Noites Encantadas - Kim Richardson

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Noites Encantadas

AS BRUXAS DE HOLLOW
COVE, LIVRO TRÊS

KIM RICHARDSON
Este livro é uma obra de ficção. Todas as referências a eventos históricos, pessoas reais ou locais re‐
ais são usadas de forma fictícia. Outros nomes, personagens, lugares e incidentes são produto da ima‐
ginação do autor, e qualquer semelhança com eventos, locais ou pessoas reais, vivas ou mortas, é in‐
teiramente coincidência.

Noites Encantadas, As Bruxas de Hollow Cove, Livro Três


Direitos autorais © 2023 por Kim Richardson
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução
no todo ou em qualquer forma.

www.kimrichardsonbooks.com
Contents
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
O poder da magia
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Sobre A Autora
Capítulo 1

E umaesdeitavara dana por


entrada da Casa Davenport, meus olhos traçando o grão da
ta da frente. Ela dava ao lugar um brilho rico e orgânico,
e meu coração batia em supervelocidade. Minhas tias e Iris estavam alguns
passos atrás de mim, e a energia nervosa delas intensificou meu nervosismo
até que senti que poderia pular da minha pele e deixá-la empilhada no chão
como um monte de roupas descartadas.
Hoje era 31 de outubro. Era Samhain, ou Halloween, como os humanos
o chamavam, uma celebração do fim do verão e do início de um novo ano
mágico. Preparamos um grande banquete e homenageamos nossos mortos -
bruxos ou animais familiares que haviam morrido - e levamos nossa cele‐
bração pelas ruas de Hollow Cove. As festividades terminaram com uma
grande fogueira em Sandy Beach, onde cantamos e dançamos até as primei‐
ras horas da manhã.
Foi, de longe, minha comemoração bruxa favorita, mas meu coração
não estava no clima de comemoração.
Hoje foi Samhain, mas também foi meu primeiro dia nos testes de bru‐
xaria de Merlin.
Ah, que bom.
Dois meses se passaram desde que recebi minha convocação, se você
preferir, da Diretora da Divisão de Treinamento de Julgamentos de Bruxos,
Greta Trickle . Em sua breve carta, Greta afirmou que, se eu não compare‐
cesse aos testes, minha licença de Merlin seria revogada.
Que gentil da parte dela.
De acordo com a longa conversa telefônica que minha tia Dolores teve
com Greta depois de ler minha carta, minha licença de Merlin havia sido
suspensa. Greta escreveu para o Conselho Norte-Americano de Merlins, o
departamento que administra as licenças, e conseguiu - sem dúvida exage‐
rando as circunstâncias em que eu havia recebido a minha - convencer o
conselho a suspender minha licença até que eu concluísse satisfatoriamente
os testes de bruxaria.
Então aqui estava eu, dois meses depois, totalmente energizada e pronta
para começar minha mais nova aventura. Na verdade, não era bem assim. A
verdade é que eu estava muito nervosa.
De acordo com meu pequeno livro negro de linhas ley, As Linhas Ley
da América do Norte, eu teria de transferir linhas depois da quinta parada e
pegar outra linha ley para o oeste até High Peak Wilderness, Nova York -
onde quer que fosse. Pular diferentes linhas ley não era o motivo pelo qual
eu estava tremendo.
O desconhecido fez com que minhas pernas dançassem um pouco, tal‐
vez um sapateado.
Durante quase dois meses, minhas tias fizeram o possível para me trei‐
nar e me preparar para o que eu poderia esperar. Como um relógio, elas me
fizeram perguntas e testes: Ruth sobre poções, Dolores sobre linhas ley e
palavras de poder, e Beverly sobre encantamentos e glamour. Isso nunca pa‐
rava. Até mesmo a Iris participou. Ela me testou em minhas habilidades de
invocação de demônios e maldições e feitiços das trevas. Embora as tias
continuassem a lhe dizer que isso não estava nas provas, ela fingia que não
as ouvia e me ensinava mesmo assim.
E eu queria aprender. Tudo. Conhecimento era poder, e quanto mais co‐
nhecimento mágico eu tivesse, melhor seria para mim. Ou assim eu espera‐
va.
Mas a verdade é que já se passaram mais de trinta anos desde que mi‐
nhas tias passaram pelos julgamentos dos bruxos, e muita coisa pode mudar
e acontecer nesse período de tempo. Ou seja, tudo o que elas me ensinaram
poderia não ser mais válido.
Eu poderia ter respondido a Greta com um belo desenho do meu dedo
médio, mas vendo como era importante para minhas tias que eu me tornasse
uma Merlin como elas, decidi manter esse desenho na minha mesa. Ele po‐
de ser útil para outra pessoa... como Gilbert.
Ser uma Merlin significava algo. Significava respeito em nossas comu‐
nidades paranormais. Significava ocupar um cargo que poderia realmente
fazer a diferença e ajudar nosso povo. Eu queria fazer parte disso. Pela pri‐
meira vez em minha vida, senti que tinha um propósito verdadeiro, como se
tivesse sido feito para me tornar uma Merlin.
Então, eu fiz uma promessa a mim mesma. Eu passaria nos testes de
bruxaria e recuperaria minha licença de Merlin, não importa o que aconte‐
cesse.
— São quinze para as nove. Você deve ir — instruiu minha tia Dolores.
Ela estava de pé com uma mão no quadril enquanto gesticulava com a
outra, lembrando-me de uma professora. Em 5 ou 10 minutos, seu cenho
franzido e seus olhos cínicos fariam com que muitos homens fugissem.
Seus longos cabelos grisalhos estavam soltos e caíam pelas costas, dando-
lhe uma aparência mais suave. Mas você seria um tolo se a achasse suave,
mesmo antes de ela derrubá-lo com um de seus feitiços.
— Você não quer se atrasar no seu primeiro dia — disse ela
— O atraso seria catastrófico.
— O único atraso que é catastrófico é quando você está grávida — disse
Beverly, balançando os quadris e jogando o cabelo loiro para trás.
— Ou quando você tem de escolher entre dois homens. Ou três. Ou qua‐
tro homens. Isso é catastrófico. Isso não é.
Dei uma risada nervosa.
— Não vou me atrasar — respondi, imaginando se havia respondido a
Beverly ou a Dolores.
Soltando um suspiro, ajeitei a alça da minha bolsa no ombro. Eu a havia
enchido apenas com o essencial: meu sempre fiel O Manual da Bruxa, Vo‐
lume Três, meu livrinho preto As Linhas Ley da América do Norte, duas
barras energéticas, um muffin de cenoura, minha carteira e meu celular.
Falando em celular, peguei-o e olhei para ele uma última vez, meu cora‐
ção dançando quando olhei para a tela. Nenhuma chamada perdida. Nenhu‐
ma mensagem de texto nova.
Desanimada, coloquei meu telefone de volta na bolsa. Marcus estava
desaparecido há quase dois meses. Ele havia sido chamado com urgência na
Pensilvânia para ajudar em uma crise na mesma noite em que deveríamos
ter nosso primeiro encontro. Ele havia me enviado uma mensagem de texto
naquela noite, antes de partir.
Marcus: Estou indo para a Pensilvânia hoje à noite. É urgente. Darei a
você os detalhes mais tarde. Estarei de volta em algumas semanas. Descul‐
pe-me pelo jantar. Vou compensar você. Prometo. Ligo para você quando
voltar.
Eu lhe enviei uma mensagem de volta.
É melhor você. E acrescentou um emoji sorridente.
Essa foi a última mensagem de texto que recebi dele. Foi a última coisa
que recebi dele. E isso foi há quase dois meses.
Eu continuava esperançosa com o passar das semanas, mas nada. Resisti
à vontade de ligar para ele nas duas primeiras semanas. Eu não queria ser
aquela mulher que mantinha seu homem em uma rédea curta. Marcus não
era meu homem. Nem sequer tínhamos saído em um primeiro encontro. Ele
não era nada para mim. Mas depois de um mês sem ter notícias dele, decidi
ligar.
Foi direto para o correio de voz.
Marcus nunca me ligou ou mandou mensagem de volta. Eu realmente
queria aquele jantar, droga. Mas se ele estava me deixando na mão, ia levar
uma bronca na próxima vez que eu o visse.
O fato de ele não ter ligado de volta ou enviado uma mensagem de texto
para me avisar que sua viagem ia demorar um pouco mais do que o espera‐
do... doeu. Eu admito. Eu estava me apaixonando por ele, o chefe de Hol‐
low Cove. Aquele beijo tinha sido extraordinário, fazendo com que minhas
células cerebrais explodissem com o impacto.
Mas o fato de o cara não ter ligado de volta diz muito sobre ele.
Dizia que eu não era importante o suficiente para ele para merecer uma
maldita ligação telefônica.
Meu pulso acelerou ao pensar nisso e odiei a sensação que tive. Eu me
sentia estúpida por ter baixado a guarda e permitido que ele entrasse, e esta‐
va com muita raiva.
Forcei esses pensamentos sombrios a desaparecerem. Não podia perder
a calma nem me distrair. Tinha de me concentrar no que era mais importan‐
te e urgente, como passar nos julgamentos dos bruxos.
Eu precisaria de todo o meu cérebro para isso - e mais um pouco.
Meu nervosismo aumentava à medida que eu ficava ali olhando para a
porta. Olhei para a Iris por cima do ombro. Ela me deu um sorriso apertado
com seus lábios cheios, seus olhos escuros estavam cheios de entusiasmo. A
bruxa das trevas, de 32 anos, havia se instalado muito bem na Casa Daven‐
port com todas nós. Olhando para seu rosto bonito, parecido com o de uma
fada, seu cabelo preto sedoso e seu corpinho perfeito, você nunca imagina‐
ria que há apenas dois meses ela vagava por Hollow Cove como uma cabra.
O babaca do Adan a amaldiçoou para que ela ficasse quieta. Mas, com
Adan enterrado, a maldição havia sido retirada. Iris era uma bruxa nova‐
mente.
Achei que ela teria preferido voltar para a casa da família, mas ela deci‐
diu ficar conosco. Nós nos tornamos muito próximas, como irmãs, na ver‐
dade. Por ser filha única, eu sempre quis ter uma irmã, alguém em quem pu‐
desse confiar, já que minha mãe e meu pai (principalmente meu pai) estive‐
ram ausentes na maior parte da minha infância.
Ruth me entregou uma pequena sacola de papel marrom, tirando-me de
meus pensamentos.
— Aqui está. Fiz um almoço para caso você ficar com fome. Com toda
essa viagem, você pode ficar com fome. E se estiver com fome, tudo o que
você precisa fazer é comer o que está na sacola.
— Acho que ela entendeu, Einstein. —resmungou Dolores com um sor‐
riso.
Não tive coragem de dizer a ela que já havia preparado alguns lanches.
— Obrigada, Ruth. Você é muito atenciosa.
Peguei o saco de papel marrom e o coloquei na minha bolsa, não que‐
rendo que minhas tias ou Iris vissem minhas mãos trêmulas. Era a única
coisa que eu carregava. Transportar bagagem seria estranho. Como eu podia
usar as linhas ley, poderia voltar para casa depois das provas. Agradeço ao
caldeirão por isso. Não queria ficar em um hotel com um monte de estra‐
nhos, pois minha pressão arterial já estava batendo um recorde.
Ruth pegou minha mão e a apertou.
— Você vai se sair bem. Seja você mesma — incentivou ela, parecendo
ter percebido minha inquietação e nervosismo, por mais que eu tentasse es‐
conder.
Ela sorriu, com os cantos dos olhos azuis enrugados e com uma mistura
de admiração e entusiasmo. Seus cabelos brancos estavam empilhados no
alto da cabeça em um coque bagunçado preso por dois lápis.
— Esse é o problema —murmurei. — Sempre que sou eu mesma, acon‐
tece alguma besteira.
Ruth riu.
— Eu também. Isso faz parte de ser uma bruxa Davenport. É o nosso
charme.
— O diabo que é mesmo. Isso não é o meu charme — bufou Beverly,
com seu tom sensual de sempre, cheio de nervosismo.
Ela piscou para mim e acrescentou:
— Minhas curvas são.
— Você está pronta? — perguntou Dolores, com a tensão transparecen‐
do em sua voz.
— Não.
Mas que escolha eu tinha? Ou pulava a linha ley ou perdia minha licen‐
ça Merlin. Soltei um suspiro trêmulo.
— Bom. Acho que vou embora agora.
— Acabe com eles — disse Dolores, inclinando a cabeça em sinal de
despedida.
Eu sorri.
— Se você diz.
Dolores revirou os olhos.
— Você sabe o que quero dizer. Mas eu não me importaria de escolher
um caixão para Greta. Um preto... com pequenos vermes vermelhos seria
maravilhoso.
Iris deu um passo à frente.
— Gostaria de poder ir com você. — disse a Bruxa das Trevas, com os
cabelos negros balançando contra o queixo.
— Eu também.
Admito que o fato de ter a Iris comigo poderia ter ajudado um pouco no
meu nervosismo. Mas eu era uma mulher adulta. Eu podia fazer isso. Tinha
de fazer isso sozinha.
Eu inclinei a cabeça.
— Vejo você logo.
Com firmeza, concentrei minha vontade e estendi a mão para tocar a li‐
nha ley. Uma corrente vasta e estrondosa de energia mágica irradiou e me
atingiu. Senti a magia da linha ley em minha mente, fluindo com um poder
que vibrou até as solas das minhas botas. Ela passava como um enorme rio
que corria e esmagava.
Respirei fundo e, em seguida, empurrei meus pensamentos para aquele
poder. Para a linha ley.
Então, estendi a mão, agarrei a maçaneta da porta, abri a porta e pulei.
Capítulo 2

O High Peak Wilderness era exatamente o que parecia ser: um deserto gi‐
gantesco de pinheiros, carvalhos, freixos, bordo e abetos com colinas
ondulantes, lagos imensos e lagoas cintilantes.
Depois de transferir as linhas ley para o oeste, pulei na décima parada (a
mais próxima de High Peak Wilderness, Nova York, que consegui encon‐
trar) e me vi no meio de uma floresta.
Eu estava em uma colina, onde folhas vermelhas e alaranjadas cobriam
o chão aos meus pés, tendo uma visão dos arredores. Uma brisa suave e
fresca levantou os cabelos do meu rosto e fez as folhas das árvores farfalha‐
rem. As folhas restantes nas árvores eram uma explosão de cores em verme‐
lhos profundos, laranjas e amarelos. Mas elas não ficariam. Com um vento
forte, todas elas cairiam no chão.
No verão, esse lugar provavelmente era o centro dos carrapatos, sem
mencionar o enxame de mosquitos e mutucas esperando para fazer uma re‐
feição com você. No entanto, o clima frio cuidou disso - graças ao caldei‐
rão.
Os cheiros ricos de terra molhada, folhas e o aroma picante dos abetos
balsâmicos eram inebriantes. Eu adorava o outono, mas não estava aqui pa‐
ra fazer turismo, mesmo que fosse lindo. Um fim de semana aqui com Mar‐
cus teria sido ótimo, e meu coração se apertou ao pensar em mim e nele em
uma banheira quente e aconchegante em alguma cabana de madeira, longe
de todos. Só nós dois... nus em uma banheira fumegante...
Balancei a cabeça, não querendo que o chefe invadisse minha mente,
não enquanto eu estivesse em um território desconhecido. As ondas de calor
simplesmente não serviriam. Embora elas estivessem me aquecendo.
Meu olhar recaiu sobre uma estrada de terra batida que descia por entre
as árvores sempre verdes e chegava a um castelo gigante, semelhante a um
tronco. A casa de quatro andares na montanha ficava nas bordas da monta‐
nha mais baixa. Eu achava que a Davenport House era enorme, mas esse lu‐
gar era dez vezes maior.
O barulho de pneus no cascalho me alcançou e olhei por cima do ombro
para ver três ônibus da Greyhound, dois SUVs escuros e um sedã preto diri‐
gindo pela estrada de terra em direção ao castelo de toras.
Verifiquei meu celular.
— Tenho cinco minutos para chegar ao castelo ou estou ferrada.
Olhei em volta uma última vez, esperando ver outros bruxos saindo da
linha ley, mas era apenas eu ali parada com dois esquilos furiosos me en‐
chendo o saco por ter entrado em seu território.
Como nenhuma outra bruxa usava as linhas ley como meio de transpor‐
te, decidi guardar isso para mim por enquanto. Quanto menos souberem so‐
bre mim, melhor.
Com o coração aos pulos de medo e excitação, segui a fila de veículos
pela estrada de terra em ritmo acelerado. Quando cheguei ao pátio da frente,
todos já haviam saído dos ônibus e carros e se aglomeravam. Ninguém
olhou em minha direção quando me aproximei do grupo.
Diminuí o ritmo para poder ver melhor quem eu estava enfrentando, os
bruxos que estavam aqui para obter sua licença Merlin como eu.
No início, eu esperava ver jovens adultos, recém-saídos da adolescên‐
cia, e temia ser a mais velha ali. Mas não era. A multidão de rostos variava
desde os recém-saídos do ensino médio até aqueles que pareciam ter idade
das minhas tias. Alguns bruxos tinham um olhar confuso, como o de um
cervo na cabeça. Sim, como se estivesse olhando para um espelho.
Ok, não estava tão nervosa mais, mas estava claro que esses bruxos pro‐
vavelmente cresceram com magia ao seu redor. Ao contrário de mim. Eu ti‐
nha tido alguns vislumbres ao longo dos anos, mas, ainda assim, tinha mui‐
to o que aprender.
Os bruxos - um grupo de cerca de cem, com idades, sexos e etnias dife‐
rentes - marcharam até as portas da frente, que se abriram sozinhas para
deixá-las entrar, exatamente como na Casa Davenport. Talvez esse lugar
fosse tão mágico quanto.
Os bruxos eram todos muito diferentes, mas compartilhavam a mesma
expressão de olhos arregalados, nervosos, de primeiro dia de trabalho. Pro‐
vavelmente eu parecia tão assustada quanto elas. Não. Provavelmente mais.
Eu me agachei perto de um carro estacionado, fingindo procurar algo
em minha bolsa, enquanto espiava os bruxos que passavam pela enorme en‐
trada. Eu não queria estar entre os primeiros idiotas a entrar na enorme casa
na montanha, sem saber para onde ir ou o que fazer. Eu pareceria uma gran‐
de idiota. Portanto, fiquei para trás até que o último bruxo, um homem bai‐
xo e mais velho, com óculos de grau e cabelos castanhos escuros em volta
de uma calvície no topo da cabeça, subisse os degraus largos e se apressasse
a passar pelas gigantescas portas duplas de madeira.
Eu corri para frente e me esgueirei atrás dele.
Assim que cruzei a soleira da porta, eu a senti.
Magia.
E, no entanto, não era como as ondulações suaves e quentes de energia
que me percorriam sempre que eu entrava na Casa Davenport, o tipo de
energia que fazia minha pele vibrar. Não. Isso era muito mais sinistro.
Uma pulsação fria e forte começou no topo da minha cabeça e se esten‐
deu até os dedos dos pés, penetrando em cada célula do meu corpo. Não me
senti bem de forma alguma.
A melhor maneira de descrever é como se você estivesse passando por
uma máquina de raio X de corpo inteiro na alfândega do aeroporto. Senti
como se alguma força invisível estivesse me examinando para ver se eu car‐
regava algo ilegal ou perigoso em meu corpo.
— Isso foi interessante — falei, fazendo com que o bruxo mais velho à
minha frente se virasse.
— Legal, não é? — disse ele, com a voz pequena e tímida, assim como
sua aparência.
— Não é a palavra que eu usaria.
Mais como uma violação das partes do meu corpo.
— É um scanner mágico. O modelo MS 295. O melhor de sua classe.
Ele garante que você não está escondendo nenhuma maldição ilegal e sacos
de feitiços com você.
Ele levantou os óculos com o dedo indicador.
— Uau. Você é alta.
Fiquei olhando para o bruxinho.
— Há alguém idiota o suficiente para trazer maldições e sacos de feiti‐
ços consigo?
Ele sorriu.
— Sim, muitas vezes. Bem, no ano passado, um bruxo passou pelo
scanner de bruxos com um saco de feitiços - um modelo mais antigo - e
conseguiu ficar a um palmo da diretora antes que a velha bruxa sentisse o
saco de feitiços e o imobilizasse. Ela sofreu mais de duzentos atentados
contra sua vida nos últimos vinte anos.
— Sério?
Eu não fiquei surpresa por alguém querer matar Greta. Só fiquei surpre‐
sa por ainda não ter funcionado.
Eu me afastei um pouco mais da soleira da porta e senti aquela pulsação
horrível diminuir até desaparecer.
— Você esteve aqui no ano passado? Olhei para além dele, para o últi‐
mo grupo de bruxos que desapareceu por outra grande abertura à esquerda
da entrada.
— Sim — disse ele e exalou.
A tensão em sua voz atraiu meus olhos de volta para ele. A angústia
transpareceu em suas feições.
— Esta será a minha décima terceira vez tentando obter minha licença
de Merlin.
Ele esfregou a nuca e a borda de suas orelhas ficou vermelha.
— Sorte número treze, certo?
Ele riu. A ansiedade em sua voz era tão forte que eu praticamente podia
senti-la roçando em meu rosto.
Um nó se formou em minhas entranhas. Ou esse bruxo era muito ruim,
ou as provas eram terrivelmente difíceis. Fiquei olhando para ele novamen‐
te, meus olhos se movendo de seus sapatos de couro desgastados e calças
cáqui simples para sua camisa verde desbotada. Ele parecia mais um profes‐
sor de meio período com dificuldades do que um bruxo bem-sucedido.
— O que acontecerá se você não for aprovado este ano? Você poderá fa‐
zer o exame novamente?
Era estranhamente reconfortante saber que, se eu fosse reprovada, sem‐
pre poderia fazer o exame novamente, como se fosse um teste de carteira de
motorista. Mas treze vezes parecia um pouco exagerado. Sem mencionar
que minhas tias ficariam mortificadas se eu fosse reprovada, visto que elas
já haviam me elevado a Merlin. Elas esperavam que eu passasse. Falhar não
era uma opção.
O rosto do bruxo ficou vermelho como beterraba.
— Infelizmente, esta será a minha última vez — disse ele, mudando de
um pé para o outro.
— Se eu não passar desta vez... é isso. Estou acabado. Não terei direito
a outra tentativa. Treze anos é o limite.
Ele parecia tão patético e triste que eu queria ir até ele e abraçá-lo, mas
isso seria totalmente inadequado. Eu não era muito de abraçar, embora sen‐
tisse pena do cara. Pela angústia que distorcia suas feições, eu sabia que es‐
sa era a coisa mais importante em sua vida no momento. Talvez ele também
tivesse membros da família esperando por ele.
Forcei meu rosto a sorrir.
— Tenho certeza de que você se sairá bem. Quero dizer... você tem doze
anos de experiência — eu disse a ele, imaginando se ele poderia me dar al‐
gumas dicas.
— Isso deve ser bom para alguma coisa. Você deve ser bom em alguma
coisa, certo?
A bruxa deu de ombros.
— Não sei. Talvez você saiba. A propósito, eu me chamo Willis.
Ele estendeu a mão.
Eu a sacudi.
— Tessa.
O rosto de Willis se iluminou.
— Ei... você acha que podemos nos sentar juntos? Não conheço nin‐
guém aqui.
O som de vozes se fez ouvir e levantei a cabeça em direção à abertura
onde vi o último dos bruxos desaparecer. Reconheci aquela voz. Era a de
Greta.
Eu me enrijeci, com a pulsação acelerada.
— Merda. Eles começaram.
Coloquei minha bolsa no ombro e passei por Willis.
— Ei! Espere! — ele chamou, mas eu não olhei para trás enquanto pas‐
sava apressadamente pelas portas e entrava no que parecia ser uma grande
sala semelhante a um teatro, com fileiras de assentos cinza com runas e si‐
gilos vermelhos e amarelos gravados no tecido. Um palco ficava na extre‐
midade mais distante.
Eu me escondi em uma fileira do fundo e me sentei. Não queria ser rude
com Willis, mas não estava aqui para fazer amigos. Por sorte, o bruxo mais
velho passou por mim, foi até uma das primeiras fileiras e se sentou. O
cheiro de terra e agulhas de pinheiro se espalhava pelo ar. A magia das cer‐
ca de cem bruxos vibrava no ar e em mim. Uau. Acho que nunca tinha esta‐
do em um lugar cercado por tantos bruxos. Era como se um rádio tivesse si‐
do ligado dentro da minha cabeça, passando pelos diferentes canais para
que eu ouvisse centenas de vozes - magia - de uma só vez. Eu não podia ter
certeza, mas parecia que tudo era magia branca.
Meus olhos se moveram para a frente do palco e se fixaram em Greta.
Sua pele pálida caía ao longo de seu rosto, seus olhos escuros mal eram vi‐
síveis sob as camadas de rugas. Seu cabelo branco foi cortado tão curto que
ela estava quase careca. Ela podia parecer uma bruxa de cem anos, mas era
alta, orgulhosa e forte. Na última vez que a vi, ela usava um vestido de seda
branca. Hoje, um elegante terno de saia escura envolvia seu corpo magro e
combinava com sapatos baixos. Ela parecia uma advogada experiente. Não
tenho certeza se gostei mais desse visual.
— ...novos e alguns rostos familiares entre vocês, — disse Greta, sua
voz magicamente ampliada sem um microfone.
Seus olhos escuros percorreram as fileiras de bruxos e se fixaram em
mim. Fiquei quieta quando a bruxa mais velha franziu a testa. Ela claramen‐
te não estava feliz em me ver, como se não esperasse que eu aparecesse.
Greta mastigou o lábio por um minuto, olhando para trás e para frente
entre alguns outros bruxos.
— Para aqueles de vocês que não sabem o que os julgamentos de bru‐
xos implicam, embora eu imagine que os mais inteligentes deste grupo já
tenham pesquisado.
Pesquisa?
— Você está brincando comigo? — sussurrei, e os olhos escuros de
Greta se voltaram para mim como se ela tivesse me ouvido.
Ah, droga.
— Os Merlins são os profissionais mais respeitados e celebrados de
nosso mundo na comunidade bruxa — continuou a velha bruxa.
— Ser um Merlin impõe respeito. Os Merlins são admirados. São tidos
na mais alta estima. Seus colegas o admiram e querem ser como você. Isso
não é algo que você deva fazer de ânimo leve.
Ela hesitou, como se estivesse esperando para obter a atenção total de
todos antes de continuar.
— Apenas dez por cento de vocês passarão — acrescentou com um leve
sorriso, e uma cacofonia de desaprovação e vozes em pânico se espalhou
pelo teatro como uma rajada de vento furiosa.
— Porque... os julgamentos de bruxos selecionam apenas os melhores.
E somente os melhores bruxos podem ser Merlins.
Olhei para Willis e vi sua cabeça baixar. Meu estômago caiu em algum
lugar ao redor dos dedos dos pés.
Greta andou pelo palco, surpreendentemente rápida e constante para al‐
guém de sua idade.
— As provas consistem em três concentrações principais.
Ela levantou a mão e fez um gesto com os dedos.
— Magia Defensiva, Habilidades Operacionais e Exercícios de Caso.
Três provas separadas testarão cada concentração. Esse programa oferece
aos Merlins treinamento especializado em análise de inteligência, o estudo
da inteligência mágica. O olhar de Greta percorreu as fileiras de bruxos.
— Meu programa é o melhor. E somente os melhores... conseguirão.
— Você já disse isso — murmurei, com uma sensação ruim no estôma‐
go.
— Sendo assim — continuou Greta, — o primeiro julgamento de vocês
começará em 1º de dezembro, às 8 horas em ponto.
Observei Willis anotando essas informações em um bloco de papel. Um
sorriso estranho e perverso se espalhou pelas dobras das rugas em seu rosto.
— Se você for reprovado em duas das provas... você será reprovado em
todas as provas — disse ela, com a voz cheia de um prazer perverso, como
se sentisse prazer no fracasso dos outros.
— Adorável — resmunguei e engoli. Minhas tias haviam se esquecido
de mencionar essa parte. Meus nervos começaram uma partida de pingue-
pongue dentro do meu peito. Isso era pior do que eu esperava. Muito pior. A
única coisa boa era que, aparentemente, eu tinha um mês para me preparar
para o primeiro julgamento. Isso soou bem para mim. Eu tinha trinta dias
para me preparar. Eu só esperava que fosse o suficiente.
— Você terá um intervalo de seis dias entre cada julgamento — continu‐
ou Greta.
— Cada julgamento será conduzido por um árbitro selecionado.
Ela olhou para a esquerda do palco.
— Marina. Silas. Por favor, juntem-se a mim.
Duas pessoas se levantaram da primeira fila e se juntaram a ela no pal‐
co, uma mulher e um homem. A mulher eu reconheci imediatamente. Aque‐
le sorriso estranho e sinistro que parecia puxar mais para o lado esquerdo do
rosto e o cabelo loiro só podiam pertencer a uma dos bruxos do grupo Mer‐
lin de Nova York que eu havia conhecido junto com Greta no Night Festi‐
val. Embora eu nunca tivesse sabido seu nome até agora.
Ela usava jeans justos e uma jaqueta curta de couro com tachas. O lado
direito de sua cabeça estava raspado até o couro cabeludo, e ela deixava o
outro lado solto com uma trança dourada, em uma espécie de vibe punk dos
anos 80. Eu estava gostando, embora ela fosse assustadora.
O homem chamado Silas me fez perder o fôlego, e não de uma maneira
boa.
Ele era alto, talvez um metro e oitenta e três, magro e com aparência de
lobo, com um cavanhaque escuro e um longo rabo de cavalo preto. Metade
de seu rosto estava escondida por tatuagens de runas e sigilos mágicos. Ele
estava vestido todo de preto, e pude ver mais algumas tatuagens aparecendo
sob a camisa e ao redor do pescoço. Ele parecia ter trinta e poucos anos.
Não era bonito, era mais bruto como um ogro.
Quando ele cruzou os braços sobre o peito, vislumbrei suas mãos. Mar‐
cas escuras que estavam muito distantes para serem decifradas cobriam-nas
até que eu não conseguisse nem mesmo ver indícios de sua pele natural. Ele
sorriu maldosamente com a reação que estava recebendo de todos, e um pe‐
queno arrepio passou por mim. Definitivamente, não era o tipo de cara que
você trazia para casa para conhecer sua família - ou talvez trouxesse. Se vo‐
cê gostasse de tatuagens.
— Estes são os árbitros de vocês.
A voz de Greta soou ao meu redor.
— Marina mediará o primeiro julgamento, Silas o segundo. E eu estarei
avaliando o último. Não pense que, por você ter chegado ao julgamento fi‐
nal, ele será fácil. Não se enganem. O último julgamento será o mais difícil.
O rosto de Greta ficou mais duro.
— Deixe-me esclarecer. Mesmo que você seja bem-sucedido nas duas
primeiras provas... se falhar na última prova - você reprovará nos testes de
bruxaria. Se falhar na última prova, você estará acabado.
— Já imaginava que a velha bruxa ficaria com a última prova — sussur‐
rei, embora tenha falado mais alto do que eu esperava. Opa.
Os olhos de Greta examinaram as fileiras de bruxos e se fixaram em
mim.
— Tessa Davenport. Levante-se.
Oh... droga.
Meu coração bateu no peito quando as cabeças se viraram na minha di‐
reção, tentando determinar com quem Greta estava falando. Pensei em me
jogar no chão, mas a velha bruxa já tinha me visto.
Levantei-me lentamente, ciente da atenção de todos sobre mim, e tentei
manter meu corpo trêmulo imóvel enquanto mantinha meu foco em Greta.
Se eles me vissem tremendo, eu estava acabada.
A expressão de Greta era dura, embora a diversão fosse evidente em seu
rosto.
— Você tem algo a acrescentar? Por favor, fale para que todos nós pos‐
samos ouvir o que uma bruxa de Davenport tem a dizer. Sim, é isso mesmo.
Temos entre nós uma celebridade. O teatro foi tomado por suspiros e mur‐
múrios baixos e maldosos.
Muito obrigado, você é uma vaca velha.
— Não tenho nada a acrescentar. Por favor, continue — falei, minha voz
surpreendentemente forte em meio ao tremor em minhas pernas.
— É claro que não tem — continuou Greta, — porque você sabe tudo
sobre as provas. Você não sabe, Tessa? Porque vocês, bruxas de Davenport,
acham que estão acima de todo mundo. Vocês acham que podem fazer o
que quiserem e mudar as regras como bem entenderem.
Marina riu, seus olhos se arregalaram de prazer com minha humilhação.
Eu a odiava.
— Não temos — respondi, imaginando sua cabeça explodindo. — Eu
não sei.
A risada baixa e zombeteira de Greta aumentou em profundidade, mas
depois desapareceu com um som amargo.
— Vocês estão vendo, queridos bruxos. Tessa Davenport acreditava que
estava acima das regras, acreditava que era melhor do que todos vocês."
Eu cerrei os dentes.
— Eu nunca disse isso.
— E vocês sabem o que ela fez? — continuou Greta, como se eu nunca
tivesse falado.
— Ela se elevou a uma Merlin.
Os suspiros se espalharam ao meu redor e jurei que vi alguns bruxos me
amaldiçoarem.
Bem, isso estava indo muito melhor do que eu esperava. Eu estava toda
confusa por dentro.
— Tudo isso sem fazer os testes — concluiu Greta. — Ela pensou que
poderia se safar, mas não conseguiu. Eu me certifiquei disso.
Ela me fixou com os olhos.
— Em outras palavras, você trapaceou. E, ao trapacear, você enganou
todos aqui.
Muito bem, vovó. Agora todos pensavam que eu havia trapaceado. Só
de ver alguns olhares, era óbvio que eles me odiavam. Eu também me odia‐
ria se isso fosse verdade, mas não era.
Olhei nos olhos de Willis e pude ver a mágoa e a raiva brilhando ali. Ele
achava que eu também havia traído. Isso estava ficando cada vez melhor.
Meu rosto ardia de raiva.
— Eu não trapaceei — disse eu, com a voz mais alta. — Eu nem sabia
sobre essas provas estúpidas até dois meses atrás.
Ops. Você não deveria ter dito isso.
As feições de Greta ficaram duras.
— Essas... provas estúpidas, você diz?
— Não foi isso que eu quis dizer. Você estava me atacando. As palavras
simplesmente surgiram...
— Você acha que essas provas são uma piada? Você acha que todo
mundo aqui é uma piada?
Puxa vida.
— Eu não acho isso. Claro que não.
Meu pulso estava acelerado. Essa bruxa velha queria que eu queimasse.
Essa parte estava clara.
Greta me observou por um momento.
— Por que você está aqui, Tessa Davenport, se acha que esses julga‐
mentos são uma piada?
— Não acho isso.
Franzi a testa, meu ódio por ela transparecendo em minha voz.
— Estou aqui para obter minha licença Merlin. Assim como todo mun‐
do.
Greta riu baixinho.
— Mas você não acha que é como todo mundo aqui. Você acha, Tessa
Davenport? Você acha que é algo especial. Como suas tias.
— Entendi — eu disse a ela, querendo que ela fechasse a cara, ou eu es‐
tava prestes a ir até lá e fazer isso eu mesmo.
— Mesmo? — ela zombou. — Bem, vamos ver. Não é mesmo?
Um calafrio me percorreu e eu o reprimi.
— O que você quer dizer com isso?
Greta olhou para a multidão e disse:
— O primeiro teste será realizado aqui no Castelo de Montevalley daqui
a um mês, em 1º de dezembro. Se você não comparecer, será reprovada no
teste. Se você for reprovada em duas provas ou na última, terá de esperar
mais um ano para se candidatar novamente — concluiu ela, com os olhos
fixos em mim.
— Como você já se considera qualificada como Merlin, essas provas
devem ser muito fáceis. Estou ansiosa para ver esses dons com meus própri‐
os olhos.
Com isso, um consenso de risadas soou no meio da multidão de bruxos.
Eu não tinha ideia do que esperar, mas por causa da satisfação maligna
de Greta, eu sabia que seria ruim. Muito ruim.
Não só Greta me desprezava, como também todos os Merlins em treina‐
mento. Eu não tinha vindo para cá para fazer amigos, mas agora parecia que
eu podia escolher meus inimigos.
Era óbvio que Greta tinha algo contra mim. Minhas tias haviam me ele‐
vado ao status de Merlin sem avisá-la. E isso... Bem, essa era a vingança
dela.
Oh, que bom. Isso ia ser divertido.
Capítulo 3

S envantei-me em uma rocha plana na praia, cercada de areia dourada, obser‐


do as ondas baterem na costa, enquanto deixava a cena serena aliviar
um pouco a tensão. Os ventos frios batiam em meu rosto, meus ouvidos as‐
sobiavam com sua música. O sol estava bem acima de mim, um disco soli‐
tário e brilhante em um vasto céu azul, sem nenhuma nuvem à vista. Sem o
sol da tarde, eu provavelmente teria virado um sorvete de bruxa.
Sandy Beach estava completamente deserta, exceto por um homem que
passeava com seu golden retriever. Estava muito frio para nadar e a areia
estava muito gelada para andar descalça, o que eu havia aprendido depois
de mergulhar os dedos dos pés nela. Eu gostava apenas de observar as on‐
das batendo na praia e depois recuando. Havia algo estranhamente calmante
nisso. Um jato das ondas manchou meu rosto. Não me importei. Nem mes‐
mo a limpei.
Meu traseiro estava dormente por estar sentado na pedra fria. Não tinha
certeza de quanto tempo fiquei sentada ali, embora parecesse que foram ho‐
ras. Descobri que não conseguia me mexer. Quando meu bumbum se aco‐
modou na rocha, ficou colado a ela.
Decidi pular a parada da linha ley para a casa de Davenport e pulei em
algum lugar logo depois, que acabou sendo bem no calçadão ao lado de
Sandy Beach. Mais tarde, percebi que esse provavelmente era o mesmo lo‐
cal que Adan havia usado para fugir.
A verdade é que eu não conseguia encarar minhas tias agora. Minha ca‐
beça ainda latejava de raiva por Greta, pelas acusações vis que saíram da
boca daquela bruxa. No começo, fiquei chocada, mas minha amiga conheci‐
da, a Sra. Raiva, logo assumiu o controle.
Eu precisava de um pouco de silêncio para acalmar meus nervos e pen‐
sar no que tinha acabado de acontecer. A última coisa que eu queria era
alarmar minhas tias. Não queria que elas soubessem como meu primeiro dia
havia sido desastroso.
Foi um desastre completo de proporções épicas e mais um pouco.
Eu estava realmente ansiosa para comemorar o Samhain hoje à noite
com minhas tias e Iris, mas essas provações já estavam me afetando. Eu não
estava com a mentalidade adequada para uma comemoração de qualquer ti‐
po.
Pensando bem, eu estava animada e nervosa com a perspectiva de me
juntar a esse grupo de elite de bruxos. A ideia dos julgamentos dos bruxos
fez meu coração dar saltos mortais, sim. Mas agora... agora eu estava com
uma raiva que crescia como uma ferida infeccionada. Pior ainda, pela ex‐
pressão de Greta e dos outros árbitros, eu sabia que eles iriam transformar
meus julgamentos em um inferno - literalmente.
Ficou muito claro que ela queria que eu fracassasse. Todos eles. Ela se
esforçaria ao máximo para tornar esses julgamentos de bruxos os mais difí‐
ceis, complicados e perigosos de todos os tempos.
Ela queria me quebrar. Para me assustar. Fazer com que eu desistisse.
Eu não iria.
Ela poderia tentar me intimidar, mas estaria perdendo seu tempo. Eu não
era mais uma criança. Na verdade, eu praticamente me criei sozinha, pois
minha mãe estava sempre ausente. Com meu aniversário chegando em de‐
zembro, eu faria trinta anos. Trinta era perder a pele dos vinte anos, os anos
em que você se desculpava constantemente porque tinha medo de ferir os
sentimentos das outras pessoas.
Que se dane isso.
Agora eu tinha uma pele grossa de trinta anos. Ninguém iria se meter
comigo. Eu era durona e tinha um par de bolas de mulher de trinta anos.
Quanto mais Greta quisesse que eu fracassasse, mais ela me incentivaria a
fazer melhor.
Aquela velha não sabia com quem estava se metendo.
— É a sua vez, Greta — rosnei.
Meu olhar percorreu a praia e caiu sobre um casal que caminhava de
mãos dadas. Olhos cinzentos emoldurados por cílios grossos, uma mandíbu‐
la quadrada e lábios cheios que deveriam ser ilegais em qualquer homem
apareceram em minha mente.
Deixei escapar um suspiro. Pensar em Marcus não ajudava em nada. No
entanto, teria sido bom conversar com ele sobre essas provações. Eu não sa‐
bia por que ele estava me deixando na mão, mas era uma droga. Eu admiti‐
ria isso. Só queria saber o motivo.
Um toque soou no meu celular. Tirei-o da bolsa e olhei para a tela. Era
uma mensagem de texto da Iris.
Iris: Você já chegou em casa? Espero que você tenha arrasado hoje.
Quando você receber isso, por favor, venha para 1313 Shifter Lane . Eles
encontraram um corpo.
— Excelente — falei, o que foi totalmente inadequado.
Um emprego seria uma distração bem-vinda. Embora eu não fosse mais
tecnicamente uma Merlin, minhas tias eram, e não havia leis contra tentar
ajudar.
Mandei uma mensagem de volta para ela.
A caminho.
Shifter Lane ficava a apenas algumas quadras de Sandy Beach. Colo‐
quei meu celular de volta na bolsa e saí correndo, o que era muito lento e
desajeitado na areia. Mesmo assim, cheguei lá em menos de sete minutos.
Um grande letreiro laranja anunciava BERNARD'S BAKERY. O prédio
de tijolos vermelhos e amarelos ficava entre o Witchy Beans Café e a livra‐
ria Practical Magick e bem em frente ao Gilbert's Grocer & Gifts . Em uma
grande janela, você podia ver bolos e pães recém-assados. O cheiro de pão
assado pairava no ar e meu estômago roncou. Eu ainda não tinha almoçado.
Não toquei nos lanches que eu havia levado ou na bolsa da Ruth. Não tinha
estômago para comer nada agora. Se eu tentasse, tinha a sensação de que
ele voltaria a subir.
Ofegante, com o que eu suspeitava ser uma cãibra na lateral do corpo,
subi a entrada da garagem no momento em que a perua Volvo de minhas ti‐
as parou no meio-fio. Os freios rangeram alto quando minha tia Dolores co‐
locou o carro em ponto morto e desligou o motor.
Dolores acenou para mim enquanto batia a porta do carro com o quadril.
— E? Como você foi? Eles fizeram você fazer alguma mágica? Você
tentou o feitiço do ciclone de vento que ensinei a você? A Greta ficou sur‐
presa com o seu brilhantismo?
Meu estômago se revirou. De alguma forma, eu me sentia um fracasso,
embora ainda não tivesse começado as provas. Eu odiava o fato de Greta ter
instigado esse novo medo em mim.
Fiz o melhor sorriso falso que consegui.
— Foi tudo bem. Tudo bem. — Minha garganta se contraiu.
— O que aconteceu aqui?
Dolores me olhou por um momento, suas feições se distorcendo em ce‐
ticismo.
— Alguém está morto. É por isso que estamos aqui.
— Ainda não sabemos quem é — disse Beverly enquanto dava a volta
no carro para ficar ao lado de sua irmã alta, com Ruth e Iris atrás dela.
O rosto de Ruth explodiu de alegria ao me ver.
— Tessa! Oh, graças ao caldeirão. Fiquei preocupada com você o dia to‐
do. Eu estava uma pilha de nervos. Fiz um bolo de frutas sem a fruta! E en‐
tão? Como você se saiu?
— Aposto que foi incrível — disse Iris, levantando o polegar para mim.
— Você arrasou, não foi?
Minhas tias e Iris me observavam com expectativa, como se eu devesse
contar a elas a incrível notícia de como eu realizava feitiços milagrosos, en‐
quanto todas os outros bruxos se divertiam com meu brilhantismo. Elas me
elevaram a Merlin. Esperavam grandes coisas de mim. Eles não tinham
ideia de que Greta faria tudo o que estivesse ao seu alcance para me ver fra‐
cassar.
— Hoje foi mais uma orientação. Um encontro — respondi enquanto o
calor subia ao meu rosto, esperando que meu rubor repentino não me de‐
nunciasse.
— Está tudo bem. Está bem. Eu estou bem. Está tudo bem.
Com as sobrancelhas erguidas, Dolores disse sem rodeios:
— Suponho que você esteja tentando nos dizer que correu tudo bem?
— Sim.
Beverly olhou para mim com desconfiança. Ela se inclinou e sussurrou:
— Parece que você foi pega dormindo com o marido de alguém. — Ela
sorriu e acrescentou. — Eu inventei esse olhar. Mas você, minha querida,
precisa melhorar um pouco a sua atuação se quiser que acreditemos em vo‐
cê.
Abri minha boca em defesa, mas depois a fechei. De que adiantaria ten‐
tar convencê-las? Absolutamente nada.
Minhas tias se mexeram e foram para a entrada da padaria.
Irritada e insegura, dirigi-me para a porta da frente, enquanto Iris cami‐
nhava ao meu lado. Eu podia sentir seus olhos em mim, mas ela não disse
nada. E fiquei grata por isso.
Os sinos tocaram quando Dolores abriu a porta da frente e todos nós a
seguimos para dentro. O cheiro de pães e bolos assados era muito mais forte
dentro da loja, e estava quente, como se os fornos estivessem ligados, as‐
sando novos e deliciosos bolos cheios de frutas, chocolate e calorias.
Passei o olhar pela loja. A loja era pequena, com uma mesa no meio
cheia de cestas de vime recheadas com pães e uma variedade de queijos. As
paredes eram forradas com prateleiras de madeira cheias de geléias caseiras.
Um grande balcão de vidro ficava na parede oposta, onde havia uma expo‐
sição de bolos, cupcakes, donuts, biscoitos e mais e mais doces, esperando
para serem comidos - esperando que eu os comesse.
Atrás do balcão havia uma abertura estreita pela qual eu podia ver vári‐
os fornos de aço inoxidável.
E no meio da sala havia um homem.
Ele parecia ter cerca de 60 anos, com uma barriga tão grande como se
estivesse grávida e uma cabeça cheia de cabelos brancos e grisalhos. Ele es‐
tava deitado de lado e seus olhos estavam abertos, esbugalhados e verme‐
lhos, com veias rompidas, como se tivesse sufocado.
Seu avental verde o denunciou. Ou ele trabalhava aqui, ou o morto era o
proprietário, Bernard.
— Oh, graças ao caldeirão!
Uma mulher rechonchuda de sessenta e poucos anos saiu pela porta dos
fundos, cheirando a fumaça de cigarro e perfume de rosas. Seu vestido ama‐
relo e preto esvoaçante, com listras horizontais, fazia com que ela parecesse
uma abelha gigante.
— Estou fora de mim! — gritou ela, balançando a cabeça e quase fazen‐
do com que seus óculos de brilhantes caíssem do nariz.
— Vim buscar meu pedido habitual de tortas de morango e encontrei
Bernard deitado ali. Ele está morto! Morto! Olhe para ele! — ela uivou, fa‐
zendo meus ouvidos zumbirem. A bruxa tinha pulmões muito fortes.
— Acalme-se, Martha — ordenou Dolores enquanto se aproximava do
corpo. — Podemos ver que o bruxo não está respirando.
— Ele é um bruxo? — Perguntei, olhando para o corpo, mas sem sentir
nenhuma vibração de bruxo. Enviei meus sentidos, procurando por energias
mágicas familiares, mas não senti nada.
— Ele era — respondeu Ruth, com a tristeza desenhando seu rosto em
linhas. — O dom dele não era como o seu. Não. O dom dele era com esta
loja, você sabe? Fazer bolos. Era onde sua magia brilhava. Ele adorava isso.
Sempre me dava alguns pedaços extras de Nutella com meus pedidos.
Os olhos dela se arregalaram.
— Você já experimentou os brownies mágicos dele?
Eu sorri e balancei a cabeça.
— Não. Mas parecem deliciosos.
E talvez até ilegais.
O som dos sinos tocou novamente e eu me virei para ver um homem
baixo, rechonchudo, de cabelos grisalhos e gravata borboleta parado na por‐
ta, com os olhos castanhos arregalados enquanto olhava para o bruxo morto.
— Esse é o Bernard? — ele perguntou.
— O que aconteceu com ele? Ele parece morto... ele está morto? Oh,
meu Deus! Ele está morto! Bernard está morto! — gritou o homenzinho ao
entrar na loja.
E assim começa o circo.
— Saia, Gilbert — ordenou Dolores, e então voltou seus olhos para nós.
— Precisamos manter essa porta fechada e trancada.
Beverly desabotoou os três primeiros botões de sua blusa de seda azul.
— Eu cuido disso.
Ela voltou para a frente da loja, mostrando o peito com o sutiã preto vi‐
sível enquanto exibia as garotas.
— Saia, Gilbert — disse ela, empurrando o metamorfo para fora da por‐
ta. Ele parecia totalmente desconfortável com a exibição do decote que Be‐
verly estava mostrando.
— Isso é assunto de Merlin. Não é assunto de homenzinhos intrometi‐
dos.
Gilbert se afastou de Beverly.
— Mas, mas, o que aconteceu? Você ligou...
O resto do que Gilbert estava dizendo se perdeu quando Beverly bateu a
porta na cara dele e a trancou.
Ela se virou sorrindo.
— Acho que nunca fiz isso antes — disse ela, parecendo surpresa.
— O quê? — Eu perguntei.
— Expulsar um homem.
Seu rosto perfeito se contraiu em uma carranca enquanto ela pensava
sobre isso.
— Gilbert não conta. Meu registro ainda não foi manchado —acrescen‐
tou ela, feliz, e voltou para o bruxo morto.
— Você acha que foi um ataque cardíaco? — perguntou Ruth, parecen‐
do solene e chamando minha atenção de volta para ela. — Ele estava recla‐
mando de seu peso. Ele estava um pouco sem fôlego na última vez que o vi.
— Pode ser. Ele estava acima do peso — concluiu Dolores. — Ataques
cardíacos são comuns em homens da idade dele que não se exercitam e co‐
mem todas as coisas erradas.
Iris se aproximou do corpo e se ajoelhou e começou a cheirar a cabeça e
o peito dele como um cão farejador no aeroporto. Acho que não consegui‐
mos tirar todo o animal dela.
Dolores colocou as mãos nos quadris.
— A esposa dele não sabe.
Ela exalou.
— Odeio essa parte. Nunca fui uma boa consoladora. Eles sempre pare‐
cem chorar mais quando eu termino.
— Isso é porque você os assusta — disse Beverly. — As más notícias
vêm melhor de uma mulher pequena e delicada do que de uma pé-grande de
1,80m com um cabo de vassoura. Ela ganhou um olhar perigoso de Dolores.
— Eu faço isso — disse Ruth, que foi para trás do balcão de vidro. —
Vou ligar para Patricia e contar a ela o que aconteceu.
Ela pegou um telefone ao lado de uma pilha de papéis e começou a dis‐
car.
— Então, como foi o julgamento dos bruxos, querida? — Martha apare‐
ceu ao meu lado, o que me fez dar um pulo. Eu havia esquecido que ela es‐
tava aqui.
Franzi a testa para a grande bruxa.
— Como você soube dos julgamentos?
Martha levantou o quadril, com um sorriso malicioso.
— Querida, nada acontece nesta cidade sem que eu saiba — disse ela,
como se isso devesse significar algo para mim. — Então? Como foi?
Pensei em dizer que os julgamentos de bruxos não estavam nem perto
de Hollow Cove, mas decidi não fazer isso.
— Bem. Deu tudo certo — eu disse novamente, parecendo um disco ar‐
ranhado.
Martha levantou uma sobrancelha bem cuidada.
— Você é tão ruim assim?
Os olhos de Dolores se voltaram para mim, e eu me afastei de Martha.
Não era o momento de falar sobre como meu primeiro dia tinha sido horrí‐
vel.
— Bem — suspirou Dolores. — Não há evidência de crime aqui. Parece
que Bernard morreu de causas naturais, mas não saberemos com certeza até
que o médico legista faça uma autópsia. E como Marcus ainda está fora, ca‐
be a nós fazer a limpeza. É nossa responsabilidade.
— Não olhe para mim — disse Beverly, jogando o cabelo para trás e pa‐
recendo ter acabado de sair de um salão de beleza. Mexendo os dedos, ela
disse:
— Eu não toco em carne morta com essas mãos bem cuidadas.
Dolores revirou os olhos.
— Todos nós sabemos em que carne você toca com essas mãos — disse
ela, fazendo Beverly rir como se a tivesse elogiado. Dolores se virou e
olhou para mim. — Tessa. Você terá de levar o corpo de Bernard para o ne‐
crotério e não se esqueça de dizer a Grace quem ele é.
Minha boca se abriu.
— Eu? Você quer que eu limpe isso?
— Sim.
— Para embalar o Bernard e levá-lo embora?
Deus, isso soou horrível.
— Sim.
— Mas eu nunca fiz isso antes.
— Hoje é o seu dia de sorte. — Dolores arqueou uma sobrancelha. —
Não vou mentir... essa é uma das partes mais desagradáveis de ser um Mer‐
lin. Mas você precisa aguentar. Como o Marcus ainda está longe, isso se
torna nosso trabalho. Não podemos simplesmente deixá-lo aqui para empes‐
tear a cidade inteira.
— O estágio três do rigor mortis é quando o tecido mole do corpo se de‐
compõe e os fluidos são liberados pelos orifícios à medida que os órgãos se
liquefazem — interveio Iris. — Não importa quantas vezes você tome ba‐
nho, esse cheiro nunca sai de você.
— Ainda não sabemos quando Marcus voltará —Dolores estava dizen‐
do, olhando para Iris de forma estranha. — Você precisa de experiência. E
como está tudo bem com os testes, isso não deve ser um problema. Você
precisa de experiência. Certo, Tessa?
— Certo — eu disse, sabendo que ela estava tentando se vingar de mim
por não ter contado a eles o que realmente aconteceu no meu primeiro dia
nos testes de bruxaria.
— Marcus está fora há muito tempo — disse Beverly, com as sobrance‐
lhas baixas. — É estranho que não tenhamos tido nenhuma notícia dele.
Normalmente, ele sempre nos contata. Tessa? Você teve alguma notícia de‐
le?
Evitei o olhar de minha tia.
— Não. Não desde que ele foi embora.
Não era segredo para ninguém que ele havia me abandonado. Mas eu
não queria tocar no assunto novamente. Já estava doendo o suficiente.
Beverly fez um som em sua garganta.
— Não é normal que ele desapareça assim, sem manter contato. Espero
que não tenha acontecido nada com ele.
Meu olhar se voltou para ela.
— Você acha que aconteceu alguma coisa?
É melhor que ele esteja morto, caído em uma vala em algum lugar. Caso
contrário, você vai levar uma bronca quando ele voltar. Ainda assim, a ideia
de Marcus ter sido ferido não me agradou muito. Não me senti bem de jeito
nenhum. E se, depois de todo esse tempo, Marcus não tivesse me abandona‐
do, mas simplesmente não pudesse me ligar de volta porque estava machu‐
cado?
Beverly deu de ombros.
— Tenho certeza de que ele está bem. Não se preocupe. Você o verá em
breve.
Eu não tinha resposta para isso. Meus lábios estavam colados e eu sentia
um pavor estranho e pesado crescendo no fundo do meu estômago.
— Então está decidido.
Dolores se endireitou.
— Não há mais nada que possamos fazer aqui. Uma autópsia nos dirá a
causa da morte. Você pode conseguir uma maca na Agência de Segurança
de Hollow Cove. Grace vai ajudar você.
— Eu também vou ajudar você, Tessa. — Iris se levantou. Ela deu uma
piscadela e disse: — Você me conhece. Adoro me envolver com a morte.
Eu lhe dei um sorriso apertado.
— Obrigado.
Meu olhar foi para o corpo novamente.
— Espere. Onde fica o necrotério?
— No subsolo do prédio da Agência de Segurança de Hollow Cove —
respondeu Dolores.
— Certo.
Eu não tinha ideia de que o prédio de Marcus também era um necroté‐
rio. Meu dia estava ficando cada vez pior. E agora eu estava encarregado de
transportar cadáveres pela cidade. Excelente.
Afastei meus olhos do corpo e eles se fixaram em Ruth. Ela estava de pé
ao lado do balcão, olhando para alguma coisa, com os olhos arregalados de
horror. Então, seu olhar se voltou para o bruxo morto. Ela estava olhando
para Bernard com tanto pavor e medo avassalador que todos os outros pen‐
samentos em minha cabeça desapareceram.
— Qual é o problema, Ruth? — perguntei, vendo o rosto de minha tia
empalidecer, e meu peito se apertou.
Ela olhou para mim. Seus lábios se moveram, mas nenhuma palavra
saiu.
— Ruth? O que foi? — perguntou Dolores, passando por cima do cor‐
po.
Fui até o balcão.
— Você encontrou alguma coisa?
Ruth olhou para o balcão e pegou um frasco vazio ao lado de uma cane‐
ca meio vazia que poderia ser de café. Ela o levantou para a luz, e uma pe‐
quena quantidade de líquido cor de creme permaneceu no fundo.
— Isso é erva-de-gengibre. Fiz para ele, para sua indigestão.
Senti o sangue sair do meu corpo e ouvi a respiração ofegante atrás de
mim. Uma ponta de pânico se desdobrou como uma folha dentro do meu
peito.
— O que exatamente você está dizendo, Ruth? — perguntei, embora já
tivesse feito a conexão.
Ruth me deu um sorriso fraco. Sua expressão ficou assombrada quando
grandes lágrimas escorreram pelo seu rosto.
— Eu fiz isso. Eu o matei.
Capítulo 4

