
As trevas não triunfaram e Jesus as venceu, ainda que ao meio-dia da
Sexta-Feira Santa elas tenham insistido em aparecer (Lc 23.44-45).
A luz nos lembra o processo da fotossíntese, processo pelo qual
plantas usam a luz para produzir vida no mundo vegetal. A luz produz
crescimento. A partir do Batismo e através da Palavra e da Santa Ceia, Jesus
irradia a sua luz criativa e recriadora e nos faz pessoas melhores e mais
experientes, não obstante as vicissitudes e contrariedades diárias.100

6.2.2 Jesus como nosso substituto


De alguma forma somos responsáveis pelo mal e a culpa, e é preciso lidar com
isso. Porém, é impossível por nós próprios lidar com essa situação. Jesus veio para
tomar o nosso lugar, servir como nosso substituto, realizar o sacrifício vicário e
assim exorcizar nossa culpa. Ele fez isso voluntária e obedientemente (Fp 2.6-8;
Hb 5.8). Jesus tornou-se a vítima da Lei e da ira do Pai. A fúria de Deus contra o
mal é real, tinha que ser combatida, mas ela não foi subjugada pelo poder, mas
na fraqueza e na loucura da cruz (Gl 4.4; 3.13; 2 Co 5.21; Rm 5.9-10).

| 98 O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a
luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece a luz e não se
chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras (Jo 3.19-20).
| 99 Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se
acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os
que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam
as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus (Mt 5.14-16).
| 100 KOLB, op. cit., p.138-139.
104 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

a. O Servo Sofredor de Deus: uma das mais dramáticas figuras bíblicas


de Jesus é descrita nos cânticos do servo sofredor (Is 42; 49, 50; 52-53).
Jesus não se atribui esse título de servo sofredor, mas usa outras formas
para descrever as profecias de Isaías (Mt 16.21; 17.22; 20.17-19; Mc
10.45). Às vezes há exemplos, raros é verdade, de pessoas que assumem
o lugar de outras, talvez de filhos ou amigos íntimos, mas Jesus tomou
nosso lugar sendo nós ainda inimigos e hostis a Ele (Rm 5.6-8).
b. Jesus, o Sacerdote: o servo que fica entre Deus e as pessoas no sistema
sacrificial é chamado de sacerdote. Em Latim, pontifex, o construtor de
pontes, o conector entre Deus e suas criaturas (Hb 2.17; 4.15; 9.26-28;
10.10; 1 Jo 2.2). Jesus é o cumprimento do ofício do misterioso sacerdote
e rei Melquisedeque (Hb 7.1; Gn 14.17-20). Jesus é único, pois ele
constrói a ponte com seu próprio sangue (Hb 9.12-14, 28) e continua
sendo sacerdote para sempre (Hb 6.20).
c. Jesus, o Rei: o humilhado na cruz é rei (Mc 15.32). Deus toma a morte
em suas próprias mãos para suplantar o seu poder e a sua força.

6.2.3 Jesus Vitorioso


Cristo derrotou todas as forças que nos podem separar do Pai. Ele é rei (Jo
19.14,19) e Messias (Mt 16.16).
a. Jesus como Salvador: como nosso Rei, Jesus o Cristo acima de tudo nos
resgata e salva de nossos inimigos, da nossa culpa ou responsabilidade
pelo pecado e dos males que nos fazem suas vítimas (Mt 1.21; 1 Co
15.35-37; Fp 3.20; 2 Tm 1.10; Tt 2.11-14).
b. Jesus, o Ressuscitado: ele é a fonte de vida e nos salva da morte, o mal
culminante de todos que podem nos afligir (Jo 11.25-27; 1 Co 15). Ele
foi na nossa frente para preparar o caminho originalmente criado por
Deus, a vida (Hb 6.20).
c. Jesus, o segundo Adão: Adão foi uma criatura humana e deixou
toda a humanidade no caminho do pecado e da morte. Jesus foi uma
recapitulação de Deus, no “episódio Adão”, só que com um resultado
reverso (Rm 5.12-17).
d. Jesus, o Filho do Homem: esse título afirma seu exercício de poder
como Senhor e vencedor. Paradoxalmente, esse título é combinado nas
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 105

predições sobre suas paixão e morte como servo sofredor (Mt 16.21),
mas também é usado para falar do seu retorno e dar um fim definitivo
em todo o mal existente (Mt 24.27-44; 25.31).

6.2.4 Jesus, companhia e guia


Jesus nos habilita para a vida eterna, mas ele está também intimamente ligado
com seu cuidado e atenção em nosso dia a dia (Mt 28.19).
a. Jesus, o Médico: essa é uma das metáforas que fala da sua presença
diária em nossas vidas (Mt 9.9-13). Ele não cura apenas doenças físicas,
ainda que ele possa fazê-lo sem explanação científica aparente, bem
como efetuar intervenções para restaurar a saúde através dos milagres
explanáveis da medicina moderna, pois, também e acima de tudo, Jesus
cura nossas machucadas relações com nosso Pai e com o próximo.
b. Jesus, o Bom Pastor: Martinho Lutero diz que a ovelha é ao mesmo
tempo um animal extraordinariamente engraçado e estúpido. “Se
nós queremos chamar alguém de estúpido, nós dizemos você é uma
ovelha”. Porém, por outro lado, quando a ovelha reconhece a voz
do seu pastor, ela corre a ele em completa confiança.101 É provável
que nós nunca seremos capazes de, num contexto urbano, apreciar
todos os significados dessa metáfora, mas a Palavra de Deus pode
nos mostrar um pouquinho do que significa ser uma ovelha e Jesus
o nosso Bom Pastor (Jo 10.11,15,17; 1 Pe 2.25; Lc 15.4-7; Is 40.11;
Sl 23, 79.13; 80.1; 95.7).
c. Jesus, o Bom Pai: como o uso do termo Pai é mais usado em relação à
primeira pessoa da Trindade, é muito raro atribuir essa imagem de Jesus
como um bom pai (Mc 10.13-16). Num contexto em que a conotação
de pai pode nem sempre ser das melhores, não se precisa descartar de
apresentar Jesus aos desalentados e solitários dessa forma, pois nas mãos
de Jesus sempre estaremos seguros.
d. Jesus, o Pão da Vida: quando nossas seguranças se evaporam e nossa
alma fica sedenta e faminta por uma referência que devolva a segurança,

| 101 SIGGINS, Ian D. Kingston. Martin Luther’s Doctrine of Christ. Eugene: Wipf & Stock Publishers,
2003, p.245-246.
106 Jesus Cristo é o centro do Evangelho

Jesus vem e garante o sustento de nossa vida como o pão que desceu do
céu e, paralelamente, como a água da vida (Jo 4.10-14; 6.32-35; 48-51).

Atividades de autoestudo
1. A missão da Igreja Cristã de todos os tempos é pregar a Cristo
Crucificado (1 Co 1.23). É realmente preciso conhecimento mais
apurado sobre a pessoa de Cristo? Justifique sua resposta em cinco a
oito linhas.

2. Qual é o diagnóstico do ser humano, a partir da antropologia hebraica


segundo Claus Westermann, para o real problema do ser humano e que
somente o cristianismo pode oferecer a cura?
a) O maior problema do ser humano é a falta de boas obras para com
o próximo e que origina afastamento de Deus e descompasso para
consigo mesmo.
b) O maior problema do ser humano é não compreender a si próprio,
originando assim quebras no relacionamento com Deus e com as
pessoas.
c) O maior problema do ser humano é a ruptura no relacionamento
com Deus (R3) e que desencadeou todos os estragos na relação do
ser humano para consigo mesmo e com os outros (R2 e R1).
d) O problema está completamente equiparado no relacionamento
consigo mesmo, com os outros e com Deus.

3. Que resultado há em tirar Deus da pessoa de Jesus Cristo e afirmar que


Jesus foi apenas homem?
a) Jesus na verdade foi apenas homem e por isso não existe implicação
alguma.
b) Um deles é que se remove o escândalo da cruz e seu significado
para a salvação da humanidade.
c) Jesus apenas parecia Deus, pois seria impossível ter sido Deus e
homem ao mesmo tempo.
d) Deus Pai apenas adotou Jesus em seu Batismo, fazendo dele um
filho especial de Deus, e com status superior, mas não Deus.
Jesus Cristo é o centro do Evangelho 107

4. Alguns estudiosos defendem a ideia de que Deus Espírito Santo também


pode usar títulos cristológicos para proclamação e aplicação da Palavra
de Deus e sua consequente presença na vida das pessoas. Quais dos
títulos abaixo dizem respeito a Cristo como nosso substituto?
a) Jesus o médico e bom pastor.
b) Jesus o bom pai e o pão da vida.
c) Jesus o segundo Adão e o filho do homem.
d) Jesus o servo sofredor e o sacerdote.

Respostas:
2. c 3. b 4. d

Referências
A THEOLOGICAL Statement of Mission. Comission on Theology and Church
Relations of the Lutheran Church – Missouri Synod, 1990.
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today. St. Louis, USA: Concordia
Publishing House, 1995.
SCHROEDER, Edward H. O desafio do pluralismo à missão cristã: por que,
afinal, Jesus? In: Igreja Luterana, Volume 55, Número 2, 1996, p.181-185.
STOTT, John. Ouça o Espírito, Ouça o Mundo – Como ser um cristão
contemporâneo. Tradução de Silêda Silva Steuernagel. São Paulo: ABU Editora,
1997.
7

O Espírito Santo como o energizador


da missão de Deus
Introdução
A Igreja age a partir da esperança de que o Espírito de Deus está presente na
missão. A Igreja foi revestida em seu poder para cumprir a missão de pregar o
arrependimento e a remissão dos pecados. “Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz
seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo
dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se de alguns
perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos” (Jo
20.21-23; Cf. ainda At 1.8; Jo 14.26).
O objetivo deste capítulo é promover reflexões e direções sobre a obra
do Espírito Santo na missão, de forma especial que o aluno compreenda a
importância da terceira pessoa da Trindade, bem como seja apto a reconhecer
os meios através dos quais o Espírito de Deus opera na vida das pessoas e habita
no crente em Cristo, e implicações práticas decorrentes dessa habitação.

7.1 O Espírito Santo


A palavra hebraica para Espírito é ruah, que, além de Espírito, significa
vento, ar, fôlego de vida. A vida do próprio Senhor é que dá a vida e o poder;
sabedoria e fala; conhecimento e entendimento. “Quando, pois, vos levarem e
110 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

vos entregarem, não vos preocupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos
for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os que falais, mas o
Espírito Santo” (Mc 13.11).
As Sagradas Escrituras revelam mais detalhes sobre a obra do Espírito do
que sobre sua pessoa. É interessante, porém, lembrar que, junto com o Pai e o
Filho, ele é Deus. Nos primeiros séculos da Era Cristã houve uma negação desta
verdade. Por isso, o Concílio de Constantinopla, em 381, reafirmou a doutrina
cristã de que o Espírito Santo é pessoa e é Deus. Esse ensino concorda com a
afirmação do próprio Jesus, que afirma que alguém pode blasfemar contra o
Espírito (Mt 12.31), e blasfêmia, como tal, é o pecado de ofender a Deus.102 Além
disso, deve-se lembrar outros textos que afirmam que o Espírito é igual ao Pai
e ao Filho. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19); “A graça do Senhor
Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com
todos vós” (2 Co 13.13).

7.2 O papel do Espírito no Antigo Testamento


Em primeiro lugar, é necessário lembrar que a obra do Espírito Santo não
se inaugurou tão somente no Novo Testamento e de forma específica após o
evento do Pentecoste, que ocorreu cinquenta dias após a ressurreição de Jesus
(At 2.1-4). Embora seja no tempo da Nova Aliança que haja uma identificação
maior com e como o Espírito opera, já no Antigo Testamento pode se perceber
sua ação. A começar por Gênesis na obra da criação de Deus. “A terra, porém,
estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas” (Gn 1.2). Também na unção dos setenta anciãos que
auxiliaram na missão incumbida a Moisés (Nm 11.16-17), fato que mais tarde é
lembrado pelo profeta Isaías, bem como pelo profeta Ageu (Ag 2.5). “Então, o
povo se lembrou dos dias antigos, de Moisés, e disse: Onde está aquele que fez
subir do mar o pastor do seu rebanho? Onde está o que pôs nele o seu Espírito
Santo?” (Is 63.11). Também ao servo Zorobabel, um dos líderes no retorno do
povo de Israel do cativeiro babilônico, também foi assegurado que ele iria sob
a capacitação do Espírito de Deus (Zc 4.6).

| 102 KOLB, op. cit., p.189.


O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 111

Foi ainda sob inspiração do Espírito que profetas e outros servos de Deus
ensinaram, proclamaram e escreveram a Palavra de Deus. “Tu, Soberano
Senhor, que fizeste o céu, a terra, o mar e tudo o que neles há; que disseste por
intermédio do Espírito Santo, por boca de Davi, nosso pai, teu servo: Por que
se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs?” (At 4.24-25; Cf.
ainda 2 Pe 1.21).

7.3 O Espírito Santo na obra de Cristo e no início


da Igreja Cristã
Desde o início do Novo Testamento, do princípio da vinda e da obra de Jesus,
suas palavras e ações, há uma conexão muito próxima com o poder e a missão
do Espírito. É pelo Espírito que o Filho de Deus é concebido (Lc 1.35) e é ele
que revela a Simeão o Salvador Jesus (Lc 2.26). Além disso, foi o Espírito que
ungiu a Cristo no Batismo (Lc 3.21-22) e por Ele foi guiado ao deserto para ser
tentado por Satanás (Lc 4.1). Também foi em seu poder que Jesus realizou o seu
ministério terreno, seu ensino, milagres e obras (Lc 4.14,18), o que, a propósito,
é um cumprimento da palavra profética de Isaías (Is 61.1-2).
Quando chegou a hora da despedida de Jesus da Terra, ele prometeu outra
pessoa que continuaria a missão. Um “outro” Consolador. “E eu rogarei ao Pai,
e ele vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco”
(Jo 14.16). Esse Consolador é o Espírito Santo. Porém, a missão desse “outro”
Confortador está ligada diretamente ao próprio Cristo, pois é seu papel apontar
de volta para o próprio Cristo. “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará
testemunho de mim” (Jo 15.26).
A missão do Espírito continua na Igreja Primitiva. Ao longo do livro de
Atos, há inúmeras referências ao seu papel de fazer nascer, sustentar e construir
o corpo de Cristo, a saber, a Igreja. O livro de Atos dos Apóstolos providencia
um relato detalhado dos esforços missionários e evangelísticos da Igreja Cristã.
Alguns chegam a afirmar que o título deste livro deveria ser “Atos do Espírito
Santo”, visto que ao longo de suas páginas é possível notar que é o Espírito de
Deus que está no controle da missão da Igreja (At 2.4; 4.8; 4.31; 5.32; 6.3; 7.51;
8.14-20; 9.31; 10.19; 10.44; 11.15-18; 13.2; 13.52; 16.6-7,14).
112 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

Também o apóstolo Paulo atribui ao Espírito a distribuição dos dons aos


cristãos conforme lhe apraz (1 Co 12.11) e condiciona a confissão do Senhor Jesus
unicamente pela presença do Espírito nos lábios de quem professa o Salvador.
“Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo”
(1 Co 12.3).

7.4 A obra do Espírito Santo na Igreja hoje


O Espírito Santo continua sua ação na Igreja ainda hoje. É ele que energiza
a missão da Igreja e dos cristãos individualmente para serem agentes de
Deus no mundo. As obras do Espírito Santo, hoje, são aquelas atribuídas pela
própria Palavra de Deus. Jesus aplicou ao Espírito a missão de ensinador: “mas
o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos
ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo
14.26). O apóstolo Paulo escreve a Tito afirmando o Espírito como o regenerador
ou recriador das pessoas através do Batismo. “Quando, porém, se manifestou
a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com todos, não por
obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou
mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou
sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador” (Tt 3.4-6). Essa
obra de regeneração também ocorre pelo ouvir do Evangelho do Senhor Jesus
(Gl 3.2,5; 1 Pe 1.23).
O Espírito vem para habitar na Igreja e nos cristãos individualmente e fazer
deles os seus templos (1 Co 3.16; 6.19; Rm 8.9-11; 2 Tm 1.14). É o Espírito que
torna alguém verdadeiramente capaz de confessar a Jesus Cristo como Senhor
(1 Co 12.3) e que é a única e verdadeira fonte de identidade, segurança e sentido
para a vida.

7.5 A dádiva do Espírito


Como receber o Espírito? Os cristãos não encontram o Espírito e não há
obra humana e nem dinheiro com que ele pudesse ser adquirido (At 8.19-20).
O Espírito, que vem aos cristãos através do ouvir da Palavra e do Batismo, é
uma dádiva divina. “Pois, se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 113

outorgou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse resistir
a Deus?” (At 11.17; Cf. ainda At 10.45).
Deus se utiliza de duas imagens para afirmar que o Espírito é a garantia dada
por antecipação à Igreja e a todos os cristãos de forma individual. A primeira
é a linguagem comercial. Deus concede uma “caução” ou um “sinal” de que a
herança celestial aos crentes em Cristo está garantida. “Mas aquele que nos
confirma convosco em Cristo e nos ungiu é Deus, que também nos selou e nos
deu o penhor do Espírito em nosso coração” (2 Co 1.22; Cf. ainda 2 Co 5.5).
A segunda imagem é cúltica. O Espírito como dádiva aos crentes é comparada
aos primeiros frutos, as primícias da colheita ou da vitória final que ainda
vai ocorrer. “E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do
Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos,
a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23; Cf. ainda Ef 1.13-14).
A primeira obra do Espírito é restaurar a criatura humana à condição de
cidadão celestial, mas também a uma vida de culto a Deus, bem como de um
relacionamento de dependência e confiança em seu Criador. Uma vez a relação
com Deus recuperada, crentes em Cristo então praticarão o fruto da presença do
Espírito numa vida de amor, paz, paciência, bondade, fidelidade, generosidade
e domínio próprio (Gl 5.22-25).

7.6 Batizar e ensinar


O final do Evangelho de Mateus registra o Comissionamento entregue por
Jesus a sua igreja. “Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade
me foi dada no céu e na Terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,
batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a
guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.19-20). Algumas vezes
procura se falar da possível ordem cronológica existente nessas palavras, de
forma especial no batizar e depois ensinar. Essa sequência pode trazer certo
desconforto para aqueles que defendem e creem o inverso nesse processo.
Primeiro ensinar, depois batizar.
Ainda que seja de certa importância, isso não deveria ocultar ou anular
o que de fato é mais significativo e que é entender esse quadro biblicamente
e enfatizar a questão do ponto de vista teológico. O Batismo é praticado pela
114 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

Igreja Cristã por se tratar duma ordem de Jesus. Mais do que um imperativo,
o Batismo possui promessas de uma nova vida em Jesus Cristo e de salvação.
Além disso, vale lembrar o elemento físico da criação de Deus, a água, para ser
o veículo da graça divina.
Deus converte as suas criaturas à fé não somente através do ouvir da sua Palavra.
Ele também vem em forma de água, unida à Palavra, para transmitir o seu Espírito,
conferir uma nova vida, regenerar e perdoar. Uma vez presente a Palavra, o Batismo
carrega a promessa de que Deus está recriando pelo perdão, concedendo uma vida
nova e salvação, dons conquistados por Jesus Cristo na cruz.

