A Arquivistica Como Disciplina Aplicada No Campo D

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A arquivística como disciplina aplicada no campo da ciência da informação

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Fernanda Ribeiro
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ARTIGOS DE REVISÃO

A ARQUIVÍSTICA COMO DISCIPLINA APLICADA NO


CAMPO DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Fernanda Ribeiro
Doutora em Ciências Documentais pela Universidade do Porto, Portugal;
Professora da Universidade do Porto, Portugal
E-mail: [email protected]

Resumo
Apesar de os arquivos terem origens muito remotas, que se podem confundir com as origens da própria
escrita, a Arquivística como disciplina só no século XIX e no quadro do historicismo e do positivismo, se
começou a afirmar, numa perspectiva de “ciência auxiliar” da História. Esta perspectiva historicista e
custodial adquiriu novos contornos por alturas da viragem do século, graças à afirmação da vertente
tecnicista, que se desenvolveu ao longo de todo o século XX, por efeito das condições sociais,
económicas e culturais derivadas da revolução tecnológica em curso. Neste texto põe-se em confronto o
tradicional paradigma historicista, custodial e tecnicista da Arquivística com um novo paradigma
emergente, apelidado de pós-custodial, informacional e científico que entende esta disciplina como um
saber aplicado do campo da Ciência da Informação, sendo apresentados os fundamentos
epistemológicos, teóricos e metodológicos da abordagem proposta.

Palavras-chave: Arquivística. Ciência da Informação. Paradigma.

1 DAS ORIGENS À REVOLUÇÃO FRANCESA: UMA EVOLUÇÃO SEM SOBRESSALTOS

Durante um largo período de desenvolvimento, que decorreu praticamente desde as


origens da escrita ao fim do Antigo Regime, os sistemas de arquivo evoluíram de uma forma
natural, acompanhando as necessidades dos respectivos organismos produtores/utilizadores
da informação por eles custodiada. Na verdade, a origem dos arquivos confunde-se com o
próprio surgimento da escrita, o que demonstra a ideia de que eles sempre foram encarados
como bases e veículos de informação.
Os primeiros arquivos reuniam já ingredientes que vieram a tornar-se clássicos e que
hoje são ainda assumidos pela disciplina: estrutura orgânica coerente, em correspondência
com as funções e com a actividade das entidades produtoras; regras de controlo e matriz
diplomática eficazes, como forma de garantir a identidade e a autenticidade dos documentos;
valor como testemunho e como instrumento de informação.
A prática das civilizações pré-clássicas já assentava em princípios intuitivamente
assumidos e o desenvolvimento da administração e da jurisprudência, bem como a afirmação
da cultura greco-latina, permitiram avanços muito significativos no domínio da organização
arquivística.
Na transição do Mundo Antigo para a Idade Média deu-se a cristalização do conceito e
a vulgarização do termo arquivo. Contudo, existe um grande vazio de conhecimentos sobre o
processo arquivístico até quase à Época Moderna, o qual resulta da fragilidade dos suportes
documentais utilizados (como o papiro) e da usura do tempo, contribuindo para que o mais
importantes arquivos fossem completamente destruídos ou desarticulados, restando poucas
notícias a seu respeito.
Desde muito cedo, a instabilidade política e social levou à mutilação e à transferência
de arquivos, conduzindo a uma quebra da sua estrutura sistémica original. A migração de

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http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/pgc. ISSN: 2236-417X. Publicação sob Licença .
Fernanda Ribeiro

arquivos deu-se, em parte, pelo reconhecimento da sua importância estratégica, como meio
de informação e como um produto/recurso das sociedades.
A evolução do sistema administrativo contribuiu também para a instabilidade dos
arquivos. No século XIV voltam a desenvolver-se os arquivos da administração e, nas grandes
cortes europeias, assiste-se à nomeação de arquivistas oficiais, incumbidos de organizar
inventários, garantir a autenticidade dos documentos e elaborar as “memórias” dos seus
patronos. A experiência dos Estados peninsulares demonstra existir um processo evolutivo,
sem sobressaltos, da Idade Média para a Época Moderna.
No século XVII, começaram a aparecer diversos manuais, portadores de uma
concepção jurídica da realidade arquivística. O trabalho nos arquivos passou a assentar em
normas escritas, que contribuíam para a organização do saber.
Com o movimento iluminista, que suscitou a intensificação da procura dos arquivos,
começa a enfatizar-se o chamado “valor secundário” dos documentos. Uma das consequências
nefastas desta nova curiosidade pelos arquivos foi o desvio introduzido pelas classificações
metódicas e a preferência pela ordenação cronológica dos documentos, sem atender ao seu
contexto produtor, mas indo de encontro a interesses externos. Na área administrativa
surgiram, contudo, algumas propostas isoladas sobre matérias que iriam dar corpo à disciplina:
classificação dos acervos por departamentos de origem, organização de incorporações trienais
e selecção por amostragem (SILVA et al., 2002).