T rans portar um cadáver é muito mais difícil do que você imagina. Especi‐
almente um homem grande, de 1,80 m, que parecia ter comido sua espo‐
sa - e possivelmente seus filhos.
Mesmo com a ajuda de Iris, levamos pelo menos meia hora para levan‐
tar Bernard e arrastar seu corpo até a maca que eu havia adquirido da Agên‐
cia de Segurança de Hollow Cove. Graças ao caldeirão, era uma daquelas
macas com um mecanismo de elevação já embutido, caso contrário, não te‐
ríamos conseguido tirar Bernard dali, muito menos chegar ao necrotério.
Grace, a assistente administrativa de Marcus, não ficou muito satisfeita
ao me ver, nem estava muito otimista em me emprestar a maca para que eu
pudesse levar o pobre Bernard para o necrotério. Acho que ela ainda guar‐
dava mágoa da minha emboscada no escritório de Marcus há alguns meses.
— Onde está a sua carteira de identidade Merlin? — Grace perguntou,
com um sorriso vitorioso enrugando seu rosto, emoldurado por cabelos
brancos e curtos.
— Dizem que você não é mais uma Merlin. Sem a identificação adequa‐
da, não posso autorizar isso.
Ela me deu um olhar incisivo de trás da recepção.
— Que tal eu autorizar você com o meu pé na sua bunda? — eu disse.
Iris aplaudiu. Eu estava com tanta raiva e pavor da minha pobre tia Ruth
que meu temperamento estava fora do normal.
— Diga-me onde encontrar a maldita maca, ou você terá de ir buscar o
corpo de Bernard — gritei para ela. Talvez tenha cuspido um pouco.
Enquanto isso, Iris, minha fiel companheira, olhava para ela com des‐
prezo enquanto apontava dois dedos e lançava maldições de faz de conta
para Grace, embora ela não soubesse disso.
O rosto de Grace ficou de um vermelho horrível, quase roxo.
— Não me importa quem você é, ou o sobrenome que tem. Você não
pode falar comigo desse jeito.
— Eu já falei — disse a ela. — Ele está começando a cheirar mal. Em
alguns minutos, a cidade inteira vai cheirar como um esgoto gigante.
Aparentemente, essa foi a coisa certa a se dizer, pois Grace finalmente
concordou em nos dizer onde encontrar uma maca.
Juntos, Iris e eu empurramos a maca com o corpo de Bernard por um
corredor no subsolo da Agência de Segurança de Hollow Cove e passamos
por duas portas duplas com a palavra MORGUE pintada em letras grandes
e pretas na porta da direita.
O ar frio me atingiu quando entramos em uma grande sala semelhante a
um laboratório. Ela cheirava a desinfetante e ao odor adocicado de carne
morta.
— Cheira a rosas — engasguei, tentando respirar pela boca e achando
mais difícil do que eu pensava.
Iris respirou fundo.
— Nada como o cheiro de alvejante para limpar suas passagens nasais.
Certo?
Sim, a Iris era estranha.
As paredes brancas e lisas com azulejos brancos e sem graça nos cerca‐
vam, todas iluminadas por luzes fluorescentes que vinham de cima. O ne‐
crotério era equipado com balcões de aço inoxidável cobertos com ferra‐
mentas e dispositivos médicos. A sensação era de frio e tristeza, e eu não
via a hora de sair dali.
Com o coração batendo forte, empurramos a maca para o meio da sala,
ao lado de uma mesa de autópsia de aço inoxidável. Um carrinho médico
rolante estava ao lado dela, coberto com ferramentas médicas brilhantes e
afiadas que pareciam ter pertencido a um açougueiro.
Passei o olhar pela sala, até as portas metálicas da geladeira na parede
oposta, imaginando quantos cadáveres ainda estavam lá. Eu não queria sa‐
ber.
Embora eu nunca tivesse estado em um necrotério antes, ele parecia
exatamente como eu imaginava que seria - graças a todos os dramas polici‐
ais que assisti ao longo dos anos.
Puxei minha bolsa para a frente, abri a aba e tirei dois sacos Ziploc. Um
deles tinha o copo vazio do Bernard e o outro tinha o frasco que continha a
erva-de-gengibre da Ruth. Provavelmente, as impressões digitais dela tam‐
bém estavam por toda parte, mas isso não importava. Minha tia não tinha
nada a esconder.
Deixei as malas sobre a mesa de autópsia de aço inoxidável, com um
pedaço de papel informando o nome de Bernard e o parente mais próximo,
querendo nada mais do que ir embora.
Iris inalou profundamente, olhando ao redor da sala.
— Deus, eu adoro o cheiro de necrotérios. Toda essa morte e almas per‐
didas me dão arrepios. Você sabe o que quero dizer?
— Você é louca. Você sabe disso? — Eu ri, olhando para a bruxa bonita
e parecida com uma fada que atravessou a sala e agora estava puxando uma
das portas da geladeira.
— Uh... você deveria estar fazendo isso?
Iris deu de ombros.
— Não sei por que as pessoas têm tanto medo de morrer. É apenas uma
transição para outro lugar.
A decepção passou por seu rosto ao ver a placa vazia de aço inoxidável.
Olhei para a bruxa das trevas.
— Você acredita que existe uma vida após a morte? Um lugar para onde
todos nós vamos depois que nossas baterias acabam? Para cima ou para bai‐
xo... a luz ou a escuridão?
Eu nunca havia pensado muito nisso. Eu sabia que anjos e demônios
existiam, então por que não um céu e um inferno? Ou um Horizonte e um
Mundo Inferior, como nós, paranormais, gostávamos de chamá-los. A dife‐
rença é a mesma.
Iris fechou a porta e seus olhos se arregalaram.
— É claro que sim. Você não sabe? Não estou dizendo que se você vi‐
veu uma vida boa vai para alguma versão do Horizon e que se traiu sua es‐
posa vai acabar no Submundo para ser torturado por demônios por toda a
eternidade... porque o Submundo é um reino de demônios e diabos. Você
sabia que o tráfico de almas humanas é enorme no Submundo? Quero dizer,
grande, muito grande.
Fiquei olhando para ela.
— Eu não fazia ideia.
Mais uma vez, eu estava feliz por ter a Iris por perto. Ela era uma Wiki‐
pédia do submundo ambulante.
— Bem — continuou a Bruxa das Trevas, feliz por ter um público.
— Acredito que as almas vão para algum lugar depois que morremos. E
também não é tão preto no branco.
Iris se aproximou e tirou o lençol do rosto de Bernard.
— Tipo ele. Onde você acha que Bernard está agora? Sua alma? Seu
corpo está morto, mas sua alma... Eu gostaria de pensar que sua alma está
em algum lugar seguro.
Olhei para o rosto do bruxo morto.
— Eu não sei. Nunca morri e voltei. Mas, se um dia voltar, avisarei vo‐
cê. Prometo . — disse eu com um sorriso. — Mas talvez você esteja certa.
Talvez sua alma esteja em algum lugar seguro.
Eu me senti mal por Bernard, e saber que ele tinha uma esposa me fez
sentir péssima. Provavelmente ele também tinha filhos e netos. Mas ver que
Ruth acreditava ter algo a ver com a morte dele me fez sentir pior. Não. Não
a Ruth. Nunca a Ruth.
Mas e se eu estivesse errada...
— E agora? — Iris estava de pé, com as mãos nos quadris, parecendo à
vontade e em seu elemento no necrotério frio e rançoso.
— Vou tomar as providências e ligar para o médico legista.
Eu não achava que Grace seria tão útil quanto minha tia Dolores havia
pensado.
— Diga a ele que há um corpo aqui. Ele precisará saber o que procurar.
Engoli com dificuldade.
— Você sabe... ver se a poção da Ruth realmente causou a morte dele.
Minhas palavras ficaram engasgadas. Minhas entranhas se retorceram
até eu achar que poderia vomitar.
Esqueça a comemoração do Samhain hoje à noite. Eu tinha de ajudar a
Ruth. Tinha que ajudar a limpar o nome dela e fazê-la perceber que ela não
tinha nada a ver com isso.
Olhei para a Iris.
— Ruth não fez isso.
Iris apertou meu braço.
— Eu sei que ela não fez isso. Ele provavelmente morreu de causas na‐
turais, como Dolores disse.
Meus lábios se curvaram em uma carranca.
— Gostaria que Marcus estivesse aqui. Não por minha causa... mas por‐
que ele saberia como fazer tudo isso — gaguejei, sentindo-me uma idiota.
Iris me olhou por baixo de seus cílios grossos.
— Você ainda não disse nada? Nenhuma mensagem sexy? Você não
tem fotos nua?
Ela moveu as sobrancelhas sugestivamente.
Eu ri.
— Não. Nada disso. Nada disso. Acho que... acho que ele me deu um
fora. Ou talvez, durante o tempo em que ficamos separados, ele tenha per‐
cebido que eu não era namorável.
— Você não é namorável?
Iris se moveu tão rápido que mal tive tempo de registrar seu movimento
quando ela apareceu na minha frente, com um dedo apontando para o meu
rosto.
— Nem ouse pensar nisso — ela ameaçou. — Você é tão namorável.
Você é um chuchuzinho.
— Como você fez isso?
Ela tinha se movido como uma vampira. Talvez todo aquele tempo que
ela passou com Ronin estivesse incorporando nela - literalmente.
— Marcus está realmente interessado em você — continuou ela, como
se não tivesse me ouvido. — Eu vi como ele olha para você. Como se qui‐
sesse arrancar todas as suas roupas.
— Bem, se é só sexo que ele quer, está perdendo tempo.
Iris suspirou.
— Ele está realmente interessado em você, Tessa. Se ele não ligou nem
mandou mensagem, tenho certeza de que tem um bom motivo. Ele é um ca‐
ra maduro e muito viril. Se fosse mais viril, ele seria um homem das caver‐
nas. Ele vai ligar para você. Confie em mim.
Fiz um aceno silencioso com a cabeça. Não conseguia pensar em todos
os motivos pelos quais Marcus ainda não havia telefonado. Eu tinha que me
concentrar em minha tia Ruth. Só a lembrança do medo em seu rosto fez
meu estômago se revirar novamente.
— Bem — eu soltei, — não saberemos com certeza até que o médico
faça os exames.
— Não se preocupe. Tudo vai se resolver.
Iris puxou o lençol sobre a cabeça de Bernard e se virou para mim.
— O que precisamos é ir para o Pub Bruxa Má e Belo Diabo e tomar
um pouco de álcool. Quero detalhes sobre o seu primeiro dia. O que você
acha?
— Claro. Por que diabos não? Vamos dar o fora daqui.
Contar à Iris sobre meu desastre foi muito menos doloroso do que con‐
tar às minhas tias.
Deixamos Bernard e subimos as escadas de volta para o primeiro andar.
Eu não queria estar aqui quando a esposa de Bernard aparecesse. Conhecen‐
do a Martha, aquela bruxa deu com a língua nos dentes. A essa altura, toda
a cidade deveria saber que Ruth achava que ela tinha matado o padeiro da
cidade. Maravilhoso.
Com isso em mente, subi as escadas apressadamente. Quando chegamos
à plataforma, pude ouvir vozes através da porta. Uma delas era a de Grace,
mas não reconheci a outra.
— E agora? — disse a voz de Iris ao meu lado na plataforma.
— Não faço ideia.
Abri a porta e nós dois fomos para o corredor, marchando de volta para
a recepção.
Ao lado de Grace estava uma mulher em forma, magra e com pernas,
vestida de preto e com botas rasas. Os cabelos avermelhados se enrolavam
abaixo do meio das costas em uma cascata desordenada, complementando
sua pele impecável, maçãs do rosto altas e lábios exuberantes. Ela não usa‐
va muita maquiagem, mas não precisava. Seu rosto tinha uma beleza sem
idade, seus grandes olhos verdes emoldurados por cílios pretos. Eu nunca a
tinha visto antes.
— Você acha que é a esposa dele? — sussurrou Iris.
— Se for, ele é um homem de sorte — sussurrei de volta, fazendo-a rir.
Ao ouvir nossa aproximação, a mulher se virou e olhou para nós. Ela
não era apenas bonita. Ela era linda de morrer. Com os olhos brilhantes, ela
nos encarou por alguns segundos, o suficiente para satisfazer sua curiosida‐
de, e depois voltou sua atenção para Grace.
— Onde está a suspeita agora… — disse a desconhecida enquanto olha‐
va para um pedaço de papel. — Ahn… Ruth Davenport? Você sabe onde
posso encontrá-la?
Dei um solavanco enquanto meu coração acelerava.
— Desculpe-me. Que diabos está acontecendo aqui? — exigi, com a
voz perigosamente alta e carregada de raiva, enquanto me aproximava a
passos largos, na verdade, a passos largos.
A estranha me olhou por um longo momento.
—Ruth Davenport. Você a conhece?
— Sim. Ela é minha tia.
Olhei para Grace, que se sentou e cruzou os braços, com um olhar estú‐
pido e conhecedor em seu rosto estúpido.
A desconhecida piscou para mim.
— Então você pode me dizer onde ela mora — ela ordenou, sua voz co‐
mo um chicote, mas sem me dar uma pista de quem ela era.
— Por quê?
Cruzei os braços sobre o peito no momento em que Iris se aproximou de
mim.
— O que você quer dela?
A mulher ficou olhando para mim sem piscar, o que foi realmente assus‐
tador.
— Ela matou alguém — respondeu ela, com a voz carregada de diver‐
são.
— Ela é uma assassina.
Meu coração batia forte e eu me sentia como se estivesse à beira de um
penhasco pronto para cair.
— O quê? Espere só um minuto.
Eu me coloquei na frente dessa mulher com as mãos nos quadris.
— Minha tia não fez isso. Você entendeu tudo errado.
Eu não tinha ideia de quem era essa estranha, mas já a odiava.
Ela olhou para mim, com as sobrancelhas erguidas no rosto, como se de
alguma forma fosse superior.
— Eu já consegui uma confissão.
— Ela está confusa.
Eu ia lhe dar um tapa. Eu sabia disso.
— Fofocar sobre o que aconteceu não vai ajudar ninguém nem a cidade.
Deixe isso de lado e fique longe da minha família. Não é da sua conta.
É isso aí. Eu ia lhe dar um chute na garganta.
Seu rosto não tinha expressão.
— Não gosto de fofocas. Limito-me aos fatos.
— É um fato — rosnei, vendo Iris balançar os pés para a frente, perto o
suficiente da mulher estranha, dar uma cheirada e balançar para trás.
— Você não pode fazer uma coisa dessas com a minha tia. Diga a ela,
Grace — eu disse, olhando para a mulher vil que estava atrás da escrivani‐
nha.
Grace franziu os lábios.
— Ruth é uma alma bondosa e uma amiga. Ela não envenenaria Ber‐
nard de propósito.
A desconhecida tirou a pasta que ela estava segurando.
— Bem, isso realmente não cabe a você decidir.
Minhas sobrancelhas caíram ao redor da ponte do meu nariz.
— Quem diabos é você?
Ela encontrou meu olhar e me deu um sorriso gelado.
— Eu sou a nova chefe.
Capítulo 5

ma nova chefe? Temos uma nova chefe? Como diabos isso acon‐
—U teceu?
Minha voz se elevou pela cozinha.
— Já temos um chefe e o nome dele é Marcus.
Eu não sabia ao certo por que estava sendo tão superprotetora com ele.
O cara estava fingindo que eu não existia. Mesmo assim, Marcus havia me
mostrado como era um bom homem e um metamorfo. Ele me apoiou, lutou
ao meu lado e me carregou para casa depois da batalha contra Samara -
também conhecida como a feiticeira malvada. Eu não podia simplesmente
esquecer isso. Ele podia não estar interessado em mim, mas não merecia ser
deixado de lado dessa maneira.
— Marcus está desaparecido há quase dois meses, Tess — disse Ronin.
— E o cara não nos deu nenhum sinal de vida. O que você esperava?
Ronin apareceu dez minutos depois que Iris e eu voltamos para casa.
Nós xingamos durante todo o caminho, inventando novos palavrões que se
encaixavam nessa nova chefe. Era uma longa lista.
Cerrei os dentes.
— Isso não.
Droga. Eu não esperava que aquelas palavras saíssem de sua boca. E, a
julgar pelo sorriso malicioso que ela me deu logo depois, ela também tinha
visto.
A culpa bateu forte, fazendo com que eu me sentisse mal. Fiquei tão
chocada e chateada com a notícia dessa nova chefe que me esqueci comple‐
tamente de Ruth.
Ruth havia desaparecido no andar de cima quando cheguei em casa com
Iris, depois de eu ter falado sobre a nova chefe. Bem, precisava de algumas
respostas. Isso há uma hora. Ruth ainda não havia descido.
— A Agência de Segurança de Hollow Cove tem certos protocolos a se‐
rem seguidos — disse minha tia Dolores, servindo-se de outra xícara de ca‐
fé. — Hollow Cove nunca ficou sem um chefe antes.
Ela se virou com a xícara nas mãos e se encostou no balcão.
— Com a ausência de Marcus, eles tiveram de enviar um substituto. É
assim que funciona.
Meus lábios se separaram.
— Um substituto. Você está falando sério? Vocês estão agindo como se
ele estivesse morto. Ele não está.
O medo me percorreu ao pensar que talvez Marcus estivesse morto.
Não, eu estava apenas sendo uma tola exagerada. Marcus era um metamor‐
fo brutalmente forte e poderoso. Ele era praticamente o King Kong. Nada
poderia machucá-lo... certo?
Dolores olhou para mim.
— Não sou a responsável por isso. Estou apenas relatando os fatos. Há
uma nova chefe. Aí está. Você precisa lidar com isso. Depois que Dolores
tomou um gole de seu café, ela perguntou:
— Você ligou para o médico legista?
— Sim— suspirei. — Contei tudo a ele. Ele provavelmente já está lá.
Está trabalhando com o Bernard. Esfreguei o dedo na madeira do tampo da
mesa da cozinha, sem querer fazer a pergunta que tinha de fazer, mas não
consegui me conter.
— O que acontece se ele descobrir que o tônico de Ruth o matou?
Ruth nunca faria mal a ninguém de propósito, mas havia uma pequena
chance de que seu tônico tivesse matado acidentalmente o padeiro.
O silêncio se instalou, quebrado pelo tique-taque da geladeira.
— Então, vamos lidar com isso — respondeu Beverly, finalmente, en‐
quanto se remexia na cadeira ao meu lado. — Bernard pode ter tido uma re‐
ação alérgica grave à erva de gengibre de Ruth... ou ainda pode ter morrido
de ataque cardíaco.
Ela parecia estar tentando se convencer, mesmo que seu medo fosse ób‐
vio.
— Só saberemos quando o médico legista nos der a notícia.
Meu olhar foi para Dolores, esperando que ela acrescentasse alguma
coisa, mas o rosto de minha tia estava abatido, com as emoções transpare‐
cendo em suas feições tensas. O pânico se agitava no fundo de seus olhos
enquanto ela se encostava no balcão, olhando para sua caneca. Ela estava
com medo. Com medo de que Ruth pudesse ser culpada por isso.
Minhas emoções se dividiam entre o pavor e a raiva. A única coisa boa
dessa bagunça era que minhas tias estavam tão preocupadas com o que esta‐
va acontecendo com a Ruth que nenhuma delas sequer pensou em me per‐
guntar mais sobre como tinham sido os julgamentos dos bruxos. Só o fato
de pensar nisso já me trazia outra onda de culpa. Eu não era perfeita. No
momento, os julgamentos eram o menor dos meus problemas.
Meu maxilar se cerrou quando bati com a palma da mão na mesa com
um estalo agudo.
— Argh! Você deveria tê-la visto, pensando que ela é tudo isso. Você
deveria tê-la visto pensando que é a chefe de todos. Não precisamos dela.
Podemos funcionar bem sem essa estranha.
— Adira — corrigiu Ronin, e ouvi o toque distante do telefone no cor‐
redor.
— O quê? — Eu rosnei, quase cuspindo no Ronin sentado à minha fren‐
te.
Ronin se recostou em sua cadeira, casual e relaxado, com as mãos atrás
da cabeça, como o vampiro que era.
— O nome dela é Adira. A nova chefe.
Eu o encarei.
— Ela está aqui há... o quê... dois minutos? E você já sabe o nome dela?
Conhecendo o Ronin, ele provavelmente sabia muito mais sobre essa
Adira. E eu faria com que ele me contasse mais tarde.
— Não se transforme em Tess-zilla comigo — disse o meio-vampiro. —
Eu sei das coisas. Sou bem informado. Isso faz parte do meu charme
— Vampiros.
Iris arregalou os olhos, mas um sorriso se esboçou em seus lábios en‐
quanto ela tomava um gole de seu café.
O fato de que agora havia um nome ligado ao estranho tornava tudo pi‐
or. De alguma forma, mais permanente.
Um clique soou no corredor quando o telefone foi atendido, seguido pe‐
la voz abafada de Ruth ao atender.
— Bem, eu não me importo com o nome dela.
Eu me mexi no meu assento, tentando ouvir com quem Ruth estava fa‐
lando, mas suas palavras estavam muito baixas e eu não conseguia entender
nada.
— É melhor ela não ficar muito à vontade porque o Marcus está voltan‐
do.
É bom que sim.
O fato de a Agência de Segurança de Hollow Cove ter enviado um subs‐
tituto significava que algo estava definitivamente errado. Ou eles não con‐
seguiam entrar em contato com Marcus ou estavam em contato, mas algo
havia acontecido com ele. Será que a Agência de Segurança de Hollow Co‐
ve sabia de algo que nós não sabíamos? Marcus estava com problemas?
Eu precisava de respostas. E Adira ia me dar essas respostas. Ou isso,
ou eu iria obrigá-la.
O som de sapatos batendo no piso de madeira tirou minha atenção da
caneca.
Ruth entrou na cozinha e pegou a jaqueta e a bolsa no cabideiro de ma‐
deira na parede ao lado da porta dos fundos.
O pânico me fez levantar.
— Aonde você está indo?
Os olhos tristes de Ruth se encontraram com os meus.
— A chefe me pediu para ir ao escritório. Ela disse que queria sentar e
conversar sobre o que aconteceu. Eu disse que iria.
Adira esteve ao telefone com Ruth.
— Ela não é a chefe — eu disse, contornando a mesa para ficar ao lado
de Ruth. — Ela não é.
— Ela é agora.
Dolores colocou a caneca na pia e deu meia-volta.
— É melhor você ir e resolver tudo isso. Quanto mais esperarmos, pior
vai ficar.
A raiva passou por mim, alimentada pela lembrança do sorriso presun‐
çoso de Adira às custas de minha tia. Havia algo de errado com ela e eu não
conseguia identificar o que era. Ou talvez eu estivesse apenas procurando
maneiras de odiá-la porque ela havia basicamente roubado a posição de
Marcus.
Ruth me encarou, seu rosto voltando ao estado de entorpecimento.
— Eu... tenho que ir… — gaguejou ela, parecendo assustada e pequena.
Estendi a mão e a abracei.
— Vai ficar tudo bem — disse em seu cabelo branco e macio, sem saber
o que mais eu poderia dizer. De repente, senti uma vontade enorme de pro‐
teger Ruth. Minha tia Ruth era a pessoa mais gentil, doce e amorosa que eu
já havia conhecido. Ao vê-la assim, triste e desmoralizada, meu coração se
partiu em pedaços.
Eu tinha que fazer alguma coisa. Tinha que ajudar minha tia.
— Eu vou com você — disse eu, soltando-a e dando um passo para trás.
— Tenho algumas coisas que esqueci de discutir com essa nova chefe.
Por exemplo, como eu ia acidentalmente colocar fogo no cabelo dela.
— Você vai ficar aqui — ordenou Dolores. Ela me deu um olhar incisi‐
vo ao ver meu rosto franzido. — Você está muito irritada agora e precisa‐
mos falar com essa nova chefe sem ter de nos preocupar com uma explosão
sua. A última coisa que precisamos é que essa Adira prenda Ruth por causa
de algo que você possa dizer.
— Eu consigo me controlar — falei, fazendo o Ronin bufar.
— O quê?
Eu estreitei meus olhos para o meio-vampiro.
— Você acha que eu não consigo?
Ronin levantou as mãos em sinal de rendição.
— É que... quando você está chateada, tende a agir antes de pensar. Su‐
as emoções fazem com que você seja um pouco impulsiva. Lembra-se do
que você fez com Marcus na primeira noite em que o conheceu?
— Eu o fiz voar — falei, lembrando-me de como eu o atingi com um
golpe de minha magia sem sequer pronunciar uma única palavra. — Eu lhe
dei aulas de voo gratuitas. E daí? Isso são águas passadas. Eu o perdoei por
sua má escolha de palavras sobre minha querida mamãe.
Ronin passou a mão pelos seus cabelos, alisando-os.
— Não sabemos nada sobre ela. Isso pode ser perigoso. Você não vai
querer irritá-la.
Eu me enrijeci.
— Ela não manda em mim. Talvez eu não seja mais uma Merlin, mas
ela não pode me dizer o que fazer.
Ou será que pode? Eu não fazia ideia.
— Vai ficar tudo bem, Tessa — disse Ruth. — Eu já confessei.
— Você não o matou — protestei. Senti meu rosto ficar em branco ao
vê-la crua e despojada até a dor em sua alma.
Ruth balançou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas.
— Mas eu não sei. Não posso ter certeza. Talvez eu tenha feito isso. —
Ela fungou. — É melhor que eu lhe conte tudo o que sei. — Ela enxugou os
olhos. — Fui estúpida e descuidada. Nunca mais farei outra poção.
— Não diga isso — argumentou Dolores, com uma expressão perturba‐
da. — Você não sabe se sua poção o matou.
— Mas eu sei. — O rosto de Ruth estava contorcido de dor. Seus olhos
azuis brilhantes se fixaram na irmã, e a dor nela era óbvia. — Ele a usou.
Ele confiou em mim e eu o matei.
Ruth saiu pela porta dos fundos antes que eu pudesse responder com al‐
go espirituoso ou apenas algumas palavras de conforto.
Balancei a cabeça.
— Isso está errado. Está tudo errado.
— Como é essa nova chefe? — Beverly ficou de pé com uma mão no
quadril. — Gorda? Velha e com rugas? Tem uma tintura ruim? Está usando
botox em excesso? Tem muitos preenchimentos? Ela tem lábios em forma
de salsicha ou é mais do tipo bico de pato?
— Ela é gostosa — disse Iris, dando de ombros. — Realmente gostosa.
Beverly franziu a testa.
— Droga. Preciso me trocar.
Ela saiu apressada da cozinha e ouvi seus saltos de gatinho batendo nas
escadas do segundo andar. Parecia que ela estava correndo.
— Não fique esperando se não voltarmos hoje à noite. — Dolores tirou
sua jaqueta do cabide de madeira na parede. — O Samhain é uma parte im‐
portante de nossa cultura. Pelo menos uma bruxa de Davenport tem que co‐
memorar. Se você não fizer isso, vai ser um inferno amanhã — disse ela,
abotoando o paletó. — Martha vai nos crucificar. Ela nunca vai se calar so‐
bre isso.
Cruzei os braços sobre o peito, com o medo puxando minha cabeça para
baixo.
— Eu realmente não estou com vontade de comemorar.
Eu tinha pensamentos mais sinistros e assassinos no momento.
Dolores apontou suas chaves para mim.
— Você pare com isso agora mesmo. Você está me ouvindo?
Minha tia estreitou os olhos.
— Isso é apenas um contratempo. Tudo vai se esclarecer. Você verá. Vo‐
cê verá. Somos bruxas de Davenport, pelo amor de Deus. Nada vai aconte‐
cer. Então, pare de se preocupar. Eu lhe darei os detalhes quando voltarmos.
Observei minha tia Dolores fechar a porta atrás de si. De alguma forma,
eu não estava tão otimista.
— Estou pronta! — disse a voz de Beverly atrás de mim.
Virei a cabeça e olhei para minha tia, que havia abandonado a calça je‐
ans casual e optado por uma meia-calça preta que poderia ter sido pintada,
uma camiseta preta baixa que revelava que ela estava sem sutiã e uma ja‐
queta de couro preta curta. Seu cabelo loiro estava preso em um coque ba‐
gunçado, com algumas mechas emoldurando seu rosto, que parecia ter pas‐
sado horas se maquiando. É impossível que ela tenha conseguido fazer isso
sem magia.
Beverly ergueu o quadril e sorriu.
— Isso faz com que eu pareça uma vadia sedenta por sexo que precisa
de um homem para ir para a cama?
— Sim — respondi com um sorriso, sabendo que essa era a resposta
exata que ela queria ouvir.
Os lábios carnudos de Beverly se fecharam em um sorriso deslumbran‐
te.
— Obrigada, querida. Vejo você mais tarde.
Beverly saiu pela porta com seus sapatos vermelhos, parecendo um mi‐
lhão de dólares.
Meu sorriso se desvaneceu. Esta noite era a minha celebração bruxa fa‐
vorita e eu estava realmente ansiosa por ela. Mas agora, não havia espaço
para comemorar. Não depois de ver a dor no rosto de Ruth.
E eu tinha a horrível sensação de que as coisas estavam prestes a piorar
muito.
Capítulo 6

O que uma bruxa faz quando suas tias bruxas não voltaram do escritório
da chefe e ela foi instruída a ficar quieta?
Ela vai procurá-las, é claro.
Não é como se eu tivesse prometido ficar em casa. E eu não confiava
em algo sobre Adira. Eu não a conhecia. Uma vozinha dentro de mim me
dizia que ela não acreditaria na inocência de Ruth, e meu instinto também
me dizia que Adira tinha algo a provar. Ela precisava mostrar a todos que ti‐
nha condições de ser chefe, o que significava que ela estava prestes a se tor‐
nar uma rainha vadia.
E Ruth foi sua primeira vítima.
Desci correndo a Shifter Lane. O sol havia se posto há uma hora, o que
significava que as festividades já haviam começado.
O que parecia ser um circo gigante havia invadido Hollow Cove.
Tochas de pé se alinhavam nas ruas por uma centena de metros em cada
direção, enchendo as ruas com um brilho amarelo e laranja. Folhas de cor
laranja, amarela e vermelha cobriam as calçadas e ruas, cobrindo completa‐
mente o asfalto, como se ele nunca tivesse existido. Gazebos e barracas es‐
tavam repletos de mesas cobertas de comida, onde alguns paranormais cui‐
davam de suas churrasqueiras e chamuscavam suas carnes. Dezenas de ho‐
mens paranormais se aglomeravam ao redor, falando alto, rindo e discutin‐
do sobre algum jogo de futebol.
A música vinha de vários locais diferentes, com as batidas se misturan‐
do umas às outras. Lanternas e abóboras esculpidas com grandes sorrisos e
olhos arregalados decoravam varandas e calçadas, enquanto dezenas de cri‐
anças - todas usando fantasias do Homem-Aranha a Olaf e, é claro, a conhe‐
cida bruxa de chapéu pontudo - abriam suas sacolas para aceitar doces e
saíam correndo para a próxima casa com igual entusiasmo. Mais crianças
corriam em bandos pelas ruas, com gritos e risadas animadas que as impul‐
sionavam mais rapidamente.
Eu sorri. Era uma mistura do Samhain tradicional com um toque moder‐
no de Halloween. Havia algo para todos.
Os paranormais se aglomeravam nas ruas de Hollow Cove em um bor‐
rão de cores e movimentos, conversas e fantasias, como em uma pintura
medieval. A maioria dos bruxos usava vestidos de estilo medieval, enquan‐
to outros mestiços decidiram ser mais modernos com seus trajes de zumbi e
maquiagem de carne morta.
Olhei para a multidão e vi Ronin e Iris. Os rostos de ambos estavam cui‐
dadosamente pintados com sangue e podridão, suas roupas estavam rasga‐
das e manchadas de sujeira e mais sangue. Zumbis. Eu ri enquanto olhava
para o casal de zumbis. Ri ainda mais quando percebi que eles estavam ca‐
minhando de forma lenta, como zumbis, com as mãos estendidas à frente,
enquanto algumas crianças corriam ao redor deles gritando de alegria.
"Vocês estão realmente interessados nisso", murmurei para mim mesma,
rindo. Pelo menos eles estavam curtindo o Samhain. Pensei em ir até lá para
cumprimentá-los, mas decidi não fazer isso. Eu precisava encontrar a Ruth.
Atravessei a rua até o prédio de tijolos cinza e sem graça com a placa
AGÊNCIA DE SEGURANÇA DE HOLLOW COVE. Meu peito se apertou
quando meus olhos se moveram para a entrada do lado esquerdo, lembran‐
do-me do beijo que Marcus me deu. Tinha sido um beijo do tipo quente, de
arrancar a calcinha. Tinha sido muito bom.
Sim, eu era uma brasa para o chefe. Quente para um cara que não liga
de volta para você. Sim, isso foi estúpido.
Deixando esses pensamentos para depois - porque, convenhamos, eu ia
pensar nisso de novo -, abri a porta de vidro da frente e entrei. Pisquei os
olhos para as luzes brancas e fortes da entrada do prédio. Senti o aroma de
café recém-preparado quando cheguei à recepção, do outro lado do saguão,
que se abria para um espaço maior.
— Grace, hein? — falei, apoiando-me na escrivaninha, pois esperava
ver a senhora idosa. Sua cadeira estava vazia.
Olhei em volta. O lugar estava deserto. Com Adira acreditando em sua
afirmação de que era a nova chefe, eu esperava ver alguns de seus compar‐
sas. No entanto, eu podia sentir a presença de pessoas...
Foi quando ouvi os sons de uma conversa irregular.
Fiquei aliviada e ansiosa porque minhas tias ainda estavam aqui. Elas já
estavam aqui há horas. Ou elas estavam tendo uma ótima conversa ou a si‐
tuação era pior do que eu pensava.
As vozes saíam da porta à direita da recepção - o escritório de Marcus.
Ela estava usando o escritório de Marcus?
Com o coração batendo como se minhas veias estivessem bombeando
cafeína, levantei-me da mesa e fui em direção à porta - e congelei.
Na última vez em que estive aqui, o nome MARCUS DURAND estava
estampado na janela da porta. Agora, o nome era ADIRA CREEK com as
palavras CHEFE OFICIAL escritas embaixo.
Oh, diabos, não.
Olhei fixamente para a porta, minha raiva acionando minha magia até
que a senti rastejar ao redor e sobre minha pele como outra camada.
Você bateria na porta? Não, acho que não.
Entrei pela porta em uma tempestade de maldições, cabelos rebeldes e
olhos furiosos. A última vez que estive aqui, entrei sorrateiramente com Ro‐
nin para encontrar informações sobre a Murta Maravilhosa. O espaço pare‐
cia exatamente o mesmo, exceto pelas três bruxas que estavam sentadas em
frente a Adira.
Dolores, Beverly e Ruth ficaram olhando para mim com a boca aberta
em uma expressão compartilhada de descrença, como se eu tivesse acabado
de invadir a festa do chá delas. Ok, talvez eu tenha entrado.
Meus olhos encontraram Adira e se estreitaram.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — rosnei antes que pudes‐
se me conter.
— Essa é a cadeira de Marcus. Este é o escritório do Marcus. E estas
são as coisas dele. Esse é o grampeador dele. E suas canetas. Essa é a cane‐
ca dele. Não toque na caneca dele. Eu parecia louca, mas era tarde demais.
Sentada atrás da mesa de Marcus, Adira me deu um sorriso frio.
— Este é o meu escritório. E minha bunda está sentada na minha cadei‐
ra. E, se bem me lembro, você não foi convidada.
Avancei até que minha coxa se chocou contra a mesa de Marcus.
— Não estou vendo seu nome nela. Ha-ha!
Sim, eu estava definitivamente perdendo o controle. O que diabos havia
de errado comigo? Por que eu me importava?
— Tessa, eu disse para você ficar em casa.
Dolores se levantou de sua cadeira, parecendo pálida e com as sobran‐
celhas unidas na ponte do nariz.
— Temos tudo sob controle. Você deve ir.
— Sério?
Eu me virei para encará-la.
— Você viu o que ela fez com a porta dele? Ela tirou o nome dele. O
maldito nome dele. Como se ela fosse a dona do lugar.
— Eu sou a dona do lugar — disse a voz de Adira, e eu queria dar um
tapa nas risadas que ouvi nela.
Voltei a me virar lentamente, com minha magia formigando na ponta
dos dedos.
— O que você disse? — Perguntei, minha voz perigosamente baixa.
O sorriso de Adira era realmente maligno, mas ela não disse nada. Pelo
tom de sua voz, percebi que ela estava gostando de me irritar.
— Por favor, Tessa — implorou Beverly, seu habitual sorriso confiante
foi substituído pelo que parecia ser medo. — Não piore a situação.
Respirei fundo ao ouvir o som de preocupação na voz de Beverly.
— O que você quer dizer com piorar? O que aconteceu? Posso dizer
que algo aconteceu. O que você quer dizer? O que é?
Meu olhar encontrou Ruth. Seus olhos estavam vermelhos, como se ela
tivesse chorado muito. Ela se sentou em sua cadeira, com as mãos escondi‐
das sob a jaqueta no colo, e não olhou para mim.
Dolores ainda estava de pé, observando-me como se estivesse prestes a
me atacar a qualquer momento. No entanto, eu podia ver o medo e a tensão
que permaneciam nas bordas de seus olhos.
Minhas tias pareciam presas. Elas pareciam... como se tivessem perdi‐
do. Mas perderam o quê?
Voltei meu olhar para Adira, com a tensão me enrijecendo.
— Você as ameaçou? Que diabos você fez?
— Tessa — advertiu Dolores, com a voz alta.
Adira entrelaçou seus longos dedos sobre a escrivaninha.
— Meu trabalho.
Minha magia pulsou dentro do meu núcleo até que se tornou uma grana‐
da de energia bem unida, pronta para explodir.
— O que diabos isso significa?
A postura de Adira emanava ameaça. Seu rosto era uma demonstração
gelada de raiva determinada, afiada como um punhal, e sua confiança me ir‐
ritava em muitos níveis. Ela se achava acima de mim, acima de nós. Eu odi‐
ava pessoas como ela. Ela não era uma bruxa. Eu tinha certeza disso. Mas
ela era algo - algo perigoso, até mesmo primitivo.
Mas havia sido decidido que, a partir de agora, eu teria bolas grandes e
loucas.
Inclinei-me sobre a escrivaninha e meu rosto se contorceu em um rugi‐
do. Quase mostrei meus dentes para ela.
— Com o que você as ameaçou?
A raiva me invadiu como um rio quente. Se ela achava que poderia ata‐
car minhas tias cumpridoras da lei e intimidá-las sem que eu me envolvesse,
ela era uma idiota. Eu não me importava com regras, mas adorava quebrá-
las. Da mesma forma que adorava estar no limite de minhas emoções.
Parecia que quanto mais eu ficava irritada, mais o sorriso de Adira se
alargava. Ela queria que eu fizesse besteira. Eu queria dar um tapa nela. Du‐
as vezes. Certo, talvez três vezes. Tudo bem, quatro.
— Tessa, pare. Está tudo bem. Eu já confessei — disse Ruth, e eu desvi‐
ei meus olhos de Adira para olhar para minha tia.
— Não há mais nada que você possa fazer.
— Sim, estamos quase terminando aqui — acrescentou Beverly, embora
sua voz tenha tremido um pouco.
— Todos estão comemorando. Você deveria estar lá fora com eles. Você
é jovem. Você deveria estar lá fora se divertindo. Nós nos juntaremos a vo‐
cês em breve.
Com o pulso acelerado, meus olhos se deslocaram de Beverly para Ruth
e para Dolores.
— Vocês não estão me dizendo nada. Está escrito em todos os rostos de
vocês. O que vocês querem? Com o que ela ameaçou vocês? O que vocês
não estão me dizendo?
— Você deveria ir, Tessa.
Ruth se mexeu na cadeira e sua jaqueta escorregou para o chão. Ela se
abaixou e a pegou, e eu registrei as pulseiras de metal enroladas em seus
dois pulsos. Só que essas não eram pulseiras comuns.
Senti o sangue sair de meu rosto. Os braceletes eram algemas de ferro.
Elas se pareciam com as algemas usadas pela polícia humana, mas eram
usadas para enfraquecer ou até mesmo oprimir a magia de uma bruxa ou
impedir que qualquer praticante usasse magia. Se você estivesse com as al‐
gemas, não poderia fazer mágica. No entanto, as que estavam nos pulsos de
Ruth eram diferentes. Para começar, elas não estavam amarradas no meio
com um elo de corrente. Eram separadas em cada pulso. Elas podem pare‐
cer diferentes, mas você não pode se enganar quanto ao leve pulso de ener‐
gia que emana delas.
Adira proibiu minha tia Ruth de usar magia.
— Você algemou minha tia? Você é uma vadia psicótica! — gritei, fora
de mim de raiva. Senti meu cabelo sair dos ombros e flutuar em volta da
minha cabeça.
O corpo de Adira se enrijeceu e seus olhos ficaram negros.
E então algo dentro de mim estalou.
A fúria me eletrificou, e eu me liguei aos elementos ao meu redor.
— Tessa! Não! — gritou Dolores, mas eu mal a ouvi. Tudo o que me
importava era cortar aquela cadela ao meio. Ninguém tratava minha tia
Ruth daquele jeito. Ninguém.
Uma torrente de energia se espalhou para me encontrar, e eu estendi mi‐
nhas mãos e gritei:
— Inflitus!
Uma explosão de força cinética saiu de minhas palmas.
Um borrão de vermelho e preto passou diante de meus olhos.
A força cinética bateu na parede atrás da cadeira vazia em uma explosão
de madeira e drywall.
Fiquei olhando para o buraco aberto. Mas não havia Adira.
Quando senti a presença atrás de mim, já era tarde demais.
Meus braços foram puxados para trás com um súbito impulso doloroso,
assim que senti o metal frio deslizar sobre meus pulsos.
Oh?
Merda.
Adira também me algemou.
Capítulo 7

ocê me algemou? Você é uma vadia! — rosnei, lutando contra


—V minhas amarras.
As mãos me empurraram para frente e eu tropecei na escri‐
vaninha. De repente, fiquei muito consciente das algemas em meus pulsos,
e isso me deixou sóbria. Eu nunca havia sido algemado por algemas huma‐
nas antes, muito menos por algemas mágicas.
Instintivamente, acionei meus sentidos, entrei em contato com os ele‐
mentos ao meu redor - e nada. Nada. Zero. Nada. Nada respondeu. Foi uma
sensação estranha. Os elementos estavam lá - eu podia até sentir as linhas
ley - mas não conseguia alcançá-las.
— Tire-as!
Lutei com minhas algemas, tentando soltar meus braços e me sentindo
como um animal enjaulado. É isso aí. A vadia ia morrer agora.
A caneta esferográfica azul de Marcus estava apoiada na borda da mesa.
Inclinei-me e a peguei com meus dedos. Com o polegar, consegui enfiá-la
em minha manga. Eu nunca sabia quando ela poderia ser útil.
— O que há de errado com você? — Dolores gritou ao meu lado.
Olhei para o lado, com a boca pronta para inventar uma desculpa, mas
Dolores estava olhando para Adira. Não para mim.
Adira colocou as mãos nos quadris, com ar presunçoso.
— Ela apenas tentou me matar. Eu tinha todo o direito de acabar com a
magia dela.
— É claro que ela cometeu um erro — pressionou Dolores. — Ela é um
ser emocional. Ver a tia algemada lhe despertou fortes emoções. Ela não es‐
tá em si.
Eu levantei uma sobrancelha.
— Obrigada.
Não era assim que as coisas deveriam acontecer. Mas eu tinha acabado
de tentar matar a nova chefe. Ops. Eu estava perdendo a paciência com
muita facilidade ultimamente. Isso tinha que parar, ou eu acabaria matando
a mim mesma ou a alguém que me importava.
Eu tinha conseguido estragar tudo. Como eu poderia ajudar a Ruth ago‐
ra? Muito bem, Tessa.
Beverly se levantou rapidamente e começou a andar pela sala, esfregan‐
do as têmporas.
— Isso é ruim. Isso é ruim. Isso é muito, muito ruim.
— Seu vocabulário está melhorando aos trancos e barrancos — comen‐
tou Dolores, com os olhos escuros duros.
Beverly se colocou na frente de Dolores.
— Oh, cale-se. Pelo menos ela teve a coragem de tentar o que todos nós
estávamos pensando...
Ouviu-se uma forte palmada quando a cabeça de Beverly se inclinou pa‐
ra o lado. Uma grande marca de mão vermelha apareceu em sua bochecha.
— Controle-se — disse Dolores, com as bochechas tão vermelhas quan‐
to a marca da mão no rosto da irmã.
Os lábios de Beverly se comprimiram em uma linha fina.
—Você me deu um tapa!
Seus olhos se estreitaram perigosamente.
— Você não serve para nada, árvore...
Batida!
A cabeça de Dolores se inclinou para trás com a força da mão de Be‐
verly.
Oh, meu Deus.
O som de carne batendo em carne explodiu ao nosso redor enquanto as
duas irmãs continuavam batendo uma na outra.
— Pessoal. Parem.
Eu cambaleei para a frente, o que era uma coisa estranha com minhas
mãos amarradas com algemas de ferro atrás das costas.
— Não façam isso. Por favor. Isso é culpa minha.
A última coisa que eu precisava era começar uma briga entre minhas ti‐
as.
Dolores esfregou a lateral de sua bochecha.
— Isso foi muita força para alguém com um peito tão pequeno.
Beverly parecia convencida.
— Eu nunca tive nenhuma reclamação.
Meu olhar se voltou para Adira, que estava apoiada na estante de livros,
observando a troca de palavras com um tipo de prazer doentio. Respirei pe‐
lo nariz, tentando controlar meu coração agitado. Mas quanto mais eu olha‐
va para Adira, mais furiosa eu ficava e mais rápido meu coração batia.
Quando Beverly se afastou de Dolores, meu olhar se voltou para Ruth.
Ela não olhava para mim, com o rosto dolorido. Notei que ela havia coberto
os pulsos com a jaqueta novamente.
Engoli com força.
— As minhas são diferentes.
Eu não conseguia separar meus braços; minhas algemas estavam amar‐
radas no meio com um elo de corrente. Puxei meus pulsos e meus braços ar‐
deram ao tentar colocá-los em um ângulo estranho. Olhei para Adira nova‐
mente.
— Por que as minhas são diferentes?
Eu não esperava que ela respondesse, mas valia a pena tentar.
Adira sorriu como se eu tivesse lhe feito uma pergunta importante.
— Você tem as algemas contra-magia habituais.
Ela empurrou a estante de livros.
Usamos essas algemas em criminosos perigosos que estão prestes a ser
presos... às vezes para sempre.
Eu fiz uma careta.
— Legal.
Ela estava realmente pedindo isso. Eu me senti muito obrigada a dar a
ela.
Adira me observou por um longo momento.
— Os que estão com a sua tia Ruth são parciais.
— Parciais?
— Ela pode ficar em sua casa — respondeu Adira, sem demonstrar
emoção no rosto.
— Ela pode cuidar de seus negócios na cidade, mas não pode fazer má‐
gica. Não até a data de seu julgamento.
— A data do julgamento dela?
Percebi que estava repetindo Adira como um idiota. E quando vi o olhar
apertado no rosto de minhas tias, soube que elas estavam discutindo exata‐
mente isso antes de eu entrar. Meus ombros caíram. Deve ter sido horrível
ver sua irmã algemada como uma criminosa. Com a carranca permanente
de Dolores desde que entrei, eu tinha certeza de que ela havia feito tudo o
que estava ao seu alcance para persuadir Adira a não acusar Ruth. Mas não
tinha funcionado.
Ruth era inocente. Se ela envenenou Bernard, não foi intencional. O sis‐
tema reconheceria que tinha sido um acidente. Eu esperava que sim.
— Estamos falando da Corte da Bruxa Branca?
A esperança se acendeu dentro de mim. Se Ruth tivesse que enfrentar
um conselho de grandes bruxos, ela teria uma chance de lutar. Elas entende‐
riam e ficariam do lado dela. Eu tinha certeza disso.
— Você gostaria disso. Você não gostaria?
Adira fez um beicinho no rosto.
— E que eles lhe dessem um tapa no pulso por ser uma bruxa muito,
muito má?
Seu rosto ficou duro e a pouca esperança que eu tinha desapareceu.
— As acusações de assassinato vão até o Conselho Cinza. Ela passa pe‐
los canais adequados. Sem exceções. Não me importa se você é uma das fa‐
mílias fundadoras de Hollow Cove ou se você é a maior bruxa que já exis‐
tiu. Ninguém está acima da lei.
Isso soou estranhamente parecido com o que Greta havia dito.
Franzi a testa. O Conselho Cinza era o órgão de elite que governava os
mestiços como nós e os nascidos em anjos. Era formado por um membro de
cada corte de mestiços - vampiros, fadas, lobisomens e bruxos - e incluía os
líderes dos nascidos em anjos. Isso era ruim. O pior de todos.
— Quando? — Perguntei, pois quanto mais demorasse, pior seria para
Ruth.
— Assim que eu apresentar a papelada e dependendo dos outros casos
anteriores ao dela... você deve chegar provavelmente na primeira semana de
dezembro.
— Dezembro! — gritei.
— Ela não pode esperar tanto tempo. Isso é loucura.
Dolores se virou para mim.
— Se você não se acalmar, eu mesma vou trancar você!
Fiquei com a boca fechada. Não adiantava fazer com que minhas tias se
voltassem contra mim. Já tinha feito bagunça suficiente para uma noite.
Meus olhos encontraram Ruth novamente e vi seus lábios tremerem.
— Mas ela ainda pode fazer poções. Certo?
Tirar-lhe a capacidade de fazer poções seria como tirar-lhe o ar. Ela
morreria sem isso. Ou entraria em uma depressão grave, o que seria pior.
O novo chefe me deu um sorriso.
— Não pode usar nenhum tipo de magia. Não pode mexer com feitiços,
misturar poções, canalizar talismãs ou varinhas. As leis são muito claras
Uma avalanche de fúria incontrolável se acendeu em mim, e meu cora‐
ção disparou com adrenalina.
— Você está tão morta.
— Tessa, cale-se — gritou Beverly. " — Acho que já tivemos drama su‐
ficiente por um dia.
Mantive meus olhos na nova chefe e abaixei minha cabeça.
— Você pode ter tirado minha magia e o uso das minhas mãos... mas
ainda posso lhe dar a maior cabeçada do século.
Adira riu. A vadia realmente riu.
— Eu adoraria ver isso, bruxinha.
— Com prazer.
Tentei seguir em frente, mas um olhar na direção de Ruth me deixou só‐
bria.
Ela estava tremendo como uma folha, parecendo tão frágil, frágil e pe‐
quena enquanto chorava. Eu estava sendo um idiota. Precisava me recom‐
por.
Dei meu melhor sorriso para Adira.
— Você está esperando a chuva chegar? Eu adoraria te dar uma surra,
mas parece que estou de mãos atadas. Você entendeu?
Adira deu de ombros.
— O funeral é seu.
Eu a olhei fixamente, vendo que seus olhos eram de um verde profundo,
como um verde escuro da floresta. Eu não tinha visto seus olhos escurece‐
rem um momento atrás? Logo antes de eu fazer papel de bobo?
— Você não é uma bruxa — afirmei, sem tirar os olhos de seu rosto sor‐
ridente. — Se fosse, você não estaria falando de bruxos com tanto desdém.
O que você é? Você se moveu rápido... quase como...
— Um vampiro — respondeu Adira, sorrindo sem mostrar os dentes.
Minhas entranhas se agitaram. Droga. A nova chefe era uma vampira.
Isso explicava sua beleza cruel e sua capacidade de estar em um lugar em
um momento e, em um piscar de olhos, em outro.
Eu vacilei uma vez, mas não vacilaria duas vezes.
Também me ocorreu que Ronin, sendo meio-vampiro e intrometido co‐
mo o diabo, teria sabido que ela era uma vampira quando ele a procurou.
Mas ele não me contou.
— Legal. Um vampiro. Isso é ótimo. — Suspirei. — Então, o que vai
acontecer comigo? Você vai me jogar para os seus amigos vampiros para
que eles me bebam até secar? Você vai me trancar em algum caixão?
Sim, eu estava sendo um pouco dramática demais. Eu estava tendo um
dia horrível. Eu tinha direito a um pouco de drama.
— Pensei em deixar você ir embora com uma advertência.
— Sério?
Isso foi inesperado.
Ruth virou a cabeça e seus olhos úmidos encontraram os meus, pedindo
que eu não continuasse a abusar da sorte. Imediatamente, minha tensão caiu
em minhas entranhas como chumbo.
— Você vai se comportar? — perguntou Adira, girando a chave das al‐
gemas mágicas em seus dedos.
Mostrei a ela meus dentes brancos perolados.
— Que tal você me tirar as algemas para descobrirmos, vampira?
— Tessa — rosnou Dolores. — Pelo amor da deusa, já chega. Por favor,
para o bem de todas nós. Deixe que ela os tire. Ela é a chefe, agora. Faça o
que ela diz.
Suspirei, sentindo-me ligeiramente culpada.
— Tudo bem. Eu vou me comportar. Não vou bater em você esta noite.
Você está satisfeita? Você é a chefe interina.
Adira agarrou meu braço com delicadeza e me puxou.
— Você deveria saber — disse ela enquanto eu sentia suas mãos nas al‐
gemas de ferro. — Marcus ainda está em um trabalho.
— Como você sabe?
Houve um pequeno clique de metal e o peso das algemas em volta de
meus pulsos caiu.
— Ninguém teve notícias dele — falei, virando-me e esfregando os pul‐
sos enquanto sentia a magia retornar ao meu âmago em uma onda quente.
Senti algo pequeno deslizar pelo meu pulso direito. A caneta esferográ‐
fica azul escorregou de seu esconderijo e eu a peguei antes que caísse, colo‐
cando-a no bolso antes que Adira percebesse alguma coisa.
— Sim — respondeu Adira, e meu peito se apertou. — Acabei de falar
com ele esta noite. Logo antes de suas tias aparecerem.
Ela foi até a escrivaninha e colocou as algemas em uma gaveta superior.
Meu mundo mudou e eu me esforcei para encontrar o equilíbrio. Ele
também ficou em um tom feio de vermelho.
Marcus.
O homem com quem eu estava tentando falar há semanas, que nunca me
ligou de volta, nem mesmo uma vez, nunca retornou minhas ligações e me
fez pensar no pior... estava bem.
Ele estava mais do que bem e optou por ligar para Adira. Não para mim.
Acho que eu não merecia uma ligação de volta.
Bem, então. Marcus pode ir se ferrar.
Capítulo 8