7.7 O Batismo de Jesus – uma análise do texto


de Mateus 3.13-17
Quando o assunto é o Batismo, um dos eventos que é preciso olhar no
ministério terreno do Filho de Deus é justamente o seu Batismo. Por que Jesus
precisou ser batizado? Qual é a relação do Batismo de Jesus e o Batismo cristão
hoje? Há algumas reflexões importantes envolvidas nesse acontecimento e que
precisam ser examinadas.
Estudiosos afirmam que o relato do Batismo do Senhor Jesus é um dos
eventos mais examinados e interpretados do Novo Testamento. O relato está nos
evangelhos sinóticos (Mt 3.13-17; Mc 1.9-11 e Lc 3.21-22) e o quarto evangelho
também faz referência (Jo 1.29-34). A proposta aqui é ficar restrito ao que o
evangelista Mateus relata e revela a respeito do Filho de Deus e suas implicações
na vida dos pecadores e na missão da Igreja em batizar.

7.7.1 Contexto do Batismo de Jesus


Em primeiro lugar, é preciso notar que João Batista está em evidência no
início deste capítulo em Mateus. O evangelista destaca sua pregação, Batismo,
vestuário e até sua dieta alimentar (3.1-6). Os fariseus e saduceus pretendiam
roubar a cena se colocando na fila para serem batizados. Mas na interpretação
de João Batista eles não eram dignos para tal, visto que seus olhos estavam tão
somente presos em sua relação genealógica com Abraão. João Batista não os
aceitou, repreendeu-os duramente (3.7-10) e os tirou da fila do Batismo.
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 115

Depois disso, João descreve sua missão como preparatória para a chegada
daquele que possui autoridade absoluta e de quem ele não é digno de prestar o
menor serviço. A promessa é que o Batismo de Jesus será com o Espírito Santo
e ele virá para trazer salvação e julgamento (3.11-12).

7.7.2 Análise do texto


O povo da Judeia e arredores haviam respondido à mensagem “arrependei-
vos” de João Batista (Mt 3.2). O seu Batismo era “para arrependimento”, mas
era necessário ir “em arrependimento” para ser convertido da incredulidade à
fé e assim ser recebido no povo de Deus.
Porém, as coisas pareciam ter tomado outro rumo quando Jesus se colocou
na fila para ser batizado. O Filho de Deus vai ao mesmo lugar, à mesma pessoa
e com o mesmo propósito: ser batizado. Por que Jesus precisaria do Batismo?
Ele precisava se arrepender? Ser convertido e assim ser readmitido no povo de
Deus?
Claro que não. Por isso a reação de João Batista até é compreensível. Ele
sugere que aconteça o contrário, pois ele olha para sua própria condição de
pecador. Embora João 1.33 aponte para o fato de que até esse momento João
Batista ainda não sabia que estava diante do Messias, o contexto anterior aqui
e a sua reação mostram para a realidade de que ele sabia que estava diante do
Salvador (Mt 1.21) e era Ele que viria para batizar com o Espírito e, portanto,
era ele, João, quem precisaria se submeter ao Batismo.
João Batista considerou acertadamente indignos para o Batismo os fariseus e
os saduceus. Agora ele pensa que ele é indigno para batizar Jesus. Ele olha para
sua própria necessidade e condição de pecador. Ele reconhece que é ele que
precisaria se colocar na fila para ser batizado e se submeter ao Filho de Deus.
Mas na resposta e ação de Jesus se revela a missão do Filho de Deus. Seu
Batismo é uma concessão ou permissão especial. O Filho sem pecado se coloca na
fila dos filhos pecadores para receber o Batismo de arrependimento. Ele assume
o pecado de toda a raça humana. “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez
pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21).
Ao se submeter ao Batismo de João, Jesus estava confirmando a pregação dele.
Ambos estavam participando no “convém cumprir toda a justiça”. Justiça de Deus
116 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

é sinônimo para salvação. São os atos salvadores do Senhor no Antigo Testamento


(Sl 71.2, 16, 19, 24). A justiça de Deus será cumprida quando João batizar a Cristo
e todos podem ir em fé buscar o Reino de Deus e sua salvação (Mt 6.33).
Tentando juntar as peças nesse episódio, a resposta de Jesus poderia ser resumida
assim: Jesus foi até João para ser batizado, para se submeter ao Batismo que Israel
pecador estava se submetendo. João fez objeção, porque ele sabia que Jesus é o
Salvador e Juiz de todos no último dia. O Filho de Deus esclarece que agora, no
tempo presente, sua ação inesperada deve ser compreendida à luz do “cumprir toda
a justiça” junto com João. O Reino de Deus se manifestou na história em Jesus e o
Batismo é porque ele veio para “salvar seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).
Jesus confirma os atos salvadores de Deus pelo povo ao ficar na fila com os
pecadores, tomar o lugar deles e receber de João o Batismo que os pecadores
recebem. Esse é o primeiro passo do Senhor Jesus na obra salvadora e que
culminará com sua condenação, crucificação e ressurreição. Mais tarde, Jesus
realizará o julgamento, a separação e o Batismo com o Espírito Santo e fogo do
qual João falou (3.17).
Saber disso já seria o suficiente. Mas tem mais. Ao descrever a descida do
Espírito sobre Jesus, Mateus está atestando o cumprimento de profecias do Antigo
Testamento (Is 42.1-4; 61.1-9). Aqui a identidade completa de Jesus é revelada.
Ele se coloca na fila porque ele é o servo de Deus que trará justificação a todas as
nações, esperança, Boas-Novas e conforto para os pobres e os que choram (Mt
11.2-6). Ele é tudo. “Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da
parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção, para que, como está
escrito: Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” (1 Co 1.30-31).
O quadro se completa quando a voz do Pai é ouvida. Jesus é o Filho de Deus
por direito de concepção e nascimento (Mt 1.18-25), mas ele também é o Filho
que veio em lugar do filho pecador Israel (Êx 4.22; Os 11.1; Mt 2.15).

7.8 O Batismo de Jesus e sua relação com


o Batismo hoje
Jesus é ungido pelo Pai no rio Jordão e o Espírito do Senhor está sobre ele (Lc 4.18;
At 10.38). De fato, o Filho de Deus já tinha o Espírito Santo desde a sua concepção.
No filho de Maria o Espírito habita em sua plenitude. Só que essa presença do
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 117

Espírito é única, no sentido de incomparável, sem precedentes e que não vai mais
se repetir. É uma presença intransferível e que não pode ser comunicada a outros
através da concepção. Por isso o Batismo. Aquele que possui a unção do Espírito
(Jesus) agora batiza a outros com o Espírito. “E pregava, dizendo: Após mim vem
aquele que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de, curvando-me,
desatar-lhe as correias das sandálias. Eu vos tenho batizado com água; ele, porém,
vos batizará com o Espírito Santo” (Mc 1.7-8; cf. ainda Mt 3.11; Lc 3.16; Jo 1.33; At
1.5). Essa dádiva do Espírito dada por Jesus é associada com o novo nascimento e a
entrada no Reino de Deus através da “água e do Espírito” (Jo 3.5).
Essas referências se tornam bem explícitas na descida do prometido Espírito
no Pentecoste, o qual por sua vez conduz as pessoas ao arrependimento para
o perdão dos pecados e a recepção do dom do Espírito Santo (At 2.32-38).
Desde lá, cada Batismo se torna um “pequeno pentecoste”, uma revalidação do
derramamento contínuo do Espírito por parte do Filho e do Pai. O Batismo é o
sinal da Nova Aliança e incorpora os batizados no povo de Deus e não é apenas
um ato exterior de recepção na comunidade dos irmãos. Nele é imputado ao
crente tudo o que Cristo fez por ele através da cruz e da ressurreição, tornando-
se, assim, um meio missionário da Igreja.103

7.8.1 Implicações para o Batismo cristão


O Batismo de Jesus é vicário, ou seja, é pelos pecadores e aponta para a sua
morte e ressurreição em lugar dos pecadores, para lhes garantir a reconciliação
com o Pai (Rm 5.10; 2 Co 5.18) e a redenção (Cl 1.13-14). O eco do Batismo
cristão está especialmente nas palavras do apóstolo Paulo em Rm 6.1-4 e Cl 2.11-
13. Agora, o Batismo cristão confere a justiça de Deus, ou a salvação realizada
em Cristo. O apóstolo Pedro o compara à salvação de Noé na destruição através
do dilúvio: “a qual, figurando o Batismo, agora também vos salva, não sendo a
remoção da imundícia da carne, mas a indagação de uma boa consciência para
com Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo” (1 Pe 3.21).
Ao enfatizar que pelo Batismo somos sepultados com Cristo, o apóstolo
Paulo foca tanto no poder salvador, bem como na força destrutiva da água.
O Batismo “enterra” o jeito antigo e pecaminoso de viver e as falsas fontes

| 103 VICEDOM, op. cit., p.88-89.


118 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

de segurança, identidade e sentido de vida. Também pelo Batismo Deus


cancela as acusações que repousam contra todos os pecadores, pois Cristo as
pregou na cruz (Cl 2.14). A implicação disso é que a partir do Batismo Deus
não nos vê mais como pecadores, mas também como filhos santos dele. Essa
nova disposição é possível na medida em que no Batismo somos unidos a
Cristo para uma nova vida e que se reflete numa vida santificada. O Batismo
restaura o relacionamento vertical com o Criador e que por sua vez torna
os batizados aptos a viverem com “hábitos celestiais” nos relacionamentos
horizontais.
Vale observar, contudo, que, por razões desconhecidas e que Deus não
revela em sua palavra, o batizado em Cristo ainda vive sob a influência da
velha natureza pecaminosa. Isso implica que ao batizado cabe o retorno
constante a Deus em arrependimento e continuar batalhando contra a
tentação do pecado e da busca por segurança e salvação em outras fontes,
às vezes nele mesmo.104

Embora ao candidato seja um evento passivo, o Batismo nunca


é um processo mecânico. Esta verdade é feita abundantemente
clara através da conexão do Batismo com o Espírito (Mt 3.11; At
10.47; Jo 3.5; 1 Co 12.11-13). O dom do Batismo é o Espírito
Santo. Porém, o Espírito Santo é o próprio Cristo habitando nos
corações dos fiéis (2 Co 3.17; Rm 8.9-11, 14ss; Ef 3.16ss). Os
batizados são a casa onde o Espírito estabeleceu sua morada...
Ele comunica verdadeiro conhecimento de Deus (1 Co 2.10) e
da sua vontade. Ele nos ensina e nos lembra de tudo que Cristo
disse enquanto estava sobre a Terra (Jo 14.26). Ele nos guia
em toda a verdade (Jo 16.13), de forma que não fiquemos sem
o conhecimento de Cristo e dos dons que Deus nos dá Nele (1
Co 2.12; Ef 1.9). O dom que o Espírito cria em nós não é a
incerteza, mas a garantia e o discernimento. Dessa forma, somos
capacitados a andar no Espírito (Gl 5.16, 18, 25; Rm 8.2, 4) e
com confiança.105

| 104 KOLB, op. cit., p.193-194.


| 105 BONHOEFFER apud KOLB, p.195.
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 119

7.9 O Batismo de crianças


O Batismo é um ato passivo para o batizado. É Deus que opera através
da Palavra a regeneração e a nova vida. Esse caráter passivo do Batismo nos
remete também ao Batismo infantil. Por que batizar crianças? A ação recriadora
de Deus a partir do Batismo se aplica tanto a adultos como a crianças, pois
todos pecaram e estão privados da glória de Deus (Rm 3.23). Não há um justo
sobre a Terra. “Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma
nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos,
estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não
há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se
fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12).
A separação de Deus, por causa do pecado, afetou definitivamente também às
crianças. Uma vez que o “salário do pecado é a morte” (Rm 5.23a), e um ser
humano está sujeito à morte desde o ventre materno, logo um bebê também está
na condição de pecador e necessitado do dom gratuito de Deus da vida eterna
em Jesus Cristo (Rm 5.23b).
É verdade, Jesus não ordenou o Batismo de crianças, mas preceituou a que
todo o mundo fosse batizado. “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,
batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Todos
precisam da intervenção recriadora e salvadora de Deus e é através do Batismo,
por iniciativa de Deus, que isso ocorre. Nem os adultos podem, com base em
sua própria força, razão ou consciência, receber os benefícios do Batismo. Esta
é uma obra em que Deus Espírito Santo é o único sujeito. Deus é o Senhor da
vida e Ele não deixa de ser Senhor em nenhum momento. Ainda que estejamos
dormindo e por isso inconscientes, ele é o nosso Senhor.

Deus produz através de meios sobrenaturais uma conexão viva e ativa


com a parte inconsciente do nosso ser. Antes que a vida consciente
de uma criança desperte, Deus toca sua vida inconsciente com o
seu Espírito vivificador... e é isso que ocorre por ocasião de um
Batismo infantil. Esse pequeno ser é posto em um relacionamento
vivo com Deus.106

| 106 HALLESBY, apud KOLB, p.198.


120 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

7.10 A relação entre Palavra e Espírito Santo


Há ainda uma reflexão importante a ser feita sobre o recebimento da dádiva
do Espírito Santo em conexão com a proclamação da Palavra. De acordo com as
palavras de Jesus, “pois o enviado de Deus fala as palavras dele, porque Deus não
dá o Espírito por medida” (Jo 3.34), o Filho recebe o Espírito em sua plenitude,
precisamente para comunicar a Palavra de Deus a outras pessoas. Conforme o
evangelista João, quem crê nas palavras do Filho, “tem a vida eterna” (Jo 3.36a).
O que o próprio Cristo proclama mais tarde: “O espírito é o que vivifica; a carne
para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida”
(Jo 6.63). Posto de outra forma, o Espírito está em ação gerando vida. Depois de
ouvir as palavras de Jesus, Pedro confessou: “tu tens as palavras da vida eterna”
(Jo 6.68).
Assim, é também através da Palavra proclamada que o Espírito é concedido
para que este regenere e gere vida e vida eterna (Jo 6.68-69). Este aspecto
querigmático na recepção do Espírito é um encorajamento à Igreja de todos
os tempos, em continuar proclamando as palavras de Deus que comunicam o
Espírito, que por sua vez vai gerar a fé salvadora em Cristo Jesus, que é a nossa
vida. “E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo”
(Rm 10.17).

7.11 A unção do Filho pelo Pai e a relação com


os crentes em Cristo hoje
A presença do Espírito de Deus na vida de um batizado e de alguém que
recebeu a fé através da proclamação da Palavra é garantia de regeneração e de
uma nova vida. Essa presença do Espírito muitas vezes e para muitos é apenas
validada nos momentos de prosperidade, seja em termos financeiros, espirituais
ou físicos. Uma oração atendida, uma Igreja que apresenta um crescimento
numérico significativo, uma reflexão bem articulada e sábia, são, dentre outros,
sinais da poderosa presença do Espírito Santo nos cristãos. O oposto também é
verdade. Quando se vive em tentações espirituais, quando não há milagres, se
o sofrimento insiste em predominar e a Igreja já não cresce tanto, então já não
se fala tanto na presença do Espírito. E, mais, começa a se colocar em dúvida se
o Espírito está presente nesse contexto.
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 121

Considerando que o Batismo cristão une o batizado a Cristo, tanto na sua


morte como na sua ressurreição (Rm 6.1-11), e que pela fé o Espírito habita
no crente em Cristo (At 11.17), não seria razoável concluir que esta unção é
sinônimo de uma vida vitoriosa e próspera sempre? Como então explicar que
houve e ainda há tantos mártires batizados da fé cristã? (At 7.54-60; 12.1-2; Ap
6.9).107 Como explicar que há tantos cristãos batizados, fiéis e consagrados, que
passam pelas mais variadas situações problemáticas, inclusive de perseguição,
de saúde, nas finanças e na família? Um auxílio nessa reflexão e compreensão
sobre o tema é observar o que seguiu ao Batismo do próprio Jesus Cristo.

7.11.1 A vida no Espírito do Filho de Deus


Ao observar a vida no Espírito do próprio Filho de Deus, é possível perceber
que esta foi uma vida sob a cruz. Logo no começo do seu Ministério, o Filho
foi guiado pelo Espírito para o deserto para ser tentado por Satanás (Mt 4.1;
Mc 1.12-13; Lc 4.1-2a). Além disso, muitos dos que o seguiam deram as costas
e manifestaram descrença às suas palavras e que eram Espírito e vida (Jo 6.60-
64). No Jardim do Getsêmani, Jesus ora no Espírito fervorosa e intensamente,
lutando com a vontade do Pai (Mc 14.32-36; Lc 22.41-44). Na sua pior hora, o
povo desafia a Jesus para que ele realize um milagre e desça da cruz (Mt 27.39-
44). Mas ele não o fez. Jesus Cristo foi ao mesmo tempo sacerdote e vítima, que
“pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a
nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo” (Hb 9.14).108
Essa vida modelada pela cruz segue à unção do Filho com o Espírito, feita
pelo Pai no momento do Batismo do Senhor Jesus, e é um retrato do Servo
Sofredor (Is 53). A implicação desta realidade indica que a presença do Espírito
em Cristo não o fez imune a seu sofrimento intenso e morte na cruz. Sua vida
foi marcada pela tentação, conflitos, rejeição e, em última instância, a própria

| 107 “Portas Abertas é um ministério com características próprias dirigido à Igreja Perseguida, o
único com mais de trezentas organizações associadas no mundo todo desenvolvendo projetos
significativos nas linhas de frente em cerca de 50 nações. Desde 1955, Portas Abertas realiza
programas completos e de grande influência em muitos dos países onde os cristãos sofrem por
sua fé em Jesus Cristo”. http://www.portasabertas.org.br. Acesso em 21/12/2010.
| 108 SÁNCHEZ, Leopoldo A. A Missionary Theology of the Holy Spirit: The Father’s Anointing of Christ
and Its Implications for the Church in Mission. In: Missio Apostolica. Volume XIV, nº 1, may
2006, p.39.
122 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

morte. Mesmo a linguagem do Batismo se tornou uma metáfora da morte do


Servo. “Tenho, porém, um Batismo com o qual hei de ser batizado; e quanto me
angustio até que o mesmo se realize” (Lc 12.50; Cf. ainda Mc 10.38,45).
A recepção do Espírito através do Batismo e da Palavra conduz os cristãos
individualmente e a Igreja para dentro da vida de Cristo. O apóstolo Paulo explica
isso de uma forma especial e clara na Carta aos Romanos. “O próprio Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos,
somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com
ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.16-17; cf. 8.12-23;
6.3-8). Assim como Jesus, cristãos e Igreja lutam com a vontade de Deus, sofrem
com os ataques do Maligno e precisam enfrentar a morte.
Mas Deus também estabeleceu Jesus, pela ressurreição dos mortos, como o
Senhor (Rm 1.4). O que é verdade para Cristo, também é verdade para o corpo
de Cristo. Aqueles que sofrerão com ele, também com ele serão glorificados (Rm
8.17). A Igreja pode esperar vários tipos de tribulações em sua peregrinação
guiada pelo Espírito. O apóstolo Pedro esclarece que isso é sinal de bênção
(1 Pe 4.14). A presença do Espírito de Cristo nos batizados não os faz imunes
à rejeição e tantas outras intempéries na vida da Igreja. Porém, tais situações
adversas também são lembranças que a missão de Deus, em última análise, está
nas mãos Dele e não nas nossas frágeis mãos. Com isso os cristãos aprendem
a serem conduzidos pelas mãos do Pai e a deixar em suas mãos o número de
conversões e o aumento do número de membros, pois é o Pai que conduz ao
Filho, pelo poder do Espírito através da Palavra e do Batismo.

