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As bases teóricas

da história ambiental
José Augusto Pádua

“Lucien Febvre costumava dizer: ‘a história é o homem’.


Eu, por outro lado, digo: a história é o homem e tudo mais.
Tudo é história: solo, clima, movimentos geológicos.”
(Fernand Braudel apud Moore, 2003, p.431)

Vozes da rua e mudanças epistemológicas

A
história ambiental, como campo historiográfico consciente de si mes-
mo e crescentemente institucionalizado na academia de diferentes países,
começou a estruturar-se no início da década de 1970. A primeira socie-
dade científica voltada para esse tipo de investigação, a American Society for Envi-
ronmental Histoy, foi criada em 1977. A publicação de análises substantivamente
histórico-ambientais, no entanto, algo bem diferente da simples proposição de
influências naturais na história humana, já vinha se delineando desde a primeira
metade do século XX e, em certa medida, desde o século XIX. Para refletir sobre a
gênese e evolução desse campo de conhecimento, é preciso levar em conta fatores
sociológicos e epistemológicos.
O primeiro curso universitário1 de maior repercussão com o título de “His-
tória ambiental” foi ministrado em 1972, na Universidade da Califórnia em Santa
Bárbara, pelo historiador cultural Roderick Nash, que em 1967 havia publicado o
livro Wilderness and the American Mind, um clássico sobre a presença da imagem
de vida selvagem na construção das ideias sobre identidade nacional norte-ame-
ricana. Ao explicar a concepção do curso, apresentado como indicador de uma
nova fronteira no ensino da História, o autor deixou explícito que estava também
“respondendo aos clamores por responsabilidade ambiental que atingiram um
crescendo nos primeiros meses daquele ano” (Nash, 1972).2 Ou seja, a “voz das
ruas” teve importância na formalização da história ambiental. Um fator sociológi-
co que pode ser inferido de vários outros depoimentos.
É verdade que muitos historiadores ambientais se sentem desconfortáveis
com a presença desse tipo de influência externa ao contexto propriamente aca-
dêmico. Ou simplesmente a rejeitam. Ela sugeriria uma politização da pesquisa,
ajudando a promover uma confusão espúria entre história ambiental e ambienta-
lismo. Mas tal postura vai de encontro às teorizações frequentemente repetidas,
por Lucien Febvre e tantos outros, sobre o fato de o historiador não estar isolado
do seu tempo e sempre mirar o passado com as perguntas do presente. Mesmo

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considerando os cuidados necessários na separação entre ciência e política, até
onde elas possam ser separadas. Ao comentar o desenvolvimento recente da histó-
ria ambiental, Peter Burke (2009, p.349) lembrou que a história monetária tam-
bém foi estimulada pela crise inflacionária dos anos 1920, assim como a história
demográfica pelo baby boom do pós-Segunda Guerra.
De toda forma, é bastante evidente que o debate público vem desafiando
os historiadores ambientais, de forma direta ou indireta, mesmo quando aparen-
temente negado. Em 1974, na apresentação do número especial sobre História e
Ambiente da revista Annales, o editor Emmanuel Le Roy Ladurie (1974, p.537)
fez questão de afirmar que não estava cedendo “aos imperativos de uma moda”,
pois “desde longo tempo” a revista havia escolhido “se interessar pelos problemas
de uma história ecológica”. Ao afirmar a proposta de se ocupar do ambiente para
“isolar os verdadeiros problemas e recusar as facilidades de um discurso vulgariza-
dor”, no entanto, ficava evidente o contraponto com o debate público e a presen-
ça subjacente dos “problemas ambientais”.
A emergência de um “ambientalismo complexo e multissetorial” a partir da
década de 1970, dotado de alto perfil na cena pública global, representou um dos
fenômenos sociológicos mais significativos da história contemporânea. Ele pode
ser considerado como um movimento histórico, mais do que um movimento so-
cial, que repercutiu nos diferentes campos do saber (Viola & Leis, 1991, p.24). A
ideia de “ecologia” rompeu os muros da academia para inspirar o estabelecimento
de comportamentos sociais, ações coletivas e políticas públicas em diferentes ní-
veis de articulação, do local ao global. Mais ainda, ela penetrou significativamente
nas estruturas educacionais, nos meios de comunicação de massa, no imaginário
coletivo e nos diversos aspectos da arte e da cultura. O avanço da chamada glo-
balização, com o crescimento qualitativo e quantitativo da produção científico-
tecnológica e da velocidade dos meios de comunicação, catalisou uma explosão
de temas da vida e do ambiente na agenda política. A discussão ambiental se tor-
nou ao mesmo tempo criadora e criatura do processo de globalização. A própria
imagem da globalidade planetária, em grande parte, é uma construção simbólica
desse campo cultural complexo.
A pesquisa histórica vem revelando que a preocupação intelectual com os
problemas “ambientais” esteve presente, ao menos no mundo de expressão eu-
ropeia, desde o final do século XVIII, ocupando um lugar relevante no processo
de construção do pensamento moderno (Raumolin, 1984; Grove, 1995; Pádua,
2002). A grande novidade das últimas décadas esteve na difusão desse tipo de
debate para uma parcela muito mais ampla da esfera pública. Os saberes acadê-
micos foram desafiados e estimulados por tal movimento. Não é por acaso que
nas últimas décadas organizaram-se iniciativas de ensino e pesquisa em econo-
mia ecológica, direito ambiental, engenharia ambiental, sociologia ambiental etc.
Estabeleceu-se um movimento de mão dupla, em que as produções científicas
influenciaram e foram influenciadas pelas ações públicas.

