Sexualidade e Ministério

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SEXUALIDADE E MINISTÉRIO

Ocir Andreata, phd

Introdução

Você tem uma atividade de caráter público que se implica na sua vida pessoal? Faz
algo como uma “vocação” ou “ministério”, profissional ou religioso?

Olha só que tema interessante! Sexualidade e ministério. Muitas vezes a tradição


chama a vocação médica, advocacional, psicológica, etc, de “sacerdócio”. Exageros
à parte, ministério também pode ser qualquer atividade de dedicação ao outro que
tenha uma face pública que envolva a vida pessoal e exija certo caráter de
compromisso ético. Mas, e o ministério de liderança espiritual dos grandes
monoteísmos ou de qualquer cultura religiosa? E em especial, o ministério cristão,
do padre ou freira, pastor ou pastora, ministro ou ministra, para si ou para os outros?

Bom, para essa especulação podemos percorrer um roteiro de temas da sexualidade


por dentro de textos sagrados, tomando algumas metáforas da poesia bíblica, que
são universais, para uma noção do que seria um ideal de sexualidade e ministério.

Tomando-se o texto sagrado como poético, que por sua universalidade sirva para a
análise simbólica, vê-se a sexualidade tanto para a procriação como para o gozo.
Biologicamente, hoje a sexualidade não é mais exclusiva para a procriação, e o
corpo físico pode ter outras formas de expressões para o gênero e para o prazer.
Biblicamente, porém, como ideal ético universal, sexualidade tem um caráter moral.

Sobre tudo, sexualidade é corpo e alma, ou uma alma que se expressa num corpo.
Logo, é natureza viva. Todavia, esta natureza é moldada pela cultura. Mesmo casais
transgêneros, preservados nas condições biológicas de seus corpos, fazem
parcerias transparentais que servem tanto para o gozo como para a procriação. ,
mesmo nas condições de transgênero, serve à procriação e ao gozo. O ser humano
é sempre um ser de natureza ontológica, mas também de natureza antropológica,
moldado por uma “teia de significados” (Geertz, 2008) dados pela cultura. A Bíblia é
um texto milenar e a cultura é dinâmica no tempo e espaço, por isso precisa da
interpretação correta ao ser contextualizada para a atualidade.

Mas, há sexo na Bíblia? A Bíblia é sexofóbica? Estas perguntas abriam os textos de


nossas pesquisas há mais de vinte anos atrás, para dissertação em Sexologia, sob o
tema Sexo na Bíblia (2001); e posteriormente, na dissertação de mestrado em
Filosofia, sob o tema O Lugar do Prazer na Ética de Agostinho (2006), a serem
publicados. Retomando hoje, aqui e agora, nesta aplicação reflexiva, perguntamos:
que diz a poesia sagrada sobre a relevância da sexualidade para o ministério?

A Bíblia fala de sexualidade o tempo todo, porque fala de pessoas e suas relações.
Tomaremos apenas algumas metáforas poéticas bíblicas do AT e NT para o tema,
sob os tópicos: conjugalidade, desejo, gênero, erótica, mutualidade e família.
Ideal da sexualidade na poesia bíblica

1) Conjugalidade: produzir união (conjugar opostos), Gn 2.24.


“Por isso, deixa homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma
só carne” (Gn 2.24).

Conjugalidade é a contínua união de opostos, para a perpetuação da espécie, o


gozo do prazer e a realização da vida familiar. Primeiro, o “modelo” arquetípico do
casal original homem-mulher, idênticos, feitos à “imagem” divina (tselem; Gn 1.26),
que se apresentam juntos perante Deus (Gn 1). Depois, a “modelagem” de homem e
mulher, diferentes, feitos complementares ao outro (Gn 2), que se conclui no “cântico
do homem” como satisfação de completude, por Adão (ish-ishah; Gn 2.23). Tudo é
poesia. Mas ao fechar o relato, o narrador se trai e mostra sua intenção moral acima:
ao ser humano cabe constituir-se pelo outro!