Atividades de autoestudo
1. Quando o assunto é o Batismo, um dos eventos que é preciso olhar no
ministério terreno de Jesus Cristo é justamente o seu Batismo. Por que
Jesus precisou ser batizado? Qual é a relação do Batismo de Jesus e o
Batismo cristão hoje? Discorra de cinco a oito linhas sobre essa questão
para apresentar sua avaliação teológica sobre o tema.

2. O Espírito é o energizador da missão de Deus. Ele também é uma


garantia dada aos cristãos como “sinal” da vitória final. Que linguagem é
O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus 123

usada por Deus para expressar essa verdade, segundo os textos indicados
ao lado? (2 Co 1.22; Ef 1.14; Rm 8.23).
a) Comercial e imobiliária.
b) Médica e psicológica.
c) Monetária e imobiliária.
d) Comercial e cúltica.

3. “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai,


o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim” (Jo
15.26). Qual é a principal missão desse “outro” Confortador, segundo
esse texto de João?
a) Sua missão está ligada diretamente ao próprio Cristo, pois é seu
papel apontar de volta para o Salvador.
b) Sua missão está ligada diretamente ao Pai, a primeira pessoa da
Trindade.
c) Sua missão é apontar para si próprio, pois agora a Igreja vive a
época do Espírito.
d) A principal missão do Espírito é a distribuição de dons conforme
lhe apraz.

4. Qual é a relação entre a proclamação da Palavra (Evangelho) e a dádiva


do Espírito?
a) Não existe relação, visto que o Espírito é concedido somente através
do Batismo.
b) É também através da Palavra proclamada que o Espírito é concedido
para que este regenere e gere vida e vida eterna.
c) O único meio pelo qual se recebe o Espírito é pela oração fervorosa
do cristão.
d) Só quem busca o Espírito na Palavra que o recebe.

Respostas:
2. d 3. a 4. b
124 O Espírito Santo como o energizador da missão de Deus

Referências
A THEOLOGICAL Statement of Mission. Comission on Theology and Church
Relations of the Lutheran Church – Missouri Synod, 1990.
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today. St. Louis, USA: Concordia
Publishing House, 1995.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret – An Introduction to the Theology of
Mission. Grand Rapids: Eerdmans Publishing Co., 1995.
SÁNCHEZ, Leopoldo A. A Missionary Theology of the Holy Spirit: The
Father’s Anointing of Christ and Its Implications for the Church in Mission.
In: Missio Apostolica. Volume XIV, nº 1, may 2006, p.28-40.

Referência comentada
BRUNER, Frederick Dale. Teologia do Espírito Santo. Tradução de Gordon
Chown. São Paulo: Vida Nova, 1989.
Esse livro é recomendado a acadêmicos e leigos que desejam conhecer de
maneira mais precisa a teologia do Espírito Santo e suas implicações práticas
na missão da Igreja no século XXI.
8

A revelação de Deus
e o testemunho cristão
Introdução
Robert Kolb relata em seu livro que uma amiga marxista se tornou ateísta,
não por causa da dialética de Karl Marx, mas porque depois de orar por 5 anos
(quando tinha 9) pela volta de seu pai que tinha ido à guerra e não teve atendida
sua oração.109 Essa experiência particular com o mal e tantos outros (campos de
concentração, guerras, fomes, calamidades) fazem muitos recuar em sua crença
na existência de um Deus bondoso.
O que e como testemunhar a fé cristã no contexto do mal em suas mais variadas
manifestações? Esse capítulo está designado a sintetizar algumas ideias a respeito
da existência do mal e o que cabe à Igreja Cristã fazer e falar nessas situações, à
luz do que Deus revelou em sua palavra e em seu filho Jesus Cristo.

8.1 O quanto Deus se revela?


Um dos primeiros episódios relatado nas Escrituras Sagradas aponta para
o fato de que Deus se recusa a revelar a sua glória a Moisés. Porém, ao mesmo
tempo ele se revela como um Deus bondoso (Êx 33.17-23). As palavras confiadas

| 109 KOLB, op. cit., p.51.


126 A revelação de Deus e o testemunho cristão

a Moisés são graça (bondade e misericórdia), mas também de julgamento sobre


a iniquidade (Êx 34.6-7). Ecos dessa conversação e revelação original podem
ser ouvidos fora de nós, bem como dentro de nós.
Os argumentos cosmológico e teleológico nos fazem olhar para fora de nós.
Tanto a existência do mundo bem como seu funcionamento e propósito final
apontam para a existência de um Deus Criador e seu cuidado pelas criaturas
(Sl 19.1; 50.6; Rm 1.20).
Os acontecimentos na história, ruína e levantamento de reinos e a natureza
em si podem ser provas vivas da existência e revelação de Deus (Sl 46.8-10; At
14.15-17). Todavia, essa mesma natureza (coisas criadas) tem sido moldada pelas
mãos humanas através de tecnologias modernas. Muitas vezes o significado
da história é mal compreendido, porque parece haver supremacia da maldade
humana e não de um Deus criador e cuidador. A história parece até ser uma
“prova” de que Deus não existe.

8.1.1 Revelação geral na consciência, razão e emoção


Deus se revela em sua palavra. Porém, há indícios de sua revelação em outras
três fontes. (1) Consciência: mesmo que isso esteja condicionado e muitas vezes
afetado pela cultura e experiências individuais, a consciência funciona como um
indicador do que é certo e do que é errado. Existe essa voz interior segundo a
própria Palavra de Deus (Rm 2.14; 9.1). (2) Razão: também a razão atesta para o
fato de que há algo, pessoal ou impessoal, que é maior que o restante. É a lógica,
no argumento ontológico (Sl 14.1; 53.1). (3) Emoção: o medo ou o temor sobre
a existência de um deus também é colocado algumas vezes como evidência
da existência de Deus. Estudos das religiões pelo teólogo alemão Rudolf Otto
indicam o medo como uma força na crença de que exista uma força maior.
A busca pela confirmação da presença e apreensão de Deus pelo ser humano
é uma característica da totalidade das religiões. Cada uma tem sua peculiaridade.
Os místicos, por exemplo, tentam apreender a Deus pelas emoções, através do
seu cantar e meditar. Porém, Deus de fato se revela pela Palavra. Nem dentro de
nós nem fora de nós haverá conhecimento satisfatório sobre Deus, sua maneira
de agir na história e sua intenção salvífica com a humanidade, mas apenas em
sua palavra revelada.
A revelação de Deus e o testemunho cristão 127

8.2 Revelação e o testemunho cristão


A testemunha cristã deve aprender a cultivar uma ou sensitividade maior
para testemunhar a um não cristão. É preciso ter como princípio de que cada um
tem a sua visão do mundo, pelas próprias experiências e exigências do mundo
pecador. Por isso, o ouvir cuidadoso é um aspecto primordial numa conversação
cristã. A ordem do dia num momento de falar sobre a fé cristã começa com o
ouvir cuidadoso.
Deus se revelou de muitas maneiras, mas o seu amor foi revelado de modo
especial com seu Filho Jesus Cristo (Hb 1.1-2). Seus porta-vozes foram os
profetas e escritores (2 Pe 1.21). A revelação de Deus acontece somente quando
o Espírito Santo cria a habilidade de ouvir a Palavra e as intervenções de Deus
na história. O Evangelho não é somente “panos quentes” para encobrir pecados,
mas o poder de Deus para quem crê (Rm 1.16; 10.14-20).
Para os filósofos gregos a história não poderia ser concebida com um início,
ou com um criador e um fim. Para eles a história é circular e cíclica. Para os
gnósticos salvação é se libertar desse processo. Para os cristãos o entendimento
de redenção é a libertação da consequência funesta da desobediência a Deus
e o retorno à relação original com o Deus criador, como criaturas restauradas.
Essa redenção entrou decisivamente na história com a encarnação do Filho de
Deus no Jesus de Nazaré.
O fiel povo de Deus do Antigo Testamento viveu na confiança que pelos seus
poderosos feitos Deus revelou seu amor (Sl 78.50-53; Ne 9.9-15; Is 63.11-14).
Mas esses atos poderosos não interpretam a si mesmos. A libertação do Egito,
por exemplo, foi interpretado pelos egípcios como consequência da ira dos
deuses egípcios contra o faraó.
Os cristãos proclamam a Palavra e compartilham a fé ao apresentar a Deus
como pessoa, contando sua história, o que ele é e o que ele faz. Informação
também é importante, pois é o jeito de se tornar conhecido ou revelado. Mas
amizade é mais do que informação, é confiança. O cristão testemunha contando
a história de nosso Deus, usando informação bíblica para prover conhecimentos,
construir amizade e estabelecer confiança na revelação do próprio Deus. Essa
confiança está baseada na Palavra, em Jesus Cristo, como palavra encarnada de
Deus, mas também na palavra em linguagem humana.
128 A revelação de Deus e o testemunho cristão

O testemunho cristão está baseado em fatos objetivos. Mas também aponta


para si. A Palavra de Deus regenerou a mim. Não é ensino sobre a vida, mas
sobre o poder de Deus em perdoar e recriar, em dar vida a mim. Doutrinas são
importantes, mas a doutrina cristã é mais do que falar sobre isto ou aquilo, é falar
testemunhando a Palavra que dá vida. Não são meras palavras ou proposições,
mas poder. Quando Deus fala, suas palavras conduzem poder, são ativas,
criativas e recriativas. O poder de Deus tomou forma na linguagem humana
comum, no hebraico, aramaico e grego. Seu significado é obscuro para quem
as rejeita como Palavra de Deus e está desplugado com o seu Criador. Mas é só
essa Palavra que pode unir alguém com o Deus Pai. É a Palavra encarnada em
Jesus Cristo, tornada eficaz na palavra falada, escrita e sacramental. A Palavra
vem em forma humana, mas ela é divina e isso é verdade em relação a Cristo e
à palavra escrita e falada.
Essa palavra só será compreendida como verdade e poder de Deus, quando a
razão humana funciona como serva e é submetida ao senhorio de Deus. Sempre
que esse coloca o poder na vontade humana ou em sua mente, não haverá sentido
para as tragédias na história. Sacrifícios intelectuais para procurar a verdade
eliminam a fé e a revelação de Deus, bem como o seu jeito de agir em muitos
aspectos continuam sendo mistério.
A revelação de Deus acontece no julgamento e na misericórdia. Para as
criaturas caídas em pecado, Deus fala uma mensagem de ira e de misericórdia
e esta é uma tensão permanente até na vida dos cristãos quando testemunham
para outros.
A ira de Deus ou seu julgamento é sentido através da revelação geral e da
palavra encarnada, a Escritura. A misericórdia só é aparente em Jesus Cristo
e no testemunho bíblico da fidelidade de Deus na história humana. História e
natureza fornecem pistas ou detalhes ocasionais da bondade de Deus e se tornam
explícitas quando interpretadas pela Palavra.
O conteúdo da misericórdia e do julgamento diferem substancialmente. A
condenação aponta para uma mensagem de ira que oferece uma promessa de
redenção pela justiça própria. O perdão é a mensagem do perdão incondicional
e imerecido, mas certo, porque é promessa da bondade de Deus.
A condenação é a opus alienum (obra estranha) de Deus e está dirigida contra
o pecador autossuficiente, que resiste ao Senhor e à sua palavra. Misericórdia é
A revelação de Deus e o testemunho cristão 129

a opus proprium (obra própria) de Deus e é dirigida ao pecador que reconhece


sua insuficiência e crê nas palavras de Deus. Só o Evangelho de Cristo muda isso.
Esse é o resumo do testemunho cristão. Ambos (o pecador autossuficiente e o
penitente) precisam ouvir as duas mensagens, pois ambos são pecadores.
Deus não se revela em sua glória plena às criaturas. Esse lado “absconditus”
faz as religiões muitas vezes especularem sobre quem é Deus e como ele age.
Porém, a religião cristã possui a revelação em Jesus Cristo. É nele que Deus se
revela. Os deuses das religiões pagãs refletem uma natureza exigente, muitas
vezes mais o atributo de um deus irado que precisa ser acalmado.
Qual é a imagem que fazemos de Deus? Se essa resposta estiver baseada em
nossa natureza pecaminosa, também se poderá ver mais um Deus que exige,
do que como criador, doador e sustentador. O fato é que Deus se revela num
embrulho contraditório. Deus se revela em Jesus de maneiras que estão fora do
alcance da verificabilidade humana (manjedoura, sofrimento, cruz). Mesmo a
ressurreição, que os primeiros cristãos tinham como base, não significa nada
para aqueles que creem que os fatos precisam se repetir. Mas esse é o fundamento
do cristianismo. É um fato histórico ocorrido há vários séculos, mas que produz
vida ainda no século XXI.
O cerne da mensagem regeneradora e transformadora de Deus está na
revelação na glória do sofrimento, no esplendor da cruz, no triunfo sobre a
morte. Glória, esplendor e triunfo estão ocultos no sofrimento, cruz e morte.
É uma “palavra louca”, mas poderosa (1 Co 1.18,21). Mesmo que o povo exija
sinais ou uma prova empírica para crer, o apóstolo elimina qualquer persuasão
filosófica ou demonstração racional e apresenta a cruz como sinal (1 Co 1.17;
2.3-5). Jesus, sua obra e ressurreição, é o sinal oferecido por Deus à humanidade
(Mt 12.39; Jo 20.30-31).
O fato é que assim como foi com os primeiros cristãos, o cristianismo está
baseado nas promessas (Hb 11.13), e o Evangelho é a voz da autoridade de Deus.
É ele que é o poder de Deus para reconciliar, regenerar, tirar a culpa, medo e
salvar. Essa Palavra que cria e recria é a prova, sem possibilidade de verificação
baseada na experiência, mas aceita pela fé. Esse é o fundamento do testemunho
da Igreja. Não baseado em provas humanamente testadas, mas na promessa de
Deus revelado no Evangelho do Senhor Jesus Cristo.
130 A revelação de Deus e o testemunho cristão

8.3 Deus oculto e não programável: uma reflexão


sobre o testemunho cristão diante do sofrimento
humano à luz do tsunami de 2004
Coisas terríveis acontecem todos os dias e em todo o tempo. Tornados,
enchentes, acidentes aéreos, ataques terroristas, guerras. Quando essas coisas
alcançam dimensões maiores, uma das perguntas que geralmente surge é: por
quê? Ainda que ensaiemos muitas vezes uma tentativa de refletir e considerar
a imagem que temos de Deus e o que cremos, baseados nisso, as catástrofes em
geral não nos afetam tanto quanto se houvesse um de nossos familiares envolvido.
Aí as coisas podem mudar. Até a imagem que temos de Deus pode embaçar ou
alterar as tentativas de tentar explicar calamidades.
É muito provável que até aquele dia havia lá pessoas assim como nós.
Trabalho, salário, planos para o futuro, filhos na escola, casa, família, conforto,
relação com Deus clara. Porém em alguns minutos tudo foi diluído e sem
possibilidade alguma de retorno. Houve perdas absolutas e gigantescas. Pessoas,
bens materiais, documentos, nada sobrou. Será o que ficou da fé em Deus? Será
que o povo que ficou também perdeu sua fé? Como isso afetou sua imagem de
Deus, sua visão de mundo, de vida?

8.3.1 O tsunami de 2004


O desastre do tsunami foi especialmente comovente, porque tirou a vida
de tantas pessoas e tão jovens. Sua descrição está além das palavras desse
acontecimento, mesmo que seja uma palavra como tsunami, um termo
“terrivelmente elegante”. Tão tipicamente japonesa em sua ferocidade, tão
adorada na língua inglesa e agora tão inadequada para descrever esse monstro
marinho de proporções épicas.110
O tsunami tem sido rotulado como um dos piores desastres da história
humana. As ondas varreram partes de 13 países. Foram vários países atingidos
por gigantescas ondas letais. Dentre as nações atingidas estão: Indonésia, Malásia,
Mianmar, Tailândia, Bangladesh, Sri-Lanka, Índia e África. Calcula-se que cerca

| 110 GIRI, Radhika. Killer Wave. Disponível em: http://www.indiatoday.com/itoday20050110. Acesso


em: 11 de out. 2009.
A revelação de Deus e o testemunho cristão 131

de 250 mil pessoas tenham perdido suas vidas no dia 26 de dezembro de 2004.
A origem de tudo isso esteve num abalo sísmico que produziu efeitos em mais
de 3 mil km de extensão.
O tsunami é considerado um desastre natural, mas é muitas vezes descrito
como um “ato de Deus”. Por ironia, uma geração que tende a se afastar de Deus
está jogando a responsabilidade para esse mesmo Deus. Se este foi um ato de
Deus, ele não mostrou parcialidade: entre os que perderam suas vidas estavam
com certeza cristãos, muçulmanos, hindus, crianças, jovens, idosos e seguidores
de todas as filosofias e religiões concebíveis.

8.3.2 Outros “tsunamis”: as mesmas questões


Essa tragédia não foi única. Houve outras. Naquele ano mesmo, no mês de
setembro, os mesmos questionamentos devem ter sido feitos quando em Beslan,
Ossétia do Norte, houve um massacre terrorista em que morreram mais de 330
pessoas, dentre as quais, 186 eram crianças. Por quê? Por que um grupo terrorista
tchetcheno pôde fazer isso?
O dia 26 de dezembro de 2004 ficou marcado na história de vários países por
causa do tsunami. Ficou marcado também o 26 de dezembro de 2003, quando
mais de 30 mil pessoas perderam sua vida num terremoto que devastou a cidade
iraniana de Bam. Por quê? O que dizer do acidente aéreo da TAM em 2007,
quando 199 pessoas morreram?
Tanto os desastres naturais como aqueles produzidos pela maldade do ser
humano ou falhas humanas geram as mesmas questões: “quem é o responsável
por isso”? Por detrás dessa e de outras perguntas está o desejo sincero de saber
“como o mal pode existir num mundo criado por um Deus essencialmente bom
e todo-poderoso”? Ou então essas duas questões venham abreviadas em outra
pergunta que não quer calar: “por quê”?