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A cena política, porém, não é suficiente para explicar a emergência de um
enfoque ambiental na pesquisa histórica. Os historiadores ambientais foram tam-
bém desafiados por movimentos internos ao mundo do conhecimento, especial-
mente por importantes mudanças epistemológicas consolidadas no século XX,
mas que já estavam em gestação nos séculos anteriores, em relação ao entendi-
mento do mundo natural e de seu lugar na vida humana. Três mudanças merecem
particular atenção: 1) a ideia de que a ação humana pode produzir um impacto
relevante sobre o mundo natural, inclusive ao ponto de provocar sua degradação;
2) a revolução nos marcos cronológicos de compreensão do mundo; e 3) a visão
de natureza como uma história, como um processo de construção e reconstrução
ao longo do tempo.
O que caracteriza a discussão ambiental na cultura contemporânea não é a
forte atenção para o tema da natureza. Ela sempre foi uma categoria central do
pensamento humano, ao menos na cultura ocidental, desde a Antiguidade (não
entrarei aqui na interessante discussão sobre a universalidade ou não do conceito
de “natureza”). De maneira geral, na medida em que as sociedades humanas se
territorializaram – construindo seus ambientes a partir de interações com espaços
concretos de um planeta que possui grande diversidade de formas geológicas e
biológicas –, emergiram incontáveis exemplos de práticas materiais e percepções
culturais referidas ao mundo natural. A produção de um entendimento sobre esse
mundo tornou-se um componente básico da própria existência social.
Clarence Glacken (1967), em seu monumental estudo sobre a história das
concepções intelectuais sobre a natureza no mundo ocidental, da Antiguidade
clássica ao século XVIII, constatou que virtualmente todos os pensadores foram
obrigados a enfrentar o tema, tendo por base três grandes indagações: É a natu-
reza, tal qual ela se apresenta na Terra, dotada de sentido e propósito? Possui essa
natureza, especialmente o lugar onde cada sociedade habita, uma influência sobre
a vida humana? Foi a realidade da Terra, em sua condição primordial, modificada
pela ação histórica do homem? Os resultados da investigação de Glacken deixam
claro que as duas primeiras perguntas dominaram amplamente a reflexão filosófica
e científica até o século XVIII. Tratava-se de entender como a natureza influen-
ciava a história humana e não o contrário. Algumas elaborações sobre a terceira
pergunta apareceram no que se refere aos melhoramentos da paisagem a partir das
artes e do trabalho. Mas o tema da capacidade da ação humana para degradar, ou
mesmo destruir, o mundo natural é essencialmente moderno (ibidem, p.viii).
A modernidade da questão ambiental – da ideia de que a relação com o
ambiente natural coloca um problema radical e inescapável para a continuidade da
vida humana – deve ser entendida em sentido amplo. Ela não está relacionada ape-
nas com as consequências da grande transformação urbano-industrial que ganhou
uma escala sem precedentes a partir dos séculos XIX e XX, mas também com uma
série de outros processos macro-históricos que lhe são anteriores e que com ela se
relacionam (dentro do jogo de continuidades e descontinuidades que caracteriza

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os processos históricos). É o caso da expansão colonial europeia e da incorporação
de vastas regiões do planeta, uma grande variedade de territórios e ecossistemas, a
uma economia-mundo sob sua dominância. E também da institucionalização da
ciência como um modo privilegiado de entendimento do mundo, com pretensão
de universalidade e capacidade para estabelecer redes planetárias de investigação e
troca de informações. A proposta de comparar regiões, produções naturais, eco-
nomias e culturas – de constituir um saber geográfico planetário – é fundamental
para entender a emergência de uma preocupação com os riscos da ação humana.
A própria ideia de colapso, de destruição do futuro, começa a aparecer nesse con-
texto (Pádua, 2002).
As observações empíricas das consequências de uma ação humana devasta-
dora, seja na Europa, seja no mundo de expansão colonial, começaram a produzir
denúncias contra o desflorestamento, a erosão dos solos, a sedimentação dos rios
etc. As pesquisas de Richard Grove (1995) demonstraram que os assentamentos
europeus no mundo tropical, incluindo o período posterior às independências, se
tornaram um espaço privilegiado para esse tipo de preocupação, na medida em
que a rápida transformação das áreas florestais em monoculturas e minas geravam
modificações ambientais “à flor da terra”, por assim dizer. Mas tais observações
empíricas não se tornariam tão “evidentes” sem modificações no plano da per-
cepção e do conhecimento. A ciência iluminista começava a falar em “sistemas
naturais” interdependentes, na importância de cada espécie para a manutenção do
todo natural, na relevância das florestas para a conservação da umidade e da saú-
de do território. Um texto publicado em 1760 pelo naturalista sueco Lineu, em
conjunto com H. Wilcke, afirmava que “a partir do que nós sabemos, é possível
julgar quão importante é cada uma das disposições da natureza, de forma que...
se uma única função importante faltasse no mundo animal, nós poderíamos temer
o maior desastre no universo” (Linné, 1972, p.118). Tais construções científicas
se somaram ao nascimento da sensibilidade pré-romântica e romântica, que es-
timulou uma nova valorização do mundo natural a partir da estética do sublime
(Pádua, 2005).
Não se trata, por certo, de traçar uma linha direta entre a crítica ambiental
que começava a aparecer nos séculos XVIII e XIX, utilizando categorias e vocabu-
lários próprios da época, e o fenômeno do ambientalismo contemporâneo. Não
é o caso de buscar “precursores”. Mas sim de analisar um movimento histórico
mais amplo e difuso: a construção da sensibilidade ecológica no universo da mo-
dernidade. De toda forma, o ponto fundamental, no contexto do presente artigo,
é observar como naquele caldo de cultura, aqui apresentado de forma muito bre-
ve, começaram a aparecer reflexões históricas sobre as consequências ambientais
do agir humano. Tais reflexões, aliás, vão ter uma presença mais marcante nos
ensaios de naturalistas e pensadores políticos do que nos trabalhos das primeiras
academias de história, muito voltados para a trajetória de grandes personagens e
Estados nacionais. Um marco frequentemente mencionado foi o livro Man and

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nature or physical geography as modified by human action do diplomata norte-ame-
ricano George Perkins Marsh (1965), publicado em 1864. Esse trabalho, bastante
concentrado no contexto europeu e mediterrânico, procurava passar em revista
as transformações provocadas pela ação humana, desde a Antiguidade, na flora e
na fauna, nas florestas, nas águas e nas areias, tendo como eixo central a denúncia
da destruição. Nas palavras sugestivas do autor, estávamos “quebrando o piso, as
vigas, as portas e as janelas do nosso lugar de moradia” (Marsh, 1965, p.52).
É possível encontrar exemplos interessantes desse tipo de percepção no con-
texto cultural brasileiro, mesmo em momentos anteriores ao de Marsh. José Bo-
nifácio de Andrada e Silva (1991, p.172), por exemplo, ao escrever em 1815 sobre
o problema da perda de bosques em Portugal, adotou uma perspectiva histórica
ampla para afirmar que
todos os que conhecem por estudo a grande influência dos bosques e arvoredos
na economia geral da natureza sabem que os países que perderam suas matas es-
tão quase de todo estéreis e sem gente. Assim sucedeu a Síria, Fenícia, Palestina,
Chipre, e outras terras, e vai sucedendo ao nosso Portugal.
A visão de que a forte aridez e desertificação de algumas regiões do Orien-
te Médio foi, ao menos em grande parte, produzida pela ação humana na longa
duração vem sendo corroborada por pesquisas recentes no campo da história am-
biental. Algo semelhante pode ser dito do território da Líbia, antigo fornecedor
de grãos para Roma. O avanço do deserto foi impulsionado por práticas agrícolas
destrutivas (Hughes, 1981). É interessante observar que mais tarde, já de volta
ao Brasil e no contexto pós-independência, José Bonifácio de A. e Silva (1973,
p.103) retomou a leitura histórica dos problemas ambientais ao defender que a
continuidade de uma agricultura escravista e tecnologicamente rudimentar aca-
baria por transformar “o nosso belo Brasil”, em “menos de dois séculos”, nos
“paramos e desertos áridos da Líbia”.
O ponto essencial, portanto, não estava na mera constatação de exemplos
históricos relativamente distantes, mas sim na possibilidade de sua replicação onde
quer que se adotem padrões semelhantes de uso destrutivo da terra. Um raciocí-
nio parecido, para buscar outro exemplo, será feito, em 1860, pelo jurista cearense
Tomás Pompeu de Sousa Brasil (1860). Ao discutir o problema das secas na re-
gião, ele adotou o mesmo enfoque histórico de grande amplitude:
a história aí está apresentando tristes documentos da verdade desta lei eterna, de
que o país mais fértil, abundante e rico pode ser convertido em charneca estéril
e solidão inabitável se a imprudência humana o desguarnecer das matas que
fazem a condição da sua uberdade e a benignidade do seu clima.
Era o caso, entre vários exemplos por ele citados, da destruição das matas
do Atlas, na Berbéria, que “arruinaram a África do Norte, antigamente o celeiro
da Itália”. O mesmo se dava no contexto da história local, pois
se compulsassem os documentos que existem sobre o estado físico do Brasil no
tempo de sua descoberta, no século XVI, e nas diversas épocas da sua história, e