Na poesia, cada homem “deixa” (azab), se desliga, da casa dos pais para formar por
si novo clã e cumprir o mandato para a família e cultura da terra, da unidade de “um
só corpo” (ahad basar); e se “une” (dabaq), em ato e processo ao par, no desafio de
produzir o “um só”, a unidade de opostos. A natureza da alma busca se completar no
seu oposto. Há paralelos da complementaridade das duas metades que se buscam
e se completam no “mito do andrógino” (Platão, 2005) e no “conceito da conjunctio”
(Jung, 1985). A experiência clínica com casais mostra que de fato há esta tendência.

Psicologicamente, porém, na vida moderna (Freud, 1996) as pessoas se enlaçam


por motivos e modos diversos, conscientes e inconscientes, neuróticos, psicóticos,
perversos, conforme a complexa natureza da alma humana. Pensemos nos
complexos, edípico, castração, sombra, apegos e cuidados mútuos entre mães-pais-
filhos e os egos soberanos, com todos os seus colaterais e sintomas a dificultar as
relações. É preciso coragem, determinação e tolerância para conjugar.

2) Desejo: produzir retorno (prazer), Gn 3.16b.


“teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” (Gn 3.16b)
O desejo é o motor da vida e precisa ser buscado mutuamente para valorizar a
qualidade relacional. Após a “maldição” da queda, homem e mulher se humanizam,
tornam-se divididos em si mesmos pelo saber, e na mulher é posta a “demanda do
desejo” do homem. Trecho de difícil tradução, literalmente: “teu desejo para (teu)
homem, (que te) dominará”; quer dizer, a mulher deseja, o homem domina; todavia,
como a palavra aqui é “mâshal”, também utilizada para “provérbios”, quer dizer então
um “domínio de amor e sabedoria”, no sentido de correspondência mútua plena.

A poesia traz o sentido de um eterno retorno do desejo pela satisfação mútua do


prazer. Logo, quanto mais satisfação, mais o prazer produz desejo e retorno à
relação, empoderando o casal e sua união. Quanto mais goza, mais retorna! De fato
isto se verifica na clínica da sexualidade em casais de boa relação (Sanford, 1987).
3) Gênero: produzir geração (genealogia), Gn 4.1.
“Conheceu Adão à sua mulher Eva e ela concebeu e deu à luz...” (Gn 4.1).

Como ontogenética, gênero é natureza de geração e genealogia da espécie; mas


como antropologia é cultura de modelo e identidade de si. Na metáfora, consequente
à união do casal ideal, sucedeu-se a gravidez, os filhos, a família e o clã. O verbo
“conhecer” (yada) significa “amar, escolher, discernir” e é especial para afirmar o
amor como “conhecimento íntimo” mútuo e responsabilidade ética (Amós 3.2).
Identidade de gênero é a singularidade de cada pessoa, modelado pelo meio cultural
do modelo dos pais e do ethos familiar. Os filhos reproduzem a genealogia familiar.

4) Erótica: produzir arte de amar (selo), Ct 8.6.


“Grava-me, como um selo em teu coração, como um selo em teu braço; pois o amor
é forte, é como a morte! Cruel como o abismo é a paixão; suas chamas são chamas
de fogo, veementes labaredas!” (Ct 8.6).

O poema do Cântico dos Cânticos é o épico da erótica bíblica, que celebra a


relação, nas várias formas de amar, no mútuo prazer e na edificação do amor, com
cumplicidade, encontros e desencontros, perdão e retorno, ao ponto da formação de
um “selo” (hotam), um sinete, bracelete ou ainda uma “tatuagem de amor”, no
“coração” (leb), sede da alma, e sobre o “braço” (zeroâ), símbolo da ação conjunta.
A relação de amor começa com a “paixão abismal” (ahabah), sob “forte” zelo de
ciúme como a “morte” (sheol), “labaredas de fogo”, como a “presença divina” (Êx
3.2-3). A Festa de Amor torna-se um sinete, um modelo simbólico às gerações.

5) Mutualidade: produzir fé e relação (aliança), 1 Cor 7.5.


“Não vos priveis um ao outro, salvo talvez por mútuo consentimento, por algum
tempo, para vos dedicardes à oração e, novamente, vos ajuntardes, para que
Satanás não vos tente por causa da incontinência”.