A spiseoramaram.
nas que se seguiram não foram melhores. Na verdade, as coisas

Ruth mal saía de seu quarto. Ela fazia as refeições em seu quarto, e isso
quando comia alguma coisa. Ela parecia estar definhando com o passar das
semanas. Eu sabia que ela se culpava pelo que aconteceu com Bernard. E
não importava quantas vezes Dolores, Beverly, Iris ou eu lhe disséssemos o
contrário, era como se ela não nos ouvisse - ou se recusasse a ouvir.
Nas últimas quatro semanas, eu liguei para Grace todos os dias para ob‐
ter informações atualizadas sobre o relatório do legista. E todas as vezes,
ela respondia:
— Sinto muito. Mas não tenho nenhuma informação nova para te dar. A
chefe ligará se achar necessário contar a você.
Não importava o quanto eu falasse alto ou quantas obscenidades eu gri‐
tasse para Grace, ela não me daria nada. E eu também não ia ligar para Adi‐
ra. Aquela vampira fazia minha pele arrepiar.
E nessas quatro semanas, a ideia de Marcus surgiu e desapareceu. Não
vou mentir. Fiquei furiosa depois que saí do escritório do chefe. O fato de
ele ter telefonado para Adira me deixou furioso. A raiva me abalou, mas
também me deixou doente.
Marcus ligou para Adira, mas não para mim.
E ainda não há notícias dele.
Todos os pensamentos racionais saíram de minha cabeça. O beijo, sua
proteção cuidadosa, o fato de me levar para casa - tudo - era mentira. Ou is‐
so, ou eu tinha sérios problemas de imaginação. Eu já havia sido enganada
mais de uma vez em minha vida amorosa e, na minha idade - quase trinta
anos em algumas semanas -, eu deveria saber melhor.
Aparentemente, eu não sabia.
Dentro de mim, a fúria crescia e uivava. Eu queria gritar, chutar, socar
alguma coisa - de preferência o rosto de Marcus. Em vez disso, tive que me
contentar em imaginar o lixo dele explodindo.
Pior ainda, Adira estava se sentindo em casa no antigo escritório de
Marcus e em sua cidade natal. Ela havia trazido sua própria equipe de qua‐
tro vampiros - três homens e uma mulher. Era como se Marcus nunca tives‐
se existido.
Mas eu não conseguia pensar em Marcus agora. Eu tinha questões mais
urgentes e presentes em minha vida, como minha tia Ruth e os julgamentos
de bruxos.
Com o coração pesado, vi minha amada tia Ruth definhar e entrar em
uma depressão profunda, sabendo que eu não podia fazer nada a respeito.
Eu me sentia impotente. Se ao menos ela pudesse fazer algumas de suas po‐
ções, isso teria lhe trazido um pouco de alegria e mantido sua mente em ou‐
tras coisas enquanto ela esperava por aquela maldita data no tribunal.
Sim, tínhamos uma data no tribunal. 7 de dezembro. Ruth deveria com‐
parecer perante o Conselho Cinza aqui em Hollow Cove. E sem nenhuma
notícia sobre o que o médico legista havia descoberto, ela estava indo às ce‐
gas. Mas ela não estaria sozinha. Eu estaria lá. Assim como suas irmãs, Iris
e Ronin.
Eu não sabia como ou quando, mas de alguma forma eu faria tudo cer‐
to. Eu faria isso.
Basta dizer que minhas quatro semanas de treinamento também não fo‐
ram tão bem quanto eu havia planejado. Com essa confusão horrível com a
Ruth, fiquei sozinha para me preparar para o meu primeiro julgamento de
bruxa, que estava acontecendo neste exato momento.
Minhas tias já haviam feito o melhor que podiam no mês passado. Ago‐
ra era comigo. E eu mostraria a elas que eu valia o nome Davenport.
A manhã do dia primeiro de dezembro foi fria quando voltei para a
High Peak Wilderness. Um vento gelado soprava os galhos sem folhas das
árvores da densa floresta que me cercava por quilômetros. A floresta pare‐
cia despida de vegetação, como se estivesse faltando alguma coisa. Uma fi‐
na camada de gelo cobria um lago à minha esquerda enquanto eu percorria
o caminho de cascalho que levava à imponente mansão de troncos. Nuvens
cinzentas e pesadas cobriam o sol, e o ar cheirava a neve. Ela estava che‐
gando. Muita neve.
Eu podia ser uma tola quando se tratava de homens, mas não era tola
quando se tratava de clima.
Eu tinha me vestido para o clima do norte. Calcei minhas botas de in‐
verno de cano alto Merrell e calças cargo pretas flexíveis sobre um par de
meias-calças e coloquei as camadas de camisetas e suéteres sob minha ja‐
queta de inverno de plumas da North Face. Ela era longa o suficiente para
manter minha bunda quente, mas curta o suficiente para ser flexível, se ne‐
cessário.
Eu não tinha ideia de onde os testes seriam realizados. Se fossem dentro
de casa, eu simplesmente tiraria algumas camadas de roupa. Eu não estava
correndo nenhum risco.
Sentindo-me confortável, apesar dos ventos frios, cheguei ao Castelo de
Montevalley, a gigantesca mansão em forma de tronco. Subi nervosamente
os degraus da frente e esperei que as enormes portas duplas de madeira se
abrissem para mim.
Assim que passei pela soleira da porta, os mesmos impulsos frios e du‐
ros percorreram meu corpo, vindos do scanner corporal do castelo. Afastan‐
do a sensação estranha, entrei no grande saguão.
— Onde estão todos?
Girei no local, procurando vozes, mas ouvindo apenas a batida do meu
próprio coração em meus ouvidos.
Peguei meu celular e verifiquei a hora.
— Sete e cinquenta e dois. Cheguei cedo. Então, onde estão todos?
Sim, eu estava falando comigo mesma como uma lunática, mas nin‐
guém estava aqui para me ouvir.
Um sentimento de pavor começou a subir dos dedos dos pés até a nuca.
Será que eu havia errado a data? Eu me lembrava perfeitamente que Greta
havia dito primeiro de dezembro às 8 horas em ponto.
Entrei em pânico e me pus em movimento. Corri para o teatro lateral,
onde todos os bruxos haviam se reunido no mês passado. Passei pelas por‐
tas giratórias e pisquei... em uma sala escura e vazia.
— Merda. Merda. Merda!
Corri de volta para o saguão, passei pela grande escadaria de madeira
polida que levava aos andares superiores e corri em direção à ala direita da
mansão, para a grande sala comum. O espaço era decorado com móveis rús‐
ticos, muita madeira e sofás e cadeiras grandes e confortáveis ao redor de
uma grande lareira de pedra.
O quarto era bom. Grande. E muito vazio.
— Isso não está acontecendo.
Fiquei na sala grande e me senti claustrofóbica. De repente, não havia ar
suficiente, nem espaço suficiente. Como eu poderia ter estragado tudo? O
medo me sufocou. Um punho agarrou meu coração e o apertou com força
em uma bola dolorosa.
Eu havia fracassado, e nem sequer tinha começado.
Peguei a bola de culpa e medo que ameaçava me engolir e a enfiei no
fundo dos cantos da minha mente. Eu precisava me concentrar.
Não, eu não havia errado as datas ou o horário. Então, por que não havia
ninguém aqui?
Um grito vindo de fora chamou minha atenção.
O barulho veio da janela em frente a mim. Com o coração na garganta,
corri para a janela e olhei para fora.
Cerca de cem bruxos estavam no meio de um grande campo aberto, a
mais ou menos 500 metros do castelo, todas amontoadas em um círculo ao
redor de uma pessoa. A pessoa era do tamanho de meu polegar, mas, se eu
fosse adivinhar, era Marina.
— Droga.
Não havia tempo para me perguntar por que isso estava acontecendo.
Corri de volta para o castelo e saí pelas portas da frente. Minhas botas atin‐
giram o caminho de cascalho e eu acelerei, correndo ao redor do lado direi‐
to do enorme edifício. Cheguei ao campo em uma velocidade rápida, com a
adrenalina bombando em minhas coxas.
Cheguei à primeira fila de bruxos em menos de quarenta segundos. Na‐
da mal.
Sem fôlego, inclinei-me para frente e tomei alguns goles de ar gelado.
— Que bom que você se juntou a nós — disse uma voz.
Eu me endireitei, consciente de que a atenção de todos os bruxos reuni‐
dos estava voltada para mim. O grupo se separou quando uma bruxa loira
com metade da cabeça raspada veio em minha direção.
— Achei que você não conseguiria — disse Marina, com um sorriso no
rosto. — Você já perdeu o exame escrito.
— O quê? — Ofeguei, o ar frio queimando meus pulmões. — Mas es‐
tou aqui na hora certa. Faltam dois minutos para as oito. Greta disse 8 da
manhã e eu estou aqui. Cheguei na hora certa.
Os bruxos ao meu redor sussurraram umas para as outras, e algumas ri‐
ram.
— O quê? Eu rosnei.
Marina inclinou a cabeça e fez um beicinho falso.
— Você obviamente não recebeu o e-mail — disse ela, e meu coração
pareceu implodir.
— Que e-mail? — perguntei, com a boca seca e as palavras pastosas,
como se minha boca estivesse cheia de bolas de algodão.
— Eu não recebi nenhum e-mail.
— Claramente — disse Marina, e um punhado de bruxos riu abertamen‐
te. — Você recebeu um e-mail há duas semanas sobre a mudança de horá‐
rio. O exame escrito foi às sete da manhã. Você não apareceu.
Eu tremia de adrenalina ou raiva, talvez os dois.
— Mas eu nunca recebi esse e-mail. Alguém se esqueceu de enviá-lo
para mim. Verifique seus arquivos. — Eu a encarei com firmeza. — Eu não
recebi nenhum.
Tive a sensação de que ela havia feito isso de propósito. Mas ela não
podia... podia?
Marina levantou a cabeça. O poder se eriçou em seus olhos. Ela parecia
real, como uma deusa arrogante. Eu tinha que reconhecer isso a ela. Ela sa‐
bia como fazer um show.
— Todo mundo tem um — disse ela. — Você teve um, mas não apare‐
ceu. Por quê? Você acha que não precisa? Você acha que é melhor do que
todo mundo aqui?
Meu rosto ficou quente. Não é isso de novo.
— Não. Não acho isso de jeito nenhum. Eu só não recebi o maldito e-
mail.
— Aqui não há como mudar — disse Marina. — Os julgamentos de
bruxos são sérios. Se você não consegue tratá-los como tal e respeitá-los, a
culpa é sua. E se você não consegue ler seus e-mails... bem... isso não é pro‐
blema meu. A prova escrita faz parte do primeiro julgamento. Você terá de
se contentar sem ele.
Ela se virou e caminhou de volta para um ponto no campo.
Sim. Ela fez isso de propósito.
Fechei a mandíbula antes de piorar as coisas. Tudo bem, eu não passei
no exame escrito. Mas eu ainda estava no jogo, ela tinha acabado de dizer
isso.
Senti que os olhos estavam voltados para mim e vi o bruxo Willis me
dando um pequeno sorriso antes de se virar com um bloco de anotações e
uma caneta em seus dedos vermelhos e gelados. Todos os outros se afasta‐
ram de mim como se eu fosse uma praga ambulante.
— Ouçam — disse Marina. — Aqui não há equipes, nem amizades. Vo‐
cês são inimigos uns dos outros porque, bem, apenas um punhado de vocês
conseguirá sobreviver. Então, por que se preocupar? Vocês estão por conta
própria. As provas são difíceis e somente os fortes serão bem-sucedidos. Se
vocês não conseguirem passar nessa prova... é melhor desistir, porque daqui
para frente só vai ficar mais difícil.
Seus olhos se voltaram para as bruxos que aguardavam.
— Dependendo da pontuação obtida no exame escrito, a porta escolherá
você. Boa sorte.
— Porta? Que porta?
Meu estômago se contraiu quando olhei ao redor, mas tudo o que vi fo‐
ram colinas e hectares de floresta. Esqueça a ideia de perguntar a alguém.
Parecia que eu tinha perdido muito mais do que apenas o teste escrito.
Os lábios de Marina se moviam em um cântico enquanto o latim jorrava
de sua boca. Um lampejo de sensação me atingiu enquanto Marina extraía
poder. Muito poder.
A magia se infiltrou nas palavras e elas reverberaram com força, ecoan‐
do na floresta ao redor e vibrando no chão onde eu estava. Um vento forte
se ergueu e eu olhei por entre os detritos de folhas caídas e poeira enquanto
ele se formava em três funis gigantes.
O vento diminuiu quando as folhas e os detritos caíram no chão.
E ali, no meio do campo aberto, havia três portas.
Capítulo 9

T odos se puseram em movimento, correndo para as três portas em um fre‐


nesi selvagem, como se fosse uma corrida. Todos, exceto eu.
Sim, eu havia perdido totalmente as coisas importantes. E sim, eu não
tinha ideia do que fazer.
Quando minhas pernas começaram a funcionar, segui os outros bruxos e
corri para lá.
As três portas estavam separadas por cerca de três metros em uma área
plana do campo. Não havia nenhum tipo de viga que as sustentasse, mas
elas permaneciam de pé. Elas estavam simplesmente... lá.
A primeira porta foi pintada de branco. A porta do meio era cinza. E a
última porta era preta.
A próxima coisa que aconteceu foi muito estranha, mas então três portas
surgiram magicamente. O estranho era meu novo normal.
Diminuí a velocidade quando me aproximei, observando a primeira bru‐
xa - uma jovem com o rosto cheio de acne - parada diante das portas. Prendi
a respiração quando a porta branca se abriu de repente.
Ela passou correndo e a porta se fechou atrás dela.
Certo, estranho. Mas eu poderia fazer isso.
De pé atrás da multidão de bruxos, fiquei na ponta dos pés, tentando ver
o que havia além da porta. Mas com todos se movendo, eu não conseguia
ver.
Em seguida, um punhado de bruxos passou pela porta cinza e depois pe‐
la porta preta. Em cerca de um minuto, todos os bruxos, inclusive Willis -
que havia entrado pela porta cinza antes que ela se fechasse atrás dele, dei‐
xando-me olhando -, haviam passado pelas portas.
Eu era a única que restava.
Sua porta escolherá você...
Dei um passo à frente em direção à porta branca e parei. Não sei por
que, mas olhei para Marina atrás de mim. Ela me encarou com um sorriso
de vitória, do tipo que um adversário confiante dá quando tem certeza do
resultado.
— Então, o que há por trás da porta número um? — falei em minha imi‐
tação de apresentador de gameshow. Eu ri. Ela não riu de volta. — Porta
número dois? — Tentei novamente. — Acho que você não vai compartilhar
o que está por trás da porta número três. Você não vai compartilhar o que
está atrás da porta número três? — Perguntei, embora soubesse que era inú‐
til.
Marina me encarou com um olhar vazio.
— Tudo bem, então. Que se dane isso.
Respirei fundo, tentando acalmar meus nervos.
— Três portas. Três possibilidades. E a minha porta vai me escolher.
Se as portas fossem realmente um reflexo do teste anterior, eu estava
ferrada.
Cheguei atrasada no meu primeiro dia e fui reprovada no exame escrito.
Como as coisas poderiam piorar? Porque elas sempre podem piorar.
Quando você estiver em dúvida, siga seu instinto.
E meu instinto disse que era a porta preta.
Com meu coração tentando abrir um buraco na caixa torácica, posicio‐
nei-me em frente à porta preta e esperei. Ela não se abriu.
Em vez disso, a porta cinza ao lado dela se abriu em suas dobradiças.
— Não esperava por isso. — Inclinei a cabeça para o lado e fiquei
olhando pela abertura. Pisquei os olhos e vi as mesmas colinas e florestas.
Nenhuma terra mágica. Nenhuma câmara secreta, apenas o mesmo campo
antigo. Era apenas uma moldura de porta em um campo. Mas não era.
— Ok. Não tenho ideia do que isso significa. Mas quem se importa?
Certo? Porta cinza.
Dei um passo para o lado e entrei.
Meu corpo foi puxado para a frente e senti meus pés deixarem o solo
sólido. Eu já esperava por isso, então não entrei em pânico e, de alguma for‐
ma, era familiar. Parecido com o que aconteceu quando pulei uma linha ley.
Minha respiração foi expulsa dos pulmões e me senti cair. Um formigamen‐
to me percorreu enquanto meus pulmões se recuperavam, enchendo-se de ar
frio.
Um momento depois, minhas botas atingiram o solo sólido e eu me en‐
direitei. Meu coração batia forte enquanto eu me preparava com uma pala‐
vra de poder em meus lábios.
Eu estava no meio de uma rua, uma espécie de centro da cidade, com
pequenos prédios comerciais amontoados por falta de espaço. Eu não estava
mais no campo.
Depois de algumas batidas do coração, nos primeiros dez segundos de
olhar ao redor, as casas, as ruas e até mesmo as árvores sem folhas eram fa‐
miliares.
— Mas que diabos?
Eu estava em Hollow Cove. Minha cidade. Só que não era.
O céu estava escuro como breu e estrelas brilhantes brilhavam no alto.
A lua estava baixa e excepcionalmente grande e brilhante.
Eu estava em uma realidade diferente, em outra versão de Hollow Cove
- uma versão inventada, uma versão falsa. A versão da Marina. Que bom.
Ela foi a arquiteta desse mundo falso. Eu não conhecia a bruxa. Se co‐
nhecesse, teria uma ideia do que esperar. Por enquanto, eu só sabia que isso
seria péssimo.
— Isso faz parte dos julgamentos de bruxos — lembrei a mim mesmo.
— Eles estão apenas tentando assustar você.
Achando que era melhor começar a me mexer, segui pela versão de Ma‐
rina da Shifter Lane, tentando descobrir qualquer coisa fora do lugar - um
poste de luz, um banco, uma rua ou uma loja, mas não. Era idêntica à minha
cidade real de uma forma assustadora. Mas minha cidade real tinha pessoas.
Esse lugar estava deserto.
A luz da lua iluminava a cidade com clareza cristalina. Subi a rua,
olhando por cima do ombro a cada poucos segundos, com meus sentidos em
alerta máximo, ouvindo o raspar repentino de um sapato ou qualquer som
revelador de alguém vindo em minha direção. Qualquer um ou qualquer
coisa poderia vir em minha direção de todos os lugares ao mesmo tempo.
Eu escutei. Esperei. Observei.
Eu ainda estava furiosa com Marina por ter sabotado propositalmente
meus julgamentos de bruxos - porque todos nós sabíamos que ela tinha feito
isso. Mas eu não tinha nenhuma prova, nem esperava que Greta acreditasse
em mim. Todos eles queriam que eu fracassasse.
Caminhei em silêncio. Sem movimento. Nenhum ruído. Nenhum cheiro
útil também. Nada. Era como aquele filme em que o personagem principal
acorda depois de um coma e descobre que é a última pessoa que restou na
Terra. Só que, dessa vez, eu era a atriz.
— Alô? — Chamei, sem esperar ouvir uma resposta, mas achei que de‐
veria tentar mesmo assim.
Um silêncio pesado e assustador se abateu sobre a cidade.
— Olá — respondeu uma voz.
Parei e uma descarga de adrenalina me atravessou. Eu me virei em dire‐
ção ao som da voz.
E amaldiçoado.
A imagem me atingiu como uma maré sufocante.
Uma pessoa estava na rua. Uma pessoa que se parecia e soava exata‐
mente como eu. Ela até usava exatamente as mesmas roupas, até a mesma
bolsa de mensageiro enrolada no meu ombro e o rabo de cavalo alto. Um
clone. Meu clone.
Eu estava em Hollow Cove falsa, olhando para mim falsa.
Puxa vida.
Um frisson estranho e frio percorreu minha pele e desceu por minha es‐
pinha, até minhas pernas, até que eu senti em cada centímetro do meu cor‐
po.
Se Marina queria me enervar, ela conseguiu.
Se todos os julgamentos de bruxos eram iguais, eu sabia, sem dúvida,
qual era o meu. Meu primeiro julgamento de bruxa foi que eu tinha que lu‐
tar contra mim mesma.
Incrível.
Olhei de relance para a falsa eu.
— Eu deveria lutar com você. Não é?
O falso eu sorriu. A expressão era tão errada, mas tão familiar. Era co‐
mo naqueles filmes de terror em que o personagem principal se olha no es‐
pelho e reconhece, em uma fração de segundo, que seu reflexo não é ele,
mas uma representação demoníaca que sorri para ele. Seus movimentos não
são totalmente os mesmos. Que horror.
— Você está certa — respondeu a falsa eu, com minha voz exata.
Eu tremia, com arrepios em minha pele.
— Isso é tão errado em muitos níveis — respondi, procurando em meu
cérebro todos os feitiços e palavras de poder que eu usaria em mim mesma.
O falso eu arqueou uma sobrancelha.
— Ah, não. Não está errado. Isso é exatamente o que deveria ser.
Eu também arqueei a sobrancelha.
— O que você quer dizer com isso?
— Você nunca será uma Merlin — ela me informou em tom de zomba‐
ria. — Estou aqui para garantir isso a você.
— Excelente. — Eu sorri e estalei os dedos. — Vamos lá, falsa eu.
Se alguma palavra pudesse descrever a estranheza e o mistério de ter
uma conversa consigo mesmo, bem, ela estaria estampada em minha testa.
— Você pode apostar.
A falsa eu acompanhou meu sorriso.
— Inspiração! — gritou ela.
Minha boca se abriu.
— Ei, essa é a minha nova palavra de poder...
A dor me atravessou quando fraturas de energia vermelha me atingiram,
incendiando cada célula do meu corpo e me levantando do chão. Eu gritei
em uma agonia abrasadora. Bati no chão com força e rolei, meu coração ba‐
tendo forte e enchendo meus ouvidos com sua batida rápida. Meu corpo se
sacudiu e se debateu com as ondas de dor que o percorreram.
Em meio às minhas lágrimas, observei o falso eu, seu rosto cimentado
em uma diversão distorcida pela dor que eu sofria.
Eu também podia jogar esse jogo. Ainda não tinha acabado, nem de lon‐
ge. Se Marina achava que eu não lutaria contra mim mesma, ela era tão es‐
túpida quanto aquele penteado.
Com a maior parte da dor dissipada, eu me levantei, invoquei a magia
dos elementos e gritei uma palavra de poder.
— Accendo!
Bolas de fogo gêmeas saíram das minhas palmas, voando retas e certei‐
ras, bem na cabeça da falsa eu.
— Cataracta! — gritou ela, e uma cortina de água se ergueu diante dela.
As bolas de fogo atingiram a água e se extinguiram em uma fumaça es‐
caldante.
— Certo — eu disse, irritada. — Então, você tem alguma habilidade
com magia. Mas eu ainda sou a mais bonita.
Coloquei meus pés no chão e gritei:
— Fulgur!
Um raio branco-púrpura atingiu o peito da falsa eu.
Mas meu sósia se esquivou no último segundo. O raio atingiu a calçada,
lançando uma chuva de pedaços de asfalto.
Irritada, tentei novamente.
— Inflitus! — gritei, entrando em contato com os elementos e enviando
uma explosão de força cinética para ela.
E, mais uma vez, a falsa eu girou e se esquivou, fazendo com que a ex‐
plosão não a atingisse por um fio de cabelo.
Mas que diabos? É impossível que ela tenha se movido daquela manei‐
ra, como se tivesse antecipado meu feitiço, como se soubesse o que eu ia fa‐
zer antes mesmo de mim. Esquisito. E um pouco assustador.
Ofegante, cambaleei quando a magia tomou uma parte de minha ener‐
gia, minha força vital como pagamento. Meu olhar se voltou para o falso
eu. Ela estava firme, forte e concentrada, como se o uso de palavras de po‐
der não a afetasse. É claro que não afetariam. Ela não era real, não era feita
de carne e osso. Ela era uma representação mágica de mim. Ela tinha todos
os meus pontos fortes e nenhum dos meus pontos fracos.
Um borrão de movimento chamou minha atenção, e o som de uma voz
articulando um feitiço chegou até mim.
Merda.
Eu me joguei para o lado. Mas não rápido o suficiente.
A dor me atingiu em uma torrente ofuscante de agonia, como se eu ti‐
vesse cortado meu estômago e arrancado um pedaço de minhas entranhas.
A cor preta manchou minha visão e senti gosto de sangue. Por um momen‐
to, fiquei cega e tive medo de me mexer. A dor pode fazer isso com uma
pessoa. Mas então a dor diminuiu, enquanto os tremores da agonia me sacu‐
diam e desapareciam.
Eu não sabia qual feitiço ou palavra de poder a falsa eu usou em mim,
mas doeu pra caramba.
Pisquei com a visão embaçada, vendo minha falsa eu parada no meio da
rua, esperando que eu me levantasse para que pudéssemos nos enfrentar no‐
vamente. Ela era arrogante. Era ousada. Ela achava que poderia me derrotar.
Ela era eu.
No entanto, eu não estava derrotada e ia chutar meu traseiro falso. Sim,
isso soou estranho.
Se ela fosse eu, seguindo essa lógica, ela reagiria da mesma forma que
eu. Por isso, ela conseguia prever meus movimentos. Com isso em mente,
eu tinha que fazer algo que normalmente não faria. Ser diferente. Pensar di‐
ferente. Então, o que o oposto de mim faria em uma luta de feitiços?
Absolutamente nada.
Então, fiquei de pé, coloquei as mãos nos quadris e esperei.
A falsa eu me olhou com desconfiança, como se eu fosse uma criança
de cinco anos pega em uma mentira.
— O que você está fazendo?
Mostrei a ela meu melhor sorriso de selfie.
— O que você quer dizer com isso? Não estou fazendo nada.
A falsa eu estreitou os olhos e eu vi seu rosto ficar tão escuro quanto a
rua.
— Por que você não está me atacando?
— Por que você não está me atacando?
— Estou esperando por você — respondeu minha sósia com um enco‐
lher de ombros.
— Bem, eu também estou esperando por você.
O falso eu levantou o quadril.
— Posso fazer isso o dia todo.
— O mesmo para você, irmã.
— Você é patética.
Dei de ombros.
— Bem, nesse caso... se eu sou patética, e se você é minha sósia... isso
significa que você também é patética.
Eu ri.
— Você é uma idiota — disse ela. — Você é uma idiota.
— Não, você é a idiota.
Eu estava perdendo a cabeça. Mas isso foi muito divertido.
Inclinei minha cabeça.
— Aqui vai uma dica, já que estamos falando de compartilhar agora.
Todos os insultos que você me lançar... bem... você pode muito bem lançá-
los contra si mesma. Porque você é eu.
O rosto do falso eu se transformou em algo realmente feio, distorcendo
as maçãs do rosto muito altas e o nariz muito pequeno para parecer remota‐
mente humano, antes de voltar a se parecer com o meu pequeno eu. Eu po‐
dia ver os planos se formando por trás de seus olhos escuros - meus olhos.
Está bem. Ela estava perdendo a calma. Exatamente como eu faria. Está
na hora de você aumentar o nível.
Eu xinguei.
— Droga. É assim que eu fico quando estou com raiva? Tenho que dizer
a você que pareço meio estúpida.
Os olhos de Fake-me escureceram até parecerem quase pretos.
— Você não tem nada a dizer?
Observei, enquanto me concentrava em meus sentidos, enquanto a falsa
eu respirava, a palavra de poder à beira de seus lábios.
— Evorto! — ela gritou.
Mas eu já estava me movendo.
Eu dei um salto de velocidade - algo de que Ronin teria se orgulhado -,
caí no chão, rolei e cheguei atrás dela.
— Droga. Funcionou — respirei, surpresa. Eu era ainda mais incrível
do que eu pensava.
A falsa eu se deslocou, sua imagem ondulou como se fosse feita de
água. Mas eu estava em cima dela.
Com minha confiança recém-adquirida, inspirei-me em minha vontade e
gritei:
— Accendo!
A forma do falso eu se solidificou. Ruth apareceu em seu lugar, com os
olhos arregalados e úmidos.
— Ruth?
Eu me sacudi. Minhas bolas de fogo passaram pela cabeça de Ruth,
completando bolas de ar quando atingiram as janelas da frente da mercearia
de Gilbert, e a parede inteira explodiu em chamas.
Naquela fração de segundo, eu sabia que não era Ruth, mas minha men‐
te tinha dúvidas suficientes para me fazer errar.
Ruth fez uma careta e gritou:
— Fulgur!
— Porra.
Eu não tinha tempo para me mover. Não havia motivo para me mover.
Pisquei os olhos quando o fogo das bolas de fogo que se aproximavam
queimou meu rosto antes de explodir em meu peito.
Uma dor abrasadora percorreu meu corpo, fazendo-me cair no chão em
agonia. Quando pensei que ia me queimar vivo, a dor parou.
Pisquei os olhos para o rosto sorridente de Marina.
— Tessa Davenport — disse ela, com um sorriso na voz. — Você fa‐
lhou.
Capítulo 10

ocê falhou! — gritou Ronin, inclinando-se para a frente na anti‐


—V ga cadeira do quarto da minha mãe, que agora era o meu quarto.
— Shhh!
Corri para a porta do meu quarto e a fechei com força. Reconheci as vo‐
zes abafadas que vinham da cozinha no andar de baixo como Dolores e Be‐
verly.
De costas para a porta, dei meia-volta.
— Não quero que minhas tias ouçam. Especialmente a Ruth.
Meus pensamentos se voltaram para Ruth, e meu coração pareceu cair
em minhas entranhas. Depois dos testes, a primeira coisa que fiz quando
cheguei em casa foi ver como estava Ruth. A porta de seu quarto estava fe‐
chada e, não importava quantas vezes eu batesse e chamasse, ela não vinha
até a porta.
Ronin apareceu momentos depois, todo animado e nervoso com meus
testes. Ele trouxe uma garrafa de champanhe para comemorar. Uma garrafa
de verdade e três taças.
Eu havia tirado a garrafa dele.
— Você está louco? São onze da manhã.
Ronin me mostrou um de seus sorrisos infames, preguiçosos e sensuais
que faziam as mulheres abrirem os joelhos para ele. Embora agora toda a
sua atenção estivesse voltada para Iris, desde que ela chegou a Hollow Co‐
ve.
— Mas em algum lugar já passa do meio-dia — disse ele. — Todo mun‐
do sabe que o meio-dia é o horário aceitável para ficar bêbado.
Ele estava todo sorridente antes. Agora, bem, eu não gostei do choque
em seu rosto. Nem da pena. Pena? Piedade era para perdedores. Eu não era
uma perdedora.
A depressão substituiu meu constrangimento com a ideia de que eu po‐
deria ser descoberta, que de alguma forma Marina ou Greta teriam enviado
a notícia de meu fracasso para minhas tias. Até o momento, elas não o fize‐
ram, mas isso não significava que não o fariam.
Eu tinha tanta certeza, tanta certeza de que seria um sucesso nessas pro‐
vas, e meu excesso de confiança me atingiu em cheio.
Eu era uma tola, um idiota excessivamente autoconfiante, e paguei caro
por isso.
— Tessa tem razão.
Iris se remexeu na minha cama, com o cabelo preto liso passando pela
mandíbula. Seus olhos estavam tristes quando ela se fixou em um ponto no
chão.
— Ruth está em um lugar escuro. Eu sei. Já passei por isso. Conheço
bem.
Eu sabia que Iris estava falando sobre a maldição que Adan havia lança‐
do sobre ela, como deve ter sido assustador para ela estar presa no corpo de
uma cabra, sozinha e assustada, sem poder se comunicar com ninguém para
ajudá-la. Não até ela me encontrar.
— Como faço para tirá-la de lá?
A ideia de que Ruth estava sendo lentamente puxada para essa escuri‐
dão não me agradava muito. A depressão era real, e eu não tinha ideia de
como ajudar.
— Você não precisa — respondeu Iris. — Você a apoiará, mas ela preci‐
sa se libertar. Sair da escuridão. Ela precisa querer isso. Porque tudo o que
você ou nós fizermos não ajudará se ela não reagir. Se ela não estiver pron‐
ta. E, neste momento, ela não está.
Eu não sabia se Iris estava se referindo a quando ela foi amaldiçoada co‐
mo uma cabra, ou se isso era algo completamente diferente. Mas não insisti
no assunto.
Todos nós sabíamos que Ruth estava se culpando pela morte de Ber‐
nard. Ela estava levando isso muito a sério, muito longe, e isso me assusta‐
va muito. Minha tia Ruth sempre foi a mais alegre, a que sorria, a que não
se importava com nada. Seu amor pelos animais e pela natureza sempre me
tocou profundamente. Vê-la tão abatida e perdida foi aterrorizante. Eu tinha
medo de perdê-la para sempre se não fizéssemos algo rápido.
— Tess — declarou Ronin, e eu levantei os olhos para encontrá-lo me
encarando com o cenho franzido.
— O quê? — respondi.
O meio-vampiro soltou um suspiro.
— Como assim você… — ele disse e depois sussurrou, — ... não pas‐
sou no teste? Que diabos aconteceu? Você estava realmente preparada. Você
se preparou por um mês inteiro. Nós mal vimos você. Você estava estudan‐
do ou praticando suas coisas de bruxa.
Levantei uma sobrancelha.
— Minhas coisas de bruxa? Por que isso soa sujo saindo da sua boca?
Eu ri.
Ronin me olhou fixamente.
— Você não pode estar certa. Você é um campeã de magia. Você é o
Muhammad Ali dos bruxos. Eu vi você fazer coisas incríveis de bruxaria.
Diabos, eu estava lá quando você as fez.
— Ela só está brincando conosco. Certo, Tessa? — Acrescentou Iris
com um sorriso de súplica. — Não é possível que você não tenha passado.
Ela riu suavemente. — Você, mais do que ninguém, uma bruxa durona
poderia passar nesses testes antigos, certo? Não é, Tessa?
Meu olhar se deslocou entre elas, minhas duas únicas amizades nesta ci‐
dade, se não contar minhas tias. O fato de nenhum deles acreditar que eu
havia falhado me fez sentir cem vezes pior - como se eu tivesse falhado
com elas também.
Meu estômago se contraiu com outra onda de constrangimento.
— Sim, bem. Eu não consegui. Fui reprovada no primeiro teste.
— Não me diga — respondeu Ronin. — Então, o que diabos aconteceu
lá?
Fixei meu olhar nele com uma nitidez ameaçadora.
Minha humilhação foi física. Eu a sentia em todos os lugares, em meus
ossos, em minhas dores. Eu tinha experiência na vida real. Eu havia lutado
contra demônios. Feiticeiras malignas... e ainda assim fracassei. Eu era uma
maldita bruxa das sombras.
E não consegui.
Eu dei uma risada falsa.
— Bem, vocês não vão acreditar, mas a Marina - aquela com a metade
da cabeça raspada de que falei - fez com que eu fosse reprovada no teste es‐
crito.
Rapidamente, contei a eles sobre o e-mail que nunca recebi e, finalmen‐
te, sobre a luta contra o falso eu e a derrota.
— Basicamente — soltei um longo suspiro enquanto empurrava a porta
e me dirigia para o meio da sala, — levei uma surra de mim mesma.
Ronin e Iris ficaram em silêncio por um longo tempo.
Ronin finalmente quebrou o silêncio.
— Eles não podem reprovar você. Ela trapaceou. Aquela Marina se cer‐
tificou de que você nunca recebesse aquele e-mail. Ela orquestrou tudo isso.
— Você deveria denunciá-la — acrescentou Iris, com o rosto pálido e
sombrio de emoção.
— Para quem?
Balancei a cabeça, minha raiva explodindo enquanto eu tentava contro‐
lá-la.
— Para quem está no comando — respondeu Iris.
— Greta?
Eu ri amargamente.
— Greta é a diretora da divisão de treinamento das provas. E acontece
que ela me odeia. Ela queria que eu fracassasse. Essa é sua vingança por
minhas tias terem feito de mim uma Merlin. Acredite em mim quando digo
que ela nunca acreditará em minha palavra em vez da palavra de Marina.
Minha voz era baixa e controlada, mas, por dentro, eu estava furiosa.
Não vou fingir que sou perfeito ou que nunca copiei em um teste ou
menti sobre algo. Porque isso seria uma mentira. Mas fazer com que outra
pessoa trapaceasse às minhas custas foi simplesmente perverso. Isso não foi
trapaça. Foi sabotagem.
— Está feito — eu disse, depois de um momento. — Fui reprovada no
primeiro teste. E não há nada que eu possa fazer a respeito.
Os olhos de Iris brilharam intensamente, parecendo cruzados.
— Não é justo. Você nunca teve uma chance.
Dei de ombros.
— A vida não é justa. Bla-bla-blá. Mas ainda não acabou. Ainda me
restam duas provas. E não estou planejando falhar nelas.
Marina pode ter sabotado meu primeiro teste, mas eu ia me certificar de
que chegaria a tempo para o próximo. Talvez eu até dormisse lá, só para ter
certeza de que estaria lá de manhã cedo.
Iris se endireitou.
— Você acha que ela vai tentar de novo? Ela seria louca se tentasse.
— Eu sei que ela vai.
Eu sabia disso em minhas entranhas, em meu âmago.
— Aquela vadia má vai tentar sabotar minhas outras provas também. Eu
só... não sei o que ela vai fazer da próxima vez.
— Não será a mesma coisa de novo — informou Ronin. — A menos
que ela seja realmente estúpida.
Coloquei as mãos nos quadris.
— Ela não é estúpida. Vai ser outra coisa.
Só de pensar no próximo teste, meus intestinos começaram a pular cor‐
da. Um tremor no meio do meu intestino começou, uma dor oca. E estava
piorando.
— Que bagunça.
Esfreguei os olhos com os dedos, ainda me sentindo em desacordo com
o que aconteceu esta manhã no julgamento dos bruxos.
Não posso pensar no segundo julgamento agora. Preciso me concentrar
na Ruth. Ela precisa de mim. Ela precisa de nós. A única maneira de a Ruth
melhorar é descobrirmos o que realmente aconteceu com o Bernard. Desco‐
brir como ele morreu. Assim, pelo menos, ela poderá parar de se culpar.
— Pensei que você tinha dito que eles não divulgariam essas informa‐
ções até o julgamento — comentou Ronin, demonstrando preocupação real
em seu belo rosto.
Meus lábios se apertaram em pensamento.
— Sim, eu sei. Isso não significa que eu não possa encontrá-lo por ou‐
tros meios.
Ronin sorriu quando se recostou na cadeira e cruzou os braços sobre o
peito.
— Gosto de onde você está indo com isso. Isso é você se tornando uma
bruxa novamente. Não é?
— Você está indo atrás da Adira? — Os olhos escuros de Iris brilharam
em diversão sob a luz da janela. — Você sabe... eu tenho uma maldição de
infecção por fungos com o nome dela.
Eu ri, sentindo um pouco da minha tensão se dissipar.
— É verdade. A data do julgamento de Ruth é na segunda-feira, sete de
dezembro. Dolores me contou. O que nos dá seis dias para fazer nossa pró‐
pria investigação e descobrir o que realmente aconteceu com Bernard.
— E como você acha que faremos isso? — perguntou Ronin.
— Fácil — dei de ombros, sorrindo. — Já fizemos isso antes.
Ronin se levantou rapidamente, com a mão no ar.
— Por favor, diga-me que você está brincando. Por favor, diga-me que
você não está planejando entrar lá. Confie em mim. Você não quer se meter
com a Adira.
— Você — gritei, apontando o dedo para Ronin. — Por que você não
me disse que Adira era uma vampira? Você poderia ter me poupado de mui‐
to constrangimento.
Eu nunca havia contado ao Ronin ou à Iris sobre o fato de Adira ter me
algemado. Achei que era melhor deixar essa parte de fora.
Ronin levantou as mãos.
— Eu dei a você o nome dela — ele respondeu, como se isso fosse ex‐
plicação suficiente.
— Eu posso ajudar.
Do bolso da calça jeans, Iris tirou uma pequena bolsa de couro. Ela mer‐
gulhou os dedos nela e prendeu um longo fio de cabelo ruivo. — Eu já
amaldiçoei vampiros antes. É bem simples quando você tem o que precisa.
Levantei as sobrancelhas, impressionada.
— Eu realmente não sei como e quando você conseguiu isso — eu dis‐
se. — Mas você é uma bruxa das trevas incrível, Iris.
Ela sorriu para mim.
— Eu sei.
Ronin puxou seu cabelo.
— Vocês dois ficaram loucos na última hora? Estamos falando de vam‐
piros agora. Sanguessugas de pleno direito. Predadores. Não é o macaco
metamorfo fofinho de vocês. Os vampiros não seguem as regras. Eles se‐
guem as regras deles.
Dei de ombros.
— O que você quer dizer?
Ronin soltou uma risada áspera.
— Eles são vampiros. Você sabe... superforça, velocidade e furtividade.
Eles bebem sangue. Têm dentes estranhamente grandes. Você se lembra de
alguma coisa?
— Eu bebi sangue uma vez — disse Iris, com os olhos um pouco desfo‐
cados. — Eu estava fazendo experiências com uma maldição de sangue. —
Ela deu uma risadinha. — Realmente não tinha o gosto que eu imaginava.
Só depois percebi que não era para eu ingerir o sangue.
Olhei para Iris, sem saber o que dizer a isso. Optei por ficar em silêncio.
Ronin andava de um lado para o outro na sala, esfregando a nuca. Ele
parou e olhou para mim.
— Você já enfrentou um clã de vampiros antes?
— Não. E não pretendo fazê-lo. Um plano estava sendo formulado em
minha mente. Eu sabia o que tinha de fazer. — Há outras maneiras de você
obter essas informações — eu encontrei os olhos de Ronin, — que não in‐
cluem mexer com Adira.
O Ronin me olhou com um olhar fixo e cruzou os braços sobre o peito.
— Como? Como você vai fazer isso?
— Com Marcus — respondi, e Iris bateu palmas animada, pulando na
beirada da cama.
Marcus poderia ter me abandonado, mas ele adorava minhas tias - espe‐
cialmente Ruth, que estava lhe fornecendo um líquido azul. Era importante,
o que quer que fosse. Tenho certeza de que ele não deixaria isso assim. Ele
ajudaria.
— Marcus? — questionou Ronin. — Mas não sabemos onde ele está.
Sua tensão diminuiu, parecendo grato por eu não estar planejando bisbi‐
lhotar as coisas de Adira.
Passei por Ronin até minha mesa e peguei a caneta esferográfica azul
que havia esquecido de devolver depois que Adira me algemou.
— Com isso — eu disse, um sorriso curvando minha boca.
O meio-vampiro riu.
— Você vai escrever uma carta de amor para ele?
Minha mandíbula se apertou.
— Não, idiota. Esta... esta é a caneta dele.
Olhei para meus amigos, meu pulso pulsando de excitação com a noção
do que eu estava prestes a fazer.
— E eu vou fazer um feitiço de localização para encontrá-lo com ela.
Depois — acrescentei, com o coração batendo forte, — vou trazê-lo para
casa.
Capítulo 11

T ansõesto deos bru xos brancas quanto os das trevas tinham suas próprias ver‐
feitiços de localização ou rastreamento. A versão de bruxa das
trevas de Iris era excelente, mas exigia horas gastas em pré-feitiços e feiti‐
ços de detecção de aura - isso se eu fizesse tudo certo - sem mencionar a
adição do link da bússola à caneta de Marcus. Em seguida, eu precisaria
adicionar toda a mistura e vinculá-la a um amuleto que funcionaria como
uma bússola real, que então indicaria o caminho.
Eu não tinha horas para brincar com feitiços. Eu precisava encontrar
Marcus o mais rápido possível. Quanto mais perdêssemos tempo trabalhan‐
do com feitiços, mais longe estaríamos de descobrir o que aconteceu com
Bernard e pior seria a situação de minha tia Ruth.
Seis dias parecia muito tempo, mas na verdade não era. Não quando a
vida de alguém estava em jogo.
Por isso, optamos pela abordagem da bruxa branca.
Com meu Manual da Bruxa no chão à minha direita, inclinei-me para
frente e alisei o mapa da Pensilvânia que encontramos em um grande livro
de capa dura chamado The Atlas of North America, que descobrimos na bi‐
blioteca de minhas tias.
Iris se ajoelhou no chão ao meu lado.
— Obrigada por me ajudar — eu disse a ela.
Embora eu nunca tivesse tentado fazer um, com a ajuda de Iris, o feitiço
de localização foi concluído em tempo recorde. Ela era incrível quando se
tratava de feitiços.
Os olhos escuros de Iris se iluminaram.
— Estou muito feliz por você me deixar lidar com a magia branca. É
como o Natal... só que melhor, sem o cara gordo assustador de barba e terno
vermelho. Mas os duendes e as renas são um toque agradável.
Eu ri.
— Você é louca.
Ronin emitiu um som estranho em sua garganta e eu levantei os olhos
para olhar para ele.
— Por que você está sorrindo assim?
— Não há nada mais quente do que duas mulheres de joelhos — res‐
pondeu Ronin.
Iris riu, mas eu joguei um giz em sua cabeça.
— Isso é nojento.
— Ai — ele riu. — Só estou dizendo o óbvio.
— Pare de falar tudo junto — eu disse. — Preciso me concentrar. Não
posso deixar que você derrame seu charme de vampiro enquanto estou ten‐
tando trabalhar.
Enquanto o Ronin ria, eu me inclinei para a frente e coloquei a caneta
esferográfica de Marcus no mapa da Pensilvânia antes de me inclinar para
trás, meu olhar de volta para o meu livro de feitiços.
— Ok. Coloquei a parte tangível da propriedade de Marcus com sua au‐
ra no mapa. — Soltei um suspiro. — Em seguida, você vai fazer o feitiço.
Iris soltou um grito de alegria e bateu palmas.
— Isso é muuuuito melhor do que sexo.
— Ei — disse Ronin. — Nada é melhor do que sexo... a não ser... diga‐
mos... muito e muito sexo.
Depois de pegar a caneta, coloquei uma mecha de cabelo atrás da ore‐
lha, peguei um pequeno recipiente do tamanho de um saleiro, girei a tampa
e espalhei um pouco de pó azul sobre o mapa. Ele caiu como glitter de ma‐
quiagem, cintilando na luz à medida que se acomodava e cobria o mapa e a
caneta.
Respirei lentamente. Tocando minha vontade nos elementos, passei meu
olhar sobre o feitiço e entoei em voz clara:
— Poder dos elementos, eu te invoco. Peço sua ajuda para encontrar
aquele chamado Marcus que está escondido.
A energia aumentou. Eu me enrijeci e minha respiração sibilou pelo na‐
riz. O derramamento de energia dos elementos se fundiu com minha aura e
quase caí quando meu equilíbrio se alterou. Cerrando os dentes, uma sensa‐
ção de formigamento percorreu meus dedos das mãos e dos pés.
Estendendo a mão para o chão, eu me estabilizei enquanto a energia que
chegava continuava a se acumular e a ser puxada com tremores que me sa‐
cudiam como uma febre.
Uma explosão de luz deslumbrante passou diante de nossos olhos quan‐
do a magia invadiu a sala. No mapa, a caneta de Marcus girou em torno de
seu eixo em um borrão.
— Isso é para acontecer?
Ronin estava inclinado atrás de mim, seu hálito quente na minha nuca.
Fiquei olhando para a caneta.
— Não faço ideia.
— Ooooh! Estou me sentindo assim! — disse Iris, com os olhos arrega‐
lados e um enorme sorriso estampado no rosto. Parecia que ela tinha acaba‐
do de realizar sua maldição mais sombria, enquanto esfregava os braços.
Com outro flash de luz, a poeira azul saiu do mapa, pairando sobre ele
como uma nuvem. Observei com espanto enquanto a poeira se juntava para
formar uma seta e se movia para o topo do mapa. Em seguida, a poeira se
comprimiu em uma única bola minúscula do tamanho de uma ervilha e caiu
sobre o mapa.
— Puxa vida — eu respirei.
— Santo cocô em vara — disse Ronin.
Eu me inclinei para frente.
— O ponto está cobrindo uma área chamada Floresta Nacional de Al‐
legheny. E olhe bem para o local de acampamento Allegheny Tionesta Cre‐
ek.
— O chefe está em uma viagem de acampamento? — perguntou Ronin,
com a voz carregada de descrença. — Durante todo esse tempo, o cara este‐
ve caminhando e fazendo fogueiras, comendo marshmallows e cantando
Kumbaya?
Ele tinha razão. Franzindo a testa, olhei para o ponto azul, com pensa‐
mentos sobre Marcus girando em minha cabeça. As emoções me invadiram
em cascata, coisas que eu não queria sentir e vivenciar agora, na frente de
meus amigos. Eu odiava que ele me fizesse sentir assim.
Mas agora eu tinha um grande poder de decisão, e não se tratava de
mim ou dos meus sentimentos.
— Acampando ou não — falei, enquanto reprimia meus sentimentos e
pegava meu livro As Linhas Ley da America do Norte da minha bolsa no
chão ao meu lado, — vou arrastar seu traseiro de volta chutando e gritando.
A essa altura, realmente não me importo.
Iris soltou uma risada assustadora.
— Adoro quando eles chutam e gritam —disse ela, enquanto um estra‐
nho sorriso a iluminava. — Significa que está funcionando.
Meus olhos encontraram os do Ronin e ele deu de ombros.
Seguindo em frente, seguindo em frente...
— Gostaria de poder ir com você. — Iris cruzou as mãos em seu colo.
— Quero ajudar Ruth de todas as formas possíveis, mas não vou mentir. Eu
só quero mesmo ver o Marcus chutando e gritando.
— Eu também — respondi, comovida com o fato de minha nova melhor
amiga querer vir. — Mas eu ainda não domino as linhas ley. Bem, comigo,
sim. Mas não tenho ideia de como trazer outros comigo. Talvez não funcio‐
ne. Pode até matar você.
— Mas eu sou uma bruxa — protestou Iris, com as bochechas escureci‐
das. — Vai funcionar. Eu sei que vai.
Seu rosto estava esperançoso enquanto suas mãos se fechavam diante
dela.
Meu peito se apertou com o que vi em seu rosto.
— E você é minha amiga. Não quero que nada aconteça com você.
Iris olhou para o mapa.
— Prometa que um dia você vai me ensinar. Você me deixará andar em
uma linha ley com você?
— Prometo — falei, quando Iris olhou para mim, com um sorriso em
seu lindo rosto de fada. Voltei meu olhar para o meu livro de linhas ley. —
Entendi. Terei de transferir duas linhas ley, mas há uma parada perto do
acampamento. Terei de andar cerca de um quilômetro, mas não é grande
coisa com as botas certas.
Fechei meu livro, enfiei-o na bolsa e me levantei.
— Por falar em botas. Tenho de ir.
— O quê?
Ronin girou sobre seus pés.
— Tipo agora?
— Sim.
Corri para o banheiro e fechei a porta. Eu não queria ter vontade de fa‐
zer xixi enquanto viajava pela linha ley. A ideia do que o meu xixi poderia
fazer a um transeunte enquanto viajava na velocidade da luz era um visual
bastante perturbador... e engraçado.
Quando terminei, saí correndo do banheiro, peguei meu casaco de in‐
verno na cama, meu tuque de lã preta e luvas combinando, enrolei um ca‐
checol grosso no pescoço e corri para o corredor. Fiquei olhando para a por‐
ta fechada da Ruth por um momento antes de ir em direção às escadas do
corredor, com a Iris e o Ronin correndo para me alcançar.
— Ei, Flash. Você não quer contar às suas tias para onde está indo? —
Perguntou Ronin, descendo as escadas atrás de mim.
— Não. — Uma mistura emocionante de excitação e dever tomou conta
de mim. Eu ia resolver esse problema com a Ruth. Agora mesmo.
Corri pelo corredor até a entrada e calcei minhas botas altas de inverno.
Depois de fechar o zíper do casaco e colocar o chapéu na cabeça, voltei-me
para meus amigos.
— Não contem nada a elas até eu voltar — avisei, ouvindo as vozes de
Dolores e Beverly vindas da cozinha. — Não quero armar esperanças e po‐
de não der certo. Vocês entenderam?
— Vai dar certo — encorajou Iris. — Ele virá quando souber da Ruth.
Eu sei que ele virá.
Por alguma razão, eu não conseguia responder, mas esperava que ela es‐
tivesse certa.
Ronin deu um passo à frente.
— Não se preocupe. Nós manteremos as velhotas na linha até você vol‐
tar.
Acenando com a cabeça, soltei um suspiro.
— Volto logo.
Dei meia-volta e fiquei de frente para a porta da frente. O entusiasmo
pulsava em minhas veias com a perspectiva da caçada, a emoção da perse‐
guição e a promessa de dar uma surra em Marcus se ele não me seguisse até
em casa.
Você está bem? Bons tempos.
Com o pulso acelerado, invoquei minha vontade e estendi a mão para
tocar a linha ley. Uma explosão de energia me atingiu, assim como eu a sen‐
ti vibrar sob a Davenport House.
Meus dedos se enrolaram na maçaneta da porta, eu a abri e pulei.
Capítulo 12