2 A REVOLUÇÃO FRANCESA: AS ALTERAÇÕES ESTRUTURAIS NOS ARQUIVOS E O


SURGIMENTO DA ARQUIVÍSTICA COMO DISCIPLINA

Com a Revolução Francesa, os arquivos sofreram o efeito modelador da viragem


estrutural ocorrida no processo histórico, com particular destaque para as implicações político-
ideológicas, institucionais e jurídico-administrativas. Os chamados arquivos históricos (serviços
públicos) surgem ao serviço da memória do novo Estado-Nação e formaliza-se, pela primeira
vez, o propósito de liberalização do acesso aos arquivos pela generalidade da população. A
criação de um órgão nacional, especificamente vocacionado para a superintendência dos
arquivos, foi outro importante contributo da Revolução Francesa.
A política concentracionista do novo regime teve, porém, consequências desastrosas,
ao promover incorporações em massa, às quais se sucedeu uma reordenação metódica dos
documentos, a partir de classificações anti-naturais que adulteraram a sua orgânica original.
A desorganização instaurada pelas reclassificações provocou um inevitável alarme e
fez com que o governo francês, em 1841, emitisse uma circular para repor a ordem nos
arquivos departamentais e comunais1. Pela primeira vez, se consagrou, a título oficial, o
“princípio do respeito pelos fundos”, o qual tem sido considerado como o fundamento clássico
da Arquivística. No entanto, os resultados não foram, de início, tão efectivos como seria de
supor, dado que veio a ser adoptada uma solução híbrida: o “fundo” era considerado uma
entidade indivisível, mas a sua ordem interna ficava sujeita a critérios alheios à respectiva
organicidade.
A constatação desta incongruência levou a que, em Itália, se propusesse a adaptação
daquele princípio de acordo com o chamado “método histórico” (1867). Era, assim, defendido,
também, o “respeito pela ordem original”, ou seja, a preservação dos critérios organizativos
praticados pela entidade produtora.

1
Referimo-nos à circular do Ministério do Interior francês, intitulada Instructions pour la mise en ordre et le
classement des archives départementales et communales, que foi redigida pelo arquivista e historiador, Natalis de
Wailly.

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O século XIX caracterizou-se pela ocorrência de novas deturpações sobre a função dos
arquivos e sobre os princípios de organização. A Arquivística emerge como disciplina, mas com
o estatuto de “auxiliar” da Ciência Histórica, ligando-se à Paleografia e à Diplomática, dentro
dos parâmetros metodológicos do conhecimento histórico. Os arquivos passaram, muitas
vezes, a ser geridos por pessoas sem formação administrativa, que, activamente, provocaram a
desagregação de muitos acervos documentais. Embora se deva reconhecer os benefícios da
recolha de fontes e da produção de instrumentos de pesquisa, que marcaram amplamente
este período, os efeitos perversos são evidentes. Começou, então, a acentuar-se o primado
discriminatório do valor dos documentos de interesse histórico e, para além disto, o
desenvolvimento dos arquivos destinados a incorporar esse tipo de documentos fez com que
crescessem, de forma artificial, serviços especializados, cuja exclusiva função passou a ser a de
preservar e tornar acessível a documentação que custodiavam, num crescente e nocivo
afastamento das administrações produtoras.
A edição do “Manual Holandês”, da autoria de S. Muller, J. H. Feith e R. Fruin (1898),
marcou o início de um novo período, em que o predomínio da vertente técnica se vai afirmar
definitivamente, libertando a teoria e a prática dos arquivos da dependência directa das
concepções historiográficas. E não terá sido por acaso que, nessa época, se começou a
vulgarizar o termo Arquivística, para definir um campo de saber específico, dirigido a funções
técnicas que se, por um lado, valorizavam a custódia, por outro, incidiam sobre o controlo e a
avaliação dos documentos (da fase corrente até à definitiva). Esta nova perspectiva não tardou
a ser confrontada com o impacte da industrialização e da complexificação burocrática, que
acarretaram novos desafios para a disciplina.
No período entre Guerras, a Arquivística descritiva, desenvolvida em torno da noção
instrumental e incorporacionista de “fundo”, começou a dar espaço a outro tipo de
preocupações, nomeadamente ao nível da gestão de arquivos e da cooperação. O problema
das eliminações tornou-se, também, um tema emergente ao longo deste período, devido ao
considerável aumento da produção documental.
Com o agravar da situação pelo aumento incomensurável de documentos nas
administrações, após a 2ª Guerra Mundial, generalizou-se o apodítico princípio das “três
idades do arquivo”, que pode ter tido origem em Itália, no início do século XX, por meras
razões práticas de instalação dos documentos. Se é certo que esta pretensa teoria parece
apontar para uma cadeia relativamente ininterrupta no ciclo de vida dos documentos, a
verdade é que gerou um efeito perverso, ao levar à criação de serviços e de depósitos, a maior
parte das vezes desarticulados entre si, provocando, assim, distorsões contra-naturam em
unidades sistémicas que, desde há milénios, possuíam uma sólida coerência interna.
Nos Estados Unidos da América, por razões de ordem pragmática, apareceu o conceito
operatório de record group e a actividade profissional do records management. Em tal quadro,
a gestão documental começou a afirmar-se como uma nova área disciplinar, num estreito
vínculo com a administração, num certo repúdio pela arquivística (disciplina auxiliar da
História) e num perigoso corte epistemológico entre diacronia e sincronia da informação
social.
O nascimento do Conselho Internacional de Arquivos, em 1948, permitiu um debate
mais alargado sobre os fundamentos da disciplina. A separação que se estabeleceu entre
records e archives, sobretudo na tradição cultural anglo-saxónica, acabou por gerar,
forçosamente, novas preocupações de índole teórica.
Nos anos mais recentes, começou a ser defendida a inserção da Arquivística no campo
da Ciência da Informação. Foi o início da era “pós-custodial” em que os arquivos emergem
como sistemas de informação, cuja complexidade nem sempre se confina à ordem material
dos documentos e cuja organicidade transcende as vicissitudes da sua tradição custodial.