8.4 A existência do mal num mundo criado


e governado por um Deus bom
O mal exibe a contradição da sua existência num mundo governado por um
Deus bom e todo-poderoso. Diante de desastres e tragédias das mais variadas,
132 A revelação de Deus e o testemunho cristão

somos apresentados à impotência humana, sua vulnerabilidade, à própria morte


e ao próprio pecado, seja ao colocar a culpa em alguém outro ou em nós mesmos.
Essa inquietação pode ser a base para voltar os olhos para o crucificado, cujo
clamor (Mt 27.46) era uma prelúdio para sua ressurreição, pois a morte não tinha
poder para retê-lo (At 2.24) e nem mãos para segurar alguém na sepultura.
O fato é que a desesperança em meio às sombras de catástrofes pode levar à
“razoável” pressuposição de que Deus está ausente, distante e/ou irado. Ele está
irado com o mal que está sendo confrontado, bem como irado está contra o
pecado. Porém, essa é a situação de todos (Rm 11.32), para que cada um use sua
misericórdia. É por isso que não há como explicar por que alguns são derrotados
pelo sopro da tentação satânica ou pelos tsunamis e outros não. Permanece a
pergunta “por que eu”? A resposta de Deus está em sua encarnação e sua morte
na cruz, mas também na sua ressurreição.
É importante lembrar que a existência do mal não é a única coisa misteriosa
ou inexplicável nas Sagradas Escrituras. Como Deus insiste em “correr atrás” do
seu povo pecador também é um mistério (Os 11). Também é desafiador tentar
elucidar que Deus se encarnou em Cristo e pegou obedientemente o caminho
da cruz.

8.4.1 O testemunho bíblico a respeito da origem do mal


Os cristãos têm uma norma para suas respostas a fim de tentar responder
ou tentar pelo menos refletir sobre o “porquê” do mal em suas multiformes
manifestações: o testemunho bíblico. A Bíblia com certeza afirma que Deus é
responsável por toda a sua criação. Sua soberania se estende sobre todas as criaturas
e criações que sua Palavra trouxe à existência (Jó 38-41; Sl 18, 28, 89; Is 24-26). Por
outro lado, a Palavra de Deus também deixa clara a responsabilidade das criaturas
humanas em exercer obediência de mente e de coração a Deus (Dt 6.4-5; 27.10).
“A tensão entre essas duas responsabilidades não é resolvida na Escritura.”111
Escritores do Antigo Testamento deixam claro em várias passagens a confissão
de um Deus criador todo-poderoso, cujo domínio e controle, mesmo sobre o
mal, não tem limite (Êx 4.11; Is 45.6-7; Am 3.6; Lm 3.37-38). Ao mesmo tempo

| 111 KOLB, Robert. When the Lord Hides – witnessing of an unprogrammable God. In: Missio Apostolica,
Volume XIII, Número 25, Maio 2005, p.16.
A revelação de Deus e o testemunho cristão 133

eles compartilham a verdade de que Deus é bom e sua misericórdia não tem
fim (Nm 14.18; 1 Cr 16.34; Ed 3.11; Sl 57.10; 100.5; 103.17; 145.9; Lm 3.22). De
maneira nenhuma Deus é responsável pelo mal, ele é digno de confiança em todo
o tempo.

Ele é o Deus que criou os seres humanos para serem responsáveis por
tudo que lhes foi dado dentro do domínio humano e Ele permanece
o Deus totalmente responsável por tudo o que existe no universo,
incluindo as criaturas humanas.112

Essa responsabilidade total e senhorio de Deus moldaram a imagem que


Lutero fazia do seu Deus e Salvador. Quando a questão era sobre o porquê
de muitas vezes o bom sofrer e o mau prosperar, ou ainda por que alguns são
condenados, enquanto outros são recriados por Deus em Cristo, Lutero não era
compelido a articular alguma resposta, que geralmente foca na culpa do pecador
ou do próprio Deus, mas ele aludia às palavras do apóstolo Paulo em Romanos
11.33: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento
de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus
caminhos!” “Mais longe Lutero se recusava ir.”113
Lutero não encontrou a resposta de Deus em relação ao mal em alguma
explicação, mas na pessoa de Cristo, de forma especial em seu sacrifício na cruz e
sua ressurreição. Essa é a base para os cristãos do século XXI afirmarem a Palavra
de Deus e assim sua presença, num contexto de desastres e catástrofes.

8.5 Sentido ou conforto


Em incursões pelos locais atingidos pelo tsunami, é possível detectar que
para as pessoas que ficaram e não criam num Deus que é Senhor sobre a
história, como no caso do Budismo, seu sistema lhes providenciava sentido,
mas não conforto. Para eles a lei soberana é que boas coisas acontecem para os
que são bons, as más, para os maus. “Os bons foram levados. Somente os maus

| 112 Idem, p.18.


| 113 Idem, p.18.
134 A revelação de Deus e o testemunho cristão

ficaram. Eu devo ser uma dessas pessoas más. Eu fiquei para sofrer”, disse uma
senhora.114 Psicólogos falam muitas vezes no fenômeno pós-trauma da culpa
de quem sobreviveu. “Por que eu fiquei, se tantas outros melhores do que eu
pereceram?” Eles poderiam fazer muito mais e eu nunca serei capaz de realizar
o que eles fizeram e fariam. É um desafio e uma luta intensa tirar sentido de um
acontecimento que não tem sentido.
Durante um período delicado da política mundial, especialmente as
confrontações entre USA e URSS, o primeiro-ministro da União Soviética,
Nikita Khrushchev, teria dito que “num eventual holocausto nuclear, os vivos
irão invejar os mortos”. Os mortos não terão que sofrer com seus corações e
vidas dilacerados e machucados (Cf. Lm 4.9; 2 Rs 22.20).115
Para os islâmicos visitados naquela região a primeira reação foi o silêncio do
líder, depois outros responderam: “Nossa nação tem pecado de muitas formas.
Deus fez isso para nos exortar a seguir seus mandamentos; no Corão está escrito
claramente que Deus punirá pecados com água e fogo; isso já havia sido decidido
de forma antecipada. Tinha que acontecer. O bom não sofreu com os maus.
Aqueles que creram em Deus estão nos céus agora. Deus estava mostrando que
ele está no controle. Ele faz o que quer”.116
O conforto está em responsabilizar a nação e o desastre é uma mensagem de
Deus para que o povo se arrependa, volte para ele e siga as leis estipuladas em seu
livro santo. Também há conforto em atribuir simplesmente esse evento à inescrutável
e soberana vontade de Deus. “O papel do islâmico não é questionar a Deus, mas
obedecê-lo”. Sua atitude não deve ser de compreensão, mas de aceitação. Porém,
num dos depoimentos uma mulher expressou num lamento a fragilidade, talvez
inutilidade, de uma abordagem simplista. “Eu até entendo que algum humano faria
algo tão cruel. Mas eu não posso compreender que Deus fez isso.”117
Na maioria das pessoas, a questão “por que coisas ruins acontecem para
pessoas boas?” alterava para “por que Deus está permitindo forças da natureza
acabar com a vida das pessoas tão impiedosamente?”. Procura-se uma teologia
que defina Deus que visita e se vinga dos desobedientes e descrentes.

| 114 HOEFER, Herbert. Why?: Spiritual Dimensions of the Tsunami Event. In: Missio Apostolica, Volume
XIII, Número 25, maio 2005, p.7.
| 115 Idem, p.7.
| 116 Idem, p.9.
| 117 Idem, p.9.
A revelação de Deus e o testemunho cristão 135

Deus mostrou que ele está no controle... estes eventos já haviam sido
decididos por Deus na eternidade... este povo tem pecado de muitas
formas. Isso [tsunami] é um alerta para seguir os Mandamentos de
Deus... o Qumrã admoestou que Deus puniria pecados com fogo
e água. Aqueles que morreram estão no céu, se eles creram em
Deus.118

Qual é o resultado desse tipo de abordagem na vida das pessoas? Com


certeza não trará conforto, nem esperança, mas somente pessimismo. O dia
após a catástrofe visto desta perspectiva será de sentimento de que eles são os
responsáveis por esta tragédia, em última análise. “A eles está destinado beber o
cálice da ira sem ter outra escolha.”119 A consciência maltratada e surrada clama
em desespero contra um Deus que condena e não um Deus que liberta e perdoa.
Em vez de garantias, são oferecidos apenas medo, terror e insegurança. “Somos
tão maus que merecemos tudo isso?” “Quando teremos feito o suficiente para
que Deus não nos puna mais?” Uma cosmovisão que nega a existência do mal
no mundo vai tentar resolver o problema do sofrimento ao seu próprio jeito.

8.6 Por que, ó Deus?


Uma das primeiras observações a serem feitas é a de que nada está fora dos
olhos do Senhor (Sl 139). Também é verdadeiro afirmar que o Deus das Escrituras
cristãs não está procurando por pessoas que o defendam. Muito pelo contrário,
é Ele que se revela como o defensor dos seres humanos através do caminho
do vale da sombra da morte (Sl 23). É Ele que se apresenta como defensor dos
órfãos, viúvas, fracos, pobres e oprimidos (Sl 10.4; 82; 146.7-9).
Mesmo que haja múltiplos questionamentos, resumidos em perguntas como:
“onde estava Deus”; “Por que Deus”; “Por que coisas ruins acontecem a pessoas
boas”, uma declaração de Jesus resume a resposta a todas as questões: “Bom só
existe um” (Mt 19.17).

| 118 Concílio Muçulmano em Sri-Lanka, apud RAJ, Victor. Where is God in all of This? In: Missio
Apostolica, Volume XIII, número 25, maio 2005, p.24.
| 119 Idem, p.24.
136 A revelação de Deus e o testemunho cristão

Por que é uma pergunta que na verdade deveria acompanhar todas as


manifestações de males. “Por que uns são salvos e outros não?” “Por que eu
fiquei doente”? “Por que meu cônjuge, meu filho, minha filha, meu pai, minha
mãe, meu amigo?” “Por que continuo a pecar, mesmo sendo um filho batizado
e unido ao meu Salvador Jesus?”

8.6.1 O testemunho cristão diante do opressivo mal


É compreensível que a primeira reação dos crentes diante do mal e da
tragédia é tentar restaurar uma espécie de comunidade, às vezes simplesmente
para estar do lado. Por isso a primeira missão no testemunho a pessoas diante
de desastres é a presença. O mal rouba do ser humano o senso de dignidade
e segurança. Estar ao lado do aflito, ao ser uma fonte de coisas boas, é o
começo do testemunho cristão para vítimas de todas as espécies. Por vezes é
um testemunho do amor silencioso, porque a questão retórica “o que eu posso
dizer numa hora dessas?” expressa a verdade que nenhuma palavra humana
pode reverter ou alterar o que faz um tsunami, um acidente, um massacre,
um vendaval, uma doença.
É verdade. Nenhum cristão deveria se apressar para tentar responder o que
talvez nem tenha sido ainda perguntado. Haverá certamente o momento em
que o testemunho cristão será através de palavras. Testemunho do senhorio
de Deus e acima de tudo do seu puro e incondicional amor, que é contradito
pelos eventos ruins e que são o assunto da conversação. Mas Deus é um Deus
de palavras e conversas e a sua resposta para o mal não se tornará clara e eficaz
sem palavras. Cristãos terão que dar um passo à frente e desmentir a suposta
força dos males e demonstrar o amor de Deus, falando, no tempo certo, exibido
na morte de Cristo na cruz.
Porém, o testemunho não pode fazer o papel de defender a honra de Deus
ou inventar desculpas. Na cruz Deus mostrou que Ele não está interessado
em primeiro lugar preservar a sua honra, mas em recuperar e ressuscitar
pecadores para uma nova vida. Assim fizeram os amigos de Jó. Eles tentaram
se colocar do lado de Deus e defendê-lo. Isso não funciona. Também no livro
de Jó está a declaração de que os projetos de Deus não podem ser frustrados
(Jó 42.2).
A revelação de Deus e o testemunho cristão 137

A resposta de Deus ao mal não vem em alguma racionalização ou


prova empírica, mas na pessoa do Servo Sofredor, que se entregou
à morte, que foi contado entre os transgressores, que levou sobre
si os pecados de muitos e fez intercessão pelos transgressores (cf.
Is 53.12).120

Por que é uma questão levantada por cristãos e não cristãos em todos os
tempos. Quando a “vida real” encontra os cristãos, de uma ou de outra forma
eles são desafiados ou até encorajados a estar do lado dos que sofrem com
atos do amor cristão. Costuma-se dizer que isso de fato é o mais importante:
“estar junto”. Este é o momento de testemunhar a Deus que se revelou em Jesus
Cristo. Mas diante de questionamentos como “por que Deus permitiu que isso
acontecesse?” e quando cristãos são confrontados com perguntas que colocam
em dúvida o poder absoluto de Deus e sua essência amorosa, eles também são
convidados a falar. Deus precisa também colocar em suas bocas palavras que
podem acalmar e consolar.
Também é claro que a responsabilidade humana existe, tanto no sentido
positivo de obediência ao plano de Deus para a vida humana como no sentido
negativo, da dúvida humana e rebelião contra Deus (Gn 3). O cerne do pecado,
o mal, e seu domínio sobre o ser humano são vistos segundo o ensino bíblico,
não tanto como uma corrupção de sua essência física, psicológica ou racional,
e por essa razão uma fraqueza mórbida e inaptidão para o bem, mas antes, é
na perversão da vontade, em apostasia, no usurpado “não”, que quer ser igual
a Deus.121

A atitude humana descrita e normalmente sumarizada pelos escritores


bíblicos na palavra “carne” não é o corpo com seus desejos baixos,
mas o livre exercício dos mais altos poderes da mente, coração e
vontade do homem, em antagonismo ao Criador que ele é ordenado
a confiar e a amar.122

| 120 SIMUNDSON apud KOLB, op. cit., 2005, p.17. Cf. Cânticos do Servo: Is 42.1-9; 49.1-13; 50.4-11;
52.13-53.12.
| 121 DANTINE apud KOLB, 1995, op. cit., p.76.
| 122 KORBY apud KOLB, 1995, p.76.
138 A revelação de Deus e o testemunho cristão

Dentro de um contexto de responsabilidade total de Deus e da total


responsabilidade humana, os escritores bíblicos tratam a questão do sofrimento
humano e maldade humana. Eles encontram todos os tipos de mal. Uma pesquisa
no Antigo Testamento sobre a causa, fonte e razão do mal mostra que os profetas
algumas vezes atribuem a origem do mal diretamente à irresponsabilidade e
desobediência humana (Is 1.20; Ez 14.13; Os 4.1-9; Am 4.4). Os salmistas e
outros, como Jeremias, reagem ao mal dirigindo lamentações contra o Senhor
(Sl 10.1; 13.1; Jr 4.10).

8.7 Jesus! Por quê?


Quando o Servo Sofredor veio à Terra ele também tinha que lidar com a
questão do “por quê”. Ao questionamento dos discípulos sobre quem teria pecado
no caso do cego de nascença, se ele ou seus pais (Jo 9.2-3), ele simplesmente
intervém dizendo que as obras de Deus foram manifestadas nele. “Se foi um
propósito ou um resultado, a resposta deixa o ouvinte parado junto com o cego
e Jesus e nenhuma explicação além desta é dada.”123
Em Lucas 13.1-5, Jesus proporciona uma compreensão melhor, mas nenhuma
elucidação quanto às questões a respeito da causa da morte daquelas pessoas.
Eram eles mais pecadores? Jesus responde “não” e faz seus ouvintes olharem
para si mesmos. Aquele acontecimento não lhes ajudaria em nada. Você precisa
se arrepender. É isso que eles precisavam ouvir naquela hora. Fatos ruins e atos
maldosos funcionam como sinais para mostrar que as pessoas e as coisas estão
fora de sua ordem natural e que precisamos de ajuda, voltando os olhos para
Deus em arrependimento.
Em ambas as oportunidades em que Jesus foi confrontado pelo “por quê”, ele
aconselhou seus discípulos a não tentarem responder a questão, especialmente
procurando culpados. Jesus mudou o foco e fez com que os olhos se voltassem
simplesmente para Deus e para si próprios. Arrependimento, portanto, tem a ver
com “se esvaziar”, olhando para Deus de forma envergonhada por essa atitude,
mas com Jesus, confiantes de que neste tribunal somos vitoriosos, pois nem a
Lei nem Satanás podem com a obra sacrificial e substitutiva de Cristo na cruz.

| 123 KOLB, op. cit., 2005, p.17.


A revelação de Deus e o testemunho cristão 139

Jesus faz o frustrante movimento e traz o assunto do céu para a Terra e de


maneira especial, cada um olhando para si. É frustrante, porque ao falar de
arrependimento Jesus está nos fechando as portas para exercermos qualquer
tipo de controle sobre o que não tem explicação. “O chamado de Cristo ao
arrependimento é um chamado à dependência somente de Deus.”124 Isso em
outras palavras é reconhecer diante de Deus que eu quero viver de acordo com
o estado original antes da queda: viver na confiança e na dependência de Deus,
amando e temendo a Deus acima de todas as coisas.
De Gênesis a Apocalipse Deus se revela como o Senhor. Ele não se deixa
programar por suas criaturas. Mas “misericórdia” é o seu “segundo nome”.125 Em
Cristo, Deus revelou suas verdadeiras intenções com a humanidade. Em Cristo,
Deus mostrou como se sente diante da fome, doença, morte e acima de tudo, do
milagre da morte de Cristo na cruz e sua ressurreição dos mortos.