Paulo faz um aconselhamento pastoral ao casal cristão, apelando a “não-privação”


um ao outro e à norma romana do “débito conjugal”, pelo mútuo consentimento;
aqui, tanto na “oração” (fé) quanto na “relação” (sexualidade), o paradoxo fé e sexo
é uma aliança que consolida o fundamento da relação conjugal familiar. Sem um
compromisso de fidelidade ética, frente ao abismo da paixão (Ct 8.6), o casal
sucumbe à volatilidade sexual, à carência de afeto e de alteridade no mundo.

6) Família: produzir genealogia (nome), Ef 5.22-6.4.


“Maridos, amem suas esposas, como Cristo amou a Igreja, e se entregou por ela” (Ef
6.25).

Agora, “horado o casamento” (τίμιος ὁ γάμος), e o “leito de amor” (ἡ κοίτη; Hb 13.4),


através do amor eros e filia, e especialmente o amor ágape (ἀγαπᾶτε), no modelo de
Cristo, a relação dará frutos duradouros dignos de perpetuar um “nome” (Hb: shem),
cuja geração seja herdeira desta experiência de “genealogia do amor e fé” (Hb 11).
Conclusão

A sexualidade passa por uma revolução de volatilidade e o ministério vive tempos


difíceis de fidelidade. Mais que nunca a sexualidade e suas manifestações pulsivas
e compulsivas é o campo da queda. Como disse Agostinho (354-430) na célebre
oração: “Dei-me a castidade e a continência; mas não já” (Confissões VII,17), as
lideranças religiosas são tomadas como modelos, tanto em sua conjugalidade como
na sua família, por isso se refugiam em densa fiscalização de si mesmos e
exigências familiares, cobranças de uma tal santidade exclusiva de todo sentimento,
brincadeira, humor e arte de amar, por isso vivem a solidão da função como
sacerdócio pudico e refratário. Mas, como vimos, o amor é uma arte a se conjugar.

Como fenômeno de natureza em toda a criação, na sua mais bela diversidade de


expressões, toda beleza se destina à sedução, encontro e união, mesmo que por um
átimo de tempo, em função da perpetuação da espécie, como mostrou Darwin
(2010) na Origem das Espécies Darwin (2010, p.338ss). Procriação e gozo são
próprios da natureza, tanto hetero como homossexual, como fazem várias espécies.
Mas a poesia bíblica fala de valores tomados pela fé como Palavra de Deus.

No ser humano, a sexualidade também é parte da natureza procriativa, mas sendo


intrínseco ao gozo, o prazer dá novos sentidos à sexualidade e ao gênero, os quais
são formatados pela cultura. Para a fé, o problema da cultura, desde o Éden, é
afastar-se da “vontade de Deus” indo na direção cada vez mais volátil dos valores. A
sexualidade é um poder central e definidor da expressão corporal, do psiquismo, da
identidade, da vida social e das relações afetivas. Já o ministério é uma questão de
dom, chamada e confirmação da vocação, de quem se dedica à alteridade humana.
No vocativo religioso, a sexualidade é confirmadora do testemunho ministerial.

Bibliografia:

1. AGOSTINHO, Aurelius. Dos bens do matrimônio, A santa virgindade, e Dos bens da


viuvez. RJ: Vozes, 2000; Confissões. Pensadores. SP: Abril Cultural, 1973.
2. ANDREATA, Ocir de Paula. Religião, Gênero e Sexualidade: fundamentos para o debate
atual. Curitiba: Intersaberes, 2021.
3. Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional (NVI). RJ: Thomas Nelson Brasil, 2018.
4. Bíblia Sagrada. Bíblia de Jerusalém (BJ). SP: Paulinas, 1980.
5. DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. SP: Folha de S. Paulo, 2010.
6. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade. RJ: Imago, 1996. Vol VII.
7. JUNG, C. G. Mysterion Coniunctionis. RJ: Vozes, 1985. Vol XIV/1.
7. PLATÃO. O Banquete. SP: Reedel, 2005.
8. PLUTARCO. Preceitos Conjugais. SP: Edipro, 2019.
9. SANFORD, John. Os parceiros invisíveis. SP: Paulus, 1987.

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