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Com efeito, a partir dos anos 80, a nova revolução tecnológica e social, ilustrada pela
vertiginosa evolução em curso, sobretudo, no domínio do audiovisual e da telemática, forçou a
emergência de uma situação transitória, anunciadora de um novo ciclo, concretamente para as
disciplinas, como a Arquivística, relacionadas com o fenómeno social da informação.
A percepção do impasse e do salto epistemológico, que afectam, hoje, o conhecimento
empírico construído em torno de tal fenómeno, não é ainda partilhada por muitos cientistas da
informação, porque não é ainda muito nítida a fundamentação epistemológica das suas
respectivas ciências e, em especial, das até agora chamadas “ciências documentais”.

3 A TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS NA ERA PÓS-CUSTODIAL

Neste percurso evolutivo da Arquivística, brevemente delineado nos pontos


anteriores, podemos considerar três fases, que a seguir se caracterizam de forma esquemática,
devidamente enquadradas no devir do processo histórico (ver Fig. 1):
- a fase sincrética e custodial;
- a fase técnica e custodial; e
- a fase científica e pós-custodial.
As duas primeiras fases enquadram-se no paradigma que se desenvolveu e consolidou
após a Revolução Francesa e que apelidamos de custodial, patrimonialista, historicista e
tecnicista; a última insere-se no novo paradigma, em consolidação, que denominamos
informacional, científico e pós-custodial.
O paradigma custodial, patrimonialista, historicista e tecnicista, que se afirmou,
desenvolveu e consolidou ao longo das centúrias de oitocentos e novecentos e que, por força
da revolução tecnológica, entrou em crise e começou a gerar, no seu próprio seio, os factores
de mudança que o iriam abalar fortemente a partir da década de oitenta do século passado,
pode ser caracterizado, em traços gerais, da seguinte forma (SILVA et al., 1999; SILVA; RIBEIRO,
2002; SILVA, 2006):
- sobrevalorização da custódia ou guarda, conservação e restauro do suporte, como função
basilar da actividade profissional de arquivistas e bibliotecários;
- identificação do serviço/missão custodial e público de Arquivo e de Biblioteca, com a
preservação da cultura “erudita”, “letrada” ou “intelectualizada” (as artes, as letras e as
ciências), em antinomia mais ou menos explícita, com a cultura popular, “de massas” e de
entretenimento;
- enfatização da memória como fonte legitimadora do Estado-Nação e da cultura como reforço
identitário do mesmo Estado e respectivo Povo, sob a égide de ideologias de viés nacionalista;
- importância crescente do acesso ao “conteúdo”, através de instrumentos de pesquisa (guias,
inventários, catálogos e índices) e do aprofundamento dos modelos de classificação e
indexação, derivados do importante legado tecnicista e normativo dos belgas Paul Otlet e
Henri La Fontaine, com impacto na área da documentação científica e técnica, possibilitando a
multiplicação de Centros e Serviços de Documentação/Informação, menos vocacionados para
a custódia e mais para a disseminação informacional;
- prevalência da divisão profissional decorrente da criação e desenvolvimento dos
serviços/instituições Arquivo e Biblioteca, indutora de um arreigado e instintivo espírito
corporativo que fomenta a confusão entre profissão e ciência (persiste a ideia equívoca de que
as profissões de arquivista, de bibliotecário e de documentalista geram, naturalmente,
disciplinas científicas autónomas como a Arquivística/Arquivologia, a Biblioteconomia/
Bibliotecologia ou a Documentação) (SILVA, 2006).

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FASE SINCRÉTICA FASE TÉCNICA E FASE CIENTÍFICA


E CUSTODIAL CUSTODIAL E PÓS-CUSTODIAL

Arquivista-Paleógrafo Especialização Profis- Arquivista profissional


Arquivista auxiliar da sional do Arquivista da Informação
História Emergência do
arquivista / cientista da
Informação

SÉC. XVIII – 1898 1898-1980 1980- ….