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até pela simples comparação das porções do seu território aplicadas à cultura do
açúcar com as que se desenvolveu a do algodão, poder-se-ia provar a influência
que exerce a ação do homem sobre o clima das terras que habita, e demonstrar
a verdade deste princípio enunciado há quarenta anos por Fourier, que a atmos-
fera é um campo suscetível de cultura. (ibidem, p.64, 88)
Não é o caso de afirmar que esses autores estavam praticando uma histo-
riografia “ambiental”. Mas uma percepção histórica sobre processos de mudança
ambiental, produzidos por uma interação entre fatores humanos e naturais, estava
sendo claramente delineada. Muitos outros exemplos poderiam ser buscados, den-
tro e fora do Brasil. Variações relacionadas com a mudança epistemológica mais
ampla que foi mencionada antes: o juízo de que a ação humana pode interferir no
meio natural, até mesmo provocando desastres. Um juízo que, obviamente, con-
tinuou se difundindo nos séculos seguintes, atingindo uma presença inédita no
tempo presente. A história ambiental emergente no final do século XX, no entan-
to, é bem mais complexa do que um inventário diacrônico dos males infringidos
pelos seres humanos ao planeta. Ela incorpora outras transformações teóricas que
merecem ser discutidas com destaque, até mesmo por desconstruírem a imagem
fortemente dualista presente na frase anterior.
Natureza e humanidade como movimento e transformação
O conceito grego de Physis, depois traduzido para o latim como Natura,
está ligado à imagem de nascer, surgir, manifestar. A palavra “natureza”, segundo
Raymond Williams (1983, p.219), é “provavelmente a mais complexa da lingua-
gem humana, uma palavra que carrega, através de um longo período, muitas das
maiores variações do pensamento humano”. Sua definição clássica, sintetizada por
Aristóteles, é um exemplo de combinação entre simplicidade e poder conceitual,
apesar de fundada em um forte dualismo. As coisas naturais seriam aquelas que
existem por si mesmas, no sentido de possuir em si mesmas o princípio do seu
movimento e repouso. Elas incluem matérias, configurações e formas que se apre-
sentam à percepção humana como natureza (Aristóteles, 2002, p.59, 61).
Quando o observador humano contempla a realidade da existência, percebe
que a esmagadora maioria das coisas que existem, incluindo os fundamentos do
edifício material que permite que elas existam, não são criações humanas. Ou seja,
para o observador humano elas existem por si mesmas, em termos tanto de ma-
terialidade quanto de organização. As espirais das galáxias, o Sol, a Lua, a textura
das plantas, os ciclos da água, a fisiologia dos organismos – incluindo, por certo, o
nosso próprio corpo mamífero e primata –, nada disso é criação humana, ao me-
nos em sentido primário. Sua existência, sua forma e seu movimento não surgiram
a partir do nosso arbítrio.
O espanto da palavra Natureza está em unificar conceitualmente as incon-
táveis manifestações de uma realidade extremamente complexa e diversificada,
produzindo uma aproximação entre o mais distante e o mais próximo, do Big
Bang ao gato da casa. Na história do pensamento ocidental, ela veio assumindo

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um sentido cada vez mais vasto e inclusivo. Não apenas o conjunto das coisas e
movimentos naturais, mas também o caráter e a qualidade essencial de cada coisa
e, em um sentido ainda mais amplo, a força inerente que dirige o universo (Willia-
ms, 1983, p.219).
Para o entendimento humano, se é que se pode falar de forma tão genera-
lizada, o conceito de Natureza apresenta uma clara ambiguidade, que passou por
várias metamorfoses ao longo da história. De um lado, a ideia de natureza serve
como uma espécie de eixo conceitual que dá sentido ao nosso entendimento do
universo. Ela fundamenta a construção conceitual da experiência de que existe
coerência ontológica no mundo em que vivemos. Por sua vez, a imagem de ser
humano e de história humana se construiu em grande parte por oposição à natu-
reza: arte versus natureza; ordem social versus natureza; técnica versus natureza;
espírito versus natureza etc. Em outras palavras, um conjunto de oposições que
procuram demarcar, por diferenciação ou por identificação, a especificidade do
fenômeno humano em relação à natureza (seja afirmando uma oposição e ruptura
radical entre ambos, seja entendendo o humano como uma qualificação especial
no contexto do mundo natural).
Esse quadro, aqui apresentado de forma extremamente introdutória, tor-
nou-se ainda mais complicado mediante duas mudanças epistemológicas que vêm
revolucionando o nosso entendimento da natureza e possuem implicações evi-
dentes para a história ambiental. A primeira delas se refere a uma enorme rup-
tura dos antigos marcos cronológicos. Vale lembrar, com Keith Thomas (2001,
p.201), que no século XVIII a cronologia bíblica, ao menos da forma como era
interpretada nos meios eclesiásticos, começou a sofrer fortes abalos. O naturalista
francês Buffon foi capaz de imaginar que a Terra já existia “uns 70 mil anos” antes
do aparecimento do homem. Um pouco depois, por volta das primeiras décadas
do século XIX, os geólogos já pensavam o planeta na escala dos milhões, não dos
milhares, de anos. Ora, esses números servem mais que tudo para dimensionar a
magnitude da revolução que está sendo mencionada. Hoje se trabalha com uma
história geológica de 4,5 bilhões, assim como com uma história biológica, desde o
aparecimento da vida na Terra, de 3,5 bilhões de anos. Mais ainda, trabalha-se com
uma história cósmica, a partir do chamado Big Bang, de 13,7 bilhões de anos, que
teria resultado, segundo estimativas recentes, na existência de mais de 100 bilhões
de galáxias, cada uma delas contendo entre 100 e 200 bilhões de estrelas. As ciên-
cias físicas e naturais não cessam de explodir seus limites, gerando uma profunda
mudança nos modos de entendimento do mundo. Para ficar apenas no nosso
campo de experiência imediata, o planeta Terra se revela cada vez mais como uma
realidade antiga, poderosa e diversificada, que já sofreu gigantescas transformações
biofísicas ao longo de sua trajetória. Por ele já passaram inúmeras formas de vida,
das quais a espécie humana é uma das mais recentes (Christian, 2003).
É irônico observar que, nesse contexto intelectual revolucionário, os mode-
los dominantes de pesquisa e o ensino da História insistem em se manter, quando