M inhas botas rangeram no cascalho da estrada de terra. O ar estava frio


e, quando expirei, minha respiração saiu em uma longa e gelada plu‐
ma. Um vento gelado batia em meu rosto enquanto eu subia uma pequena
elevação na estrada. Mas eu estava aquecida. Caminhar sem parar com de‐
terminação por cerca de meia hora faz isso com você.
Eu me senti animada. Energizada. Pronta para tudo.
Cheguei ao topo da colina. Abaixo, no final da estrada sinuosa, havia
um grande acampamento. Trinta cabanas de madeira, possivelmente mais,
que poderiam ser consideradas grandes casas de família, estavam espalha‐
das em grandes áreas, todas cercadas por árvores altas e arbustos. No meio
das cabanas, havia um prédio muito maior que parecia uma pousada ou ho‐
tel. O Allegheny Tionesta Creek Camping era muito bonito. E se eu não es‐
tivesse tão furiosa e com pressa, teria tirado um tempo para olhar em volta e
me maravilhar com a beleza desse lugar. As pessoas se aglomeravam, mas
nenhuma delas era Marcus, pelo que pude ver.
Acelerei a descida até o local, com meus pensamentos no rosto de Ruth
e em como ela parecia tão desanimada e frágil me ajudando a descer.
Eu não havia pensado no que diria a Marcus quando o visse. Não havia
tempo. Ele teria que lidar com o que quer que saísse de minha boca. Não se‐
ria bonito, mas eu não me importava.
A topografia ficou mais plana quando cheguei ao acampamento. Trilhas
de fumaça saíam das chaminés de algumas das cabanas. O cheiro de lenha
queimada encheu meu nariz em um forte contraste com o ar frio e fresco de
antes. Meu olhar se desviou para uma pilha de cinzas do tamanho de uma
pequena casa. Quando me aproximei, vi o que parecia ser os restos de ca‐
deiras de madeira, algumas árvores grandes, um sofá e mesas. A fumaça
cinza-escura saía das brasas ainda vermelhas.
Caminhei ao redor da grande pilha de cinzas e vi cinco árvores grandes
que poderiam ser carvalho ou bordo (impossível saber sem as folhas) caídas
no chão nas proximidades. Algumas foram arrancadas pela raiz e outras se
partiram ao meio, como se tivessem sido atingidas por um raio ou como se
um gigante tivesse lhes dado uma machadada. Quando me aproximei das
cabanas, notei que algumas tinham as janelas quebradas, outras não tinham
as portas da frente e toda a varanda da frente e os postes de madeira de uma
delas haviam desabado.
Estranho. Ou eles foram atingidos por uma tempestade gigantesca com
a ajuda de um tornado, ou algo mais sinistro aconteceu aqui.
Voltei minha atenção para as cabanas de madeira. Eu não tinha ideia de
qual delas era a de Marcus. O feitiço não fornecia um endereço - eu teria
que trabalhar nisso - e as pessoas que eu tinha visto momentos antes tinham
praticamente desaparecido. Como eu não podia perguntar a ninguém sobre
o paradeiro dele, parecia que eu teria de passar por todas as cabanas.
Mas quando me aproximei, percebi que não precisaria.
Um Jeep Grand Cherokee cor de vinho estava no estacionamento da ca‐
bine número dois.
O jipe de Marcus.
Meu coração deu uma pequena cambalhota.
— É melhor você estar na cama morrendo — rosnei enquanto marchava
em direção à cabana de um jeito bem Dolores. Quando meu olhar se voltou
para a fumaça que saía da chaminé, senti mais raiva, e fechei as mãos em
punhos, bem, em luvas.
— Está tudo bem. Está tudo bem. A Ruth precisa dele. Não de mim —
lembrei a mim mesma, mais como se tentasse me fazer acreditar nisso se fa‐
lasse em voz alta. Ruth realmente precisava dele. Eu? Bem, eu superaria is‐
so. Assim como tudo o mais em minha vida. A vida tinha me tornado difí‐
cil, e eu não me importava com isso.
O tempo não curou todas as feridas. Você apenas ficou melhor em lidar
com elas.
Com o coração na garganta, subi os degraus até a varanda, onde uma pi‐
lha de toras de madeira estava encostada na parede ao lado da porta da fren‐
te. Antes que eu soubesse o que estava fazendo, bati na porta da frente da
cabana com o punho. Com força. Com mais força do que o necessário.
Dei um passo para trás e esperei.
Nada.
Bati novamente.
E esperei.
Ainda nada. Pensei em ir embora. Talvez ele não estivesse lá dentro?
Mas seu jipe estava estacionado do lado de fora. Talvez ele tenha ido fazer
uma caminhada? Era para isso que as pessoas vinham aqui. Não é? Até
mesmo os paranormais. Caminhar e se tornar um com a natureza, blá blá
blá.
Eu não podia ficar aqui fora no frio. Mais cedo ou mais tarde, eu me tor‐
naria um picolé de bruxa, e ainda tinha que conseguir voltar para a fonte da
linha ley. Se eu não pudesse me mover, não conseguiria voltar para casa.
Meu olhar se voltou para a cabana maior, semelhante a uma pousada.
— Talvez alguém lá dentro saiba onde ele está.
Assim que me virei, uma voz soou pela porta, inconfundivelmente femi‐
nina, rouca e sensual.
O ar saiu de mim e eu não conseguia fazer meus pulmões se moverem
para puxar mais ar. Marcus havia deixado sua cidade para se envolver com
uma mulher?
É isso aí. Estava na hora de usar o amuleto de castração.
A raiva, minha conhecida emoção vencedora, tomou conta de mim. Fi‐
quei de frente para a porta enquanto minha respiração sibilava novamente.
Em um movimento rápido, agarrei a maçaneta e a girei. Ao ver que não es‐
tava trancada, empurrei a porta.
Gemidos e gemidos soaram ao meu redor como se eu tivesse acabado
de entrar em um filme pornô ao vivo.
Um casal estava fazendo sexo.
Não. Marcus estava fazendo sexo com uma mulher.
A traição borbulhou, fazendo meu estômago se contrair. Meu coração
afundou enquanto eu estava ali, incapaz de me mover, tentando juntar meus
pensamentos em algo que fizesse sentido. Senti-me como se estivesse tendo
uma experiência fora do corpo, como se estivesse vendo algo acontecer pe‐
los olhos de outra pessoa.
Assim que a dor no coração começou, ela terminou abruptamente. Eu
estava tremendo - não de frio, mas de raiva.
As emoções me invadiram, assustadoras em sua rapidez: raiva, traição,
desânimo. Mesmo assim, eu não estava a ponto de me abater por causa de
um homem. Além disso, Marcus e eu não éramos exclusivos. Na verdade,
não éramos nada.
Concentrei-me no motivo pelo qual fiz a viagem. A única pessoa que
importava aqui era Ruth.
Ruth precisava de Marcus, mas ele estava ocupado demais trocando
fluidos corporais para se importar ou mesmo perceber.
Fiquei parado na soleira da porta, olhando como um observador - ou um
assassino em série. O casal entrelaçado não tinha me ouvido entrar. Não é
de se admirar, com todo o barulho que ela estava fazendo. A mulher estava
de costas para mim, enquanto saltava para cima e para baixo como uma va‐
queira em um rodeio.
Eu não conseguia ver o rosto de Marcus, mas reconheci aquela pele
dourada que eu tinha visto e sentido. Os mesmos braços fortes que me segu‐
raram estavam segurando firmemente a cintura da mulher.
— Oh, sim, querido — ela gemeu. — Não pare. Não pare.
É isso aí.
E a primeira coisa que saiu da minha boca foi:
— Ela está fingindo.
Eu disse isso em alto e bom som. Acho que você posso até ter gritado.
Não tenho certeza.
A mulher gritou a plenos pulmões e se jogou para fora da cama em um
emaranhado de lençóis, ainda gritando - ela tinha pulmões muito fortes -
deixando seu parceiro exposto e ereto.
Meus olhos se arregalaram e meu queixo se abriu. Não por causa do pê‐
nis grande e ereto, que era difícil de não notar, mas porque olhei para um
rosto não tão bonito, com cabelos castanhos curtos, olhos pequenos e redon‐
dos e barba espessa.
Oh, meu Deus.
— Você não é o Marcus — eu disse, minha voz alta enquanto uma risa‐
da nervosa brotava. Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus.
— Quem diabos é você? Que diabos você quer? — berrou o cara, com o
rosto vermelho e suado, sem se preocupar em cobrir o foguete viril.
— Não é o Marcus — eu disse novamente, enquanto outra onda de risa‐
das me contaminava sem querer. Que droga. Eu estava perdendo o controle.
A mulher olhou para mim do chão ao lado da cama.
— Eu não estava fingindo.
Outra risada saiu da minha boca.
— O fato de você ter que esclarecer isso sugere o contrário.
Por que eu estava falando com ela?
Quando faço uma besteira, faço uma besteira grande.
Hora de ir embora.
Levantei minhas mãos em um gesto de desculpas.
— Desculpe, cabana errada. — Eu ri enquanto me afastava em uma
meia reverência.
— Continuem… — acrescentei, de alguma forma parecendo apropria‐
do.
— Tessa? — disse uma voz familiar atrás de mim.
Eu me virei.
Um homem de ombros largos e cabelos pretos desgrenhados estava na
varanda da frente. Seus olhos cinzentos, emoldurados por cílios escuros, fo‐
caram em mim. Ele tinha uma mandíbula quadrada, um nariz perfeitamente
reto e lábios cheios e beijáveis.
Marcus.
Capítulo 13

essa? O que você está fazendo aqui? — perguntou Marcus, en‐


—T quanto passava apressado por mim, e senti o cheiro de seu perfu‐
me almiscarado e de seu sabonete. — Desculpe, Anthony — ele
se desculpou e fechou a porta, deixando-nos sozinhos na varanda.
Ele usava uma jaqueta bomber preta de inverno que abraçava sua cintu‐
ra fina sobre um par de jeans que se ajustava perfeitamente às suas coxas
grossas e poderosas. Seu cabelo estava mais comprido e escovava os om‐
bros em ondas grossas, pretas e exuberantes.
Ele estava ótimo. Mais do que ótimo. Eu havia me esquecido de como
ele era bonito, ou melhor, do efeito que o fato de vê-lo frente a frente causa‐
va em mim. Os devaneios não lhe faziam justiça. Nem de longe.
— Bem — disse eu, com o rosto em chamas, desviando os olhos dele
antes que eu começasse a babar. Voltei meus olhos para o Jeep dele. — É
engraçado você perguntar. Não é como se eu tivesse planejado estar aqui,
mas vim mesmo assim. Você não me deu outra escolha.
— Espere? O quê? — perguntou Marcus, e eu o encarei. Ele balançou a
cabeça. — Do que você está falando? Por que você invadiu a cabana do
Anthony?
Ele riu.
Que delícia. Eu poderia ficar aqui o dia inteiro ouvindo aquela risada.
Esforcei-me para ficar sóbrio.
— Achei que o Anthony fosse você.
Ele sorriu para mim, com as sobrancelhas grossas erguidas.
— O quê?
— Não importa.
Meu pulso estava um pouco mais rápido enquanto eu fingia estar inte‐
ressada na grade da varanda.
Marcus me observou por um momento, uma expressão pensativa suavi‐
zando suas feições. Seu rosto se transformou em um sorriso preguiçoso.
— Você está chateada — ele disse, e uma ponta de sua habitual confian‐
ça se instalou em sua postura. — Você está. Você achou que era eu ali den‐
tro. — Ele se inclinou para mais perto, seus olhos cinzentos percorreram
meu rosto. — Você gosta de mim. Você realmente gosta de mim. Você gos‐
ta mesmo de mim. Admita.
Revirei os olhos.
— Por favor...
— Você me ama — provocou ele, com os lábios entreabertos para mos‐
trar um vislumbre de dentes enquanto seu sorriso se alargava.
Droga. Aqui ele era um homem viril, parecido com uma montanha, um
espécime masculino alto, forte e viril.
— Não se iluda — eu disse, embora meu coração praticamente pulasse
de alegria. Eu estava com tantos problemas. Seria ruim se eu começasse a
bater palmas?
— Você está ótima — disse Marcus com uma voz que provocou peque‐
nos arrepios em minha barriga, com aquele maldito sorriso superquente es‐
tampado em seu rosto. Eu queria pegar aquela voz e transformá-la em um
creme para que eu pudesse esfregá-la em todo o meu corpo.
— Pare.
— Parar o quê?
Seu sorriso se alargou, e outra onda de pequenos formigamentos irrom‐
peu.
— Pare de me olhar assim.
Não. Por favor, não pare. Não pare. Você não pode parar.
Marcus deu de ombros.
— Não posso evitar. Você é tão bonita. Especialmente quando você está
com raiva. Seus olhos escurecem. Você sabia disso? É muito sexy.
Seu sorriso conhecedor fez dele uma mistura de chefe e bad boy - uma
mistura perigosa e inebriante.
Fiquei ali no patamar, sem me lembrar por que estava aqui ou por que
deveria estar com raiva dele.
Um novo sorriso pairou sobre Marcus enquanto ele me observava. Eu ia
esmagá-lo. Só que comecei a tremer, tanto que meus lábios estavam come‐
çando a endurecer como salsichas congeladas enquanto meus dentes bati‐
am. Acho que minha adrenalina tinha acabado, agora que eu sabia que não
era o Marcus com a Barbie Cavalgadora.
— Você está congelando.
Marcus estendeu a mão e tocou minha bochecha direita com sua mão.
Estava quente, e eu não me afastei.
— Mmmm, hmmm.
O toque suave de sua mão em minha pele fez meu sangue zumbir. Não
me mexi.
Marcus tirou a mão da minha bochecha e esfregou meus braços com as
duas mãos.
— Venha. Vamos aquecer você. A Carol faz um chili vegano incrível.
Não vim aqui para me apaixonar por Marcus e um pouco de chili, mas
eu estava prestes a me tornar uma Bruxa da Neve se não fosse para um lu‐
gar quente nos próximos segundos. Alguns minutos em um lugar quente
com uma refeição quente não fariam mal algum. Além disso, eu não conse‐
guia mais sentir meus lábios.
Deixei que Marcus me conduzisse pelas escadas em direção à cabana de
madeira maior. Uma vez lá dentro, fui atingida por uma onda de calor, co‐
mo se tivesse acabado de entrar em uma sauna. O ar estava impregnado
com o cheiro de sopa de galinha, chili e madeira queimada. Uma grande la‐
reira de pedra se erguia no final do cômodo, com um fogo ardente crepitan‐
do nela. Uma cadeira de balanço, com uma figura sentada nela, rangia ao se
mover.
O local não era um espaço enorme, mas estava decorado como um res‐
taurante ou pub. Uma dúzia de pequenas mesas redondas com cadeiras fo‐
ram colocadas ao redor da sala. Dois homens sentaram-se na mesa mais
próxima de nós, e uma mulher e um homem sentaram-se na mesa perto de
uma janela. Todos olharam para cima quando entramos, com o rosto duro
enquanto me observavam. Mas seus olhares se desviaram assim que viram
Marcus comigo. O que era isso?
Eu ainda estava tremendo, então Marcus colocou a mão na parte inferior
das minhas costas e me conduziu gentilmente com ele até um balcão pareci‐
do com um bar, feito de madeira polida.
Ele puxou um banquinho para mim.
— Aqui. Sente-se. Vou pegar algo para você comer.
Fiz o que me mandaram, pois estava com frio demais para fazer qual‐
quer outra coisa, e observei enquanto Marcus descia o balcão e se dirigia a
uma senhora mais velha, cujo rosto enrugado se esticou em um grande sor‐
riso ao vê-lo.
Seus cabelos eram longos e brancos, presos para trás em uma longa
trança, e ela usava um avental sobre a camisa xadrez. Sua pele era de couro
curtido, coberta de costuras finas e rugas. Ela deu um tapinha na mão de
Marcus, serviu-lhe uma xícara de café fresco e desapareceu por uma porta
atrás do bar.
— Aqui você tem café. O chili está a caminho — disse Marcus enquan‐
to colocava a xícara fumegante no balcão à minha frente, puxava a banqueta
ao lado da minha e se sentava.
Tirei as luvas e enrolei meus dedos gelados em volta da xícara. A pele
de meus dedos ardeu ao tocar a cerâmica, mas a sensação foi agradável
mesmo assim. Levei a caneca aos lábios e tomei um gole. Depois, outro. E
mais um. O gosto amargo do café era divino, e gemi quando o líquido quen‐
te desceu pela minha garganta.
Imediatamente me senti melhor.
Quando meus lábios descongelaram, perguntei:
— Que lugar é esse?
Coloquei a caneca no balcão com meus dedos ainda enrolados nela.
— É uma colônia de metamorfos — respondeu Marcus, com os olhos
ainda com um pouco do riso de antes.
— É?
— Gorilas de costas prateadas — disse ele.
Olhei para trás, para o casal sentado perto da janela. Ambos estavam me
observando com a mesma expressão de desaprovação.
— Todos aqui são metamorfos?
— Sim. Wereapes — respondeu Marcus, e eu voltei meu olhar para ele.
— A maioria deles não confia em pessoas de fora... não metamorfos.
— Então, o Anthony também é um wereape?
— Sim — disse Marcus, seu olhar inabalável e penetrante. — E meu
primo. — Ele abriu o zíper da jaqueta e a deixou cair no banco vazio ao seu
lado. Os músculos se destacavam sob a camisa preta justa e não consegui
desviar o olhar porque parte de mim queria arrancá-la só para ver o que ha‐
via por baixo.
Respirei pelo nariz, tentando afastá-lo. Ele nem sequer tentou falar co‐
migo em três meses.. Isso me machucou. Mas era a verdade. Eu estava can‐
sada de odiá-lo e de desejá-lo. Isso já era um trabalho de tempo integral. Já
era o bastante.
— Eu não tinha ideia de que havia colônias de metamorfos como esta
— disse eu, refletindo sobre meus sentimentos. — E você tem família aqui,
mas mora em Hollow Cove?
— Minha família é da cidade. Mas alguns wereapes preferem viver lon‐
ge do mundo moderno. Eles preferem espaços amplos e abertos, cercados
pela natureza. Eles não querem ter que lidar com humanos... ou outros para‐
normais.
— Como eu.
Assenti com a cabeça.
— Bem, é muito bonito aqui. Deve ser espetacular no verão.
Marcus se mexeu em seu banco, nossas coxas se tocaram quando ele se
aproximou.
— Estou feliz em ver você.
Seus olhos cinzentos hipnotizantes me fizeram sentir todos os tipos de
coisas que eu não deveria estar sentindo agora, como ondas de calor.
Levantei uma sobrancelha. Eu queria dizer tantas coisas para ele agora,
coisas nas quais eu estava pensando nos últimos três meses. Abri a boca pa‐
ra responder, quando a senhora mais velha chegou ao bar.
— Aqui está, querida — disse ela, toda sorridente, enquanto colocava
uma tigela de chili vegano fumegante e com cheiro intoxicante.
— Obrigada — respondi, colocando meu nariz acima da tigela e dando
uma cheirada.
— O cheiro é divino.
A senhora mais velha riu. Era contagiante, e eu me vi rindo e relaxando
pela primeira vez desde que cheguei a esse acampamento gelado. Peguei
uma colher e coloquei uma grande porção de chili em minha boca.
— Uau — falei, com a boca cheia. — Isso é bom. Você deveria empa‐
cotar e vender essa coisa.
Coloquei outra colherada de chili em minha boca.
— Obrigado, Carol — disse Marcus, enquanto ele e ela trocavam alguns
olhares secretos.
Carol apoiou os cotovelos no balcão.
— Esta aqui veio buscar você. Não foi? Hmmm. Você deve ter cami‐
nhado por mais de uma hora para ficar congelada assim — ela especulou
com um sorriso no rosto enrugado.
— Ela ainda é jovem e está em boa idade para ter filhos.
Cuspi o chili da minha boca.
— Desculpe-me. O quê?
Carol soltou uma gargalhada e desapareceu na área da cozinha, atrás do
bar.
— Tessa, por que você veio aqui?
A pergunta de Marcus chamou minha atenção de volta para ele. Ele
abaixou a cabeça e olhou fixamente em meus olhos.
Eu o observei por um longo momento, tentando abafar a bolha de trai‐
ção e raiva que ameaçava estourar. Não consegui.
— Por que você nunca me ligou de volta? — acusei, meu coração ba‐
tendo um pouco mais rápido, e eu odiava isso. Odiei ter deixado minhas
emoções mandarem em mim agora, mas não pude evitar.
— Eu não pude — ele respondeu casualmente, como se fosse algo nor‐
mal, como comentar sobre a quantidade de açúcar que ele usava em seu ca‐
fé. — Os telefones celulares não funcionam aqui nas montanhas. E não há
telefones. Não há linhas fixas. Eu teria ligado para você se pudesse. —
Marcus se inclinou para trás. — Nunca pensei que ainda estaria aqui, para
ser sincero. As coisas ficaram... loucas.
— Você tem alguma coisa a ver com a pilha de escombros em chamas lá
fora?
— É verdade — respondeu ele. — Aqui, os wereapes são liderados por
um alfa. Como um chefe. O alfa é o mais forte e cuida de sua colônia, de
sua família.
— Então, qual é o problema?
— Muitos alfas.
— Tão pouco tempo — eu ri. — Desculpe. Piada ruim.
Marcus me considerou por um momento.
— Um homem mais jovem está desafiando o wereape alfa. Outro ma‐
cho. Eles estão brigando há três meses.
— Costuma demorar tanto?
— Normalmente, o alfa mais velho se submete ao alfa mais novo. Mas
Stan é um velho bruto e teimoso. Ele não quer se submeter. Ele acha que
pode continuar a ser o alfa, mas seu corpo não é mais como era antes.
Engoli mais pimenta.
— Quem é o mais forte?
— É difícil dizer. Ambos são enormes. Mas só pode haver um alfa por
clã.
— Certo.
Ficamos olhando um para o outro, e o pequeno espaço entre nós parecia
quente demais.
Desviei o olhar antes de fazer algo estúpido, como pular nele ali mesmo
no bar. Sim, eu precisava de ajuda.
— Você ainda não me disse por que veio — instigou Marcus quando
nossos olhos se encontraram novamente. Seus lábios se curvaram no sorriso
de um homem que gosta do que vê. — Eu gostaria de poder dizer que você
veio porque sentiu minha falta — continuou ele, — mas seus olhos dizem
outra coisa.
Que perspicaz.
— É a Ruth — falei, com a voz embargada. — Vim aqui para buscar
você por causa da Ruth.
As sobrancelhas de Marcus se contraíram no meio.
— Ruth? Aconteceu alguma coisa com ela? Ela está bem?
Balancei a cabeça, meu interior se revirando de pavor.
— Na verdade, não. Ela tem estado...
A porta da pousada se abriu. Um homem grande e corpulento, com os
maiores braços que eu já tinha visto, entrou correndo. Ele parecia um bone‐
co de ação.
— Eles estão fazendo de novo — disse o estranho, concentrando-se em
Marcus quando ele se aproximou do bar. — Você precisa fazer alguma coi‐
sa. Eles vão se matar.
Momentos divertidos.
Capítulo 14

E utes,já mas
tinha visto Marcus se transformar em seu alter ego King Kong an‐
isso nunca deixou de me surpreender e me entusiasmar.
Sua camisa desapareceu no momento em que ele saltou do banco, assim
como arrancou os jeans e as botas. Seu corpo em forma, marrom-dourado,
era esculpido como uma estátua romana, e os músculos se destacavam em
sua estrutura nua.
Que droga. Como eu poderia ter esquecido como ele era esplêndido nu?
Mas não tive tempo de me maravilhar com sua nudez.
Ele ficou de quatro, e ouvi um som horrível de rasgo junto com a quebra
de ossos enquanto seu rosto e sua pele se ondulavam e se esticavam até que
seu corpo triplicou de tamanho. Sua mandíbula se alongou, revelando den‐
tes carnívoros do tamanho das minhas facas de cozinha. E então, em vez de
um homem, havia um gorila de dorso prateado de 400 quilos.
Ele era glorioso e assustador ao mesmo tempo. É estranho que eu tenha
ficado excitada?
Marcus, o gorila, ficou de quatro, com as mãos dianteiras apoiadas nos
nós dos dedos. Os músculos de seu peito se flexionaram, e o gorila rugiu
enquanto batia com seus grandes punhos no chão, causando tremores na
pousada. Senti o tremor ao longo do balcão.
E então ele estava se movendo.
De quatro, o gorila saltou e saiu correndo pela porta da frente com o es‐
tranho correndo atrás dele.
— Parece que não vou voltar para casa tão cedo.
Pulei do meu banco e corri atrás deles. Eu não ia perder de jeito nenhum
o que estava acontecendo. Mesmo que parecesse perigoso.
Passei correndo pela porta da frente e pulei do patamar.
Então entrei em uma briga de gorilas.
Um grande círculo de gorilas e wereapes humanóides cercava dois gori‐
las enormes que usavam troncos de árvores como porretes.
— Puxa vida — murmurei.
Os dois eram gorilas de dorso prateado, ambos enormes, com a boca
cheia de dentes. Quanto mais me aproximei, pude ver que um deles tinha
muito mais pelo cinza nas costas, na cabeça e nos antebraços, enquanto o
outro estava quase coberto de pelo preto. Imaginei que o de pelo cinza era o
macho alfa mais velho, Stan, lutando contra esse novo macho que queria to‐
mar seu lugar.
Era difícil ver qual dos dois era maior, e era ainda mais difícil ver qual
dos dois era mais forte.
Stan, o gorila mais velho, avançou, flexionando e erguendo o tronco de
sua árvore. Ele o esmagou contra a lateral do gorila mais jovem.
O gorila mais jovem caiu para o lado, mas se levantou quase no mesmo
instante, esmagando o tronco da árvore contra Stan, que caiu para o lado.
Uma careta feia distorceu o rosto do gorila mais jovem quando ele largou a
árvore e atacou.
Ele bateu em Stan como um trem de carga em uma parede de cimento e
os dois caíram no chão em um borrão de punhos batendo na carne, rosna‐
dos, assobios, dentes e pelos escuros. Cada um dos gorilas se esmagou com
os punhos, entrando em um frenesi raivoso de golpes. O chão sob meus pés
estremeceu e tremeu. Cada soco esmagador fazia a bile subir pela minha
garganta.
O ar tinha cheiro de sangue, suor e animais.
Foi a luta mais brutal e primitiva que já presenciei. Ao meu redor, a
multidão rugia, entusiasmada com a perspectiva da morte de um dos gori‐
las. Alguns estavam em sua forma de fera, mas outros permaneceram em
suas formas humanas.
— Isso já está acontecendo há muito tempo — disse um homem werea‐
pe.
— Stan tem que se submeter — disse uma wereape mulher ao lado dele,
com longos cabelos pretos e olhos que combinavam. — Ele é o alfa há oi‐
tenta anos. Está na hora de Fredrik.
— Diga isso ao Stan — disse o outro wereape homem.
— Stan, Stan, ele é o nosso homem. Se ele não pode fazer isso, nin‐
guém pode — cantei, percebendo tarde demais que meus pensamentos saí‐
ram como vômito verbal da minha boca.
A wereape fêmea se virou e me encarou, seus olhos me dizendo que
aquele não era o meu lugar e que ela queria bater na minha cabeça com seus
punhos de gorila feminino.
Levantei minhas mãos.
— Vou embora logo, prometo — eu disse a ela, e ela voltou sua atenção
para a luta.
Sim, eu estava indo embora. Mas não sem o Marcus.
Marcus, em sua forma de gorila, caminhou lentamente ao redor dos we‐
reapes em luta, como se fosse o árbitro em uma luta de boxe, esperando pa‐
ra dar o vencedor ou para separá-los se as coisas ficassem feias.
Os gorilas lutariam até a morte? Era isso? Se era, eu não estava exata‐
mente com vontade de assistir.
Mas eu também não conseguia me afastar.
Eu era uma bruxa, então não sabia muito sobre wereapes ou lobisomens
ou qualquer outra espécie. E sabia ainda menos sobre como funcionavam
suas estruturas alfa. Mesmo assim, eu sabia que estava testemunhando algo
extraordinário que nós, bruxos, normalmente não conhecíamos.
Eu estava tendo um vislumbre de um mundo com o qual a maioria dos
paranormais só poderia sonhar.
Eu podia apreciar a facilidade com que eles podiam destruir árvores e
casas com aquela força brutal. E Marcus estava aqui para garantir que eles
não se matassem, para garantir que ambos permanecessem vivos, indepen‐
dentemente do resultado.
Marcus nunca havia me abandonado. Ele estava apenas tentando evitar
que seus parentes arrancassem as jugulares uns dos outros. Porque esse era
o tipo de homem, de wereape e de chefe que ele era.
Stan se esquivou do próximo ataque do alfa mais jovem, mas a ponta de
uma mão com garras atingiu sua coxa. O sangue encharcou o chão coberto
de gelo com respingos de vermelho. Stan girou e o choque atingiu o rosto
de sua fera. Claramente, Fredrik era mais rápido.
Fredrik se agachou, olhando para a coxa ensanguentada de Stan.
O rosto de Stan se ondulou de raiva quando suas sobrancelhas se junta‐
ram. Uma luz selvagem dançou em seus olhos profundos.
— Lá vem ele — murmurei, e novamente a mesma wereape feminina se
virou, surpreendendo-me quando ela me deu de dedo.
O-o-o-okay. É hora de manter minha boca fechada. Puxei minha jaqueta
firmemente em volta de mim enquanto observava, meio assustado, meio es‐
pantado com o que estava acontecendo.
Com um urro terrível, Stan se lançou contra o gorila mais jovem, com
os braços balançando.
Sem pausa, Fredrik atacou.
Eles bateram com uma ferocidade terrível, e eu dei um passo para trás,
embora não precisasse.
O gorila mais jovem se contorceu e chutou Stan no chão. Com o rosto
transtornado, ele fechou as mãos em punhos enormes e as derrubou no crâ‐
nio de Stan como um martelo. Os ossos rangeram.
Nossa! Fiquei ali, horrorizada, enquanto Fredrik continuava batendo no
pobre Stan.
— Isso não está certo — disse eu, com minha voz alta. Mas ninguém
parecia me ouvir, pois sua atenção estava voltada para a briga.
E quando eu pensava que as marteladas nunca terminariam até que a ca‐
beça de Stan parecesse uma torta de cereja amassada, Marcus rugiu e bateu
com o punho no chão com uma força surpreendente. Em um piscar de
olhos, Marcus se ergueu sobre o alfa mais jovem e ficou de pé, com os bra‐
ços batendo ao lado do corpo.
Fredrik parou de bater.
Para minha surpresa, a forma de besta de Marcus era maior do que o
mais jovem. Ele tinha pelo menos uns cem quilos a mais de músculos, e era
óbvio que, se Marcus quisesse, poderia pulverizar os dois. É claro que ele
poderia ser o alfa deles se quisesse, mas Marcus era o chefe de Hollow Co‐
ve. Ele era o nosso alfa.
Então, para mim, fazia sentido o fato de Marcus estar aqui. Ele era o
único que poderia derrotar os dois macacos estúpidos.
O alfa mais jovem agarrou Stan pelo pescoço e o colocou de pé.
Isso chamou a atenção de todos rapidamente, já que tudo o que ele tinha
que fazer era apertar e eles teriam seu novo alfa.
Mas Marcus rosnou, olhando para o alfa mais jovem com seus olhos
cinzentos que gritavam que ele estaria frito se não deixasse Stan ir embora.
Finalmente, Fredrik cedeu e, com um baque, Stan caiu no chão. Olhos
furiosos encararam o alfa mais jovem, mas depois, muito lentamente, Stan
baixou os olhos e se curvou em submissão ao novo alfa.
E, sem mais nem menos, tudo acabou.
— Parece que temos nosso novo alfa — disse a fêmea.
Entusiasmada, comecei a bater palmas e só percebi meu erro quando vi
os olhares de horror e raiva dos membros do clã ao redor.
— Erro meu — eu disse e enfiei as mãos nos bolsos do casaco.
Os gorilas e wereapes conversavam entre si enquanto se afastavam da
luta, com os rostos felizes e aliviados. Acho que estavam esperando por isso
há muito tempo.
— Tessa.
Olhei para cima e vi Marcus em sua forma humana vindo em minha di‐
reção, o que foi incrível, exceto pela parte da nudez. Não que não fosse in‐
crível vê-lo nu - porque era muito incrível -, mas eu não queria que fosse
com um grupo de wereapes como público.
O suor no ar frio fez com que o vapor se espalhasse ao seu redor, como
se ele tivesse acabado de sair de uma ducha quente e fumegante.
Era difícil não olhar para a perfeição, realmente era - e um pouco irri‐
tante quando a perfeição estava olhando de volta para você com um sorriso
preguiçoso porque ele sabia que você gostava do que via - mas consegui
desviar os olhos no momento em que o mesmo cara grande que eu tinha
visto na pousada entregou a Marcus um par de suéteres.
— Desculpe-me por isso. O que você estava dizendo sobre a Ruth?
Voltei a me virar, feliz e talvez até um pouco decepcionada por ele estar
usando o moletom.
— Ela está com problemas.
Comecei a sentir o ar frio entrar pelo meu casaco.
— Bernard está morto.
— O padeiro?
— Sim. E a Ruth está sendo culpada por isso. Ela realmente confessou.
— O quê?
Um breve lampejo de pânico cruzou seu rosto quando ele olhou para
mim.
Soltei um suspiro e ele saiu em rolos de névoa branca.
— Ela fez uma poção para ele. E ela foi encontrada no local do crime.
Não sei o que era, talvez erva de gengibre, mas ela acha que o matou.
Marcus ficou em silêncio por um longo tempo, e eu podia ver o arrepen‐
dimento e a frustração em seu rosto.
— Tudo bem, vou conversar com a Ruth e tenho certeza de que pode‐
mos esclarecer tudo isso.
— Não se Adira puder evitar.
— Adira? Por que esse nome parece familiar?
— Porque ela é a nova chefe.
Marcus xingou.
— É claro. O escritório teria enviado um substituto enquanto eu estives‐
se fora.
Fiquei olhando para ele.
— Você não sabia? Ela disse que falou com você.
Foi nesse exato momento que me lembrei de que ele havia dito que não
havia telefones aqui. A vadia vampira havia mentido para mim.
— Nunca recebi uma ligação da Adira, e nunca liguei para ela.
— Aquela prostituta mentirosa que adora caixões.
— Que gosta de caixões?
— Ela é uma vampira.
Marcus encontrou meu olhar.
— Eu nunca mais vou sair de Hollow Cove.
Eu sorri.
— Então, você vai voltar?
— Como você chegou aqui, Tessa? — Marcus olhou ao meu redor. —
Você veio dirigindo até aqui?
— Eu pulei uma linha ley.
— Certo. — Marcus sorriu. — Eu adoraria mostrar a cidade para você,
mas acho melhor voltar para Hollow Cove o mais rápido possível. — Ele fi‐
cou em silêncio e depois disse:
— Você pode pegar a mesma linha ley para casa?
— Não é a mesma coisa — respondi. — Preciso do que vai para o leste,
mas sei onde ele está. Não é muito longe daqui."
Marcus acenou com a cabeça.
— Ótimo. Tudo bem, então. Vejo você amanhã de manhã — disse ele, e
então estava correndo em direção ao seu jipe, descalço e seminu, como se o
ar frio de dezembro não o afetasse.
— Amanhã de manhã? — Eu o chamei. — Mas Hollow Cove fica a
quilômetros de distância.
Eu sabia que eram dez horas de viagem daqui até Hollow Cove, e isso
se ele dirigisse bem rápido, sem parar.
— Dirijo a noite toda se for preciso — disse ele, olhando por cima do
ombro. — Estarei lá pela manhã. Te vejo amanhã, Tessa.
Eu sorri.
— Vejo você amanhã.
Capítulo 15

A ndei de um lado para o outro na cozinha, com os batimentos cardíacos


acompanhando meus passos enquanto olhava para o celular a cada mi‐
nuto, para o caso de ter perdido uma mensagem de texto de Marcus.
Ele me enviou uma mensagem de texto às 7h30 da manhã.
Marcus: Estou aqui no escritório. Vou falar com Adira às oito. Te dou
os detalhes mais tarde.
E eu mandei uma mensagem de volta.
Tudo bem, ótimo. Falo com você mais tarde.
Dormir foi uma luta com o travesseiro na noite passada, pois meus pen‐
samentos mudavam de Marcus para Ruth e depois de volta para Marcus.
A experiência com o clã wereape tinha sido extraordinária. Até mesmo
a luta entre os dois alfas tinha sido incrível, de uma forma brutal e violenta.
Mas aqueles malditos olhos cinzentos e a maneira como ele me olhava me
mantinham acordada - como se eu fosse um pedaço de cheesecake no qual
ele queria cravar os dentes.
Não vou mentir, ser desejada por um cara gostoso de lamber os dedos
como aquele fez maravilhas para o meu ego.
E eu estava tão enganada a respeito dele.
Julguei-o rapidamente e deixei minha mente correr solta com cenários e
ideias sobre quem ele era e como se sentia em relação a mim. Sim, eu esta‐
va errada. Mas três meses sem receber resposta foi muito tempo. Eu tinha
certeza de que qualquer pessoa em minha situação teria sentido o mesmo -
que ele não estava interessado.
— Você pode se sentar? — gritou Dolores, sentada à mesa da cozinha,
com a testa franzida e um suéter cinza claro de gola alta. — Você vai me
causar um aneurisma.
— Deixe a pobre moça em paz — gritou Beverly enquanto se servia de
uma xícara de café. Ela se virou, de costas para o balcão. Tomou um gole de
seu café e disse: — Não é culpa dela. Seu corpo tem necessidades.
Minha boca se abriu.
— Desculpe-me, o que foi? — O Caldeirão me ajudou.
— Meu Deus, eu adoro morar aqui. — Iris riu enquanto lambia a geleia
de framboesa em sua torrada. — É como viver em um seriado da vida real.
Ou seria um reality show? É a mesma diferença.
Ela estava toda vestida de preto, usando um olho de gato perfeito com
delineador líquido. Parecia uma linda garota gótica.
Beverly ajustou a gola de seu suéter de cashmere rosa de corte baixo.
— É toda essa energia sexual que você tem reprimida por dentro, queri‐
da — ela me disse, e eu me encolhi. — Eu entendo. É eu fico assim quando
não faço sexo há três dias. — Seus olhos verdes se arregalaram. — São os
flashes quentes e sexuais.
— Não é isso — eu disse, mortificada. Ou será que era? — Só estou an‐
siosa para saber a resposta do Marcus. Isso é tudo.
— Exatamente — pressionou Beverly, com seus dentes brancos brilhan‐
tes aparecendo nos lábios vermelhos. — A frustração sexual é uma fera
feia. Ela rosna e ruge... só quer sair de sua jaula. E quando isso acontece...
eu saio lutando como um gato selvagem. Pego o primeiro solteiro disponí‐
vel e faço amor apaixonado e louco no chão.
Dolores cuspiu o café de sua boca.
— Acho que acabei de pegar uma DST enquanto ouvia isso.
Fui até a mesa e puxei a cadeira ao lado de Ruth.
— Podemos conversar sobre outra coisa?
Eu me deixei cair na cadeira com um suspiro. Era muito cedo para ter
essa conversa com minhas tias.
— Por favor, não. Isso é muito divertido. — Iris deu uma risadinha e
deu uma mordida em sua torrada.
Meu olhar encontrou Ruth. Ela estava olhando para a torrada, sem dar
uma mordida, nem tomar um gole do café. Parecia fraca e perdida, e tive a
súbita e irresistível vontade de protegê-la. Parte de mim queria abraçá-la,
mas não tinha certeza se era isso que ela queria. A última coisa que eu pre‐
cisava era piorar as coisas para ela.
Ruth estava tão animada quando cheguei em casa ontem. Ela saiu de seu
quarto quando eu lhe disse que Marcus estava a caminho e que iria conser‐
tar as coisas. Vi uma luz brilhar em seus olhos que não via há semanas.
— Marcus é um bom homem — ela me disse e manteve um pequeno
sorriso no rosto a noite toda.
Mas hoje de manhã era como se eu nunca tivesse visto essa luz. Ela es‐
tava mal-humorada, com o rosto desenhado e os olhos vazios e assombra‐
dos.
É por isso que eu estava andando a passos largos e meu coração estava
acelerado como se eu tivesse acabado de correr 16 quilômetros. Não se tra‐
tava de sexo, embora a ideia de sexo com Marcus provavelmente liberasse
muita tensão. Tratava-se de Ruth, e Marcus iria ajudá-la. Eu sabia que ele
iria.
— Se você quer meu conselho — disse Beverly, e meu olhar se voltou
para ela, um sorriso carnal em seu rosto. — Você precisa dormir com ele.
Ela simplesmente não desistia.
— Certo. O que aconteceu com o papo de falar sobre outra coisa?
— Foi o que eu disse — incentivou Iris, com um brilho diabólico em
sua expressão. Ela lambeu a geleia de seus dedos. — Ela tem que pular nele
antes de explodir.
— Eu não vou explodir.
Iris acenou com a cabeça.
— Sim. Você vai. Você é como uma bomba sexual.
Dolores soltou uma gargalhada e eu a encarei.
— O quê? — ela deu de ombros. — Isso foi meio engraçado.
— Você sabe — continuou Beverly, — na sua idade, eu estava fazendo
muito e muito sexo. Ela levantou o queixo. — Acho que essa é a maldição
de você ser tão devastadoramente bela.
— Ou você estava trabalhando como prostituta — interveio Dolores. —
Você não tinha uma camiseta nos anos 80 que dizia ABERTA PARA NE‐
GÓCIOS?
Beverly sorriu. — Sim. — Ela deu uma risadinha orgulhosa. — Eu real‐
mente tinha.
Minhas sobrancelhas saltaram para a linha do cabelo.
— Você expõe demais.
Beverly me dispensou com um aceno de mão.
— Não existe compartilhamento demais, querida. E alguém da sua ida‐
de deveria estar fazendo sexo. Muito sexo.
Eu tremia.
— Estou me sentindo tão suja agora, e nem fiz nada.
— Ouça-me — disse Beverly. — Você precisa andar nesse trem e ver se
os trilhos e as rodas estão funcionando satisfatoriamente — disse ela, com
as sobrancelhas se movendo sugestivamente. — Confie em mim, você não
quer que nada se quebre nesse trem. Um trem quebrado não pode ir a lugar
algum.
Balancei a cabeça, soltando um longo suspiro.
— Por que isso está acontecendo comigo?
— Querida — disse Beverly, claramente não desistindo, como se eu fos‐
se um caso de caridade sem sexo. — Tudo bem que você esteja fantasiando
sobre as habilidades dele na cama. Fantasiar é saudável. Mas você pode fi‐
car muito desapontada se continuar a fantasiar sem ter a coisa real. Você
precisa embarcar nesse trem.
— Você acha que o trem do chefe não será uma viagem tranquila? — eu
disse, chocada com as palavras que saíram da minha boca.
— Pode ser uma viagem turbulenta — disse Beverly.
Eu duvidava disso. Algo na maneira como Marcus se movia me dizia
que ele seria um ótimo amante. Você pode chamar isso de minha intuição de
bruxa. Mesmo assim, eu não ia ter essa conversa com minhas tias, especial‐
mente antes de ir para a cama com ele.
Uma batida soou na porta da frente e me salvou de mais uma humilha‐
ção sem sexo.
— Entre! — gritamos todas ao mesmo tempo.
— Casa, abra a porta para o Marcus — instruiu Dolores. Como ela sabia
que era ele era um mistério para mim.
Levantei-me de um salto quando o rangido da porta da frente se abriu,
seguido pelo som inconfundível de botas pesadas batendo no piso de madei‐
ra. Meu coração palpitava com a ideia de ver Marcus novamente. Meu pul‐
so acelerou com a lembrança do beijo do chefe quente em meus pensamen‐
tos.
Sem mencionar que ele dirigiu o dia todo e a noite toda só para chegar
aqui esta manhã e salvar Ruth. Eu só queria ter estado lá quando ele disse a
Adira para ir embora e arrumar suas coisas. Ah, bem. Você não pode ter tu‐
do.
Fui para perto de Ruth.
— Marcus está aqui — eu disse a ela e apertei seu ombro gentilmente,
embora ela não tenha olhado para cima. — Tudo vai ficar bem agora.
As botas rasparam o chão e eu levantei os olhos para ver Marcus entran‐
do na cozinha.
Embora eu o tivesse visto apenas algumas horas antes, ele estava mais
bonito do que nunca. Eu nunca me cansaria de olhar para aquele rosto, e ele
não parecia nem um pouco cansado. Deve ter sido coisa de wereape.
Ele estava com o mesmo casaco preto de inverno, aberto para revelar
uma camiseta branca e calça jeans. Seus olhos cinzentos se encontraram
com os meus, o brilho em seus olhos foi direto ao meu âmago. Um pequeno
sorriso curvou os cantos de seus lábios antes de seu olhar se voltar para mi‐
nhas tias e Iris.
— Senhoras — disse ele e parou em frente à mesa da cozinha, parecen‐
do um chefe e sexy como o inferno.
Dolores empurrou a xícara de café para o lado e entrelaçou os dedos so‐
bre a mesa. Seu rosto tinha um tom severo, como o de uma professora pres‐
tes a dar a alguém uma detenção por perturbar a aula.
— Você ficou fora por tanto tempo... Eu tinha esquecido como você era.
O tom de Dolores era leve, mas o significado por trás de suas palavras
era nítido.
Resisti à vontade de rir, pois isso teria sido estranho. Mas então uma ri‐
sada suave escapou de Iris, poupando-me a viagem.
— Eu teria voltado mais cedo se pudesse — disse o chefe, enfiando as
mãos nos bolsos.
— Eu nunca planejei ficar fora por tanto tempo. As coisas ficaram...
complicadas. Se eu soubesse…
Seus olhos se voltaram para Ruth, e eu não entendi o que vi em seu ros‐
to.
— As pessoas desta cidade não são mais importantes para você? — acu‐
sou Dolores, com o olhar frio e duro, parecendo que não queria nada melhor
do que amaldiçoá-lo.
Marcus pareceu surpreso.
— É claro que sim. Esta é a minha cidade. Cada pessoa em minha cida‐
de significa algo para mim.
Dolores fez um som de desaprovação em sua garganta. Ela estreitou os
olhos.
— Você precisa cortar o cabelo — disse ela, fazendo Iris rir alto e bater
na mesa com a mão aberta.
— Eu gosto bastante — disse Beverly, com os olhos brilhando. — Dá
vontade de passar meus dedos por ele.
Você está bem. Chega disso.
— Então, como foi com a Adira?
— A vadia vampira já foi embora? — perguntou Beverly enquanto se
servia de outra xícara de café. Ela se virou e disse: — Não gosto de tê-la
por aqui.
— Qual é o problema, Beverly? — disse Dolores, com um sorriso falso
no rosto. — Você não gosta da competição?
Beverly olhou para a irmã enquanto um lampejo de irritação passava
por seu belo rosto, mas ela não disse nada.
Marcus olhou para ela.
— Não. Adira ainda está aqui.
— Mas não por muito tempo. Certo? — perguntei, e seus olhos se volta‐
ram para os meus. — Você a mandou embora. Ela está fazendo as malas
agora, vai embora e nunca mais voltará. Certo?
— Não exatamente. — Marcus respirou fundo. — Adira estará... até a
data do julgamento de Ruth.
— Espere. O quê? — Eu gritei, com a adrenalina fazendo minha cabeça
doer. — Você não a mandou embora? Depois do que ela fez com a Ruth! —
Minha falta de sono estava me afetando, assim como as emoções profundas
que eu sentia por Ruth.
Marcus não disse nada, sua postura se transformou em uma aceitação
desconfortável enquanto todos nós o encarávamos. Seu rosto estava tenso
de emoção, e então vi o quanto ele estava exausto. Não achei que fosse só
por causa da viagem.
Meu pulso batia forte.
— Olhe para ela — falei, apontando para minha tia Ruth, que não tirava
os olhos da torrada que não havia comido. — Olhe para os pulsos dela. Adi‐
ra a algemou. A vadia a algemou, Marcus. Você tem que fazer alguma coi‐
sa. — Eu cerrei minha mandíbula. — Por favor, tire-as.
A dor vidrou os olhos de Marcus, seu rosto se desdobrando em emoções
sob seus cabelos escuros.
— Não posso.
— Tire-as — eu disse novamente, incrédula, ouvindo minha voz tremer.
Marcus deu um suspiro.
— Não posso tirá-las. Não até depois da data do julgamento.
O chão tremeu com suas palavras.
— A data do tribunal? Você está falando sério? Pensei que você fosse
cuidar de tudo isso. Pensei que você fosse retirar as acusações. Que diabos,
Marcus?
O chefe abriu a boca como se fosse responder, mas fechou-a novamente.
— Marcus? — O rosto de Beverly empalideceu. — É da Ruth que esta‐
mos falando. Ela o conhece desde que você era criança. Tratava você como
se fosse filho dela.
Os olhos cinzentos de Marcus se voltaram para Ruth.
— Eu sei disso. Você não sabe que eu sei disso?
Ele ficou em silêncio, mas eu podia ver uma tempestade escura se for‐
mando atrás de seus olhos.
— Marcus. — A voz de Dolores estava marcada por uma fúria mal con‐
trolada. — Você está dizendo que essas acusações falsas contra Ruth vão
permanecer? É isso que você está nos dizendo? Você não vai removê-las?
Marcus ficou pálido. Ele olhou para Dolores e disse:
— Sei que não era isso que você estava esperando.
— Você acha? — interrompeu Dolores, lançando-lhe um olhar veneno‐
so. — Eu esperava mais de você.
Os olhos de Marcus se arregalaram com leveza. — Certos regulamentos
são estabelecidos quando há um assassinato — disse o chefe, com o rosto
tenso. — Para arquivar um caso ou tentar reverter a condenação com base
em uma prisão ruim, não é tão simples assim. As acusações foram feitas e
precisamos dar continuidade a elas. Não posso simplesmente apagá-las.
Meu peito se apertou de raiva quando meu mundo começou a desmoro‐
nar. Ele não ia ajudar. Ele ia deixar a Ruth levar a culpa...
— Tire-as — repeti, sentindo a perda de controle e o formigamento da
minha magia ao responder às minhas emoções. Eu não conseguia acreditar
que ele faria isso. Com a Ruth. A mim.
Marcus balançou a cabeça.
— Não posso.
— Você não pode? Ou você não vai?
Eu tremia, vendo uma bola de energia apertada em meu intestino, gri‐
tando para que eu a liberasse na bunda de Marcus.
— Tessa, isso não está ajudando — advertiu Dolores, mas eu mal a ou‐
vi.
Eu me aproximei de Marcus.
— Minha tia não fez isso, e você sabe disso! — gritei. — Tire as alge‐
mas — gritei, com a garganta apertada e muita raiva. — Ou eu o farei.
Eu não tinha ideia se isso era possível, mas em minha vida, o impossível
geralmente era muito possível.
— Eu ajudo você — ofereceu-se Iris, olhando de soslaio para Marcus e
parecendo que estava prestes a proferir alguns xingamentos. Pensei em me
juntar a ela.
Marcus passou os dedos sobre sua mandíbula, com os ombros tensos.
— Você não pode tirá-las. — Ele soltou um suspiro pelo nariz. — Se
você tentar, isso vai matá-la.
— O quê? — Iris, Dolores, Beverly e eu choramos juntas.
Meus lábios se entreabriram quando um caroço de medo se instalou pe‐
sadamente em minha barriga. Meus olhos se voltaram para Ruth, que pare‐
cia atordoada, como se sua mente estivesse em outro lugar, como se não ti‐
vesse ouvido uma única palavra da conversa.
— O Caldeirão nos ajude.
Dolores bateu na mesa com o punho.
— Qual é o significado disso? Você está me dizendo que se mexermos
com essas... essas coisas... isso pode matar Ruth?
— Sim, de acordo com Adira — respondeu Marcus, com a voz firme.
Ela tinha a suavidade de um pedido de desculpas.
— Puta merda — disse Iris, com a boca aberta. — Adira é psicótica.
Eu ofeguei e meu estômago caiu. Suas palavras soaram em meus ouvi‐
dos, arrepiando-me. Filha da puta...
Minha raiva voltou a se manifestar.
— Aquela vadia vampira. Ela colocou isso na Ruth e nunca nos disse o
que eles poderiam fazer se tentássemos removê-los? Que tipo de chefe faz
isso?
Sim. Eu iria encontrá-la e depois iria matá-la.
As pontas das orelhas de Marcus ficaram vermelhas. Ele se aproximou
de Ruth.
— Ruth? Posso dar uma olhada nos seus pulsos?
Pela primeira vez na manhã, Ruth virou lentamente a cabeça e olhou pa‐
ra Marcus.
— Oh! Oi, Marcus — disse ela, animada, como se tivesse acabado de
perceber que ele estava aqui. — Quando você voltou? Eu teria preparado al‐
guns daqueles rolinhos de lagosta que você tanto gosta... mas tenho me sen‐
tido mal ultimamente. Deve ser um problema estomacal.
Beverly começou a chorar, e eu pisquei rapidamente para conter minhas
próprias lágrimas.
Isso era tão errado - tão, tão errado.
A mandíbula de Marcus se cerrou.
— Obrigado a você, Ruth. Mas não estou com fome. Posso dar uma
olhada nos seus pulsos? — ele perguntou novamente, com uma voz gentil,
suave, como eu nunca tinha ouvido antes.
— Ah, claro. — Ruth sorriu e lhe deu o pulso. — Não poderei mais fa‐
zer seus remédios. Não posso mais fazer poções. Foi o que Adira disse. A
nova chefe. Você já a conheceu?
Meu coração se apertou com a emoção em sua voz. Eu queria matar
Adira. Queria cortar sua cabeça e enfiá-la em um espeto.
— Sim — respondeu Marcus. — Está tudo bem, Ruth. Ainda tenho o
suficiente do meu remédio. Você não precisa se preocupar com isso.
Eu sabia que eles estavam falando sobre aquela poção azul que ela vi‐
nha fornecendo a ele há meses, mas eu realmente não me importava com o
que era agora.
Marcus pegou o pulso de Ruth gentilmente em sua mão, girando-o len‐
tamente, antes de colocá-lo de volta no chão.
— Obrigado, Ruth.
Ela sorriu para ele e depois se voltou para o brinde, com a mesma ex‐
pressão distante cruzando seu rosto mais uma vez.
— Eu nunca usei isso antes — disse o chefe, olhando para Dolores e
Beverly. — Não estou familiarizado com eles. Eu nunca teria colocado isso
em Ruth. Em nenhuma de vocês.
— É distorcido. É bárbaro, é o que é — eu disse friamente. — Ela não
tem provas de que Ruth matou Bernard, mas a trata como uma criminosa.
Respirei fundo para me acalmar.
— Você precisa resolver isso. Se você se importa com ela, com essa fa‐
mília, você conseguirá que essas acusações sejam retiradas.
— Você acha que eu queria que isso acontecesse? — disse ele em um
tom áspero, com um olhar de descrença em seus olhos.
— Parece que você não quer fazer nada para impedir isso — respondi,
fixando-o com meu olhar.
— Ruth confessou. — Marcus encontrou meus olhos. — Ela confessou.
Não há nada que eu possa fazer.
— Cara, você não presta —disse Iris enquanto dava uma mordida em
sua torrada fria. — — Você é um completo babaca.
— Ela pode não confessar — gritei, sem saber se isso era possível, mas
valia a pena tentar.
Marcus começou a andar pela cozinha. — Não é assim que funciona.
— Então me explique. — Frustrada, eu gemi. — Não estou entendendo.
Você é o chefe! Você ainda não é o chefe? Ou estou perdendo alguma coisa
aqui?
Ele parou e olhou para mim.
— Eu sou.
— E Adira também é chefe?
— Sim.
Joguei minhas mãos para o alto.
— Ótimo. Temos dois chefes.
A expressão de Marcus ficou distante e cautelosa.
— Adira foi a chefe da prisão — disse ele. — Ela tem que ficar até o
tribunal...
— Cale a boca! Apenas cale a boca! — Eu gritei, com minha magia e
fúria me invadindo.
Marcus deu uma olhada em Ruth e sentiu um brilho de pavor em seus
olhos. Ele esfregou as mãos no rosto.
Eu o encarei fixamente, desejando nunca ter ido buscá-lo.
— Então, é isso. Você não vai ajudar.
— Não há nada que eu possa fazer. Sinto muito — disse ele em uma
voz sem emoção.
— Saia daqui! — Eu gritei, as palavras rasgando minha alma, despeda‐
çando-a. Meu instinto dizia que tudo isso estava errado, mas não dava mais
para confiar em meu instinto.
Marcus me pegou.
— Tessa...
— Apenas saia daqui!
A expressão do chefe endureceu e ele me observou por um longo mo‐
mento.
E então aquele homem lindo por quem eu estava me apaixonando, mas
que agora desprezava, deu meia-volta, desapareceu no corredor e saiu pela
porta da frente.
Capítulo 16