- Incorporação maciça da - Arquivos históricos - Arquivos como Sis-


documentação de - Arquivos adminis- temas de Informação
organismos extintos trativos - Conhecimento arqui-
- Arquivo Nacional - Gestão de Documen- vístico
- Noção de fundo (1841) tos - Normalização do
- Normalização (ter- acesso aos arquivos e à
minologia, classifi- Informação
cação)
- Reformulação crítica
da noção de fundo

- Revolução industrial - 2.ª e 3.ª vagas de - Consequências da


- Revoluções políticas industrialização pós-industrialização
e sociais - Evolução tecnológica - Sociedade da Infor-
- Racionalismo, Positi- e científica mação
vismo, Historicismo - Democracia e Totali- - Globalização da
- Estado-Nação tarismos economia

PROCESSO HISTÓRICO

Figura 1 - O Processo Informacional relativo aos Arquivos


Fonte: elaboração própria

Estes traços não esgotam a caracterização possível do modo de ver e de agir dos
profissionais da documentação/informação, uma vez que se vêem confrontados, na
actualidade, com alterações estruturais propiciadoras da emergência de um novo paradigma

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(informacional, científico e pós-custodial), que começou a despontar, há umas décadas,


através do reforço da componente tecnicista do paradigma custodial, patrimonialista e
historicista. Tal componente acentuou-se, a partir dos anos sessenta do século XX, com a
generalização do legado de Paul Otlet e Henri La Fontaine e com a intensificação de políticas
centradas na difusão da informação científica e técnica e com a afirmação do Estado Cultural.
Na actualidade, não se perspectiva o fim do Estado Cultural, democrático,
intervencionista e modelado pelo capitalismo financeiro e informacional, mas é cada vez mais
evidente, de acordo com David Lyon, o impacto da Era da Informação ou Era Digital, pela
realização de tarefas relacionadas com a informação editando, reunindo, armazenando,
consultando e disseminando os dados disponíveis, porquanto os dados processados são formas
de informação simbólica (LYON, 1992, p. 141).
Ainda segundo David Lyon, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) vêm
contribuindo para o desmoronamento de barreiras entre as categorias clássicas da informação,
bastando para tal notar que um mesmo meio electrónico pode transportar a voz, o vídeo,
dados técnicos ou financeiros, imagens fotográficas ou textos escritos, polivalência ou
simultaneidade de funções que abatem velhas distinções, nomeadamente no caso da “edição
electrónica” em que os papéis de escritor, de editor e de impressor se fundem num só (LYON,
1992, p. 141-142).
É, pois, no contexto da era da informação em pleno desenvolvimento e no quadro da
revolução digital que o novo paradigma informacional, científico e pós-custodial se tem vindo
a afirmar e a substituir o paradigma anterior. Contrapondo ao que anteriormente foi dito em
jeito de caracterização do paradigma custodial, historicista e tecnicista, também se pode, em
linhas gerais, enunciar uma série de características que ajudam a compreender a nova
perspectiva que está em consolidação. Vejamos, então, como se caracteriza o novo paradigma
informacional, científico e pós-custodial:
- valorização da informação enquanto fenómeno humano e social, sendo a materialização num
qualquer suporte um epifenómeno;
- constatação do incessante e natural dinamismo informacional, oposto ao “imobilismo”
documental, traduzindo-se aquele pelo trinómio criação/selecção natural/acesso-uso, e o
segundo, na antinomia efémero versus permanência;
- prioridade máxima dada ao acesso à informação por todos, em condições bem definidas e
transparentes, pois só o acesso público justifica e legitima a custódia e a preservação;
- imperativo de indagar, compreender e explicitar (conhecer) a informação social, através de
modelos teórico-científicos cada vez mais exigentes e eficazes, em vez do universo rudimentar
e fechado da prática empírica composta por um conjunto uniforme e acrítico de modos/regras
de fazer, de procedimentos só aparentemente “assépticos” ou neutrais de criação,
classificação, ordenação e recuperação;
- alteração do actual quadro teórico-funcional da actividade disciplinar e profissional por uma
postura diferente, sintonizada com o universo dinâmico das Ciências Sociais e empenhada na
compreensão do social e do cultural, com óbvias implicações nos modelos formativos dos
futuros profissionais da informação;
- substituição da lógica instrumental, patente nas expressões “gestão de documentos” e
“gestão da informação”, pela lógica científico-compreensiva da informação na gestão, isto é, a
informação social está implicada no processo de gestão de qualquer entidade ou organização
e, assim sendo, as práticas informacionais decorrem e articulam-se com as concepções e
práticas dos gestores e actores e com a estrutura e cultura organizacionais, devendo o
cientista da informação, em vez de ou antes de estabelecer regras operativas, compreender o
sentido de tais práticas e apresentar dentro de certos modelos teóricos as soluções (retro ou)
prospectivas mais adequadas (SILVA, 2006).

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4 A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

É no quadro do novo paradigma que assumimos a emergência da Ciência da Informação (CI),


numa evolução natural das disciplinas práticas que a antecederam (Biblioteconomia,
Arquivística, Documentação), isto é, sem rupturas radicais, mas antes numa perspectiva
transdisciplinar que as integra como componentes aplicadas. Os diagramas que se seguem
ilustram, precisamente, esta perspectiva e pretendem cartografar o campo científico e
delimitar as fronteiras da CI, ao mesmo tempo que ilustram as suas relações inter e
transdisciplinares (ver Fig. 2 e 3).

DIAGRAMA DO CAMPO CIENTÍFICO


DA
CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Arquivística Biblioteconomia
Ciências da transdisciplinaridade Informática
Administração Computação
e Gestão Sistemas de Informação Electrónica

Física
História Ciências da Química e
Sociologia Psicologia Comunicação outras Ciências
Património Cognitiva Naturais
Cultural Linguística aplicadas
Museologia Semiótica aos suportes

interdisciplinaridade

OBJECTO MATERIAL

INFORMAÇÃO SOCIAL

SOCIEDADE

condições políticas, técnicas,


económicas, culturais, etc.

acção humana

Figura 2 - Diagrama do Campo da Ciência da Informação


Fonte: SILVA, 2006, p. 28.