8.8 Deus é o Senhor


Deus é Senhor e tem autoridade sobre as forças da natureza e exige sua
obediência (Jr 51.15-16). Aquele que faz o vento e o mar não permite que as
manifestações da natureza governem o restante da criação. Deus é detalhista na
criação e preservação (Mt 5.45; 10.29-30; Lc 12.6-7). A misericórdia do Senhor
dura para sempre, é “todo-abundante” em amor e lento para a ira.
Terremotos, ataques terroristas, guerras, tráfico de drogas, violência, clínicas
de aborto, ataques suicidas e tantos outros males podem não ser sempre a matéria
de capa, mas estão custando vidas e se atribuindo supostos direitos que só Deus
possui. Quando a feiura do pecado injeta em nossa consciência e com a sua força
embaça nossa visão da presença divina e esta parece estar distante a olho nu,
os olhos da fé nunca perderão de vista a Deus, nem o coração confiante em seu
abraço. A fé vê Deus encarnado em Jesus Cristo roubar a força do pecado e do
mal pelo seu sangue e sua vida. Sobre a cruz de Cristo o sangue foi derramado
para o perdão dos pecados, pois sem derramamento de sangue não há perdão
(Hb 9.22). É esse o sangue que muda as pessoas numa nova criação no coração
e espírito.

| 124 Idem, p.18.


| 125 Idem, p.18.
140 A revelação de Deus e o testemunho cristão

8.9 Olhar para a cruz de Jesus


Por mais ausente ou irado que Deus possa parecer estar, no olhar para a cruz
nós sabemos com certeza que ele está na ronda, emboscando nossos inimigos
muito mais vezes que possamos reconhecer, e nos surpreende com a bênção
do chamado ao arrependimento, que não é nada mais do que levantar os olhos
para Deus e reconhecer que somos pecadores (Lm 3.38-40).
Também é interessante lembrar que Cristo não veio meramente para sofrer
conosco, mas ele veio para sepultar nosso pecado e mal em sua sepultura. Ele
veio para ressuscitar da morte e reivindicar por nós e para nós a vida que não
tem fim. Quando ele retornou à vida suas palavras foram “paz seja convosco”,
assim como o Pai me enviou, assim também vos envio (Jo 20.21). Através de
nossa presença e nosso falar, o Espírito Santo entregará esta paz tão almejada
e necessária.
Na presença e no diálogo há muitas coisas que podem ser faladas e vividas,
mas talvez uma resposta dos cristãos nessas horas poderia ser mais bem
articulada em olhar as necessidades existentes ao redor. Quem sabe, em vez de
“por quê”, tenha que se dizer “como posso ajudar”126, pois foi esse o plano original
de Deus quando nos criou e cuja incumbência, ainda que comprometida por
causa do pecado, Ele ainda confia aos cristãos (Mt 5.14).
Como cristãos sabemos e experimentamos o amor de Deus. O Espírito Santo
“empresta” nossas bocas, mãos e ombros para levar esse amor, conforto e consolo
a outras pessoas. Para o cristão, estar presente, mesmo onde não há respostas,
tem sua razão de ser e valor, pois é a identificação com o próprio Jesus.
Na carta de uma médica missionária em Papua Nova Guiné, ela escreve
que à pergunta “por que o tsunami?” não se responde como se isso fosse um
envio de Deus ou de Allá, por causa das festas nas praias ou da hipocrisia entre
os islâmicos, como havia sido sugerido. A resposta de Deus para o pecado do
homem não é o envio da morte, mas da Vida, através do seu Filho Jesus, é Ele
o sinal que Deus não é contra nós, mas por nós.

| 126 HOEFER, op. cit., p.14.


A revelação de Deus e o testemunho cristão 141

Atividades de autoestudo
1. Deus não se revela em sua glória plena às criaturas. Esse lado oculto
de Deus faz as religiões muitas vezes especularem sobre quem é Deus
e como ele age. Qual é o cerne ou o fundamento da religião cristã em
relação à revelação de Deus? Escreva um parágrafo de aproximadamente
sete linhas sobre o assunto, abordando o assunto do ponto de vista
bíblico/teológico.

2. A existência do mal num mundo criado e governado por um Deus bom


é um mistério considerado como praticamente insolúvel. Que outro
mistério é possível verificar ao longo da revelação de Deus?
a) Como Deus deixou escrita sua Palavra de forma tão exata.
b) Como Deus insiste em amar o seu povo pecador, ainda que este
lhe dê muitas vezes as costas.
c) Como Deus se encarnou em Cristo e pegou obedientemente o
caminho da cruz e o lugar dos pecadores.
d) As opções b e c respondem à questão.

3. Quando Jesus foi confrontado com a existência do mal, no caso do cego


de nascença (Jo 9.2-3) e da morte dos galileus no templo e das pessoas
sobre as quais caiu uma torre (Lc 13.1-5), o que é possível concluir da
sua resposta?
a) Jesus não dá muitas pistas, mas deixa claro que há propósitos
maiores envolvidos.
b) Jesus deixa claro que o mal acontece sempre às pessoas mais
pecadoras.
c) Jesus faz seus ouvintes olharem para si mesmos e entenderem que
fatos ruins e atos maldosos funcionam como sinais para mostrar
que as pessoas e as coisas estão fora de sua ordem natural e que
todos precisam se arrepender.
d) Jesus aconselhou seus discípulos a sempre tentarem responder a
questão do porquê do mal, especialmente procurando culpados.
142 A revelação de Deus e o testemunho cristão

4. Qual é o resultado de abordar catástrofes na vida das pessoas


responsabilizando elas próprias e seus pecados pelo ocorrido?
a) Conforto, esperança e otimismo.
b) Medo, terror e insegurança.
c) Dessa forma as tragédias farão sentido e trarão o real conforto.
d) Conforto, paz e certeza.

Respostas:
2. d 3. c 4. b

Referências
GIRI, Radhika. Killer Wave. Disponível em: http://www.indiatoday.com/
itoday20050110/. Acesso em: 11 out. 2009.
HOEFER, Herbert. Why?: Spiritual Dimensions of the Tsunami Event. In:
Missio Apostolica, Volume XIII, número 25, maio 2005, p.7-15.
KOLB, Robert. Speaking the Gospel Today. St. Louis, USA: Concordia
Publishing House, 1995.
______. When the Lord Hides – witnessing of an unprogrammable God. In:
Missio Apostolica, Volume XIII, número 25, maio 2005, p.16-21.
RAJ, Victor. Where is God in all of This? In: Missio Apostolica, Volume XIII,
número 25, maio 2005, p.22-26.
9

Reflexões missionárias
em Martinho Lutero
Introdução
O impacto que Martinho Lutero exerce não se restringe a luteranos. No
século XXI, mais precisamente em 2003, numa pesquisa feita por uma TV alemã,
o Reformador foi considerado como um dos alemães de maior influência em
toda a história.127 Segundo observação de um historiador católico, John Todd,
em qualquer biblioteca decente de Artes Liberais vão se encontrar mais livros
escritos sobre Lutero do que de qualquer outro indivíduo na história humana,
com exceção de Jesus Cristo.128
O nome Martinho Lutero evocou e evoca diferentes reações. Ele possui
seus pesquisadores, advogados, mas também há aqueles que fazem o papel de
promotores e que lhe fazem críticas e acusações. Quando o tema é a missão,

| 127 Nessa pesquisa, em 1º lugar está Konrad Adenauer, primeiro-ministro da República Federativa
Alemã durante 14 anos, na época da reconstrução do país logo após o regime nazista. Disponível
em http://german.about.com/cs/culture/a/bestger.htm. Acessos em setembro de 2009 e abril
de 2010. Os dez primeiros são: 1. Konrad Adenauer; 2. Martin Luther; 3. Karl Marx; 4. Hans und
Sophie Scholl; 5. Willy Brandt; 6. Johann Sebastian Bach; 7. Johann Wolfgang von Goethe; 8.
Johannes Gutenberg; 9. Otto von Bismarck; 10. Albert Einstein. Segundo o site onde se encontra
a informação, “ironicamente, a participação dos votantes nesta enquete foi maior do que as
mais recentes eleições políticas na Alemanha”.
| 128 ROSIN, Robert. Luther on Education, p.117-130. In: The Pastoral Luther. WENGERT, Timothy J.
(editor). Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 2009.
144 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

são geralmente as críticas que servem como o ponto de partida. É importante


notar, porém, que, embora o ponto de partida acabe sendo as censuras feitas a
Lutero como missionário, e inevitavelmente isso aconteça, esse capítulo não tem
finalidade de defendê-lo dessas acusações, mas o alvo é permitir que o próprio
Reformador fale sobre o assunto, absorver seus ensinos e tentar estabelecer uma
relação com a missão da Igreja no século XXI.
Por que Lutero pode ser um conselheiro ou um inspirador à missão? Porque
para ele a Bíblia não era apenas um livro, mas uma palavra endereçada a mudar
vidas129, e é dela que ele extrai suas reflexões missionárias e é isso que torna
legítimo hoje nós nos “sentarmos à mesa” com Lutero e com ele dialogar sobre
a missão da Igreja. O objetivo deste capítulo é introduzir o aluno ao pensamento
missionário do Reformador do século XVI e dele tirar reflexões teológicas que
possam ser úteis na vida missionária da Igreja.

9.1 O ponto de partida: críticas a Lutero


como missionário130
O católico romano Roberto Belarmino e o professor universitário de
missões Gustav Warneck são os que não veem a Lutero como um conselheiro
para a missão. Um critica os protestantes de forma geral por não terem sido
missionários, o outro, a Lutero em particular.
Roberto Belarmino (1542-1621) censurou os protestantes numa época de
grande empenho de missionários da Igreja Católica Romana. A criação da
Ordem dos Jesuítas, fundada em 1534 por Inácio de Loyola e confirmada por
Bula Papal em 1540, tinha como princípio básico a conversão dos “hereges” e
dos pagãos à fé católica. Na observação do estudioso de missões Stephen Neill,
“os jesuítas iriam deixar os seus ossos em quase todos os recantos do mundo
conhecido e nas praias de quase todos os mares”.131

| 129 GRITSCH, Eric W. Luther as Bible Translator, p.72. In: Martin Luther. MCKIM, Donald K. (editor).
Cambridge University Press, 2003, p.62-72.
| 130 O texto abaixo está baseado em: GRAFF, Anselmo Ernesto. Lutero: um rico, mas inexplorado
inspirador à missão. In: Igreja Luterana. Volume 66, números 1 e 2, junho e novembro 2007,
p.15-34.
| 131 NEILL, op. cit., p.151.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 145

No final do século XVI, Belarmino incluiu a atividade missionária nos 18


pontos, que ele considera como sendo as marcas da Igreja verdadeira, e criticou
os protestantes pela falta dela na Igreja Protestante.

Os heréticos nunca converteram pagãos ou judeus à fé, mas apenas


perverteram cristãos. Neste mesmo século os católicos converteram
muitos milhares de pagãos no Novo Mundo. Todos os anos, um
certo número de judeus são convertidos e batizados em Roma por
católicos que aderem em lealdade ao bispo de Roma. E há também
alguns turcos que são convertidos por católicos, tanto em Roma
como em outros lugares. Os luteranos comparam-se a si mesmos
como os apóstolos e os evangelistas. Contudo, embora entre eles
existam muitos judeus e na Polônia e na Hungria tenham os turcos
por vizinhos, pouco mais converteram que uma mão cheia deles.132

Gustav Warneck, professor universitário de missiologia em Halle, viveu no


século XIX, num contexto de formação de agências missionárias e envio de
evangelistas para outros países. Ele difundiu a ideia de que a Reforma não foi
proveitosa em termos missionários e que no próprio Lutero faltou, não só a ação
missionária, mas a ideia de missões.133
São justas essas críticas? Como se lida com elas? A tendência natural parece ser
muitas vezes a racionalização e a tentativa de explicar essas alegadas deficiências.
Não houve envolvimento missionário porque havia outras tarefas internas; falta
de oportunidade para missões no exterior ou simplesmente a crença de que o
fim do mundo estava tão próximo que tornaria qualquer esforço inútil.134 Além
disso, havia a situação da Igreja ser governada por autoridades do Estado135,
Lutero havia sido absorvido por dificuldades em estabelecer os princípios da
Reforma na própria Alemanha, a preocupação missionária inicial era com os

| 132 BELARMINO apud NEILL, p.226-227.


| 133 ELERT, Werner. The Structure of Lutheranism. Tradução de Walter A. Hansen. St. Louis, USA:
Concordia Publishing House, 1962, p.385.
| 134 SHERER, James A. Luther and Mission: A Rich but Untested Potential. In: Missio Apostolica 2,
nº 1, 1994, p 17.
| 135 ELERT, op. cit., p.385.
146 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

judeus e os turcos, e a teologia do Reformador ainda não havia sido estabelecida


para motivar e prover os princípios para uma empreitada missionária.136

9.2 Definição de conceitos de missão


Creio que não é possível colocar juntos e na mesma arena para um debate
Warneck e Belarmino de um lado e Lutero e seus defensores como missionário
do outro. Os conceitos de missão são divergentes. Lutero e os reformadores são
julgados no princípio de que missão é essencialmente o envio de missionários a
outro território e as atividades empreendidas por eles. Ou, então, missão é vista
como propagação da fé, expansão do reinado de Deus, conversão dos pagãos e
a fundação de novas igrejas.137
O termo missão na verdade é relativamente recente. Até o século XVI, a
palavra era usada exclusivamente com referência à doutrina da Trindade, ou
seja, o Pai envia o Filho e que enviam o Espírito Santo. Foram os jesuítas que
primeiro usaram o termo se referindo à difusão da fé cristã entre pessoas que
não eram membros da Igreja Católica.138
Hoje, em termos gerais, missão é entendida como a missio Dei, conceito
adotado na Conferência do Conselho Missionário Internacional em Willingen,
Alemanha, em 1952. Missão passou a ser entendida como participação na missão
do Deus triúno, nos cuidados da criação divina e estabelecimento do senhorio
de Cristo sobre toda a criação redimida.139 É o envolvimento de Deus no mundo
e no qual a Igreja tem o privilégio de participar. Missão é olhar para o mundo
com os mesmos olhos que Deus olhou e olha, com amor e atenção. Portanto,
missão é a atividade geral de Deus no mundo e, quando o termo envolve a
Igreja, ela deve ser entendida como a sua ação global em pregar, administrar os
sacramentos, nutrir, testemunhar, promover a comunhão e o serviço.
Já evangelização é entendida como tarefa específica de despertar ou reanimar
a fé no Salvador Jesus onde ela não existe. Evangelizar é chamar pessoas ao

| 136 JI, Won Yong. A Lutheran Understanding of Mission: Biblical and Confessional. In: Concordia
Journal, Volume 22, nº 2, april/1996, p.149.
| 137 BOSCH, op. cit., p.18.
| 138 Idem, p.18.
| 139 VICEDOM, op. cit., p.15.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 147

arrependimento e anunciar-lhes o perdão dos pecados em Jesus Cristo. Assim,


missão não pode ser identificada com evangelização, porém, é decisivo e fundamental
afirmar que a evangelização é uma dimensão decisiva e essencial da missão e da
Igreja. Assim, missão, quando aplicada à Igreja, pode ser entendida como o agir dela
com a intenção específica de testemunhar as Boas-Novas do evangelho do Senhor
Jesus Cristo.140 Esse é o cerne da missio Dei e é nesse sentido, acredito eu, que Lutero
pode ser lido, ensinar-nos e inspirar ainda mais a missão.

9.3 Lutero, um missionário diferenciado


No sentido atual e próprio do termo missão, não há argumentos contrários
em afirmar Lutero como um missionário e sua obra como essencialmente
missionária. Há algumas razões que justificam essa afirmação.
a. Lutero foi um missionário iluminado para o seu tempo. Numa época de
inércia e apatia, ele estimulou sua geração a pensar e refletir sobre questões
mais profundas, como sua batalha espiritual e a anfechtungen.141
b. Lutero foi um missionário destemido para a Igreja. A base da Igreja
Católica Medieval que ele amava e respeitava precisava ser censurada
e reformada teologicamente.
c. Lutero foi um missionário atento para seu próprio povo. Ele
disponibilizou a Santa Escritura na língua alemã, catecismos e outros
materiais de ensino.142 As palavras de 2 Tessalonicenses 3.1, “Finalmente,
irmãos, orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague e seja
glorificada, como também está acontecendo entre vós”, tornaram-se
uma realidade não somente na Alemanha, mas também em linguagens
europeias que faziam referência à tradução de Lutero. O Reformador
é considerado por muitos como o pai das traduções da Bíblia para o
vernáculo em todo o mundo. No tempo da Reforma havia apenas 33
traduções de diferentes línguas e somente de parte das Escrituras.143

| 140 SHERER, op.cit., 1987, p.37.


| 141 É um multifacetado conceito de Lutero e que se refere a todas as aflições e tentações a que um
cristão é submetido.
| 142 JI, op. cit., p.148.
| 143 BUNKOWSKE, Eugene W. Was Luther a Missionary? In: Concordia Theological Quarterly, Volume
49, numbers 2 and 3, april-july, 1985, p.168.
148 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

A dimensão missionária do Catecismo Menor é mostrada pelo fato


de que este rapidamente foi traduzido para o latim, holandês, russo,
polonês, lituano e prussiano. Além disso, é possível acrescentar que o
Catecismo era usado na Áustria, Hungria, Boêmia, Morávia, Látvia,
Estônia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia, Holanda, Bélgica,
Inglaterra, França e mesmo na Espanha e na Itália.144
d. Lutero foi um missionário sensível para o ser humano. Ele recolocou a
natureza humana no seu devido lugar, impotente e incapaz da conversão,
em contraposição ao moralismo humanista que tinha o ser humano em
alta conta em termos éticos.145
e. Lutero tinha olhos missionários em seus escritos. Em seus comentários
sobre textos bíblicos, ensinos sobre oração e sermões, ele manifestava
interesse especial por aqueles que ainda não eram cristãos e no
envolvimento dos que já são cristãos na evangelização.
f. Lutero tinha visão missionária no trabalho congregacional e nas escolas.
Na discussão em torno da manutenção ou não da missa em latim, Lutero
diz que, se houvesse familiaridade, não só se manteria o latim, como
também se faria cultos em alemão, grego e hebraico. Ele não é favorável
a se ater a uma só linguagem. Ele se manifesta a favor de treinar jovens
e pessoas em geral, para torná-los capazes de conversar em diferentes
línguas e em países estrangeiros. O Espírito Santo não esperou para todo
o mundo ir a Jerusalém e estudar hebraico, mas deu várias línguas para
o cumprimento do ministério da pregação onde quer que os apóstolos
fossem.146
g. Lutero foi um missionário com precisão pedagógica e sensibilidade
no uso da liturgia. Para ele a missa ou o culto em alemão deveriam ser
arranjados para atender às necessidades de todas as pessoas, dos leigos
sem instrução e também dos que ainda não creem. Lutero ressalta a
ideia de que esses momentos também devem ser um convite público à
fé e ao cristianismo.147

| 144 Idem, p.169.


| 145 JI, ibid., p.149.
| 146 LUTERO, Martinho. Ministério e Culto. In: Obras Selecionadas, Volume 7. São Leopoldo, Porto
Alegre: Sinodal e Concórdia, 2000, p.179.
| 147 Idem, p.179.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 149

h. Lutero era missionário lá onde estava, a saber, na Universidade de


Wittenberg. Ele compartilhou suas descobertas e convicções, ganhando
apoio da comunidade acadêmica. Entre 1520 e 1560, passaram por essa
universidade alemã cerca de 16 mil estudantes, pelo menos 2/3 de fora
da Alemanha.148
i. Lutero ainda soube explorar o recurso da imprensa. Embora sua
criação tenha sido no século anterior, poucos usaram esse recurso tão
efetivamente quanto Lutero.149