M inhaNão
bunda estava dormente.
por ter caído no chão ou por ter ficado sentada em uma super‐
fície fria ao ar livre por uma hora, mas por ter ficado sentada em uma cadei‐
ra dura dentro de casa até que meus músculos das nádegas enrijeceram, for‐
migaram, doeram e, por fim, ficaram completamente dormentes, como se
eu tivesse acabado de levar uma injeção de anestésico.
De costas para a parede, meu joelho direito balançou para cima e para
baixo durante a última hora e meia, enquanto eu olhava para a grande porta
de metal preta da sala de reuniões, esperando para ver o rosto sorridente de
Ruth quando ela saísse.
Hoje era sete de dezembro, e o Conselho Cinza havia chegado e instala‐
do seus procedimentos judiciais na sala de conferências da Agência de Se‐
gurança de Hollow Cove.
No fim das contas, eu não tinha permissão para assistir aos procedimen‐
tos. Apenas Dolores e Beverly puderam comparecer, pois haviam sido teste‐
munhas da produção da erva-de-gengibre de Ruth.
Por falar em erva-de-são-gengibre, nos últimos dois dias eu estava na
cozinha, tentando refazer o tônico que Ruth havia dado a Bernard. Poções
não eram o meu forte, e eu tinha conseguido estragar trinta tônicos diferen‐
tes. Ruth não queria ajudar. Eu havia pedido a ela no início de meus experi‐
mentos, mas ela apenas sorriu para mim e continuou olhando pela janela de
seu quarto.
A ideia era refazer a poção e testá-la. Ver se ela era tão perigosa quanto
todos pensavam, já que eu não podia colocar as mãos na verdadeira.
Até Dolores, Beverly e Iris vieram em meu auxílio. Finalmente conse‐
guimos que a poção funcionasse, mas a cor estava errada. Na padaria, a cor
era um creme claro, e essa, não importa quantas vezes tentássemos, sempre
saía laranja.
Eu me inclinei para a esquerda, colocando mais peso na nádega para
tentar obter algum fluxo sanguíneo, e vi Iris me encarando na cadeira ao la‐
do.
— O quê? — Eu disse. — Estou com a bunda dormente.
Ronin riu.
— Bunda dormente. Eu gosto disso. Soa engraçado.
O meio-vampiro sentou-se na cadeira à minha esquerda. Ele veio para
me dar apoio moral. Caldeirão sabia que eu precisava dele, assim como
Ruth. Todos nós precisávamos.
— Talvez devêssemos dar uma volta — Iris se moveu ligeiramente para
a esquerda, sinalizando que ela também estava sentindo dormência.
Pensei sobre isso por um momento.
— Não. Quero estar aqui quando a Ruth sair.
O que era verdade. Independentemente do resultado, ou do meu grau de
insensibilidade, eu precisava estar aqui.
— Você falou com o Marcus? — Perguntou Iris, e eu olhei para cima e
vi Grace olhando para nós de sua mesa do outro lado do corredor. Eu a en‐
carei e continuei encarando até que ela desviasse o olhar. Eu não precisava
que ela ficasse escutando agora.
Suspirei.
— Você quer dizer se eu falei com o idiota desde que o expulsei?
— Sim.
— Não. E também não pretendo fazer isso.
Senti uma pontada de raiva ao me lembrar do que havia acontecido cin‐
co dias atrás. Eu tinha sido um idiota ao pensar que Marcus salvaria Ruth.
Eu tinha depositado toda a minha fé nele e estava confiante de que ele o fa‐
ria.
Ele estava lá agora, na sala de conferências com o resto deles, enquanto
nós estávamos sentados aqui temendo o pior, com minha imaginação levan‐
do a melhor.
Mais uma vez, eu era uma idiota. Sempre que pensava no chefe, sentia
uma dor profunda e latejante no peito, como se alguém tivesse dado um
chute lateral no meu abdômen. Eu odiava como ele me fazia sentir quando
estava perto de mim, como se eu não conseguisse controlar minhas emo‐
ções. Como se eu fosse fraca.
Mas eu não era fraca. E, até o momento, eu tinha desenvolvido um
grande potencial nas últimas semanas. Eu não precisava dele.
Ronin soltou um longo suspiro pelo nariz.
— Você não pode culpar o cara por isso.
Irritada, virei-me em meu assento para encará-lo diretamente, estreitan‐
do os olhos para o meio-vampiro.
— Você está brincando comigo agora?
— Calma, cabo de vassoura — disse ele, com um pequeno sorriso no
rosto que eu queria arrancar. — Só estou dizendo que o que aconteceu com
Ruth não foi culpa dele. Ele nem estava aqui. E pelo que você me disse, ele
tentou.
— Não o suficiente. — Balancei a cabeça. — Ele não tentou remover as
acusações.
— Tenho certeza de que ele fez isso — respondeu Ronin. — Mas se ele
não conseguiu... isso significa que ele não conseguiu encontrar nenhum mo‐
tivo para a retirada. Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito.
Meu estômago se contraiu.
— Não acredito nisso — eu disse. — Sempre há algo que você pode fa‐
zer. Ele é o chefe. Se o chefe não pode retirar as acusações, de que adianta
você ter um chefe? É melhor você dizer a ele para fazer as malas e ir embo‐
ra.
Ronin inclinou a cabeça para trás contra a parede e passou a mão sobre
o cabelo para se certificar de que estava liso.
— Conheço Marcus há mais tempo do que você, Tess, e acredite em
mim, ele ama Ruth. Sei que ele fez tudo o que podia.
— Bem, não foi suficiente — eu disse com amargura. — Nem de longe
o suficiente. Eu esperava muito mais dele.
— Ele dirigiu o dia todo e a noite toda para chegar aqui para a Ruth —
disse Iris.
Eu a encarei.
Iris deu de ombros.
— Só estou dizendo.
— Não faça isso.
— Isso significa que ele se importa.
Esfreguei as mãos suadas nas coxas, minha pressão arterial disparava à
medida que ficávamos aqui sem notícias.
Notícias.
— Grace? — Eu chamei. — Você sabe quanto tempo vai demorar?
Grace olhou para mim do que estava fazendo. Um lampejo de irritação
passou por seu rosto, como se eu tivesse acabado de interromper suas pala‐
vras cruzadas. Ela apertou os lábios finos com força e olhou de volta para
sua mesa.
— Obrigada. — respondi. Deus, aquela mulher era irritante.
A situação estava indo de mal a pior e não havia nada que eu pudesse
fazer. Ruth ainda estava em seu estado de depressão quando a vi entrar na
sala de reuniões. Meu coração se partiu ao ver a dor que brilhava em seus
olhos.
Soltei um suspiro frustrado e me levantei. Fui até a porta da sala de con‐
ferências, encostei meu ouvido nela e escutei. Nada. Nem mesmo um mur‐
múrio. Eles haviam enfeitiçado a sala com um feitiço de barreira sonora co‐
mo o que a Maravilhosa Murta havia feito quando eu estava em sua tenda
para impedir que o Ronin ouvisse o que estava acontecendo lá dentro.
Sabendo que era inútil, eu me afastei e me deixei cair de volta na cadei‐
ra.
— Você teve sorte? — perguntou Ronin.
— Nada. A sala foi enfeitiçada com um feitiço de contra-audição.
— Que pena.
— Eu só queria saber o que está acontecendo lá dentro — eu disse,
exasperada. — A parte de não saber é a pior.
— Eu sei. — Ronin se inclinou para frente e disse: — Tess, você está
com o rosto muito vermelho. Você precisa se acalmar ou vai ter um ataque
cardíaco.
— Como posso me acalmar quando a vida de Ruth está em jogo? Não
consigo. Não sei como.
— Bem, o sexo é o melhor aliviador de estresse que conheço — disse o
vampiro. — Ele pode até curar soluços crônicos.
— Ele aprendeu isso comigo — interrompeu Iris.
Soltei uma risada.
— Bem, não estou sofrendo de soluços.
Ronin riu.
— Não. Mas você precisa relaxar. — Ele cutucou minha bolsa no chão
com o pé. — Você tem um vibrador nessa bolsa?
Engasguei-me com meu próprio cuspe. Fiquei olhando para o vampiro,
sem saber o que dizer.
Iris começou a rir, ganhando uma careta de Grace.
— O quê? — Ronin me deu um sorriso. — Um orgasmo agora mesmo
vai baixar sua pressão arterial. Só estou dizendo.
Eu sabia que meu amigo estava apenas tentando me fazer rir para aliviar
a tensão.
— Você é louco.
— Você me ama — disse Ronin alegremente e colocou as mãos atrás da
cabeça enquanto se encostava na parede.
Passei o olhar pelos meus amigos, meu coração desacelerando enquanto
se enchia de gratidão por não estar passando por isso sozinha. Sozinha, eu
provavelmente teria tido um ataque cardíaco ou um derrame. Eu não queria
perder Ruth, não quando eu estava apenas começando a conhecê-la melhor.
Eu amava minha tia ferozmente. Não havia nada que eu não fizesse por ela.
Nada.
— Tenho certeza de que vai dar tudo certo — disse Iris. Sua pequena
mão se aproximou e apertou a minha. — A Ruth não matou o Bernard. E se
ele morreu por ter ingerido a poção dela, foi um acidente. O Conselho Cin‐
za vai entender.
— O que você acha que eles vão fazer?
Iris pensou um pouco sobre isso.
— Eles vão retirar as acusações se a Ruth não estiver envolvida. E se
ela deu ao Bernard algo a que ele era mortalmente alérgico, ela provavel‐
mente nunca mais poderá trabalhar com poções para ninguém.
— Certo. Bem, isso não é tão ruim. — Pensei em como Ruth ficaria
chateada, mas se ela acidentalmente matasse Bernard, esse seria o melhor
resultado. Olhei para a Iris novamente. — E se eles a acusarem?
Da bolsa de pano a seus pés, Iris tirou um pequeno álbum de fotos e o
abriu em seu colo, passando as mãos sobre as folhas de plástico transparen‐
te.
— Nós usamos isso.
Eu me inclinei para dar uma olhada melhor.
— Vamos usar os retratos de sua família para sufocar o Conselho Cin‐
zento até a morte?
— Retratos?
Ronin se levantou e se moveu ao meu redor para se sentar ao lado do
outro lado de Iris.
Iris afastou suas mãos e eu arfei.
— Não são fotos de família — eu disse, meus olhos se movendo de um
lado para o outro do álbum.
O que inicialmente pensei ser um álbum com fotos da família de Iris era
algo completamente diferente.
Fiquei olhando de boca aberta para fios de cabelo e pedaços de tecido
cortados que pareciam ter pertencido a uma camisa. Alguns eram pequenos
pedaços de jeans, dentes, fios de cílios, gotas de manchas marrons escuras
que pareciam muito com sangue seco e vários outros itens pequenos que eu
não conseguia decifrar. Todos estavam dispostos em fileiras organizadas,
todos com etiquetas impressas cuidadosamente abaixo de cada item em tiras
de papel branco. Cada um deles estava catalogado com nomes e datas.
— Iris — falei, com os olhos ainda fixos na estranha unha humana que
havia visto. — O que é tudo isso?
Iris encontrou meus olhos e sorriu.
— Esta... é a Dana — disse ela com carinho, como se o livro fosse uma
pessoa de verdade. — Meu pequeno livro negro de maldições. Tenho cole‐
tado material de diferentes mestiços e humanos ao longo dos anos. Fiz al‐
guns de meus melhores trabalhos com Dana. As maiores e piores maldi‐
ções.
Ronin assobiou.
— Você acha que é errado eu estar tão excitado neste momento?
Eu não sabia o que era mais perturbador, se o Ronin se empolgava com
as unhas dos pés e os dentes expostos no livro da Iris ou o fato de que ela os
colecionava.
Fiquei olhando para o que parecia ser um pequeno pedaço de carne se‐
ca.
— E por que você precisa disso?
— Dana — corrigiu Iris.
Certo.
— Por que precisamos da Dana?
Iris folheou as páginas até um ponto próximo ao meio. Ela apontou para
um pedaço de tecido cinza.
— Este é um pedaço da túnica cinza de Hubert. Ele faz parte do Conse‐
lho Cinza. Eu o reconheci mais cedo, antes de ele entrar com os outros.
— E nós usaríamos isso para... o que exatamente?
— Para amaldiçoá-lo. — Os olhos de Iris estavam arregalados de exci‐
tação. — Ataque cardíaco. Derrame. Aneurisma cerebral. Diarreia explosi‐
va. Vômito em projeção. O que você quiser. Você pode fazer isso.
Fiquei impressionada e um pouco assustada.
— Uau. Bem... isso é... ótimo... uh... é que...
A porta da sala de reuniões se abriu.
Pulei de pé, com o coração batendo dentro da caixa torácica como uma
bola de pingue-pongue, quando cinco indivíduos de vestes grisalhas saíram
da sala de conferências, parecendo tão deslocados quanto cavaleiros Jedi
em uma festa de chá. Eles se moviam com uma rapidez que não condizia
com sua idade. Todos já tinham passado do nonagésimo aniversário e se
portavam de uma maneira que só as pessoas realmente importantes faziam.
— É agora ou nunca — disse Iris, de repente ao meu lado e empurrando
aquele álbum assustador para mim. — A Dana ainda não me decepcionou.
Mas você tem que avisá-la com antecedência.
Balancei a cabeça, com os olhos voltados para a sala de conferências.
— Tenho certeza de que não precisaremos dela.
Eu não tinha certeza, mas tinha certeza de que fazer mal a um membro
do Conselho Cinza era seriamente ilegal.
Em seguida, veio Adira, seguida rapidamente por seus companheiros
vampiros, os três homens e a única mulher que eram esquecíveis - e Mar‐
cus.
Nossos olhos se encontraram e, sim, eu poderia até ter parado de respi‐
rar, mas antes que eu pudesse desviar o olhar, Marcus olhou para Adira e
começou a conversar com ela, ficando de costas para mim. Eu tinha a sen‐
sação de que ele havia feito isso de propósito.
Senti um rasgo no peito que me surpreendeu, como se meu coração esti‐
vesse formando rachaduras. Talvez eu tenha exagerado um pouco ontem,
mas já estava feito. Eu tinha que aceitar. Neste momento, não tinha tempo
para pensar nas consequências de minhas ações ou no que isso significava
para nós. Se havia um "nós", já não havia mais.
Dolores entrou pela porta em seguida, e depois Beverly com Ruth no
braço. Todos os músculos do meu corpo ficaram tensos. Ninguém estava
chorando, graças ao caldeirão. Considerei isso um bom sinal.
Com um suspiro de alívio, corri para lá, colocando-me na frente de Be‐
verly e Ruth.
— E? Como foi? O que elas disseram? Ruth? O que o Conselho Cinza
disse?
Ruth olhou para mim, e eu não conseguia entender o que via em seu
rosto.
— Está tudo acabado. Acabou. Finalmente acabou. Estou feliz com is‐
so. A espera... a espera é o pior. Mas agora eu sei.
Olhei para Beverly.
— Do que ela está falando?
— Ela quer dizer que o Conselho Cinza deliberou— disse Dolores ao
entrar, olhando para mim, sem piscar, com as íris tão escuras que eu não
conseguia ver onde estavam suas pupilas.
Meu coração estava batendo forte e meus joelhos pareciam prestes a ce‐
der enquanto eu procurava o rosto de Dolores.
— O que eles decidiram?
Os lábios de Dolores tremeram e ela engoliu com força, como se esti‐
vesse tentando controlar suas emoções e estivesse passando por um mo‐
mento difícil.
— Ruth foi considerada culpada...
— O quê? — Eu gritei, vendo Iris e Ronin aparecerem em minha visão
periférica à minha esquerda.
— O relatório do legista afirma que a beladona negra estava em sua
mistura — instruiu Beverly, com o braço ainda enganchado no de Ruth, e
eu não sabia dizer qual bruxa precisava mais do apoio. — Foi o que matou
Bernard.
Com base em meus estudos intensos, eu sabia que a beladona era usada
como sedativo e, às vezes, ajudava no tratamento da asma e de tosses gra‐
ves, até mesmo da febre do feno. A beladona negra? Essa era usada como
analgésico e para paralisia. E se usada em excesso, com certeza levaria você
à morte.
— Mas a Ruth nunca colocaria isso na erva-de-gengibre — respondi. —
Ela sabe que não é assim. E não é como se ela não tenha feito isso milhares
de vezes antes. Isso é um erro. Eles entenderam errado.
— As evidências são claras — continuou Dolores, com a voz arrastada
e cansada.
Balancei a cabeça, olhando para Ruth.
— Ruth? Fale comigo.
Lentamente, Ruth ergueu os olhos para mim.
— Eu... não me lembro se coloquei a beladona negra ou não. Minha
mente não está tão clara como antes. Eu... eu poderia tê-la colocado aciden‐
talmente.
— Não. — Balancei a cabeça. — Eu me recuso a acreditar nisso.
— Bem, não importa no que você acredita — anunciou Dolores. — O
Conselho Cinza a considerou culpada de homicídio por negligência. De ter
matado Bernard.
Cerrei os dentes para não ofegar quando comecei a tremer.
— O que isso significa? — O pânico tomou conta de mim. Parte de
mim sabia que isso poderia acontecer, mas nunca pensei que aconteceria.
Lágrimas caíram dos olhos de Beverly enquanto seus lábios tremiam.
Ela abriu a boca, mas apenas um gemido saiu.
— Significa — disse Dolores, sua voz mais alta do que o normal. —
Que no final deste mês... no dia vinte e três de dezembro... Ruth começará a
cumprir sua sentença de cinco anos na Cidadela de Grimway.
A prisão dos bruxos. Dessa vez, ofeguei. Uma onda de náusea me atin‐
giu e eu não conseguia respirar. Meus olhos se voltaram para Marcus e o
encontrei olhando para mim, com os olhos tristes e cheios de arrependimen‐
to. Desviei o olhar antes que começasse a chorar.
— Isso não pode estar acontecendo — consegui dizer. — Eles não po‐
dem fazer isso. A Ruth é inocente.
— Eles podem e o fizeram. Ruth confessou. Ela concordou em cumprir
sua pena.
Dolores fechou a boca, e eu sabia que era sua maneira de dizer que não
queria dizer mais nada.
— Como ela pode confessar algo que não fez? — A faixa em volta do
meu peito se apertou e eu respirei ofegante, parecendo um soluço.
— Ruth, não — eu disse a ela, as lágrimas finalmente escapando dos
meus olhos, em gotas grossas e pesadas.
— Sim. — Ruth sorriu para mim, mas fez uma careta. — Eu o matei.
Envenenei Bernard, deixei sua esposa viúva e agora vou pagar o preço por
minha tolice.
Fiquei ali com o coração partido enquanto Dolores, Beverly e Ruth se‐
guiam pelo corredor e saíam pela porta da frente.
Como as coisas podem dar tão errado tão rapidamente? Mas é como di‐
zem, sempre pode piorar. E eles estavam certos.
Amanhã seria meu segundo julgamento de bruxa.
Capítulo 17

S enmetiatro
como se tivesse sido atropelada por um ônibus, que deu ré e depois
pelou novamente, só para ter certeza de que havia atingido todos
os meus ossos, inclusive os pequenos.
A dor mental havia se elevado e se transformado em dor física. A única
vez que passei por algo assim foi quando meu ex-namorado John me disse
que não me amava mais. Mesmo assim, eu havia me recuperado surpreen‐
dentemente rápido disso. Talvez, no fundo, eu sempre soubesse que aquele
relacionamento não duraria.
Mas isso era diferente. Era a Ruth. Minha amada, gentil e bondosa
Ruth. A Ruth que salvava aranhas e baratas e falava com as abelhas como
se fossem pequenos gatinhos amarelos e pretos.
As dores e o latejar gigantesco e constante eram resultado da falta de so‐
no dos dias anteriores, se é que você poderia chamar isso de falta - mais co‐
mo sono inexistente.
Eu não conseguia dormir. Minhas tias estavam histéricas, chorando, so‐
luçando. A notícia era tão devastadora e eu estava em choque ou em nega‐
ção, provavelmente as duas coisas. O mundo delas tinha virado de cabeça
para baixo. E agora, elas iam perder a Ruth.
Para piorar a situação, Ruth tinha entrado no meu quarto ontem à noite
para me desejar boa sorte.
— Boa sorte amanhã — disse ela, com um sorriso caloroso e reconfor‐
tante. — Mas tenho certeza de que você não precisará dela. Você se sairá
muito bem. Você vai se sair bem. Muito bem.
Fiquei ali parada, com meus lábios incapazes de formar palavras. En‐
quanto seu mundo estava desmoronando, ela se lembrou de mim e reservou
um momento para me desejar sorte.
Foi preciso muita contenção para não começar a chorar de emoção.
Agora, mais do que nunca, eu precisava passar nessas malditas provas
de Merlin. Pelo menos, eu faria isso pela minha tia Ruth.
Ruth não estava indo para a Cidadela Grimway. Não. Isso não vai acon‐
tecer. Ainda tínhamos dezesseis dias antes de ela partir. Tempo de sobra pa‐
ra recorrer da decisão do Conselho Cinza - ou descobrir quem colocou a be‐
ladona negra no tônico dela. Ruth nunca cometeria um erro como esse, e eu
não descansaria até descobrir quem foi.
Esquecendo-me de dormir antes do amanhecer e desejando que Marina
não sabotasse meu segundo teste (embora nenhum e-mail tivesse sido envi‐
ado), pulei da cama, escovei os dentes, peguei algumas barras de proteína e
uma garrafa de água e pulei a linha ley às 4h da manhã.
Eu estava com tanta pressa de pular que me esqueci de como podia ficar
frio em dezembro, tão cedo pela manhã, sem o sol para esquentar um pouco
o clima. Embora eu estivesse com meu casaco de inverno, não estava quen‐
te o suficiente para esperar do lado de fora em um clima congelante por
mais três ou quatro horas até que alguém abrisse as portas do Montevalley
Castle.
Imagine a minha surpresa quando me aproximei das grandes portas da
frente, procurando um lugar para sentar que não me deixasse com dor de
cabeça, e elas se abriram e me deixaram entrar.
Agora, três horas e duas barras de proteína depois, eu estava com o resto
dos bruxos em treinamento em um espaço frio e cavernoso abaixo do Caste‐
lo de Montevalley.
Estávamos na parte inferior do castelo, em seu calabouço, nas entranhas
do castelo de toras. Sim, e também cheirava mal, como se a equipe de lim‐
peza tivesse esquecido de limpar os banheiros por alguns anos. O ar era
úmido e quente e, embora eu estivesse feliz por ter deixado meu grande ca‐
saco de inverno na sala comum, o ar se agarrava à minha pele em uma ca‐
mada nojenta. Havia tochas penduradas nas paredes, a única fonte de luz.
Eu me senti como se estivesse em uma masmorra medieval. Acho que era
esse o clima que eles estavam buscando.
A altura do teto, segundo minhas estimativas, era de cerca de 2,5 metros
e era sustentada aqui e ali por pilares e vigas que pareciam ter sido adicio‐
nados há séculos, devido à quantidade de deterioração e apodrecimento. As
paredes da caverna eram feitas de uma mistura de rocha viva e pedra. O
chão era de terra compacta e sujeira. Era enorme, tão grande quanto o pri‐
meiro andar do castelo, com o mesmo número de cômodos e passagens.
Acrescente a escuridão e os cantos sombreados, e qualquer um poderia se
perder aqui se não soubesse o caminho. Era um maldito labirinto subterrâ‐
neo.
Uma bruxa criada ou assistente reuniu todos nós na sala comum alguns
minutos antes das 7h e nos instruiu a segui-la até o porão. Ela nos conduziu
por corredores tortuosos e desceu mais escadas de pedra, finalmente passan‐
do por uma entrada para uma câmara do tamanho da sala comum com uma
única porta na extremidade oposta.
— Espere aqui — ela ordenou, e depois desapareceu no mesmo corre‐
dor.
Olhei em volta nervosamente. Não tinha ideia do que esperar, mas pelo
menos tinha chegado a tempo. Alguns murmúrios circulavam pela câmara
enquanto os bruxos conversavam entre si, mas a maioria deles estava em si‐
lêncio.
O som de pés se aproximando chegou até mim e me virei para ver um
bruxo baixo, do sexo masculino, com cabelos castanhos e óculos que pare‐
ciam grandes demais para ele, aparecer ao meu lado.
— Oi — disse Willis. A frente de sua camisa tinha uma grande mancha
de pasta de dente, e ele estava tremendo como uma folha. — Tessa, certo?
— Isso. Oi, Willis.
Eu não tinha me apresentado a ele, mas Greta tinha feito isso por mim,
na frente de todos no teatro no dia da orientação.
Willis empurrou os óculos para cima da ponte do nariz com um dedo
trêmulo.
— Você está nervosa? Eu estou. Não passei no primeiro teste. Você po‐
de acreditar nisso? Décima terceira vez e eu ainda não consegui fazer isso.
Você poderia achar que eu já seria um especialista a essa altura. — Ele deu
uma risada nervosa. — Provavelmente sou o único que não passou. Se eu
for reprovado na segunda… — Willis olhou para seus sapatos, incapaz de
terminar o que queria dizer.
Meu coração doeu com a miséria e a derrota que vi em seu rosto. Ele
sentia o mesmo que eu.
— Eu também não passei — disse a ele, percebendo que provavelmente
éramos os únicos. — Acho que somos dois.
Os olhos de Willis estavam redondos por trás dos óculos.
— Sério? Isso é ótimo - ah, não, não quero dizer que é ótimo que você
tenha falhado, mas pelo menos não sou o único. — Ele franziu a testa. —
Não está saindo do jeito que eu quero.
Eu ri.
— Não se preocupe. Eu sei o que você quer dizer.
Percebi alguns bruxos zombando de nós. Eles estavam na casa dos vinte
e poucos anos, três homens e cinco mulheres, todos vestidos com a última
moda, de aparência cara.
Eles estavam olhando para nós como fracassados, como perdedores. Al‐
guns deles riram, com os olhos fixos em Willis. Quando seu rosto ficou em
um tom de vermelho que eu não imaginava ser possível, eu soube que ele os
tinha visto.
Mas eu era mais velha. Mais sábia. E minhas bolas femininas agora
eram enormes.
Então, mostrei a eles meu melhor sorriso e acenei com o dedo. Todos
olharam para mim, mas pararam de nos encarar. Considerei isso como uma
vitória.
E foi aí que minha diversão acabou.
Das sombras do porão, surgiu um homem alto e magro usando apenas
uma calça preta, botas e um sorriso maligno. Seu cabelo escuro estava preso
em um rabo de cavalo, fazendo com que seu cavanhaque se destacasse. Seu
peito nu estava completamente coberto de tatuagens. As runas e os sigilos
cobriam seus braços e ombros, até o pescoço. O cara adorava tatuagens. Ele
não era grande como um fisiculturista, era mais parecido com um atleta de
Crossfit, tonificado e com fios.
Silas, o segundo árbitro.
Ele cruzou os braços sobre o peito, exibindo suas runas e sigilos.
— Noventa e seis de vocês entraram na primeira prova e cinquenta e
dois falharam — disse ele, com uma voz áspera e um sotaque que não con‐
segui identificar.
Cinquenta e dois?
Embora eu tenha dito isso em minha cabeça. Willis se virou para olhar
para mim e sua surpresa refletiu a minha. Acho que não éramos os únicos
perdedores aqui, mas isso não fez com que eu me sentisse melhor.
— Atrás de mim, por aquela porta, está o segundo julgamento de vocês.
— Sua voz era desdenhosa, confiante e fervilhante de absoluta convicção.
— O labirinto de Merlin.
Praguejei.
— Odeio estar certa — murmurei para mim mesmo.
— E, assim como em qualquer labirinto, você precisa chegar ao centro.
Alguém riu e a atenção de Silas se voltou para a esquerda.
— Você acha que isso é fácil? Você acha? — Seu rosto se contorceu
grotescamente.
— Vou ser claro. Como a maioria de vocês, idiotas, já falhou na primei‐
ra prova, que foi a mais fácil, por sinal. Isso significa que não há muita es‐
perança para vocês, perdedores.
— Que fala gentil. — eu disse para ninguém em particular.
Sua cabeça se inclinou em minha direção.
— O que foi isso?
— Nada. Só estou ansiosa para começar. — Eu sorri. Ele não sorriu de
volta.
Silas olhou para mim por um momento.
— É simples. Chegue ao centro do labirinto e você passará na prova. —
Sua carranca desapareceu, substituída por uma máscara cuidadosa e sem ex‐
pressão. — Vocês serão divididos em dois grupos — continuou ele, com
uma careta na voz. — Os vencedores e os perdedores.
— Legal. — Que sacana.
O olhar de Silas percorreu o grupo de bruxos.
— Todos aqueles que passaram no primeiro teste, por favor, dêem um
passo à frente.
Juntos, todos os bruxos que haviam passado no teste - o que, para minha
total decepção, incluía aqueles que haviam zombado de nós - seguiram em
frente, deixando para trás os 52 que haviam sido reprovados. Se a tática de‐
le era para nos envergonhar, estava funcionando.
Uma runa tatuada no braço direito de Silas brilhou em vermelho. Ele es‐
talou os dedos e um relógio digital gigante apareceu na parede, à esquerda
da porta. Números vermelhos brilhantes piscavam 59:99.
Meu olhar se voltou para a runa em seu braço e observei como ela se
desvanecia do vermelho para um preto opaco. Percebi que o cara extraía seu
poder das runas e sigilos tatuados em sua pele. Sua tinta era sua magia. Ele
não precisava desenhar um círculo, pronunciar um feitiço ou recitar um en‐
cantamento. O cara era um livro de feitiços ambulante.
Eu teria achado legal se já não odiasse o bastardo da tatuagem.
— Vocês têm sessenta minutos para chegar ao centro do labirinto — in‐
formou Silas. — Se não conseguirem fazer isso, vocês não merecem ser um
Merlin. Seu olhar nos percorreu. — Se vocês não chegarem ao centro do la‐
birinto quando o relógio chegar a zero, vocês serão reprovados.
Meu grupo, o grupo perdedor, se mexeu nervosamente, a tensão na sala
aumentando à medida que eles olhavam para o relógio. Percebi que sessenta
minutos não era muito tempo para enfrentar o que quer que estivéssemos
enfrentando.
— Perdedores — disse Silas. — Vocês terão uma penalidade de quinze
minutos.
— O quê? — Eu gritei, sem conseguir me conter.
Os olhos escuros de Silas encontraram os meus e ele ergueu uma so‐
brancelha em desafio. — Os perdedores só poderão entrar por aquela porta
quando o relógio marcar quarenta e cinco.
Willis deu um pequeno guincho. O bruxo parecia mesmo um rato.
Ok, então eles não jogaram limpo. Nem eu. Vamos lá, Tommy Lee.
Quando meu olhar se voltou para Silas, outra runa, uma em seu bíceps
direito, brilhou em um vermelho intenso, e a porta atrás dele se abriu. Ele se
moveu para o lado e eu tentei espiar, mas tudo o que consegui ver foram
mais paredes de pedra que terminavam em sombras.
— Vencedores — disse Silas. — É a vez de vocês.
Como um bando de hienas selvagens, os bruxos considerados "vencedo‐
res" entraram em movimento, empurrando-se e empurrando umas às outras
enquanto corriam pela porta aberta como se estivessem sendo sugadas por
um funil gigante.
Eles pareciam idiotas, mas eu entendia perfeitamente a pressa deles. Eu
faria o mesmo quando chegasse a minha vez. Eu faria o mesmo por Ruth.
Assim que a última bruxa passou, a porta se fechou novamente.
Silas se posicionou em frente a ela como um segurança em uma boate e,
mais uma vez, cruzou os braços sobre o peito.
E ele ficou assim, sem se mexer, como uma figura de cera assustadora
ou um adereço de filme por mais quinze minutos, enquanto o restante de
nós encontrava um lugar para sentar.
55:00
Willis não disse uma única palavra para mim enquanto estávamos senta‐
dos um ao lado do outro, cada um de nós perdido em sua própria versão do
inferno. Estava claro. Nós, perdedores, não esperávamos ser aprovados nes‐
se julgamento, não com um pênalti de quinze minutos no relógio.
50:00
Foram os piores quinze minutos da minha vida. O tempo estava passan‐
do mais rápido do que o normal, ou isso ou olhar para os números brilhan‐
tes que diminuíam estava fazendo com que isso acontecesse.
47:00
Tirei o celular da bolsa e toquei no aplicativo do relógio, configurando
uma contagem regressiva para coincidir com o relógio da parede. Antes de
ligá-lo, dei uma olhada no relógio gigante na parede, esperando que ele mu‐
dasse...
45:59
Ativei o aplicativo de contagem regressiva.
Eu me levantei e todos seguiram meu exemplo, meu corpo tremendo de
adrenalina que pulsava em minhas veias e fazia meu sangue pulsar. Contan‐
do em minha cabeça, tomei minha posição bem na frente de Silas. Ele não
se mexeu. Não me importei. Assim que a porta se abrisse, eu passaria por
cima dele se ele não saísse do meu caminho.
45:20
Cinquenta e dois de nós passariam por aquela porta em menos de vinte
segundos. Era uma porta minúscula e um número enorme de bruxos.
Que vença o melhor bruxo.
45:00
Pisquei os olhos. Silas se moveu para o lado, assim que a porta se abriu.
E eu me apressei.
Capítulo 18

C orumri raaotolondegoladas paredes de pedra pouco iluminadas, sentindo-me como


boratório em alguma instalação de pesquisa, à procura de
queijo.
Parte de mim se sentiu idiota. A outra parte, a parte vencedora, sabia
que eu não estava correndo apenas por mim. Eu estava correndo por Ruth.
Nós, cinquenta e dois perdedores, corremos às cegas porque, convenha‐
mos, não tínhamos ideia do que esperar. Atrás de mim, vozes se erguiam no
ar com feitiços, encantamentos e respiração difícil. O cheiro de mofo, umi‐
dade e minerais do labirinto encheu meus pulmões.
Com uma palavra de poder em meus lábios, o túnel se abriu em uma dú‐
zia de outros túneis e aberturas. O labirinto. Eu não tinha ideia de qual deles
levava ao centro. Talvez todos eles levassem. Com isso em mente, escolhi
um túnel do meio e corri.
Algo me atingiu na lateral e eu me inclinei para frente como uma dublê
em um filme de ação. Ao contrário de uma dublê experiente, eu não tinha
nenhum treinamento para aterrissar. E com meu rápido impulso para a fren‐
te, eu sabia que iria atingir o chão com força.
E foi o que aconteceu.
Minha respiração escapou dos pulmões quando me choquei contra a ter‐
ra dura. A dor explodiu no meu quadril e cotovelo esquerdos, e talvez eu te‐
nha engolido um pouco de terra.
Cuspi no chão.
— Ow.
Eu me esforcei para não pensar no que tinha acabado de comer enquan‐
to me levantava, imaginando quem tinha me batido e por quê.
Um punho atingiu minha mandíbula.
Estrelas dançaram em minha visão quando caí no chão novamente. Meu
grito ecoou pelo túnel quando alguém me chutou no estômago - duas vezes
- antes de seguir em frente. Quando olhei para cima, tudo o que vi foi um
grande bruxo de cabelos vermelhos correndo pelo túnel do meio.
O desgraçado me pegou de surpresa. Isso não aconteceria novamente.
Eu ainda não sabia ao certo por que ele havia feito isso. Somente quan‐
do olhei para trás é que entendi.
Todo o nosso grupo de perdedores estava brigando entre si. E quando
digo brigar, não me refiro a alguns tapas e puxões de cabelo. Estou falando
de surras sérias em uma mistura de golpes físicos e mágicos.
Fiquei olhando, de boca aberta, para a briga mais selvagem, brutal e má‐
gica que eu já tinha visto.
Dez bruxos voltaram para a entrada do labirinto em pânico evidente,
com um voo errático e rápido, deixando cair suas bolsas e até mesmo tele‐
fones enquanto fugiam. Gritos agudos reverberaram no túnel. A voz de um
homem emitiu um grito desafiador.
Com um rugido de luz e som, um clarão de faíscas vermelhas e roxas
ofuscantes iluminou o túnel como fogos de artifício, enquanto os bruxos
lançavam sua magia umas contra as outras como armas automáticas.
O chão e as paredes tremeram sob o fogo mágico. Palavras em latim se
elevavam acima dos gritos enquanto os bruxos se defendiam freneticamen‐
te. Em meio aos gritos, surgiram os sons monótonos, pesados e familiares
de um punho fechado batendo na carne, repetidamente. Mais gritos foram
seguidos por uma pausa e, em seguida, pelo som gorgolejante de alguém
sufocando antes de desaparecer.
Pude ver pelo menos uma dúzia de bruxos mortos ou inconscientes dei‐
tados em posições incômodas no chão.
Isso foi uma loucura.
Cerrei os dentes, com a raiva me dominando.
— O que diabos há de errado com vocês? — gritei. Procurei por Willis,
mas não consegui ver nada além dos flashes de magia multicolorida e dos
borrões de braços e pernas enquanto os bruxos continuavam lutando.
Os gritos e berros aumentaram rapidamente, ficando cada vez mais altos
até se tornarem um grito de loucura. Não havia dignidade no som. Nenhum
autocontrole. Todos eles haviam perdido a cabeça.
É isso mesmo que você tem. Junte um grupo de pessoas, adicione medo
e desespero e você terá o Clube da Luta, mas com magia de bruxa e sem re‐
gras.
Eu tinha a sensação de que o Silas sabia que isso aconteceria. Ele queria
que isso acontecesse. Ele colocou mais lenha na fogueira ao nos chamar de
perdedores e ao se afastar por quinze minutos.
E o tempo estava passando rápido.
Se eu ficasse, poderia ser morta por um lampejo de magia desonesta. Is‐
so não vai acontecer.
Decidida, atravessei o túnel do meio atrás do ruivo. Eu devia a ele al‐
guns chutes em sua masculinidade.
Corri pela passagem, minha raiva e frustração me impulsionaram mais
rápido enquanto eu deixava os gritos para trás. Corri muito até quase não
conseguir mais ouvir a luta, até que tudo o que ouvi foram minhas botas ba‐
tendo no chão compacto e minha respiração pesada.
Eu me movia com meus sentidos em alerta máximo, mantendo meu juí‐
zo, pois sabia que o ruivo poderia estar à espreita nas sombras, esperando
para me atacar. Desta vez, não. Eu tinha a palavra de poder perfeita para
usar com aquele filho da puta. E eu mal podia esperar para usá-la nele.
Diminuí a velocidade para caminhar, ouvindo com o coração batendo no
peito como se quisesse sair. Ele estava cansado dos constantes abusos, e eu
não o culpava.
Verifiquei meu celular. O aplicativo de contagem regressiva dizia:
40:00. Você ainda tem muito tempo. Certo? Provavelmente não. Mas eu não
tinha escolha.
— Você pode fazer isso — sussurrei para mim mesma. — Porque... vo‐
cê precisa fazer.
Entrei em um lugar que nunca tinha visto a face do sol, nunca tinha ou‐
vido o sussurro do vento. O túnel era escuro, fechado, frio e intensamente
assustador. Quem sabia que tipo de rastejantes assustadores viviam aqui?
Rastejantes grandes, gigantes, que babam e engolem você inteiro.
Mais paredes de pedra passavam por mim com tochas idênticas. Os tú‐
neis eram estreitos, obrigando os visitantes a permanecer em determinados
caminhos. Espiei por algumas aberturas, curvas que não levavam você a lu‐
gar algum, e a claustrofobia começou a tomar conta de mim.
Eu não era uma idiota. Nunca seria tão simples como ir até o centro,
porque qual seria o objetivo? Isso era um teste. As provas exigiam algum
nível de luta, um teste de desempenho. Algo ou alguém estaria lá para me
impedir. Eu só não sabia quando eles apareceriam.
Depois de alguns minutos de caminhada, um fio de pânico passou por
mim. Talvez eu estivesse andando em círculos esse tempo todo? Será que
eu estava perdida?
Eu estava tão ocupado em minha própria cabeça que, quando vi o sapo,
já era quase tarde demais.
— Ah! — gritei.
— Purrrreeeek! — chamou o sapo.
Gritando como uma banshee, joguei-me para trás e bati em uma parede
lateral, com as mãos no ar à minha frente e a palavra de poder ainda presa
entre minha língua e minha garganta.
O sapo era enorme, do tamanho de um urso, e quase tão alto quanto eu.
Sua pele era áspera, marrom-terra e coberta de grandes protuberâncias. Dois
olhos vermelhos com uma linha horizontal preta olhavam para mim de for‐
ma inteligente, mágica. Fios de cuspe amarelo babavam dos cantos de sua
boca, até o chão. Legal.
E o anfíbio gigante estava bloqueando meu caminho. Esse era o seu pro‐
pósito, o que me dizia que eu estava indo pelo caminho certo. Mas isso tam‐
bém significava que eu precisava passar pela maldita criatura.
Muito simples para ser verdade.
— Ei, amigo. Você acha que pode me deixar passar?
Eu era uma bruxa e os sapos não me assustavam. A maioria de nós os ti‐
nha como nossos familiares ou os mergulhava em nossos caldeirões. Eu não
era fã dessa última parte.
Mas eu não estava acostumado com sapos do tamanho de ursos pardos.
E quanto mais eu ficava aqui debatendo, mais minutos e segundos eu per‐
dia. Eu estava ficando sem tempo.
É isso mesmo, esse otário era grande, muito grande, com uma barriga
muito grande e mãos e pés muito grandes, com uma boca ainda maior.
Com o coração aos pulos, empurrei a parede e dei um passo cuidadoso
para frente, sem tirar os olhos do sapo de mim.
Fiz uma careta ao sentir o cheiro.
— Droga. Você cheira muito mal. Você cheira muito mal para um garo‐
to grande. Eu ri, achando que estava sendo hilária.
As mandíbulas do sapo se abriram em um silvo silencioso, e sua gargan‐
ta se contraiu de forma estranha até inchar como um balão.
Eu já tinha assistido a muitos canais de natureza para saber o que isso
significava.
Eu me conectei aos elementos ao meu redor, concentrei minha vontade,
levantei as mãos e gritei:
— Accen-
Uma bola gigante do tamanho de uma bola de praia veio em minha dire‐
ção com uma velocidade assustadora.
Com o resto da minha palavra de poder esquecida, eu me abaixei, me
joguei no chão e aterrissei com um barulho de terra dura batendo em mi‐
nhas costelas, assim como a gosma do sapo bateu na parede onde minha ca‐
beça estaria com um baque doentio.
E então algo horrível aconteceu.
A gosma amarela chiava e estalava à medida que o vapor subia. O som
sibilante voltou, e uma seção redonda da parede de pedra se dissolveu em
uma nuvem de névoa amarela e mau cheiro. Gotas de líquido amarelo caí‐
ram no chão e, onde tocaram, surgiram pequenos buracos em um espaço de
três segundos.
Eu soltei uma risada histérica.
— Você tem ranho ácido? É claro que você teria. Que estupidez a minha
— eu disse, me levantando e engasgando com o cheiro ruim. Eu sabia que
os sapos tinham secreções tóxicas. Eu tinha acabado de testemunhar a se‐
creção tóxica desse animal de proporções gigantescas.
O medo subiu pela minha coluna até parecer que eu tinha um pingente
de gelo em vez de ossos.
Se essa gosma me tocasse... minha pele, meus ossos, tudo derreteria. Es‐
ses testes eram tão sádicos assim? Eles estavam dispostos a matar os bruxos
em treinamento?
A raiva substituiu meu medo em um instante. Eu não seria derrotado por
bolotas gigantes. Porque, bem, isso seria humilhante.
Coloquei meus pés no chão. O sapo gigante mal se mexeu, provavel‐
mente porque era muito grande. Eu ia fazer um churrasco com esse filho da
puta.
Virei-me para o sapo, com os dedos abertos e as palmas das mãos volta‐
das para ele. A boca do sapo se abriu novamente e ele emitiu um som sibi‐
lante e escorregadio.
— Accendo! — Gritei, transformando meu medo - não do sapo, mas de
falhar - em uma forma tangível, e o direcionei para o enorme anfíbio. Meu
terror e adrenalina saíram das pontas dos meus dedos na forma de uma bola
de fogo.
Outro glóbulo de muco ácido veio em minha direção.
A bola de fogo pegou a bolha no ar e ela explodiu em uma nuvem de
cinzas e brasas.
— Hah! — Eu gritei e fiz uma pequena dança da vitória. Uma onda de
náusea me atingiu quando a magia cobrou seu pagamento. Mas eu estava
tão cheia de adrenalina que mal a senti.
O sapo arrotou, chamando minha atenção para ele novamente quando
abriu a boca.
— Por exemplo, por quê? Por que eu nunca consigo uma pausa?
Eu me preparei, usando minha vontade.
— Accendo! — gritei, lançando outra bola de fogo contra ele.
A bola de fogo atingiu o sapo, e minha confiança aumentou.
Então, o inesperado aconteceu.
O sapo não queimou nem explodiu em cinzas. Em vez disso, o corpo da
coisa inchou e se deslocou. As articulações se abriram e a carne se ondulou
e se esticou em proporções gigantescas. Suas pernas e braços engrossaram e
se alongaram. O sapo cresceu e inchou até que seu corpo ficou tão grande
que preencheu todo o espaço do túnel.
— Essa prova é uma droga — resmunguei, odiando a sensação de der‐
rota que senti.
O sapo sacudiu a cabeça para mim. Uma língua marrom-acinzentada
saiu de sua boca.
Pulei para a esquerda, lembrando-me tarde demais de que estava em um
túnel sem muito espaço, e bati na parede de pedra com um baque horrível.
Isso vai doer amanhã.
A língua envolveu a parte inferior da minha perna esquerda e me puxou
para frente. Meus pés deixaram o solo sólido e fui arrastada pelo túnel e es‐
magada contra a parede oposta. Deslizei para o chão quando senti o aperto
da língua se soltar.
Cerrei os dentes enquanto a agonia percorria meu corpo. Meus nervos
pulsaram em uma queimadura, e um som primitivo de dor e determinação
escapou de mim.
Pense, Tessa. Pense!
Estava claro. Se eu tentasse outra bola de fogo, o sapo cresceria nova‐
mente. Mas então, como eu poderia passar por ele?
Eu poderia tentar escalá-lo, mas se isso não funcionasse, ele me esma‐
garia até a morte.
Só havia uma maneira de eu passar para o outro lado do túnel.
— Que se dane. — Soltei um suspiro. — Tudo bem, fedorento. Se não
posso passar por cima de você... e não posso derrotá-lo... vou passar por vo‐
cê.
Eu já tinha me decidido. Eu estava entrando por sua boca. Uma vez lá
dentro, eu poderia queimar minha saída ou explodir uma abertura grande o
suficiente para uma saída.
Sim. Eu estava furiosa. A coisa tinha ranho ácido. Mas todos sabiam
que você precisa ser um pouco louco para ser um bruxo.
Eu tinha que acreditar que o impossível era possível.
— De baixo para cima.
Fiquei de frente para o sapo gigante, agachei-me em uma posição de
corrida e esperei. Eu só teria uma chance. Rezei para o caldeirão para que
eu estivesse certa. Se não estivesse, o ácido me mataria.
Os olhos do sapo se voltaram para os meus.
Meu pulso pulava enquanto eu me abaixava ainda mais.
— Isso vai ser uma droga.
A criatura abriu a boca.
Comecei a me movimentar, indo direto para sua boca grande, nojenta e
com cheiro de esgoto, e pulei para dentro.
Prendi a respiração e minhas botas bateram em algo macio, como se es‐
tivesse andando em uma esponja gigante. Pisquei os olhos na escuridão.
Não conseguia enxergar. E, em um momento horrível, entrei em pânico.
Talvez essa não fosse uma boa ideia.
Senti um puxão em minha vontade e, em seguida, minhas botas atingi‐
ram o solo sólido novamente e eu pisquei para o túnel pouco iluminado.
O sapo havia desaparecido. Ele havia desaparecido. Virei-me no local,
procurando qualquer indício do sapo, mas não havia nada. Era como se ele
nunca tivesse existido.
Silas tinha um senso de humor estranho.
Um pouco de empolgação prendeu minha respiração. Mas meu humor
feliz evaporou quando verifiquei o aplicativo de contagem regressiva no
meu telefone. Os números 25:00 apareceram para mim.
Eu não tinha ideia de quão perto estava do centro do labirinto ou de
quantos outros sapos ou criaturas eu teria que enfrentar antes de chegar lá.
Porque eu sabia que mais estavam chegando.
E, com a minha sorte, eles provavelmente eram piores, muito piores.
Capítulo 19