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Figura 3 - Diagrama da construção trans e interdisciplinar da Ciência da Informação


Fonte: SILVA, 2006, p. 28.

Ao pensarmos e fundamentarmos a CI, além do estabelecimento das suas fronteiras, é


crucial a definição do seu objecto de estudo e a assunção de um método ajustado às
características do fenómeno da Informação (social), enfatizando a sua componente qualitativa
(embora não descurando os aspectos passíveis de análise e de investigação quantitativa),
como, aliás, é próprio e específico das ciências sociais.
No que toca ao objecto da CI – a Informação –, ter como ponto de partida uma
definição é, a nosso ver, um requisito indispensável, pois funciona como conceito operatório
matricial. No já referido ensaio epistemológico, Das “ciências” documentais à Ciência da
Informação, foi definida como segue:

Informação – conjunto estruturado de representações mentais codificadas


(símbolos significantes) socialmente contextualizadas e passíveis de serem
registadas num qualquer suporte material (papel, filme, banda magnética,
disco compacto, etc.) e, portanto, comunicadas de forma assíncrona e multi-
direccionada (SILVA; RIBEIRO, 2002, p.37).

E, neste sentido, assume-se como o objecto de estudo e de trabalho da CI.


Complementando a definição, amplia-se a caracterização do fenómeno ‘informação’
pelo enunciado das suas propriedades, que, embora já mencionadas por Harold Borko em
1968 (BORKO, 1968), ou mesmo por Yves-François Le Coadic no seu livro intitulado A Ciência
da Informação (LE COADIC, 2004), não haviam sido formuladas, a nosso ver, de uma forma

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clarificadora. Assim, esse enunciado das propriedades da informação apresenta-se do seguinte


modo:
estruturação pela acção (humana e social) – o acto individual e/ou colectivo funda e modela
estruturalmente a informação;
integração dinâmica – o acto informacional está implicado ou resulta sempre tanto das
condições e circunstâncias internas, como das externas do sujeito da acção;
pregnância – enunciação (máxima ou mínima) do sentido activo, ou seja, da acção fundadora e
modeladora da informação;
quantificação – a codificação linguística, numérica ou gráfica é valorável ou mensurável
quantitativamente;
reprodutividade – a informação é reprodutível sem limites, possibilitando a subsequente
retenção/memorização; e
transmissibilidade – a (re)produção informacional é potencialmente transmissível ou
comunicável.
Podemos, pois, considerar, de forma sintética, estes elementos caracterizadores da
Informação, aliados à definição acima apresentada, como as bases mínimas e fundamentais
para o discurso científico sobre o que consideramos ser o objecto de estudo e de trabalho da
CI, área teórico-prática em consolidação, que dá sustentação a competências profissionais
multifacetadas, em consonância com os contextos e as exigências do desempenho profissional.
Quanto à componente metodológica da CI, também em breves palavras, podemos
compulsar o que desenvolvemos na obra Das “ciências” documentais à Ciência da Informação
(SILVA; RIBEIRO, 2002). Consideramos o método de investigação quadripolar, concebido por
Paul de Bruyne e outros autores (DE BRUYNE ; HERMAN ; SCHOUTHEETE,1974), como o
dispositivo mais adequado às exigências do conhecimento da fenomenalidade informacional,
uma vez que não se restringe a uma visão meramente instrumental. Trata-se de uma proposta
na qual é recuperada a ideia essencial de ‘Método’ como conjunto completo de etapas
indispensáveis para que o processo de identificação do problema, formulação de hipóteses,
adopção de teorias e/ou modelos, comprovação destes através de operações ou
procedimentos técnicos como a observação, o inquérito e respectivo tratamento quantitativo
(estatístico), as entrevistas semi-estruturadas, a análise de conteúdo, etc., e a formalização
final dos resultados. A sua dinâmica investigativa resulta de uma interacção entre quatro pólos
– o epistemológico, o teórico, o técnico e o morfológico – permitindo uma permanente
projecção dos paradigmas interpretativos, das teorias e dos modelos na operacionalização da
pesquisa e na apresentação dos resultados da mesma (LESSARD-HÉBERT; GOYETTE; BOUTIN,
1994).
No pólo epistemológico – instância superior imbricada no aparato teórico e
institucional (a comunidade científica dos especialistas em Informação, as suas escolas,
institutos, locais de trabalho e ainda os seus referentes políticos, ideológicos e culturais) –
opera-se a permanente construção do objecto científico e a delimitação da problemática da
investigação, ou seja, dá-se a reformulação constante dos parâmetros discursivos, dos
paradigmas e dos critérios de cientificidade (objectividade, fidelidade e validade) que norteiam
todo o processo de investigação.
No pólo teórico manifesta-se a racionalidade predominante do sujeito que conhece
(se relaciona e se adequa com) o objecto, bem como a respectiva postulação de leis,
formulação de conceitos operatórios, hipóteses e teorias (plano da descoberta) e subsequente
verificação ou refutação do "contexto teórico" elaborado (plano da prova). Este pólo respalda
a componente técnica e instrumental e dá sentido à explanação de resultados que
consubstancia o pólo morfológico.
No pólo técnico o investigador toma contacto, por via instrumental, com a realidade
objectivada. No domínio da Arquivística descritiva e da Biblioteconomia, tal como têm sido