9.4 Lutero, missionário na leitura e exposição


da Bíblia
Há pelo menos duas referências significativas sobre textos bíblicos em que Lutero
é apresentado fazendo alusões missionárias. Na compilação de afirmações de Lutero
de Ewald M. Plass150, o autor reúne 14 citações relevantes. A outra obra é a de Volker
Stolle151, que em seu índice remissivo aponta para 98 referências bíblicas.
Não é novidade que a palavra e sua pregação são a maior bênção para
Lutero.152 Em seu comentário sobre o Salmo 23, em 1536, ele exalta o poder
da Palavra e seu atributo de guiar, instruir, reanimar, fortalecer e confortar.
Além disso, os que se aplicam à Palavra são mantidos no caminho certo,
protegidos e capacitados a vencer toda a espécie de tribulação.153 É em suas
exposições sobre a Palavra que é possível detectar todo o espírito missionário
do reformador.

| 148 RUDNICK, Milton L. Speaking the Gospel through the ages. A History of Evangelism. St. Louis:
CPH, 1984, p.82.
| 149 Idem, p.82.
| 150 PLASS, Ewald M. What Luther Says. A Practical In-Home Anthology for the active Christian. St.
Louis, USA: Concordia Publishing House, 1959.
| 151 STOLLE, Volker. The Church Comes from all Nations. Luther texts on Mission. Tradução de Klaus
Detlev Schulz. St. Louis, USA: Concordia Publishing House, 2003.
| 152 LUTERO, Martinho. Selected Psalms I. In: Luther’s Works, Volume 12. PELIKAN, Jaroslav (editor).
Saint Louis: Concordia Publishing House, p.147.
| 153 Idem, p.148.
150 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

9.4.1 Uma oração missionária de Noé


Em Gênesis 9.27a está escrito parte da bênção pronunciada por Noé, logo após
o episódio da sua embriaguez. “Engrandeça Deus a Jafé e habite ele nas tendas
de Sem”. Para Lutero esta oração de Noé trata da proclamação do Evangelho
em todo o mundo. Sem é como um tronco, de onde houve descendentes e dos
quais Cristo nasceu. A Igreja é dos judeus. Eles tinham patriarcas, profetas e reis.
Mas aqui Deus revela a Noé que mesmo os pobres gentios irão compartilhar
dos benefícios que o Filho de Deus trouxe a este mundo, a saber, o perdão dos
pecados, o Espírito Santo e a vida eterna.154 O cumprimento desta profecia,
segundo Lutero, ocorreu com o apóstolo Paulo, como está escrito em Romanos
15.19: “por força de sinais e prodígios, pelo poder do Espírito Santo; de maneira
que desde Jerusalém e circunvizinhanças, até ao Ilírico, tenho divulgado o
evangelho de Cristo”.
Para chegar a essa conclusão, Lutero explica que alguns derivam Jafé do verbo
hebraico que significa “ser bonito”, como no Salmo 45.3. Mas para Lutero essa
tradução é equivocada, pois a derivação deveria ser de outro verbo, cujo significado
é “persuadir”, “seduzir”, “atrair”, como mostram outros textos (Êx 22.16; Pv 1.10; Jr
20.7; Os 2.14). Assim, para Lutero essa passagem deveria ser entendida como Noé
suplicando ao Senhor persuadir a Jafé a aceitar que o privilégio de ser ancestral
do Salvador tenha sido transferido para seu irmão e que seus descendentes sejam
convencidos amavelmente pela voz do Evangelho. Esta é uma persuasão divina,
obra do Espírito Santo. Para o Reformador, algumas vezes essas discussões
linguísticas são de grande valor e podem esclarecer o real sentido do texto.155

9.4.2 Fidelidade leva à expansão missionária


Em seus comentários sobre Gênesis 12.8156, Lutero afirma que Betel, por
significar “casa de Deus”, torna-se um lugar propício ao culto idólatra, como fez
Jeroboão (1 Rs 12.28-29). Porém, Abraão foi fiel à sua fé e não se intimidou com o
povo de Moré. Ele ergueu um altar e instruiu sua Igreja sobre a vontade de Deus,

| 154 LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis, Chapters 6-14. In: Luther’s Works, Volume 2. PELIKAN,
Jaroslav (editor). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.184.
| 155 Idem, p.182-184.
| 156 Passando dali para o monte ao oriente de Betel, armou a sua tenda, ficando Betel ao ocidente
e Ai ao oriente; ali edificou um altar ao SENHOR e invocou o nome do SENHOR.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 151

admoestou-os a uma vida santa, fortaleceu-os em sua fé, manteve-os na esperança


e orou com eles. É no verbo hebraico que Lutero retira todas essas atividades.157
Em Gênesis 13.4158, Lutero exalta Abraão porque ele realizou as tarefas de
um sacerdote, a saber, ensinar, orar e sacrificar, não em algum canto, temendo
as ameaças de violência dos pagãos, mas num lugar público, para que pelo seu
próprio exemplo e dos que estavam com ele outros pudessem ser conduzidos
ao conhecimento de Deus e às verdadeiras formas de culto.159
Também em Jacó Lutero vê essa fidelidade. Quando comenta Gênesis 35.2160,
ele menciona que através do ensino dos patriarcas muitos dos pagãos se uniam
a eles, pois estes viam neles pessoas do bem e que Deus estava com eles. Foi por
isso que os gentios ouviram e aceitaram seu ensino. Foi assim mais tarde com
José no Egito, Daniel na Babilônia e Jonas em Nínive.161
Numa pregação sobre Mateus 2.13-23, Lutero diz que não há dúvida de que
Maria e José, enquanto no Egito, não ficaram em silêncio sobre o grande milagre
que aconteceu com seu filho. Eles pregaram e trouxeram outros à fé e à salvação.
Através da perseguição a cristãos fiéis o cristianismo cresce, mas, quando há paz
e tranquilidade, os cristãos se tornam preguiçosos e inativos.162
Também o Eunuco (At 8.39) foi um missionário fiel a partir de seu Batismo e
fé. Ele com certeza ensinou a muitas outras pessoas a Palavra de Deus, pois lhe foi
ordenado “proclamar as virtudes daquele que o chamou das trevas para a luz” (1
Pe 2.9), especialmente porque não havia outros lá designados para fazê-lo.163

9.4.3 Um cristão não fica calado


Em sua exposição do Evangelho de João 14 e 15, Lutero afirma que, uma
vez que o cristão conhece a Cristo como seu Senhor e Salvador, seu coração é

| 157 LUTERO, ibid, p.286.


| 158 Até ao lugar do altar, que outrora tinha feito; e aí Abrão invocou o nome do SENHOR.
| 159 LUTERO, ibid., p.332-333.
| 160 Então, disse Jacó à sua família e a todos os que com ele estavam: “Lançai fora os deuses estranhos
que há no vosso meio, purificai-vos e mudai as vossas vestes”.
| 161 LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis, Chapters 31-37. In: Luther’s Works, Volume 6. PELIKAN,
Jaroslav & OSWALD, Hilton C. (editores). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.227.
| 162 LUTERO, apud STOLLE, op. cit., p.18.
| 163 Idem, p.19.
152 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

permeado por Deus. Por isso, agora ele está ansioso para ajudar a cada um receber
os mesmos benefícios, pois seu maior prazer está neste tesouro, o conhecimento
de Cristo. Assim, ele dá um passo à frente, ensina e admoesta outros, louva e
confessa sua fé diante de todos e ora, pois, onde há o espírito da graça, deve-se
começar a orar, para que eles também obtenham essa misericórdia. Um cristão
não pode ficar calado ou preguiçoso. Ele peleja para disseminar a honra e a
glória de Deus entre as pessoas.164
Sobre o diálogo de José com seus irmãos em Gênesis 45.9-11, Lutero
parafraseia a conversa dizendo que José logo pediu para seus irmãos não ficarem
calados depois de terem reconhecido a Deus e a ele. Então ele afirma: “tão logo
aprendemos a conhecer a Deus em seu Filho, depois de apreender o perdão
dos pecados e o Espírito Santo, que veste nosso coração com alegria e com a
libertação do pecado e morte, o que resta fazer? Vai, não fica calado, para que
o restante seja salvo também, não somente você”.165
Num sermão sobre João 20.19-31, no primeiro domingo após a Páscoa,
em 1522, falando especificamente sobre o v. 20, “assim como o Pai me enviou
assim eu vos envio”, Lutero afirma, sem desconsiderar a instituição do Ofício
Ministerial, que a primeira e mais importante obra de amor de alguém que se
torna cristão é trazer outros para a mesma fé.166 Ainda que sobre esse mesmo texto
em 1531 ele fale mais da autoridade da Igreja em perdoar pecados167, e em 1534
a ênfase esteja na voz de Deus que ecoa através do Ministério Eclesiástico168, em
1538 ele repete pensamento similar, num sermão sobre Mateus 23.15, dizendo
que “a melhor de todas as obras é quando o pagão é conduzido da idolatria para
o conhecimento de Deus”.169
E é para isso que o cristão vive. Para Lutero o cristão permanece vivo só
em função de ser uma ajuda para outras pessoas. Se assim não fosse, tão logo

| 164 LUTERO, Martinho. Sermons on the Gospel of St. John, Chapters 14-16. In: Luther’s Works, Volume
24. PELIKAN, Jaroslav & POELLOT Daniel E. (editores). Saint Louis: Concordia Publishing House,
p.87-88.
| 165 LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis, Chapters 45-50.In: Luther’s Works, Volume 8. PELIKAN,
Jaroslav (editor). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.46.
| 166 LUTERO, Martinho. The Complete sermons of Martin Luther. Volume 1.1-2. LENKER, John Nicholas
(editor). Grand Rapids, Michigan: Bakers Books, 2000, p.359.
| 167 LUTERO Martinho. The Complete sermons of Martin Luther. Volume 6. KLUG, Eugene F.A. (editor).
Grand Rapids, Michigan: Bakers Books, 2000, p.60-72.
| 168 Idem, p.54-59.
| 169 PLASS, op. cit., p.957.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 153

alguém tenha sido batizado e começasse a crer, Deus poderia tirar a sua vida.
Mas ele o deixa viver para que outras pessoas sejam trazidas à fé. Lutero pregou
sobre isso em 1523, tendo como base o texto de 1 Pedro 2.9. Esta é uma parte
do ser um sacerdote, ser mensageiro de Deus, com a sua ordem de proclamar a
sua palavra. O sacerdote deveria pregar a obra de Deus em tê-lo chamado das
trevas para a luz e instruir as pessoas em como elas poderiam vir a essa luz. E
isso deve ser em público e em particular. “Onde você vê pessoas que não sabem
disso, você deveria instruí-las e também ensiná-las, como você próprio aprendeu,
em como Deus o transferiu das trevas para a luz.”170
Em outro escrito171, em 1523, Lutero ainda é mais enfático e claro quanto à
distinção entre o dever do testemunho da fé do cristão e do chamado regular para
o Ministério Pastoral e a pregação pública. Amparado por João 6.45, Salmo 44.7
e 1 Pedro 2.9, Lutero diz que cada cristão tem a Palavra de Deus e foi instruído
e ungido por Deus para ser sacerdote. Com isso ele tem o dever de confessar,
ensinar e difundir a Palavra de Deus. Tomando como exemplo Estevão (At 6.8,
10; 7.2ss), Filipe, o diácono e Apolo, Lutero coloca o cristão na responsabilidade
de pregar, onde ninguém foi convocado para isso. O simples fato de ser cristão
o torna ungido por Deus para essa tarefa e com o dever de fazê-lo, “sob pena
de perder sua alma e cair na desgraça de Deus”.172
É neste ponto que pode se encaixar o pensamento de Lutero em sua pregação
sobre Gênesis 12.14-16. Deus não deixa que seus filhos permaneçam tempo
demais num lugar. Ele os conduz para diferentes lugares para serem úteis a outras
pessoas. Abraão não poderia ficar em silêncio e deixar de pregar às pessoas sobre
a misericórdia de Deus. Por isso Deus o enviou para uma terra de grande fome
(Gn 12.10). Lá o pai dos que creem poderia iluminar alguns com o verdadeiro
conhecimento de Deus, o que de fato ele fez: “seria intolerável para alguém
encontrar pessoas e não lhes revelar o que é útil para a salvação de suas almas”.
Esse é o jeito maravilhoso de Deus agir. Ele envia apóstolos e pregadores antes
mesmo de eles perceberem ou pensarem sobre o assunto.173

| 170 LUTERO apud STOLLE, op. cit., p.20.


| 171 O Escrito é “Direito e autoridade de uma Assembleia ou Comunidade Cristã julgar sobre toda
doutrina, chamar, nomear e demitir pregadores – Fundamento e Razão da Escritura”. In: Obras
Selecionadas Volume 7, op. cit., p.25-36.
| 172 LUTERO, op. cit., 2000, p.31-32.
| 173 LUTERO apud STOLLE, ibid., p.16.
154 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

Lutero admite que o testemunho cristão não é uma tarefa simples. Em seus
escritos sobre o Salmo 51, em 1532, o reformador lembra que de fato não há outra
alternativa para o cristão justificado dizer com Davi: “Eu cri e por isso falei” (2
Co 4.13), ou “a meus irmãos declararei o teu nome” (Sl 22.22), mas, baseado no
Salmo 51.12, o salmista pede ao Senhor que ele abra seus lábios a fim de que ele
proclame destemidamente a misericórdia de Deus em público. Ao pedir isso ao
Senhor, ele revela como é difícil, no dizer de Lutero, o sacrifício do testemunho
público em nome do Senhor. Para ele há vários elementos que podem fechar os
lábios dos cristãos. O diabo pode utilizar do medo do perigo e da interferência
de amigos, por exemplo, para impedir a confissão de fé publicamente. O próprio
Lutero aponta para si como alguém que Satanás tentou impedir o testemunho,
“mas Deus estava presente e abriu minha boca contra esses obstáculos”. Lutero
encoraja o testemunho cristão dizendo que através dele se aprende como é
grandioso falar do que se experimentou.174
É interessante também refletir sobre alguns detalhes em como Lutero prezava o
puro ensino e a coerência no viver. Num sermão sobre Mateus 23.15, pregado em
1538, Lutero inicialmente condena a atitude missionária do judaísmo, que forçava
os gentios a aderirem às leis cerimoniais de Moisés e os “prendiam” à cidade de
Jerusalém. Em resumo, colocavam sobre eles exigências da Lei para serem salvos.
Quando um gentio se tornava um adepto do judaísmo e fazia o que lhe era
ordenado praticar, o Senhor diz: “o tornais filho do inferno duas vezes mais
do que vós” (Mt 23.15b), ou seja, eles se tornam piores. O que acontece é isso:
sempre que alguém adere a alguma religião e vê que seus integrantes praticam
usura, avareza, impurezas e outros vícios, então ele acabará abandonando a sua
fé. A pregação é “viva de maneira respeitável”, mas quando encontra esse quadro
perverso em quem lhe ensina, então ele vai pensar em seguir antes os ensinos
de Cícero e dos filósofos.
O ponto de Lutero é: se olhada do ponto de vista humano, a fé cristã já
é complicada por si mesma, por isso a interferência de uma vida e condição
vergonhosa de cristãos é inimaginável. Só o ensino da Palavra pode resolver
isso. Por isso, Lutero lembra sobre a responsabilidade especial da família. Em
outro sermão pregado em 1532, sobre Marcos 8.1-9, ele incentiva a todos a se

| 174 LUTERO, Martinho. Selected Psalms I. In: Luther’s Works, Volume 12. PELIKAN, Jaroslav (editor).
Saint Louis: Concordia Publishing House, p.393-394.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 155

preocuparem, providenciarem e promoverem o ensino da Palavra, pois não há


maior ou mais alta obra do que nutrir pessoas com a Palavra de Deus. Sem ser
pessimista, mas com os pés no chão, Lutero diz que não há tarefa mais difícil
do que encaminhar pessoas jovens a aceitarem os princípios escriturísticos, mas
também não há maior serviço do que este que se pode render a Deus.175

9.4.4 O princípio universal no pensamento missionário


em Lutero
“Quando Deus fala, ele abre bem grande a sua boca. Suas palavras não estão
limitadas a alguns lugares, mas para o mundo todo. Ele quer abençoar, com
certeza, não apenas dois ou três povos, mas o mundo inteiro.”176 O princípio
missionário universal em Lutero está presente numa série de passagens bíblicas
comentadas e pregadas por ele. Em Gênesis 22.17-18, ele contesta o pensamento
exclusivista dos judeus e afirma que todas as nações serão abençoadas na
descendência de Abraão, que é Cristo.177
Em Gênesis 6.9-10 Lutero exalta a fidelidade e a coragem de Noé, que informou
outros sobre as promessas e os juízos de Deus, e para isso, possivelmente, viajou
pelo mundo inteiro para pregar em todas as partes, dando instrução a respeito
do verdadeiro culto a Deus.178
Em seus comentários sobre o Salmo 117, Lutero também exprime essa
preocupação missionária para com todos os povos. Se todas as nações devem
louvar a Deus, então Ele deve tornar-se Deus delas. Para isso acontecer, elas
precisam conhecê-lo, crer nele e abandonar a idolatria. Assim, elas precisam
antes ouvir sua Palavra e por meio dela receber o Espírito Santo, que através
da fé purifica e ilumina seus corações. Para tanto, Lutero defende o envio de
pregadores para todos, no lugar onde estão, visto que o salmista não diz: “Venham
a Jerusalém, todas as nações”.179 Lutero ainda menciona outras passagens que

| 175 LUTERO, 2000, op. cit., p.330-331.


| 176 LUTERO apud STOLLE, op. cit., p.28.
| 177 LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis, Chapters 21-25. In: Luther’s Works, Volume 4. PELIKAN,
Jaroslav & HANSEN, Walter A. (editores). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.151-178.
| 178 LUTERO, Martinho. Lectures on Genesis, Chapters 6-14. In: Luther’s Works, Volume 2. PELIKAN,
Jaroslav (editor). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.56-57.
| 179 LUTERO, Martinho. Selected Psalms III. In: Luther’s Works, Volume 14. PELIKAN, Jaroslav &
POELLOT, Daniel E. (editores). Saint Louis: Concordia Publishing House, p.9.
156 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

comprovam que a Palavra de Deus deveria ir aos pagãos, onde eles estiverem,
como no Salmo 19.5 e Sofonias 2.11.180
É valioso observar que Lutero considera isso como um processo contínuo até
o dia do Juízo Final. A menção é oportuna, porque em seus comentários sobre
o Salmo 68.12, em 1521, ele interpreta os reis como sendo os apóstolos, que aos
olhos do mundo são pobres servos, mas que aos olhos de Deus são grandes reis,
pois converteram o mundo todo.181
Já num sermão de 1522, sobre Marcos 16.14-20, Lutero ressalta que os
apóstolos não visitaram o mundo todo e muitas ilhas ainda não foram descobertas
e nem o Evangelho lá pregado. Para ele as palavras de Paulo em Romanos 10.18,
“por toda a terra se fez ouvir a sua voz”, devem ser entendidas como a pregação
do Evangelho que já começou, saiu para o mundo todo, mas que ainda não o
alcançou totalmente. É um processo que iniciou, continua, que ainda não acabou
e que vai durar até o dia do julgamento. É pertinente a comparação de Lutero
neste sermão. A pregação do Evangelho é como uma pedra lançada na água e
que produz contínuos círculos ao redor dela. O centro se acalma, mas as ondas
não param e se movem até chegar à encosta.182
Esse pensamento Lutero reitera mais tarde, em 1535, quando em seus
comentários sobre o Salmo 110.2183 ele não limita a pregação do Evangelho a uma
determinada época, mas que começou com os apóstolos e ainda permanece.184
Num sermão sobre Mateus 22.9185, Lutero diz que os cristãos de hoje foram
convidados ao banquete através do Evangelho, mas isso ainda não terminou.
Continua o tempo em que os servos vão às ruas para convidar. Só no último
dia as mesas serão examinadas para que Jesus veja quem está adornado com a
veste nupcial.186

| 180 Idem, p.10.