M eus passos ecoavam de forma oca nas paredes de pedra, desacompa‐


nhados de qualquer outro som. Eu me sentia realmente sozinha, como
se fosse a única nesse labirinto subterrâneo, embora soubesse que não era.
Eu não tinha ideia se estava indo pelo caminho certo. Apenas continuei an‐
dando, esperando que estivesse. O labirinto de túneis era enorme.
Eu não conheci mais ninguém. Nunca encontrei aquele ruivo que ao
qual eu devia alguns chutes em sua masculinidade. Talvez ele estivesse per‐
dido. Talvez seu sapo o tenha esmagado. Ou talvez ele já estivesse acabado.
A ideia de que ele havia me atacado me enfureceu, mas também fez
com que minhas pernas se movimentassem mais rapidamente.
Agora eu tinha aproximadamente menos de vinte e cinco minutos para
chegar ao centro. Pode parecer muito tempo, mas, depois de enfrentar o sa‐
po gigante, eu sabia que qualquer outra coisa que o Silas fosse me apresen‐
tar seria mais desafiadora. Meu cérebro também me disse que eu teria de ser
melhor e mais rápido.
Certo? Sim. Sem pressão.
E enquanto estava em meu cérebro, porque não havia muito mais o que
fazer enquanto vagava por túneis escuros e sombrios, percebi que essa pro‐
va não se tratava apenas de testar nossas forças físicas ou mágicas. Os testes
estavam medindo o meu desempenho sob estresse e o funcionamento da mi‐
nha mente sob pressão extrema. Eles estavam vendo como meu eu emocio‐
nal e mental lidava com um prazo apertado. Eu podia fazer isso.
Cheguei a um cruzamento onde o labirinto de passagens e túneis em ruí‐
nas parecia pronto para desabar a qualquer momento, e todos pareciam
iguais.
Com isso em mente, decidi virar à direita de agora em diante. E se isso
não funcionasse, eu começaria a virar à esquerda.
Continuei assim por um longo tempo, tempo demais.
E quando virei à direita e me deparei com uma parede sem saída, sem
ter para onde ir a não ser voltar por onde vim, dei um chute forte, girei e
corri de volta.
Você pode virar à esquerda.
Limpando o suor da testa, parei para verificar a contagem regressiva.
15:52
Meu coração saltou para a garganta. Eu estava andando em círculos há
nove minutos.
Minha pulsação aumentou e pude sentir o início de um ataque de pâni‐
co. Entrar em pânico certamente me faria fracassar. Eu não podia fracassar.
Não agora.
De alguma forma, eu havia pegado o túnel errado. Eu estava perdida.
As vozes se elevaram. Gritos altos, mas com tantos deles, eu não conse‐
guia decifrar o que eles estavam gritando. Eles vinham de dentro do labirin‐
to de túneis, bem perto de mim.
O suor brotou em minha testa. Avancei sorrateiramente, mantendo-me
nas sombras enquanto meu olhar percorria o túnel. Vinte ou mais bruxos es‐
tavam reunidas em um espaço ou câmara do tamanho de três túneis juntos.
E na parede oposta, acima de uma porta de pedra, em letras vermelhas bri‐
lhantes, havia a inscrição: COM UM SACRIFÍCIO DE SANGUE, A POR‐
TA SE ABRIRÁ.
Interessante. Meu primeiro pensamento foi: se eu matar algo e oferecer
a essa parede, a porta se abrirá. Mas não foi tão simples assim.
Tratava-se de um teste. E, seguindo esse raciocínio, esse teste era de fa‐
to mais complexo do que o primeiro. Tive a sensação de que Silas se certifi‐
cou de que todos nós estaríamos reunidos aqui. Também tive a desagradável
sensação de que ele estava observando.
E os bruxos, bem, os bruxos estavam surtando - de novo.
Com estrondos ensurdecedores, as paredes de pedra tremeram quando
rajadas de magia ricochetearam, atingindo o chão, o teto e tudo, enquanto
os bruxos atacavam uns aos outros. Um tremor percorreu o túnel como um
terremoto. Esses idiotas iam derrubar o labirinto em cima de nós se não pa‐
rassem.
As explosões pararam por alguns segundos, o suficiente para que eu ou‐
visse uma voz gritando.
— Pegue-a! — gritou o mesmo bastardo ruivo que havia me chutado
quando eu estava no chão, apontando para uma pequena bruxa com olhos
redondos e aterrorizados, que me lembrou a Iris. — Ela é o elo mais fraco.
Se a matarmos como um sacrifício, a porta se abrirá.
Filho da p-
— Não toque nela! — Eu gritei, saindo das sombras, saboreando a ideia
de dar uma surra naquele bruxo. Sim, eu ia me divertir.
Mas foi como se eu tivesse gritado embaixo d'água. Ninguém me ouviu.
A pequena bruxa gritou enquanto estendia as mãos. Um raio verde dis‐
parou e atingiu o peito do ruivo, fazendo com que ele se chocasse contra a
parede.
Eu bati palmas. Foi um sucesso incrível. Eu queria que tivesse sido eu.
E então o inferno começou.
O ataque veio, repentino, cruel e horripilante. Os gritos aumentaram de
ritmo à medida que os bruxos se chocavam com seus corpos e magia. Os
gritos dos bruxos e os gemidos dos moribundos e feridos se fundiram em
uma cacofonia insuportável.
Todos eles perderam a cabeça de bruxos.
Todos os bruxos dançavam uns ao redor dos outros em uma dança de
morte e magia. Os corpos voavam e o cheiro de carne assustada subia, fa‐
zendo-me engasgar. Um bruxo do tamanho de Marcus estava no chão com
as mãos em volta do pescoço de outro bruxo, enquanto uma bruxa estava
brincando de girar a garrafa com outra bruxa girando no ar acima dela.
Horrorizada, percebi que eles iam se matar. A pressão me apertou. Meu
peito se contraiu. Ao meu redor, bruxos caíam gritando de dor.
Fiquei ali observando enquanto o caos que havia antes disparava. Eu
não era idiota. Se eu me intrometesse, estava frita. Eu planejava terminar
esse julgamento.
Meu olhar se voltou para a inscrição. Isso era um enigma. E esses idio‐
tas não tinham a menor ideia. Era óbvio que eles achavam que o último a fi‐
car de pé passaria pela porta. Que idiotas.
E eu ia deixar que eles fossem idiotas.
De repente, houve um estrondo como um trovão e uma força invisível
bateu em mim, derrubando-me. Bati na parede com as costas e caí no chão.
Tonto, pisquei com minha visão embaçada. E quando consegui enxergar
com clareza novamente, a câmara estava vazia, exceto por mim.
— Você pode dar uma olhada nisso?
Levantei-me, esfregando o traseiro e sentindo o hematoma gigante que
apareceria mais tarde.
Eu sabia que eles não estavam mortos. O Silas provavelmente havia
magnetizado seus traseiros estúpidos de volta, o que significava que eles
não conseguiram - não conseguiram entender o enigma.
Girando minha bolsa para a frente, tirei o pequeno canivete que carrega‐
va para cortar ervas, limpei-o na calça jeans e cortei a palma da mão. O san‐
gue vermelho escuro escorreu do corte fino.
Eu estremeci com a dor aguda, mas ela durou apenas um segundo.
— Certo. E agora?
Sem saber o que esperar, fui até a porta e coloquei minha palma ensan‐
guentada sobre ela.
— Abra=te sésamo.
Eu ri e espalhei meu sangue sobre ela.
O efeito foi instantâneo.
Uma luz prateada brilhante atravessou a moldura da porta. O brilho bri‐
lhou e se espalhou em uma torrente de branco puro. O tremor mágico pul‐
sou pelo túnel e me pegou em um redemoinho vertiginoso.
Senti que ele atingiu minha vontade, meu âmago.
E então, com um grito alto, a porta se abriu.
Capítulo 20

P ela porta de entrada, o túnel era reto. Ele não se ramificava, nem parecia
que iria acabar tão cedo. Eu me senti como se estivesse presa em um so‐
nho em que continuava correndo para sempre.
Eu precisava acordar.
Ok, então a questão do sangue não foi tão difícil, mas ainda assim me
custou em termos de tempo.
Olhando para a contagem regressiva do meu telefone, a tela mostrava:
04:06.
Meu peito se contraiu. Eu tinha apenas quatro minutos para enfrentar o
que quer que o Silas fosse jogar em mim e chegar ao centro. Fácil, fácil.
Certo? Na verdade, não.
Ofegante, belisquei a cãibra ao lado do corpo e demorei alguns segun‐
dos para me hidratar. Graças ao caldeirão, eu tinha levado uma garrafa de
água. Sem ela, eu já teria desmaiado. Com um último gole, coloquei-a de
volta na mochila e corri pelo túnel.
Minhas coxas queimavam enquanto eu as empurrava cada vez mais rá‐
pido e com mais força, pois sabia que meu tempo estava quase no fim. Ha‐
veria uma bifurcação no caminho? Uma porta? Algo que me dissesse que
eu não havia tomado o caminho errado? Será que esse caminho levaria ao
centro do labirinto?
Ficar no subsolo, no escuro, pelo que pareceu uma eternidade - com ter‐
ra caindo na minha cabeça, paredes roçando meus ombros e um demônio
possivelmente esperando no fim do túnel - foi o meu pior dia.
Quando meus pulmões pareciam ter engolido cacos de vidro, vi uma luz
no fim do túnel. Sim, eu sabia como isso soava.
Cambaleei para dentro de um espaço enorme. Olhando ao redor, vi que
ele tinha um formato estranho, como um hexágono, com diferentes túneis
que levavam a ele, assim como o meu.
Havia braseiros fumegantes ao redor da câmara, a única fonte de luz. O
ar quente com o cheiro forte de incenso e de alguma outra especiaria mais
acre encheu meu nariz. Do outro lado de mim, bem no centro da câmara e
erguida em uma plataforma de pedra, havia uma estrela prateada reluzente
de 1,80 metro.
Esse era o centro. Eu precisava chegar a essa estrela.
Respirei fundo e dei um passo à frente.
Um gemido chamou minha atenção para a direita.
— Willis?
O bruxinho estava de joelhos, com sangue escorrendo pelo nariz.
— Tessa? É você? Não consigo encontrar meus óculos. Eles caíram... e
não consigo ver nada sem eles.
Fiquei tão chocada ao vê-lo que fiquei olhando para ele com cara de bo‐
ba. Ele tinha chegado até aqui. Isso já era alguma coisa.
Meu coração se apertou com o pânico que se manifestou em seu rosto.
— Sim, sou eu. Vou ajudar você a encontrar seus óculos.
Tentei me mover, mas algo mais se deslocou em minha visão periférica.
Silas saiu das sombras da câmara e me encarou.
— Belo truque — eu disse a ele, perguntando-me o que diabos ele esta‐
va fazendo aqui. — — Gostaria muito de saber como você fez isso. Mas es‐
tou meio ocupada no momento.
— Deixe-o — ordenou Silas. — Ele nunca passará por mim. — Ele deu
de ombros.
— Bem, nem você.
Ele riu e me mostrou um sorriso que eu queria arrancar dele - se eu pu‐
desse chegar tão alto.
As runas e os sigilos tatuados em seu peito, braços e pescoço começa‐
ram a brilhar em vermelho.
Que droga. Eu ergui uma sobrancelha.
— Aha. Então, eu tenho que lutar com você? É isso?
— É — disse Silas e cruzou os braços musculosos sobre o peito, com as
tatuagens voltando ao preto normal. — Você precisa passar por mim se qui‐
ser completar essa prova. Até agora, apenas dezesseis conseguiram. E os
que conseguiram foram do grupo vencedor. Não há lugar para perdedores
dentro dos Merlins.
Você é um idiota arrogante.
— Sim... bem... veremos isso.
Será que acabei de me chamar de perdedora?
— Ache eles!
Olhei por cima do ombro e vi Willis de pé, ajustando os óculos. A lente
esquerda tinha várias rachaduras grandes ao longo dela. Ele não conseguiria
enxergar através dela, mas pelo menos tinha um olho bom.
Ele cambaleou como se estivesse bêbado e caiu no chão de joelhos.
— Acho que vou me sentar aqui um pouco. Até que as estrelas desapa‐
reçam.
— Boa ideia.
Agora que olhei mais de perto, pude ver sangue em sua orelha esquerda
e uma mancha molhada na parte de trás de sua cabeça. Willis tinha levado
uma surra séria. Se o resto dos bruxos tivesse jogado limpo, Willis teria tido
uma chance real de vencer. Mas alguém se certificou de que ele não teria. E
esse alguém já tinha ido embora há muito tempo.
Eu não gostava desses testes. Na verdade, eu odiava. Aprimorei meu
ódio contra a aberração tatuada. Atrás dele estava minha passagem para sair
desse inferno.
Meus olhos se voltaram para Silas.
— Inflitus! — gritei, erguendo as mãos enquanto puxava a energia dos
elementos ao meu redor.
Vi uma fração de segundo de vermelho brilhando no peito de Silas, e caí
no ar como se tivesse sido atingido por um mata-moscas gigante.
Bati no chão e rolei, com a bochecha batendo em algo sólido após um
estalo, o que eu sabia que era ruim. Mas eu não tinha tempo para me preo‐
cupar com hematomas.
Tirando o cabelo dos olhos e cuspindo a sujeira da boca, levantei-me
com um gemido, com a lombar latejando. Quanto tempo ainda me restava?
Silas não se moveu. O bastardo arrogante ainda estava parado exata‐
mente na mesma posição.
— Você terá de fazer muito melhor do que isso, perdedora — disse Si‐
las. — Olhe para você. Você está quebrada. Se você quiser desistir agora, eu
entenderei. É o que os perdedores fazem.
— Cale-se. Não estou desistindo.
Sem hesitar, eu me agarrei à minha vontade e rosnei:
— Fulgur!
Um raio branco-púrpura explodiu de minha mão estendida. Ele voou re‐
to e certeiro, bem na cabeça idiota do Silas.
As runas do bastardo brilharam em vermelho, ele estalou os dedos e
meu belo raio se transformou em água. Ele caiu no chão em uma poça ao
lado de seus pés.
Silas riu.
— Você é patética. O que foi isso? E você se diz uma bruxa Davenport?
Você é um perdedora.
Seu sorriso vacilou, e algo escuro se moveu por trás de seus olhos.
Você pode chamar isso de meus instintos de bruxa, mas eu me liguei aos
elementos no momento em que uma runa em seu pescoço brilhou em ver‐
melho.
— Protego! — Eu gritei. Um escudo em forma de esfera ergueu-se aci‐
ma da minha cabeça no momento em que uma explosão vermelha de magia
o atingiu.
Tanto eu quanto meu escudo voamos para trás devido à força do golpe.
Sem o escudo, eu estaria frita. A força da magia de Silas reverberou dentro
do meu escudo, e eu a senti no chão sob meus pés. O cretino tatuado era
forte. Como alguém poderia vencê-lo?
— Tessa? Você está bem? Tessa? — disse a voz de Willis, vinda de al‐
gum lugar à minha direita.
— Estou bem — respondi, olhando através do meu escudo quando en‐
contrei a forma de Silas.
Uma saraivada de cem dardos vermelhos e brilhantes saiu do peito de
Silas e veio direto para mim.
— Está bem, isso não é bom.
Eu me abaixei, assim que senti a liberação da minha magia. Houve um
estalo de ar deslocado, e meu escudo caiu.
— Droga.
— Ops, erro meu. Acho que estourei sua bolha — disse Silas. Levantei
a cabeça e o vi sorrindo. — Apenas aceite isso. Você não é forte o suficiente
para me derrotar. — Ele apontou para si mesmo. — Vencedor— disse ele,
depois apontou para mim e acrescentou: — Perdedora.
— Muito maduro.
Levantei-me e cambaleei. As palavras de poder estavam roubando toda
a energia que me restava. Eu tremia só de ficar de pé. Não conseguiria con‐
tinuar assim por muito mais tempo.
— Não dê ouvidos a ele — incentivou Willis, ainda de joelhos. O san‐
gue que continuava a pingar de sua orelha me preocupava. — Você não é
uma perdedora, Tessa. Se fosse, você não teria chegado até aqui. Ele é um
mentiroso e um valentão.
Um poço de gratidão encheu meu peito. Eu realmente comecei a gostar
desse bruxinho.
— Eu odeio valentões — disse a ele com um sorriso.
— Eu também.
Meu coração batia forte enquanto eu forçava meu corpo para não tre‐
mer. Sim, eu estava cansado e sim, havia dor. Mas eu ainda tinha muita luta
em mim. Abaixei o corpo e abri as mãos em uma posição de luta.
Ele é um mentiroso. Não se tratava de vencê-lo. O objetivo era passar
por esse idiota e chegar à plataforma.
Eu simplesmente não sabia como fazer isso.
Um sorriso de satisfação surgiu no rosto do bruxo tatuado com o que ele
viu no meu.
— Perdedora — ele cantou. — Posso chamar você de perdedora? Tudo
bem, então. Isso não tem sentido, perdedora. Você está com uma aparência
horrível, perdedora.
— Eu estou com melhor aparência do que você — eu disse, fazendo
Willis rir. Sim, ele é um bom guardião.
Silas deu uma risada de escárnio. — Você está sem tempo — advertiu
ele. Você nunca seria uma Merlin. Suas tias foram idiotas em achar que po‐
deriam fazer de você uma.
— Você não deveria ter dito isso — rosnei, sentindo-me feroz. Eu ia ar‐
rancar aquelas tatuagens.
Silas mostrou os dentes.
— Por que isso?
— Porque eu vou te dar uma surra.
Willis riu e bateu palmas, lembrando-me de Iris.
Silas abriu os braços e seus bíceps saltaram, com as tatuagens brilhando
em vermelho.
— Perdedores não tornam-se Merlins. Você é uma perdedora, disse ele e
inclinou a cabeça na direção de Willis. — E ele é um perdedor. Vocês dois
estão acabados. Vocês estão acabados. Acabou.
Não gostei da maneira como ele disse isso, com tanta finalidade em sua
voz.
— Oh, não! — gritou Willis.
Voltei minha cabeça para o Willis, que tinha um relógio praticamente
grudado no globo ocular direito.
— Ele tem razão — disse Willis ao largar o relógio, parecendo derrota‐
do. — Sinto muito, Tessa. Eu estava torcendo por você. Você terá uma
chance no próximo ano. Eu… — ele não terminou.
Eu franzi a testa.
— Do que você está falando? Você ainda tem tempo.
Willis olhou para mim e balançou a cabeça.
— Você consegue chegar à plataforma em vinte e cinco segundos?
— O quê!
Em pânico, tirei o celular da bolsa e engasguei.
00:24
Não, pensei com horror, vendo que tudo o que eu havia conseguido até
então tinha sido em vão.
Silas riu, uma risada profunda, horrível, autossatisfatória e zombeteira,
que me deixou com nojo.
Não. Não. Não!
Eu não tinha feito todo esse caminho para nada. Meu pânico aumentou
novamente, e eu me movi de um pé para o outro, tentando fazer meu cére‐
bro funcionar novamente.
Eu precisava passar pelo Silas. Mas como? Se ao menos eu pudesse pas‐
sar por ele e chegar à plataforma sem que ele pudesse me impedir.
Um pensamento me ocorreu. A única maneira de fazer isso era com
uma linha ley. Mas a linha ley mais próxima estava a quilômetros de distân‐
cia do castelo.
Se ao menos eu pudesse trazê-lo para cá...
Uma faísca de energia surgiu em meu peito.
Olá.
Ele cresceu, esticou e apertou. Reconheci a fonte. Essa era a linha ley...
Mas como? Era como se as linhas ley estivessem respondendo ao meu
chamado desesperado.
E então me ocorreu. Será que eu poderia mover as linhas? Poderia do‐
brá-las?
Como se fosse uma resposta, outra faísca de energia surgiu em meu nú‐
cleo, só que, desta vez, mais rápida e mais forte. A linha ley estava me res‐
pondendo. Ela queria que eu fizesse isso.
Com o coração aos pulos de alegria, inspirei-me em minha vontade e es‐
tendi a mão para tocar a linha ley. Uma explosão de energia repentina me
atingiu como uma resposta, como um rio caudaloso, pronto para me levar
embora. Eu a senti em meu corpo, em meus ossos, vibrando com seu poder.
Com o poder da linha ley.
Eu nunca tinha feito isso antes, mas, de alguma forma, sabia o que fazer.
Como se eu tivesse nascido para fazer isso.
Olhei para o meu celular e fiquei ofegante.
00:15
— Acabou o tempo — disse Silas. — Você fracassou. Mas é como eu
disse, perdedores não se tornam Merlins.
Um vento forte se levantou. Silas perdeu seu sorriso.
— O que está acontecendo? — gritou Willis.
Inclinei minha energia, concentrei-me na linha ley e a puxei.
Com apenas minha vontade, puxei a linha ley para cada vez mais perto
de mim, como se estivesse puxando uma corda. Eu podia vê-la claramente
em minha mente, como um rio translúcido. E, como um elástico, eu a mani‐
pulei. Dobrei-a até sentir sua energia trêmula sob meus pés, até vê-la correr
pela câmara até o centro do labirinto, até a estrela na plataforma.
00:09
O rugido de indignação de Silas ecoou ao meu redor.
00:08
Era agora ou nunca.
Corri para lá, enganchei o braço de Willis no meu, puxei-o para que se
levantasse e pulei a linha.
Eu nunca havia trazido ninguém comigo, então estava agindo apenas
por instinto. Por favor, não me falhe agora.
Willis gritou como uma menina quando nós dois aterrissamos juntos,
acelerando para frente em um uivo de vento e cores. A energia correu pela
minha cabeça, pelo meu corpo, por toda parte. As paredes de pedra do labi‐
rinto ficaram embaçadas enquanto nossos corpos avançavam. O rosto zan‐
gado de Silas passou por nós como se estivéssemos em um trem em alta ve‐
locidade.
E, é claro, eu tive que dar de dedo nele.
Então, senti uma súbita liberação quando as imagens ao meu redor fica‐
ram mais lentas, até que não estivessem mais embaçadas, até que eu pudes‐
se distingui-las - como se o próprio tempo tivesse diminuído, só para mim.
Durante todo o tempo, Willis continuou gritando, mas eu não o soltei.
Concentrei-me apenas na plataforma, na estrela, onde eu precisava ir,
sabendo que estava prestes a saltar.
Uma forma escura apareceu na linha ley conosco que não estava lá an‐
tes. Parecia o contorno de um homem, alto e em forma. A princípio, pensei
que fosse o Silas. Mas não era ele. Eu não conseguia ver seu rosto clara‐
mente, mas seus olhos, prateados e dourados, refletiam a luz fraca do labi‐
rinto, luminosos e assustadores.
E quando tentei vê-lo com mais clareza, ele se foi.
Eu tinha batido a cabeça, mas ele não era fruto da minha imaginação.
Ele estava lá por apenas meio segundo, mas por tempo suficiente para que
eu o visse. Eu não podia pensar nisso agora, porque se não pulássemos no
momento certo, acabaríamos no Canadá.
Com o máximo de minha força, pulei, puxando Willis comigo, e aterris‐
samos na plataforma.
Soltei Willis quando ele se curvou e começou a vomitar. Totalmente
compreensível. Com a adrenalina em alta, verifiquei meu telefone.
00:02
Conseguimos. Faltam dois segundos. Conseguimos!
— Conseguimos. — Eu me virei e olhei para Willis, que estava limpan‐
do a boca com a mão: — Conseguimos — eu disse a ele. — Faltam dois se‐
gundos! — Fiz uma dancinha feliz, que era um giro e um chute lateral desa‐
jeitado. Você não precisa perguntar.
Willis piscou para mim, com o rosto contorcido de admiração. — Como
você fez isso? — Ele olhou para além de mim, para o que eu imaginava ser
nosso ponto de partida.
Olhei para trás por cima do ombro.
— Não faço ideia. — O que era parcialmente verdade. Eu não fazia
ideia de como havia dobrado a linha ley, mas fiz.
Mas o verdadeiro vencedor foi o choque no rosto de Silas.
Sim, aqui está a passagem.
Capítulo 21

omo assim você moveu a linha ley? — exclamou Dolores en‐


—C quanto andava de um lado para o outro na cozinha. — Isso é um
absurdo. Não faz nenhum sentido lógico.
— E as linhas ley são lógicas? — eu respondi.
Dolores me encarou com dureza. — Não seja condescendente comigo.
Todo mundo sabe que você respeita quem é mais alto que você.
Eu ri.
— Sim, senhora.
Beverly colocou uma azeitona na boca.
— Ela tem razão. Eu nunca entendi como funcionam essas linhas ley.
Todos esses percursos de linhas e paradas, altos e baixos, e de um lado para
o outro. É cansativo. — Ela se abanou com a mão. — Estou suando só de
pensar nisso.
Dolores patrulhou a cozinha, parou e fez um gesto com a mão direita
enquanto a esquerda estava no quadril.
— Apenas... comece do início. Preciso ouvir de novo.
— É como eu disse. Eu alcancei a linha ley mais próxima e a puxei para
mim. Eu a dobrei — eu disse novamente, vendo os olhos de minha tia Do‐
lores se arregalarem cada vez mais.
Assim que voltei, entrei correndo na Davenport House em busca de
Ruth para lhe dar a boa notícia. Finalmente a encontrei no andar de cima,
em seu quarto, ao lado da janela, olhando distraidamente para fora.
— Eu consegui, Ruth — eu disse a ela quando me aproximei para ficar
ao seu lado.
— Passei. Passei na segunda prova. Quando ela não respondeu, tentei
novamente. — Ruth? Você me ouviu? Passei no segundo teste.
Quando minha tia finalmente se virou e reconheceu minha presença, su‐
foquei um suspiro.
Seu rosto. Seu rosto tinha envelhecido vinte anos. Camadas pesadas de
pele caíam ao redor de seus olhos e boca, pálidas e secas. Seu cabelo estava
uma bagunça, como se ela não o escovasse há anos.
— Isso é maravilhoso — ela me disse, com os olhos distantes e sem re‐
almente me ver. Depois, desviou o olhar para o que quer que tivesse chama‐
do sua atenção lá fora.
Minha garganta e meus olhos arderam enquanto eu reprimia um soluço.
Eu não queria me desmanchar na frente dela. Não quando ela precisava que
eu fosse forte.
Saí do quarto dela sentindo-me arrasada por não tê-la ajudado de algu‐
ma forma.
Ainda havia tempo para provar sua inocência. Eu não sabia como faria
isso, mas sabia que tinha que fazer alguma coisa.
— Deixe-me ver se entendi — Dolores estava dizendo, e minha atenção
se voltou para ela. Ela parou de andar e se virou para me encarar. — Você
está dizendo que puxou a linha ley que estava a quilômetros de distância pa‐
ra este labirinto... puxou-a bem perto de você... e depois a usou...
— Ela a dobrou — interveio Beverly, que me mostrou um de seus sorri‐
sos e colocou outra azeitona na boca. — Ela é flexível. — Seus olhos ver‐
des encontraram os meus e ela levantou uma sobrancelha perfeitamente
bem cuidada. — Por falar em flexibilidade, — disse ela, com a voz baixa e
sensual — Oliver disse que nunca esteve com alguém tão flexível. — Eu
não tinha ideia de quem era esse Oliver, provavelmente o homem da sema‐
na dela.
— Ele disse que poderia me dobrar como quisesse. Como uma boneca.
— Sim, uma inflável — disse Dolores.
Beverly olhou para a irmã.
— Você só está com inveja porque não tem um encontro há meses —
respondeu ela, jogando casualmente o cabelo para trás e lançando um sorri‐
so brilhante para mim. — Não é minha culpa que você não se arrisque. Tal‐
vez você tenha sorte e encontre um homem que não se importe em sair com
uma grande e velha pé grande.
— Em vez de namorar o quê? Alguém que age como colchão ambulan‐
te? — Dolores rebateu. — Estou bem assim..
Limpei minha garganta diante do olhar duro de Dolores.
— Humm... estamos nos desviando do assunto. Estávamos discutindo as
linhas ley?
Eu não queria que elas começassem uma briga de novo. A tensão entre
minhas tias estava piorando. Quanto mais nos aproximávamos do dia 23 de
dezembro, maior era a tensão. Estávamos todos sob muito estresse. A últi‐
ma coisa de que precisávamos era uma rinha entre as irmãs.
Dolores assentiu com a cabeça e fez um som na garganta.
— Você disse que dobrou a linha ley e a usou para terminar o teste?
— Sim. É exatamente isso que estou dizendo.
Inclinei-me para frente em minha cadeira, peguei um pedaço de queijo
da grande bandeja com uma variedade de queijos de diferentes países e o
enfiei na boca. Eu estava faminta. O julgamento havia consumido toda a
minha energia. Os laticínios com alto teor de gordura eram meu alimento de
cura. Quanto mais cremoso, melhor.
— Então? — Perguntei, engolindo. — Como é que a Ruth nunca me
disse que eu podia dobrar as linhas ley? Quero dizer... eu examinei várias
vezes o livro de linhas ley que ela me deu. Mas não consegui encontrar na‐
da sobre isso.
Minha mastigação era alta no silêncio repentino. Engoli e peguei outra
fatia de queijo italiano com pedaços de cranberry. Que delícia.
Dolores puxou uma cadeira da mesa da cozinha em frente a mim e se
sentou.
— É porque isso nunca aconteceu antes.
Engasguei com meu queijo.
— O que? — Tossi, meu estômago se contraiu. — O que você quer di‐
zer com... isso nunca aconteceu antes? — Meu coração bateu contra o peito
diante do silêncio deles, meus olhos se voltaram para cada tia. — Você está
me dizendo que nunca houve um bruxo que tenha feito isso antes?
Dolores me observou por um longo momento.
— É exatamente isso que estou dizendo a você.
— Nem fodendo.
Dolores levantou uma sobrancelha.
— Olha a língua.
Recostei-me em minha cadeira.
— Deve ter algo a ver com o fato de eu ser uma bruxa das sombras.
Certo?
Era a única coisa que fazia algum sentido lógico. Pelo que eu sabia, esse
era um dom raro. Apenas um punhado de bruxos eram considerados bruxos
das sombras. Eu sabia que ser capaz de tecer tanto magia das Trevas quanto
da Luz tinha suas vantagens. Esse era apenas mais um bônus mágico muito
bom. A imagem do choque total de Silas trouxe um sorriso aos meus lábios.
Tinha valido muito a pena.
Beverly tamborilou seus dedos vermelhos sobre a mesa.
— Nunca ouvi falar de uma Bruxa das Sombras ou de qualquer outro
bruxo com o poder de atrair linhas ley para si e dobrá-las. Todos nós sabe‐
mos que as linhas ley são retas. Como uma grade que envolve a Terra. Não
creio que nenhuma bruxa ou praticante de magia possa fazê-lo.
— Talvez vocês nunca tenham ouvido falar — eu disse a elas, minha
pulsação subindo de emoção. — Porque, — continuei enquanto pegava ou‐
tro pedaço daquele fabuloso queijo italiano, — é tão raro que os bruxos que
conseguem dobrar as linhas ley mantiveram isso em segredo. Quero dizer, é
possível que elas tenham tido medo de contar a alguém. Você sabe como os
bruxos ficam quando ouvem falar de algo que pode potencialmente torná-
las muito mais poderosas. Veja o caso de Adan e o anel do Ancião. Ele
meio que perdeu a cabeça.
Beverly soltou uma baforada de ar.
— Ele já era um idiota, querida. Duvido que o anel tenha tido alguma
participação nisso. Foi só ele.
— Mesmo assim — eu disse, mastigando. — Hmmm. Bom queijo.
Hum... acho muito improvável que eu seja a única.
— Acho que você não está nos ouvindo, Tessa — disse Dolores. A ten‐
são em sua voz atraiu meus olhos para ela. — Mover, dobrar, manipular as
linhas ley da maneira como você nos descreveu... isso nunca foi feito. Por
ninguém.
— Tenho quase certeza de que me lembro de ter visto a feiticeira Sama‐
ra fazendo exatamente isso na floresta. — Eu tinha uma boa visão da feiti‐
ceira psicótica puxando as linhas ley para ela.
— Não foi a mesma coisa. — Dolores balançou a cabeça. — Samara
puxou a energia das linhas ley da cidade para aquela fortaleza. Não as li‐
nhas ley em si. Ela estava usando o poder delas. Ela nunca as moveu fisica‐
mente como você fez. Ela nunca as dobrou.
Eu deveria estar animada com a perspectiva de poder fazer algo que,
aparentemente, nenhuma outra bruxa poderia fazer. Mas as caras de tristeza
das minhas tias me fizeram ter vontade de vomitar. Eu realmente não estava
entendendo por que elas não viam isso como uma oportunidade.
Se eu pudesse dobrar linhas ley... o que mais eu poderia fazer com elas?
Muito, muito mesmo.
Tomei um gole de água do meu copo alto para descer o queijo, não gos‐
tando do rumo que a conversa estava tomando.
— Mas isso é bom. Você não acha? Ser capaz de dobrar as linhas ley é
bom — eu disse, lembrando-me de como as coisas tinham piorado para
mim quando eu disse a eles que estava saindo com uma cabra, que acabou
sendo uma Iris amaldiçoada.
— Não tenho certeza — respondeu Dolores, olhando de relance para
Beverly. As duas irmãs voltaram a ter aquela conversa não dita entre elas,
que só irmãos próximos podiam compartilhar.
Meu maxilar se contraiu.
— O quê? — O olhar não me agradou. O queijo que eu tinha acabado
de engolir ameaçou voltar à tona. — Por que vocês duas estão olhando para
mim como se eu fosse louco? Não estou vendo pessoas mortas, demônios
ou fantasmas que ninguém mais pode ver. Isso é totalmente diferente.
Dolores cruzou as mãos sobre a mesa da cozinha.
— Não necessariamente.
Inclinei-me para trás e envolvi meus braços ao redor do meio.
— Tudo bem. Você pode me dizer por quê?
Minha voz soou áspera, mas eu estava ficando um pouco irritada com o
quão ameaçadora toda essa situação estava ficando.
Fiquei um pouco feliz por não ter mencionado o homem que tinha visto
na linha ley mais cedo. Se eles já estavam assustados com o fato de eu do‐
brar linhas ley, imagine o que fariam se eu dissesse que um homem estava
lá comigo.
Sim, eu não ia contar a eles sobre isso ainda.
Ao pensar nesse homem, lembrei-me do aviso que a Maravilhosa Murta
me deu meses atrás, antes de morrer. "Uma presença sombria está seguindo
você. Ela está... em torno de você... em torno de sua aura." Será que ele era
essa presença sombria? O homem da linha ley?
Dolores apertou os lábios em pensamento.
— Como você sabe, não são muitos os bruxos capazes de extrair poder
das linhas ley. Para a maioria, as linhas ley ainda são um território desco‐
nhecido em termos de magia. E a maioria dos bruxos tem medo até mesmo
de usar uma linha ley. Elas são imprevisíveis. Se você não estiver em sinto‐
nia com elas, pode perder um membro.
— Ou sua vida — acrescentou Beverly e tomou um gole de seu vinho
tinto.
— Sim, mas alguns bruxos o fazem — respondi, olhando para minha ta‐
ça de vinho tinto, que ainda estava cheia. — Até a Ruth me disse que costu‐
mava andar nas linhas ley.
Dolores suspirou pelo nariz, e pude ver a dor que a simples menção de
Ruth lhe causava.
— Andar nas linhas ley é como andar em um carro de corrida — disse
ela.
— Boa analogia — concordou Beverly, levantando seu copo em uma
saudação.
— Obrigada. Dolores se mexeu em sua cadeira. — Carros de corrida
são perigosos. Mortais. E apenas algumas pessoas são loucas o suficiente
para andar neles.
— Você quer dizer alguém como eu — falei.
— E alguns outros, sim. O problema é que as linhas ley ainda estão na
área cinzenta da magia. Por causa de sua natureza, não sabemos muito so‐
bre elas. Não é como a magia elemental, ou mesmo como pegar emprestada
a magia dos demônios, como fazem os bruxos das trevas. Ela é praticada há
milhares de anos por milhões de bruxos em todo o mundo. Toda magia é ar‐
riscada. Mas as linhas ley... a energia extraída das linhas ley é uma magia
que ainda é crua, insegura e não utilizada. Nós simplesmente não sabemos
muito sobre ela. Mas tenho cem por cento de certeza de que nunca se do‐
brou ou moveu linhas antes.
— Que você saiba — eu disse, ignorando sua expressão de desaprova‐
ção. — Eu fiz isso. Não estou mentindo.
— Acreditamos em você — acrescentou Beverly rapidamente.
— Esse é o problema. — Dolores suspirou. O medo fervilhava no fundo
de seus pensamentos, transparecendo em seu rosto. — Tessa. Se eu estiver
certa, e tenho a sensação de que estou, você é a única pessoa neste mundo
que pode. — Ela hesitou, examinando meu rosto. — Você entende agora o
que estou tentando dizer?
— Talvez se você parasse de falar como Obi-Wan Kenobi, eu poderia
ter uma chance. Meu coração deu uma pequena cambalhota de pavor. —
Que tipo de aberração eu sou?
É claro que, se tivesse que haver uma aberração no mundo, seria eu. E
se eu era a única que podia dobrar as linhas ley com minha vontade, o que
isso fazia de mim?
— Desculpe, querida. — Beverly estendeu a mão sobre a mesa e bateu
em minha mão.
— É melhor você ser uma aberração bruxa do que uma aberração huma‐
na.
— Isso não está exatamente ajudando — disparou Dolores.
Beverly se recostou em sua cadeira.
— É claro que está. — Ela levou a taça aos lábios e terminou o vinho.
— Ela está aqui conosco — disse ela ao pegar a garrafa e servir-se de outra
taça. — Nesta cidade, ela pode ser tão esquisita quanto quiser. Aqui é Hol‐
low Cove, pelo amor de Deus. Todos nós somos anormais. Não há nada de
novo aqui.
Dolores ficou com uma expressão sombria, e pude ver que ela estava re‐
almente preocupada.
— Tessa. O árbitro - esse Silas - viu você quando dobrou a linha ley?
Eu me enrijeci em minha cadeira.
— Sim. E daí? Não é ilegal usar as linhas ley. Eu usei o que pude para
terminar o julgamento. O quê? Você acha que eu não deveria ter usado?
Dolores mordeu o lábio inferior.
— Só estou tentando entender. Se ele viu, então Greta sabe.
— E você não quer que ela saiba?
— Prefiro que menos pessoas saibam até que eu saiba mais sobre isso.
É tudo muito novo e inexplorado.
Dolores ficou em silêncio por um longo tempo. O único som era o de
Beverly bebendo seu vinho.
Essa não era a reação que eu esperava de minhas tias. Achei que elas fi‐
cariam animadas com a perspectiva de eu ser capaz de fazer algo extraordi‐
nário. Deixei que isso subisse à minha cabeça. E agora, bem, agora parecia
que dobrar as linhas ley era uma má ideia.
— Então, e agora?— perguntei. — Você acha que Greta vai usar isso
contra mim? — Um novo pavor me invadiu ao pensar nisso. — Você acha
que eles vão tirar minha vitória?
Se isso acontecesse, eu pensaria em matar aquela bruxa velha.
— Acalme-se, Tessa. — Dolores me deu um sorriso fraco. — Eles não
podem reprovar você por usar uma linha ley. Mas, conhecendo a Greta, ela
provavelmente já está investigando isso.
— E?
— E, — disse Dolores, suas feições se distorcendo com amargura. —
Eu odiaria se ela soubesse algo que eu não soubesse. — Dolores empurrou
sua cadeira para trás, com um brilho escuro nos olhos. — Eu tenho trabalho
para fazer
— E a Ruth? — Eu gritei quando Dolores saiu da cozinha e foi para o
corredor.
No meio do corredor, ela se virou, abriu a boca para dizer algo, mas fe‐
chou-a e foi embora.
— Receio que tenhamos falhado com a Ruth. — A voz de Beverly era
baixa e, quando olhei para trás, seus olhos verdes estavam cheios de lágri‐
mas. Ela levou a taça aos lábios e bebeu todo o vinho de um só gole. —
Acabou.
Apertei minha mandíbula.
— Não acabou. Ela ainda está aqui. E é inocente. Ela não colocou aque‐
la beladona negra em sua poção.
— Eu sei, querida. — Beverly pegou a garrafa de vinho. Suas mãos tre‐
miam enquanto ela se servia de outra taça grande. O vinho foi derramado da
borda da taça para a mesa. — Ela nem tinha mais.
Alarmada, fiquei paralisada.
— O que você disse?
Beverly enxugou uma lágrima de sua bochecha vermelha.
— Tinha acabado. Meses atrás. Não é uma erva que ela goste de usar,
por isso não comprou por um tempo. Não pode ter sido ela. Nós nem a tí‐
nhamos em casa quando ela fez aquela erva-de-gengibre para o Bernard.
— Oh, meu Deus.
— Não foi a Ruth. — Beverly inclinou a cabeça sobre a taça, sorveu o
excesso de vinho e deu uma risadinha. Ela pegou a taça, derramando o vi‐
nho sobre a mesa e o pulso ao tomar outro gole.
Eu me inclinei sobre a mesa e agarrei o pulso de Beverly.
— Você disse isso a eles? O Conselho Cinza?
— Sim. Eles não se importaram. Disseram que isso não provava que ela
não havia colocado o produto lá dentro. Disseram que ela poderia tê-lo con‐
seguido em outro lugar.
— Idiotas. — E então me ocorreu. — De onde a Ruth tirou suas enco‐
mendas de beladona negra?
Beverly riu, mas as lágrimas caíram de seus olhos assim que mais vinho
foi derramado em sua mão. — Da loja do Gilbert. Ele tem um corredor re‐
servado para ervas exóticas. E o preço é muito alto. O pequeno verme de
um homem.
Meu pulso pulsava de excitação. Era isso. Era o que eu estava esperan‐
do. Estava bem na minha frente, tão simples. Eu sabia exatamente o que fa‐
zer.
— Onde está a Iris? — Para que meu plano funcionasse, eu precisaria
da ajuda dela. Possivelmente do Ronin também.
— Ela provavelmente está comendo aquele vampiro — disse Beverly,
com os olhos verdes sem foco. — Que bom para ela. Que bom que ela está
conseguindo. Orgasmos são os melhores liberadores de estresse. — Isso de
novo, não. Ela começou a rir enquanto apontava o dedo para o que eu espe‐
rava que ela pensasse ser eu - mas era a geladeira. — Você tem um bom vi‐
brador?
— Está bem. — Eu me levantei. — Está na hora de eu ir.
— O quê? — Beverly continuou rindo. — A Martha tem uma promoção
de dois por um especial.
— Dois por um vibrador especial? — Isso era muito estranho.
— Não — ela me dispensou com um aceno de sua mão livre. — Você
ganha um tratamento facial e um vibrador pelo preço de um.
Essa foi a minha deixa.
— Vejo você mais tarde — eu disse, tensa e animada ao mesmo tempo.
Peguei meu celular e corri para o corredor, meu pulso acelerado de ansi‐
edade porque eu sabia como fazer com que as acusações contra Ruth fos‐
sem retiradas.
Capítulo 22

D urante toda a minha vida, sempre sonhei em me tornar uma artista e


uma bruxa, mas nunca, em um milhão de anos, pensei que deveria
acrescentar o título de ladra ao meu currículo.
Eu também estava ficando muito boa nisso. E pelo ritmo de arromba‐
mentos que eu estava fazendo, eu seria uma especialista até o final do ano.
Admito que tinha uma grande vontade de arrombar e invadir. Invadir a
casa de outra pessoa para bisbilhotar e pegar algo que não me pertencia e
não saber se conseguiria se safar era incrivelmente excitante. Eu estava de‐
finitivamente perdendo o controle.
Os postes de iluminação pública brilhavam com halos prateados à medi‐
da que a neve caía, deixando sombras escuras onde a luz não chegava. O ar
frio estava salpicado de flocos ocasionais de neve úmida que não duraria ao
atingir o solo.
O som das chaves chamou minha atenção para Ronin, que estava parado
em frente à porta de vidro do Mercadorias e Presentes do Gilbert. A luz da
rua projetava sombras escuras em seu rosto enquanto ele folheava as cha‐
ves. Iris, vestida de preto e parecendo uma boneca gótica com tranças, ba‐
tom preto e sombra nos olhos, estava de frente para a rua, seus dedos se mo‐
vendo em um feitiço escuro para o caso de sermos descobertos.
Eu me aproximei mais.
— Você tem as chaves do Gilbert?
Eu ri.
— Você as roubou? Ele vai ficar furioso.
Ronin colocou uma chave no buraco da fechadura e a girou. A fechadu‐
ra fez um barulho fraco.
— Claro que não. Essas chaves são minhas.
— Suas chaves — perguntei. — Não estou entendendo.
Ronin olhou para mim por cima do ombro.
— Sou o proprietário do prédio. Gilbert é meu inquilino.
Fiquei ali parada, olhando para meu amigo meio-vampiro como um idi‐
ota. Eu sabia que ele queria comprar o prédio do Marcus porque o aparta‐
mento do segundo andar tinha mais metragem quadrada. Só não esperava
que ele fosse o locador do Gilbert.
— Eu invisto em imóveis — continuou o meio-vampiro. — É como ga‐
nho a vida e como posso me dar ao luxo de ficar na cama até o meio-dia. —
Ele olhou para Iris, que lhe deu um sorriso.
Eu não sabia a data exata em que os dois haviam se tornado um casal,
mas eles eram inseparáveis há meses.
— Quantos outros edifícios você possui? — Perguntei com curiosidade.
— Mais alguns em Hollow Cove e outros em Elizabeth Town — res‐
pondeu ele, parecendo feliz com o meu interesse.
Fiquei impressionada.
— Quando você disse que tinha uma entrada, pensei que se referia a
uma porta lateral ou algo assim. Nunca pensei que você quisesse dizer a
porta da frente. Então, tecnicamente, isso não é invasão de propriedade, já
que o prédio é seu.
— Oh, é sim. — Ronin abriu a porta. — Não posso simplesmente inva‐
dir o local de trabalho de Gilbert no meio da noite sem avisá-lo com vinte e
quatro horas de antecedência. Isso é ilegal.
Iris gritou e bateu palmas.
— Estamos totalmente fazendo isso.
Ronin se curvou na cintura enquanto segurava a porta aberta.
— Primeiro as bruxas.
Iris entrou sorrateiramente pela porta. Olhei por cima do ombro uma úl‐
tima vez, certificando-me de que não havia ninguém na rua assistindo a essa
exibição, e segui Iris para dentro. Ouvi a porta se fechar atrás de mim.
Ficamos na escuridão, e esperei alguns segundos para que meus olhos
se ajustassem. A luz da rua do lado de fora lançava uma luz suave o sufici‐
ente através das janelas e portas de vidro para que você pudesse ver as for‐
mas.
— Onde você acha que ele guarda seus registros? — perguntou Ronin
ao aparecer ao meu lado. — Isso se ele mantiver o registro das coisas que
vende.
— Ele sabe. Eu sei que sim. — Agora que eu podia ver melhor, olhei
para os corredores de alimentos e produtos para os fundos da loja. — Nos
fundos. É onde fica o escritório dele. Deve estar lá.
Eu não conhecia bem o Gilbert, mas pelo pouco que sabia, ele era meti‐
culoso quando se tratava de sua loja e dos itens que vendia. Eu tinha certeza
de que ele mantinha uma lista de seu inventário - especialmente do tipo
exótico.
Rapidamente, atravessei a loja, abri a porta do escritório e entrei. Depa‐
rei-me com uma parede sólida de escuridão. Não havia janelas nesse peque‐
no escritório.
Peguei meu celular, toquei no ícone da lanterna e o movi pelo escritório.
— Ali, — eu disse, apontando para uma pequena escrivaninha entre cai‐
xas de bananas e laranjas. Eu corri para lá, inclinando meu celular enquanto
era atingido por uma sensação de déjà vu. — como nos velhos tempos — eu
disse a um Ronin sorridente.
Ronin perdeu o sorriso.
— Espero que encontremos algo. Para o bem da Ruth.
Meu estômago se revirou.
— Nós vamos. Temos que fazer isso.
— Encontrei um laptop — informou Iris quando me virei e a vi com os
olhos arregalados, segurando a luz do celular em uma das mãos enquanto
pendurava um pequeno laptop na outra.
— Abra-a e veja se você consegue encontrar a lista de inventário dele.
— Eu me virei para trás e procurei na mesa de Gilbert.
— O cara é um colecionador — disse Ronin depois de um momento,
em pé ao lado de uma pilha de revistas que eram quase tão altas quanto ele.
— Essas National Geographics datam dos anos setenta.
Eu ri.
— Ótimo. Isso significa que ele tem um registro da beladona negra em
algum lugar. Precisamos encontrá-la. Não importa se levaremos a noite to‐
da, não vou embora até que você a encontre.
— Eu também não — disse Iris, sentando-se no chão e abrindo o laptop
no colo. — Não se preocupe. Vamos encontrar algo para ajudar a Ruth. Eu
posso sentir isso.
Minha garganta se contraiu ao ouvir falar de minha tia. Não nos restava
muito tempo. Se eu estivesse errada, se não houvesse nada aqui, eu não te‐
ria mais nada.
Depois de dez minutos de busca, o pavor começou a se infiltrar em mi‐
nha cabeça. Ronin estava certo. Gilbert era um acumulador, o que também
significava que tínhamos pilhas e pilhas de papéis, revistas e contas para
examinar. E ainda não estávamos perto de encontrar nada.
— Iris? Você tem alguma coisa? — Olhei para ela.
Iris balançou a cabeça.
— Ainda não. São apenas fotos de - oh. Veja aqui. Gilbert está em um
aplicativo de namoro. — Ela riu. — Oh, meu Deus. Que mentiroso. Ele diz
que tem um metro e oitenta. — Ela soltou um suspiro. — Acho que não há
nada aqui, Tessa. Isso é principalmente coisa pessoal.
— Continue procurando.
Dei meia-volta, abri a primeira gaveta e comecei a procurar em uma pi‐
lha de notas.
— Legal! — disse Ronin, e meu coração acelerou.
— Você encontrou alguma coisa?
— Sim. — Ronin abriu uma revista. — Playboy 1982. Essas garotas ti‐
nham mais carne. Eram mais naturais. E muito mais peludas lá embaixo
também. Veja. Estou gostando do estilo mais nativo.
Iris o chutou com o pé.
— Não seja um idiota.
Empurrei a gaveta para trás e puxei a próxima que estava embaixo. Um
pequeno livro vermelho piscou para mim. Com os dedos trêmulos, eu o abri
sobre a mesa.
— Encontrei — eu disse, vendo uma lista de ingredientes, nomes e da‐
tas rabiscados no topo da primeira página em tinta azul e catalogados em fi‐
leiras organizadas.
— Você tem certeza? — Ronin se aproximou de mim.
— Sim. Veja. Tenho nomes, datas e as ervas exóticas escritas em peque‐
nas fileiras. Este é seu inventário de ervas exóticas.
Iris passou a mão em meu outro lado.
— Procure em B por beladona.
Tive que morder minha língua para não rir.
— Peguei você. — Eu folheei o livro. — Não está categorizado em or‐
dem alfabética. É por mês.
Sabendo que toda essa bagunça começou no final de outubro, folheei as
páginas até ver o mês de janeiro deste ano escrito no topo. Com minha lan‐
terna iluminando a página, folheei todos os meses, procurando a erva que
havia levado minha tia às algemas e à prisão dos bruxos.
— Pronto! — Eu disse, meu coração batendo forte.
O ombro de Ronin se chocou contra o meu quando ele se aproximou.
— Duas pessoas compraram a beladona negra.
— Estelle Watch e Michael Blackwood — leu Iris antes que eu pudesse
ler.
— O nome de Ruth não está aqui — falei, cada nervo do meu corpo
pulsando com a nossa descoberta. — Ela nunca comprou nada. Ninguém
comprou até esses dois em setembro. Isso prova que não foi ela quem colo‐
cou lá.
Isso não provava que ela não tivesse dirigido até outra comunidade pa‐
ranormal para comprar beladona negra lá, mas eu estava usando o que ti‐
nha. Além disso, Ruth quase nunca dirigia. Ela não gostava de dirigir e a
comunidade paranormal mais próxima ficava a quatro horas de distância.
Olhei para os dois nomes.
— Um deles é o assassino. Um deles matou Bernard e está deixando
Ruth levar a culpa.
— Sim, mas qual deles? — perguntou Iris, com a voz esperançosa.
Olhei de relance para Ronin.
— Você os conhece? Os nomes soam familiares para você? Nunca ouvi
falar de nenhuma dessas pessoas.
Ronin balançou a cabeça.
— Não. Desculpe.
Suspirei.
— Não importa. Nós os temos. Sabemos quem comprou a beladona ne‐
gra.
Deixei que os nomes se acomodassem em minha cabeça, sabendo que
uma dessas pessoas era o assassino. Um deles havia deixado minha tia levar
a culpa pela morte de Bernard. Só por isso, eu os esfolaria vivos e os jogaria
em um caldeirão fervente enquanto dançava em volta dele.
— É agora — eu disse, tremendo como se estivesse com frio, mas esta‐
va fervendo por dentro. — É assim que vamos provar que Ruth não fez is‐
so.
— Mas como? — perguntou Iris. — É como o que Dolores disse. Isso
não prova que Ruth não a tenha comprado de outro lugar. Se fosse eu, era
isso que eu faria se estivesse planejando matar alguém na minha cidade. Eu
não compraria o produto aqui.
Peguei o livro e olhei para meus dois amigos.
— Agora temos nomes. Uma dessas pessoas matou Bernard. Um deles
tinha algo contra ele. Tanto que estavam dispostos a matá-lo. Você pode
descobrir qual deles é? Com um pouco de investigação, vou descobrir qual
deles.
— Qual deles, o quê? — disse uma voz feminina atrás de mim, fazendo-
me pular.
Iris gritou.
O mesmo aconteceu com Ronin.
O livro vermelho escorregou de minhas mãos e caiu no chão, aos meus
pés, com um baque.
Eu me virei quando uma luz brilhante explodiu em meus olhos. Pisquei
lentamente, esperando que meus olhos se ajustassem.
Depois que eles se ajustaram à luz, pisquei para os rostos de Adira, dois
homens que reconheci como seus ajudantes vampiros, Jeff, Cameron - os
ajudantes de Marcus - e o próprio chefe.
Ah, que bom.
Capítulo 23