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praticadas, acumularam-se procedimentos técnicos canalizados para a representação formal


da documentação e para o armazenamento, transferência, recuperação e difusão. Impõe-se a
revisão do alinhamento destas técnicas dispersas e avulsas, porque neste pólo se joga a
capacidade probatória (verificação ou refutação do "contexto teórico") do dispositivo
metodológico, que nada tem a ver com uma mera "listagem" arrumada/classificada
intelectualmente (à revelia da lógica indutiva e à maneira de um processo dedutivo
inconsequente).
No pólo morfológico assume-se por inteiro a análise/avaliação e parte-se não apenas
para a configuração do objecto científico, mas também para a exposição de todo o processo
que permitiu a sua construção, relativamente à função de comunicação. Trata-se da
organização e da apresentação dos dados, devidamente crivados no pólo teórico e aferidos no
pólo epistemológico, o que ilustra, aliás, o pendor interactivo da investigação quadripolar.

pólo pólo
epistemológico teórico

DISPOSITIVO
METODOLÓGICO

pólo pólo
morfológico técnico
Figura 4 - Esquematização do MÉTODO QUADRIPOLAR e interacção dos pólos
Fonte: elaboração própria

Nesta dinâmica quadripolar de investigação assume particular relevância o pólo


teórico, uma vez que ele suporta a componente técnica e instrumental e dá sentido à
explanação de resultados que se consubstancia no pólo morfológico. Havendo, naturalmente,
diferentes teorias e modelos que sustentam o modo de ver e de pensar o fenómeno/processo
informacional (SILVA; RIBEIRO, 2002) manifestamos a nossa preferência pela Teoria Sistémica,
que radica as suas origens nos estudos de Ludwig von Bertalanffy, desenvolvidos a partir dos
anos vinte da centúria passada, dado que congrega uma visão holística e se ajusta bem ao
universo complexo e difuso da Informação, como se comprova por exemplos vários da sua
aplicação teórico-prática (RIBEIRO, 2004; MELLA, 1997).
No pólo técnico, que até agora as ciências ditas “documentais” sobrevalorizaram como
sendo a essência do trabalho do profissional da informação, situam-se todos os procedimentos
de carácter mais instrumental, destacando-se três operações maiores:
1ª – Observação directa e indirecta (de casos ou de variáveis)
Recolha exaustiva dos elementos histórico-institucionais, normativos e reguladores, e
descrição da natureza e do funcionamento interno de qualquer Sistema de Informação
(caso/casos) ou de qualquer tema supra/intercasuístico (variável/variáveis) através de diversas
técnicas ou procedimentos, tais como o questionário, a entrevista, observação participante e a
consequente elaboração de fichas de registo;

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2ª – Experimentação
Num campo tendencialmente artificial, fechado e controlado (por contraste com o
campo real, aberto e não controlado do estudo de caso), que se acentua em laboratório ou em
simulação de computador, é imprescindível a formulação clara de um problema, a descrição
das técnicas de análise e a apresentação dos instrumentos usados, dos equipamentos e meios
científicos empregues. Se feita por amostragem apoia-se na análise estatística de acordo com
a lógica dos testes de hipóteses.
3ª – Análise/Avaliação retrospectiva e prospectiva:
Enunciado genérico – sujeitar os resultados da observação e/ou da experimentação a
um rigoroso exame que permita generalizações e o estabelecimento de analogias
cientificantes. Decorre deste investimento operatório a confirmação ou infirmação dos
conceitos em uso, das hipóteses e teorias preparadas para cada projecto de investigação e, em
última instância, dos princípios gerais fixados no pólo teórico.
Enunciado complementar – a adaptação desta terceira operação ao campo científico
da Informação implica a presença de outras operações subsidiárias, mas essenciais, que
chegam a integrar em si a observação: a descrição, a análise de conteúdo e a indexação, e o
controlo de autoridade. Todas estas operações contribuem para a (re)organização
informacional entendida em stricto sensu: pôr em evidência as propriedades intrínsecas e
intervir no processo (memória, transferência e uso) da Informação.
Sendo que o pólo epistemológico (referencial paradigmático) e o pólo teórico
condicionam decisivamente a componente aplicacional da CI, que se inscreve, em pleno, nos
pólos técnico e morfológico, é óbvio que a mudança de paradigma em curso e as teorias
adoptadas (Teoria Sistémica, no nosso caso) implicam uma revisão do quadro tecnicista que
tem sido o fundamento essencial das disciplinas aplicadas que integramos na CI. O método
quadripolar implica uma visão holística e uma dinâmica investigativa em permanente avaliação
e aperfeiçoamento, única perspectiva que dá sentido à construção de um conhecimento
científico.