| 181 LUTERO, Martinho. Selected Psalms II. In: Luther’s Works, Volume 13. PELIKAN, Jaroslav (editor).
Saint Louis: Concordia Publishing House, p.13.
| 182 LUTERO, Martinho. The Complete sermons of Martin Luther, Volume 2.1-2. LENKER, John Nicholas
(editor). Grand Rapids, Michigan: Bakers Books, 2000, p.201-202.
| 183 O SENHOR enviará de Sião o cetro do seu poder, dizendo: “Domina entre os teus inimigos”.
| 184 LUTERO, Martinho. Selected Psalms II. In: Luther’s Works, Volume 13. PELIKAN, Jaroslav (editor).
Saint Louis: Concordia Publishing House, p.269.
| 185 Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai para as bodas a quantos
encontrardes.
| 186 LUTERO apud STOLLE, op. cit., p.27.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 157

A propósito, Lutero acreditava que o último dia estava próximo. Em dois


momentos de suas Tischreden, o segundo em 1542, ele trata do assunto. No
primeiro ele compara o Evangelho a uma pessoa pronta para morrer. Os lábios
se esforçam para o último movimento, para dizer “em tuas mãos entrego o meu
espírito”. Nós também estaríamos vivendo num último momento do Evangelho
e o último dia virá logo. No segundo momento ele faz uma analogia parecida
com uma candeia. Quando ela está quase apagando, ela faz um último impulso,
como se fosse ainda queimar por um longo tempo, mas na verdade ela está se
apagando. Assim também é com o Evangelho. Ele está dando o último suspiro,
como se fosse pregado ainda em muitos lugares, assim como uma pessoa próxima
à morte, mas depois virá o dia do julgamento.187

9.5 Lutero missionário: conclusões


Parece claro que Lutero mantinha de maneira precisa a tensão entre a missio
Dei e a responsabilidade de cada sacerdote ungido por Deus no Batismo, para
proclamar as obras de Deus. Ele esboçou seu conceito de missão em termos
teocêntricos e bíblicos. É possível que isso não possa ser traduzido tão facilmente
em termos práticos e organizacionais, mas ele com certeza é um inspirador e
um desafio para a missiologia hoje.
Como inspirador à missão, Lutero nos revela que a vida eclesial era permeada
com a dimensão evangelística. Não se pressupunha conhecimento prévio dos
participantes do culto. Liturgias deveriam ser organizadas visando também os
visitantes; missão era assunto de púlpito, a fim de orientar e animar; o sacerdócio
universal dos cristãos era animado a exercer onde de fato e de direito foi
chamado, fora da Igreja, no trabalho, na família, entre os amigos, onde não há
outro designado para proclamar o Evangelho.
Lutero inspira, mas com os pés no chão. Ele admite que há muitas coisas
que atrapalham o testemunho. É preciso reaprender sempre de novo que onde
o Reino de Deus é pregado há oposição e é preciso perseverar.

| 187 Idem, p.84.


158 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

Atividades de autoestudo
1. O católico romano Roberto Belarmino e o professor universitário de
missões Gustav Warneck são alguns dos que não consideram a Lutero
como um conselheiro para a missão. Quais são os pressupostos que
operam esses dois críticos? Fazem sentido as suas críticas? Responda e
argumente em aproximadamente sete linhas as duas questões acima.

2. No sentido atual e próprio do termo missão, Lutero pode ser considerado


um missionário diferenciado. Quais das razões abaixo justificam essa
afirmação?
a) Numa época de inércia e apatia, Lutero estimulou sua geração a
pensar e refletir sobre questões mais profundas, especialmente suas
batalhas espirituais, denominadas de anfechtungen.
b) Lutero foi um missionário destemido para a Igreja, pois a base da
Igreja Medieval, que ele amava e respeitava, precisava ser censurada
e reformada teologicamente e ele o fez.
c) Lutero foi um missionário atento para as necessidades de ensino
do seu próprio povo. Ele disponibilizou a Santa Escritura na língua
alemã, catecismos e outros materiais de ensino.
d) Todas as afirmativas acima respondem à questão proposta.

3. Lutero afirma que cada cristão tem a Palavra de Deus e foi instruído
e ungido por Deus para ser sacerdote, e por isso o dever de confessar,
ensinar e difundir a Palavra de Deus. Nesse caso:
a) Lutero coloca todos os cristãos no mesmo status, a saber, por serem
sacerdotes, todos eles podem pregar a Palavra e em todos os lugares,
sempre.
b) Lutero não trata dessa questão de forma específica.
c) Lutero faz distinção entre o dever do testemunho da fé do cristão
onde ele estiver e do chamado regular para o Ministério Pastoral
e a pregação pública da Palavra.
d) Lutero entende que a função de anunciar a Palavra é missão
exclusiva do Ministério da Igreja.
Reflexões missionárias em Martinho Lutero 159

4. Qual é a fonte principal de que Lutero se utiliza para formular suas


considerações missionárias, teológicas e práticas?
a) Suas próprias experiências missionárias.
b) A Palavra, a maior bênção para Lutero.
c) Documentos de concílios dos primeiros séculos da Igreja Cristã.
d) Missionários e evangelistas do século IV da Era Cristã.

Respostas:
2. d 3. c 4. b

Referências 188

BOSCH, David J. Missão transformadora. Tradução de Geraldo Korndörfer


e Luís M. Sander. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2002.
BUNKOWSKE, Eugene W. Was Luther a Missionary? In: Concordia Theological
Quarterly, Volume 49, numbers 2 and 3, april-july, 1985.
HUHTINEN, Pekka. Luther and World Missions: A Review. Concordia
Theological Quarterly, January, 2001.
JI, Won Yong. A Lutheran Understanding of Mission: Biblical and Confessional.
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NEILL, S. História das missões. Tradução de Fernando Barros. São Paulo:
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RUDNICK, Milton L. Speaking the Gospel through the ages. A History of
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SHERER, James A. Gospel, Church, and Kingdom. Comparative Studies in World
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______. Luther and Mission: A Rich but Untested Potential. In: Missio
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SILVA, Gilberto da. The Lutheran Church as a Church of Mission Against the
Background of the Priesthood of all Believers. In: Missio Apostolica, Volume
XIV, nº 1 (27), may, 2006.

| 188 As principais referências bibliográficas a textos de Lutero estão indicadas nas notas de rodapé.
160 Reflexões missionárias em Martinho Lutero

STOLLE, Volker. The Church comes from all Nations – Luther Texts on Mission.
Tradução de Klaus Detlev Schulz. Saint Louis: Concordia Publishing House,
2003.
10

A missão holística da Igreja Cristã


Introdução
O termo holístico para a ação missionária da Igreja pretende colocar em
relevo a discussão de que a verdadeira missão cristã é uma atividade que integra a
pregação do Evangelho do Senhor Jesus Cristo e a ação social, em suas múltiplas
e variadas necessidades.
Há pelo menos dois pontos divergentes no encaminhamento dessas duas
responsabilidades e que serão abordados neste capítulo. O primeiro é em relação
à prioridade atribuída a cada uma delas nas atividades da Igreja, em relação às
necessidades dos seres humanos. O segundo é a interpretação do termo e alcance
da missão integral, ou holística. Qual é o seu alcance? Ela engloba a libertação
sociopolítica, humanização das comunidades, libertação dos oprimidos?
O perigo nesse assunto é a polarização. Por um lado, há aqueles que
se concentram exclusivamente na pregação do Evangelho, ignorando as
necessidades sociais, emocionais e físicas dos seres humanos. Por outro lado,
existem aqueles que negligenciam a evangelização e reinterpretam o Evangelho
de Jesus em termos de libertação política ou socioeconômica no tempo e no
espaço. Que caminho teologicamente saudável deve ser seguido?
O objetivo aqui é promover reflexões em torno desta aparente tensão, a fim de
que o aluno seja habilitado a perceber a relação e os limites entre a evangelização e
162 A missão holística da Igreja Cristã

a responsabilidade social, a fim de que ambas as dimensões sejam desencadeadas


com clareza, discernimento e equilíbrio teológico.

10.1 A relação entre evangelização


e responsabilidade social
Existe um consenso quase unânime sobre a prioridade da evangelização
sobre a ação social. Esse princípio, por sua vez, é desdobrado em duas
situações. Primeiro, uma vez que se pressupõe que um cristão é socialmente
responsável, ele irá atender às necessidades, quaisquer que sejam, imediatas
dos indivíduos à sua volta. Em segundo lugar, de acordo com essa afirmação
de prioridade, se houvesse necessidade de se optar entre “curar o corpo”
ou “salvar a alma”, a necessidade suprema e máxima de todo ser humano
deveria ser considerada, a saber, a salvação espiritual e eterna pela graça
salvadora de Jesus.189
Porém, essa composição não impede de haver debates sobre a relação
existente entre a evangelização e a responsabilidade social. A Consulta de Grand
Rapids190 definiu pelo menos três aspectos dessa relação e que podem servir para
fomentar debates em torno do assunto.
O primeiro é o princípio de que a atividade social é uma consequência
da evangelização. Em outras palavras, uma vez que Deus gera um novo
nascimento, seja pelo Batismo ou pela Palavra, essa nova vida irá se manifestar
por si só em serviço ao semelhante.191 O princípio é de que, uma vez que o
Evangelho cria a fé nas pessoas, esta fé atuará pelo amor e em serviço ao
próximo (Gl 5.6, 13).192
O segundo aspecto dessa relação indica a ação social como uma ponte para a
evangelização. Nesse caso a preocupação social poderia eliminar preconceitos e
desconfianças, abrir portas para a pregação do Evangelho e ganhar pessoas para

| 189 STOTT, op. cit., p.378.


| 190 Documento oriundo do I Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em
Lausanne, Suíça, no ano de 1974.
| 191 SHERER, op. cit., p.183.
| 192 STOTT, op. cit., p.379.
A missão holística da Igreja Cristã 163

Cristo. Jesus fez isso. Algumas vezes o Filho de Deus atendeu às necessidades
físicas antes de proclamar o evangelho do Reino (Jo 6).
O terceiro elemento de relação considerado é que a atividade social não
somente segue à evangelização, como consequência e alvo, ou a precede, servindo
como uma ponte, mas ela tem o papel de parceira da evangelização. Nesse
caso, ação social e atividades evangelísticas seriam como as duas lâminas de
uma tesoura, ou como as duas asas de um avião.193 Essa parceria é percebida no
ministério público de Jesus, que não apenas pregou o Evangelho, como também
alimentou os famintos e curou os doentes.194
Essa terceira relação é sustentada de forma especial pelo teólogo Rene Padilla.
Para ele, não se trata de negar a importância da dimensão espiritual e da salvação
eterna, mas não reduzir o Evangelho a uma dimensão puramente escatológica,
esquecendo do aqui e agora do amor a Deus e ao próximo.195
De fato a ação missionária, e de forma especial considerando o atual contexto
urbano, com suas complexidades e desafios, exige aplicar o princípio da parceria,
tanto ao cristão individualmente como à Igreja como um todo.

Do contrário, pareceria negar seu verdadeiro propósito na missão


divina. Obviamente, a Igreja não deveria se ver apenas como uma
agência social, mas se tornará socialmente envolvida através de
seus serviços diacônicos. A Igreja também não é um governo,
mas por sua proclamação e ação em uma comunidade mostrará
influência política e comunitária significativa. A Igreja não é uma
instituição financeira, mas às vezes tem que procurar oferecer
ajuda financeira em seu empenho para desenvolver seus planos
missionários e estabelecer projetos locais. A Igreja não é uma
escola, mas a educação é um meio importante para facilitar o
processo de amadurecimento da Igreja e incorporação de novos
membros. A Igreja não é uma família, mas as relações familiares
e estruturas são supremas para sua missão. A Igreja não é um

| 193 Idem, p.380.


| 194 SHERER, ibid., p.184.
| 195 PADILLA, Rene. Una Eclesiologia para La Misión Integral. In: La iglesia como agente de
transformación. Buenos Aires: Kairós, 2003, p.15, nota 1.
164 A missão holística da Igreja Cristã

edifício, entretanto o edifício é importante para acomodar


numerosos programas de treinamento e trabalho de grupos. A Igreja
não é uma organização, mas precisa de estruturas institucionais
para funcionar para outros na sociedade.196

10.2 Base bíblica/teológica para a parceria


O conceito para uma visão holística na missão da Igreja não é nenhuma
novidade. Ela nos remete ao ministério e ao ensino do próprio Jesus, que
rejeitou a dicotomia das necessidades físicas e espirituais das pessoas. Todas
as necessidades humanas eram compassivamente acolhidas e tratadas de
forma “não interesseira” por Jesus.197 Havia uma conexão muito íntima entre a
evangelização e o serviço. O amor de Deus era demonstrado com a proclamação
da Palavra.198
Se a missão da Igreja tem em Cristo o modelo a ser seguido, então é Ele que
envia a Igreja ao mundo, da mesma forma como o Pai enviou o Filho. E, fiel ao
seu envio, Jesus revelou o coração amoroso do Pai, traduzindo seu ministério
em palavras e obras.
A sustentação da missão holística está ainda no próprio caráter ou atributo
de Deus em cuidar e se preocupar com todos os seres humanos criados. Por um
lado Deus busca insistentemente através de profetas, pregadores e depois com o
próprio Cristo, as suas criaturas caídas em pecado, a fim de que elas voltem em
arrependimento e confiança a Ele e assim sejam salvas (Ez 18.32; 2 Pe 3.9). Por
outro lado, Deus se importa com os pobres, famintos, viúvas e órfãos (Tg 1.17;
Dt 10.17-18; 15.11; Zc 7.8-10; Mq 6.8). Não é preciso romantizar a pobreza e
todas as outras necessidades dos seres humanos, como se estas servissem como
garantias da atenção do cuidado de Deus ou até funcionassem como requisitos
para salvação, mas o fundamento está no amor, a própria essência de Deus e
seu mais importante mandamento.

| 196 ENGEN apud SCHULZ, Klaus Detlev. Propostas para Ação em Missões Urbanas. In: Vox Concordiana,
Volume 16, número 2, 2001, p.83.
| 197 SCHULZ, ibid., p.85.
| 198 STOTT, op. cit., p.385.
A missão holística da Igreja Cristã 165

Se a pobreza é eliminada, mas a pregação do Evangelho é negligenciada, então


a missão da Igreja falhou. Se o Evangelho é pregado, mas os necessitados físicos e
materiais são ignorados, a Igreja também não está cumprindo fiel e plenamente
sua missão, pois faltaria o motivo principal de todo o esforço missionário da
Igreja, o amor.199 Os serviços humanitários da Igreja não podem sacrificar a
proclamação do Evangelho do Senhor Jesus, mas se a Palavra de Deus se tronou
visível e habitou entre nós (Jo 1), então a proclamação da Igreja também precisa
fazer visível o amor de Deus em palavras e em ação.

10.3 Atos 6.1-7: pistas para uma relação sadia


entre a Palavra e ação social
Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve
murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles
estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então, os doze
convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: “Não é razoável
que nós abandonemos a Palavra de Deus para servir às mesas. Mas,
irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios
do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço;
e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da
palavra”. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão,
homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor,
Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-
nos perante os apóstolos, e estes, orando, lhes impuseram as mãos.
Crescia a Palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número
dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé.200

Uma narrativa bíblica não prescreve nem regulamenta ações a serem seguidas
na Igreja, mas ela descreve acontecimentos históricos sob o ponto de vista de
Deus e que assim podem servir de ensino e apontador para nossa reflexão hoje.
O texto de Atos 6.1-7 não é uma receita de procedimento para o trabalho da
Igreja. Porém, isso não significa que ele não seja aplicável ao nosso contexto.

| 199 SCHULZ, ibid, p.87-88.