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muito, no que até o século XIX, e ainda hoje em alguns círculos fundamentalistas,
pode ser definido como “tempo bíblico” da história (um horizonte de seis mil
anos). A compreensível tradição de centralidade dos documentos escritos, forte-
mente ligados aos estratos urbanos da experiência histórica da humanidade, não
pode mais servir como desculpa para uma atitude tão conservadora. A antropolo-
gia biológica está situando a emergência da atual espécie humana (Homo sapiens)
na escala dos 200 mil anos. O fenômeno humano, contudo, de difícil definição,
talvez possa ser retrocedido para mais de dois milhões de anos antes do presente,
com a emergência do Homo habilis na África Central. A história humana antes do
aparecimento das primeiras civilizações dotadas de escrita, exatamente o contexto
do “tempo bíblico”, é de longuíssima duração. Não é mais possível pensar a emer-
gência física, mental e social dos seres humanos – passando por transformações tão
radicais como a adoção da agricultura e da sedentarização, por volta de onze mil
anos atrás – através da nebulosa da “pré-história”.
A revolução cronológica nas ciências naturais produziu grande impacto
epistemológico nos historiadores ambientais, que vêm buscando metodologias
que permitam investigar a história humana em um marco temporal mais amplo.
Ou seja, a repensar o lugar do ser humano no quadro mais amplo da história do
planeta. Não se trata, por certo, de sempre trabalhar na longuíssima duração.
Pode-se fazer história ambiental de períodos relativamente curtos. Mas sempre
tendo em mente, ao menos como pano de fundo, a presença de grandes escalas
na constituição dos fenômenos que estão sendo analisados. Seja no aspecto natu-
ral – com as realidades biofísicas de cada região demarcada para um trabalho de
pesquisa –, seja no da formação de populações e sociedades humanas que nela e
com ela interagem.
A explosão cronológica vem sendo acompanhada por uma outra mudança
epistemológica ainda mais instigante para o diálogo entre ciências sociais e ciên-
cias naturais. A natureza se apresenta cada vez mais como algo em permanente
construção e reconstrução ao longo do tempo, distante da visão tradicional de
uma realidade pronta e acabada, que serviria de referencial estável para a agitação
do viver humano. Poder-se-ia usar a imagem de uma peça de teatro, em que o ce-
nário serve de contexto passivo para o dinamismo contido na movimentação dos
atores. A partir de certo momento, porém, o cenário começa a se movimentar e a
se modificar de maneira intensa e surpreendente, forçando o reconhecimento da
sua presença ativa. A peça passa a ser uma interação entre os movimentos do ce-
nário e os movimentos dos atores. A diferença, em relação ao contexto científico
contemporâneo, é que o cenário sempre esteve em movimento, tendo a mudança
ocorrido na percepção subjetiva dos atores.
William McNeill (2001), um dos decanos da world history norte-americana,
escrevendo sobre as relações entre história e teoria evolucionista, descreveu, com
certa ironia, sua experiência pessoal diante das transformações epistemológicas
recentes nas ciências naturais, incluindo os diversos ramos da física. Segundo o

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autor, no período da sua formação intelectual, na década de 1930, elas ainda
pareciam sólidas e duras em sua fundamentação teórica e capacidade de predi-
ção, enquanto as ciências sociais, especialmente a história, eram fracas e tateantes
em suas conclusões. Na virada do milênio, o conjunto das ciências naturais vem
assumindo posições cada vez mais abertas e soft, em vez de hard, produzindo a
imagem de um universo
dinâmico, histórico, ocasionalmente caótico, no qual mudanças extraordinárias
de estado acontecem de maneira imperfeitamente previsível, e o papel do obser-
vador em moldar o que é observado se torna tão presente quanto a subjetivida-
de que sempre marcou a história e as ciências sociais.
A perspectiva da história, nesse sentido, vem crescendo no conjunto das
ciências, “compartilhando perplexidades e limitações”. Nesse contexto, a difusão
da “visão de mundo evolucionária” produz uma “convergência entre as histórias
cósmica, terrestre, biológica e humana – todas fazendo parte de uma totalidade
em permanente transformação” (ibidem, p.2).
Em outras palavras, as formações da natureza estão sendo entendidas como
configurações momentâneas de uma história de mudanças ao longo do tempo,
cujo destino final é desconhecido, mesmo que muitas vezes elas pareçam infini-
tamente sólidas na sua temporalidade específica, por existirem numa escala muito
superior ao do limitado “tempo social” humano.
Existe uma história bastante complexa na construção dessa mudança episte-
mológica, cujos diferentes aspectos não poderiam ser elucidados no âmbito de um
artigo.3 Em linhas gerais, ela passa pela transformação da ideia de história natural
– de uma descrição organizada do mundo vivo, segundo a tradição clássica, para
a visão da própria natureza como história. A difusão da tese darwiniana no século
XIX foi um passo fundamental, acabando por influenciar o conjunto das ciências.
Em certos aspectos, de fato, ela apresentou uma leitura radicalmente histórica e
aberta da formação dos seres vivos, além de explicitar o tema, até hoje difícil, da
animalidade da espécie humana. A árvore da evolução seria uma construção dos
próprios seres vivos que, em sua luta pela existência em ambientes específicos, se
ramificariam ou não em novas formas de vida. Um conjunto de pequenas variações
na vida concreta, portanto, em vez de uma razão subjacente e superior, estaria na
base dessa vasta construção biológica (Norris, 1985, p.26). Nessa perspectiva, o
próprio conceito de natureza poderia ser visto como quase metafórico. Em uma
passagem da Origem das espécies, de 1859, Darwin (1958, p.88) chegou a afirmar
que “é difícil evitar a personificação da palavra Natureza; mas por Natureza eu
entendo apenas a ação agregada e o produto de muitas leis naturais, e por leis a
sequência dos eventos tais quais atestados por nós”.
É importante observar, no entanto, que o entendimento das implicações
científicas e sociais da obra de Darwin nunca foi homogêneo. Desde o início, fo-
ram feitas leituras bem mais fechadas e dogmáticas da tese darwiniana, até mesmo
valendo-se de passagens igualmente mais fechadas dos seus próprios escritos, que