5 A ARQUIVÍSTICA NO CAMPO DA CI

De acordo com a perspectiva apresentada no ponto anterior, a Arquivística ganha um


carácter de componente aplicada no campo mais vasto da CI e nesse sentido sintetizamos sua
definição como segue:
Arquivística – é uma disciplina aplicada do campo da Ciência da Informação, que
estuda os arquivos (sistemas de informação (semi-)fechados), quer na sua estruturação interna
e na sua dinâmica própria, quer na interacção com os outros sistemas correlativos que
coexistem no contexto envolvente.
Também em consonância com o exposto se pode aduzir uma definição para ‘arquivo’,
que está em sintonia com esta perspectiva assumida para a Arquivística:

Arquivo é um sistema (semi-)fechado de informação social materializada em


qualquer tipo de suporte, configurado por dois factores essenciais - a
natureza orgânica (estrutura) e a natureza funcional (serviço/uso) – a que se
associa um terceiro – a memória – imbricado nos anteriores (SILVA et al.,
1999).

Da definição apresentada ressalta a indispensável caracterização interna do objecto


próprio da disciplina científica em foco. Uma caracterização/representação que tem de ser
tipológica, porque a simbiose dinâmica dos dois factores presentes na unidade ou na

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totalidade arquivo pode-se pensar/representar, no plano meramente formal, através de vários


tipos diferenciados que instauram o sistema de informação arquivo enquanto objecto de
investigação já não empírica, mas sobretudo científica, racional e abstracta.
Se considerarmos, apenas, o factor estrutura orgânica verifica-se que o arquivo,
sistema (semi-)fechado de informação, pode assumir duas configurações:
1.ª – o unicelular – é todo o sistema que assenta numa estrutura organizacional de
reduzida dimensão, gerada por uma entidade individual ou colectiva, sem divisões sectoriais
para assumir as respectivas exigências administrativas. Note-se que este tipo de sistema é
permeável a uma forte pressão integradora, que leva à constituição de sistemas patrimoniais
complexos, onde a informação arquivo se interliga com a informação biblioteconómica e com
a museológica.
2. ª – o pluricelular – é todo o sistema que assenta numa média ou grande estrutura
organizacional, dividida em dois ou mais sectores funcionais, podendo mesmo atingir uma
acentuada complexidade. No caso de algumas entidades industriais, financeiras e
governamentais surgem sub-sistemas dotados de certa autonomia orgânico-funcional, com
reflexos no modo prático de gestão da informação. Note-se, contudo, que se podem, também,
formar subsistemas, tendo por base estruturas unicelulares (é o caso das pessoas e de certas
famílias).
Mas estas duas configurações possíveis resultam, apenas, do factor estrutura orgânica,
insuficiente para que possamos ter, na sua plenitude, um sistema de informação. Por isso, há
que ter em conta a actuação, articulada com a estrutura, do factor serviço/uso, de que
resultam:
1.º – o centralizado – é todo o sistema (unicelular ou pluricelular) que opera o controlo
da sua informação através de um único centro (onde se concentra fisicamente toda a
informação) e que baseia o tratamento da mesma em critérios funcionais, ideográficos ou
outros, que determinam a organização dos documentos e a elaboração de instrumentos de
acesso.
2.º – o descentralizado – é todo o sistema pluricelular que, para obter maior eficácia,
opta por um controlo da sua informação através da atribuição de autonomia aos seus vários
sectores orgânico-funcionais e aos subsistemas, quando existem, e por um tratamento
documental devidamente ajustado à descentralização praticada.
E quanto ao factor memória, há também a considerar duas situações:
1.º – o activo – é todo o sistema em que existe um regular funcionamento ou
actividade da respectiva entidade produtora. Nesta situação, o arquivo tanto poderá fixar-se,
materialmente, no seu habitat de origem (isto é, no seio da entidade produtora),
compreendendo as diferentes fases da vida dos documentos – desde a origem à conservação
definitiva –, como poderá estar, fisicamente, desmembrado. Geralmente, na situação de
desmembramento, os documentos de idade mais recente mantêm-se no seu habitat original,
servindo preferencial e quase exclusivamente, as necessidades informativas da entidade
produtora; os documentos mais antigos, porque perderam o seu valor administrativo e
porque, na maioria dos casos, a entidade produtora carece de espaço adequado à sua
conservação e manutenção, são deslocados para um outro arquivo, que designamos por
especializado (ou centro de arquivos)2.

2
O arquivo especializado constitui-se assim, como uma espécie de macro-sistema formado por um conjunto
ilimitado de sistemas unicelulares centralizados, pluricelulares centralizados e pluricelulares descentralizados, todos
autónomos.
Ao ser deslocada parte de um arquivo activo, isso não significa que haja desactivação do mesmo, ou que ele passe a
constituir um arquivo diferente. Pelo contrário, ele continuará a ser “alimentado” pela documentação que vai
perdendo utilidade administrativa. Exemplo, que mostra muito bem esta situação é os dos arquivos notariais ou dos