| 200 Atos 6.1-7.
166 A missão holística da Igreja Cristã

Entendida e interpretada teologicamente, essa passagem pode servir como uma


referência segura no que diz respeito à discussão tanto ao que é prioritário na
Igreja como ao que é importante e fundamental.
A escolha desse texto tem a ver com a tendência do seu autor, o evangelista
Lucas, que parece dar atenção especial aos pobres (Lc 1.53; 6.20, 24; 12.16-21;
16.19-31; 19.1-10), textos exclusivos de Lucas.201
Quando o Senhor Jesus Cristo chamou os seus discípulos, ele lhes deu
poder e autoridade para pregar o Reino de Deus e curar (Lc 9.1-6). Quando
eles retornaram da missão e a relataram a Jesus, as multidões foram junto
para se encontrar com o Mestre (Lc 9.10-11). Os doze discípulos fizeram o
pedido a Jesus para que ele as mandasse para casa (v. 12). Porém, Jesus lhes
disse algo bem específico a fazer naquela ocasião: “Dai-lhes vós mesmos de
comer” (v.13a).
A missão dos setenta discípulos (Lc 10.1-20) tem algumas semelhanças com
a missão dos doze. Sua mensagem era essencialmente a mesma e eles também
deveriam curar os doentes. A diferença aqui é que eles foram com a missão
de preceder a Jesus. O ponto é que, quando Jesus envia, há direções e tarefas
específicas a serem executadas. Além destes exemplos, há ainda menção especial
pelas evidências práticas do arrependimento (Lc 3.8) e que também se manifestam
em termos econômicos (Lc 3.10-14). Há quem afirme que Lucas ainda se saliente
por sua preocupação intensa com a figura e a mensagem de Jesus como esperança
dos pobres.
Aos apóstolos escolhidos por Jesus foi dada a determinação de ficar em
Jerusalém e esperar o cumprimento da promessa do Pai. Havia 11 (Lc 24.9,33;
Mt 28.16; Mc 16.4) e cujos nomes estão listados em Atos 1.13ss. O lugar de Judas
foi ocupado por Matias (At 1.15-26). Depois do Pentecoste, Deus acrescentou
3 mil pessoas ao número dos salvos e os apóstolos estavam cuidando para que
a Igreja cumprisse plenamente a sua missão (At 2.42-47).
Também houve um tempo de inquietação, pois Pedro e João foram presos
e convocados a comparecer diante do Sinédrio (At 4. 1-22). Ainda assim essa

| 201 NAGEL, Norman. “The Twelve and the Seven in Acts 6 and the Needy”. In: Concordia Journal,
April 2005, p.113. David Bosch, em seu livro Missão Transformadora, faz a mesma alusão a essa
tendência lucana nomeando o capítulo 3 do seu livro assim: “Lucas-Atos: a prática de perdão e
solidariedade com os pobres”, p.111.
A missão holística da Igreja Cristã 167

primeira comunidade cristã vivia em oração (At 4.23-31) e não havia entre
eles pessoas necessitadas (At 4.32-35). Cuidar do necessitado era parte da vida
de um israelita, pois é uma promessa do próprio Senhor, que afirma “que faz
justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt
10.18; Cf. ainda Dt 16.11; Tg 1.27), e é considerado como rebelião contra o
Senhor não cumprir essa parte da missão. “Maldito aquele que perverter o
direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E todo o povo dirá: Amém!” (Dt
27.19; Cf. ainda Ml 3.5).
Entre os profetas havia a noção clara de que fazer justiça às viúvas era uma
demonstração de lealdade à Aliança. Na tradição rabínica, “fazer justiça” era
entendida e traduzida em termos de uma comunidade organizada para promover
atos de caridade.202
Um fragmento de Damasco relata sobre uma ordenança pré-cristã, em que
membros de congregações colocavam suas ofertas aos necessitados nas mãos
dos bispos e juízes. Há também evidências de que antes de 70 d.C. já havia
arranjos para cuidar dos pobres. Havia distribuição semanal de comida e roupas.
Também havia uma distribuição diária de comida, bem como um cálice de vinho
na celebração da Páscoa, para que todos, inclusive estrangeiros, órfãos e viúvas,
pudessem se alegrar perante o Senhor (Dt 16.11). É bem aceitável que o cuidado
pelos pobres é conectado à vida litúrgica da congregação de Jerusalém, pois as
refeições de comunhão incluíam a distribuição de auxílio aos membros pobres.
Em Corinto Paulo teve que lidar com esse tipo de situação, quando a Igreja se
reunia para celebrar a ceia (1 Co 11).
Mas o foco dessa discussão está em Atos 6. Aqui, os discípulos aparecem a
primeira vez em Atos. Os convertidos estavam reunidos depois da pregação de
Pedro (At 2.38-41). Algumas coisas estavam andando bem (At 4.32-35), outras
exigiam uma parada para planejamento e posterior melhora na execução. Esse
parece ter sido o caso da distribuição diária de provisões a viúvas de origem
grega e que por sua vez estava gerando prejuízos no envolvimento dos apóstolos
com a oração e a Palavra de Deus.
Atos 5 tem como destaques o relato do ato hipócrita de Ananias e Safira.
Os apóstolos foram presos, mas o nome de Cristo continuava sendo pregado

| 202 NAGEL, ibid., p.115.


168 A missão holística da Igreja Cristã

nas casas e no templo (At 5.42). No capítulo 6 é que acontece a necessidade da


parada. Os cristãos israelitas, cuja linguagem principal era o grego, são também
chamados de helenistas. “Murmurar” era algo que já havia acontecido antes em
Israel. Êxodo 16 deixa claro que a reclamação contra Moisés e Arão era de fato
contra o Senhor. A provisão das necessidades está nas mãos do Senhor. Ele é
que de fato se preocupa e alimenta a viúva e o órfão, e, quando isso não é feito
adequadamente, outros são escolhidos para executá-lo (Êx 18.13-27; Nm 11;
Dt 1.9-18).
O problema surgido na igreja de Jerusalém estava sofrendo com essa situação.
A interpretação dos israelitas de fala grega era de que havia parcialidade do lado
dos cristãos de fala aramaica. Esta negligência na atenção estava se manifestando
de maneira especial em relação às viúvas, justamente por quem o Senhor tem
cuidado especial (Êx 22.22; Dt 10.18; Sl 68.5; Pv 15.25; Is 1.17; Zc 7.10; 1 Tm
5.3; Tg 1.27).
Então os doze discípulos agiram. Não se discutiu sobre eventuais culpados,
mas eles afirmam que a continuidade daquilo que é essencial, a Palavra, não
pode sofrer limitações ou restrições. É ela que faz a Igreja andar (At 6.7; 9.31;
11.19). A supervisão da distribuição estava sob a autoridade dos doze (At
4.35), mas eles não desejavam ter o seu tempo encurtado para a oração e o
ministério da Palavra. O serviço das mesas certamente consistia nas refeições e
outras necessidades, mas certamente nunca sem a Palavra de Deus e a oração.
Os doze solicitam a liberação de algumas de suas responsabilidades a fim de
que houvesse mais tempo para aquilo que realmente vem em primeiro lugar na
vida ministerial, a Palavra e a oração. Ao mesmo tempo em que é colocado o
problema, é apresentada também a proposta de solução, a escolha e eleição de
sete auxiliares (At 6.3).
A ênfase de Lucas na Palavra, pode ajudar na explicação do porquê dos sete
não estarem fora do ministério da Palavra, como podemos ver mais adiante
(At 8.2-4). Aqueles que o Senhor separa para o Ministério podem ter tarefas
variadas, lugares, necessidades e oportunidades diferentes, mas o núcleo é o
movimento crescente da palavra do Senhor e mesmo o serviço de provisão aos
necessitados está conectado à Palavra, na medida em que os doze discípulos
eram responsáveis por essa tarefa. A eles coube a distribuição de provisões às
viúvas helenistas.
A missão holística da Igreja Cristã 169

Uma carta de Policarpo aos Filipenses admoesta ao presbítero olhar


pelos doentes, viúvas, órfãos e pobres. Falando do texto de Atos, Crisóstomo
considera vitais as doações, bem como a organização deste serviço. “Nada é mais
característico de um cristão do que a misericórdia, a caridade e as esmolas”.203
Na história da Igreja, a obra envolvendo o cuidado ao pobre nunca deixou
de ser exercido e colocados responsáveis para execução deste serviço. Os pais
apostólicos costumavam aconselhar às igrejas a cuidar das viúvas, assim como o
próprio Senhor cuida delas. Textos de dois salmos lembram a situação enfrentada
pela igreja de Jerusalém. “SENHOR é o seu nome, exultai diante dele. Pai dos
órfãos e juiz das viúvas é Deus em sua santa morada” (Sl 68.4b-5). “O SENHOR
guarda o peregrino, ampara o órfão e a viúva, porém transtorna o caminho
dos ímpios” (Sl 146.9). “Aqueles que têm noções erradas sobre a graça de Jesus
Cristo... Não tem preocupação pelas viúvas e pelos órfãos... Eles estão afastados
da Eucaristia” [Santa Ceia].204

10.4 O desafio do envolvimento holístico


Os limites estabelecidos por Deus parecem bem claros. O retorno ao paraíso
aqui na Terra se tornou missão impossível, depois que Deus baniu os seres
humanos do Jardim do Éden (Gn 3.24). Na condição de pecador, o ser humano
se distanciou de Deus, o que resultou em desarmonia consigo mesmo, com seus
semelhantes e com o restante da criação. Ele se tornou um cidadão estranho,
de passagem sobre a Terra. O jardim original agora está inacessível e no “novo”
jardim não é possível viver em pureza e confiança, santidade e justiça. Agora
há desarmonia, maldade, opressão, violência e injustiças.
Essas limitações são reafirmadas na história do Dilúvio, quando Deus
percebeu toda a corrupção do gênero humano (Gn 6.5-7a). No evento da Torre de
Babel, preventivamente, Deus agiu para espalhá-los (Gn 11.6). O SENHOR sabia
que este plano significaria opressão e exclusão para alguns, notoriedade para
outros, e não a construção e consolidação de uma comunidade harmoniosa.

| 203 NAGEL, op. cit., p.122.


| 204 SMYRNAEANS apud NAGEL, p.122.
170 A missão holística da Igreja Cristã

Essa realidade não só continuou, mas se agravou, como mostra a realidade


de opressão, violência, pobreza e tantas outras vicissitudes do século XXI. Isso
é possível assistir nos noticiários de televisão e ver nas periferias das médias
e grandes cidades. Nenhum acontecimento extraordinário está previsto
acontecer para mudar esta situação, a não ser a intervenção final de Cristo e
a implantação do seu reino em toda a plenitude. No episódio da ressurreição,
ele vai transformar nosso corpo mortal em imortal. Agora ele é feio e fraco,
mas quando for ressuscitado será bonito e forte. Agora é material, quando for
ressuscitado, espiritual (1 Co 15.42-44).
Na última intervenção de Cristo toda a criação, sujeita à vaidade, “será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de
Deus” (Rm 8.21), e naquele dia, “os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os
elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão
atingidas” (2 Pe 3.10), e então haverá um “novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1).
A morada de Deus será entre os seres humanos, Ele vai morar com eles e eles
serão os povos dele (Ap 21.3). Aí não haverá mais pobreza, violência, opressão,
estatísticas que nos envergonham e nos chocam.
Embora legítima, a expectativa do jardim atual retomar as configurações
paradisíacas é uma ilusão. Mas esse “não” não significa uma posição deísta,
porque Deus continua dizendo “sim” ao mundo. Deus Pai disse “sim” em Cristo
Jesus e continua dizendo “sim”, mantendo a pregação do Evangelho através da
Igreja Cristã e tendo a Terra como o palco da sua atividade libertadora. Ela é a
arena da ação redentora de Deus na esfera integral. O povo resgatado da opressão
do Egito (Êx 3.7-9; 14.30-31) e do exílio babilônico (Jr 29.10-14) são alguns dos
atos poderosos de Deus e que formam um paradigma, tanto para a dimensão
tipológica da libertação espiritual dos pecados (Mt 1.21), da morte e do poder
do diabo (1 Co 15.54-55; Lc 10.18) como para a esfera socioeconômica.
Parece que não há como conceber e defender modelos dualísticos. Esse “sim”
de Deus ao mundo significa que à Igreja cabe um engajamento missionário
holístico. O desafio da Igreja Cristã é reavaliar o sentido dominante para
esses atos redentores de Deus Pai e motivar seu povo à formação de uma
rede de serviços e atender os filhos do Pai Celestial que estão carentes,
famintos, marginalizados, excluídos, com limitações na formação escolar e nas
oportunidades de desenvolver sua humanidade. Missão é proclamação, mas
também é ação. Missão é preparar cidadãos, cuja pátria não é aqui, a viverem
A missão holística da Igreja Cristã 171

com uma cidadania digna. Missão é fazer desse jardim atual o jardim celestial
experimental de Deus aqui na Terra.
A história bíblica nos autoriza a ter esperança para a manifestação final de
Cristo e a consequente volta ao paraíso perdido. Um perigo teológico justamente
pode ser perder de vista o aspecto escatológico do Evangelho e a libertação final
e eterna, e fazer de libertações políticas e sociais marcos da salvação.

10.5 Reflexões visando a um engajamento holístico


O sentido dominante para o amor precisa ser reavaliado. Martinho Lutero já
insistia que amor verdadeiro, divino, inteiro e completo é o que não faz exceção,
nem se divide ou fragmenta, mas é dirigido livremente a todos.205 O problema
desse amor “parcial” ou “preferencial” é mencionado por Gilbert Meilaender,
que cita uma parábola de Kierkegaard para ilustrar essa ideia.

Vamos imaginar dois artistas, e um deles disse: “Eu tenho viajado


muito por esse mundo e tenho visto muita coisa, mas eu procurei
em vão a face de um homem que fosse digna de ser retratada.
Não encontrei nenhuma face que tivesse tal beleza a ponto de
me convencer a pintá-la. Em cada uma encontrei alguma falha.
Por isso procurei em vão”. Poderia isto sugerir que este artista é
competente? Por outro lado, o outro artista disse: “Bem, eu não
presumo ser realmente um artista; nem viajei para outros países.
Mas, permanecendo no pequeno círculo das pessoas mais próximas a
mim, eu não encontrei uma face que fosse tão insignificante, ou tão
cheio de falhas, que eu não pudesse descobrir alguma coisa gloriosa.
Por isso estou feliz na arte que eu pratico”. Este quadro não poderia
indicar que precisamente este último é o artista, alguém que tinha
algo com ele e encontrou o que o artista viajante não encontrava em
parte alguma, talvez porque ele não tinha algo [amor] com ele.206

| 205 LUTERO, Martinho. Resumo da Vida Cristã. In: Obras Selecionadas – Volume 5. Porto Alegre/São
Leopoldo: Concórdia/Sinodal, 1995, p.93.
| 206 KIERKEGAARD apud MEILAENDER, Gilbert C. Faith and Faithfulness – Basic Themes in Christian
Ethics. Londres: Universidade de Notre Dame, 1991, p.50.
172 A missão holística da Igreja Cristã

“Conhecer o SENHOR” não é simplesmente questão de apreensão intelectual,


ou união mística, mas questão de praticar a misericórdia e o amor em situações
concretas. Quando Jeoaquim, filho de Josias, explorava e era conivente com a
exploração de estrangeiros, órfão e viúvas, e se preocupava em construir casas
melhores do que dos outros, Deus proclamou: “Julgou a causa do aflito e do
necessitado; por isso, tudo lhe ia bem. Porventura, não é isso conhecer-me?” –
diz o SENHOR. Mas os teus olhos e o teu coração não atentam senão para a tua
ganância, e para derramar o sangue inocente, e para levar a efeito a violência e
a extorsão” (Jr 22.16-17).
Também o princípio das duas justiças delineadas por Martinho Lutero
precisa ser relembrado. A justiça de Deus infundida em nós sem os nossos atos,
somente pela graça de Deus e pela fé em Cristo, é seguida por nossa justiça, que
é a prática das boas obras, na mortificação da carne, na humildade e no temor
a Deus e no amor ao próximo. Assim como Cristo fez tudo em nosso favor, não
procurando o que é seu, da mesma forma ele quer que também mostremos este
exemplo frente aos nossos semelhantes (Fp 2.5-11; 1 Co 2.16).
O sentido dominante para Missão Integral/Holística deve ser entendido
de forma adequada. Temos que admitir que existe uma necessidade suprema
do ser humano, que é a libertação da culpa lançada sobre ele pelo pecado, que
o seu destino eterno está em jogo, mas isso não significa que há lugar para
polarização, porque, como diz Newbigin, a lógica do Evangelho é confrontada
com a necessidade e o sofrimento humano:

Um homem faminto chega pedindo comida: será que podemos rejeitá-


lo em nome do Evangelho? Trazem uma criança enferma e pede ajuda.
Há crianças em todo lugar sem oportunidades para estudar. Assim o
missionário acaba sendo empurrado para a obra da educação, cura
e serviço social.207

Por outro lado, também Newbigin nos lembra que, se alguém que é auxiliado
perguntar: “por que você está me auxiliando? Você está querendo me converter?”
A resposta não pode simplesmente ser “não, nós apenas estamos querendo

| 207 NEWBIGIN, op. cit., p.91


A missão holística da Igreja Cristã 173

ajudá-lo”. Ver a pessoa em suas necessidades integrais é levá-las a sério em sua


totalidade e esta é a premissa básica, circundada pelo amor, da missão integral
ou holística.208

Atividades de autoestudo
1. Parece haver um consenso sobre a relação existente entre a evangelização
e a responsabilidade social. Porém, isso não significa que existam
conflitos de opiniões sobre o tema. Existe alguma prioridade entre
evangelização e compromissos sociais a que a Igreja deveria se ater? Faça
uma avaliação do assunto em aproximadamente sete linhas e sustente
teologicamente sua posição.

2. O conceito para uma visão holística na missão da Igreja está baseado em


alguns princípios teológicos que devem ser considerados na abordagem
do tema. Quais são alguns desses princípios?
a) O ministério e o ensino do próprio Jesus, que rejeitou a dicotomia
das necessidades físicas e espirituais das pessoas.
b) O próprio caráter de Deus em cuidar e se preocupar com todos os
seres humanos criados.
c) A pobreza é requisito básico para o cuidado e a atenção de Deus.
d) As opções a e b respondem satisfatoriamente à questão.

3. Uma narrativa bíblica como Atos 6.1-7 não prescreve nem regulamenta
ações evangelísticas ou de envolvimento social a serem seguidas na Igreja,
mas ela pode servir como uma referência segura no que diz respeito à
discussão tanto ao que é prioritário na Igreja como ao que é importante
e fundamental. O que pode ser concluído a partir desse texto?
a) Que a prioridade absoluta na missão da Igreja é o serviço de
assistência material aos necessitados.

| 208 NEWBIGIN, Lesslie. A Word in Season – Perspectives On Christian World Missions. Michigan/
Edinburgh: Eerdmans Publishing Company/Saint Andrew Press, 1994, 37.
174 A missão holística da Igreja Cristã

b) Que o serviço de assistência material aos necessitados é importante


e fundamental, mas a prioridade é a Palavra.
c) Que a prioridade absoluta na missão da Igreja é a Palavra e a
oração.
d) Que deve haver um equilíbrio sadio entre a assistência aos
necessitados e a proclamação da Palavra.

4. A realidade de opressão, violência, pobreza e tantas outras vicissitudes


do século XXI não só continua, mas parece se agravar cada vez mais.
Além de demonstrar na prática o amor nessa situação e assim aliviar
a dor dos que sofrem, que esperança a Igreja pode proclamar nesse
contexto?
a) Um acontecimento extraordinário, como a vinda de Jesus e a
instauração de um reino terreno, mas perfeito.
b) A segunda intervenção de Cristo e o estabelecimento parcial do
seu reino de paz.
c) A intervenção final de Cristo e a implantação do seu reino celestial
em toda a plenitude, quando da ressurreição dos mortos.
d) A intervenção de Cristo e a derrota de Satanás, o promotor de todas
as tribulações.

Respostas:
2. d 3. b 4. c

Referências
MEILAENDER, Gilbert C. Faith and Faithfulness – Basic Themes in Christian
Ethics. Londres: Universidade de Notre Dame, 1991.
NAGEL, Norman. “The Twelve and the Seven in Acts 6 and the Needy”. In:
Concordia Journal, April 2005, p.113-126.
NEWBIGIN, Lesslie. The Open Secret. An Introduction to the Theology of
Mission. Grand Rapids, Michigan: Wm. B. Eerdmans Publishing Company,
1995.
A missão holística da Igreja Cristã 175

SCHULZ, Klaus Detlev. Propostas para Ação em Missões Urbanas. In: Vox
Concordina, Volume 16, Número 2, 2001.
SHERER, James A. Gospel, Church, & Kingdom – Comparative Studies in World
Mission Theology. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1987.
STOTT, John. Ouça o Espírito, Ouça o Mundo – Como ser um cristão
contemporâneo. Tradução de Silêda Silva Steuernagel. São Paulo: ABU Editora,
1997.

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