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não deixaram de pagar tributo aos preconceitos do seu tempo (ainda mais em se
tratando da Inglaterra imperial e vitoriana). O evolucionismo foi usado posterior-
mente como fundamentação para reducionismos, determinismos e racismos, até
mesmo por meio da ideia vulgar de que as formas biológicas se tornam superiores
ao longo de uma escala de tempo (uma imagem que pode ser considerada incom-
patível com o caráter aberto da tese darwiniana original).4
O século XX, porém, testemunhou o aparecimento de novas formulações
teóricas, ainda mais surpreendentes, que contribuíram para consolidar a ideia da
irreversibilidade e da seta do tempo, poder-se-ia mesmo dizer “da história”, como
um componente fundamental no entendimento da Natureza. Um marco radical
nesse sentido está na visão muito recente, formulada com mais propriedade a
partir da década de 1940, de que o próprio universo – antes visto como o bastião
último da firmeza e solidez da natureza – se manifesta mediante um processo de
expansão e de transformação permanente.
Tudo isso tem implicações teóricas profundas para um problema frequente-
mente lembrado quando se fala de história ambiental: a ameaça do determinismo
geográfico ou ecológico. Ora, a longa tradição que fala das determinações da
natureza, especialmente do clima, sobre a vida social, calcava-se exatamente em
visões fixas e definidas das suas manifestações. Desde as primeiras formulações de
Hipócrates no século V a.C. – que no livro Ares, águas e lugares atribuiu a superio-
ridade do modo de vida europeu em relação ao asiático à influência das condições
naturais –, o pano de fundo do determinismo baseou-se na presunção de uma
firme estabilidade dessas condições (Arnold, 1996, p.15). Ocorre que a meteo-
rologia contemporânea, com seu enfoque historicizante e suas investigações de
longa duração, revela que o clima de cada região sofre grandes variações no curto
e no longo prazo. O mesmo pode ser dito da vegetação e de outros componentes
do mundo natural.
Dito de outra maneira, ao dialogar hoje com as ciências naturais, a his-
tória ambiental se situa em um contexto teórico muito diferente daquele que
alimentou as formulações deterministas do passado. Sem falar na herança teórica
de toda a crítica interna produzida nas ciências sociais em relação aos riscos dos
reducionismos geográfico, biológico etc. As ciências naturais adquiriram maior
sofisticação teórica, calcando-se em finas metodologias ecológicas, radicalmente
abertas e interativas. Os sistemas naturais se auto-organizam por meio da constan-
te interação entre todos os seus elementos, bióticos e abióticos. O caminho é feito
ao andar (para lembrar o belo verso de Antonio Machado). As consequências de
tal interação, por sua vez, são abertas, podendo, no limite, levar ao colapso, ou
então à emergência de formas mais resilientes de organização. A presença do caos,
do acaso e da contingência ganha força nas análises. A própria ideia de “adap-
tação” vem sendo questionada por sua rigidez analítica, com o fortalecimento
de conceitos como “coevolução” e “mútua construção de nichos”, entre outros
(Jantsch, 1980; Maturana & Varela, 1987; Prigogine & Stengers, 1985). A visão

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de uma natureza em permanente movimento e transformação ao longo do tem-
po, obviamente, não favorece a capacidade de persuasão de teorias deterministas
(mesmo que elas ainda possam existir nos quadros do grande politeísmo teórico
da atualidade). É nesse ambiente teórico renovado, na virada do século XX para
o XXI, que a história ambiental procura repensar, na definição de Elinor Melville
e Guillermo Castro, “as interações entre os sistemas sociais e os sistemas naturais,
e as consequências dessas interações para ambas as partes, ao longo do tempo”
(Castro, 2007).
Natureza e cultura na experiência histórica:
por uma visão menos dualista
O aparecimento da história ambiental consciente de si mesma está ligado a
uma ausência da dimensão biofísica em boa parte da historiografia contemporânea.
Ainda existe, de fato, uma presença muito forte do enfoque que já foi chamado
de “flutuante”, no sentido de a humanidade flutuar acima do planeta, como se os
seres humanos não fossem animais mamíferos e primatas, seres que respiram e que
precisam cotidianamente se alimentar de elementos minerais e biológicos existen-
tes na Terra. Como se não fossem, em verdade, seres que, mais do que estabelecer
“contatos” pontuais, vivem por meio do mundo natural, dependendo dos fluxos
de matéria e energia que garantem a reprodução da atmosfera, da hidrosfera, da
biosfera, e assim por diante. Mesmo que, na sutil observação de Alfred Crosby
(1995, p.1177), a presença dos humanos nos ecossistemas ocorra na maior parte
das vezes de maneira “distraída”. O reconhecimento desse fato, contudo, seria
simplório e vulgar se não reconhecesse também as outras dimensões do fenômeno
humano, incluindo a realidade de que o ser humano histórico está tão inescapavel-
mente imerso na cultura e na linguagem quanto na ecosfera terrestre.
Em um texto de 1944, comentando o livro Les bases biologiques de la géogra-
phie humaine, de Maximilien Sorre, Fernand Braudel (1992, p.144, 151) discutiu
o exercício fascinante de pensar o homem em sua simples materialidade animal,
em sua condição de “homeotermo de pele nua”, em seu
lado elementar de ser biológico, sensível ao quente, ao vento, ao frio, à seca, à
insolação, à insuficiente pressão das altitudes, ocupado incessantemente em pro-
curar e em assegurar sua alimentação, obrigado a defender-se enfim, sobretudo
hoje em que se tornou consciente do perigo, contra as doenças que o seguem
por toda parte.
Um tipo ideal que nos desafia, por apresentar um aspecto fundamental e
tantas vezes esquecido, voluntária ou involuntariamente, da realidade humana.
Mas um aspecto que não é suficiente, que não conta a história completa. Pois o
ser humano, visto dessa maneira, é uma abstração que ignora “o homem na sua
complexidade – em toda a espessura de sua história, em toda a sua coesão social”
(ibidem).
O grande desafio teórico, no contexto da contemporaneidade, é pensar o
ser humano na totalidade tensa e complexa de suas dimensões biológica e socio-