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2.º – o desactivado – é todo o sistema que já não pertence a um organismo em pleno


funcionamento. A entidade produtora cessou a sua actividade ou foi extinta, pelo que todo o
sistema ficou encerrado ou estático. Nesta situação, a tendência mais comum é a de
transferência dos arquivos desactivados para outros, os especializados ou centros de arquivos,
que têm a função de enquadrar os conjuntos documentais que incorporam. Mas, uma vez aí,
os arquivos desactivados devem permanecer como entidades individualizáveis, não se
misturando ou “encaixando” em quaisquer novas estruturas. Pelo contrário, mantêm a sua
unidade e organicidade próprias.
Da combinação dos três factores acima enunciados, podemos ter diferentes tipos de
arquivos, a saber:
- Unicelular activo / Unicelular desactivado
- Pluricelular centralizado activo / Pluricelular centralizado desactivado
- Pluricelular descentralizado activo / Pluricelular descentralizado desactivado
E, ainda, o especializado ou centro de arquivos3, que é um sistema pluricelular criado
especialmente para incorporar, salvaguardar e divulgar qualquer arquivo desactivado ou ainda
para incorporar informação sem interesse administrativo (valor primário) proveniente de
organismos em plena actividade. Note-se que há sistemas pluricelulares activos, que por
razões estruturais próprias, se podem assumir, cumulativamente, como especializados (é o
caso de um arquivo municipal).
Este tipo de arquivos, produto da Modernidade e das concepções iluministas e liberais,
constitui, ainda hoje, a face mais visível da realidade arquivística, mas não a esgota, nem pode
tão pouco condicionar o respectivo conhecimento científico. É certo que, no actual período de
viragem, a Arquivística continua a ser pensada, praticada e difundida como a disciplina técnica
que ensina a lidar com os “Serviços de Arquivo”, uma vez que o paradigma custodial,
patrimonialista e tecnicista é ainda dominante. Mas, por força da revolução digital, as novas
concepções estão paulatinamente a impor-se a a operar a transição paradigmática.
Após estas considerações sobre o objecto da Arquivística e suas configurações, resta-
nos, para concluir, fazer referência à componente metodológica, particularmente ao que toca
ao pólo teórico do método quadripolar. Neste pólo, uma vez ajustado à investigação
arquivística, emerge, a racionalidade indutiva e há um vasto “material” acumulado
empiricamente que, à luz do paradigma de cientificidade aqui perfilhado, pode ser convertido
em “contexto teórico” disponível para projectos de investigação. Referimo-nos a um conjunto
de leis ou princípios, formulados especificamente para o contexto arquivístico, embora
passíveis de extrapolação para outros sistemas de informação. São eles:
- o princípio da acção estruturante – todo o Arquivo resulta de um acto fundador,
individual ou colectivo, formal ou informal, que molda a estrutura organizacional e a sua
especificidade funcional em evolução dinâmica.
- o princípio da integração dinâmica – todo o Arquivo integra e é integrado pela
dinâmica do universo sistémico que o envolve (interligação e relação com outros sistemas
conexos).
- o princípio da grandeza relativa – todo o Arquivo se desenvolve como estrutura
orgânica simples (unicelular) ou complexa (pluricelular).

registos civis, que se encontram fisicamente desmembrados – nas entidades produtoras (Cartórios Notariais e
Conservatórias do Registo Civil) e em Arquivos especializados (Arquivos Distritais).
3
A vigência do modelo romântico, nacionalista e centralizador, desenvolvido na Europa após a Revolução Francesa
(1789), justificou a criação de grandes estruturas especializadas na concentração, na custódia e na divulgação de
arquivos autónomos num mesmo espaço privilegiado de memória, indispensável à História da Nação. Essas
estruturas, produto genuíno da Modernidade, foram concebidas, artificialmente, sobrepondo-se aos factores
‘estrutura orgânica’ e ‘serviço/uso’.

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- o princípio da pertinência – todo o Arquivo disponibiliza informação que pode ser


recuperada segundo a pertinência da estrutura organizacional
Estes princípios derivam do “património” adquirido, no qual se inscreve a representação
tipológica do objecto e, importa sublinhá-lo, inserem-se no paradigma da Arquivística
científica, tal como os princípios do “respeito pelos fundos” e do “respeito pela ordem
original” se inseriam no anterior paradigma custodial, historicista e tecnicista.
Tal “património” tem de ser incluído necessariamente na formulação dos conceitos
operatórios, das hipóteses e das teorias explicativas dos casos, indutivamente abordados, e
revisto obrigatoriamente na fase probatória, isto é, de permanente verificação ou refutação
das noções gerais, fundadoras de uma compreensão e inteligibilidade universalizantes.

Archival Science as an Applied Branch of Information Science

Abstract
In spite of archives have ancient roots, that can be confused with the origins of the writing itself, Archival
Science as a discipline only in the 19th century began to be settled in the scope of historicism and
positivism and in a perspective of “auxiliary science” of History. This historical and custodial perspective
gained new shapes by the end of the century, because of the importance of technicism that has been
improved along the 20th century, by the effect of social, economic and cultural conditions, derived from
the technological revolution in progress. In this paper the traditional paradigm, designated as historicist,
custodial and technicist, is put forward to a new and emergent paradigm, named post-custodial,
informational and scientific, that understands this discipline as an applied branch of Information
Science’s field. The epistemological, theoretical and methodological groundings of the proposed view are
exposed.

Keywords: Archival Science. Information Science. Paradigm.

Artigo recebido em 30/03/2011 e aceito para publicação em 21/04/2011

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