E msa mi nha vida, as coisas quase sempre pioram. E, naquele momento, es‐
foi a afirmação do ano.
Fomos pegos. Acho que agora eu poderia remover "ladra especialista"
do meu currículo. Senti o Ronin e a Iris se enrijecerem ao meu lado. Eu po‐
deria lidar com o fato de ir para a prisão de bruxos, mas não estava pronta
para que meus amigos fossem presos comigo. Não quando essa ideia foi mi‐
nha, em primeiro lugar.
Com um estalar de dedos, Adira fez um gesto para que seus dois cães
vampiros ficassem do lado de fora do escritório. Em seguida, ela entrou,
com movimentos rígidos e apressados, tentando parecer importante, mas
parecia que ela realmente precisava fazer xixi. A luz da sala brilhava em
seus cabelos ruivos, fazendo-os parecer em chamas. Eu poderia fazer isso
acontecer.
Seus olhos se moviam para todos os lados ao mesmo tempo. Seu rosto
tinha a beleza fria de alguém que ia receber o prêmio que estava esperando.
Eu nunca a odiei tanto quanto naquele exato momento.
Marcus entrou em seguida. Eu odiava que minha pulsação aumentasse
ao vê-lo, ao ver seus cabelos escuros e espessos, seus ombros largos e seu
traseiro incrivelmente apertado. Eu não havia falado com ele desde que o
expulsara verbalmente da Casa Davenport. Tudo bem, tinha sido um pouco
exagerado, mas eu estava fora de mim de medo e raiva por ele não ajudar
Ruth. Eu tinha perdido o controle.
Agora que tive algumas semanas para me acalmar, a culpa me atormen‐
tava. Eu havia perdido o controle. E descarreguei nele. Eu não tinha certeza
de que ele me perdoaria por isso. Ele olhou para o livro no chão, aos meus
pés, por um momento. Depois levantou a cabeça e nossos olhos se encon‐
traram. Seu rosto não tinha nenhuma emoção, mas uma frieza tão grande
brilhava em seus olhos cinzentos, uma finalidade que me deu a resposta.
Meu coração se apertou em um punho duro.
Marcus não queria ter nada a ver comigo. Não mais.
Eu estava arrasada. Meu coração parecia ter se partido ao meio, mas me
mantive firme. Eu não iria me abater agora por causa de um homem... por
causa do que eu havia feito. Isso tinha acabado. Eu tinha que seguir em
frente.
Tanto Ronin quanto Iris sentiram a mudança em mim e se apertaram
mais em torno de mim, como uma rede de segurança.
Jeff e Cameron também ficaram do lado de fora do escritório, embora
eu tivesse certeza de que era mais para ficar de olho nos vampiros do que
qualquer outra coisa.
Os dois assistentes de Marcus haviam desaparecido alguns dias antes da
chegada de Adira. Como novo chefe, tive a nítida sensação de que Adira os
havia removido para trazer seu pessoal.
Enterrando meus sentimentos em uma parte de mim onde eu poderia ti‐
rá-los mais tarde, olhei para Adira.
— Você está me seguindo? — acusei, esperando que Adira não visse o
livro no chão. Droga. Como eu ia conseguir tirá-lo de lá sem que ela ou
Marcus percebessem? Ele já havia notado o livro. Agora eu tinha que espe‐
rar e ver o que ele faria a respeito.
Um sorriso lento, preguiçoso e carnívoro tocou os lábios de Adira.
— Você acionou o alarme silencioso, bruxa tola.
Dei uma olhada para o Ronin. O meio-vampiro deu de ombros.
— O quê? Eu não fazia ideia — disse ele.
Eu sabia que deveria estar assustada, mas tudo o que senti foi raiva.
— Este prédio é do Ronin — gritei, tremendo de raiva e chamando-a de
todo tipo de obscenidades com os olhos. — Ele pode fazer o que quiser com
ele.
— Sério? — O olhar de Adira se voltou para Ronin.
— Solidariedade, irmã — disse Ronin ao dar um passo à frente e tentar
cumprimentá-la.
O rosto de Adira se contorceu como se ela tivesse acabado de pisar em
cocô de cachorro. Ela olhou para Ronin como se ele fosse sujo, inferior a
ela, como se o fato de ser meio-vampiro o tornasse inferior de alguma for‐
ma.
Sim, eu a odiei ainda mais depois disso.
— Que diabos você ainda está fazendo aqui? — rosnei quando o Ronin
largou a mão e deu um passo para trás. Seu rosto pálido ficou avermelhado,
e eu sabia que ele estava com raiva e envergonhado. Eu lhe daria uma esta‐
ca no coração só por causa disso. — Você não deveria voltar para o seu cai‐
xão? De preferência no fundo do oceano? — perguntei, combinando com
seu sorriso.
Iris se inclinou e sussurrou em meu ouvido:
— Eu posso fazer isso acontecer.
Soltei uma risada nervosa. Imaginar isso era incrível.
Adira traçou seus longos dedos em uma das prateleiras de Gilbert.
— Acredite em mim — disse ela, passando os dedos pelo que poderia
ser poeira ou algo mais sinistro. — Não vejo a hora de sair dessa cidadezi‐
nha de merda. Mas estou presa aqui. Você sabe... como eu prendi a sua tia,
sou eu quem tem de escoltá-la até a Cidadela Grimway.
Eu me encolhi como se ela tivesse me mordido no pescoço com seus
dentes de vampira.
— Você quer dizer quando fez uma prisão falsa.
Adira se virou para mim.
— Eu tomei a decisão correta. — Ela tirou um par de algemas de ferro
de dentro de sua jaqueta curta de couro. Elas eram iguais às que ela havia
colocado em mim antes. — Parece que estou prestes a fazer outra.
A magia pulsava, alimentada por minha raiva. Eu tremia com ela. Nem
precisei puxar os elementos. Minhas emoções os canalizaram por conta pró‐
pria, carregando-os ao máximo. Meus cabelos se agitaram em uma brisa
que tocou apenas a mim, e uma grande quantidade de energia preencheu
meu chi. Se ela desse um passo em minha direção, eu a faria explodir em
pedaços de vampiro.
— Vamos lá, então — desafiei, minha voz tão dura que mal a reconheci.
— Venha e me pegue. Eu desafio você, cadela com presas.
Ronin deu uma palmada em sua coxa e riu.
— Essa foi boa.
A tensão na sala aumentou.
Adira ficou mortalmente imóvel, reunindo intenção e poder em torno de
si enquanto se preparava para me atacar. Seu belo rosto era tão selvagem e
pálido quanto oco, duro e inflexível.
Se eu a matasse, isso faria de mim uma assassina. Sim, você não é tão
inteligente. Como eu poderia ajudar a Ruth se fôssemos colegas de quarto
na Cidadela Grimway?
Linhas Ley.
Era tão simples que quase caí na gargalhada. Quase.
Além das minhas tias, ninguém sabia como eu podia dobrar as linhas
ley com a minha vontade. No momento, tudo o que eu tinha de fazer era es‐
tender a mão e pegar uma delas para tirar a mim, o livro e meus amigos da‐
qui. Sem dúvida, isso nos tornaria culpados se fugíssemos, mas eu descobri‐
ria a logística mais tarde.
Não havia a menor chance de ela colocar isso em mim.
— Tessa está certa — anunciou Marcus, e eu olhei para ele surpresa,
mas ele estava olhando para o Ronin. — O Ronin é o proprietário do pré‐
dio. Aqui em Hollow Cove, isso é um passe livre. No que me diz respeito,
ele não está infringindo nenhuma lei.
— Eles estavam entrando furtivamente em um local de trabalho no meio
da noite, no escuro — disse Adira. — De onde eu venho, isso é o que cha‐
mamos de criminosos.
Uma expressão dura passou pelo rosto de Marcus.
— Você não é daqui. — Seus ombros ficaram tensos. — E eu sou o che‐
fe. Se o Ronin quiser que suas amigas se divirtam em seu prédio depois do
expediente, a decisão é dele. Sem problemas.
Você tem amigas?
Um sorriso cruel curvou os cantos de sua boca.
— Se isso é verdade, por que ele disparou o alarme silencioso? Eu digo
a você. É porque ele não sabia que havia um. Pelo que sabemos, ele estava
tentando roubar algo do cofre do Gilbert.
Ronin deu uma gargalhada, um pouco exagerada.
— Não há nada nesse cofre que valha a pena ser roubado — ele bufou.
— Acredite em mim. A única coisa que vale algum dinheiro aqui é sua co‐
leção de Playboys antigas.
— Cale a boca, Ronin — sussurrei. — Você não está ajudando.
Ronin perdeu o sorriso.
— Certo. Erro meu.
A expressão de Marcus ficou dura enquanto ele olhava para os vampi‐
ros.
— Esta é a minha cidade — disse o chefe, com uma ameaça subjacente
em sua voz. — Você não está mais atuando como chefe. E, honestamente —
ele acrescentou, — não me importa o que você diga. Você não pertence a
este lugar.
— Tessa Davenport tem uma tendência a violar a lei — disse Adira,
concentrando-se em mim novamente. — Eu perguntei a você. É um fato
bem conhecido.
— Oh, por favor. Mentira — disse eu, sabendo muito bem que era a ver‐
dade. Ops.
Marcus se aproximou de Adira até ficarem frente a frente.
— Eu sou a lei aqui, e digo que eles não violaram nenhuma.
Adira se inclinou para frente, com os olhos verdes agora negros. Droga.
Ela tinha se apagado.
— É mesmo? — ela sibilou. Ela tentou se aproximar de mim, mas Mar‐
cus a bloqueou.
Marcus a observou por um longo momento.
— Tessa. Ronin. Iris. Por favor, deixem o prédio. Vocês não estão sob
nenhuma acusação. Vocês estão todos livres para ir.
Fiquei olhando para as bocas abertas de meus amigos. Marcus estava
nos deixando ir? Todos nós sabíamos que estávamos violando todos os tipos
de leis, mas ele estava nos deixando ir. Por quê?
As emoções brotaram em mim, e a mais forte foi a culpa. Mas era óbvio
que Marcus não queria ter nada a ver comigo. Sim, ele estava nos deixando
ir, mas eu estava disposta a apostar que isso tinha mais a ver com Adira do
que comigo - sua maneira de mostrar a ela quem era o chefe.
Meus olhos se voltaram para o livro a meus pés.
— Saia — disse Marcus, com a voz perigosamente baixa.
— Sim, sim, capitão — disse Ronin, e fez uma saudação militar a Mar‐
cus. — Você ouviu o homem. Vamos lá, minhas lindas amigas.
Ronin passou seus braços pelos meus e pelos de Iris. Antes que eu pu‐
desse tentar pegar o livro sem que ninguém visse, ele nos afastou dos dois
chefes e nos conduziu para fora do escritório, passando pelos dois vampiros
que estavam sendo observados por Cameron e Jeff, e pelas portas da frente
da loja de Gilbert.
Ronin nos soltou quando chegamos à calçada.
— Cara, eu não sei quanto a vocês, mas eu preciso de uma bebida.
— Eu realmente odeio a Adira — disse Iris, parecendo mais irritada do
que eu jamais a tinha visto. — Eu estava prestes a lhe dar clamídia.
Eu comecei a rir alto por causa do estresse reprimido. Foi uma sensação
incrível.
— Deus, eu amo você. — Ronin puxou Iris contra seu peito e a beijou.
— Adoro quando você fala sobre DSTs. — Iris deu uma risadinha e o bei‐
jou de volta com força.
Meu alívio durou pouco. Eu havia perdido a única prova que poderia li‐
vrar Ruth da acusação de assassinato.
O som de uma porta se fechando fez com que meu olhar se voltasse pa‐
ra a frente da loja de Gilbert. Cerrei a mandíbula ao ver Adira e seus com‐
parsas se afastando. Ela não olhou em nossa direção enquanto ela e sua
equipe de vampiros desapareciam pela Shifter Lane, com Marcus observan‐
do-os sair.
Tentei me livrar do meu desconforto enquanto olhava para o wereape
que provavelmente havia quebrado o código de algum chefe ao nos deixar
ir.
Como se tivesse me ouvido, ele se virou e nossos olhos se encontraram.
Seu olhar cinza pareceu abrir um buraco em minha alma. Senti como se ti‐
vesse sido atingido na cabeça por uma pá.
E quando ele começou a me seguir, senti como se tivesse sido atingido
na cabeça por duas pás.
A vertigem me atingiu. Será que eu estava errada? Será que ele havia
mentido para Adira só para irritá-la e estava realmente indo nos prender?
Ele parou silenciosamente quando estava de frente para mim. Minha ca‐
beça estava a um milhão de quilômetros por hora. Tentei lê-lo, mas seu ros‐
to era uma máscara cuidadosa e sem expressão.
Marcus colocou a mão dentro do casaco e tirou um livro vermelho que
lhe era familiar.
— Aqui está. Você se esqueceu disso.
Ronin xingou e eu vi de relance a Iris beliscando sua bunda. Estranho.
Peguei o livro de Gilbert em minha mão, embora meus lábios não con‐
seguissem formar nenhuma palavra, pois muitas perguntas inundaram meu
cérebro ao mesmo tempo.
— Obrigada — disse eu, olhando para aqueles lindos olhos cinzentos.
— Não mencione isso. — Marcus me observou por mais um momento,
depois se virou e foi embora.
Observei-o deslizar para as sombras entre o prédio mais próximo e de‐
saparecer de vista, deixando-me confusa e me sentindo a maior idiota do
planeta.
Capítulo 24

E stelleEuWattinha
ch e Michael Blackwood.
dois nomes, o que significava que eu estava dois nomes
mais perto de descobrir quem era o verdadeiro assassino. E eu tinha certeza
de que uma dessas pessoas havia envenenado e matado Bernard, o padeiro.
Eu apostaria minha vida nisso.
Pena que eu estava presa ao meu terceiro julgamento de bruxos.
Hoje era 22 de dezembro e eu estava de volta ao Castelo de Monteval‐
ley, no teatro em que me sentei no primeiro dia dos testes de Merlin. Sentei-
me no fundo, talvez até no mesmo lugar, e o mais longe possível do palco
no final da sala.
Embora fosse o mesmo teatro, olhando ao redor agora, estava muito
longe dos noventa e seis bruxos que se sentaram naqueles assentos em 31
de outubro.
Agora, éramos apenas dezoito, incluindo eu e Willis.
Meus olhos se voltaram para a bagunça de cabelos castanhos e olhos re‐
dondos atrás de um par de óculos que eram grandes demais para ele e que
talvez estivessem na moda nos anos oitenta. Ele exalava um cheiro estranho
de naftalina. Sim, Willis era estranho, mas eu gostava dele.
Há apenas quatro minutos, quando meu traseiro mal havia entrado em
contato com o assento, Willis chamou meu nome e correu para pegar o as‐
sento ao meu lado, como se fosse o único assento disponível no teatro.
Olhando em volta, Willis e eu éramos os únicos sentados um ao lado do ou‐
tro. Na verdade, todos os outros dezesseis bruxos estavam sentados o mais
longe possível um do outro. Eles estavam se evitando como se fossem uma
praga. Mesmo assim, continuavam lançando olhares dissimulados cheios de
desdém e ódio em nossa direção.
Soltei um suspiro. Era emoção demais para mim. Pelo menos Willis e
eu estávamos na mesma página. Melhores amigos de prova. Por mim, eles
poderiam continuar a se odiar. O que isso importava, afinal? Todos nós che‐
gamos até aqui. Todos nós merecíamos estar aqui. Qual era o problema de‐
les?
Eu não tinha ideia do que a terceira prova implicaria. Tudo o que eu sa‐
bia era que: primeiro, era a última prova; e segundo, era a prova mais difícil
até então.
Excelente.
Meus olhos examinaram o palco. Greta ainda não estava aqui. Ninguém
estava, exceto as duas bruxas que estavam na seção isolada à direita do pal‐
co, que eu presumia que trabalhavam no castelo. Elas tinham nos levado pa‐
ra dentro do teatro quando chegamos e agora estavam nas sombras, onde
podiam ver a multidão.
Quanto mais esperávamos, pior eu me sentia. Olhando para as cabeças
dos outros bruxos, todos nós estávamos literalmente nos contorcendo em
nossos assentos, aguardando nosso destino.
Eu tinha a sensação de que Greta estava fazendo isso de propósito. Ela
provavelmente estava escondida atrás de uma cortina ou de uma porta, cur‐
tindo o show e zombando de nós.
— Como você acha que vai ser o terceiro julgamento? — perguntou
Willis, com a voz baixa e tremendo tanto que mal o entendi.
— Não faço ideia — respondi, olhando para o palco. — Mais difícil do
que os outros dois. Pior. Muito pior.
Willis assentiu com a cabeça.
— Está bem. Tudo bem. — Ele esfregou as mãos nas coxas. — Você
consegue fazer isso, Willis — ele disse a si mesmo, e eu senti uma pequena
pontada no coração. — Você consegue. Você chegou até aqui... Tenho fé em
você. Você é o cara. Você é incrível.
— Você é estranho — bufei.
O bruxo de meia-idade sorriu.
— É melhor ser estranho e único do que tentar ser algo que você não é.
— Amém.
— Não sei como você fez isso — disse Willis. — Como você me puxou
para aquela linha ley? Mas agradeço a você, mesmo assim. Eu não teria si‐
do capaz de fazer isso sem você.
Ele hesitou. — Como você fez isso?
— Você quer dizer, puxar você para lá comigo? Não tenho certeza — eu
disse a ele. — E essa é a pura verdade.
Eu não tinha tido tempo para pensar muito sobre isso. Estava muito ocu‐
pada tentando descobrir quem eram as duas pessoas que haviam comprado
a beladona negra.
— Willis. — Esperei que o bruxo olhasse para mim. — Você teria fica‐
do bem sem mim. Se aqueles bruxos tivessem jogado limpo, você não pre‐
cisaria da minha ajuda — eu disse, lembrando-me do sangue nos ouvidos e
no nariz dele e do corte sangrento na parte de trás da cabeça. Willis teria ti‐
do uma chance real de derrotar Silas se ele não estivesse sofrendo o que eu
suspeitava ser um grave traumatismo craniano. Olhei em volta dos bruxos,
imaginando qual desses bastardos havia feito aquilo com Willis.
— Eles também me bateram — eu disse a ele.
— Mas você se levantou. Eu estava no chão, Tessa. Fui eu quem foi
derrotado.
— Mas você não foi derrotado — eu disse. — Depois do que eles fize‐
ram? Eles nem merecem estar aqui. Mas você e eu? Nós merecemos. So‐
mos os azarões. E eles estão com inveja por termos uma chance de vencer.
Willis olhou para baixo.
— Bem. Vamos ver. Minha Wilma não quer que eu desista.
— Wilma?
De jeito nenhum. Willis e Wilma?
Willis olhou de volta para mim e sorriu.
— Minha esposa. Estou fazendo isso por ela, você sabe. — Ele voltou a
olhar para o palco principal. — Ela acredita em mim. Não sei por que, mas
ela acredita. Eu já fui reprovado nos testes de bruxaria de Merlin doze ve‐
zes. Nunca estive tão perto de vencer antes. Nunca passei do segundo teste.
Eu quero isso, Tessa. Quero ganhar isso para a Wilma. Ela é tudo para mim.
Sabe?
Na verdade, não. Dei um tapinha em seu ombro.
— Você vai conseguir.
Meu coração se apertou ao ver como ele falava de sua esposa. Havia
muito amor ali, e isso me deixou com inveja. Eu também queria uma Wilma
- bem, um Marcus.
Marcus...
Meu coração se despedaçou em pedacinhos no momento em que meu
celular tocou. Olhei para ele em minha mão. Era uma mensagem de texto
do Ronin.
Ronin: Eu disse que daria a você uma atualização. Aqui está ela. Nada.
Estamos pesquisando no Facebook, mas ainda não conseguimos encontrar
ninguém com os nomes Estelle Watch ou Michael Blackwood. Você quer
que eu pergunte ao Gilbert?
Que droga. A última coisa de que eu precisava agora era que aquele me‐
tamorfo corujinha começasse a fazer barulho por termos esses nomes. Ele
descobriria que invadimos a loja dele e teria um ataque. Em seguida, desco‐
briria que seu precioso livro de ervas exóticas estava faltando - outro ataque
- e então falaria. Estelle e Michael ficariam sabendo e iriam embora. E isso
seria o fim de tudo.
Tínhamos provas de que eles compraram a beladona negra. Em seguida,
precisávamos de um motivo, a motivação que os levou a cometer o assassi‐
nato e envenenar Bernard, o padeiro.
Eu: Não. NÃO DIGA AO GILBERT!!! Desculpe-me pelas letras maiús‐
culas. Por favor, continue olhando.
Ronin: Sim, senhora.
Ronin: Aqui é a Iris. Você está bem?
Eu: Sim. Contarei a você tudo sobre isso quando chegar em casa.
Ronin: OK
— Está começando — sussurrou Willis, e eu coloquei meu telefone no
modo de vibração e o enfiei na bolsa em meu colo.
Do lado direito, na seção cercada, Greta se pavoneou até o meio do pal‐
co, em frente a nós, seguida por Marina e Silas, que pararam e ficaram al‐
guns passos atrás dela. Cada um tinha uma pilha de envelopes brancos pen‐
durados em suas mãos.
Greta andava como uma mulher de negócios disciplinada. Ela usava
uma túnica branca enfeitada com tecido dourado. A luz que vinha de cima
brilhava em sua cabeça quase careca. Seus olhos não eram menos calculis‐
tas, mas havia uma ponta de algo que eu reconheci: crueldade. O amor pelo
poder, excluindo o bem-estar de seus semelhantes.
Willis se mexeu ao meu lado. Houve um murmúrio geral de inquietação
por parte dos bruxos na sala. Meus próprios nervos estavam à flor da pele.
Meu corpo inteiro tremeu com eles. Parecia que eu estava prestes a saltar da
minha cadeira para o teto como um personagem de desenho animado.
— Bem-vindos — disse ela finalmente, — ao julgamento final das bru‐
xas de Merlin. — Sua voz ressoou pelo teatro. — Noventa e seis de vocês
começaram essa jornada — continuou ela. — E só restam dezoito de vocês.
Espero que apenas metade desse grupo se forme com sua licença de Merlin.
Talvez menos. — Ela disse isso ao mesmo tempo em que me olhava de for‐
ma incisiva, certificando-se de que qualquer pessoa na sala que não tivesse
me notado o faria agora.
Senti meu rosto esquentar.
Fantástico para os fãs.
Estupor e murmúrios baixos percorreram o teatro. Todas as bruxas pre‐
sentes murmuraram e resmungaram sua desaprovação. Obviamente, como
eu, nenhuma delas pretendia ser reprovada. Estávamos aqui para passar. Pa‐
ra obter nossas licenças. E se os dois últimos julgamentos não foram prova
suficiente do que eles estavam dispostos a fazer uns com os outros, esse ter‐
ceiro julgamento seria um inferno.
Greta me encarou por mais um longo momento com animosidade e eu
juro que havia um lampejo de curiosidade em seus olhos. A-ha. Silas havia
lhe contado sobre meu uso das linhas ley no segundo teste. Ou ela estava
curiosa sobre elas, ou estava se perguntando se eu deveria ser desqualifica‐
da. Eu estava aqui. Não estava? O que significa que a velha bruxa estava
curiosa sobre minha habilidade. Minhas tias haviam dito que ela era única.
Talvez elas estivessem certas. Talvez nenhuma outra bruxa pudesse dobrar
as linhas ley. Que bom para mim.
— Por que ela está olhando para mim? — sussurrou Willis, com os
olhos arregalados de pânico, enquanto escorregava lentamente no assento
até ficar praticamente no chão. — Ela acha que eu vou ser reprovado!
— Shhh — eu disse a ele, puxando-o de volta pela camisa. — Ela está
olhando para mim. Não para você. Nosso ódio vem de muito tempo atrás.
Como algumas gerações atrás.
Então, ela achava que eu ia fracassar. Se ela pensou que eu me encolhe‐
ria como Willis, estava errada. Isso só me deixou muito mais disposta a ter
sucesso.
Greta deixou o silêncio cair depois disso e eu olhei para Silas e Marina,
cujas cabeças estavam inclinadas juntas, conversando profundamente. E pe‐
los sorrisos em seus rostos, eu tinha que deduzir que eles provavelmente es‐
tavam fazendo apostas sobre qual de nós iria conseguir.
Greta nos olhou com um olhar distante e sem paixão.
— Vocês passaram nas duas primeiras provas e agora estão aqui. Vocês
acham que são especiais. Vocês não acham? Bem, vocês não são.
— Sempre gostei dela — murmurei, vendo Willis descer novamente pe‐
lo canto do meu olho. — Faz maravilhas para nossos egos.
— Não se deixem enganar — continuou Greta, seus olhos examinando
as fileiras de assentos. — Ser um Merlin não significa apenas que você pre‐
cisa ser capaz de usar suas habilidades mágicas, mas também que precisa
usar seu cérebro. Suas habilidades investigativas precisam brilhar. Você po‐
de ser excelente em sua magia, mas isso não significa nada se não puder
usar seu cérebro.— Ela ergueu as sobrancelhas e enunciou em voz alta: —
Rede de Inteligência da Liga de Resposta à Aplicação Mágica. É isso que
um Merlin é. Vocês precisam se tornar analistas. Analistas de inteligência.
Vocês precisam provar para mim que são capazes de resolver um caso.
Uma onda de sussurros percorreu o auditório.
Willis se levantou em seu assento.
— Ela acabou de dizer caso? — Ele empurrou os óculos para cima da
ponte do nariz com o dedo, parecendo animado pela primeira vez desde que
se sentou.
— Ela disse — respondi, tensa, nervosa e ansiosa, tudo ao mesmo tem‐
po. Inclinei-me para frente em meu assento.
Com o pulso acelerado, olhei para Greta enquanto a velha bruxa olhava
para as bruxas. A empolgação me invadiu em ondas. Eu podia fazer isso.
Eu poderia resolver um caso. Certo?
Greta limpou a garganta.
— Há dezoito casos, um para cada um de vocês — ela instruiu. — Cada
caixa foi projetada especificamente para você e somente para você. Se vo‐
cês precisarem da ajuda de amigos ou da família, vocês podem fazer isso.
Ou podem optar por trabalhar sozinhos. Depende de vocês. Vocês precisam
coletar dados, fazer avaliações, investigar a cena do crime... o seu caso. De‐
pois de coletar todas as evidências — disse ela, com o olhar fixo em nós no‐
vamente, — vocês virão aqui e apresentarão seu caso para mim".
Meus lábios se entreabriram. Então, Greta estava bancando o juiz, o júri
e o carrasco? Por que eu não estava surpresa?
— Se vocês não resolverem o caso no tempo determinado… — Ela fez
uma pausa. — Vocês serão reprovados. — Novamente, seus olhos me fixa‐
ram e tive de resistir ao impulso de não recuar. — Ouçam, bruxos. É sim‐
ples. Resolvam o caso e vocês se tornarão os próximos Merlins. Se vocês
falharem... bem... mais sorte na próxima vez.
Willis choramingou um pouco e eu estendi a mão e dei um tapinha em
sua cabeça como faria com um filhote de cachorro.
— Agora, quando eu chamar o nome de vocês, venham até o palco para
receber o caso que lhes foi designado — ordenou a velha bruxa.
Greta se virou e fez sinal para que Silas e Marina se aproximassem. Eles
lhe entregaram a pilha de envelopes que estavam segurando e deram um
passo para trás.
A velha bruxa olhou para o primeiro envelope e disse:
— Craig Allen.
Um bruxo de vinte e poucos anos com a cabeça raspada e pele cor de
café com leite se levantou e correu até a plataforma para pegar seu envelo‐
pe.
A adrenalina pulsante machucou minha cabeça, e mal ouvi os outros no‐
mes que ela chamou quando, um a um, os bruxos no teatro se levantaram.
Seus movimentos eram rápidos, com uma empolgação mal controlada, en‐
quanto se juntavam e caminhavam até o palco para pegar seu envelope, seu
estojo.
— Sou eu! — exclamou Willis enquanto tropeçava, se levantava, conse‐
guia sair da nossa fileira e, é claro, tropeçava nos degraus ao subir no palco.
Meus olhos estavam grudados nele enquanto ele pegava o envelope e se
afastava, segurando-o como se a vida de sua esposa dependesse disso. Ele
deu três passos, abriu o envelope, leu o que estava escrito e me deu um sinal
de positivo.
Soltei um suspiro trêmulo.
— Tessa Davenport.
Em algum lugar do meu cérebro confuso, ouvi meu nome. Eu era a últi‐
ma. Por que será? Claramente, não era por ordem alfabética. Talvez fosse
por mérito. Willis e eu fomos os últimos a fazer a segunda prova.
Entorpecida, saí da minha fileira e caminhei pelo corredor até a plata‐
forma. Mal percebi o movimento das minhas pernas, mas elas se moveram.
Fiquei de frente para Greta. Ficamos nos encarando por um momento.
Seu rosto estava vazio de emoções, mas seus olhos eram duros. Desviei
meu olhar para o último envelope branco em seus dedos retorcidos. Sem
pronunciar uma única palavra, Greta me entregou o envelope.
Eu o peguei, com os dedos trêmulos, enquanto olhava para o envelope
branco simples com o nome TESSA DAVENPORT escrito em elegantes le‐
tras pretas.
Desci da plataforma para um espaço afastado dos outros. Não queria
que ninguém me visse enquanto eu abria meu envelope, para o caso de ser
ruim. Eu me sairia mal sozinha, muito obrigada.
Com o coração martelando nos ouvidos, abri o envelope com dedos trê‐
mulos e comecei a ler. Havia apenas uma frase, uma pequena frase em toda
a folha de papel de oito por onze. Mesmo assim, tive que lê-la duas vezes.

Você tem até a meia-noite de hoje para provar a inocência de Ruth Daven‐
port.

Sem chance. Ela me deu o caso da Ruth.


Capítulo 25

E uapretinha menos de dezesseis horas para resolver o caso da minha tia e


sentá-lo a Greta.
Sim, sem pressão.
Minha tia Ruth já havia sido considerada culpada pelo Conselho Cinza.
Ela foi julgada, condenada e verá o interior da prisão de bruxas amanhã de
manhã.
No entanto, Greta havia me dado um pedaço de papel que sugeria o
contrário. Pelo menos, se por um milagre eu conseguisse provar sua inocên‐
cia. Eu acreditava que ainda havia uma chance de retirar as acusações. A
questão era: por que Greta fez isso?
Será que ela odiava tanto a minha família que seu desejo de falhar comi‐
go significava que ela me daria um caso que não poderia ser resolvido? Era
isso que ela esperava? Será que ela era tão má e desonesta assim? Ou havia
outro motivo?
Minha mente estava cheia de perguntas enquanto eu pulava a linha ley
para casa. No momento, não importava por que ela tinha feito isso. De qual‐
quer forma, eu tinha planejado resolver o problema sozinha - com a ajuda
da minha família e dos meus amigos, é claro.
E eu precisaria de toda a ajuda que pudesse obter.
— Estelle Watch e Michael Blackwood — leu Dolores, com o dedo so‐
bre o livro vermelho de Gilbert que estava no meio da mesa da cozinha. Ela
franziu os lábios. — Você nunca ouviu falar deles. Beverly?
Beverly inclinou a cabeça, com a caneca de café enrolada em seus de‐
dos delicados.
— Nunca ouvi falar de Estelle Watch. E receio que Michael Blackwood
também não me diz nada.
— Você tem certeza? — pressionou Dolores. — Pensei que você conhe‐
cesse todos os homens aqui em Hollow Cove. Casados ou solteiros.
Um sorriso se desenhou nos lábios de Beverly.
— Sim, Dolores. Perdoe-me, mas minha memória já não é como antes.
Vou dar uma olhada no meu livro.
— Isso inclui os nomes das pessoas com quem você fez sexo? — per‐
guntou Ronin, com o rosto se transformando em um sorriso bobo.
Beverly lhe deu um sorriso.
— Talvez.
— Legal.
O meio-vampiro se aproximou de Dolores e começou a tirar fotos com
seu celular enquanto virava as páginas do livro de Gilbert. Ele me viu
olhando e disse:
— Aproveite.
Eu não queria saber.
Beverly empurrou sua cadeira para trás e se levantou.
— Vou ver se a Ruth reconhece esses nomes. Talvez ela reconheça. Be‐
verly perdeu um pouco de seu sorriso ao mencionar sua irmã.
— Ótimo. Essa é uma boa ideia.
O rosto de Dolores ficou em branco enquanto ela olhava para Ronin fo‐
lheando as páginas e tirando mais fotos.
Ruth foi a primeira pessoa que eu fui ver quando entrei pela porta da
Davenport House. Subi correndo para lhe dar a notícia de que eu estaria ofi‐
cialmente trabalhando no caso dela - mais ou menos -, mas minha tia nem
sequer reconheceu minha presença. Ela estava sentada na beira da cama,
olhando para o chão, como se não tivesse me visto e não pudesse me ouvir.
Isso me assustou. Eu não a reconhecia assim. Sua personalidade encan‐
tadora e borbulhante havia desaparecido, substituída por uma alma mórbida
e perdida. Eu queria minha tia de volta, e a única maneira de conseguir isso
era resolver esse caso - do meu jeito.
Do meu bolso, tirei o pedaço de papel dobrado e o coloquei sobre a me‐
sa.
— Por que Greta me designaria isso? Ela sabe que Ruth já foi julgada
pelo Conselho Cinza. Eu não entendo. O que estou perdendo aqui?
Dolores se aproximou de mim, com os olhos fixos no pedaço de papel.
— Eu não sei, Tessa. Ela está com raiva de nós. Não com você.
— Não, tenho certeza de que ela também me odeia.
— Bem, ela não deveria. Nós fizemos de você uma Merlin.
— E ela nos tirou isso.
Com raiva, peguei o pedaço de papel, dobrei-o novamente e o coloquei
de volta no bolso da calça jeans.
Dolores me observou por alguns segundos sem dizer uma palavra.
— Vou falar com Gilbert — disse ela de repente. Ela olhou para mim.
— Ele vai me dizer quem são essas pessoas e onde encontrá-las.
— E se ele não fizer isso? — perguntou Beverly, enquanto colocava a
caneca de café na pia da cozinha. — Você sabe como ele pode ser. Um rati‐
nho inútil. Eu deveria levá-lo ao porão.
A ideia da Casa Davenport fazer uma lobotomia em Gilbert não parecia
tão ruim.
— E você sabe como eu posso ser — disse a bruxa alta. — Arrancarei
as penas da coruja se for preciso. Não me importo. É da vida de Ruth que
estamos falando. Não de seus sacos de farinha e sal de mesa caros.
— O sal de cozinha dele tem gosto de vinagre — disse Iris ao entrar na
cozinha com Dana debaixo do braço. — Minha teoria é que ele pega as so‐
bras do restaurante do outro lado da rua, o Garden of Eden, empacota e ven‐
de. — Ela puxou uma cadeira da mesa da cozinha e se sentou, colocando
Dana em seu colo.
Fiquei olhando para a Iris por um momento.
— Se você estiver certa, fico imaginando o que mais ele reutiliza e re‐
embala.
Ronin balançou a cabeça.
— Se você disser preservativos, eu vou vomitar.
Apertei meus lábios. — Eu não disse nada, seu bebezão — disse a ele,
fazendo Iris rir.
Dolores foi até o cabideiro de madeira na parede, vestiu seu longo casa‐
co de lã cinza e enrolou um cachecol no pescoço.
— Voltarei assim que puder.
— Por favor, não mate ninguém — falei, soltando a respiração que esta‐
va prendendo.
— Não posso perder outra tia.
Dolores me olhou fixamente e depois se dirigiu à porta dos fundos.
— Não posso prometer nada — disse ela, enquanto a porta dos fundos
se fechava atrás dela.
Franzi a testa para a porta.
— Droga.
— Você acha que ela vai machucá-lo? — perguntou Ronin.
— Eu o machucaria — interrompeu Iris.
Balancei a cabeça.
— Não sei. Talvez? Ela está sob muito estresse. O cara é um pouco es‐
corregadio.
Iris olhou para mim com expectativa.
— O que vamos fazer agora?
Meus olhos se moveram entre meus amigos.
— Bem, não posso ficar aqui sentado esperando por Dolores, que pode
ou não ter informações para dar. Este é o meu caso. — Olhei para o livro de
Gilbert. — Quem, além de Gilbert, tem uma lista de todas as pessoas desta
cidade?
— O secretário da cidade — disse Ronin.
A esperança floresceu em meu peito. — Excelente. Isso é bom. Por que
você parece que acabou de comer fígado cru?
— Porque Gilbert é o secretário da cidade — respondeu ele.
Minha bolha de esperança estourou e escondi o rosto com as mãos.
— Ótimo. Estou tão ferrada. Tem que haver outra pessoa. Alguém que
possa manter o controle. — Minhas mãos caíram do meu rosto. — Marcus
saberia — eu disse. Meu estômago se apertou ao mencionar o nome dele.
Lembrei-me dele me contando que tinha uma lista de todos os paranormais
visitantes quando Hollow Cove sediou o Festival Noturno. Eu tinha certeza
de que ele tinha uma lista de todos nesta cidade. — Poderíamos perguntar a
ele.
— Não. Você deveria perguntar a ele — disse Iris. — Se você disser a
ele o motivo, tenho certeza de que ele estará disposto a ajudar.
— Estou com a Iris, Tess — concordou Ronin enquanto colocava o ce‐
lular no bolso. — Você precisa fazer isso.
— Não acho que seja uma boa ideia — disse a eles, meu estômago brin‐
cando de cabo de guerra com meus intestinos ao pensar em falar com Mar‐
cus. — Não depois do que eu fiz. Fui uma completa idiota com ele. Duvido
que ele queira falar comigo. Provavelmente baterá a porta na minha cara. É
o que eu faria se fosse ele. — Eu merecia totalmente isso.
— Você não é ele. — Iris exalou, olhando para mim como se eu fosse
uma criança de cinco anos que não entendesse uma conversa de adultos. —
Ele deu a você este livro. Não foi? — disse ela, apontando para o livro ver‐
melho de Gilbert. — Ele não precisava dar, mas deu. E ele fez isso porque
se importa com você. Ele se importa com Ruth e se importa com você. To‐
dos nós perdemos a paciência. Ninguém é perfeito.
— Fale por você — disse Ronin, apontando os polegares para si mes‐
mo. — Dez de dez aqui mesmo, querida.
A Iris tinha razão. Marcus não precisava me dar o livro, mas ele o fez.
Isso tinha que significar alguma coisa.
— Você tem razão.
Nas últimas semanas, eu tinha desenvolvido uma grande coragem. Eu
tinha que assumir meus erros. Tinha que lidar com o que havia feito. Eu ti‐
nha que encarar isso. Não havia como voltar atrás, apenas pular para frente.
Parte do problema era que eu não queria admitir para mim mesma que
provavelmente havia arruinado minhas chances com um homem maravilho‐
so. Homens tão bons, tão honestos, eram praticamente uma espécie em ex‐
tinção. E eu tinha estragado tudo.
Minha vida amorosa era inconsequente no momento. Nada disso teria
importância se eu não ajudasse Ruth.
E para salvar Ruth, eu sabia o que tinha de fazer. Tinha de pedir ajuda
ao homem com quem eu tinha sido horrível.
Ia ser incrível.
Capítulo 26

E u esMi
tava correndo.
nhas botas escorregavam na calçada irregular coberta por uma fi‐
na camada de neve molhada enquanto eu corria pela Stardust Drive. A dor
aguda nas coxas, a cãibra na lateral do corpo e a lembrança de que o tempo
estava acabando não eram nada comparadas à dor que Ruth sofreria se eu
não fizesse isso.
Não se trata de mim, lembrei a mim mesma. Trata-se de Ruth.
O sol estava bem acima de mim, aparecendo por entre as nuvens, tor‐
nando o dia um pouco mais quente. Mergulhei em uma poça, ansiosa de‐
mais para me importar se meus tornozelos ficariam molhados.
Atravessando a Shifter Lane em uma corrida, peguei a calçada e corri
para o prédio da Agência de Segurança de Hollow Cove.
O barulho de uma porta de vidro se abrindo foi meu único aviso, e eu
recuei no momento em que Marcus entrou correndo, quase quebrando a
porta na minha cara.
— Tessa — ele disse, parecendo ótimo em seu jeans casual e jaqueta de
inverno estilo bomber sobre uma camiseta preta.
— Ei. — Dei um passo para trás, escorreguei na neve molhada e me
equilibrei antes de me esparramar na calçada molhada. O calor subiu ao
meu rosto enquanto eu me endireitava. — Ei... você… — Acrescentei sem
jeito, sentindo uma dor aguda no lado esquerdo da região lombar, sabendo
que provavelmente havia torcido alguma coisa ao tentar parar a queda. —
Eu estava indo ver você.
Marcus ergueu as sobrancelhas, parecendo genuinamente surpreso.
— Você estava?
— Sim. — Acenei para mim mesma como uma grande idiota. Ah, por
que isso era tão difícil? — Hum... Oi —falei, acenando para ele. Eu acenei
para ele? Eu estava ficando louca.
— Olá — respondeu Marcus com um sorriso que era quase hipnotizan‐
te.
— Isso deveria ser ilegal — falei, percebendo tarde demais que havia
falado meus pensamentos em voz alta.
Marcus franziu a testa.
— O que?
— Mmmm. Nada. — Eu era um idiota gaguejante e tagarela. — Você
está ótimo. Realmente ótima. Obrigada. — Obrigada?
Marcus riu baixinho.
— Não, obrigado você.
Ele riu novamente. O chefe achou que eu estava engraçada.
Sim, o salto das linhas ley estava afetando seriamente minhas habilida‐
des de conversação. Elas estavam sofrendo um impacto colossal.
Ficamos em um silêncio constrangedor por um tempo, meu coração fa‐
zendo música em meus ouvidos no turbilhão de sentimentos conflitantes,
enquanto meu corpo inteiro vibrava com um calor que não tinha nada a ver
com minha jaqueta quente.
— O livro ajudou? — perguntou Marcus, finalmente, com seu tom cari‐
nhoso e suave, e eu queria me envolver nele.
— Sim — eu disse, sentindo-me um pouco mais relaxada por ele não
parecer irritado. Considerei isso um bom sinal. — É por isso que estou aqui.
Uma expressão de desaprovação se espalhou pelas feições de Marcus.
— É o Gilbert? Ele sabe? Ele disse algo a você?
— Não, ele não sabe sobre o livro. Bem, acho que ele não sabe. Pelo
menos, ainda não. Mas estou aqui por causa dos nomes que encontramos —
eu disse, falando rápido. — Estelle Watch e Michael Blackwood. Esses fo‐
ram os dois únicos nomes que compraram a beladona negra na loja de Gil‐
bert. O nome de Ruth nem sequer consta do livro. Ela não comprou nada. O
Conselho Cinza não se importa. Eles acham que ela poderia facilmente ter
comprado em outra loja. Mas a Ruth não comprou. E eu sei que uma dessas
pessoas matou o Bernard. Só preciso da prova para resolver meu caso.
— Seu caso?
Eu o encarei.
— É uma longa história. Mas é meu terceiro julgamento de bruxa —
acrescentei com uma risada. — É absolutamente insano. Mas eu tenho até a
meia-noite de hoje para resolver o caso da Ruth.
Marcus me observou.
— Entendi.
Suspirei.
— Então, você tem uma lista ou reconhece esses nomes?
— Só um segundo. — Marcus sacou o celular e começou a folheá-lo. —
Posso acessar remotamente meu computador com meu telefone. Mantenho
os mesmos registros que o secretário da cidade no sistema.
— Abençoada seja a tecnologia moderna. — Prendi a respiração ansio‐
samente e observei os dedos de Marcus tocarem seu telefone enquanto eu
batia com meu pé esquerdo. — E? Alguma coisa? Você tem alguma coisa?
— Bem —disse o chefe, ainda olhando para o telefone. — Não consigo
encontrar Estelle Watch na lista, mas aqui diz que Michael Blackwood está
morto.
— Morto? Quando?
Marcus tocou o dedo uma vez na tela do telefone.
— Dezesseis de setembro.
Fixei meus olhos nos dele.
— Isso foi antes de Bernard ser encontrado morto. — Minha pressão ar‐
terial disparou.
— Isso significa que Estelle Watch matou Bernard.
E ela estava caindo...
— Talvez. — Marcus colocou o telefone de volta no bolso do paletó. —
Mas não há nenhum registro dela aqui. — Ele estreitou os olhos em pensa‐
mento.
— O quê? O que é isso?
Ele olhou para mim e balançou a cabeça. — É estranho. Mas esse nome
- Estelle Watch - eu sei que já ouvi antes. Só não consigo me lembrar onde.
Soltei um longo suspiro pelo nariz.
— Dizem que as assassinas mulheres usam veneno. Certo?
— Às vezes.
— Estelle entrou na loja dele e, quando ele não estava olhando, ela jo‐
gou a beladona negra no frasco que continha a erva-de-gengibre de Ruth —
eu disse, vendo a cena se desenrolar em minha mente. — Dessa forma, ela
ficou escondida. Ele também nunca sentiria o cheiro, mesmo que tentasse,
não com o forte aroma de gengibre.
— É uma possibilidade — disse o chefe. — Mas por que ela faria isso?
É.
— Não faço ideia.
— Antes que possamos fazer qualquer tipo de suposição...
— Teorias.
— Teorias. — disse Marcus com um sorriso. — Ainda precisamos en‐
contrá-la. E, de acordo com minha lista, ela não mora aqui em Hollow Co‐
ve.
— Ela poderia ser de uma cidade vizinha? A beladona negra não é uma
erva medicinal comum. Ela é perigosa. Não é fácil encontrá-la. Talvez ela
tenha vindo de carro de fora da cidade? — Era um exagero, mas eu estava
desesperada e estava ficando sem tempo.
— Vou pedir à Grace que examine a lista novamente. Ela é muito boa
em encontrar pessoas.
— Aposto que ela vai adorar isso. — Especialmente se ela soubesse que
isso estava vindo de mim. Olhei por cima de seu ombro para as sombras
dentro do prédio. — Por falar em pessoas que me desprezam... onde está a
Adira? — Procurei pela vampira ruiva sexy, pensando em maneiras de lhe
dar clamídia ou um caso grave de acne.
— Saiu.
— Saiu passar o dia fora para fazer depilação nas costas? Ou tipo foi
embora?
— Eu mesmo fiz os preparativos para escoltar Ruth amanhã. — Uma
sombra cruzou as feições de Marcus. — Achei que seria melhor para ela es‐
tar com alguém que ela conhece. Alguém que se preocupa com ela. — Seus
olhos se encontraram com os meus, sua mandíbula se contraiu. — Sei que
você acha que não me importo com a Ruth, mas eu me importo.
Ah, que inferno. Levantei minha mão.
— Não - quero dizer - sim, eu sei que você se importa. — Eu era uma
idiota gaguejante mais uma vez. — O que quero dizer é que sei que você se
importa. E sinto muito pelo que eu disse. Fui precipitada, impulsiva uma
completa idiota. — Aí está, bolas gigantes de mulher para um pedido de
desculpas. — Eu fui uma estúpida. Você não merecia isso. Você não mere‐
cia isso. Sinto muito.
Marcus sorriu para mim, um sorriso que era ao mesmo tempo carinhoso
e um pouco perverso. Esse tipo de sorriso teria me feito arrancar minhas
roupas no meio do inverno em uma calçada. Estava muito quente.
— Não se desculpe — acalmou Marcus. — Eu entendo. O que está
acontecendo com a Ruth é inimaginável. Os ânimos estão exaltados. É com‐
preensível. — Sua voz era tão sonhadora e calma que me causou um arre‐
pio.
Que porcaria. Ele era tããão legal e realmente se importava com a Ruth.
Ele me observava, com os olhos cheios de um desejo fervoroso e sem pu‐
dor. E quando eles se dirigiram aos meus lábios, uma pulsação me atingiu
em cheio.
Não faça isso, eu disse a mim mesma, esforçando-me para não olhar pa‐
ra seus lábios cheios e beijáveis.
Droga, eu consegui.
Afastando meus olhos do marco zero, eu me esforcei para dar um passo
para trás, mas minhas pernas pareciam estar cimentadas na calçada. Oh,
meu Deus. Eu podia ouvir meus batimentos cardíacos no silêncio, enquanto
o chefe continuava me observando, sem pudor, com um meio sorriso, clara‐
mente apreciando qualquer exibição que meu rosto e meu corpo estivessem
fazendo no momento.
Ele estava ali, quente e sexy como o inferno, olhando para mim com
aqueles lindos olhos cinzentos, aquele corpo sensual e aqueles lábios ile‐
gais. Eu nem percebi o que estava fazendo antes que fosse tarde demais, an‐
tes que eu sentisse meus pés deixarem o chão sólido.
Eu pulei em cima dele.
Não no sentido exato, mas eu saltei em seus lábios.
Esmagando meu corpo contra o dele, estendi a mão, agarrei a parte de
trás de sua cabeça e o puxei para mim.
Sim, hoje eu estava com ousadia. Viva os instintos!
Seus lábios eram macios, com um calor úmido, apesar do frio. Minha
respiração saiu e entrou em um ritmo ofegante e um som suave de verdadei‐
ra felicidade escapou de mim. Ele abriu a boca, e minha língua encontrou a
suavidade da sua.
Ele emitiu um som, parte rosnado, parte gemido, aumentando meu fer‐
vor. Ele envolveu-me com suas mãos fortes, puxando-me com mais força
para ele. Passei minha língua ao redor da dele, parando apenas para mordis‐
car seus lábios.
Sim, sua maldita boca e língua me catapultaram para além da minha
sensibilidade e me transformaram em uma louca imprudente.
Eu me afastei, chocado com minha própria impulsividade.
— Oh, meu Deus. Não acredito que acabei de atacar sua boca — eu dis‐
se, meus lábios ainda latejando com o calor dos lábios dele.
O desejo brilhou em seus olhos cinzentos, o que me fez vibrar por den‐
tro.
— Você pode atacar minha boca a qualquer momento — acrescentou
ele, presunçoso.
Eu olhei em seus olhos - seus olhos cinzentos impecáveis - estudando-
os com a compreensão sem fôlego de que eu não sabia o que iria acontecer
entre nós, mas rezando para que algo acontecesse.
Mas isso teria que esperar...
— Ruth… — Eu disse, sentindo um peso repentino e esmagador, en‐
quanto a imagem do rosto magro de minha tia aparecia em minha mente.
Marcus fez um aceno com a cabeça.
— Eu sei.
Engoli com força e dei um passo para trás.
— Eu tenho que ir.
— Eu sei.
— Tenho telefonemas a fazer, algumas perseguições nas mídias sociais
— eu disse e depois percebi que não deveria estar dizendo isso ao chefe. Eu
também queria ver se Dolores estava de volta com uma coruja depenada.
Talvez ela tivesse informações sobre a Estelle Watch ou talvez não. — Você
vai me ligar se descobrir alguma coisa sobre Estelle Watch?
Os olhos de Marcus estavam brilhantes.
— Eu vou.
Virei-me e voltei para a Shifter Lane, ciente de que Marcus estava me
observando. Provavelmente, ele estava olhando para a minha bunda, o que
me deixaria constrangida em qualquer outro dia, mas hoje eu tinha cora‐
gem.
E um nome. Estelle Watch.
É hora de colocar meu boné de Merlin. É hora de trabalhar minhas habi‐
lidades investigativas como nunca antes.
Porque o prazo da meia-noite estava se aproximando rapidamente.
Capítulo 27