estudos avançados 24 (68), 2010 91


cultural. Um desafio mantido na obscuridade pela dominância do enfoque flutu-
ante na historiografia. Se bem que tal dominância, até pelo fato de a historiografia
não ser um bloco homogêneo, não deve ser exagerada. Alguns historiadores fo-
ram capazes de produzir, ao longo do século XX, mesmo no Brasil, análises que
incorporaram os fatores biofísicos no coração da análise histórica e que hoje estão
sendo recuperadas na genealogia da história ambiental.
O presente artigo não pretende fazer uma história da historiografia ambien-
tal. Mas, de maneira muito introdutória, no período anterior à década de 1970,
podem-se mencionar algumas áreas que estimularam reflexões de base ambiental:
a historiografia de regiões, como no caso de Nordeste, de Gilberto Freyre, e de O
Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, de Fernand Braudel,
e a historiografia da formação de fronteiras de expansão territorial, como no caso
de The great plains, de Walter Prescott Webb, Caminhos e fronteiras, de Sérgio
Buarque de Holanda, e The grassland of North América, de James Malin. Al-
guns outros trabalhos da diversificada produção da Escola dos Analles francesa são
sempre mencionados, especialmente La Terre et l’évolution humaine, de Lucien
Febvre, Les caracteres originaux de l’histoire rurale française, de Marc Bloch, e
Histoire du climat depuis l’An Mil, de Emmanuel Le Roy Ladurie. Grove & Da-
modaran (2009) chamaram a atenção para a necessidade de ir além da produção
especificamente historiográfica, mencionando a relevância de geógrafos históri-
cos do século XX, como Carl Sauer, H. C. Darby e Gordon East, na construção
de um diálogo fecundo entre história e ecologia. Um seminário interdisciplinar
ocorrido na Universidade de Chicago, em 1955, também marcou época, dando
origem ao volume coletivo Man’s role in changing the face of the Earth, organiza-
do por William Thomas Jr.
Apesar desses esforços, porém, a dominância do enfoque flutuante não
pode ser negada. Em parte ela se constituiu como reação à forte presença do de-
terminismo geográfico e biológico no pensamento social da passagem do século
XIX para o XX. Pode-se dizer que os cientistas sociais do período posterior, muitas
vezes, não se deram conta das fortes mudanças epistemológicas pelas quais pas-
savam as ciências naturais e sua compreensão do seja a natureza. É preciso levar
em conta, além disso, a robusta elaboração teórica culturalista que ganhou força
no conjunto das ciências sociais, sem nunca obscurecer totalmente os enfoques
mais radicalmente materialistas. No campo da antropologia, como afirmou, com
certa ironia, Walter Neves (1996, p.13), os eixos da “antropologia da barriga” e
da “antropologia da pensée”, que também poderíamos chamar da pança e do pen-
samento, seguiram trajetórias paralelas e muitas vezes conflituosas.
A experiência de muitos historiadores que hoje trabalham com a dimen-
são ambiental, compartilhada por antropólogos, economistas e demais cientistas
sociais que adotam o mesmo enfoque, é justamente a da necessidade de buscar
formas menos dualistas de estudo das relações entre cultura e natureza (já que o
não dualismo é um tipo ideal de realização analítica quase utópica). As pesquisas

92 estudos avançados 24 (68), 2010


de campo e as transformações na vida social contemporânea estimulam a busca
por essas novas perspectivas. Como afirmou Eduardo Viveiros de Castro (2002,
p.320), refletindo sobre a questão da Amazônia,
essas novas imagens da natureza e da sociedade se formam em um contexto
histórico marcado pela sinergia entre abordagens estruturais e históricas, por
uma tentativa de superação de modelos explicativos monocausais (naturalistas
ou culturalistas) em favor de uma apreensão mais nuançada das relações entre
sociedade e natureza.
Elas indicam, além disso, a esperança de uma “nova síntese”, que seja capaz
de “vir integrar o conhecimento acumulado pelas diversas disciplinas” (ibidem).
A busca por essa “apreensão mais nuançada” requer o reconhecimento do
sentido profundo do culturalismo. A literatura teórica em história ambiental vem
chamando atenção para a necessidade de, ao enfatizar a relevância do mundo
biofísico, não cair na falácia de considerar que este se apresenta de forma direta,
positiva e imediata à percepção humana. O ser humano age sempre a partir de
sentidos e compreensões, estando imerso na linguagem, nos mecanismos de cog-
nição e na presença de visões culturais historicamente construídas. A apropriação
dos recursos da natureza e a valoração das paisagens, nesse sentido, possuem uma
clara historicidade (Cronon, 1996; Asdal, 2003). Basta lembrar que o ouro não
possui valor econômico universal, sendo irrelevante, por exemplo, para os grupos
indígenas que cruzavam o território da atual Serra do Espinhaço antes da chegada
dos europeus. Para estes últimos, ao contrário, sua centralidade motivou esforços
e sacrifícios consideráveis no estabelecimento da mineração colonial. As praias,
por sua vez, não são universalmente consideradas espaços de beleza e saúde. No
Brasil monárquico, de maneira geral, elas eram desprezadas pelas elites urbanas.
Não obstante esse reconhecimento, seria igualmente falacioso esquecer que o
ouro e as praias não são criações humanas em sentido primário, e que, ademais,
sem a sua existência material, também não existiriam as suas dimensões perceptiva
e cultural.
No acontecer da vida social, na vida vivida que a história procura imper-
feitamente reconstruir, todos esses elementos se encontram profundamente uni-
dos e mesclados na experiência coletiva. Uma via teórica fascinante, na busca por
leituras menos dualistas, se abre quando a ecologia da auto-organização afirma
que a tese culturalista de que os seres humanos constroem o mundo a partir da
sua percepção e da sua cultura deve ser ampliada em dois sentidos. Em primeiro
lugar, os humanos não constroem seu mundo apenas por meio do pensamento,
mas também por meio do corpo e do conjunto do organismo. O conjunto do
organismo está presente na construção da subjetividade. Em segundo lugar, algo
semelhante pode ser dito de todos os seres vivos, pelo menos a partir de certo
nível de complexidade. Todos esses seres constroem o seu mundo a partir da ex-
periência, envolvendo organismo e percepção, mesmo que o domínio da lingua-
gem e da cultura, com a amplitude e as características sintéticas observadas no ser

estudos avançados 24 (68), 2010 93


humano, não esteja presente. Cada ser constrói o seu mundo e o mundo coletivo
se constrói por meio de uma trama complexa de interações e interdependências
(Maturana & Varela, 1987).
O fio da navalha teórico, no caso das ciências sociais, está no reconhecimen-
to dessa pluralidade de dimensões naturais e culturais que de, alguma forma, se
resolvem e encontram seu sentido na prática coletiva dos seres humanos. A insis-
tência no dualismo falha em compreender as nuanças de um movimento altamen-
te dinâmico. As pesquisas de campo e as transformações sociais contemporâneas
convergem no sentido da busca de teorizações mais abertas. Cada vez se percebe
mais a presença da história humana na constituição de paisagens “naturais”. Ao
mesmo tempo, nota-se a forte diversidade das formas de percepção cultural do
mundo biofísico e de sua relação com a vida humana, seja em sentido diacrônico,
seja em sincrônico. No mundo industrial avançado, por sua vez, as novas tecno-
logias penetram nos processos da natureza de forma impensável no passado. Seja
do ponto de vista epistemológico, seja do ponto de vista político, a percepção da
unidade viva entre sistemas naturais e humanos se torna cada vez mais necessária.
Um horizonte teórico, nas palavras de dois antropólogos que estão na linha de
frente desse esforço de renovação conceitual, em que “estados e substâncias são
substituídos por processos e relações; a questão central não é mais como objetivar
sistemas fechados, mas sim como dar conta da diversidade mesma dos processos
de objetivização” (Descola & Pálsson, 1996, p.12).
É nesse contexto que a história ambiental, como bem afirmou Donald Wors-
ter (1991, p.199), deve ser vista não como uma redução, e sim como uma amplia-
ção da análise histórica. Ela leva adiante o movimento, observado desde o final do
século XIX, no sentido de expandir as temáticas e dimensões da historiografia para
além da história dos Estados e dos grandes personagens. Um movimento que se
manifestou na história econômica, na história social, na micro-história etc. Não
se trata, portanto, de reduzir a análise histórica ao biofísico, como se esse aspecto
fosse capaz de explicar todos os outros, mas de incorporá-lo de maneira forte –
junto com outras dimensões econômicas, culturais, sociais e políticas – na busca
por uma abordagem cada vez mais ampla e inclusiva de investigação histórica.
O crescimento acadêmico recente da história ambiental, ao menos em parte, se
explica exatamente por sua capacidade concreta para ampliar a análise histórica e
trazer novas perspectivas para o estudo de antigos problemas historiográficos.
Para realizar esse programa, mesmo que com as limitações sempre presentes
na escrita da história, as propostas mais fecundas têm sido aquelas que procuram
definir a história ambiental como um esforço para trabalhar analiticamente, de
forma aberta, dinâmica e interativa, três dimensões básicas que se mesclam na
experiência concreta das sociedades. Arthur McEvoy (1986), em seu estudo sobre
as indústrias pesqueiras na Califórnia, sintetizou esses três níveis por meio das pa-
lavras ecologia, relações econômicas e cognição humana. Em um artigo clássico
de 1988, publicado no Brasil em 1991, onde procurou sintetizar os principais

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elementos do “fazer história ambiental”, Worster (1991) elaborou com mais pro-
fundidade esses três níveis que, vale repetir, precisam ser percebidos em conjunto,
em suas interações mútuas e múltiplas linhas de causalidade.
O primeiro deles se relaciona com a natureza propriamente dita, orgânica
e inorgânica, incluindo o organismo humano em sua relação com os diferentes
ecossistemas. O historiador deve estar atento, nesse aspecto, às transformações
do mundo biofísico ao longo do tempo, buscando reconstituir os ambientes do
passado (que se relacionem com os lugares e períodos históricos que estão sen-
do estudados). A perspectiva interdisciplinar é aqui fundamental, já que, sem o
diálogo com as ciências físicas e naturais, tal esforço de reconstituição se tornaria
inviável. Nesse diálogo, porém, é importante perceber a historicidade e diversida-
de teórica das várias ciências, para que sua incorporação ocorra de maneira crítica
e contextual.
A leitura histórica dos fatores ecológicos, do primeiro nível que aqui está
sendo discutido, apresenta muitas nuanças interpretativas. A visão apresentada
por Fernand Braudel (1995, p.25) em 1949, por exemplo, sobre “uma história
quase imóvel, que é a do homem nas suas relações com o meio que o rodeia, uma
história lenta, de lentas transformações, muitas vezes feita de retrocessos, de ciclos
sempre recomeçados” – em contraposição à maior velocidade dos movimentos
sociais e individuais – vem sendo cada vez mais criticada. Apesar de possuir o
mérito da inclusividade, dando status de objeto histórico às montanhas, planícies,
praias e ilhas da região, ela peca pela visão excessivamente estática do biofísico em
sua interação com as ações humanas. A diversidade da pesquisa contemporânea
em história ambiental está revelando situações de ruptura, de catástrofe e de mu-
danças intensas no âmbito dessa relação, tanto na curta quanto na longa duração
(Arnold, 1996, p.44).
O segundo nível diz respeito à constituição socioeconômica das sociedades,
em sua inter-relação necessária com determinados espaços geográficos. Por influ-
ência direta de Marx, Worster utilizou o conceito de “modos de produção”, aler-
tando para a necessidade de compreendê-los mediante uma perspectiva histórica e
antropológica ampla, incluindo em sua conexão estreita com os fatores ecológicos.
A cultura material, os meios tecnológicos, a “segunda natureza” produzida pela
ação humana inserem-se nesse nível de análise. É nesse plano, também, que James
O’Connor (1997) elaborou sua leitura marxista da história ambiental, chamando
atenção para o conceito de “condições de produção” – para além das formas de
propriedade e das relações de produção – e para as contradições presentes no mo-
vimento de mercantilização imperfeita do trabalho, da terra e da natureza.
O terceiro grande nível mencionado por Worster, finalmente, diz respeito
às dimensões cognitivas, mentais e culturais da existência humana, incluindo cos-
mologias, ideologias e valores. O comportamento social dos seres humanos em
relação ao mundo natural, assim como a própria estruturação socioeconômica da
vida coletiva, passa pelas visões de natureza e dos significados da vida humana.

estudos avançados 24 (68), 2010 95


Pode-se dizer, em sentido inverso, que as manifestações culturais não ocorrem
isoladas do mundo vivo, valendo-se frequentemente de elementos da biodiversi-
dade e da experiência física no planeta ou, melhor dizendo, de lugares específicos
do planeta, na constituição da linguagem e das categorias de entendimento. Na
experiência histórica concreta, para lembrar belas palavras de Claude Lévi-Strauss
(1986, p.173), cabe
recusar o divórcio entre o inteligível e o sensível, decretado por um empirismo
e um mecanicismo fora de moda, e descobrir uma secreta harmonia entre esta
pesquisa do sentido, a que a humanidade se entrega desde que existe, e o mun-
do em que ela apareceu e onde continua a viver: um mundo feito de formas, de
cores, de texturas, de sabores, de odores.
É essencial, no entanto, evitar o anacronismo e a pretensão de que os in-
divíduos do passado possam ser cobrados em razão de categorias tão modernas
quanto são ecologia, sustentabilidade, impactos da ação humana etc. É preciso
entender cada época no seu contexto geográfico, social, tecnológico e cultural.
É evidente, como já foi dito, que a questão ambiental só vai aparecer em um
momento bastante recente da trajetória humana. Mas pode-se dizer que as re-
lações ambientais já estavam presentes, sendo percebidas, ou não, segundo os
padrões culturais de cada período. Não se trata, portanto, de projetar categorias
ambientais e ecológicas do presente no passado, mas sim de utilizar essas catego-
rias, com o devido cuidado, para pensar a existência de sociedades pretéritas. Ou
então, como na formulação de Alfred Siemens (1999), de “extrair ecologia” de
documentos do passado que, obviamente, não tinham esse sentido ou essa justi-
ficativa. Tudo se resume, na verdade, no exercício de “qualificação retrospectiva”
(Drouin, 1991, p.73) que constitui uma condição geral e um dilema da própria
análise histórica.
A história ambiental apresenta-se hoje como um campo vasto e diversificado
de pesquisa. Diferentes aspectos das interações entre sistemas sociais e sistemas
naturais são esquadrinhados anualmente por milhares de pesquisadores. A produ-
ção atual engloba tanto realidades florestais e rurais quanto urbanas e industriais,
dialogando com inúmeras questões econômicas, políticas, sociais e culturais. No
andamento concreto dessas pesquisas, vários problemas teóricos de micro, médio
e longo alcance costumam aparecer (Leibhardt, 1988). Não existiria espaço para
apresentar aqui o conjunto dessa literatura, ainda mais em se tratando de um
artigo sobre as “bases teóricas” e não sobre as “teorias” da história ambiental.5
A pesquisa em história ambiental, de toda maneira, até pelo próprio fato de ser
“ambiental”, não costuma se fazer na abstração das teorias puras, mas sim nas
contradições de lugares e experiências vividas. Na maioria das vezes, ela se dá por
meio de recortes geográficos e biofísicos concretos: uma região florestal, uma ba-
cia hidrográfica, uma cidade, uma zona agrícola etc. (Drummond, 1991, p.181).
O ponto teórico essencial, de qualquer forma, se encontra na necessidade
de combinar, de maneira aberta e interativa, os três níveis mencionados antes. É