C omo
do?
é mesmo esse ditado? O tempo voa quando você está se divertin‐

Não.
O tempo também voa quando você está sob extrema pressão e tentando
encontrar um fantasma.
É isso mesmo. Estelle Watch era um fantasma. Não no sentido literal,
mas mais no sentido figurativo de que você não consegue encontrar evidên‐
cias de que ela existe.
Depois de passar horas ao telefone, ligando para todas as cidades para‐
normais a um dia de distância de carro e pesquisando nas mídias sociais até
meus dedos ficarem com cãibras, não encontrei nada sobre Estelle Watch.
Nada. Nenhum registro de emprego, nenhuma conta no Facebook ou qual‐
quer outra presença nas mídias sociais.
Era como se ela nunca tivesse existido, daí o meu termo fantasma.
O relógio do meu celular marcava 23h49 e não estávamos nem perto de
descobrir quem era Estelle Watch.
Pensando que talvez Gilbert tivesse ouvido mal o sobrenome dela - ele
já tinha certa idade -, passei horas procurando sobrenomes diferentes que
começavam com a letra W, como Estelle Watson, Estelle Ward, Estell Wal‐
lace, Estelle Wagner e Estelle Walker. Mas isso também foi um fracasso.
Talvez eu estivesse olhando para isso de forma errada o tempo todo.
Talvez eu tivesse ficado sem opções. Talvez eu já tivesse fracassado, mas
era teimosa demais para admitir isso.
A cozinha da Davenport House havia se tornado a Central de Pesquisa
do meu caso. Livros e caixas de livros forravam as paredes e cobriam a
maior parte do chão da cozinha. Fichários, arquivos e pastas cobriam cada
centímetro do espaço do balcão. Uma caixa de pizza meio vazia estava na
ilha da cozinha, acima das pastas de arquivos e documentos, junto com cai‐
xas de comida chinesa.
A mesa da cozinha, meu espaço de trabalho, parecia que alguém tinha
brigado por comida, mas com papéis em vez de comida de verdade. Com
tantos livros, arquivos, cadernos e fatias de pizza comidas pela metade, ela
havia ganhado mais cinco centímetros de altura.
Ronin e eu nos sentamos um em frente ao outro na mesa da cozinha,
com os dedos digitando em nossos laptops, enquanto Iris murmurava alguns
encantamentos de magia negra enquanto estava sobre o pequeno caldeirão
fervente no fogão.
O cheiro que vinha de seu caldeirão me fez engasgar. Era o cheiro de
mofo e bolor de meias velhas e sujas misturado com escória de lagoa, além
de alguns traços de algo mais picante, talvez algum tipo de incenso. Meu
estômago revirou desconfortavelmente, e a sensação crescente de energia
negra não me ajudou a mantê-lo calmo.
Eu não me importava com a magia negra que Iris estava preparando. Se
isso pudesse nos trazer a Estelle Watch, ela poderia conjurar um exército de
mortos se quisesse, até mesmo colocar alguns demônios na mistura se
achasse que isso ajudaria. Neste momento, eu estava desesperada.
Enquanto digitava, podia ouvir os soluços constantes no andar de cima.
Dolores e Beverly estavam chorando há horas, uma melodia desesperada e
de partir o coração que me causava dor física.
Dolores, até duas horas atrás, estava nos ajudando a procurar Estelle
desde a tarde de hoje.
— Que perda de tempo — ela gritou ao entrar pela porta dos fundos da
cozinha cerca de uma hora depois de eu ter voltado do meu encontro com
Marcus.
Levantei os olhos do meu notebook.
— Gilbert não quis falar?
Dolores havia tirado o casaco, a bolsa e o cachecol quando entrou. Eles
flutuaram até o cabideiro de madeira e foram pendurados ordenadamente,
como se um mordomo invisível os tivesse pegado e pendurado para ela.
— Ele falou — disse ela. — A corujinha tinha muito a dizer, é verdade.
Mas nada sobre Estelle.
— Você não poderia enfeitiçá-lo com um amuleto da verdade ou algo
assim?"
Dolores levantou uma sobrancelha.
— Quem você acha que eu sou? É claro que eu o enfeiticei. Mas ele
simplesmente não se lembrava de quem eram aquelas pessoas. Nada. Você
não se lembrava de nada. Então, pedi que ele fosse até o computador e revi‐
sasse a lista de todos os residentes registrados de Hollow Cove. Achei que
isso poderia refrescar sua memória. Infelizmente, Michael Blackwood...
— Está morto — eu disse e rapidamente contei a ela sobre meu encon‐
tro com o chefe.
— Fico feliz que aquele vampiro ruivo horrível tenha ido embora —
disse Dolores, sentando-se à mesa. — Mas isso não ajuda Ruth. Bem, se
houver um registro de Estelle Watch na comunidade de bruxas - porque te‐
nho a sensação de que ela é uma bruxa - eles saberão que ela existe. — Ela
se levantou e disse:
— Tenho algumas ligações telefônicas para fazer.
Ela estava fazendo isso há sete horas seguidas. E então, duas horas
atrás... ela simplesmente... parou.
Outro soluço veio do andar de cima, um soluço de cortar o coração que
fez meus olhos arderem. Se um coração pode literalmente se partir em pe‐
daços, o meu acabou de se partir. Eu quase podia sentir os pedaços caindo
no fundo do meu estômago. Uma lágrima escapou do meu olho e pude sen‐
ti-la percorrer toda a extensão da minha bochecha até o queixo.
— Tess — disse Ronin de repente, chamando minha atenção para ele,
sua voz alta na cozinha silenciosa. — Talvez devêssemos...
— Não vou desistir — rosnei, com a voz alta e cheia de emoções. Tirei
uma lágrima do queixo. Não era hora de chorar. Eu não estava desistindo.
Ronin soltou um suspiro.
— Eu ia dizer... vamos tentar outra coisa. Você já viu todas as pistas
possíveis para encontrar essa Estelle Watch. Ela não existe. Não onde esta‐
mos procurando. E não com os recursos que temos.
— Ela existe o suficiente para assinar seu nome no livro de Gilbert —
respondi. — Ela é real. — Senti os olhos de Iris em mim, mas mantive mi‐
nha atenção no Ronin, mesmo com a pontada de culpa que senti com a ex‐
pressão em seu rosto. — Você me desculpe. Só estou... só estou frustrada,
só isso.
— Não se preocupe — disse o meio-vampiro. — Você pode abusar de
mim o quanto quiser. É para isso que servem os amigos. Mas, Tess? Você
tem que aceitar que talvez essa Estelle seja um beco sem saída.
Encontrei seu olhar.
— Não posso. É o único nome que eu tenho. — Recostei-me em minha
cadeira, com a lombar latejando por causa da dormência que sentia ao ficar
sentado a maior parte do dia e da noite. — Não tenho mais nada para conti‐
nuar... estou ficando sem ideias... e estou ficando sem tempo.
A verdade é que eu não queria admitir que Ronin pudesse estar certo.
Porque se ele estivesse, significava que tudo isso, todo esse trabalho duro,
tinha sido em vão. Se Estelle Watch era um beco sem saída, quem havia en‐
venenado Bernard?
— Estelle Watch — recitou Iris, como se estivesse lendo minha mente,
e eu olhei para ela e a vi jogar um pequeno pedaço de papel com letras de
caneta azul em seu caldeirão pela quinta vez. Ela estava em seu feitiço de
localização das Trevas há horas. Com apenas um nome e nada tangível - co‐
mo a escova de dentes da pessoa, uma peça de roupa, até mesmo algo que
fosse de propriedade de uma pessoa, desde que tivesse o DNA dela - as
chances de funcionar eram mínimas. Eram praticamente inexistentes.
E ainda havia o artefato que você precisava usar como uma espécie de
bússola para indicar o caminho. Ou um mapa, como o que eu havia usado
para encontrar Marcus. Ainda assim, tudo isso era inútil se você não tivesse
uma parte da aura da pessoa em questão. Mas eu estava apostando em um
milagre e nas habilidades de Iris como bruxa das trevas.
Iris inclinou-se sobre a panela e cantou:
— Potestatem daemonium super ortum — canalizando a energia do pe‐
queno demônio gremlin que ela havia convocado. Será que eu esqueci de
mencionar isso?
Gigi, o nome do demônio, era do tamanho de um gato, com pelo laranja
brilhante e grandes orelhas de morcego, pequenos chifres roxos, uma cauda
curta, uma boca cheia de dentes de peixe e olhos negros anormalmente
grandes. Seus quatro membros terminavam com cinco dedos com garras.
Ela estava presa em um círculo de invocação, seu carcereiro, no meio da
ilha da cozinha. Ela estava com o rosto franzido. Naquele momento, Gigi
estava nos fazendo um sinal de reprovação com as duas mãos.
Assim que o feitiço de Iris fosse concluído, Gigi encontraria Estelle
Watch, como um cão de busca e resgate, nosso GPS demoníaco.
Iris continuou a entoar cânticos, e o pelo de Gigi ficou amarelo e depois
branco. O rosto do demônio estava enrugado de ódio, e tive a sensação de
que Iris havia invocado os poderes de Gigi mais de uma vez.
Gigi me viu olhando para ele e me deu as costas novamente. Eu estava
começando a gostar desse pequeno demônio.
As luzes da cozinha se apagaram e se acenderam novamente à medida
que a energia se espalhava pela sala. Os olhos de Gigi estavam fechados e
seu pelo mudava constantemente de laranja para branco e depois para azul.
— Veni ad nos et apud quem vocant! Veni ad nos, et habitatores hic! —
gritou Iris.
Senti a energia do poder de Gigi fluir em torno de nós como uma brisa,
espalhando-se pela cozinha, sobre as panelas, os livros, as pilhas de papel e
em cada azulejo e armário até que toda a área estivesse imersa no feitiço
junto comigo e com Ronin.
E então a energia se estabilizou. Olhei para a Gigi. Seu pelo estava de
volta à cor laranja. — Ha'ak du rig'titu — ela sibilou em uma língua gutural
que eu nunca tinha ouvido antes. E então, é claro, ela deu um fora na Iris.
Mas Iris nunca olhou para o pequeno demônio. Seus olhos estavam vol‐
tados para o caldeirão.
— E? — perguntei, não muito esperançosa com a expressão de derrota
no rosto de Iris.
Iris olhou para mim, com os olhos injetados de sangue.
— Não se preocupe. Eu vou fazer isso de novo.
Gigi soltou um grito.
— Bruxa! Ódio! Bruxa! Ódio! — gritou ela, debatendo-se em seu círcu‐
lo.
Eu levantei uma sobrancelha.
— Ela fala nossa língua! — Gigi virou a cabeça para mim e me deu um
olhar de reprovação. — Acho que você deveria deixá-la ir, Iris. Isso não es‐
tá funcionando. E você só está deixando-a mais irritada.
Eu não tinha certeza, mas tinha a sensação de que o poder que a Iris es‐
tava emprestando estava na verdade machucando o pequeno demônio. Eu
não gostava disso.
— Não — disse Iris, fungando e enxugando os olhos rapidamente. —
Não estou desistindo. Você mesma disse. Não podemos desistir. Desistir é
desistir da Ruth.
— Não estou desistindo — eu disse a ela. — Mas acho que o Ronin tem
razão. — Voltei meu olhar para o meio-vampiro que olhava para Iris com
uma expressão de dor, mas a afeição em seus olhos por ela era inegável. Eu
não conseguia acreditar nas palavras que estavam saindo da minha boca. —
Talvez a Estelle Watch seja um beco sem saída. Talvez estejamos procuran‐
do na direção errada. — Talvez você nunca tenha sido Estelle...
— Então, para qual direção devemos olhar? — perguntou Iris, frustrada.
Eu não a culpava. Eu também estava frustrada. Cansada e irritada, eu me
sentia como Gigi, presa em alguma barreira sobrenatural e incapaz de se li‐
bertar e salvar Ruth.
A derrota não era uma opção. A derrota era uma sentença de morte para
Ruth. Ela não sobreviveria à prisão das bruxas - não em sua idade.
Um assobio chamou minha atenção de volta para Gigi. O demônio esta‐
va curvado, mostrando o traseiro para Iris e se movendo para cima e para
baixo de uma maneira muito rude.
— A Gigi está girando? — riu Ronin.
— Sim, mas não acho que seja essa a intenção dela.
Em um movimento rápido, Iris foi até a ilha da cozinha, murmurou al‐
gumas palavras em latim e, com um estalo de ar deslocado, Gigi desapare‐
ceu.
Não antes de ouvi-la rir e ter um vislumbre dela nos repreendendo.
Se eu não estivesse tão deprimida, teria batido palmas. Eu ia sentir falta
daquele demônio bravo. Talvez eu a chamasse algum dia.
O silêncio caiu na cozinha. Não precisei olhar para meus amigos para
sentir o desespero deles. Tomei um gole de água do meu copo, forçando-a a
descer, pois ela quase se transformou em ácido no meu estômago. Eu não ti‐
nha comido nada desde o pãozinho de manhã. Não conseguia engolir nada.
A água era a única coisa que não ameaçava voltar para cima.
Meu estômago se contraiu e passei a mão no rosto. Tínhamos menos de
onze minutos para ajudar Ruth e não tínhamos absolutamente nada.
Estava tudo acabado. Eu havia fracassado.
O fracasso como Merlin não me incomodava. Eu poderia sobreviver,
continuar vivendo sem ser uma Merlin. Mas eu havia falhado com Ruth...
Ronin fechou o notebook.
— E agora? Temos cerca de dez minutos. O que você quer que faça‐
mos?
A faixa de tensão em volta do meu peito se apertou, e era difícil apenas
respirar. Sem mais nada para continuar, estava tudo acabado.
A culpa se misturou ao medo, e eu suspirei, tremendo por dentro, en‐
quanto um sentimento de melancolia se apoderava de mim.
— Nós oramos à deusa por um milagre...
A porta dos fundos da cozinha se abriu.
— É a Patricia Townsend! — Marcus entrou correndo na cozinha, com
o rosto corado. A neve salpicava seus cabelos escuros e suas botas deixa‐
vam um rastro de neve molhada e suja no piso de madeira.
Eu me levantei.
— Quando você pede um milagre à deusa...
— Hã? — Marcus pareceu confuso por um momento. — A deusa? —
As pegadas de suas botas molhadas de neve desapareceram do chão em var‐
reduras, como se um esfregão invisível tivesse acabado de limpá-las.
— Escute — disse o chefe, com um sorriso estampado em seu belo ros‐
to quando ele se virou para mim. — É Patricia Townsend.
— Esta é Patricia Townsend, a nova garota que você está comendo? —
perguntou Ronin. — Quem diabos é Patricia Townsend?
Dei de ombros. — Não faço ideia. — Olhei para Marcus, tentada a tirar
a neve de seu cabelo fantástico. — Esse nome deve significar alguma coisa?
Marcus ofegou ao ficar de pé, com um sorriso empolgado estampado no
rosto. — Patricia Townsend é Estelle Watch.
Meu queixo caiu no chão em volta dos meus pés. — Puxa vida. Ela mu‐
dou de nome? — Meu mundo mudou com um giro nauseante à medida que
as coisas se somavam.
— Sim — disse Marcus. — É por isso que nunca consegui encontrá-la.
Mas eu sabia que já tinha ouvido esse nome antes... e então me ocorreu.
Lembrei-me de que, há alguns anos, houve uma confusão com a escritura
de venda do prédio que hoje é a Bernard's Bakery. Gilbert estava agindo de
uma forma que você sabe como ele é.
— Louco? Delirando? Como uma criança de cinco anos? — Eu disse,
meu coração batendo forte de emoção. — E?
— Ele me procurou para pedir minha opinião — continuou o chefe. —
Preocupado que isso pudesse ser um problema. Porque ela havia assinado
um nome diferente do que constava em seu documento de identidade. Ela
assinou seu nome verdadeiro - Estelle Watch - por engano. Ela o riscou e
colocou Patricia Townsend.
— Quem é Patricia Townsend? — perguntei.
Marcus soltou um suspiro.
— Patricia Townsend é a esposa de Bernard Townsend. A esposa do pa‐
deiro.
— Santo caldeirão fervente! — Gritei, segurando minha cabeça como se
meu cérebro estivesse prestes a explodir. — Ela envenenou o marido? Será
que ela pode estar tão doente assim?
— Aparentemente — respondeu Marcus. — Ela também é uma bruxa.
Meu coração estava prestes a explodir como uma granada. Era isso. Nós
tínhamos descoberto. E nem um pouco cedo demais.
Olhei para o meu celular. 11:51 p.m.
Droga. — Onde ela está agora? Você sabe onde ela está? — Não impor‐
tava se ela estava na Austrália agora. Com as linhas ley... ela estava frita.
Marcus acenou com a cabeça.
— Provavelmente você está dormindo na cama dela. Em Hollow Cove
— ele acrescentou com um sorriso conhecedor. — 96 Mystic Road, na es‐
quina da Charms Avenue. A casa é verde-sálvia com...
— Uma porta vermelha — respondi. — Eu conheço a casa. — Acenei
com a cabeça.
— Você vai dobrar uma linha ley, não vai? — perguntou Iris, com a em‐
polgação estampada no rosto enquanto se movia de um pé para o outro.
Meu talento recém-descoberto estava se mostrando muito útil no mo‐
mento. Não me importava que pudesse ser uma anomalia - que eu pudesse
ser a anomalia. Eu precisava dele.
Embora eu tenha me perguntado sobre aquele homem que eu tinha visto
na linha ley no labirinto do castelo. Será que ele apareceria novamente? Eu
não podia me preocupar com ele agora.
Eu tinha uma bunda para chutar.
Eu lhe mostrei um sorriso, meu coração martelando.
— Estou indo. Estarei lá em alguns segundos. Imagine a surpresa dela
quando eu aparecer magicamente em seu quarto com minha bota pressiona‐
da em sua garganta.
Agora que eu sabia que podia dobrar linhas ley à vontade, mover uma
para a casa dela seria fácil. Eu me movimentei e peguei minha jaqueta no
cabideiro na parede.
Marcus estava ao meu lado em um instante.
— Você não vai sozinha. Ela é uma assassina. E uma bruxa. Ela matou
seu marido. Ela é capaz de qualquer coisa.
Eu sorri maliciosamente.
— Eu também. Ela mexeu com minha família. É minha hora de retribuir
o favor.
Iris soltou um grito de alegria e bateu palmas.
— Poderíamos drenar seu sangue, ferver seus ossos e dar o resto para o
demônio Baluba. Estou em dívida com ele.
Sim... Não vai acontecer.
— Eu tenho uma ideia melhor — eu disse a eles. Como levá-la para o
castelo da Greta.
Mas eu precisava de uma confissão. E eu tinha exatamente a coisa certa
para fazê-la confessar.
— E quanto às suas tias? — perguntou Ronin.
Balancei a cabeça.
— Elas não estão em condições de vir comigo. — Meu olhar se voltou
para Iris. — Você fica com elas? Você cuida delas até eu voltar?
Eu estava preocupada que Ruth pudesse fazer algo drástico.
— Claro que sim. — Iris apertou meu braço. — Elas também são minha
família agora.
Meu peito se encheu de gratidão.
— Obrigada.
— Você vai fazer o que tem que fazer — disse Ronin ao se aproximar
da mesa. — Não se preocupe com suas tias. Nós cuidaremos delas.
— Obrigado, Ronin.
— Dê uma surra nela, Tessa — disse Iris.
Passei os braços pela jaqueta e enrolei a bolsa na cabeça e no ombro.
— Você pode apostar. E algumas outras coisas.
— Eu vou com você — anunciou Marcus, o que era mais uma ordem do
que um pedido, seus olhos fixos nos meus. Ele estava tão sexy e incrivel‐
mente gostoso agora, de pé, com os músculos do peito duros mal escondi‐
dos sob a camisa. Ele estava de pé na cozinha, com os punhos nos quadris,
como um guerreiro do poder. Se eu não estivesse tão excitada no momento,
poderia ter rido.
Eu havia levado Willis comigo em uma linha ley, mas ele era um bruxo,
com um pouco do mesmo DNA de demônio em suas veias que o meu. Mas
Marcus era um wereape, um metamorfo, e eu não queria correr o risco de
machucá-lo ou, pior ainda, matá-lo se ele entrasse em uma linha.
Mas ele era um wereape e magnífico nisso.
— Quão rápido você consegue correr?
Marcus me deu um sorriso que quase me fez arrancar suas roupas.
— Muito rápido.
Capítulo 28

V oei na linha ley como uma bala em alta velocidade. Tão rápido que mal
registrei meu corpo deixando a Casa Davenport enquanto as imagens
passavam rapidamente, borradas e quase irreconhecíveis.
No entanto, vi um grande gorila de costas prateadas rasgando a rua en‐
quanto empurrava seu corpo para frente com suas pernas musculosas em
uma velocidade impossível. Ele era magnífico.
Pisquei os olhos e ele havia desaparecido. Não ele. Eu. Porque, bem, se‐
jamos francos, minha linha ley era muito mais rápida. Como dirigir um Ma‐
serati ao lado de uma scooter.
Inclinando-me um pouco para a frente, eu ri - ou talvez tenha uivado,
não tinha certeza -, deixando-o sair de mim enquanto minha audição era
agredida pelo vento forte. Foi estimulante. Eu me senti viva, tão viva, como
se estivesse sentindo cada nervo do meu corpo pela primeira vez.
Percorrer linhas ley era ao mesmo tempo emocionante e aterrorizante.
Mas dobrá-las à minha vontade era, bem, isso era mágico.
Imaginei que tinha cerca de nove minutos para pegar Estelle ou Patricia
- seja lá qual fosse o nome dela - arrastá-la comigo em uma linha ley até o
Castelo de Montevalley e fazê-la confessar o assassinato do marido na fren‐
te de Greta.
É fácil, não é?
Nós veríamos.
As imagens ficaram borradas enquanto eu avançava rapidamente pela li‐
nha ley em um choro de vento e cores. Movimentar-me tão rápido era esti‐
mulante. Eu me senti como se fosse a supermulher, uma nova super-heroí‐
na. Eu coloquei meu corpo em uma pose de super-herói voando? Você pode
apostar que sim. Tive de fechar a boca para não gritar de alegria. A última
coisa que eu queria era alertar Estelle.
Eu estava ficando muito boa em dobrar as linhas. Eu era uma verdadeira
profissional.
Tome isso, Greta.
A energia corria por minha cabeça, meu corpo, meus nervos, por toda
parte. Casas, ruas, estradas e árvores passavam por mim como se eu estives‐
se em um trem em alta velocidade - mais como se eu estivesse pilotando um
jato. Um jato de linha ley.
Concentrada, eu queria que a linha ley fosse mais lenta, para que eu pu‐
desse encontrar a casa de Estelle. Não queria perdê-la nessa velocidade.
Um momento depois, meus olhos encontraram um pequeno chalé cor de
sálvia com uma porta vermelha, situado pacificamente entre dois enormes
carvalhos sem folhas. Janelas pretas olhavam para mim. Esforçando-me,
dobrei minha linha ley para atravessar a casa dela até o segundo andar, pas‐
sando de quarto em quarto até encontrar o que estava procurando.
Uma mulher, uma bruxa que aparentava ter uns setenta e poucos anos,
dormia confortavelmente em uma grande cama king-size sob um edredom
de lavanda. Ela estava deitada no meio da cama, com os membros estendi‐
dos como uma rainha, como se nada pudesse tocá-la. Os roncos fracos me
disseram que ela estava dormindo.
Você é minha.
Avancei, medindo a distância, pronta para saltar da linha ley e entrar em
seu quarto.
Com passos firmes, eu me puxei para fora.
E soltei um uivo de dor enquanto a agonia se estendia dentro de mim,
forçada até o ponto de ruptura.
A magia da linha ley foi cortada.
Um fio de dor em mim estalou como um galho quebrado. Que droga,
estava doendo. Minha respiração me escapou quando fui jogada para trás. A
escuridão se agitou, sugando a energia de mim e afastando-a ainda mais. A
magia da linha ley saiu de mim em uma enxurrada de dor, até que não res‐
tou nada além de um latejar surdo.
Bati no chão sólido com um baque.
— Ai — eu engasguei. — De onde veio isso?
Piscando com as lágrimas, respirei um pouco de ar frio. Ar frio? Olhei
em volta. Eu estava do lado de fora, deitada de lado no jardim da frente,
com o rosto meio enterrado na neve. Levantei-me, com a cabeça latejando
devido à repentina queda da linha ley. —
— Definitivamente, não estou dentro do quarto.
Bem, isso não foi tão fácil quanto eu pensava.
Pisquei, esfregando a cabeça, e meus olhos encontraram o problema.
Em sua porta vermelha da frente, pouco visível sob a luz da varanda, havia
um símbolo em forma de diamante com três linhas onduladas desenhadas
sobre ele.
Uma ala. Eu não era um conhecedor de sentinelas, mas a reconheci de
meus estudos. Era uma proteção contra invasão, uma proteção contra ma‐
gia, do tipo "não entrarás com o uso de magia".
Ok, então ela não era tão estúpida assim.
Mas eu também não.
Levantei a cabeça e respirei fundo, com minhas costelas protestando co‐
mo se alguém tivesse pegado um taco de madeira e jogado raquete no meu
peito. Olhei por cima do ombro para a rua escura. Marcus ainda não estava
aqui, mas eu não podia perder mais tempo esperando por ele.
Peguei meu celular e dei uma olhada na tela. 11:53 p.m.
Ela poderia ter colocado uma proteção contra o uso de magia para entrar
em sua casa, mas o idiota se esqueceu de acrescentar o uso de qualquer
meio físico para entrar.
— Vamos fazer isso.
Fui até as estacas de remoção de neve da entrada da garagem, retirei
uma da terra dura e fria e fui até a porta da frente.
Segurando a estaca de remoção de neve como uma lança, eu a apontei
para a janela de vidro no meio da porta. É claro que, quando eu quebrasse o
vidro, ela acordaria e eu teria apenas alguns segundos antes que ela reagis‐
se, possivelmente com um feitiço.
Eu precisava fazer cada segundo valer a pena.
Prendendo a respiração, levantei a estaca.
— Deixe-me fazer isso — disse a voz de Marcus atrás de mim, fazendo-
me estremecer.
Eu me virei e engasguei.
Lá estava Marcus, de pé na varanda da frente, ao meu lado, com o vapor
saindo de seu corpo como uma batata recém-assada. E sim. Ele estava com
a bunda nua.
Ele estava ali, sem vergonha, dourado e musculoso como uma estátua
romana. Uma estátua tão bonita, tão bonita.
— Legal — eu disse antes que pudesse me conter.
Marcus sorriu.
— Eu sei.
Eu ri.
— Está bem — eu disse e me virei. — Você vai me ajudar com isso ou
vai ficar aí parado, todo nu e musculoso... e eu mencionei nu?
— Eu cuido disso. — Marcus deu um passo ao meu lado, completamen‐
te despreocupado com sua falta de roupas, o que eu não podia reclamar. Ele
olhou para mim e disse:
— Prepare-se. Ela vai ficar furiosa.
Soltei um suspiro.
— Pronto.
Eu sabia que havia um por cento de chance de Estelle não ter envenena‐
do o marido e que estávamos prestes a cometer um crime, mas eu estava me
agarrando aos noventa e nove por cento. Eu estava certa. Eu tinha que estar.
Marcus se pôs em movimento e chutou a porta da frente com um forte
golpe. A porta da frente de Estelle se abriu e bateu em uma parede lateral
adjacente com um barulho estrondoso. Sim, Estelle teria ouvido isso. A ci‐
dade inteira também teria ouvido.
Mas eu já estava me movendo.
Subi as escadas, duas de cada vez, ignorando a dor nas costelas, na ca‐
beça, nas pernas, em todos os lugares. Eu poderia me preocupar com a dor
amanhã. Os passos pesados de Marcus bateram logo atrás de mim.
Ofegante, cheguei ao patamar. Eu tinha visto onde ela estava, então fui
para o quarto principal, do lado oposto da escada.
A porta estava aberta e eu entrei.
Só que Estelle não estava mais deitada em sua cama. Na verdade, ela es‐
tava de pé ao lado dela, não curvada pela idade, mas ereta e forte. Seus lon‐
gos cabelos brancos flutuavam ao seu redor em uma brisa invisível. Ela me
olhava com olhos cor de avelã brilhantes e cheios de ódio em um rosto en‐
velhecido, mas rosado. Ela usava uma camisola longa e florida que chegava
até os dedos dos pés e uma expressão assassina em seu rosto enrugado.
Com os braços estendidos diante dela, uma maldição sombria saiu de seus
lábios.
— Abaixe-se! — Gritei e me joguei no chão, agarrando o braço de Mar‐
cus e fazendo-o cair comigo, exatamente quando o feitiço que Estelle lan‐
çou contra nós atingiu o batente da porta.
A estrutura explodiu em uma chuva de lascas de madeira, poeira e
drywall. Uma mancha preta fumegante cobriu o local onde ela estava e par‐
te da parede, e um cheiro azedo e amargo encheu o ar.
Uma maldição das trevas, uma maldição mortal.
Ela tinha acabado de tentar nos matar. Sim, eu era um estranho para ela,
mas ela conhecia o Marcus. Sim, ela era culpada.
A velhinha tinha sérias habilidades mágicas. Mas eu também tinha.
Irritada, reuni minha vontade, rolei de joelhos, puxei os elementos ao
meu redor e gritei: — Stagno!
Uma força cinética atingiu a bruxa no peito. Ela cambaleou para trás,
seus olhos se arregalaram de medo e então ela se enrijeceu como uma está‐
tua e tombou.
— Bem, então — levantei-me e limpei os cabelos dos olhos. — Você
tem sido uma vovozinha travessa. Não foi? — Falei, enquanto me aproxi‐
mava da bruxa caída. Seu rosto se contraiu em fúria, mas nada mais se mo‐
veu.
— Impressionante — disse Marcus ao ficar ao meu lado, ainda nu. Ten‐
tei manter meus olhos na bruxa, mas era quase impossível com ele naquele
estado.
— Obrigada. É uma nova palavra de poder que aprendi recentemente.
Ela imobiliza seu inimigo. Apenas o suficiente para impedi-lo de tentar ma‐
tar você.
— Ela pode falar? — Marcus observou a velha bruxa com curiosidade.
— Ah, sim. Ela pode falar.
Mentira total, já que eu não fazia ideia, pois era a primeira vez que eu
tentava. Bem, eu ia descobrir.
— Oi, Patricia, ou melhor, Estelle — eu disse, vendo seus olhos se arre‐
galarem ao mencionar seu nome verdadeiro. — Sim, eu sei sobre isso. Tam‐
bém sei que você matou seu marido e deixou a Ruth levar a culpa por isso.
Você achou que conseguiria se safar. Você achou que se safaria, não foi?
Bem, estou aqui para lhe dizer que você não conseguiu.
Ela parecia mais uma avó idosa e simpática que passava o tempo assan‐
do biscoitos para os netos do que uma viúva negra.
Esperei que ela falasse, mas ela não disse nada.
— A voz dela não funciona — disse Marcus. — Talvez seu feitiço a te‐
nha atingido com muita força.
Meu olhar voltou para o rosto dela. Ela estava parecendo bastante con‐
vencida para uma estátua de bruxa. Ela tinha a aparência de alguém que ha‐
via feito algo terrível e sabia que tinha se safado.
Verifiquei meu telefone e xinguei.
— Que horas são? — perguntou Marcus.
Minha tensão fez com que todos os meus músculos se enrijecessem.
— São 23h55. Tenho cinco minutos para ela falar. Parece que vou ter
que torturá-la.
— Você pode me torturar o quanto quiser — disse Estelle, com a voz
rouca e dura.
— Você não tem provas de que eu matei meu marido.
— Ela fala. — Olhei para ela, sorrindo. — Tenho provas de que você
comprou a beladona negra.
Estelle bufou.
— Isso não prova nada.
— Talvez não. Mas uma confissão sim. E você confessará o assassinato
dele. Porque eu vou obrigar você.
— Não vou. — Ela me deu um sorriso de desprezo. — Não tenho medo
de você. Você está vendo. Eu sou velha. Não tenho medo da dor. Isso vem
com a idade. Então, vá em frente. Dê o seu pior.
Esforcei-me para resistir a chutá-la. Eu tinha cinco minutos. Eu nunca
havia torturado ninguém antes, mas tinha certeza de que demorava muito
mais do que cinco minutos. E, até lá, seria tarde demais.
Marcus se inclinou sobre você.
— O que você quer fazer? Não temos muito tempo.
A preocupação em sua voz só fez minha tensão aumentar ainda mais.
Meus pensamentos estavam confusos e o pânico aumentou, dificultando
a concentração. Cinco minutos. O que eu poderia fazer em menos de cinco
minutos?
— Não, não temos. — Algo me ocorreu. — Mas se ela não falar comi‐
go, sei quem vai fazê-la falar.
O rosto do chefe se enrugou em uma careta.
— Sério? Quem?
— Tenho uma ideia — disse eu, com as veias cheias de adrenalina.
Olhei para o chefe.
— Espere por mim na Casa Davenport. Vejo você mais tarde.
Marcus me deu um sorriso.
— Estarei esperando. — Ele me encarou com aqueles olhos tão bonitos.
Era tão, tão fácil ficar aqui e me perder neles.
Mas eu tinha outros planos.
Agarrando Estelle pelo pé, eu a puxei para fora do quarto, desci as esca‐
das (você pode apostar que sim) e saí pela porta da frente.
— Você vai pagar por isso! — ela sibilou quando eu a deixei cair na ne‐
ve, assim que Marcus se juntou a nós no jardim da frente.
— Claro, como você quiser.
Com minha vontade, estendi a mão para a linha ley mais próxima. Ela
respondeu. Eu a puxei para mim, dobrando-a com minha mente, fazendo-a
avançar até que ela estivesse bem ali comigo.
Uma súbita rajada de vento estremeceu ao nosso redor, liberando um
fluxo de energias que pulsava no ar, o poder da linha ley.
E eu a segurei, uma tempestade gritante de poder. Eu.
Com um último olhar para Marcus, eu me abaixei, agarrei a velha bruxa
pela frente de sua camisola e a arrastei para se levantar.
— Vamos, vovó.
E então pulei na linha ley, levando Estelle comigo.
Capítulo 29

ocê poderia ter me matado! — gritou Estelle.


—V Seu rosto empalideceu ou ficou com um tom de verde? Difí‐
cil dizer com a luz fraca, pois ela correu para um grande vaso de
flores de seringueira e vomitou. A influência da minha palavra de poder so‐
bre Estelle havia desaparecido no momento em que entramos na linha ley.
Interessante.
— Não foi nada — pensei. Acho que também ri um pouco. — E eu que
achava que você era feito de material mais forte.
Você é uma bruxa assassina.
Estelle soltou outro grito.
— Estou morrendo. Você me matou. Minhas entranhas estão pegando
fogo! Faça isso parar! Faça! — ela vomitou novamente.
Eu revirei os olhos.
— Você está exagerando. Eu adoro pular as linhas. É como dirigir um
carro muito rápido em uma estrada muito estreita perto de um penhasco.
Um pequeno contratempo e, opa, lá vai você. Você desce, desce, desce, o
penhasco. É isso que torna tudo tão emocionante. Você não acha?"
Ela vomitou novamente.
Mantendo Estelle à distância de um braço e de um feitiço, olhei ao re‐
dor. A sala comum do Castelo de Montevalley era equipada com sofás e ca‐
deiras confortáveis, dois deles em um canto com estantes embutidas e uma
grande lareira de pedra, que não estava acesa no momento. Os pisos de ma‐
deira dura eram interrompidos por tapetes persas ocasionais que provavel‐
mente custavam mais do que a entrada de uma casa.
O cômodo era escuro, sombrio e perdido na sombra. Algumas luminári‐
as de chão eram a única luz, o que não era muito, mas o suficiente para que
você não esbarrasse em uma cadeira ou na parede.
Mas eu não estava aqui para discutir a decoração, apesar de adorável.
— Greta! — Eu gritei, minha voz alta sobre a contínua falha estomacal
de Estelle.
— Greta! Estou aqui. Olá?
Esperei, mas apenas o silêncio me recebeu. Droga. Será que cheguei tar‐
de demais?
— Eu odeio você — gritou Estelle enquanto se curvava e arremessava
mais uma vez.
— Digo o mesmo para você — falei. — Será que você já pode parar?
Quanto alimento você consegue carregar com seu corpo minúsculo?
Estelle fez um gesto rude com o dedo, abaixou-se e vomitou novamente.
Meu peito ficou apertado. Olhei para o meu celular. 11:57 p.m.
Porcaria. Que porcaria. Que porcaria.
— Greta! — Eu gritei. — Eu a peguei. Resolvi meu caso. — Tecnica‐
mente não, não sem uma confissão, mas quase. — Onde diabos você está?
Você disse que eu tinha até a meia-noite.
Eu não tinha ideia de onde a velha bruxa morava. Mas ela havia dito a
todos que precisávamos levar nossos casos até ela. Achei que isso significa‐
va o castelo. Agora, vendo-o tão sombrio e silencioso, eu não tinha mais
tanta certeza.
11:58 p.m.
Eu me senti mal. Eu estava prestes a me juntar a Estelle na brigada do
vômito.
Cheguei tarde demais...
— Olá, Tessa — disse uma voz, e Greta saiu das sombras da sala co‐
mum. Ela estava vestida com uma saia longa preta e uma blusa branca.
Com sapatos baixos, parecia que estava indo para alguma reunião importan‐
te.
Greta estalou os dedos e um fogo furioso ganhou vida na enorme larei‐
ra, iluminando o local, bem como algumas luminárias de mesa. De repente,
a sala ficou coberta por um brilho dourado.
Agarrei Estelle pela parte de trás de sua camisola e a joguei para fora do
vaso de flores e ao ar livre. Certo, um pouco duro, mas essa bruxa havia
matado o marido e deixado Ruth levar a culpa por isso.
— Esta é Estelle Watch. Ela mudou seu nome para Patricia Townsend.
É por isso que não conseguimos encontrá-la. Ela é a esposa de Bernard
Townsend. E ela o matou. Envenenou-o e deixou a Ruth levar a culpa. —
Falei rápido, sem saber se meu tempo havia acabado. Continuei falando. —
Ela também tentou me matar esta noite, mas não conseguiu.
— Respirei fundo. — Ela é a pessoa certa."
Greta olhou para Estelle enquanto a outra bruxa continuava a vomitar,
agora por todo o chão limpo e polido, com alguns respingos no tapete caro.
— Espero que você tenha um bom limpador de carpete — eu disse.
Greta olhou para a outra bruxa velha com um olhar frio.
— Isso é verdade? Você matou seu marido, Bernard Townsend?
Estelle levantou a cabeça para Greta.
— Por favor. Faça isso parar. Isso está me matando.
— Confesse seu crime e eu farei com que pare — disse Greta.
Estelle vomitou mais uma vez.
— Sim — ela fez uma careta, e fiquei surpresa com a facilidade com
que isso saiu. — Eu fiz isso.
— Por quê? — Não consegui me conter.
Seus olhos me encontraram.
— Porque ele me traiu com Viola Biddle. Aquela prostituta. Então, eu o
envenenei
— declarou ela com orgulho.
Balancei a cabeça.
— Você poderia simplesmente ter pedido o divórcio, sua estúpida, estú‐
pida, vadia.
Estelle estremeceu de dor ao arremessar novamente.
— Você prometeu — ela apontou um dedo trêmulo para Greta. — Faça
isso parar. Estou morrendo.
Greta olhou para mim.
— Percebi que você... pulou uma linha ley para chegar aqui.
— Sim.
— E você a moveu para este mesmo lugar?
Acenei com a cabeça.
— Sim.
O rosto de Greta estava ilegível enquanto ela olhava para Estelle, que
agora estava tendo convulsões.
— Linhas Ley. Algumas bruxas simplesmente não conseguem suportá-
las. — Ela moveu a mão na direção de Estelle e disse: — Utal dimlivic.
Senti uma onda de poder passar por mim. Os olhos de Estelle se arrega‐
laram e, em seguida, rolaram para a parte de trás de sua cabeça enquanto o
corpo da bruxa ficava mole. Por um segundo, pensei que ela estivesse mor‐
ta, mas o ronco pesado dizia o contrário.
Mas eu ainda não sabia.
— Será que passei? — Eu sentia que estava prestes a me jogar. — Será
que consegui?
E, pela primeira vez, Greta sorriu. Ela sorriu para mim.
— Obrigada, Tessa. Se alguém poderia ter ajudado Ruth, eu sabia que
seria você. Eu sabia que você poderia fazer isso. Parabéns.
— O quê? — Eu disse estupidamente. Será que isso significava que ela
se importava com minha tia Ruth? — O que vai acontecer com a Ruth?
Greta não perdeu o sorriso ao dizer:
— Ruth ficará bem. — Ela puxou a frente de seu blazer. — Estou indo
falar com o Conselho Cinza para que todas as acusações sejam retiradas.
Também vou visitar a Ruth.
Meus olhos arderam instantaneamente. Não pude evitar. As lágrimas co‐
meçaram e não pararam até que eu estava praticamente soluçando de ale‐
gria.
— Então, acabou? Acabou mesmo? Ela vai ficar bem? — Perguntei,
tremendo e sentindo o gosto do sal das minhas lágrimas na boca.
Os olhos escuros de Greta encontraram os meus.
— Já passou. Ela vai ficar bem.
Meus joelhos se dobraram e quase caí no chão, mas ele estava coberto
de vômito de Estelle, então optei por ficar de pé.
Ruth, minha Ruth, ia ficar bem. Era o melhor resultado possível. Tive
vontade de dar cambalhotas.
— Isso é para você. — Das dobras de seu blazer, Greta retirou um peda‐
ço de pergaminho enrolado e preso por uma fita vermelha.
Com a pulsação batendo forte em meus ouvidos, peguei a carta e arran‐
quei a fita. Olhei para um pedaço de papel carimbado, com aparência de do‐
cumento legal. Nele estava escrito:
Os abaixo assinados conferem este
LICENÇA MERLIN
Para: Tessa Davenport
Por concluir com êxito os três Julgamentos de Bruxas, conforme previsto e
prescrito pelos oficiais abaixo assinados da Divisão de Treinamento dos
Julgamentos de Bruxas de Merlin.
Assinado pela Diretora do Curso: Greta Trickle

Eu sorri. Eu era uma Merlin novamente.


Capítulo 30

S aí daTilireinhaasleybotas
e aterrissei no corredor da Casa Davenport.
e deixei os dedos dos pés, meus recém-reeleitos dedos
Merlin, sentirem o calor do piso de madeira. Foi uma sensação gloriosa.
— Ruth! — Gritei enquanto corria para a cozinha. — Dolores? Be‐
verly? Iris? Onde está todo mundo? — Chamei com entusiasmo em minha
voz.
No andar de cima. Sim, é claro. Era um pouco depois da meia-noite.
Sorrindo, dei meia-volta e entrei no corredor. Subi correndo para o se‐
gundo andar e entrei no quarto de Ruth.
Ela estava vazia.
O mesmo aconteceu com Beverly, Dolores e Iris.
A confusão rapidamente substituiu minha bolha de euforia. Onde estava
minha família?
— Eles foram ao Pub Bruxa Má e Belo Diabo para comemorar — disse
uma voz familiar.
Dei um pulo de surpresa, pensando que era apenas eu e meus pensamen‐
tos para me fazer companhia. Virei-me e vi Marcus parado na porta do meu
quarto, vestindo apenas meu roupão de banho.
Minhas sobrancelhas se ergueram.
— Ah é? Mas...
— Ruth recebeu um telefonema — ele me informou, e eu me lembrei de
Greta dizendo o mesmo. Ela deve ter ligado para Ruth assim que saiu da sa‐
la comum. —Eu tinha acabado de chegar aqui...
— Nu — eu disse.
—Nu — respondeu ele, ainda sem pudor. — Dolores me deu um casa‐
co, mas gostei mais do seu roupão — acrescentou ele com um sorriso. —
Tem o seu cheiro.
Não faço ideia do motivo, mas esse comentário realmente me excitou.
Dei um passo em direção a ele.
— E então?
Marcus se mexeu.
—Então — disse ele, olhando para mim através de seus cílios grossos e
pretos. — Eles foram para lá. Você os perdeu por pouco.
Exalei, deixando sair toda a adrenalina de antes.
— Bem. Não tem problema. Depois de tudo isso, eles merecem se di‐
vertir um pouco.
— Você conseguiu, Tessa. — Marcus estendeu a mão e me puxou para
ele. — Você salvou a Ruth.
— Você ajudou — respondi, olhando fixamente para seus lábios en‐
quanto uma torrente de calor fluía pelo meu âmago.
— Eu ajudei — ele ronronou, com os olhos brilhando de diversão. — O
que eu ganho com isso?
— Tenho algumas coisas em mente — respondi, enquanto arrancava o
roupão dele em um puxão rápido, revelando seu corpo nu mais uma vez, do
qual eu gostava muito.
Sim, eu estava adiantada. Culpe minhas grandes bolas femininas por is‐
so. Mas eu estava cansada de esperar pelo que eu queria. E eu queria esse
chefe sexy como um pecado.
Marcus se inclinou para frente, com seu hálito quente em minha boche‐
cha.
— Você quer dizer comemorar... assim? — disse ele e inclinou a cabeça
para me beijar.
Embora não fosse a primeira vez que nos beijávamos, o gosto dele ainda
me fazia rosnar como um animal. Seu beijo não foi gentil. Era feroz e pos‐
sessivo, e eu me derreti nele. Sua língua roçou a minha, ávida e quente, e eu
o beijei de volta com a mesma fúria, repetidas vezes. Depois me afastei e
beijei seu pescoço, mordiscando e mordendo sua orelha.
Ele gemeu, e isso fez com que meu âmago se incendiasse.
— De quanto tempo de comemoração estamos falando? —perguntou
ele ao se afastar.
Sorrindo como uma idiota, eu o empurrei de volta para o meu quarto,
brincando. Depois, tirei meu casaco e o joguei no chão.
— Estou pensando… — eu disse enquanto tirava a camisa e começava
a tirar a calça jeans. — Do tipo que dura a noite toda. — Tirei minha calça
jeans. — E que se repete... várias e várias vezes.
Tirei o sutiã, mexi na calcinha e fiquei ali, ousada em minha própria nu‐
dez. Ok, a obtenção de minha licença Merlin talvez tenha me deixado um
pouco apressada.
No entanto, de alguma forma, não me senti envergonhada. Meus olhos
se fixaram em seu desejo intenso e extremamente óbvio por mim. Nada era
mais estimulante para o ego do que ver isso. Que se dane a minha celulite.
Que se danem os meus braços flácidos. Que se danem meus seios médios.
Ele me achava gostosa.
É isso aí. Eu ia dar uma de primitiva com ele.
Os olhos de Marcus brilharam com evidente luxúria.
— Você é linda.
Decolando!
Eu o agarrei como um linebacker e nós dois rimos quando caímos na ca‐
ma em um emaranhado de membros nus.
Marcus me agarrou e me puxou para baixo dele. A sensação de seu peso
em cima de mim, o peso de um homem, provocou algo feroz em mim e eu
me apertei mais a ele. Suas mãos ásperas e calejadas deslizaram pelo meu
corpo, acariciando-me e causando-me arrepios. Eu havia me sentido tão va‐
zia por tanto tempo e agora queria estar cheia dele. Passei minhas mãos pe‐
las cordas de músculos em suas costas, puxando-o para mim.
Meus olhos se moveram para a porta aberta do meu quarto. Opa. Eu não
queria que minhas tias ou Iris nos vissem. Não porque eu estivesse envergo‐
nhada, mas porque eu não queria que aquilo parasse.
— Casa — chamei, enquanto o calor me atravessava, deixando-me hi‐
perativo e impaciente. — Feche minha porta e tranque-a, por favor.
E com um lampejo de energia, a porta do meu quarto se fechou com um
baque e ouvi o deslizar do metal quando o ferrolho se encaixou no lugar.
Pronto. Agora eu estava pronta para comemorar. Comemorar a noite to‐
da com um homem de quem eu gostava e que me achava gostosa.
E, pela primeira vez em minha vida, eu não queria que as luzes fossem
apagadas. Eu as queria acesas.
Olá, bolas femininas.
Capítulo 31

E ua me
costumava achar que acordar com o cheiro das panquecas da Ruth era
lhor coisa do mundo. Mas agora, ao ver esse homem sexy e nu com
o corpo de um deus grego dormindo ao meu lado na minha cama, bem, eu
não tinha palavras.
Talvez as panquecas da Ruth tenham ficado em um segundo lugar.
Hmmm. Talvez... não.
Marcus, o chefe de Hollow Cove, aquele homem glorioso e gentil, esta‐
va em minha cama. Na minha cama. Quase comecei a pular nela no mo‐
mento em que acordei. Estava tão animada. Mas isso pode assustá-lo. Sim.
Muito cedo para começar a mostrar a ele esse meu lado. Muito cedo.
Eu estava sentada na minha cama e, como uma stalker, estava observan‐
do-o dormir.
Graças ao caldeirão, ele não roncava. Seu belo rosto era suave e tranqui‐
lo, sua respiração era baixa e rítmica. Eu estava tão tentada a passar os de‐
dos em sua testa ou em suas deliciosas madeixas negras, mas isso certamen‐
te o acordaria.
Fiquei olhando pela janela para o céu azul brilhante da manhã. Não ha‐
via uma única nuvem à vista. Sorrindo, respirei fundo e soltei o ar pelo na‐
riz. Nada tiraria o sorriso do meu rosto hoje, nada. Eu nunca havia me senti‐
do tão feliz. Completa. E a sensação era perigosamente contagiante.
Ruth estava livre. Todas as acusações foram retiradas. Marcus estava em
minha cama.
Eu podia sentir uma música surgindo.
Eu sabia que seria um dia glorioso só pelo cheiro inebriante das famosas
panquecas de leitelho da Ruth. Fazia meses que ela não preparava o café da
manhã. Era bom tê-la de volta.
— Por que você está sorrindo?
Girei minha cabeça e olhei para Marcus, que estava acordado.
— Você está acordado? — Eu disse, meu coração acelerou um pouco
mais ao ver aqueles belos olhos cinzentos.
— Estou — disse Marcus preguiçosamente. — Você está acordada há
muito tempo?
— Não — menti. Eu estava olhando para ele dormindo há mais de uma
hora.
Olhei para seu rosto, seus lábios e quis beijá-lo.. Mas eu estava muito
ciente da coisa chamada hálito matinal. Ninguém queria isso, e ainda era
muito cedo no relacionamento para fazer isso. Eu precisava de um tempo de
qualidade com meu amigo Colgate.
Relacionamento. Era isso que estava acontecendo? Eu teria que falar
com ele sobre isso mais tarde, depois de escovar os dentes.
— Como você dormiu?
Um sorriso malicioso se espalhou por seu rosto quando ele cruzou um
braço sob a cabeça.
— Incrivelmente bem — ele ronronou, e a maneira como seus olhos se
fixaram em mim enviou uma onda de calor até o meu âmago. Que droga.
— Isso é bom. Nós... humm... comemoramos bastante ontem à noite. —
Umas três vezes. Tinha sido o melhor sexo que eu já havia feito. Mas não
havia motivo para deixá-lo saber disso.
Mas ele parecia tão bom, tão tentador, tão estupidamente lindo, que tive
que me conter para não pulá-lo aqui e agora. Caramba, estou em apuros.
Com a outra mão, Marcus estendeu o braço e pegou minha mão com a
sua.
— Você dormiu bem?
— Como um bebê. — Passei o polegar em sua mão. — Foi o melhor so‐
no que tive em semanas. — O que era verdade. — Estou tão feliz que as
acusações foram retiradas. Ruth pode voltar a ser ela mesma. Minha família
está completa novamente. Podemos finalmente voltar a viver nossas vidas.
— É ela cozinhando lá embaixo? — perguntou ele enquanto inspirava.
— Estou surpreso por ela estar acordada tão cedo. Elas chegaram em casa
por volta das quatro da manhã.
— Você as ouviu? —Perguntei, surpresa por não ter ouvido. Mas eu es‐
tava exausta. Não conseguia manter meus olhos abertos depois de nossa ter‐
ceira comemoração.
Marcus olhou para mim.
— Eu ouvi. Você estava dormindo. Você fica linda quando dorme.
Eu levantei uma sobrancelha.
— Você estava me observando dormir, chefe? Isso é muito pervertido.
Eu era tão hipócrita.
— Não pude resistir — disse ele, rindo. — Acho que isso faz de mim
um pervertido.
— Seus olhos se voltaram para meus lábios e minha respiração ficou
presa.
— Há uma coisa que eu queria perguntar a você há muito tempo — de‐
sabafei, tentando controlar meus hormônios em fúria. Eu não era uma luná‐
tica louca por sexo. Ou talvez eu fosse?
Marcus pareceu surpreso.
— Sério? O quê?
— O que diabos tem naquele frasco azul que a Ruth preparou para vo‐
cê?
Marcus soltou uma gargalhada bem alta. Se Iris e minhas outras tias já
não estivessem acordadas, isso com certeza as teria acordado.
— Era isso que você queria saber? — Perguntou ele, claramente atônito.
— E não com quantas mulheres eu já estive ou se tenho filhos no mundo?
Balancei a cabeça.
— Não. Ops, espera. Com quantas mulheres você já esteve? Deveria es‐
tar preocupada?
Eu provoquei, percebendo que não tinha nenhum sentimento de ciúme
ou insegurança. Isso é o que as mulheres fazem.
Os olhos de Marcus brilharam com diversão.
— É para minhas alergias. Tenho alergias sazonais graves e o tônico de
Ruth é a única coisa que ajuda.
— É só isso? — Eu disse, um pouco decepcionada. — Você tem aler‐
gia? Não é um supressor de feras super-duper? Algum aprimoramento de
superpoderes? Uma poção de invisibilidade?
O chefe balançou a cabeça, com um sorriso nos olhos.
— Desculpe desapontar você. É para minhas alergias — ele repetiu, rin‐
do mais, o que, é claro, me fez rir com ele.
Limpei minha garganta e tentei parecer sério.
— Enquanto faço você falar... tenho outra coisa para perguntar.
Marcus colocou os dois braços atrás da cabeça.
— Atire.
Tirei os olhos de seus abdominais e olhei para seu rosto.
— Mas você precisa prometer que não vai ficar com raiva. Você prome‐
te?
— Eu prometo — ele riu. — Você pode continuar. O que mais você
quer saber? Não tenho segredos. Sou um livro aberto.
Meus olhos percorreram seu peito dourado, meus dedos com vontade de
esfregar nele.
— Certo, então, quando entrei em seu escritório...
Marcus se levantou.
— Você invadiu meu escritório.
Ah, droga.
— Você disse que não ia ficar bravo — lembrei a ele, minha pulsação
acelerando à medida que o calor subia ao meu rosto.
O rosto do chefe se transformou em um sorriso.
— Eu sei que você invadiu. E sei que você estava com o Ronin quando
o fez. — Ele se acomodou novamente no travesseiro. — Vá em frente. Faça
sua pergunta.
Minha boca se abriu. — Como eu estava dizendo... vi algo em um dos
seus relatórios.
— Como o quê?
— Você riscou o nome do meu pai, Sean Sanderson, e colocou um pon‐
to de interrogação. Por que você fez isso? Você sabe alguma coisa que eu
não sei?
Ok, alguns esclarecimentos. Sim, o sobrenome do meu pai era Sander‐
son. Mas, entre os bruxos, não era incomum usar o sobrenome da mãe.
Principalmente se o sobrenome da família fosse antigo e poderoso. Daven‐
port era um desses sobrenomes.
Marcus ficou olhando para o teto por um tempo antes de responder.
— É algo que sua mãe disse uma vez, quando estava aqui. Ela estava
nos ajudando em um caso. Não me lembro por que estávamos falando de
você, mas estávamos.
Ele ficou quieto, e eu sabia que ele estava pensando em seu melhor ami‐
go. Ele estava trabalhando em um caso com minha mãezinha querida. Eles
eram parceiros. Mas ela o abandonou para ir até meu pai e o deixou sozinho
e exposto. Ele foi morto por um demônio naquela noite.
Engoli com força.
— O que ela disse?
Meu relacionamento com minha mãe era complicado, para dizer o míni‐
mo, e eu não queria tocar no assunto.
Os olhos de Marcus se estreitaram quando ele pensou sobre isso.
— Ela disse... ela disse: "O pai dela não é o pai dela".
— O que diabos isso significa?
As emoções se espalharam por mim e não de uma maneira boa.
O chefe olhou para mim.
— Isso pode significar muitas coisas. — Ele examinou meu rosto. —
Por que você não pergunta a ela? Ela é sua mãe.
Beleza. Era muito cedo para ter essa conversa. Eu preferia pular em
uma banheira fumegante cheia de esterco de vaca a falar com ela agora.
Mas se meu pai não era meu pai biológico, isso explica muita coisa.
— Sabe de uma coisa? — falei, colocando um sorriso que eu não sentia.
— Estou morrendo de fome. E você também deve estar faminto depois de
todas aquelas... você sabe... coisas que fez comigo.
Marcus mostrou os dentes.
— Estou pronto para a quarta rodada, se você quiser.
Eu ri, com meu corpo formigando de calor.
— Não me tente.
Fiquei olhando para ele por um momento e depois tirei minhas pernas
da cama. Peguei meu roupão de banho, que ainda cheirava a Marcus, e o
apertei em volta de mim.
Meu telefone emitiu um sinal sonoro com uma mensagem e eu o peguei
na mesa de cabeceira.
— É uma mensagem do Willis.
— Quem é o Willis?
— Um dos bruxos dos julgamentos de bruxas - oh, meu Deus! Ele con‐
seguiu. Ele passou. Ele é um Merlin.
O pequeno e modesto Willis tinha conseguido. Ele havia resolvido o ca‐
so que Greta havia lhe dado e havia passado no terceiro julgamento. Sorte
número treze.
— Estou feliz por ele — disse Marcus.
Um poço de emoções borbulhou.
— Eu também. Você não faz ideia do quanto ele merecia isso.
Acho que Willis e Wilma também comemoraram um pouco na noite
passada.
Sentindo-me dona do mundo, coloquei meu telefone de volta na mesa
de cabeceira. Olhei para Marcus e disse:
— Voltarei com café e café da manhã.
Fechei a porta do quarto atrás de mim e desci as escadas correndo.
Cheguei ao fundo e me virei para a cozinha. Ao chegar lá, pude ver
Ruth no fogão, sorrindo enquanto preparava mais uma fornada de panque‐
cas. Dolores e Beverly estavam sentadas à mesa da cozinha, rindo. Elas es‐
tavam rindo, não chorando.
A deusa foi boa para nós.
Dolores e Beverly olharam para mim quando me aproximei. Entrei na
cozinha e fui direto para a Ruth. Apertei minha tiazinha em meus braços,
sentindo seu cheiro de sabonete e lavanda.
Ruth soltou um gritinho.
— Vou te sujar com farinha assim, sua boba! — Ela riu quando eu a sol‐
tei e dei um passo para trás.
— Não me importo. Suspirei. Fiquei aliviada ao ver suas lindas boche‐
chas rosadas. Sua cor havia voltado. Eu tinha minha Ruth de volta, e tudo
estava bem no mundo novamente.
— Tentamos fazer pouco barulho — disse Dolores ao colocar a caneca
de café na mesa.
— Acordamos você?
— Ah, não. Estou acordada há horas.
— Fazendo todos os tipos de coisas safadas por horas, não é? — provo‐
cou Beverly, com o rosto fresco e a maquiagem impecável como sempre.
Oh, meu Deus.
— Uh... eu estava esperando pegar o café da manhã para levar para o
meu quarto — eu disse, sentindo um rubor invadir meu rosto. Eu não sabia
por que deveria estar envergonhada. Eu era uma mulher adulta. Ter um ho‐
mem como Marcus esperando por mim em minha cama deveria ter me feito
dar cambalhotas.
Dolores me olhou por cima de sua caneca de café.
— Mas por que? As provas acabaram, Tessa. Greta nos contou tudo so‐
bre você. Estamos todos muito orgulhosos de você. — Seu rosto se esticou
em um sorriso. — Eu sempre soube que você poderia fazer isso.
— Obrigada.
— Ela tem um homem em sua cama. É isso — informou Beverly antes
que eu tivesse a chance de explicar.
A cozinha ficou em silêncio.
Ruth se virou, espalhando pedaços de massa de panqueca por toda a ilha
da cozinha e pelo chão. Seus olhos arregalados combinavam com seu sorri‐
so.
— Você tem um homem na sua cama! — disse ela alegremente, como
se eu tivesse acabado de ganhar na loteria, como se a chance de eu ter um
homem na minha cama fosse pequena. Eu não tinha certeza de como reagir
a isso.
— Uh... certo... umm... sim, quanto a isso. — Respirei fundo. — Sa‐
be….
A campainha da porta tocou.
— Eu abro. — Girei tão rápido que quase me choquei contra a parede.
Meus pés descalços bateram no piso de madeira enquanto eu corria pelo
corredor, imaginando quem poderia ser tão cedo pela manhã. Iris tinha um
molho de chaves, então não poderia ser ela.
Talvez tenha sido o Gilbert. Ele finalmente descobriu que tínhamos seu
caderno de inventário de ervas exóticas e o queria de volta.
Segurando o riso, agarrei a maçaneta e abri a porta da frente.
Meu sorriso desapareceu.
Uma bela mulher de cinquenta anos, com cabelos escuros e olhos que
combinavam com você, estava na porta.
— Bem, não fique aí parada — disse ela, parecendo irritada. — Venha e
dê um abraço em sua mãe.
Que se dane o caldeirão.
Minha mãe estava aqui.
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Sobre A Autora

KIM RICHARDSON é uma autora best-seller do USA Today de fantasia urbana, fantasia e livros pa‐
ra jovens adultos. Ela mora no leste do Canadá com o marido, dois cachorros e um gato velhinho. Os
livros de Kim estão disponíveis em edições impressas e as traduções estão disponíveis em mais de se‐
te idiomas.

Para saber mais sobre a autora, acesse:


www.kimrichardsonbookstore.com

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