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claro que não se trata de uma tarefa fácil.6 Existe, por exemplo, a tendência de
focalizar um nível em detrimento dos outros. Mas, de maneira geral, creio que
a história ambiental vem sendo bem-sucedida em construir metodologias que
combinem as diferentes dimensões da experiência histórica. Na introdução de um
dos livros fundadores da investigação histórico-ambiental, Le Roy Ladurie (1991,
p.15, 34) protestou contra o antropocentrismo dos primeiros historiadores do
clima, que sempre pretendiam examiná-lo em relação com a vida humana. Ocorre
que o clima poderia também ser estudado por si mesmo, como uma “história sem
homens”, na medida em que “é uma função do tempo, varia. Está sujeito a flutu-
ações. É objeto de história”. Na sequência da investigação, na medida em que sua
relação com a vida humana fosse analisada, estar-se-ia diante de uma “ecologia do
homem”, de uma verdadeira “história ecológica”.7 Em uma leitura algo diferente
da visão do historiador francês, mesmo que compreendendo o seu ponto de vista,
penso que o segundo momento é exatamente aquele em que a pesquisa histórica
se torna mais fecunda. A história ambiental, como ciência social, deve sempre
incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos siste-
mas naturais. O desafio, repetindo, é construir uma leitura aberta e interativa da
relação entre ambos.
Tal postura aberta deve significar, em sentido fundamental, o abandono da
visão catastrófica e do “homem devastador” que a voz das ruas costuma exigir.
Simon Schama (1995, p.13-4) já havia criticado o fato de a história ambiental,
apesar de “oferecer algumas das mais originais e desafiadoras histórias que hoje
estão sendo escritas”, prender-se excessivamente na análise da destruição, quando
as relações entre sociedade e natureza podiam também ser construtivas e criado-
ras, especialmente no que se refere aos vínculos culturais.
Hoje é possível observar uma mudança nesse quadro. As relações destrutivas
e/ou construtivas devem aparecer no próprio andamento da análise, sem leituras
preconcebidas ou estereotipadas. Outro ponto central se refere ao problema das
influências e determinações causais. As visões fechadas e reducionistas não mais
se sustentam. Dizer que a natureza sempre determina a vida social, ou vice-versa,
não nos leva muito longe.
O importante é permanecer atento e aberto em cada situação de pesquisa.
Em certas situações os fatores biofísicos são decisivos. Em outras a tecnologia
ou as visões de mundo podem ser decisivas. Em todas as situações, no entanto,
o biofísico, o social e o cultural estão presentes. Nos diferentes casos, o que se
percebe são sistemas abertos e que se modificam no andamento da história. Os
próprios relacionamentos entre todos os componentes da interação – onde todos
são relevantes, mesmo que em diferentes níveis – constroem, destroem e recons-
troem inúmeras formas materiais e culturais. No sentido mais profundo, o desafio
analítico é o de superar as divisões rígidas e dualistas entre natureza e sociedade,
em favor de uma leitura dinâmica e integrativa, fundada na observação do mundo
que se constrói no rio do tempo.

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Notas
1 É verdade que a expressão já vinha sendo usada ocasionalmente, em um sentido bem
distinto e estritamente técnico, por geólogos e arqueólogos. Um curso com o título de
“História ambiental”, além disso, foi dado na Universidade de Londres em 1969 por
Henry Bernstein, um historiador econômico especializado na questão da navegação a
vapor na Índia, incluindo o uso de lenha etc. (Grove & Damodaran, 2009, p.25). Mas
foi uma iniciativa isolada, sem maiores desdobramentos teóricos.
2 O ano de 1972, na esteira dos debates e das mobilizações públicas que cresciam desde
a década anterior, foi marcado pela realização da primeira Conferência das Nações Uni-
das sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo (McCormick, 1995, p.119).
3 Para uma boa análise, ver Bowler (1992).
4 Por esse motivo, alguns autores preferem usar o termo “evolucionário”, no sentido de
que as coisas nascem umas das outras a partir de movimentos concretos, diferenciando-
se da visão evolucionista vulgar de que necessariamente existe uma melhora ao longo
do tempo.
5 Para duas apresentações atualizadas da literatura contemporânea em história ambiental,
ver McNeill (2003) e Hugues (2006). Para o caso brasileiro, ver Duarte (2005).
6 Para uma leitura crítica, incluindo o ponto de vista da excessiva amplidão da proposta
dos três níveis, ver Sorlin & Warde (2007, p.112).
7 Essa última perspectiva foi plenamente assumida por Le Roy Ladurie em seus estudos
mais recentes sobre o clima, como se pode perceber no próprio título de sua obra mo-
numental, em três volumes, intitulada Histoire humaine et comparée du climat (publica-
da em Paris, pela Editora Fayard, nos anos de 2004, 2006 e 2009).

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resumo – O artigo analisa a emergência da história ambiental, como uma ciência cons-
ciente de si mesma, no contexto histórico e cultural da passagem do século XX para o
século XXI. Ele define a história ambiental como uma investigação aberta e não redu-
cionista das interações entre sistemas sociais e sistemas naturais ao longo do tempo.
Também são discutidos os fatores sociológicos e as principais questões epistemológicas
presentes na constituição desse novo campo historiográfico.
palavras-chave: História ambiental, História ecológica, Teoria da história, Diálogo in-
terdisciplinar, Concepções de Natureza.
abstract – The article analyzes the emergence of environmental history as a self-cons-
cious science in the historical and cultural context of the passage of the twentieth to the
twenty-first century. He defines environmental history as an open and non-reductive
investigation of the interactions between social systems and natural systems over time.
Also discussed are the sociological factors and the fundamental epistemological issues
present in the constitution of this new historiographical field.
keywords: Environmental history, Ecological history, Theory of history, Interdiscipli-
nary dialogue, Conceptions of Nature.

José Augusto Pádua é professor do Departamento de História da Universidade Federal


do Rio de Janeiro. É doutor em Ciência Política pelo Iuperj, com pós-doutorado em
História pela University of Oxford (Inglaterra). @ – [email protected]
Recebido em 18.2.2010 e aceito em 24.2.2010.

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